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XII JORNADA DE HISTÓRIA

CULTURAL

História, Cultura e Imagem

ANAIS ELETRÔNICOS
ISSN: 2178-1761

14 e 15 de agosto de 2015
Santander Cultural
Porto Alegre/RS – Brasil
XII JORNADA DE HISTÓRIA CULTURAL
História, Cultura e Imagem
Porto Alegre (RS), 14 e 15 de agosto de 2015.
ISSN: 2178-1761

Comissão Organizadora e Científica:


Alice Dubina Trusz;
Carla Simone Rodeghero;
Carmem Adriane Ribeiro e
Viviane Viebrantz Herchmann.

TRUSZ, Alice Dubina; et al (Orgs.). Anais da XII Jornada de História


Cultural: História, Cultura e Imagem. Porto Alegre: ANPUH-RS, 2015,
220p.

ISSN: 2178-1761

Realização:
GT História Cultural – ANPUH-RS – Gestão 2014/2016
Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Carla Simone Rodeghero
Vice-coordenadora: Prof.ª Dr.ª Alice Dubina Trusz
1ª Secretária: Prof.ª Me. Carmem Adriane Ribeiro
2ª Secretária: Prof.ª Dr.ª Viviane Viebrantz Herchmann

Apoio:
Associação Nacional de História - Seção Rio Grande do Sul (ANPUH-RS)
<http://www.anpuh-rs.org.br>

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Pró-Reitoria de Pesquisa <


http://www.ufrgs.br/propesq/>

Santander Cultural <www.santandercultural.com.br>


XII JORNADA DE HISTÓRIA CULTURAL
História, Cultura e Imagem
Porto Alegre (RS), 14 e 15 de agosto de 2015.
ISSN: 2178-1761

SUMÁRIO:

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 5

A CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM TURÍSTICA DE TORRES/RS POR


MEIO DE FOTOGRAFIAS DO ESTÚDIO FOTOGRÁFICO DE ÍDIO K.
FELTES
Camila Eberhardt ............................................................................................ 9

HISTÓRIA E IMAGEM: A ALEGORIA DA PINTURA NA OBRA DE


ARTEMÍSIA GENTILESCHI
Cristine Tedesco ............................................................................................... 28

ÁLBUNS E ALMANAQUES NO INTERIOR PAULISTA: IMAGENS E


REPRESENTAÇÕES AMBÍGUAS DA MODERNIDADE EM
BARRETOS E RIBEIRÃO PRETO DURANTE A PRIMEIRA
REPÚBLICA
Humberto Perinelli Neto e Rodrigo Ribeiro Paziani .................................... 51

O ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS DA MANOBRA DE SAICÃ (1940) E O


IMAGINÁRIO DE MODERNIZAÇÃO DO EXÉRCITO BRASILEIRO
Ianko Bett ......................................................................................................... 77

BARROCO JESUÍTICO-GUARANI?
Jacqueline Ahlert ............................................................................................. 103
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ENTUSIASTAS DA FOTOGRAFIA: O PHOTO-CLUB HELIOS, DE


PORTO ALEGRE
Luzia Costa Rodeghiero .................................................................................. 118

NOS PONTEIROS DA NAÇÃO: TEMPORALIDADES MODERNAS NO


DESENHO DE FLÁVIO DE CARVALHO (DÉCADA DE 1920)
Marcelo Téo ...................................................................................................... 132

PEDAGOGIAS DA IMPRENSA NEGRA: NEGOCIAÇÕES DE


SENTIDOS E TRANSGRESSÕES SIMBÓLICAS
Maria Angélica Zubaran ................................................................................. 157

IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL: UMA NARRATIVA


VISUAL
Marlise Regina Meyrer ................................................................................... 171

BRINCAR E GUARDAR: CAMINHOS INTERPRETATIVOS PARA


UMA COLEÇÃO DE BRINQUEDOS NO MUSEU PARANAENSE
Martha H. L. Becker Morales ........................................................................ 186

OS DETENTOS TÊM ROSTO: O ÁLBUM DO MÉDICO SEBASTIÃO


LEÃO – PORTO ALEGRE, 1896
Raquel Braun Figueiró .................................................................................... 199

218
GT HISTÓRIA CULTURAL DA ANPUH-RS ................................................

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA, SEÇÃO RIO GRANDE DO


220
SUL – ANPUH-RS ........................................................................................
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ISSN: 2178-1761

APRESENTAÇÃO

É com satisfação que disponibilizamos aos interessados os Anais da XII Jornada de


História Cultural – História, cultura e imagem, realizada nos dias 14 e 15 de agosto de 2015,
no Santander Cultural, em Porto Alegre/ RS e organizada pelo GT de História Cultural,
vinculado à Associação Nacional de História – Seção RS.
Os grupos de trabalho da ANPUH, constituídos desde a década de 1990 com a
finalidade de trabalhar temas específicos de interesse histórico e/ou profissional, têm atuado
na divulgação, na discussão e no fomento das suas linhas de pesquisa, exercitando algumas
das múltiplas abordagens possíveis do social pelo historiador. Dessa forma, têm contribuído
também, por meio de um trabalho paralelo e complementar, com as ações desenvolvidas no
ambiente acadêmico formal. Por meio de atividades de sua própria iniciativa, bem como da
proposição de simpósios temáticos nos encontros regionais e nacionais da ANPUH, os GTs
têm concentrado importante papel no incremento e no aperfeiçoamento da produção
historiográfica via exploração, discussão e qualificação de seus objetos e métodos, buscando
sempre pensar a operação de produção do conhecimento histórico como processo dinâmico.
O GT de História Cultural/RS, idealizado pela historiadora e professora Sandra
Jatahy Pesavento em 1997, vem promovendo, desde a sua criação, diversas atividades de
discussão e debate, acadêmicas e também extra-acadêmicas, abertas ao público e destinadas à
discussão com a sociedade em geral. Nesse sentido, merecem destaque as Jornadas de
História Cultural, realizadas atualmente em caráter bianual. Comumente abertas por
conferências e encerradas com mesas-redondas compostas por convidados, as Jornadas
compreendem ainda sessões de comunicações. Por meio de tais eventos, temos procurado
estender a uma comunidade mais ampla, interna e externa à academia, ao GT e ao Estado, o
trabalho e os interesses operados no campo da História Cultural e nos cruzamentos entre a
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História e disciplinas como a Literatura, a Antropologia, as Artes Plásticas, a Arquitetura e


o Urbanismo, a Comunicação Social e a Educação, entre outras.
As Jornadas de História Cultural costumam concentrar-se sobre determinados
objetos ou temáticas, a partir dos quais se busca atrair pesquisas comuns e discutir práticas
e preocupações também correntes no âmbito da prática historiográfica. Nesse sentido, a
VII Jornada (2006) privilegiou as “Histórias e cenas urbanas”, exploradas sob a
perspectiva da arte, da estética, das sensibilidades e do patrimônio material e imaterial. A
VIII Jornada (2007) colocou em destaque as relações entre História e Literatura e a IX
(2009) deu enfoque às “Tramas da memória”. A X Jornada (2011) esteve voltada às
Sensibilidades e contou com a publicação dos textos das comunicações apresentadas em
um dossiê temático na Revista Latino-Americana de História, do PPG-História da
Unisinos, São Leopoldo, Vol. 1, N. 2, 2012,
http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/issue/view/1. A XI Jornada, realizada em 2013,
ao versar sobre as relações entre “Cidade, memória e identidade”, teve grande acolhida
pública, atraindo mais de 80 propostas de comunicação, o que levou à ampliação da
programação inicialmente prevista, a fim de incluir um número maior de participantes.
Também nessa ocasião, as 42 comunicações apresentadas, bem como a conferência de
abertura e as três palestras da mesa-redonda foram publicadas em um dossiê temático na
mesma Revista Latino-Americana de História, São Leopoldo (Unisinos), v. 2, n. 7, set.
2013, em sua segunda parceria consecutiva com o GT de História Cultural. Link:
http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/issue/view/7.
Neste ano de 2015, na XII Jornada de História Cultural, convidamos à reflexão
sobre as relações entre História, cultura e imagem, visando contribuir para a constante
reformulação dos problemas, temáticas e objetos da História Cultural, a partir do exame
das fontes visuais e do uso que os historiadores delas têm feito. A preocupação
fundamenta-se no reconhecimento da importância da incorporação da visualidade como
dimensão estratégica de exploração e conhecimento histórico da sociedade na sua
organização, funcionamento e transformação. Ao colocar em diálogo estudiosos egressos
de diferentes instituições de ensino e pesquisa, procurando, simultaneamente, apresentar
diversificados interesses temáticos, buscamos estimular renovadas discussões sobre as

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implicações teórico-metodológicas da incorporação de novas fontes de pesquisa pela


História, mas também de suas potencialidades na exploração das diferentes dimensões do
social, que nos permitam uma compreensão menos limitada/ deformada da dinâmica das
sociedades do passado.
A fim de qualificar esse debate, contamos com as presenças dos professores Dr.
Ulpiano Bezerra de Meneses, Dr. Eduardo Victorio Morettin e Dra. Márcia Ramos de
Oliveira, que apresentaram seus objetos e métodos de pesquisa, proporcionando a
necessária reflexão sobre os usos que as produções historiográficas recentes têm feito das
imagens para pensar a sociedade e as suas transformações no tempo e no espaço. A
conferência proferida pelo Prof. Dr. Ulpiano Bezerra de Meneses nessa jornada teve por
título “História e Cultura visual: reflexões cautelares”. Na mesa-redonda, o Prof. Dr.
Eduardo V. Morettin apresentou a pesquisa “A cultura cinematográfica nas exposições
universais: modernidade e tradição na Paris de 1925”. Já a Profa. Dra. Márcia Ramos de
Oliveira abordou o estudo intitulado “Meu tempo é hoje: narrativa audiovisual da história e
memória musical na biografia de Paulinho da Viola”.
Correspondendo ao sucesso verificado em edições anteriores, a XII Jornada de
História Cultural manteve aberto o espaço para a apresentação e para a discussão de
pesquisas que se utilizam dos parâmetros referenciais da História Cultural, particularmente
calcadas na apropriação das imagens como suportes, produtos e produtoras de
representações e práticas, objetos materiais implicados em processos de produção,
circulação e apropriação, em cujas trajetórias sociais são produzidos sentidos, estabelecidas
redes e dinamizados os processos sociais. Recebemos a inscrição de quatro dezenas de
trabalhos de pesquisadores, oriundos do Rio Grande do Sul e em de diversos outros estados
brasileiros. A XII edição da Jornada também despertou o interesse de um grande público
ouvinte. De acordo com critérios previamente divulgados, quinze desses trabalhos foram
escolhidos para ser apresentados oralmente no evento. Onze deles são reproduzidos e
disponibilizados integralmente nos presentes Anais.
A importância da publicação dos trabalhos apresentados ultrapassa o interesse
curricular da prática, garantindo também a continuidade da sua circulação e do acesso às
pesquisas pela comunidade. Entendemos ser esta mais uma inicitiva representativa da

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atuação do GT de História Cultural/RS como espaço de promoção da produção


historiográfica e da necessária reflexão e reformulação dos problemas, das temáticas e dos
objetos que caracterizam a História Cultural, enquanto perspectiva de abordagem e
compreensão da sociedade e de construção da História, estimulando ainda a ampliação do
seu diálogo com outras disciplinas.
Gostaríamos de agradecer à ANPUH-RS, à Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRGS e
ao Santander Cultural, entidades que foram fundamentais para a viabilização do evento, e
às empresas que contribuíram para qualificá-lo: Faculdade IBGEN, Banco do Brasil,
Sicredi e DMAE. Por fim, nosso muito obrigado aos convidados conferencista e
palestrantes, aos colegas Nádia M. W. Santos, Eduardo R. J. Knack, Carmem Ribeiro e
Viviane V. Herchmann, que coordenaram as sessões de comunicações, aos comunicadores
e aos ouvintes que prestigiaram o encontro.

Boa leitura a todos!

Comissão organizadora da XII Jornada de História Cultural


GT História Cultural – ANPUH-RS – Gestão 2014/2016
Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Carla Simone Rodeghero
Vice-coordenadora: Prof.ª Dr.ª Alice Dubina Trusz
1ª Secretária: Prof.ª Me. Carmem Adriane Ribeiro
2ª Secretária: Prof.ª Dr.ª Viviane Viebrantz Herchmann
Contato: gthistoriacultural@anpuh-rs.org.br
Site: http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/index.htm
Facebook: https://www.facebook.com/gthistoriaculturalrs

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A CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM TURÍSTICA DE TORRES/RS


POR MEIO DE FOTOGRAFIAS DO ESTÚDIO
FOTOGRÁFICO DE ÍDIO K. FELTES

Camila Eberhardt1

RESUMO: O presente trabalho trata da imagem fotográfica e sua capacidade de criar


imagens duradouras em determinada comunidade e período. As imagens são decorrentes
do estúdio fotográfico Feltes, cujo fotógrafo Ídio K. Feltes esteve à frente dos trabalhos
durante os anos de 1930 a 1970. As imagens fotográficas foram realizadas na cidade
Torres, que está localizada no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Por possuir praias e
falésias que ficaram conhecidas em todo o Estado, Ídio e sua equipe realizaram fotografias
que retrataram Torres e suas belezas naturais por meio de diversas formas, das quais,
podem-se indicar diversas temáticas visuais, entre elas, paisagens, praia e imagens aéreas
compõem um repertório imagético que dialoga com a imagem que a cidade havia recebido
desde o início do século XX, e que, fora afirmada pela Revista do Globo a partir dos anos
de 1930, como a cidade da beleza, a Copacabana do RS. As imagens do estúdio Feltes,
buscaram, por meio de enquadramentos e ângulos específicos, destacar a harmonia da
paisagem, da cidade com seus turistas, um local em que a beleza transpõe-se em um
período que apresentou-se percorrendo o tempo de forma mais lenta, a praia do descanso,
e, assim, respectivamente, da felicidade. Entretanto, as imagens fotográficas que
dialogavam com o discurso imbuído à Torres/RS nesse período, não traduzem na essência
a realidade vivenciada na cidade pelos seus moradores, que foram registradas por meio de
outras temáticas por Feltes. Portanto, propõe-se este trabalho a refletir sobre os modos de
produção das imagens fotográfica em Torres, e sobre as diferentes representações
construídas ao longo do período de atuação do fotógrafo na cidade.

Palavras-chave: Fotografia; História; Memória; Turismo.

1
Unisinos. Mestre em História pela PUCRS. Doutoranda em História na Unisinos. Bolsista de pesquisa do
Cnpq. Email: camilaeberhardt@hotmail.com.

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O município de Torres/RS

O presente trabalho discorre sobre as produções iconográficas do estúdio de Ídio K.


Feltes, que atuou na cidade de Torres e em suas cercanias entre os anos de 1930 a 1970.
Foi o único estúdio fotográfico do município durante boa parte de sua atuação. O
município de Torres está localizado no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Sua origem foi
de um posto militar de observação. No século XIX recebeu imigrantes alemães e italianos,
nesse período o interior do município se desenvolveu por meio da agricultura, a área
urbana desenvolveu-se, na prática, somente no século XX.
O desenvolvimento da área urbana foi possível devido os aspectos geográficos da
costa da cidade, ou seja, as falésias que encontram-se com a água do mar. São três torres
(falésias), que contemplam a costa da cidade, essas torres originaram o nome do
município. As falésias, além de denominarem o município, possibilitaram, e, ainda
possibilitam uma bela visão aos visitantes e moradores da cidade. Os turistas frequentaram
a região a partir dos anos 30 (séc. passado), foi nessa década que se instalou o Hotel
Picoral. O hotel foi criado por José Antonio Picoral que desenvolveu um dos roteiros
turísticos mais importantes do turismo no Estado do Rio Grande do Sul.
Ruschel, em suas publicações, destacou que:

maior iniciativa turística do Rio Grande do Sul de então. Tratava-se de


estabelecimento integrado com o hotel, chalés, fornecimento de luz e
água, restaurante, lavanderia, carpintaria, serraria, bar, diversões,
transportes, propaganda, “marketing”, etc. Torres passou a ser famosa
como RAINHA DAS PRAIAS GAÚCHAS, lotando-se de veranistas a
cada temporada (RUSCHEL, 1996). (Grifo do autor).

Ademais, é preciso destacar que os limites do município de Torres naquele período


eram muito distintos dos de hoje, portanto, os limites territoriais entre os anos de 1930 a
1980 eram muito extensos. Os seus limites atuais são: à leste o Oceano Atlântico, ao oeste
os Municípios de Mampituba, Morrinhos do Sul e Dom Pedro de Alcântara, ao norte o
Município de Passo de Torres/SC e ao sul o Município de Arroio do Sal. Em 1949, os
limites do Município de Torres eram os seguintes:

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À LESTE, o Oceano Atlântico; ao OESTE, o município de São Francisco


de Paula, pela Serra do Mar, pertencendo o “Morro do Josafá” a este
município; ao NORTE, o Estado de Santa Catarina pelo município de
Araranguá, pelos rios Mampituba e Sertão; ao SUL, com o município de
Osório, pelo rio Três Forquilhas, ficando a Ilhota formada pelo mesmo
rio, conhecido outrora por rio do Pinto e braço do mesmo com as
denominações de Lageado e Depósito, cujo braço, desaguando no Arroio
da Laranjeira, forma outra margem da referida Ilhota pertencendo a este
município, e da foz do rio Três Forquilhas na Lagoa Itapeva, e desta em
direção ao Mar em linha reta, a partir da Barra dos Quirinos2.

É nesse contexto que o estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes 3 foi fundado em 1937,
sendo um importante local na cidade de Torres/RS, durante o século XX. O estúdio foi
responsável por um registro diversificado das atividades da cidade e da região,
acompanhando, com um olhar mais próximo por meio da lente de suas câmeras, as
transformações e o desenvolvimento do município, seja no âmbito turístico, na construção
civil, seja no cotidiano da região.

As representações iconográficas do estúdio de Ídio K. Feltes

Ídio K. Feltes era proveniente da colônia de São Leopoldo e chegou à cidade de


Torres/RS na década de 1920, quando casou e ali fixou residência. Foi para a cidade
trabalhar como apontador, e foi em Torres que conheceu a técnica da fotografia com o
fotógrafo Breno Kleser, que já trabalhava na cidade de Torres/RS como fotógrafo amador.
Além da fotografia, Ídio exercia outras atividades, como a de cinematógrafo. Foi a partir
dele que a cidade de Torres/RS teve sua primeira projeção de filme, no cinema Marajó.
Possuía um estabelecimento comercial e um estúdio fotográfico (Figura 12), o que
era comum no século XX. Possamai (2005), ao trabalhar com fotografias na cidade de
Porto Alegre, apontou ao fato de que esses estabelecimentos não se resumiam somente à
venda de materiais fotográficos. O local onde estava o estúdio fotográfico era um
2
Código de Posturas do Município de Tôrres sancionado pela Lei 51, de 4 de março de 1949. Livro I. p. 3.
3
As informações sobre o estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes são provenientes da Casa de Cultura do
Município de Torres, que possui alguns aparelhos fotográficos do estúdio e, também, provêm de depoimento
de Fernando Feltes, filho de Ídio K. Feltes, que ocorreu em 12 de novembro de 2012, às 14 horas.

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estabelecimento comercial, localizado na Rua Júlio de Castilho nº 539, onde vendiam-se


diversos produtos de ferragem, caça e pesca, inclusive, à prefeitura de Torres/RS, que,
durante mais de trinta anos, comprou produtos do comércio Feltes, que fornecia, por
exemplo, também dinamite 4.

Figura 1: Estúdio Fotográfico de Ídio K. Feltes em 1961.


Autor: Ídio K. Feltes. Acervo pessoal de Fernando Feltes.

Figura 2: Câmera Argus C3 50mm Coated Cintar.


Acervo: Casa de Cultura no Município de Torres/RS.
Reprodução: Camila Eberhardt, 2013.

Conforme mencionado, o estúdio Feltes desenvolveu os mais variados registros.


Em um acervo iconográfico pertencente a Casa de Cultura do município, diversas
temáticas foram identificadas. São elas: Aéreas; Avenida Barão do Rio Branco; Bailes e
Festas; Carrocinhas com Cabritos; Casa nº1; Cerimônias e Desfiles; Escolas; Eventos
4
O documento de compra e venda de dinamite entre o comércio de Ídio k. Feltes e a prefeitura de Torres/RS
encontra-se no acervo da Casa de Cultura.

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Religiosos; Faróis; Fatos Marcantes; Futebol; Nossa Senhora de Lurdes; Hotéis; Igreja
Matriz São Domingos; Ilhas dos Lobos; Lagoa da Itapeva; Lagoa do Violão; Morro do
Farol; Músicos e Bandas; Personalidades; Pescaria e Pescadores; Políticos; Postais Antigos
Picoral; Praia da Cal; Praia da Guarita; Praia Grande; Prainha; Rio Mampituba; Rua José
Antônio Picoral; Rua Júlio de Castilhos; SAPT; Torre do meio; Torre Sul; Tradicionalismo
e Folclore; Transportes.
Como é possível observar, as temáticas identificadas são distintas, registraram os
aspectos geográficos, sociais, religiosos, políticos, cotidianos, etc., e destacaram uma
Torres que dialoga com registros da Revista do Globo, em que, uma imagem bela e
aristocrática é demonstrada. Entretanto, as fotografias do estúdio Ídio K. Feltes, apesar de
realizarem os registros de uma praia bela e alegre, também, registraram o cotidiano da
cidade, seu crescimento lento, em vista dos desenvolvimentos que ocorriam nos meses de
verão.
Para tanto, seguem-se algumas considerações teórico-metodológicas acerca da
fotografia. Dessa forma é possível compreender de uma melhor forma, como a análise
iconográfica permite ao pesquisador, conhecer acerca de aspectos ordinários e
extraordinários de determinada realidade que, de outra forma, talvez não fosse possível.

Falando sobre fotografia

A imagem foi e é utilizada pelos homens para os mais variados usos. Em tempo
remoto, as sociedades orais faziam uso das imagens para representar o mundo em sua
volta. Debray (1994, p. 23) coloca que “para um antigo grego, viver não é respirar, como
para nós, mas ver; e morrer é perder a vista. Enquanto nós dizemos ‘seu último suspiro’,
eles diziam: ‘seu último olhar’”. Nesse sentido Debray identifica três momentos da
imagem: o primeiro decorre de sua função sagrada, por meio do olhar mágico (a imagem
associada aos ritos); o segundo, o olhar estético (a arte, as pinturas); e o último, o olhar
econômico, que encontra-se a fotografia (DEBRAY, 1994. p. 23). Todavia, esses
momentos não têm um término datado, pois eles entrecruzam e se complementam,
ressignificando, em diferentes sociedades, cada etapa do visível. Por meio desses atributos

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destinados às imagens, elas representam, registram e contribuem na constituição de


visibilidades e invisibilidades.
De acordo com Meneses,

o visível (como, naturalmente, o invisível) representa o domínio do poder


e do controle, o ver/ser visto, dar-se/não se dar a ver, os objetos de
observação obrigatória assim como os tabus e segredos, as prescrições
culturais e sociais e os critérios normativos de ostentação ou discrição –
em suma, de visibilidade e invisibilidade (MENESES, 2005, p. 36).

Com o surgimento da técnica do daguerreótipo desenvolvido por Nièpce e


Daguerre, em 1839, a relação do homem com a imagem transformou-se profundamente.
Por meio das fotografias o homem passou a designar um número maior de representações
entre as relações da sociedade (KNAUSS, 2006). A técnica permitia a produção de uma
imagem, que era realizada por meio de um registro em positivo, que era único, ou seja,
ainda com essa técnica não era possível fazer um registro com cópias. Ademais, o processo
demandava um tempo de exposição muito maior do que as câmeras atuais necessitam, essa
questão foi melhorando ao longo do tempo com o desenvolvimento e aperfeiçoamento da
técnica fotográfica. Devido essas características, justificava-se um alto custo na produção
dessas fotografias, fazendo com que poucas pessoas tivessem acesso a essas imagens,
geralmente eram realizadas para o Estado ou para as camadas sociais com mais condições.
A fotografia substituiu a pintura no século XIX, que era, até então, a detentora do
status de representação. Dessa forma, por meio da fotografia, o fotógrafo detinha a
possibilidade por meio de sua câmera de representar o mundo (SONTAG, 2004) e
“introduziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mudo moderno” (BORGES,
2003, p. 12). Lembrando que Francastel (2004) recorda que nenhuma tecnologia ou
inovação surge sem que haja uma real necessidade proveniente da sociedade. Foi essa
necessidade que estimulou os desenvolvimentos tecnológicos dos aparelhos fotográficos.
O termo fotografia, segundo Amar (2001), se consolidou com William Henry Fox
Talbot, responsável pelo que se denomina hoje de fotografia moderna, pois em 1841, teria
desenvolvido uma técnica que permitiu a reprodução de imagens, que, anteriormente, eram

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únicas, por meio de uma imagem “negativo-positiva”. Dessa forma a produção em larga
escala foi consolidada, e, respectivamente, permitiu o acesso às demais classes sociais a
representar-se por meio de uma objetiva, lembrando que até então, era um território
destinado a uma classe social que possuía o capital necessário.
Entretanto, a imagem entra na fase industrial somente em 1850, com a carte de
visite, uma invenção de André Adolphe Eugène Disdéri. A fotografia que em sua origem
era praticamente inacessível aos mais desfavorecidos economicamente, agora, por meio do
carte de visite, que permitia uma tomada simultânea de oito clichês, estava adentrando nas
mais variadas camadas sociais.
Fabris, aponta que

o “efeito Disdéri” não pode ser dissociado de uma análise da função


social do retrato na sociedade oitocentista. Se, no século XIX, o retrato
pictórico começa a ser questionado como gênero em função das
transformações profundas pelas quais passa a arte moderna, não se pode,
porém, esquecer que esse mesmo século conhece um desenvolvimento
extraordinário da representação e da auto-representação do indivíduo em
consequência da crescente necessidade de personalização da burguesia
(FABRIS, 2004, p. 29).

Para Boni e Acorsi (2006), essa possibilidade de baixo custo na produção da


fotografia permitiu que a mesma adentrasse no cotidiano e nas relações públicas e privadas
da sociedade. Além de novos admiradores, ampliou-se o número de consumidores, fazendo
com que, as fotografias registrassem mais os aspectos cotidianos, ou seja, o ordinário, do
que o extraordinário.
Realidade que não foi diferente em nosso país, que passou a fazer uso das
fotografias como em outros locais do mundo. Inclusive, a utilização do daguerreótipo em
terras brasileiras data de 1840, antes mesmo que em Portugal. Vasquez (2003) justifica, em
grande parte, o uso do daguerreótipo pelo estímulo de Dom Pedro II, que foi um dos
grandes apoiadores da inserção da fotografia no Brasil, inclusive sendo um colecionador de
inúmeras imagens. Rouillé (2009) acrescenta que o Brasil teve muitos fotógrafos
importantes, que registraram o país das mais variadas formas, entre elas, capturando
aspectos urbanos, e registrando as famílias que constituíram seus acervos familiares,

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decorrente do trabalho dos fotógrafos, que fixaram estúdios nas localidades, ou que eram
fotógrafos itinerantes, em que, de cidade em cidade, realizavam seu trabalho. Lembrando
que poucas famílias tinham condições de ter uma câmera fotográfica.
Dessa forma, Menezes (2011) lembra que é “crucial que o pesquisador se
familiarize com as inúmeras variáveis que definem a natureza da imagem e a
multiplicidade de significados e papéis que ela pode assumir historicamente”. Entre essas
variáveis estão presente às relações entre imagem e representação, pois representar não
significa uma mímese do real, apesar de que até hoje, no senso comum, a relação entre
fotografia e cópia do real esteja presente5.
Para Brizuela (2014), a credibilidade da fotografia está “ancorada em seu caráter de
índice, ou seja, um traço do real”. Mas, para Rouillé (2009, p. 18), a fotografia “não
representa automaticamente o real”, entretanto é possível que represente por meio de
determinados códigos.
É nesse sentido, que a imagem permite que inúmeras características das sociedades
sejam, por ela, representadas. Portanto, Sontag (2004) afirma que o mundo atual
transformou-se em um “mundo imagem”, em que praticamente tudo é representado pela
imagem. Para a autora:

Uma sociedade se torna “moderna” quando uma de suas atividades


principais consiste em produzir imagens, quando imagens têm poderes
excepcionais para determinar nossas necessidades em relação à realidade
e são, elas mesmas, cobiçados substitutos da experiência em primeira
mão e se tornam indispensáveis para a saúde da economia, para a
estabilidade do corpo social e para a busca da felicidade privada
(SONTAG, 2004, p. 170).
Para uma melhor compreensão de como se processam as representações, a proposta
de Moscovici (2003, p. 46) elucida de forma esquemática os processos de representações:
“representação = imagem/significação; em outras palavras, a representação iguala toda
imagem a uma ideia, e toda ideia, a uma imagem”. Compreender e identificar os códigos e
mecanismos geradores dessas imagens é estritamente necessário, é preciso ir além de sua

5
Sobre essa questão, Philippe Dubois em O ato fotográfico, descreve o que seriam os três momentos da
fotografia: o 1º em que a fotografia fora ícone (espelho do real); o 2º em que fora símbolo (transformação do
real); e o 3º em que fora índice (traço do real).

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“dimensão plástica”, visto que “uma dada imagem é uma representação do mundo que
varia de acordo com os códigos culturais de quem a produz” (BORGES, 2003).
Entre todas as questões que norteiam a produção da imagem fotográfica, não se
pode esquecer que sejam analisadas as relações de poder. Flusser (2002) é enfático ao
declarar que não há ingenuidade na produção das imagens. Para tanto, Kossoy (2005, p.
31) descreve a que a imagem é “resultante do processo de criação/construção do
fotógrafo”. Ainda, para Belting (2010) as fotografias simbolizam e são portadoras de
sentido. Dessa forma, é possível afirmar que a fotografia permite constituição de um
patrimônio cultural (CANABARRO, 2014).
Por meio da imagem fotográfica criou-se um arquivo visual de referência para as
sociedades. Essa afirmação é decorrente em virtude das relações da fotografia com a
memória. Segundo Kossoy (2005, p, 40), “fotografia é memória e com ela se confunde”.
Sinson (2005, p. 20) atesta que o suporte imagético orienta e reconstrói, individual ou
coletivamente, a nossa memória de indivíduos.
Para tanto, Catroga (2001, p. 66) enfatiza que a memória é “uma das expressões da
condição histórica do homem,” e Ricoeur (1993, p. 38) complementa ao afirmar que,
quando recordamos o passado, ele “aparenta ser mesmo a de uma imagem”. Assim sendo,
a memória coletiva, seja em suas condições sociais, seja em suas condições culturais,
consiste, de acordo com Schimitt (2007, p. 46), “antes de tudo em imagens”.
Assim, para Mauad e Lopes (2011), a fotografia deve ser entendida como
documento, que atesta sua materialidade, e, como monumento, como símbolo. Nesse norte,
por meio do documento, de sua materialidade, busca-se compreender a construção de
sentidos, ou seja, os usos e as funções dados pela sociedade que os produziu. Meneses
(2011), no entanto, concebe que a imaterialidade ou a materialidade creditada às imagens
não pode ser delas dissociada.
As imagens compreendidas como artefato, segundo Meneses (2011), enfatizam a
necessidade de reconhecer a vida pregressa das fotografias. De acordo com o autor, “para
utilizar a imagem como documento, deve-se retratar, procurando pistas diversas, os
caminhos que ela percorreu, antes de ser diagnosticada e aposentada e receber o status de
documento. Tal percurso deve ser feito ao inverso”.

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Assim, Menezes aponta três caminhos que podem ser utilizados no trabalho com
fotografias: o visual, o visível e a visão. No âmbito do visual, são realizadas as
identificações dos “suportes institucionais dos sistemas” (MENESES, 2005, p. 35), em que
é possível compreender os circuitos de produção, circulação e consumo, o que o autor
chama de “iconosfera”, ou seja, é “o conjunto de imagens guia de um grupo social ou de
uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage” (MENESES, 2005, p. 35).
Questões relativas à visualidade e à invisibilidade da imagem encontram-se no que
Meneses (2005) nomeia de “visível”, neste estão o “domínio do poder e do controle, o
ver/ser visto, dar-se/não se dar a ver”. A última questão relaciona-se às modalidades do
olhar, o tipo de olhar que é direcionado à fotografia, denominada por ele de “visão”.
Ainda, a respeito dos estudos de produção, circulação e consumo das fotografias, Meneses
destaca a necessidade de que sejam ampliadas as noções de consumo. Na visão do autor, é
necessário que as noções de apropriação e interlocução contemplem as categorias de
análise (MENESES, 2011).
Dessa forma, por meio das fotografias do estúdio Feltes é possível identificar
determinadas representações, que foram afirmadas por ele, mas também, por outros meios,
entre eles o da Revista do Globo. Representações que até os dias hoje caracterizam a
memória da sociedade torrense.

Os registros fotográficos de Torres/RS

Nas imagens fotográficas publicadas em reportagens na Revista do Globo (Figuras


3, 4, 5 e 6), Torres foi apresentada aos leitores como a “Praia aristocrática do Estado”,
como a “Praia da beleza”, em que corpos juvenis foram fotografados em poses que
transmitiam a felicidade, e que acompanhavam, juntamente no recorte, as paisagens da
praia de Torres. A areia, as falésias, o mar, o Hotel Picoral, foram os principais
componentes que contemplaram os registros publicados na respectiva revista. Por meio
dessas reportagens, é possível destacar, que a imagem de turística de Torres/RS afirmou-se
como uma praia de intenso lazer e tranquilidade.

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Figura 3: Reportagem: “A praia aristocrática do Estado”.


Revista do Globo, Porto Alegre, março de 1938.

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Figura 4: “Torres”. Revista do Globo, Porto Alegre, 27/02/1977.

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Figura 5: “As excursões da Exprinter às praias”.


Revista do Globo, Porto Alegre, 24/01/1934.

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Figura 6: “Torres. Praia de beleza”.


Revista do Globo, Porto Alegre, 23/03/1935.

Da mesma forma, as imagens do estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes registraram


para os turistas, e para a população local, uma cidade turística, por meio de belas imagens

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que transmitem beleza e contemplação, dialogando com o discurso das reportagens da


Revista do Globo. Na imagem abaixo (Figura 7), o espectador é convidado a sentar e
admirar o mar a sua frente, o recorte realizado pelo fotógrafo registrou a praia da Cal e ao
fundo, à esquerda, a praia da Guarita, na imagem é possível observar algumas moradias na
encosta do morro do meio, algumas dessas que, inclusive estão presentes até hoje. Ainda,
algumas construções perfazem o território que pertence ao Parque da Guarita, hoje, essas
construções não estão mais nesses locais. No morro do meio, algumas cabras pastavam no
gramado, até os anos de 1990 era possível encontrar esses animais sobre os morros. Dado
importante de ser destacado, diz respeito à legenda que se encontra na parte inferior, na
horizontal, da fotografia, em que a legenda “panorama de Torres”, “fotos Feltes” é
identificada. Essa foi uma característica marcante do trabalho desenvolvido pelo fotógrafo
na cidade, todas as fotografias oriundas do estúdio eram identificadas por essa legenda de
cor branca, escrita pessoalmente pelo fotógrafo Feltes, ou possuíam um carimbo no verso
da imagem, já que durantes os anos de atuação na cidade, o estúdio possuía uma equipe de
fotógrafos para percorrer as praias nos meses de verão, e realizar os registros dos turistas
que depois iam até o estúdio para retirar as fotografias.

Figura 7: Morro do Farol. Fotografia. Autor: Estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes.


Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Na próxima imagem (Figura 8), três jovens posam para a objetiva em cima de uma
pedra na Praia Grande, a imagem com a legenda “lembranças de Torres” em 1956 retratou

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uma clássica temática dos turistas que realizavam o registro fotográfico em Torres. Sempre
junto ao mar, em pose, com olhar direcionado à câmera, os registros tornavam-se
lembranças dos dias na praia, mas, sobretudo, foi uma forma de mostrar em suas cidades,
para aqueles que não podiam visitar Torres, a praia de Torres.

Figura 8: Lembrança de Torres. Fotografia. Autor: Estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes.


Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Todavia, os registros de Feltes, capturaram o trabalho dos moradores do município.


Os pescadores (Figura 9), ou o trabalho de construção da 1ª hidráulica (Figura 10), são
alguns exemplos de que Torres, apesar de ser demonstrada como a “Praia aristocrática do
Estado” pela Revista do Globo, possuía um desenvolvimento lento, e poucas opções de
trabalho para aqueles que viviam na zona urbana no município. A própria Revista do
Globo em reportagem no ano de 1940, retratou as dificuldades encontradas pelo município,
destacando a fala do prefeito Moisés Camilo de Farias. De acordo com a reportagem:

Tenho o máximo prazer em conversar com o representante da “Revista do


Globo”. Mas tenho pouca coisa para lhe dizer. O meu município é pobre.
Talvez seja mesmo o mais pobre do Estado. A nossa única cultura é a cana de
assúcar, e com a proibição da adição do assúcar aquí fabricado, de inferior
qualidade, no café e no vinho, estagnou completamente o comércio dêsse
produto, sendo que a aguardente, além de seu baixo preço, tem uma exportação

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insignificante. O nosso colono encontrasse em difícil situação financeira,


notando-se entre os mesmos um grande abatimento (Revista do Globo, ano XII,
n. 285, 30/11/1940, p. 32-33).

Figura 9: Pescador. Fotografia. Autor: Estúdio fotográfico de Ídio K. Feltes.


Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Figura 10: Trabalhadores na 1ª Hidráulica. Fotografia. Autor: Estúdio Fotográfico de


Ídio K. Feltes. Acervo da Casa de Cultura de Torres/RS.

Essa breve apresentação do trabalho do estúdio Feltes, permite compreender, que a


imagem fotográfica possui os mais variados enfoques e possibilidades de registros. O

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enfoque dado à cena registrada depende do público e das necessidades, dos usos que se
pretendem. O estudo das imagens produzidas pelo estúdio permite que a história e a
memória do município sejam pesquisadas, já que são poucos os trabalhos e pesquisas sobre
o mesmo, pois as fontes são, na maioria das vezes, muito escassas, impossibilitando um
estudo mais profícuo.

Referências bibliográficas

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HISTÓRIA E IMAGEM: A ALEGORIA DA PINTURA NA


OBRA DE ARTEMÍSIA GENTILESCHI

Cristine Tedesco6

RESUMO: O artigo desenvolve uma análise de três obras da pintora romana Artemísia
Gentileschi (1593-1654), nas quais a artista produz autorretratos a partir de uma temática
específica: a alegoria da pintura. As imagens com as quais trabalharemos são intituladas:
Allegoria della pittura (1608-1609), Autoritratto allo specchio con l’effigie di un cavaliere
(1630) e Autoritratto come allegoria della pittura (1638-1639). Discutindo
simultaneamente as pinturas da artista, pretendemos refletir sobre como a obra de
Artemísia Gentileschi contribui para pensar sua trajetória biográfica e seu tempo,
considerando a dimensão visual um importante instrumento para a escrita da história. No
que diz respeito ao uso de imagens, nos aproximamos dos estudos de Ulpiano Bezerra de
Meneses (2005). Para o autor, além de não reduzi-las a documentos, é necessário
considerar que as imagens executam papéis de atores sociais. Tendo em vista os
autorretratos selecionados para o presente artigo, nossa questão central é compreender
como Artemísia Gentileschi se construiu em sua obra. Acreditamos que a discussão do
contexto histórico, cultural e artístico, bem como o estudo da rede de relações na qual a
artista estava inserida, criam condições para entender a complexa relação entre a vida e a
obra da pintora. Nesse sentido, pensar os efeitos da dimensão visual requer lembrar que as
imagens não apenas representam o passado, mas também ajudam a construí-lo.

Palavras-chave: História; Imagem; Artemísia Gentileshi.

Introdução

No presente artigo desenvolveremos uma análise de algumas obras da pintora


romana Artemísia Gentileschi (1593-1654) nas quais a artista produziu autorretratos a
partir de uma temática específica: a alegoria da pintura. As principais imagens com as

6
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bolsista CAPES. E-mail: tedesco.cristi@gmail.com

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quais trabalharemos são intituladas: Allegoria della pittura (1608-1609), Autoritratto allo
specchio com l’effigie di um cavaliere (1630) e Autoritratto come allegoria della pittura
(1638-1639).
Na primeira parte do texto discutiremos a rede de relações na qual Artemísia
Gentileschi estava inserida, através da análise de suas cartas. Num segundo momento,
discutindo simultaneamente as pinturas da artista e sua correspondência, refletiremos sobre
o modo como a obra de Artemísia contribui para pensar sua trajetória biográfica e seu
tempo, considerando a dimensão visual um importante instrumento para a escrita da
história. As imagens discutidas serão agrupadas com o intuito de que sejam analisadas em
relação umas com as outras.

Entre a vida e a obra

Para pensar a obra de Artemísia Lomi Gentileschi é importante salientar algumas


questões sobre sua trajetória como mulher e pintora. Filha primogênita do casal Orazio
Gentileschi e Pudenzia Montore, nasceu em julho de 1593, em Roma; órfã de mãe aos
doze anos de idade, Artemísia trabalhava no ateliê do pai, junto à residência da família,
moendo pigmentos, misturando cores, fazendo pincéis, preparando superfícies ou ainda
como modelo para as produções do pai7.
Artemísia construiu uma rede de relações da qual faziam parte colecionadores de
obras de arte de diferentes regiões da Península Itálica; o que em muito se deve ao fato de
que a pintora residiu em cidades importantes daquele período, como Roma, Florença,
Nápoles, Veneza e Londres; produziu para as cortes do séculos XVII, bem como para
colecionadores particulares que apreciavam sua obra.
No período entre os anos de 1613 e 1620, Artemísia viveu em Florença, depois de
casar-se com Pietro Antônio Stiattesi, no dia 29 de novembro de 1612, em Roma. O
casamento e a repentina saída do casal de Roma se deu após o conturbado processo crime

7
Sobre os primeiros anos da atuação de Artemísia na pintura ver: TEDESCO, Cristine. “E non dite che
dipingeva come um uomo”: história e linguagem pictórica de Artemísia Lomi Gentileschi entre as décadas de
1610 e 1620 em Roma e Florença. 2013. 192f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em
História. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

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Stupri et Lenocinij Pro Curia et Fisco 8, no qual o pintor maneirista Agostino Tassi foi
julgado pelo desvirginamento forçado de Artemísia.
Na cidade florentina Artemísia atuou principalmente para a corte de Cosme II de
Medici. Entretanto, também estabeleceu contratos de trabalho com outros importantes
nomes como Michelangelo (1568-1646), o Jovem, o qual encomendou a obra Allegoria
dell’Inclinazione para a Casa Buonarroti em 1615. No ano seguinte, no dia 19 de julho de
1616, Artemísia foi aceita na Academia de Desenho de Florença – criada por Giorgio
Vasari – como testemunham os documentos que atestam sua matrícula na academia 9.
É provável que nessa época Artemísia tenha conhecido Galileu Galilei, também
membro da Academia, para o qual enviaria correspondência em outubro de 1635. É
interessante notar, conforme destacou Francesco Solinas (2011, p. 107), que na biografia
de Galileu, escrita em 1654 por Vincenzo Viviani em formato de carta a Leopoldo de
Medici, são citados alguns dos pintores mais conceituados pelo cientista e filósofo, entre os
quais aparecem Cigoli, Passignano, Jacopo da Empoli, Cristofano Allori e Artemísia
Gentileschi.
A saída repentina da pintora da cidade florentina, em 1620, se deu devido a
questões financeiras, de acordo com Solinas (2011, p. 80). O acúmulo de dívidas
decorrente de um contrato de trabalho mal pago pelo Grão-Duque Cosme II de Medici, que
se encontrava muito doente e debilitado devido à tuberculose, trouxe problemas
econômicos e sua situação em Florença ficou insustentável, conforme declara Solinas
(2011, p. 79).
Para interromper seu contrato de trabalho com o Grão-Duque, Artemísia escreveu
uma carta10, datada de 10 de fevereiro de 1620 (Lettera 6), a Cosme II de Medici,
anunciando sua intenção de passar alguns meses em Roma e justificou sua viagem

8
“Estupro e Libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano]” (1612). In. MENZIO,
Eva. (Org.). Lettere precedute da «Atti di un processo per stupro».Roma: Abscondita, 2004. (Tradução Dr.
Celso Bordignon e Vicente Pasinatto).
9
ASF, AD, Debitori e credoridelle Matricole: 1596-1627, f. 152 e ASF, AD, Entrata et Uscita: Entrata e dal
1602 al 1624, CIII, f. 54 In. NICOLACI, 2011, p. 260.
10
A correspondência de Artemísia Gentileschi foi organizada por Francesco Solinas e publicada em 2011.
SOLINAS, Francesco (Org). Lettere di Artemisia. Roma: De Luca Editori d’ Arte, 2011). Tradução de minha
autoria.

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mencionando problemas familiares. Para Solinas, o argumento da pintora foi um pretexto


para obter a autorização do Grão-Duque, pois na carta enviada ao amigo Francesco Maria
Maringhi (1593-1653), escrita no vilarejo de Prato, durante a viagem para Roma,
Artemísia afirmou que não retornaria à Florença (Lettera 9). A cidade com vida artística e
intelectual intensa, na qual Artemísia chegou com o marido em 1613, já não garantia
sucesso econômico como antes e os pagamentos das encomendas já não eram tão
privilegiados para os artistas da corte.
É durante sua estadia de sete anos em Florença que Artemísia gestou seus quatros
filhos – Giovan Battista (1613), Cristofano (1615), Prudenzia (1617) e Lisabella (1618) –
dos quais apenas a menina Prudenzia chegou à idade adulta11. O primogênito e a caçula já
haviam falecido em 1620. Quando Artemísia e o marido viajaram de Florença para Roma,
os dois filhos Cristofano e Prudenzia ficaram sob os cuidados de Francesco Maria
Maringhi, conforme indica a carta de 13 de fevereiro de 1620 (Lettera 9), quando a pintora
solicitou que Maringhi lhe enviasse os filhos com urgência. Artemísia pediu que o amigo
lhe mandasse também alguns quadros inacabados, encomendados pelo Grão-Duque, os
quais também estavam na residência florentina de Maringhi.
As considerações de Norbert Elias (1994) sobre a importância das redes de relações
entre sociedade e indivíduos nos ajudam a pensar a trajetória de Artemísia. Para Elias
(1994, p. 22), cada pessoa está ligada a outras por laços invisíveis, sejam estes laços de
trabalho, propriedade, instintos e afetos. São esses laços que constituem as redes em
constante movimento, como um tecer e destecer ininterrupto das ligações. Conforme Elias
(1994), é assim que efetivamente cresce um indivíduo, partindo de uma rede de pessoas
que existia antes dele para uma rede que ele ajuda a formar.
Nessa perspectiva, se pensarmos o contexto do qual tratamos como uma rede, a
família Medici pode ser pensada como um dos principais elos que unem os demais fios
constituídos pelos artistas da corte. Uma rede que já existia, se considerarmos que o tio de

11
AOD, Registro di Battesimo, Maschi 1612-1613, f. 108v; AOD, Registro di battesimo, Maschi, 1614-1615,
f. 74; AOD, Registro di battesimo, Femmine, 1616-1617, f. 59v; AOD, Registro di battesimo, Femmine
1618-1619, f. 29v.

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Artemísia, Aurélio Lomi12, fazia parte do grupo de artistas que trabalhava para o Grão-
Duque, e que a jovem pintora ajudou a formar.
Norbert Elias (1994, p. 23) nos adverte de que toda pessoa está presa por viver em
dependência funcional de outras, ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim
como todas as demais, são elos nas cadeias que a prendem. Tais cadeias, porém, são
elásticas e mutáveis. Nesse sentido, o agravamento da tuberculose do Grão-Duque Cosme
II de Medici desestabilizou o ambiente e outras possibilidades se apresentaram para
Artemísia, o que nos permite pensar nas margens de liberdade dos indivíduos como “[...]
uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada
um” (GINZBURG, 2006, p. 20).
A “flexibilidade da jaula”, à qual se refere Carlo Ginzburg (2006), pode ter
contribuído para um novo rumo na vida profissional de Artemísia. A partir de 1620
Artemísia passa a receber frequentes encomendas de cardeais e jovens mulheres de
famílias nobres, que a procuravam para encomendar retratos, afirma Solinas. O historiador
da arte ressalta que para dar conta da intensa rotina de trabalho no ateliê, Artemísia
contratou assistentes que lhe preparavam as telas e as cores, como foi o caso de Alessandro
Bardelli (SOLINAS, 2011, p. 88).
Outros indícios que sugerem o sucesso da pintora em Roma são as cartas enviadas
por seu marido Pietro A. Stiattesi ao amigo Maringhi, nas quais são relatadas algumas
questões importantes, como por exemplo, sua mudança para um apartamento maior, em
junho de 1620. Stiattesi ainda expõe ao amigo que as coisas estavam muito bem em Roma
(Lettera 34). De acordo com Francesco Solinas (2011, p. 88), o mercado de artes em
expansão na região de Roma contribuiu significativamente para o aumento do número de
encomendas recebidas no ateliê de Artemísia, ao longo da década de 1620.
Em Roma, Artemísia foi admirada por outros artistas de seu tempo, como Pierre
Dumonstier, pintor francês que desenhou a “Mão direita de Artemísia Gentileschi

12
Os irmãos Aurélio, Baccio e Orazio, filhos de Giovan Battista Gentileschi alias Lomi, atuaram desde cedo
no mundo das artes pictóricas. Aurélio e Orazio optaram por carregar apenas uma parte do sobrenome, leia-se
Aurélio Lomi e Orazio Gentileschi, conforme Cristine Tedesco (2013).

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segurando o pincel”13, em 1625; Simon Vouet, pintor francês que pintou o “Retrato de
Artemísia”14 (1623-26), encomendado pelo colecionador Cassiano dal Pozzo; e Jérôme
David, artista parisiense que trabalhava em Roma desde 1623 e produziu uma gravura,
também intitulada “Retrato de Artemísia” 15, datada de 1626, a qual segundo Michele
Nicolaci (2011, p. 264) é baseada em um retrato de Artemísia de Antoine de la Ville, um
engenheiro militar a serviço do duque de Sabóia.
O censo efetuado durante a quaresma de 1626 foi o último testemunho da presença
de Artemísia em Roma, na casa al Corso, com a filha e a criada Domenica 16. Existem
indícios de sua presença em Veneza, a partir de 1627, onde permaneceu por alguns anos. O
primeiro indício é a publicação, em 1627, de alguns versos em honra a pintora pelo
tipógrafo da Accademia Veneta, Andrea Muschio. É intitulado no primeiro desses versos:
“Lucrécia romana/Obra da Sra. Artemisia Gentileschi/ Pintora Romana em Veneza” 17. O
folheto não tinha assinatura, mas a autoria foi atribuída a Gianfrancesco Loredan (1606-
1661), literato de Veneza, conforme Michele Nicolaci (2011, p. 263). Na composição
ainda são citados dois trabalhos de Artemísia: Amoretto in parangone, que pertencia a
Giacomo Pighetti, e uma Susanna, os quais não possuem uma identificação correta. A
relação com Loredan é confirmada por duas cartas endereçadas pelo nobre veneziano à
Artemísia entre 1627 e 1628, as quais foram inseridas na coleção póstuma da
correspondência de Loredan, publicada em Veneza, em 1673 18.
Outro vestígio da atuação de Artemísia em Veneza é a publicação das cartas de
Girolamo Gualdo 19 organizadas num manuscrito composto no ano de 1650, no qual é
abordada a história da vasta coleção de arte de sua família. Na passagem em que se refere à
Artemísia, Gualdo afirma que a pintora esteve empenhada na elaboração de ilustrações
naturalistas e na produção de pinturas de natureza morta em Veneza.

13
Right hand of Artemisia Gentileschi holding a brush (1625). Pierre Dumonstier. The British Museum,
Londres.
14
Ritratto di Artemisia Lomi Gentileschi (1623-26). Simon Vouet. Collezione privata.
15
Ritratto di Artemisia Gentileschi (1626-27). Jérôme David. Gravura. Collezione privata.
16
ASVR, Status Animarum ab anno 1622 usque ad 1649, S. Maria Del Popolo, LXV, 1626, f. 6.
17
“LUCRETIA ROMAMA/ Opera dela Sig. Artemisia Gentileschi/ Pittrice Romana in Venetia”. (In.
NICOLACI, 2011, p. 264). Tradução de minha autoria.
18
Loredan 1653, I, pp. 262 e 466 In. NICOLACI, 2011, p. 264.
19
BM, Mss. It. IV, 127, n. 5102, 116v In. NICOLACI, 2011, p. 264.

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De acordo com Nicolaci (2011, p. 264), é nessa época que Artemísia teria partido
para Nápoles, capital do vice-reino, fugindo de uma epidemia de peste, a convite de Dom
Fernando Enríquez de Ribera, Duque de Alcalá (1583-1637), novo vice-rei espanhol e seu
antigo admirador. Provavelmente também apoiada por seu amigo Massimo Stanzione
(1585-1656), conhecido em Roma e estimado pelo rei da Espanha. Artemísia foi
favorecida e protegida pelo Duque de Alcalá mas também por seus sucessores, conforme
Francesco Solinas (2013). Segundo o mesmo autor, outros regentes espanhóis incentivaram
a pintura de Artemísia com importantes comissões públicas e privadas, como o Conde de
Monterrey, o Duque de Medina de la Torres, o Conde de Modica, o Duque de Arcos e o
Conde de Oñate. Assim também fizeram o cardeal Niccolò Enriquez de Herrera, o núncio
apostólico Francesco Boncompagni e Ascanio Filomarino, arcebispo de Nápoles; o que
será possível analisar a partir das cartas de Artemísia.
Quando se estabeleceu em Nápoles, no verão de 1630, Artemísia foi recepcionada
com sua, provavelmente, primeira encomenda, a Annunciazione, conforme indica Roberto
Contini (2011, p. 96). Para o pesquisador, tendo em vista a relevância desse primeiro
trabalho, é possível justificar a inclusão de suas obras nos inventários das coleções
napolitanas. Ainda que se ignore a localização original da obra, atualmente no Museu
Nacional de Capodimonte, a Annunciazione é possivelmente a pintura que inaugura os
trabalhos de Artemísia em locais públicos. Nesse sentido, consideramos o período
napolitano de Artemísia um momento chave da trajetória da pintora para entender algumas
de suas obras.
A correspondência da pintora revela questões interessantes sobre o comércio de
imagens artísticas do período. Temos razões para crer que a figura masculina representada
na imagem junto ao autorretrato de Artemísia (Figura 2), intitulada Autoritratto allo
specchio com l’effigie di um cavaliere é Cassiano dal Pozzo (1588-1657).
O célebre erudito e amante da arte Cassiano dal Pozzo, integrou o grupo de
conselheiros de Francesco Barberini (1597-1679) – sobrinho do papa Urbano VIII20 e um
dos responsáveis pelo desenvolvimento da vida artística romana do período, conforme os

20
Maffeo Barberini (1568-1644) – eleito papa no conclave de 1623.

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estudos de Francis Haskell (1997). De acordo com o mesmo autor, dal Pozzo foi “[...] o
mais cultivado e o mais ilustrado e todos os mecenas italianos” (HASKELL, 1997, p. 83).
Quando Urbano VIII foi eleito papa em 1623, Cassiano dal Pozzo vivia em Roma
há cerca de doze anos e começava a desempenhar um papel importante na vida intelectual
da cidade. Em Roma, pouco se esforçou para obter proteção política, mas começou a
frequentar o mundo inebriante e arriscado da pesquisa científica. Mantinha sólidos laços de
amizade com Galileu e em 1621 os organizadores da Academia dei Lincei (dos Linces) – a
ancestral de todas as sociedade científicas europeias, então recém criada – propuseram
acrescentar seu nome à lista de seus membros. Cassiano foi admitido no ano seguinte e,
desde então consagrou à Academia grande parte e seu tempo e de sua energia (HASKELL,
1997, p. 168).
Dal Pozzo construiu, em seu palácio, em Roma, uma biblioteca e um museu que
adquiriram fama internacional devido à variedade de seus acervos iconográficos; dedicou-
se a pesquisas sobre a civilização antiga e o universo natural, colaborando com desenhos
científicos realizados pelos seus “artistas de casa”, conforme indica Francesco Solinas
(2011, p. 83). O mesmo autor destaca que Cassiano dal Pozzo colecionava obras e
destinava comissões aos seus amigos artistas com temas definidos por sua cultura
filosófica, literária e científica.
Segundo Haskell (1997, p. 175), Simon Vouet (1590-1649) foi um dos primeiros
pintores empregados por Cassiano dal Pozzo; além de ter sido seu mecenas mais assíduo
em Roma, dal Pozzo chegou a possuir cerca de quatorze quadros do pintor francês em seu
acervo. O colecionador acolhia sob sua proteção artistas que estavam preparados para
adotar um estilo naturalista. Simon Vouet e outros artistas como, por exemplo, Pietro da
Cortona, Domenichino, Nicolas Poussin, entre outros, trocaram correspondência com dal
Pozzo. Francesco Solinas (2011), destaca que entre os artistas favoritos do mecenas estão
ainda três pintoras: Giovanna Garzoni (1600-1670), Anna Maria Vaiana (1604-1654) e
Artemísia Gentileschi (1593-1654).
Dois quadros alusivo a Artemísia estão registrados nos tardios inventários da Casa
dal Pozzo (1689, 1695, 1740), um “Autorretrato”de Artemísia e um “Retrato” produzido
por Simon Vouet entre 1622 e 1626, segundo Francesco Solinas (2011). O baixo número

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de registros de obras de Artemísia na coleção de dal Pozzo é contrastado pela


correspondência que indica uma proteção realizada por dal Pozzo em favor da pintora; uma
relação que, segundo Solinas, desenvolveu-se nos primeiros anos da década de 1620,
quando Artemísia foi, provavelmente, apresentada ao ministro da cultura barberiniana
pelo pintor e comum amigo Simon Vouet. A presença de um único quadro de autoria de
Artemísia descrito no referido inventário, pode ser devido ao fato de que em 1626 dal
Pozzo doou boa parte de suas posses mobiliárias e imobiliárias ao irmão mais novo, Carlo
Antônio (SOLINAS, 2011, p. 84).
Na correspondência de Cassiano dal Pozzo é possível encontrar seis cartas enviadas
ao colecionador por Artemísia Gentileschi entre 1630 e 1637. A primeira carta é datada de
24 de agosto de 1630 – registro que inaugura a presença da pintora em Nápoles. Artemísia
inicia a escrita da carta confirmando o recebimento das medidas do quadro encomendado
por dal Pozzo, o que indica que estaria respondendo uma encomenda do colecionador ou
referindo-se a uma obra que a própria artista poderia ter prometido ao mecenas num
passado recente. É provável que esteja se referindo ao Autoritratto allo specchio com
l’effigie di um cavaliere (figura 2) enviado a Roma anos depois, ao qual a pintora também
se refere numa carta de 1637. Artemísia informa a dal Pozzo que ao finalizar alguns
quadros para a Imperatriz 21 – sua estimativa para concluir o trabalho é de três semanas –
seu primeiro compromisso será “[...] servir Vossa Senhoria Ilustríssima, a quem tanto
devo” (Lettera 37). A familiaridade demonstrada pela artista indica uma certa amizade já
constituída com dal Pozzo. Na mesma carta Artemísia lhe pede o envio de “[...] seis pares
de luvas das mais belas [...] para presentear algumas damas” (Lettera 37).
De acordo com Solinas (2001, p. 85), Artemísia refere-se a luvas de couro longas e
perfumadas com essências florais e de âmbar, talvez para presentear algumas damas, a
exemplo da Infanta Maria Anna de Habsburgo, conhecida como rainha da Hungria. As
luvas produzidas em Roma eram consideradas um refinado item do vestuário, procurado
21
A Imperatriz na época era Eleonora Gonzaga (1598-1655), filha de Vincenzo Duque de Mantova e de
Eleonora de Medici, casada com o Imperador Ferdinando II em 1622 e coroada no Duomo di Ratisbona em
novembro de 1627. Artemísia poderia também estar se referindo a Infanta Maria Anna d’Asburgo (1608-
1646), filha de Felipe III da Espanha, também conhecida como Rainha da Hungria, presente em Nápoles em
1630. Durante o período em que ficou em Nápoles a Rainha foi retratada por Diego Velázquez e poderia
facilmente ter encontrado Artemísia e encomendado algumas obras, segundo Francesco Solinas (2011, p. 85).

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pelas senhoras mais elegantes da Europa. As luvas romanas estavam entre as mais
prestigiadas do período e muitas vezes eram oferecidas como presentes diplomáticos por
cardeais e núncios papais. Cabe observar que essas questões aludem aos ambientes por
onde Artemísia circulava em seu cotidiano como pintora ea rede de relações da qual fazia
parte.
Ainda em agosto de 1630 (Lettera 38) Artemísia escreve ao seu protetor dal Pozzo,
pedindo-lhe para que interceda junto ao Núncio papal, recém estabelecido em Nápoles,
Niccolò Enriquez de Herrera, no sentido de que lhe conceda com urgência uma licença de
porte de arma22 para seu então ajudante e secretário, o sacerdote Diego Campanili,
salientando que esse favor beneficiaria a ela própria. É bem provável que o marido de
Artemísia, Pietro Antônio Stiattesi não vivesse com a pintora nessa época, porque ainda
antes de sua partida para Nápoles já não há registros de que vivessem juntos. O censo
romano23 de 1623 revelou que junto com Artemísia residiam os seus dois irmãos, a filha e
dois criados.
Recém chegada na cidade napolitana, Artemísia se declara devota e súdita papal,
acreditando que receberia a autorização para o porte de arma. A pintora encerra a carta
lembrando que o retrato será entregue quando terminar os quadros para a Imperatriz, como
o fez na correspondência da semana anterior.
Em dezembro de 1630 (Lettera 39) Artemísia escreve ao colecionador Cassiano dal
Pozzo e afirma estar retornando a Nápoles, de onde esteve ausente durante muitos dias em
função da produção de um retrato para uma Duquesa 24. A declaração reforça a ideia de que
o gênero do retrato foi um tema amplamente desenvolvido na obra de Artemísia; o que
também sugerem outras fontes, como os depoimentos da própria Artemísia no processo
crime25 de 1612, nos quais a pintora comenta a produção do retrato de um menino, filho da

22
De acordo com Solinas (2011, p. 86), nessa época, as licenças de porte de arma concedidas aos religiosos
eram raras, mas quando ocorriam, eram concedidas pelo Núncio papal ou pelo Arcebispo de Nápoles.
23
Tradução de minha autoria (ASVR, Status animarum ab anno 1622 usque ab 1649, S. Maria Del Popolo,
LXV, 1623, f. II In. NICOLACI, 2011, p. 263).
24
O retrato citado na carta pode ser o Ritratto di giovane dama a sedere con abito nero e oro, atualmente na
coleção de Barbara Piasecka Johnson, conforme Francesco Solinas (2011, p. 87).
25
“Estupro e Libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano]” (1612). In.
MENZIO, Eva. (Org.). Lettere precedute da «Atti di un processo per stupro». Roma: Abscondita, 2004.
(Tradução Dr. Celso Bordignon e Vicente Pasinatto).

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criada Túzia e o retrato para uma mulher que se dizia “apaixonada por Artigenio”,
representante do cardeal Michelangelo Tonti e amigo de Orazio Gentileschi. Além disso,
os catálogos de obras de Artemísia também evidenciam retratos produzidos pela pintora,
atualmente em acervos de coleções particulares. Na mesma carta Artemísia comenta a
produção de seu autorretrato para dal Pozzo, o qual a pintora afirma que será enviado
brevemente. Em troca de seu autorretrato, Artemísia pede outra remessa de luvas
perfumadas e couro. De acordo com Solinas (2011, p. 87), o couro era utilizado para
recobrir sapatos, normalmente feitos de tecidos.
Apesar da promessa, o autorretrato só será entregue sete anos depois, conforme
testemunha a carta de 24 de outubro de 1637 (Lettera 49). Artemísia recorre a dal Pozzo
para completar uma soma de dinheiro que necessitava para pagar o dote de casamento de
sua filha Prudenzia. Artemísia argumenta que não possui outro capital a não ser alguns
quadros; em troca do dote a pintora propõe enviar duas grandes telas para serem vendidas
aos cardeais Francesco e Antônio Barberini através da influência de dal Pozzo. Artemísia
afirma que enviará também seu autorretrato, já prometido anteriormente e destinado a
coleção de autorretratos dos pintores e amigos protegidos pelo colecionador Cassiano dal
Pozzo.
A correspondência de Artemísia nos apresenta indícios para entender a presença de
suas obras em coleções importantes do século XVII. A artista se utilizou da influência de
Cassiano dal Pozzo para ampliar a divulgação de seu trabalho. Na carta de 21 de janeiro de
1635 (Lettera 40), a pintora escreveu ao colecionador informando que seu irmão Francesco
chegaria a Roma com um quadro para o cardeal Antônio Barberini (1607-1671), sobrinho
do papa Urbano VIII. Artemísia solicita ao seu protetor dal Pozzo que introduza o irmão na
presença do cardeal para entregar-lhe o quadro e sem demora retorne a Nápoles, não
permitindo que sua estada em Roma seja maior que quadro dias.
De acordo com Francesco Solinas (2011, p. 88), nessa época o cardeal Antônio
Barberini estava empenhado na construção de uma extraordinária coleção de arte. O
mesmo autor salienta que num dos primeiros inventários do cardeal, elaborado em abril de
1644, é mencionado “Um quadro de uma mulher com seu amado sem moldura coberta
com tecido de tafetá verde” de autoria de Artemísia Gentileschi, como parte do acervo do

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Palazzo Barberini. Conforme Solinas (2011), a obra citada é Venere dormitente con
amorino, atualmente na coleção de Barbara Piasecka Johnson.

A alegoria da pintura na obra de Artemísia Gentileschi

As chamadas Artes Liberais estabelecidas por Marciano Capella, no século V, e


representadas como alegorias femininas não incluíam a pintura como uma atividade
intelectual, mas sim como um ofício mecânico, juntamente com a escultura e a arquitetura,
remetendo ao trabalho dos artesãos. Visando novos espaços para as artes visuais pintores
como Leon Battista Alberti (1404-1472) e Leonardo da Vinci (1452-1519) atuaram no
sentido de incluir a pintura no grupo das Artes Liberais, explicando-a intelectualmente em
seus tratados como uma atividade nobre e intelectual, contribuindo para elevar o artista ao
status de criador. Giorgio Vasari (1511-1574) também contribuiu com esse processo
quando criou a Academia de Desenho de Florença, em 1563. Ao longo da segunda metade
do século XVI, os artistas passaram das oficinas para a academia, uma instituição
centralizada que os protegia e controlava.
De acordo com Mary D. Garrard (1980), Giorgio Vasari foi um dos primeiros
artistas conhecidos que descreveu a pintura, como uma alegoria feminina26. A mesma
autora salienta que para ser reconhecida como uma arte liberal a pintura tinha que ser vista
não apenas como um produto acabado, a inteligência por trás da execução tinha que ser
evidente; somente quando o produto acabado fosse resultado de um esforço intelectual de
reflexão se poderia justificar uma correspondente representação alegórica feminina. Nesse
sentido Garrard (1980) lembra que no século XVI os homens ainda estavam associados ao
trabalho manual e, por essa razão, era plausível representar uma mulher como figura de
oposição ao trabalho duro e manual.
A obra de Hans von Aachen (1552-1615) intitulada “Minerva apresentando a
Pintura às Artes Liberais” (1600), é um claro exemplo de que os artistas desse período

26
Vasari fez a descrição a qual nos referimos, na segunda edição de sua obra popularmente conhecida como
“Vidas dos Artistas”. VASARI, Giorgio. Le vite dei più eccellenti scultori, pittori e architetti. Torriana: Orsa
Maggiore, Ed. Integrale, 1991.

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estiveram empenhados em se afastar definitivamente dos artesãos, representando a pintura


como uma personificação feminina e a glorificando como um esforço intelectual, conforme
os estudos de Mary D. Garrard (1980). Outros artistas tentaram fazê-lo representando a
própria imagem na pintura, muitas vezes usando no pescoço uma corrente de ouro,
sugerindo o reconhecimento de sua pintura por um rei, como fez Anthony Van Dyck
(1599-1641) em sua tela “Autorretrato com um girassol” (1632). O pintor estava usando
um colar de ouro, o qual, de acordo com Garrard (1980), lhe foi dado pelo rei Charles I em
1633. Van Dyck é retratado apontando com uma mão para o girassol, referindo-se à pintura
como uma arte bela, e segurando com a outra mão a corrente de ouro, exaltando o pintor
como digno do reconhecimento real. Giovanni Domenico Cerrini (1609-1681) também
tentou combinar a si mesmo com a alegoria da pintura na obra “Alegoria da Pintura com o
autorretrato do artista”. Cerrini pintou uma figura feminina como alegoria da pintura
segurando um retrato do próprio pintor dentro do quadro.
Entretanto, foi a obra Autoritratto in veste di Allegoria della Pittura, (Figura 4)
produzida por Artemísia entre os anos de 1638 e 1639, que melhor explorou a
representação da alegoria da pintura com o próprio artista, aproximando os dois elementos.
Nesse sentido, sendo Artemísia uma mulher, incluiu-se na pintura exaltando a si mesma
como figura alegórica feminina; em sua obra, “[...] pintora, modelo e conceito são o
mesmo” (GARRARD, 1980, p. 106). A figura feminina da imagem está tão envolvida no
ato de pintar que nem nota a corrente de ouro solta e seus cabelos indisciplinados; a pintora
descreve a si mesma de forma tão concentrada que pensa apenas sobre o que está fazendo.
De acordo com Mary D. Garrard (1980), Artemísia encarna uma alegoria em sua própria
forma humana, sugerindo que o artista – ela mesma – não precisa de reconhecimento; em
vez disso, a própria arte garante o mais alto reconhecimento à pintura como um exercício
intelectual.
O autorretrato (Figura 4) que tem sobre a mesa a inscrição “A.G.F.” já pertenceu ao
acervo do Hampton Court Palace Official– antigo Palácio Real inaugurado em 1514 – e se
encontra no Kensington Palace – residência da família real em Londres – desde 1974. Sua
presença no Royal Collectioné documentada pela primeira vez em 1649, quando foi

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descrito no inventário de Abraham van der Doort (1575/1580-1640) como “Arthemisia


Gentilescho, feito por ela própria” 27.
O tema da alegoria da pintura também aparece em outras obras da pintora, como na
Allegoria della pittura (figura 1). A imagem é a obra mais antiga de Artemísia, datada de
1608-09 por Judith W. Mann em 2011. Contudo, outros autores questionam a autoria e a
datação. O quadro é uma tavoletta28, parte de um díptico que pertencia ao colecionador
romano Alessandro Biffi. Num inventário de 1637, quando Biffi vendeu sua coleção para
pagar uma dívida, a obra foi descrita como dois pequenos quadros de formato ovalados que
representavam “A Pintura e a Poesia”, produzidas pela mão de Artemísia – na época com
15 anos de idade –, conforme Maria LucreziaVicini (2000). Ainda que o quadro da Poesia
não tenha sido encontrado, temos uma descrição dele, publicada no Inventário da
Fondazione Memofonte Onlus (1779-1782-1783):

Una stampa in cui è scritto Artemisia, esprimente due femmine, che una
sedente in abito di regina, la quale tiene una coppa in cui l’altra figura
versa della materia29 (Fondazione Memofonte Onlus, 1779-1782-1783, p.
110).
Uma imagem na qual escreveu [assinou] Artemísia retrata duas mulheres,
uma sentada com roupas de rainha, a qual segura uma taça na qual a outra
personagem despeja o conteúdo. (Tradução Dr. Celso Bordignon).

Na época em que produziu o díptico, a jovem pintora começava a estudar o próprio


rosto e com toda probabilidade também o próprio corpo, segundo afirma Judith Mann
(2011, p. 57). Artemísia iniciava sua produção pictórica na perspectiva do autorretrato, o
que se revelaria em boa parte de sua obra.
Judith W. Mann (2011, p. 57), afirma que na década entre 1600 e 1610 os trabalhos
artísticos desenvolvidos por Orazio exigiram que ele se ausentasse de casa. Entretanto, no

27
Ver The Walpole Society (1935-1936), volume 24, e Oliver Millar volume 43 “The Inventories and
Valuations of the King's Goods 1649-1651” (1970-1972), 186, n. 5. Vendido para “Jackson and others” em
outubro de 1651, o quadro voltou a ser mencionado em um inventário da coleção de Charles I entre 1687-88.
Ver também The Walpole Society volumes 55 e 67.
28
Pequena placa de madeira, sua atual localização é numa coleção particular florentina.
29
Inventario generale dell estampe staccate e libri ornati con esse della R. Galleria compilato nel 1779-
1782-1783. Fondazione Memofonte Onlus. Studio per l’elaborazione informática delle fonti storico-
artistiche.

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decorrer desses anos eram entregues suprimentos para pintura na casa da família
Gentileschi, o que sugere que Artemísia estava ativamente envolvida com a produção
pictórica.
Numa carta enviada por Orazio Gentileschi à Grã-Duquesa Cristinadi Lorena, o
pintor escreve sobre a filha:

[...] questa femina, come è piaciuto a Dio, avendola drizzata nella


professione della pittura in ter anni si è talmente appraticata che posso
ardir de dire che hoggi non ci sia pare a lei, avendo per sin adesso fatte
opere, che forse principali Mastri di questa professione non arrivano al
suo sapere, come a suo luogo e tempo faro vedere a vostra altezza
serenissima.[...]30 (ORAZIO GENTILESCHI, 1612).
[...] esta mulher, conforme Deus quis, tendo-a direcionada na profissão da
pintura, em três anos se aperfeiçoou de tal maneira que posso ousar dizer
que hoje não existe alguém como ela, tendo por fim agora feito obras que
talvez importantes mestres desta profissão não cheguem ao seu
conhecimento, como no momento oportuno farei ver a vossa alteza
sereníssima [...] (Tradução Dr. Celso Bordignon).

Embora admitindo um ligeiro exagero da parte de seu pai orgulhoso e pragmático,


ansioso para ver a filha atuando como pintora, a carta é um indício de que por volta de
1609 Artemísia já estivesse produzindo, o que pode reforçar a hipótese de que a tavoletta,
na qual é representada a alegoria da pintura, seja de sua autoria (Figura 1). No mesmo
período Artemísia também pintou “A Virgem amamentando o menino” 31 (1608-1609) e
“Susana e os velhos”32 (1610).
Todavia, Mary D. Garrard (2001, p. 55) acredita que a alegoria da pintura, datada
por Judith Mann como uma obra produzida entre 1608-09, seja do período florentino de
Artemísia. Garrard (2001) usa a favor de uma nova datação para a imagem o fato de que o
retrato ovalado (Figura 1) apresentando a jovem mulher no ato de pintar revela atributos
que se assemelham fortemente a própria Artemísia, como se vê na gravura de Jérôme

30
Archivio di Stato di Firenze, Mediceo Del Principato, filza 6003, anno 1612. Publicado por Alexandra
Lapierre (2001, pp. 435-437).
31
La Vergine che allatta il Bambino (1608-1609). Artemísia Gentileschi. Óleo sobre tela, 116 x 89,3 cm.
Coleção privada.
32
Susanna e i vecchioni (1610). Firmata e datata: “Arte [Misia] Gentileschi F/1610”. Óleo sobre tela, 170 x
119 cm. Acervo do Castelo Weissenstein, Pommersfelden, Alemanha.

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David (1605-1670) da década posterior (figura 3). A gravura do artista parisiense que
trabalhou em Roma desde 1623 é intitulada “Ritratto di Artemisia Gentileschi” (1626-27).
A gravura é baseada em um retrato de Artemísia de Antoine de la Ville, um engenheiro
militar a serviço do duque de Sabóia, conforme Michele Nicolaci (2011, p. 264).
Na Allegoria della pittura há, em volta do pescoço da figura feminina, uma
corrente de ouro que suspende uma máscara alargada, a máscara da imitação que é um
atributo da alegoria da pintura (Figura 1). Para Garrard (2001), embora a imagem tenha
sido atribuída como um autorretrato de Artemísia, pode em vez disso ser um retrato da
pintora feito por um outro membro do grupo de artistas da Casa Buonarroti, em Florença.
De qualquer forma, a obra oferece uma instância inicial de identificação de Artemísia com
a arte da pintura, ajudando a estabelecer o quadro iconográfico que leva ao seu
“Autorretrato como a alegoria da pintura” (Figura 4), produzido entre 1638 e 1639, no qual
os atributos alegóricos são plenamente implantados.
Acreditamos que tanto a Alegoria da Pintura (Figura 1) como outras imagens nas
quais a mesma temática é representada na obra de Artemísia, correspondem à descrição da
alegoria que Cesare Ripa (1560-1620/25) fez em seu texto Iconologia, publicado pela
primeira vez em 1593. Para Jacqueline Lichtenstein (2005, p. 21) “A Iconologia [de Cesare
Ripa] representa um esforço considerável para estabelecer as fontes literárias, históricas ou
religiosas das personificações e alegorias transmitidas pela tradição antiga e medieval”. A
mesma autora ressalta ainda que a obra de Ripa foi inspirada pelo Speculum morale de
Vincent de Beauvais, autor de várias enciclopédias no século XIII. O trabalho de Ripa
contém uma classificação por ordem alfabética das personificações que exprimem atitudes,
estabelecendo uma taxonomia destas personificações segundo seu papel teofânico, ético e
religioso (LICHTENSTEIN, 2005, p. 22).
O retrato de Artemísia produzido por Jérôme David (Figura 3) também alude ao
texto de Cesare Ripa33. A característica mais distintiva do retrato é o cabelo despenteado,
extravagante e indisciplinado da artista. Na interpretação de Garrard (2001, p. 57), o cabelo
literalmente indisciplinado, não sujeito à regra, representa efetivamente a independência

33
O texto Iconologie de Cesare Ripa foi publicado na obra “A pintura: descrição e interpretação” organizada
por Jacqueline Lichtenstein (2005, p. 21-33).

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feroz de Artemísia. A mesma autora ressalta outro elemento do texto de Ripa presente nas
imagens: as poses indisciplinadas da alegoria da pintura, as quais simbolizam o frenesi
divino do temperamento artístico. Esse conceito também foi evocado nas outras imagens
apresentadas no presente artigo, principalmente em seus autorretratos, nos quais Artemísia
afirma uma identidade exaltada, colocando-se implicitamente, entre os gênios criativos de
expressão artística.
As referências ao caráter indisciplinado da alegoria da pintura foram inicialmente
representadas nas imagens, talvez, pelo próprio estado natural encorpado do cabelo de
Artemísia. Entretanto, para Mary Garrard (2001, p. 57) o ponto de partida conceitual de
Artemísia foi, provavelmente, a imagem da alegoria da pintura no verso da “medalha-
retrato” (Figura 5), produzida em 1611, em homenagem a artista Lavínia Fontana (1552-
1614). Esta medalha, com o retrato de perfil de Fontana, aponta para confundir as
identidades da artista feminina e da alegoria feminina da pintura. O ponto de partida
conceitual ao qual Garrard (2001) refere-se, para além de uma inspiração, é um tema
recorrente na obra de Artemísia. Podemos dizer que a artista se constrói constantemente a
partir de uma metáfora visual disponível exclusivamente a uma pintora mulher situando-se
firmemente em uma construção masculina de inspiração criativa.
A moldura ovalada que envolve a imagem de Artemísia na gravura de Jérôme
David (Figura 3) descreve-a como “Famosíssima pintora acadêmica da Desiosi Artemísia
Gentileschi Romana”. A gravura de David é, provavelmente, uma comemoração à adesão
de Artemísia à academia veneziana, conforme indica Garrard (2001). Abaixo da imagem
de David há uma inscrição que define Artemísia como “Uma maravilha na [arte da]
pintura, mais facilmente invejada do que imitada”, uma citação de Plínio Gaio (23/24-79
d.C.). A citação de Plínio foi aplicada de forma satírica junto ao retrato de Artemísia. Esta
inscrição atesta sua condição de “celebridade” em uma chave de leitura pejorativa.
Artemísia é representada em sua excepcionalidade como mulher pintora, “[...] um pouco
como aplaudindo o cão que pode andar sobre as patas traseiras” (GARRARD, 2001, p. 58).
Quando aplicada a Artemísia, a citação de Plínio evoca detratores que se ressentiam da
atenção exagerada que ela recebia como uma mulher artista e invejaram seu estatuto
aparentemente adquirido com pouco esforço, para não mencionar a sua auto identificação

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audaciosa com a pintura. Para Garrard (2001, p. 59), isso também sugere sua inadequação
como modelo artístico para outros artistas: qual artista masculino poderia ou iria querer
imitar uma artista que se insinuou em seus personagens femininos?
No entanto, a auto identificação de Artemísia como alegoria da pintura sobreviveu
e progrediu em sua obra. No contexto das imagens aqui discutidas, o tema é explorado nos
três autorretratos da pintora (Figuras 1, 2 e 4). Considerando a possibilidade da figura 1 ser
um retrato de Artemísia feito por um artista da Casa Buonarroti – conforme a hipótese
levantada por Mary Garrard (2001) – poderíamos relacioná-la com o Retrato de Artemísia
feito por Simon Vouet34 para integrar a coleção de Cassiano dal Pozzo. Não discutiremos a
imagem no artigo, mas chamamos a atenção para alguns elementos que se repetem nas
duas imagens, como por exemplo a corrente de ouro, os instrumentos de trabalho da
pintora – paleta de tintas e pincel – os brincos de pérolas, o vestido de tecido dourado e
drapeado, além das duas imagens retratarem a artista em seu estúdio no ato de pintar.
Nesse sentido, as duas hipótese permanecem em aberto. A alegoria da pintura
(Figura 1) pode ser um autorretrato ou um retrato de Artemísia, já que a identificação
existente entre a artista feminina e a alegoria da pintura foi tanto um tema desenvolvido
pela artista, como por outros colegas pintores de seu tempo que produziram retratos da
pintora. As hipóteses encaminham novos estudos e poderão ser discutidas em outros
artigos.
Uma questão interessante apresentada por Mary D. Garrard (2001), a qual nos
inquieta e estimula à novas investigações é a obra “A woman as a Sibyl” (Figura 6)
produzida, entre 1630 e 1632, por Diego Velázquez (1599-1660). À luz da coleção de
imagens de Artemísia a partir da temática da alegoria da pintura, a autora expõe a hipótese
de que a obra “Uma mulher como uma Sibila”, datada de 1630 durante a viagem italiana
do artista espanhol, não representa nem uma sibila nem a esposa do pintor. As duas
propostas permanecem em aberto, mas Garrard (2001, p. 60) adverte que a figura feminina
representada na imagem pode ser “Artemísia como alegoria da pintura”, produzida no final
de 1630, quando os dois artistas estavam trabalhando na corte napolitana. A mesma autora

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Ritratto di Artemisia Lomi Gentileschi (1623-26). Simon Vouet. Oléo sobre tela 90 x 71 cm. Collezione
privata.

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destaca ainda o objeto retangular que a figura detém (Figura 6), o qual, certamente, não
representa a tabuleta de uma sibila, que neste período geralmente apresentava marcas
enigmáticas, mas a tábula rasa, ou tela vazia, que forma o segundo plano do Autorretrato
de Artemísia (Figura 4). A tábula rasa foi, de acordo com o tratado “Diálogos da pintura”
de Vincenzo Carducho (1576-1638), o emblema da arte da pintura. Mary D. Garrard
(2001) argumenta ainda que Velázquez pode ter utilizado o “Autorretrato como a Alegoria
da Pintura”(Figura 4) de Artemísia como um ponto de partida para ampliar em “Las
meninas” (1656-57) o tema da pintura como uma atividade intrinsecamente nobre. O
retrato do Museu do Prado pode fornecer outra instância de associação entre os dois
artistas em Nápoles.
Na imagem de Velázquez “Uma mulher como uma sibila” (Figura 6) a figura
feminina está disposta de forma relativamente sóbria e contida; mechas soltas e fluidas de
cabelo enquadram o rosto da mulher, como no autorretrato de Artemísia (Figura 4),
enquanto o colar de pérolas ressoa como na gravura de Jérôme David (Figura 3). O quadro
de Velázquez seria um retrato de Artemísia como alegoria da pintura? Essa é uma das
questões que continuaremos investigando, tendo em vista que nos interessa entender como
as imagens se tornam autônomas em relação ao próprio criador. Pensar os efeitos da
dimensão visual requer considerar que as imagens não apenas representam o passado, mas
também ajudam a construí-lo.

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Figura 1: Allegoria della pittura Figura 2: Autoritratto allo specchio com


(1608-09). Artemísia Gentileschi. l’effigie di um Cavaliere (1630?).
Collezione privata. Artemísia Gentileschi. Palazzo
Barberini, Roma.

Figura 3: Ritratto di Artemisia Figura 4: Autoritratto in veste di


Gentileschi (1626-27). Jérôme Allegoria della Pittura (1638-39).
David. Gravura. Collezione privata.. Artemísia Gentileschi.
Royal Collection, Londres.

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Figura 5: Lavinia Fontana Bolognese Painter.


Felice Antonio Casone. Bronze.
Samuel H. Kress Collection, National Gallery of Art.

Figura 6: A woman as a Sibyl (Artemisia as Pittura?)


(1630-32) Diego Velázquez. Museo Del Pradro.

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ÁLBUNS E ALMANAQUES NO INTERIOR PAULISTA:


IMAGENS E REPRESENTAÇÕES AMBÍGUAS DA
MODERNIDADE EM BARRETOS E RIBEIRÃO PRETO
DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA.

Humberto Perinelli Neto35


Rodrigo Ribeiro Paziani36

RESUMO: Almanaques e álbuns constituíram-se em produções e publicações culturais


que vieram atender aos interesses e às demandas da sociedade burguesa europeia, a contar
do século XIX. O principal objetivo desses veículos de informação e comunicação era o de
(re)construir um processo histórico de modernidade urbana, já que estavam voltados para a
criação de imagens desejadas da cidade. No Brasil, particularmente durante a Primeira
República, modernizar o país tornara-se o intento candente das elites, que buscavam adotar
nos espaços públicos e mesmo privados o “afrancesamento” de hábitos e comportamentos.
É neste percurso de mudanças de sentidos, significados e usos do viver moderno e urbano
que problematizamos neste trabalho o lugar social ocupado por almanaques e álbuns em
cidades do estado de São Paulo, quando da ocorrência da chamada “Belle Époque
Caipira”. Nosso objetivo é o de explorar o “Álbum de Barretos” (1910, 1918) e o
“Almanach Illustrado de Ribeirão Preto” (1913), fontes importantes para a compreensão
das relações entre as imagens e as representações “desejadas” da modernidade pelas
sociedades de elite do interior paulista, bem como das apropriações e das vivências urbanas
registradas nestas duas localidades. Tal proposta vincula-se à problematização comparativa
das experiências de modernidade, levando em consideração as contribuições teórico-
metodológicas protagonizadas por Carlo Ginzburg, ao utilizar a microanálise e o método
indiciário numa abordagem qualitativa das referidas fontes.

Palavras-chave: Álbuns; Almanaques; Modernidade urbana.

35
UNESP/Campus de Franca. Doutor em História (História e Cultura Política). Departamento de Educação
do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE/UNESP), Campus de São José do Rio Preto.
E-mail: perinellineto@yahoo.com.br
36
UNESP/Campus de Franca. Doutor em História (História e Cultura Política). Colegiado do Curso de
História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus de Marechal Candido Rondon.
E-mail: rpaziani@yahoo.com.br

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Álbuns e almanaques: construindo o imaginário desejado da modernidade urbana

Expressão cara ao processo de internacionalização capitalista nos séculos XIX e


XX (HOBSBAWM, 1987), a modernidade lançara homens e mulheres de todo mundo
numa torrente de experiências dramáticas e, por que não trágicas, posto que a modernidade
“[...] nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta
e contradição, de ambigüidade e angústia” (BERMAN, 1997, p. 15). Esse “turbilhão” de
experiências acompanhava, pari passu, a formação da vida urbana nas cidades-capitais.
Os ideais de “civilização” e “progresso” – então veiculados nos discursos de
governantes, escritores, engenheiros, médicos e urbanistas – eram convertidos em objetos
de desejo das burguesias européias: os projetos de reforma e intervenção na vida das
cidades e de seus habitantes ou os sonhos “vendidos” em sociedades cada vez mais íntimas
do mercado de consumo de massas. Ao longo do período compreendendo os séculos XV e
XVIII, o crescimento urbano-demográfico de cidades como Londres e Paris provocou a
disseminação de espaços públicos de informação e de comunicação – tavernas, barbearias,
lojas, ‘pubs’, cafés (BURKE, 1995, p. 195).
Nos séculos seguintes, as revoluções científicas, tecnológicas e industriais
(SEVCENKO, 1998) alteraram sensivelmente as experiências humanas, já que vários
meios de comunicação impressos (jornais, revistas, almanaques e álbuns) ganharam
destaque mercadológico e passaram a circular progressivamente em diferentes lugares,
modificando as formas e o sentido das relações simbólicas dos indivíduos com o “mundo”
(DARNTON, 1990; CHARTIER, 2003).
Assim, o aumento progressivo da circulação daqueles suportes técnicos, o assumido
caráter comercial e publicitário e a valorização do uso de imagens fotográficas, revistas,
álbuns e almanaques foram investidos de um sentido “civilizatório” (ELIAS, 1994),
capazes de operar como difusores de valores e hábitos modernos num cotidiano urbano
movido, cada vez mais, pela informação e o consumo (HABERMAS, 1984, p. 167).
Neste sentido, ao historiador cabe uma dupla tarefa: de um lado, decifrar os códigos
simbólicos que informam, formam e conformam as representações da cidade desejada no

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interior daquela oficialmente fabricada pelas sociedades de elite; e, de outro, interpretar


discursos e imagens responsáveis pela tentativa de instituir outras representações da
cidade, nem sempre desejáveis. Dois suportes privilegiados para estas “leituras” do
imaginário urbano são os almanaques e os álbuns.
De origem etimológica incerta, sabe-se que a significação semântica dos
almanaques surgiu do árabe “almanakh”, possuindo vários significados como “o lugar
onde o camelo se ajoelha”, evoluindo para “a ação de contar”, “o livro que indica os
climas” e “calendário”.
As primeiras versões impressas de almanaques apareceram na Alemanha em
meados do século XV, num contexto marcado por importantes movimentos que marcaram
a Europa Moderna, como o Renascimento, a Reforma e o surgimento da ciência moderna,
sem deixar de mencionar a difusão da imprensa (CORREIA & GUERREIRO, 1986, p. 44-
46; GALZERANI, 1998, p. 48-68; EISENSTEIN, 1998). Mas foram as revoluções
políticas e industriais (HOBSBAWM, 1981) e um acelerado desenvolvimento técnico-
científico (SEVCENKO, 1998) nos séculos XVIII e XIX que alteraram substantivamente
os valores e as experiências de homens e mulheres na modernidade.
Ainda que a produção dos almanaques fosse representativa do interesse de certos
grupos de poder (por exemplo, os empresários da indústria gráfica), não era menos verdade
a existência de relações complexas entre formas impostas e identidades afirmadas
(CHARTIER, 1995, p. 181). O “público leitor” de almanaque também era formado por
elementos das camadas populares (PARK, 1998), sujeitos da recepção e da ressignificação
das práticas culturais e do poder simbólico da imprensa, que tornavam possível a
“popularização” da leitura, ou seja, de um material disponível até aos iletrados
(CHARTIER, 1990, p. 23-24; PARK, 1999).
Assim, o consumo dos almanaques esteve longe de ser exclusivo de uma classe ou
grupo da sociedade burguesa européia no século XIX – antes, a sua publicação era
justificada por expandir a cultura letrada no Ocidente para uma ampla e diversificada
camada de leitores, já que se tratava de “[...] um instrumento de divulgação de
conhecimentos quer para um público geral, mais burguês e citadino, quer junto de algumas

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camadas sociais diferenciadas por ideários políticos, religiosos ou por outros interesses
muito específicos” (CORREIRA & GUERREIRO, 1986, p. 46).
Quanto aos álbuns, eles também possuem trajetória etimológica variada, em parte
identificada com as mudanças culturais acima mencionadas, porém associada
originalmente ao latim romano, quando dizia respeito ao espaço em que autoridades
romanas publicavam lista de senadores, frases comemorativas, leis e éditos (CUNHA,
1986; HOUAISS, 2009).
Num sentido mais moderno – considerado aqui entre a segunda metade do século
XIX às primeiras décadas do século XX – podemos afirmar que o álbum conquistou uma
dupla conotação: aquele de domínio público, identificado com os desejos e interesses das
sociedades de elite entranhadas nas três esferas administrativas do Estado, normalmente
com propósito de construir uma memória laudatória e comemorativa, e um outro, de
domínio privado e/ou íntimo, mais ligado a memória de famílias – sejam elas de elite ou
não – com o objetivo de selecionar e reunir um conjunto de imagens de um grupo bem
específico (GERODETTI & CORNEJO, 2003).
Privilegiaremos os álbuns de domínio público, posto que os textos e as imagens ali
concebidos referem-se, muitas vezes, às memórias urbanas (vilas, cidades e metrópoles),
além de serem consumidas, via de regra, por diferentes grupos e classes sociais em
variados contextos históricos. Falando sobre os álbuns fotográficos, Zita Possamai traz
uma importante contribuição:

[...] os álbuns fotográficos e as narrativas construídas por seus produtores


na disposição das imagens no seu interior podem se constituir em chave
para a compreensão das relações criadas entre visibilidade e
invisibilidade (MENESES, 2005) através das imagens e que,
especialmente no caso das fotografias, adquirem potencialidade de
verossimilhança ao seu referente, a cidade de tempos pretéritos
(POSSAMAI, 2013, p. 43 – grifos nossos).

Suas produções e publicações entre os séculos XIX e XX vieram atender aos


interesses e demandas de certos grupos de poder da sociedade burguesa – como, por
exemplo, os empresários da indústria gráfica (DARNTON, 1990), muito embora o foco

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principal de editores e colaboradores consistisse em impregnar esses materiais de imagens


e representações desejadas pelas burguesias, produzindo assim uma série de registros de
memórias e saberes de uma ‘certa’ modernidade.
Ao mesmo tempo, não se pode negar a existência de um “público” leitor e
consumidor de almanaques e de álbuns formado nas camadas médias e populares (PARK,
1998), o que contribuiu para a “popularização” da leitura destes materiais até mesmo entre
os iletrados (BOLLEME, 1988; PARK, 1998).
Publicações como álbuns e almanaques fizeram parte do desejo candente das elites
brasileiras durante o Segundo Reinado e a Primeira República (SEVCENKO, 1992;
NEEDELL, 1993; CHALHOUB, 1996; PESAVENTO, 1999; SCHWARCZ & COSTA,
2000, SANTOS, 2011), quando visavam “civilizar” o país, adotando nas ruas e avenidas,
nos teatros e mesmo no domínio privado o “afrancesamento” de hábitos e
comportamentos. Estávamos na era da “Belle Époque”...
Neste sentido, revistas, almanaques e álbuns fotográficos representavam não
somente a expansão do mercado e da cultura impressa, mas também uma missão
“civilizadora” (MEYER, 2001, p. 19-22), tomados que foram do papel de “suportes”
geradores de expectativas, tendências e normas do viver moderno (MARTINS, 2001).
Entretanto, tais impressos transformavam-se em canais institucionais pelos quais
escritores, impressores e/ou editores fabricavam “discursos fundadores”, ao reelaborarem
tempos míticos e reordenarem discursos e imagens de um “passado” a ser celebrado na
memória social de um país (PARK, 1998; ORLANDI, 2001).
Mais: se foram concebidos como sistemas de signos textuais e/ou visuais capazes
de gerar narrativas que re-figuravam o “real”, a ponto de esfumaçar os limites entre o
vivido e o imaginado (RICOEUR, 1997; PESAVENTO, 1999; CALVINO, 1999), álbuns e
almanaques se transmutavam em estratégias e práticas de poder (por parte de indivíduos
e/ou grupos intimamente ligados à produção, circulação e consumo destes tipos de
materiais) e, ao mesmo tempo, revelavam contradições e ambivalências das
‘modernidades’ em determinados lugares e contextos históricos.
Em Ribeirão Preto e Barretos, as publicações de almanaques e álbuns foram
representativas de um viver moderno e urbano bastante peculiar e específico marcadas pelo

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apogeu da chamada “Belle Époque Caipira” (DOIN et. al., 2007), num contexto histórico
na qual os desejos das elites locais por modernizarem-se a qualquer custo e legitimar
discursos e práticas modernizadoras em virtude dos múltiplos negócios e empreendimentos
ligados à “cultura cafeeira” – urbanização, ferrovias, higienização, novos hábitos e
comportamentos – “passariam a conviver com traços de sociabilidade e valores culturais
anteriormente existentes” (PERINELLI NETO & PAZIANI, 2012, p. 107).
Neste sentido, a negociação entre experiências, identidades e sociabilidades
distintas vividas “no” e a “a partir do” local, as relações ambíguas, híbridas, entre o
“velho” e o “novo” ou entre o “moderno” e o “arcaico”, através da abordagem de
almanaques e álbuns tornam-se importantes motes para compreender as leituras peculiares
e reveladoras das diversas práticas, representações e apropriações da “desejada”
modernidade.
Cientes disso, visamos neste texto apreender a experiência social forjada nesses
ambientes sociais (DARNTON, 1986), tomando para isso a interpretação de certos indícios
(GINZBURG, 1989, p.143-180) colhidos no Álbum de Barretos (ANDRADE, 1918) e no
Almanaque de Ribeirão Preto (ALMANACH ILLUSTRADO, 1913), publicadas
igualmente durante a década de 1910. Tais indícios são compreendidos a partir da
interpretação de outras fontes – caso de jornais, fotografias, estudiosos locais, legislações
urbanas -, promovendo assim leituras cruzadas das experiências envolvendo a
modernidade nestas localidades, ou, dito de outra forma, leituras a contrapelo.

Vivências urbanas e hibridez cultural: o Álbum de Barretos

O Álbum de Barretos foi publicado originalmente em 1910, sendo publicado


novamente em 1918, de modo integral. Trata-se de texto marcadamente polissêmico, já
que composto por propagandas de estabelecimentos comerciais, fotos de personagens
considerados ilustres e de cenários do espaço urbano, lista de profissionais liberais
(advogados, médicos e dentistas) e informações a respeito das autoridades locais (prefeito,
vice-prefeito e composição da Câmara). Além de textos, encontram-se ainda nesta
publicações dezenas de imagens.

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Antes, porém, para analisar as interfaces entre as representações ditas modernas e


as múltiplas práticas no cotidiano de Barretos, torna-se fundamental o entendimento dos
contextos históricos nas quais as experiências de povoamento e ocupação de terras
formariam a bases territoriais deste futuro município paulista (PERINELLI NETO, 2009).
Desde os últimos decênios do Brasil colonial, o circuito mercantil do boi estava já
constituído na região onde se localiza Barretos, em virtude dos efeitos causados pelas
demandas de carne e de derivados promovidas a contar da Mineração e da transferência da
Corte portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro. Contudo, o avanço das fronteiras do café
intensificava ainda mais essas atividades econômicas, a ponto de se tornarem palco de
fervilhantes ações de boiadeiros e de invernistas de gado.
Neste âmbito, a transformação do povoado de Barretos num centro comercial de
gado se tornou claro a partir do último quartel do século XIX e, por conta disso, cada vez
mais frequentes os flagrantes de vivências que comprovavam a gravitação social em torno
do espaço urbano: atividades comerciais, discursos propagandísticos, práticas esportivas,
formas de lazer e de entretenimento, entre outros.
Diferente dos grandes centros urbanos, onde os estabelecimentos comerciais
festejados eram os ‘magazines’ – do vocábulo francês “estabelecimento comercial que
expõe e vende grande variedade de mercadorias organizadas de acordo com o gênero
delas” – em Barretos as casas comerciais que desfrutavam de destaque eram: “Loja”,
“Armazém” e “Bazar”, normalmente, associados a estabelecimentos comerciais onde se
expõem e se vendem mercadorias num espaço sem maiores divisões (CUNHA, 1986).
Embora mais simples se comparados aos magazines, tais estabelecimentos eram
palcos que evidenciavam efeitos da modernidade, segundo os olhos e os modos locais da
população barretense, isto é, segundo as “condições de possiblidades” (DE CERTEAU,
1994; 1995).
As prateleiras repletas de mercadorias estrangeiras e/ou oriundas de outras partes
do Brasil, as caixas registradoras, os uniformes dos funcionários, o emprego de dinheiro e
as novas embalagens representavam uma mudança significativa no horizonte de
expectativas da população (GADAMER, 1997), já que expressavam novos códigos de
sociabilidade, baseados na racionalidade, na tecnologia e no contato com uma nova

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materialidade (papéis, latas e vidros, entre outros produtos advindos da Revolução


Industrial).
Até então, os membros dessa comunidade estavam acostumados às transações
comerciais calcadas em relações fortemente pessoais, à aquisição exclusiva de mercadorias
elementares (economia de subsistência), a ação de cargueiros e a transação de produtos in
natura, como sal, toucinho e o próprio gado.
Desta feita, ao seu modo, as lojas, os armazéns e os bazares expressavam novidades
significativas junto aos barretenses, mesmo que seus proprietários levassem em conta
também, provavelmente, o respeito aos velhos hábitos, caso da anotação de contas em
cadernetas, bem como a espera do pagamento, após os clientes apurarem dinheiro com a
venda de produtos agrícolas e/ou transações bovinas, práticas bastante comuns entre a
gente que vivia no ‘Brasil Central Pecuário’.
Os próprios discursos propagandísticos associados aos estabelecimentos locais
revelam certo impasse entre as antigas e as novas práticas comerciais. Na propaganda de
“Andrade & Souza”, por exemplo, lê-se no lado direito da foto que promovia “importação
e exportação de fazendas, armarinhos, calçados, chapéus, etc”, enquanto no lado direito
constava que ali poderiam ser adquiridos “seccos, molhados e ferragens” (ANDRADE,
1918).
Já na propaganda associada a Loja “São João”, constava no lado direito três
enunciados: numa posição mais elevada, lia-se “Fazendas, Armarinho, Modas e
confecções, calçados, Chapéos de sol e de cabeça, Ferragens, etc”, na posição
intermediária constava que eram comercializados“sal, assucar, café, farinha e kerozene”
e, por fim, mais abaixo, que ali também era vendido “escolhido sortimento de molhados
finos” (ANDRADE, 1918).
Nos dois casos citados, observa-se que havia, ao mesmo tempo, uma preocupação
moderna com o vestuário (fazendas, chapéus, calçados, etc), portanto, com o novo hábito
dos passeios pela cidade e a presença em espaços públicos, e a atenção para com
mercadorias associadas ao que era tido como requisitos mínimos para sobrevivência, caso
de armas, munição, sal, arame farpado, etc.

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Leitura atenta dos memorialistas locais (MENESES, 1954, 1985; ROCHA, 1954) é
capaz de extrair informações responsáveis por reconhecer a diversidade social dos
frequentadores destes estabelecimentos. Com base nisso, não é difícil imaginar que nos
mesmos estabelecimentos comerciais encontravam-se diversos grupos, postando-se lado a
lado e defronte aos balcões e às prateleiras.
Dirigiam-se a estes locais os vários revendedores de produtos ali transacionados,
vindos de outras áreas de São Paulo ou até mesmo de estados vizinhos, mas – pode-se
inferir - sempre trazendo consigo impressões de viagens, estórias e causos diferentes,
novas expressões de linguagens, hábitos e costumes.
Corriam para estes mesmos pontos, homens e mulheres que viviam no espaço
urbano de Barretos ou que com ele se importavam, estando ali à procura de signos diversos
e capazes de revesti-los de sinais diferentes perante os olhos de seus pares, vizinhos,
amigos e até mesmo os estranhos que encontrassem pelas ruas, na praça da Matriz ou em
qualquer outro lugar.
Por fim, se faziam notar no interior desses estabelecimentos pessoas em busca de
produtos essenciais para a “vida na roça”, casos de ferramentas agrícolas, temperos para
suas refeições (sal e açúcar) ou então algo que lhes permitissem desfrutar de certo conforto
(querosene, empregada na iluminação doméstica).
Sendo assim, nestes lugares as fronteiras entre rural e urbano, “nativismo” e
“estrangeirismo” esmoreciam, inevitavelmente, fazendo crer numa convivência desigual
que, em muitos casos, autoriza-nos a pensar numa circularidade cultural intensa e
responsável por criar um ethos ricamente composto de novos e velhos hábitos, distante do
modelo desejado por setores das elites, mas fiel a diversidade social encontrada nesta
localidade.
No Álbum, a preocupação com a moda e com a aparência pessoal, de modo geral,
também era notória, daí o registro de quinze “comerciante de fazendas, armarinhos,
sapatos, chapéus, etc”, três “barbearia, perfumaria, armarinho, charutaria, três “alfaiatarias
e armarinhos”, um “armarinhos e perfumaria”, um “ourivesaria” e um “joalheria”
(ANDRADE, 1918).

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Todos estes empreendimentos traduziam a constituição de uma esfera pública e do


universo das ruas, o que exigia não apenas o conhecimento de certas falas e gestos, como
de um figurino inovador, composto por maquiagem, terno, vestidos, flagrâncias, adornos e
calçados (BAUDELAIRE, 2002, p. 10).
No entanto, cuidar da aparência não implicava em negar certos comportamentos
arraigados, daí a possibilidade de se apresentar barbeado e portando terno e, ao mesmo
tempo, empregar animais como meio de transporte no espaço urbano, caso de carroças,
especialmente cavalos e, até mesmo, bois adestrados para a função de conduzir seus
proprietários em sela, para um passeio tranquilo pela cidade, inclusive pela área central.
Vários são os casos envolvendo valorização da aparência pelas propagandas
contidas no Álbum (ANDRADE, 1918). Em certas situações, era discreta, caso da
“Sapataria e Sellaria Central”, que frisava oferecer “Serviços sólidos e bem acabados”. Em
outras, era explicita, tal como o “Bazar Barretense”, que declarava possuir "grande
sortimento de apurado gosto” e manter “bem montada secção de Alfaiataria para homens e
senhoras, habilmente dirigida por competentes contra-mestres”. Constam ainda os casos de
fetichismo: “Novo Mundo”, comércio “depositário do calçado Clark, o melhor do Brasil”.
De qualquer forma, o que se verifica é a produção de um discurso associado aos
interesses comerciais e responsável por atuar sobre o desejo e o imaginário da população,
tendo em vista o claro e direto objetivo de incitar o consumo, lançando mão para isso de
um produto intimamente vinculado ao viver urbano, como era o calçado, responsável até
mesmo por modificações na gestuária pública, haja vista o “passo à inglesa” e o “andar à
americana” (SEVCENKO, 1998, p. 550-551).
As imagens vinculadas no Álbum (ANDRADE, 1918) pelos estabelecimentos
dedicados a venda de produtos associados ao vestuário são, elas próprias, discursos
dedicados a produzir inspirações de um estilo moderno junto à população local, à medida
que proprietários e funcionários são apresentados portando terno e gravata, barbeados, em
posição corporal calculada, tendo em frente balcões e ao fundo prateleiras repletas de
mercadorias.
Não obstante, a leitura das atas da Câmara Municipal de Barretos revela que muitas
eram as leis proibindo a presença de pessoas vestidas de modo considerado inadequado

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(mangas de camisa, descalças, sem o devido pudor) em áreas centrais, portanto,


consideradas civilizadas da cidade, o que denota vivências diferentes do desejado espaço
urbano (Livros de Atas da Câmara Municipal de Barretos, 1892/1930).
Além disso, as próprias imagens contidas no Álbum (ANDRADE, 1918) revelam
figuras públicas (adultos e, principalmente, crianças) que, registradas pelas lentes dos
fotógrafos quando se ocupavam da fachada destes estabelecimentos, isto é, nas ocasiões
em que o controle do cenário a ser emoldurado era mais limitado, igualmente trajavam
vestimentas tidas como inadequadas para as áreas centrais de Barretos pelas elites.
É frequente a referência a estabelecimentos associados ao termo “molhado”,
indicando que certos produtos deixavam de fazer parte da “economia doméstica”
(ALGRANTI, 1998, p.142-154), isto é, alimentos e demais itens fundamentais para
sobrevivência deixavam de ser produzidos pelos próprios membros da comunidade e
passavam a serem fabricados pelas casas comerciais e, por isso, transformados em
mercadorias.
A leitura dos enunciados contidos no álbum de Barretos (ANDRADE, 1918) é
elucidativa quanto a esta mudança, pois permite constatar que passava-se, naquele
momento, a pagar pelo produto pronto, como consta na propaganda da “Casa Soares”,
onde eram vendidas “roupas feitas”, e na existência de 4 “confeitarias”, isto é,
estabelecimentos comerciais dedicados a produção de pães, doces e demais guloseimas.
O abandono dos velhos hábitos também se dava em decorrência da instalação de
empreendimentos que guardavam estreita relação com novas tecnologias e
comportamentos. A “fábrica de cigarros” oportunizava um produto que cada vez mais era
apreciado no Brasil (tal qual o charuto) em substituição gradativa do rapé e do palheiro,
pois indicativo de status e de refinamento (SEVCENKO, 1998, p. 528-530).
Do comportamento desejado ao instituído parecia existir um grande hiato, à medida
que vários tipos populares – caso dos inúmeros peões de boiadeiros - são apresentados
pelos memorialistas locais (MENESES, 1954, 1985; ROCHA, 1954) se valendo do fumo
para mascar ou, então, na forma do popular palheiro, isto é, enrolado cuidadosamente em
palha de milho seca, num ritual que inclua até mesmo o selo da palha com saliva.

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A única “fábrica de sabão”, por sua vez, traduzia o já citado ideário higienista
(CHALHOUB, 1996) e interferia, gradativamente, no emprego de produtos
industrializados de higiene pessoal pelos moradores locais, incluindo-se nesta lista,
especialmente, o tão propagado sabonete. Com isto, cada vez mais também era restringida
a prática de fabricação de sabão doméstico, isto é, de pasta produzida caseiramente, graças
ao uso de cinzas, bem como de gordura e outras partes extraídas de porcos e bovinos.
Contudo, deve-se, de fato, considerar com atenção o emprego de termos como
“gradativo” e “cada vez mais”, pois indícios observados na escrita dos memorialistas locais
(MENESES, 1954, 1985; ROCHA, 1954) evidenciam a raridade com que era empregado
pela população o sabonete, daí certos membros das elites locais se diferenciarem
socialmente, justamente, pelo uso diário desta “novidade”.
As duas “cervejarias” indicadas no Álbum (ANDRADE, 1918) ilustravam o novo
hábito de consumo dessa bebida e a formação de um espaço público de sociabilidade,
possivelmente caracterizado pela realização de encontros entre grupos sociais diferentes
das elites locais na área central, o que colaborava para a construção de uma esfera pública
(HABERMAS, 1984), empregada, portanto, para discussões políticas, como nos informam
estudiosos de cidades como, entre outras, Rio de Janeiro e São Paulo (SEVCENKO, 1998).
Curiosamente, a leitura de jornais (O Sertanejo, 1900-1909) e de estudiosos locais
(MENESES, 1954, 1985; ROCHA, 1954) indica que as cervejarias não configuraram
espaço preferencial para as reuniões políticas promovidas pelas elites, que optavam por se
organizarem nas próprias residências e estabelecimentos comerciais como, especialmente,
as farmácias, dado que pertenciam aos líderes destes grupos.
A casa de “fotografia e papelaria” tomava lugar dos profissionais itinerantes e
disponibilizava aos moradores locais um dos ícones mais representativos dos “novos
tempos” (BENJAMIN, 1986), ao que soma a casada valorização da escrita e da leitura,
igualmente revelada no termo empregado para designar o setor de atuação deste
estabelecimento.
E de fato, em acervos fotográficos locais como o do Museu Histórico e do Grêmio
Recreativo Literário é possível identificar o emprego diversificado da fotografia, segundo
rituais modernos, caso do registro de certas ocasiões sociais (formaturas e corsos de

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carnaval), espaços públicos (praça pública, prédio do Grêmio Recreativo e Literário e


Grupo Escolar) e intimidades burguesas (família, casamento, casa).
É curioso constatar, entretanto, com base nos mencionados acervos fotográficos,
que a disponibilidade de uma tecnologia como a fotografia poderia resultar em usos sociais
considerados inusitados, a princípio, como a busca da eternização do rebanho bovino, da
fazenda e de duplas de violeiros ou da imagem de um cavalo considerado de estima (até
mesmo em pleno estúdio fotográfico).
Os mesmos acervos fotográficos também permitem vislumbrar vários registros
dedicados a vivência religiosa, no caso específico, associada a fé católica, caso de
procissões e quermesses, ao que deve ser ainda somadas diversas imagens da matriz local,
produzidas, em sua grande maioria, a partir de perspectiva monumental.
Também é sabido o quanto a fluidez e o desenraizamento provocados pela
modernidade geraram em vários grupos sociais já estudados, entre outras coisas, a
‘invenção de tradições’ (HOBSBAWM, 1997), de modo a permitir que as novidades
adquirissem lastro histórico e social, mediante o estabelecimento de certas referências.
Atentemos para o caso do “Bazar Barretense”: fundado em 1911, tal
empreendimento destacava no anúncio propagandístico veiculado em 1918, que “Esta
importante casa commercial fez ephoca em Barretos” (grifos nossos). Essa invenção de
tradições também se valia do emprego de signos sociais considerados mais arcaicos, caso
das afirmativas que apelavam para a afetividade e a pessoalidade tão caras à formação
social brasileira (HOLANDA, 1995; FREYRE, 1952).
É possível notar tal artificio no anúncio do mesmo “Bazar Barretense”, que
estampava de maneira destacada o nome do proprietário (Lino Reimão), bem como no caso
da “Pharmacia Modelo”, que exibia em seu anúncio os dizeres “ROMANO, MELLO &
OLIVEIRA”, ou, então, no exemplo da “Casa Moderna”, cujos proprietários insistiam em
lembrar aos leitores no anúncio que haviam possuído a “Casa Verde” e a “Casa Estrella do
Sul” (ANDRADE, 1918).
O nome dessas casas comerciais igualmente denotava certo apego ao já conhecido,
por conta disso, embora alguns fossem associados à modernidade (“O Novo Mundo”,
“Casa Moderna”, “Pharmacia Modelo”, “Casa Americana”, etc) ou tirassem proveito da

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localização privilegiada no espaço urbano (“Phármacia Central”, “Sapataria e Sellaria


Central”, entre outros), era mais recorrente o uso de títulos tradicionais, vinculados à
religiosidade católica (caso de “Loja São João”) ou, mais freqüentemente, ao nome e/ou
sobrenome do proprietário (“Casa Soares”, “Andrade & Souza” e “Vassimon e Cia”)
(ANDRADE, 1918).
Já que a modernização registrada em Barretos era promovida pela riqueza do
comércio de gado, parecia ser perfeitamente coadunável aos olhos e mentes de muitos
moradores locais a convivência entre signos de sociabilidade considerados arcaicos e
novos, configurando assim um cenário marcado por acentuada hibridez cultural (GARCIA
CANCLINI, 1998).

“Civilizar” para ocultar a barbárie: o “Almanaque Illustrado de Ribeirão Preto”

Em 1913, era publicado no município de Ribeirão Preto o “Almanach Illustrado de


Ribeirão Preto”. A elite local – dominada pelos coronéis Joaquim da Cunha Diniz
Junqueira e Francisco Schmidt, e seus respectivos asseclas entranhados no poder público –
assistia ao desenrolar do século XX, sequiosa por inserir a cidade no mundo glamouroso e
espetacular da “Belle Époque”: Ribeirão Preto já era conhecida pela alcunha de “petit Paris
da Zona Mogiana” (DIÁRIO DA MANHÃ, 1909; PAZIANI, 2004).
No final do século XIX, Ribeirão Preto não passava de uma vila muito pouco
modernizada e, pior, assaltada continuamente por epidemias e mínguas orçamentárias
(Camargo, 1974). A chegada da ferrovia em 1883 e o fortalecimento político dos
coronéis/cafeicultores no início do regime republicano transformaram o município num
centro referencial da produção cafeeira do Estado e, com isto, a pequena cidade passou a
ser alvo de mudanças mais acintosas na paisagem urbana (PAZIANI, 2004).
Assim, não fora outro o propósito da elite cafeeira ribeirãopretana – um círculo
social privatista, que era respaldado pelos vereadores da Câmara Municipal – em financiar
a criação de jornais (casos de “A Cidade” e “Diário da Manhã”) e a edição, seguida de
publicação, de revistas e almanaques: podemos citar a utilização de recursos públicos e
privados na edição de um número especial da revista “Brazil Magazine” (impressa em

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Paris) sobre o município, “Le pays du Café”, a revista “Ribeirão Preto Ilustrado”, de 1915,
e o citado “Almanach Illustrado de Ribeirão Preto”.
Neste âmbito, torna-se importante destacar a prevalência da “hipertrofia da esfera
privada” (ROCHA, 1998, p. 123-124) na vida pública brasileira, graças à formação de uma
sociedade desobrigada daética racional capitalista, exceto a da aventura, do risco e da
trapaça (HOLANDA, 1995; DOIN, 2001).
Durante a Primeira República, as elites plutocráticas do interior de São Paulo
aventuravam-se com os “negócios públicos” ao embaralhar os sentidos da civilização e da
barbárie do arcaico e do moderno. (DOIN, 2001)
Ao contrário das práticas de difusão dos materiais impressos pelas principais
cidades europeias - responsáveis pelo surgimento de uma “esfera pública literária” que,
mesmo voltada ao mercado (HABERMAS, 1984), fomentara uma “sociedade de leitores”,
portanto de múltiplas possibilidades de leituras de mundo (DARNTON, 1990;
CHARTIER, 2003) – na história do Brasil tais experiências, não inexistentes, encontraram
obstáculos numa das faces perversas da formação social e educacional: a exigüidade do
“público leitor” (LAJOLO & ZILBERMAN, 1991; ROCHA, 1998).
O “Almanach Illustrado” traduzia em palavras, imagens e dados a escala de
“evolução” e “progresso” de Ribeirão Preto. As referências à França ou à Paris – caso dos
cines-teatro “Paris-Theatre” e “Bijou” – eram bastante presentes nas propagandas
comerciais e de lazer. Com o “Almanach” não era diferente, pois a sua proposta era a de
ser um material estatístico, histórico, industrial, comercial, agrícola, literário, de
informações e variedades (ALMANACH ILLUSTRADO, 1913, p. 03; PAZIANI et. al.,
2008).
Os editores do “Almanach” – Sá, Manaia & Cia. – ansiavam destacar o lugar de
Ribeirão Preto no cenário paulista, nacional e internacional, dada a sua influência política e
a pujança econômica assumidas na Primeira República. Mas destacar o quê? Uma primeira
pista está presente no discurso dos próprios editores:

A falta de uma publicação que registre o progresso intellectual e material


de uma localidade, é, em nossos dias, sentida em toda a parte, maximé

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nos centros de actividade humana em formação, como, por exemplo,


Ribeirão Preto [...]tudo progride gradativamente; portanto, o ‘Almanach
de Ribeirão Preto’, obdecendo (sic) á fatal influência do meio em que vê
a luz, o esperamos, há de melhorar, melhorar sempre, obdecendo a esta
lei indiscutivel, a lei da evolução (ALMANACH ILLUSTRADO, 1913,
p. 5).

Importante destacar o ato de “registrar” o progresso de Ribeirão Preto. Por que


registrar o progresso? Não haveria nesta intenção de construir uma memória oficial, uma
vontade de “definir” um estado, uma condição, um estágio de desenvolvimento? Contudo,
o almanaque e o município não atingiram a “perfeição”: ambos eram obras em formação.
O progresso seria inexorável, embora chegasse “gradativamente”, pois obedeceria, de um
lado, “á fatal influência do meio em que vê a luz” – a localidade e suas portentosas
riquezas – e, de outro, “a esta lei indiscutivel, a lei da evolução” – a localidade face aos
inevitáveis avanços técnicos e científicos.
Fazia-se necessário demonstrar esse ritmo de progresso da cidade, por meio de
referências as profissões, os ofícios e os empreendimentos existentes na cidade:
advogados, engenheiros, arquitetos, cirurgiões, médicos, parteiras, fotógrafos, alfaiates,
barbeiros, curandeiros, costureiras, engraxates, modistas, ourives, sapateiros, serralheiros,
entre outros. No ramo industrial, fábricas de cigarros, cerveja, sabão, cadeiras, sapatos,
massas, carroças e beneficiamento de açúcar e arroz. E por fim, o comércio, em rápida
mutação, com um grande contingente de atividades, desde agências bancárias, armazéns e
casas de câmbio (ALMANACH ILLUSTRADO, 1913, p. 41-47).
Porém, uma segunda pista pode nos guiar um pouco mais pelos meandros do
“progresso” desejado pelos homens (de elite) interioranos. Ela emerge do texto escrito pelo
Sr. Francisco Augusto Nunes – segundo o “Almanach”, membro do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo e da Societé Académique d’Histoire Internationale de Paris – que
ficara responsável por narrar fatos históricos e geográficos relacionados à trajetória
daquele município. Escreveu Nunes:

A excelência do clima, a uberdade do solo, o encanto dos dilatados


horizontes, a incomparável vitalidade comercial, a perfectibilidade de
suas indústrias, a atividade ininterrupta dos seus habitantes, cujo labor é

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intenso e admiravel, e a beleza da posição topographica, constituem


insofismavelmente uma garantia para que, após alguns annos, esta cidade
fique colocada num plano mil veses superior ao que occupa na escala do
vertiginoso progresso deste insuperavel Estado, que foi julgado com
critério e justiça, uma Republica no seio da Federação Nacional.
Podemos notar em Ribeirão Preto predios monumentais, com finissimos e
arquitetonicos adornos [...] ruas amplas que se assemelham a belissimas
avenidas [...] praças duma extensão extraordinaria [...] vemos aqui tudo
quanto é potente para dar a comodidade, a alegria e o sossego que
constituem a suprema aspiração da creatura humana (ALMANACH
ILLUSTRADO, 1913, p. 17-18).

O escrito de Nunes apresentava uma cidade imersa num “turbilhão” de mudanças


inquestionáveis – presentes no uso dos adjetivos “excelência” e “perfectibilidade” –
consagradas ao clima e ao solo úbere, à indústria e ao comércio, ao burburinho, tudo
convergindo para a descrição de uma urbe “civilizada”. Para consolidar tais imagens,
também não faltaram citações aos símbolos das melhorias urbanas enquanto referenciais de
“bem viver”, pois a cidade proporcionava àquele que a visitava a comodidade e a alegria.
O “Almanach Illustrado” – por seu apelo visual e, como afirmou Pesavento (1999:
24), à “metaforização do social” – não contemplava uma “leitura” das demandas e dos
anseios das camadas populares (o que o distanciava dos almanaques europeus), mas o
objetivo de incutir na mente dos habitantes uma afinidade eletiva entre o urbano e os
interesses da lavoura cafeeira e de “cristalizar” na memória dos “leitores” os desejos da
elite ribeirãopretana de fazer valer uma operação “civilizatória” – caso da (re)invenção do
mito do “bandeirante paulista” (FERREIRA, 2002).
Os colaboradores do “Almanach Illustrado” não se satisfaziam em “mitificar” as
lideranças municipais: seria importante demonstrar, de maneira “insofismável”, à
sociedade local a intimidade daqueles “ilustres homens e mulheres” com as experiências e
os objetos da modernidade e, indo mais além, provar a tese segundo a qual as riquezas e os
sucessos no “Eldorado Paulista” eram conquistados por aqueles que desbravavam
corajosamente os “sertões paulistas”.
Por exemplo: o Coronel Francisco Schmidt – maior produtor e exportador de café
do mundo – era coroado pela imprensa com o título de “Rei do Café”. Título esse que
reaparece no próprio “Almanach Illustrado” (1913, p. 84). Schmidt foi responsável direito

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por algumas melhorias urbanas na cidade, como o empréstimo financeiro e a articulação


política para a construção do Teatro Carlos Gomes (inaugurado em 1897).
Entretanto, algo parecia atrapalhar os planos do milionário coronel. Na capital
paulista e em várias localidades do interior na década de 1910, inclusive Ribeirão Preto
(entre 1912 e 1913), estourara uma série de greves rurais e urbanas – dentre elas, as de
propriedade de Francisco Schmidt. Conhecido por seu temperamento irascível, dito coronel
não mediu esforços para exigir do Secretário da Segurança a mobilização da Força Pública
para reprimir os trabalhadores (DIARIO DA MANHÃ, 1912/1913; GARCIA, 1997).
Mas, nas páginas do “Almanach”, uma “outra” representação social de Schmidt
fora construída: vale ressaltar que em 1913 os proprietários-editores do “Almanach
Illustrado” lançavam seu primeiro número e nele constava uma seção especial intitulada
“Agricultura”, um espaço dedicado à cultura cafeeira e seus agentes “civilizadores”, os
coronéis:

[...] a vida do Cel. Schmidt tem sido de constantes lutas, das quaes
sempre sae victorioso, affeiçoando-se por isto, aos grandes
emprehendimentos. Atirou-se á labuta agricola com ardor e, intelligente e
methodico, deusa fortuna invadio-lhe o lar pouco a pouco, rodenado de
abundancia; lentamente, imperceptivelmente, o Cel. Schmidt passou de
um extremo ao outro, da pobreza á riqueza, graças ao seu esforço e
exemplar constancia, sendo hoje, segundo já ficou dito, conhecido não só
aqui como em toda a parte pelo titulo de “Rei do Café”. Em Ribeirão
Preto nada se faz sem o concurso poderoso de sua assistencia, que tem
parte em todos os melhoramentos urbanos (ALMANACH, 1913, p. 86-
87).

Nesta passagem, uma versão da história do coronel é narrada: aquele que deveria
lembrar a trajetória do imigrante afortunado e bem-sucedido que, imbuído do sentimento
de trabalho e dever (nunca o de conflito ou revolta) conseguiu tornar-se “Rei” e promover
o desenvolvimento da cidade e do município. A publicação, no “Almanach”, de uma
fotografia do poderoso coronel (todo imponente e garboso no vestir) ao lado do seu
automóvel Ford (1913, p. 85) defronte à Fazenda “Monte Alegre”, parecia revelar ao leitor
– “leitor-simulacro”? - a imagem de um homem afinado com a modernidade.

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Outra personalidade “ilustrada” nas páginas do almanaque foi Joaquim da Cunha


Diniz Junqueira, coronel conhecido pela alcunha de “Quinzinho”, mas metido à “linha
dura”. O Cel. Joaquim Junqueira, volta e meia, aparecia nas páginas da imprensa local
como um líder inconteste e de forte personalidade, apesar de sempre estar aberto às ações
“benfazejas”, um “progressista”, já que usava do prestígio pessoal para tornar Ribeirão
Preto um município rico e promissor (O TRABALHO, 1924).
Os editores do “Almanach Illustrado” fabricaram um “retrato” desejado do coronel.
Assim era Quinzinho, “[...] chefe prestigiado, cuja influência política é indiscutível em
todo o distrito e o seu nome é rodeado de uma simpatia geral, encontrando somente
amigos e admiradores [...]”, e, justamente por esse prestígio e fidelidade à sua pessoa,
“[...] Ribeirão Preto deve uma parte de sua situação ao exforço incansável do benemerito
e intelligente coronel Joaquim da Cunha Diniz Junqueira” (ALMANACH
ILLUSTRADO, 1913, p. 98).
Deste modo, é possível dizer que os almanaques eram construções de um texto - ou
de um conjunto de textos - inseridos numa modalidade de produção literária que
representava não somente relações sociais (pré)determinadas – visto que forjados numa
sociabilidade de homens cordiais (Rocha, 1998: 30) – mas, principalmente, são fortes
indícios da “forma como o texto encena sua inserção no sistema de produção” (LAJOLO
& ZILBERMAN, 1991, p. 07-08). Daí as representações públicas de (ou os textos sobre)
Francisco Schmidt ou ‘Quinzinho’ Junqueira encontrarem guarida simbólica naquelas
imagens desejadas da cidade.
Por outro ângulo, também é possível afirmar que a transição para o regime
republicano possibilitou – ainda que eivada de exclusões e preconceitos – o acesso de um
número maior de pessoas à cultura impressa, conseqüência de um lento processo de
alfabetização e de mudanças técnicas que permitiram dotar algumas “vozes” de meios de
expressão e representação social (LAJOLO & ZILBERMAN, 1991).
Mesmo sob o poder de coronéis iletrados ou de lideranças estaduais e da incômoda
presença de um exíguo “público leitor” (MARTINS, 2001), os meios de informação e
comunicação da época (jornais, revistas, almanaques, álbuns) desempenharam um
importante papel no campo cultural, que acompanharia os ritmos e rumos da publicidade

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moderna – como no livro de Márcia Padilha (2001) sobre São Paulo nos anos de 1920 – e a
publicização da comicidade da vida privada, conforme estudo de Saliba (1998): a
germinação de novos leitores, as estratégias de venda e a veiculação de novos hábitos e
valores (MARTINS, 2001).
Mas não nos iludamos. O patrocínio de revistas e almanaques em Ribeirão Preto (e
em outras cidades interioranas) constituía uma moderna forma de os coronéis legitimarem
seus poderes privados na sociedade e na política (WALKER & BARBOSA, 2000). Já que
todo e qualquer grupo político do período gravitava em torno dos seus “chefes” e o poderio
destes não se dissociava de participações (diretas e/ou indiretas) junto aos veículos de
comunicação e informação – e destacamos aqui o “Almanach Illustrado” – estes acabavam
por exercer um papel decisivo, eram os grandes responsáveis por potencializar as
ambivalências entre público e privado, arcaico e moderno (PAZIANI, 2004).

Considerações Finais

Diante do exposto nas páginas anteriores, a publicação de almanaques e álbuns em


cidades do interior paulista durante a Primeira República – casos de Barretos e Ribeirão
Preto – não era um procedimento e um costume estranhos aos seus habitantes, muito
menos para as sociedades de elite local.
Pelo contrário: como pudemos apresentar e problematizar, os álbuns e os
almanaques – materiais de cunho pedagógico, lúdico, comercial, político, cultural –
rapidamente foram incorporados ao “habitus” de homens e mulheres residentes em
localidades do interior de São Paulo. Não menos importante é o fato de que estes materiais
(seus autores e editores) visavam construir um imaginário social que estivesse em sintonia
com as transformações urbanas, científicas, tecnológicas e comportamentais ocorridas
entre os séculos XIX e XX.
Contudo, precisamos ter em mente que as experiências e as representações da
modernidade, ou das “modernidades”, não podem jamais ser dissociadas de seus
respectivos suportes técnico-espaciais, mas, principalmente, da força expressiva e situada
dos “lugares”, pois, como dizia Santos (2002), cada lugar responde (e corresponde) ao

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“mundo” de maneiras peculiares, ou seja, as recepções, apropriações e usos do viés urbano


por diferentes sujeitos em contextos históricos específicos.
Argumenta-se que a modernidade provoca o “desencaixe” espacial e temporal das
relações travadas entre os integrantes de uma comunidade, dado o emprego de sistemas
técnicos impessoais, capazes de reconfigurar material e socialmente o mundo (GIDDENS,
1991). No entanto, as experiências barretenses e ribeirão-pretanas evidenciam que esses
sistemas técnicos não cumprem totalmente essa função, dada a apropriação de vários de
seus mecanismos, por parte dos grupos sociais dominantes e da população em geral, tendo
em vista o filtro representado pela sociabilidade até então existente.
Neste sentido, álbuns e almanaques podem ser vistos como materiais que revelam
as dimensões ambíguas e contraditórias das sociedades/cidades que seus autores e editores
desejavam registrar. Suas publicações queriam coincidir a criação de memórias, mitos
fundadores e “tradições inventadas”, com a avidez do consumo de informações e produtos,
bem como a exaltação de imagens “desejadas” pelas elites, formando assim um compósito
de elementos textuais e visuais ocultadores de práticas nada “civilizadoras” por elas
adotadas.
Porém, na ânsia de legitimar “suas” cidades dentro dos ideais do “progresso” e da
“civilização”, as elites interioranas – e, podemos até dizer, outros grupos destas sociedades
– deixavam-se trair em meio às páginas dos almanaques e álbuns. O desejo de publicizar (e
vender) todas e quaisquer formas de riquezas comercializadas na cidade (sinais de
“progresso”), através de propagandas e de textos publicitários acabavam por revelar
práticas, costumes, comportamentos e sociabilidades que nos remetem a modos
considerados ruralizados de vida e de experiência social.
Por estas razões, o trabalho de pesquisa com álbuns e almanaques no interior de
São Paulo apresenta-se como um mote profícuo e instigante para a compreensão dos papéis
da cultura impressa em pequenas localidades paulistas entre 1889 e 1930, assim como suas
formas de recepção/apropriação/uso em lugares tão diferentes.

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O ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS DA MANOBRA DE SAICÃ (1940)


E O IMAGINÁRIO DE MODERNIZAÇÃO
DO EXÉRCITO BRASILEIRO

Ianko Bett37

RESUMO: Em 1940, no Campo de Instrução de Saicã (região central do Estado do Rio


Grande do Sul), o Exército Brasileiro realizou aquela que seria uma de suas últimas
manobras baseadas na doutrina francesa de guerra, cujo modelo, adquirido com a vinda de
uma missão militar, em 1919, proporcionou o alavancar de uma força armada moderna,
atualizando as necessidades bélicas surgidas com o advento do modelo tático
preponderante na Primeira Guerra Mundial. Além de registros escritos, produzidos nos
documentos atinentes à burocracia militar, essa manobra também recebeu um registro
fotográfico. No total, 150 imagens foram produzidas, copiladas em um álbum que
atualmente faz parte do acervo fotográfico do Museu Militar do Comando Militar do Sul –
MMCMS. Essa comunicação pretende, em seu escopo mais amplo, apresentar um estudo
analítico desse conjunto de imagens, com vistas a pontuar algumas possibilidades de
utilização dessa fonte como mecanismo singular para o desvelamento de aspectos sociais,
culturais e políticos, a partir de um recorte social consubstanciado na Instituição militar,
num contexto político marcado pela experiência autoritária inaugurada com o Estado Novo
(1937). Para tanto, propõe-se desenvolver uma descrição do álbum e um panorama geral
das fotografias que o compõe, evidenciando as características e possíveis propósitos dos
enquadramentos e de que modo estes aspectos permitem elencar um maior número de
subsídios que atestam a efetiva construção de um imaginário de modernização do Exército
em estreita configuração com o processo de controle, normalização e padronização da
instituição militar.

Palavras-chave: Álbum fotográfico; Manobra de Saicã; Modernização; Exército


Brasileiro.

37
Encarregado do Setor de Pesquisa e História do Museu Militar do Comando Militar do Sul – MMCMS,
Doutor em História (PUCRS). Email: ibett@bol.com.br

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Introdução

Em 1940, no Campo de Instrução de Saicã, em Rosário do Sul (região central do


Estado do Rio Grande do Sul), o Exército Brasileiro realizou aquela que seria uma de suas
últimas manobras baseadas na doutrina de guerra francesa, cujo modelo, adquirido com a
vinda de uma missão militar, em 1919, proporcionou alavancar uma força armada
moderna, atualizando as necessidades bélicas surgidas com o advento do modelo tático
preponderante na Primeira Guerra Mundial38.
Além de registros escritos, produzidos nos documentos atinentes à burocracia
militar, essa manobra também recebeu um registro fotográfico. Mais de 150 imagens foram
produzidas, compiladas em um álbum que atualmente faz parte do acervo fotográfico do
Museu Militar do Comando Militar do Sul - MMCMS. Ainda no ano de 1940, um dos
principais fotógrafos da manobra, Sioma Breitman, em parceria com um publicitário porto-
alegrense, organizaram algumas dessas imagens numa publicação intitulada “Grande
manobra da 3ª Região Militar”, a qual foi editada pela Editora Globo, sendo diversos
exemplares distribuídos aos setores militares e imprensa 39.
No esforço de apresentar um estudo do álbum de fotografias da manobra de Saicã,
o artigo pretende demarcar a utilização desse objeto enquanto meio singular para o
desvelamento de aspectos sociais, culturais e políticos, a partir de um recorte social
consubstanciado na Instituição militar, com vistas a contribuir para o entendimento dos
processos que forjaram a instauração e legitimação de um imaginário 40 de modernização.

38
Cabe destacar, também, que o conflito na Europa, conforme assinala João Rafael Morais (2014, p. 78)
“trouxe grande preocupação para a elite militar e também para as elites políticas, como jamais antes, pois
ficara patente a inferioridade do Exército brasileiro em relação ao estado da arte militar naquele momento.”
39
A Manobra da 3ª Região Militar foi fotografada por Sioma Breitman e mais dois fotógrafos: Milton Kroeff
(Jornal do Estado) e Santos Vidarte (Correio do Povo). (MASSIA, 2008)
40
A noção de “imaginário”, neste trabalho, está sendo baseada na concepção desenvolvida por Baczko
(1985). Na visão do teórico polonês (1985, p. 310), para se pensar na noção de imaginário, é preciso levar em
conta a coletividade e as suas especificidades: identidades, hierarquias, posições, crenças, lugares sociais.
Imaginário social, portanto, se configura como “uma das forças reguladoras da vida coletiva [...] uma peça
efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício de autoridade do
poder. Ao mesmo tempo, ele se torna o lugar e objeto dos conflitos sociais”. Nessa concepção, o imaginário
assume a função de ser uma poderosa força de instauração ou legitimação social, além de propor estereótipos
e paradigmas apresentados enquanto verdades. Essa definição salienta que o imaginário existe em função do
real que o produz e do social que o legitima. Não pode, neste sentido, estar deslocado da realidade uma vez

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Desta forma, o trabalho será desenvolvido utilizando essa “peça” do acervo do Museu
Militar de uma forma que o transcurso analítico transitará entre suas possibilidades
enquanto fonte de pesquisa bem como seu potencial enquanto um objeto de estudo.
Para atingir o objetivo principal estabelecido, a análise será dividida em duas
etapas. Na primeira a proposta é apresentar, com base na perspectiva genealógica, o
próprio desenvolvimento da instituição militar, com enfoque específico nos principais
acontecimentos que pautaram a tônica do processo de modernização da instituição e de que
forma esse quadro ficou configurado em fins da década de 1930 e nos primeiros anos da
década de 1940, momento em que foi realizada a manobra e, consequentemente, o
momento em que as imagens foram registradas. De acordo com Foucault (1979), o estudo
genealógico permite que se ponha em evidência as relações de poder-saber que se interpõe,
se encobrem, se entrelaçam, em determinados contextos, subscritas às práticas discursivas
e não discursivas, e que irrompem (resultam em) novos acontecimentos. Portanto, a
primeira parte será fundamentada na perspectiva teórico-metodológica de se empreender
um estudo da Instituição militar tendo como ponto de partida algumas das transformações
(internas) ocorridas no princípio do século XX e de que formas estas proposições se
encarregaram de “produzir” ou “inventar” uma nova instituição. Em outras palavras,
entende-se que para se compreender o acontecimento “modernização do Exército
Brasileiro”, bem como o acontecimento “Álbum da manobra de Saicã”, é necessário passar
em revista um conjuntos de outros acontecimentos, uma heterogeneidade de forças e de
práticas descontínuas circunscritas às relações de saber e poder que as produziram.
Na segunda etapa, a proposta consiste em desenvolver uma descrição do
objeto/fonte de pesquisa, seus autores, as características materiais, a forma com que foi
subdividido, tratando de problematizar e evidenciar a manifestação de alguns dos
processos “normalizadores” da Instituição militar na própria configuração dos indícios
formais com que foi projetado o “olhar” dos seus autores quando da sistematização de suas
(possíveis) intenções materializadas no álbum de fotografias. Nesta perspectiva, também se
pretende empreender uma análise geral das fotografias que o compõe, evidenciando as

que ele pode ser acionado para transformar a realidade. Daí, a necessidade de se trabalhar com a noção de
imaginário, evidenciando a sua capacidade de existência real, inscrito em práticas e lutas reais.

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características e possíveis tentativas de construção de sentidos e de que modo estes


aspectos permitem elencar um maior número de subsídios que atestam algumas facetas de
uma efetiva construção de um imaginário de modernização do Exército.
Sendo possível concordar com Ronaldo Queiroz de Moraes (2009, p. 16), quando o
mesmo salienta que a normalização da instituição militar exige “a produção e organização
da memória e das práticas castrenses [...] de forma que a produção dos documentos é na
maioria das vezes afinada com a vontade institucional [...]”, e que o documento, neste caso,
“assume uma posição estratégica de poder normalizante”, tomar-se-á o objeto na
possibilidade de visualizá-lo enquanto um monumento41, portador de uma trama discursiva
específica, efeito, fabricado e resultado de relações de poder (FOUCAULT, 1987), ponto
de apoio e difusor do discurso de unidade e coesão, tão necessário naquele contexto em
que a modernização da força militar se tornou um objetivo preponderante.
Levando em conta o contexto marcado por um processo político que pode ser
caracterizado pela experiência autoritária inaugurada com o Estado Novo (1937) tem-se
como hipótese que um conjunto de fatores possibilitou mobilizar as engrenagens
necessárias para a construção/difusão do imaginário de modernização do Exército, em
estreita configuração com o andamento dos processos de controle, normalização e
padronização da instituição militar. Propõe-se, então, compreender o itinerário de
desenvolvimento do Exército Brasileiro enquanto resultante de um projeto estreitamente
articulado com os parâmetros característicos de uma “instituição total” 42, abordando, para
isso, as considerações necessárias para uma devida reconstituição do surgimento de uma
instituição que se propôs a estar inserida nos parâmetros de constante militarização de seus
quadros, primando pelos processos que objetivavam coesão, controle e padronização, nas
suas mais abrangentes esferas (modelo tático, uniformes, burocratização, etc), tornando-se
um “modelo”, um paradigma a ser absorvido pela sociedade em geral.

41
Ver em LE GOFF, 1990.
42
São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e
estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos,
mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos (FOUCAULT, 1987, p.126).

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A genealogia da modernização do Exército Brasileiro

Ao percorrer pela trajetória dos processos que propiciaram o alavancar da


instituição militar brasileira aos parâmetros modernos de um exército profissional, torna-se
pertinente, num primeiro momento, demarcar as relações de poder que induziram, em
diferentes momentos e por diferentes processos, a fabricação dos corpos dóceis 43 da
instituição, especialmente na base hierárquica, propondo e resultando em uma grande carga
de coesão e disciplinamento. A historiografia pertinente ao tema evidencia que, na fase
“pré-moderna” do Exército (primeiras décadas do século XX), as crises e tensões político-
militares concentravam-se na base da hierarquia, cuja principal causa, dentre um conjunto
de fatores, se dava justamente pela baixa militarização dos subalternos, corpos ainda
indisciplinados, ainda não interpelados44 pelo discurso normalizador característico de uma
instituição total.
Em que pese durante o período imperial (1822 – 1889) a instituição Exército
Brasileiro ter dado início a uma série de transformações no sentido do reconhecimento da
sua importância para a consolidação do Estado Nacional, nos primórdios da Primeira
República (1889-1930) a força militar ainda se mostrará relativamente enfraquecida em
termos militares e políticos, muito em função da manutenção do poder das oligarquias
regionais com seus exércitos estaduais (polícias militares). Inclusive, cabe destacar, a
primeira constituição republicana pouco alterou a posição do Exército em relação ao papel
(secundário) que exercia até então. Uma das principais causas desta configuração, como
ressalta Morais (2009, p. 41), consistia no fato de que, nesse período, o Exército

43
A noção de “corpos dóceis”, em Foucault, tem a ver necessariamente com o desenvolvimento do
investimento da disciplina enquanto método minucioso das operações do corpo realizando a “sujeição
constante de suas forças” e impondo “uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1987, p. 118).
44
Cunhada inicialmente por Althusser, a noção prima, justamente, em esclarecer as posições de sujeitos
construídas nos discursos, as quais estão em estreita articulação com a efetividade/capacidade de
assujeitamentos, quando dois discursos entram em campos de disputas (PINTO, 1989). Em outros termos, o
“sucesso interpelativo se estabelece quando um discurso exerce poder sobre outro, que passa, sem sofrer
qualquer tipo de sanção negativa, a se identificar com o discurso do primeiro. No entanto, a capacidade de o
poder ser exercido pelo discurso está associada à sua capacidade de responder a demandas, de se inserir no
conjunto de significados de uma sociedade, reconstruindo posições de sujeitos” (1989, p. 36).

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[...] não conseguiu se estabelecer enquanto força moderna institucional


capaz de assegurar o monopólio da violência legítima [...], pois
representava um aparato fraco em termos militares, fruto de uma elite
aristocrática escravista de matriz liberal que desconfiava da centralização
do poder a partir de um Estado moderno.

Sob outra perspectiva de análise, José Iran Ribeiro (2013, p. 284) salienta que a
instituição militar apresentava uma organização “em moldes pouco profissionais”, cuja
preocupação na formação específica de seus integrantes era inexistente. Além disso, as
primeiras grandes manobras realizadas no início do século XX (1905) apontavam para
problemas estruturais, conforme salientou Fernando da Silva Rodrigues (2011, p. 35-36):
“[...] calçados de baixa qualidade, barracas muito pequenas, insuficiente estoque de
alimentos [...] armamento velho e insuficiente, mochilas excessivamente pesadas [...] e
cartucheiras de couro que não resistiram ao peso da munição”. Em consonância com esse
diagnóstico, mas avaliando a instituição em período temporal posterior, Fernanda
Nascimento (2011, p. 3) salienta que a falta de estrutura nos quartéis, a obsolescência dos
armamentos e equipamentos, flagradas nas campanhas de Canudos (1897-1898) e do
Contestado (1912-1916), deixou explicito para alguns oficiais “a necessidade de se adequar
a Instituição aos tempos modernos. A atuação dos militares nesses conflitos deixou muito a
desejar e demonstrou toda a fraqueza da Instituição.
Torna-se relevante, portanto, considerar e discorrer sobre esse momento de ruptura,
os processos (discursivos e não discursivos) que, em conjunto, deram corpo ao novo
paradigma que se estabeleceu na Instituição: a profissionalização dos corpos na caserna e o
afastamento da cultura paisana. Por isso, a necessidade de se apontar o afastamento da
instituição da “cultura militar bacharelesca”, se aproximando das normativas inerentes ao
profissionalismo, ressaltando “a complexa transição de um militar partidarizado,
apaisanado e vinculado a projetos políticos nacionais não institucionais para um militar
profissionalizado, disciplinado, dócil e vinculado, exclusivamente, ao da caserna”
(MORAIS, 2009, p. 12).
É possível, neste sentido, no que tange especificamente ao Exército Brasileiro,

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demarcar quatro principais “acontecimentos” que suscitaram o reordenamento da


instituição, desencadeando a sua inserção, já em meados da década de 1930, na esteira do
paradigma moderno. As reformas do ensino, na primeira década do século XX, dentro das
escolas militares45, que buscavam, grosso modo, assegurar maior preeminência de uma
formação exclusivamente militar (uma verdadeira militarização dos militares) em relação à
formação bacharelesca, paisana, até então plenamente estabelecida 46; os movimentos
tenentistas (profissional e político) e, em maior medida, a contratação e posterior
incorporação dos ensinamentos da missão militar francesa, foram processos determinantes
que possibilitaram a aglutinação de forças necessárias para a emergência de uma
reconfiguração institucional da força militar.
Foi nas primeiras décadas da República, então, que o Exército Brasileiro,
paulatinamente, através dos mais diversos vetores, de início à consolidação de reformas
estruturais (ensino, doutrina) objetivando estender a sua força institucional nacionalmente.
Nas palavras de Morais (2009, p. 50), era preciso “normalizar as práticas militares
objetivando a militarização do corpo militar [...] formar uma identidade militar moderna,
um corpo despartidarizado [...] e absolutamente identificado com a cultura de guerra”.
O setor a apresentar os primeiros indícios de uma relativa vontade de transformação
institucional foi o ensino, concentrado nas escolas militares, cuja tarefa primordial era
formar os futuros oficiais (comandantes). A importância desse campo, no contexto das
primeiras tentativas de transformação, pode ser atestada pelo fato de que as escolas
militares representavam um espaço privilegiado na formação de identidades, responsáveis
pelo futuro da própria organização. Nas palavras de João Morais (2014, p. 80),

45
Das ações mais significativas no sentido da mudança, sem dúvida, o campo dos saberes militares foi o que
exigiu maior preocupação estratégica, visto que as escolas militares representam espaços de formação de
identidades que apontavam para o futuro da própria organização. (MORAIS, 2009)
46
Trata-se da formação dos Oficiais na Escola Militar da Praia Vermelha. Conforme Fernando da Silva
Rodrigues (2011, p. 32) “A reforma dos regulamentos e das normas internas que regem a Força Terrestre é
uma medida que vai moldando os militares como atores políticos e visa, sobretudo, a consolidação da
instituição e do regime republicano”.

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A educação militar consiste em transformar um indivíduo civil em militar.


Isso requer incutir os valores da hierarquia e disciplina não pelo medo da
punição e dos castigos [...] mas pela identificação visceral entre o
indivíduo e sua unidade, entre o indivíduo e seus companheiros, forjando
o “espírito de corpo”.

Era preciso, e os novos regulamentos apontavam para isso, ultrapassar a inércia


profissional consubstanciada através do predomínio da cultura bacharelesca – de forte
influência da política civil – no meio militar, aprimorando, desenvolvendo e colocando em
evidência uma formação predominantemente prática, onde as lições fossem voltadas quase
que exclusivamente às lides da guerra. As reformas no ensino militar, inicialmente através
dos regulamentos de 1905 e 191347, intensificando-se na fase de transformação de 1913 a
192948, podem ser consideradas, então, como a semente inicial da construção do “espírito
militar”, uma primeira manifestação do processo de normalização da caserna49. Com elas
foi pretendido, através das novas concepções, adequar o ensino prático e profissional às
necessidades da formação dos oficiais, especialmente as atividades táticas, prática de tiro e
regras de campanha, tratando de excluir, cada vez mais, a influência paisana no âmbito
militar:

[...] as reformas apontavam na mesma direção. Tratava-se de ampliar os


efetivos, garantir o recrutamento através do serviço militar obrigatório,
modernizar a organização e o armamento e conferir um caráter mais
profissional ao futuro oficial do Exército. Era o fim dos ‘bacharéis
fardados’ que rivalizavam com aqueles formados nas escolas de direito e
que gostavam de ser chamados de doutores (SVARTMAN, 2012, p. 283).

47
Cabe destacar que o regulamento de 1898, em que pese não ter alterado significativamente a estrutura
paisana das escolas militares, deu os primeiros passos no sentido de incluir a disciplina militar nas escolas
preparatórias (antes do aluno chegar à Escola Militar da Praia Vermelha). Houve, nesse sentido, um conjunto
de medidas que visavam à disciplina, já apresentando algumas características das instituições totais:
formaturas, aulas, instruções, rancho, paradas diárias, manobras, desfiles plantão nos alojamentos, etc.
(MORAIS, 2009)
48
Nesta fase, de acordo com Rodrigues (2011, p. 32) “os modelos foram encadeados e propuseram que o
ensino fosse teórico-prático ou mais prático do que teórico e que o conhecimento fosse apreendido do
concreto para o abstrato. Os resultados de tal empreendimento transitaram da formação de um modelo
educacional teórico-cientificista em que predominavam a matemática e as ciências naturais, que os afastava
das questões militares, para um modelo profissional mais prático e objetivo [...]”
49
É preciso destacar que em 1911 foi criada a Escola Militar de Realengo em substituição da Escola da Praia
Vermelha, com forte predominância bacharelesca sob influência do Positivismo (MORAIS, 2014).

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Paralelamente aos novos regulamentos do ensino militar, entre os anos de 1905 e


1912, em três contingentes (1905, 1908 e 1910), grupos de jovens oficiais (totalizando 33)
realizaram estágio (com duração de dois anos) na Alemanha. Foram conhecidos como
“Jovens Turcos”50, cujas ações práticas dessa experiência são consideradas como mais um
decisivo vetor que vislumbrava a transformação (modernização) do Exército brasileiro.
Pela sua importância no contexto e pela forma de atuação, passaram a ser considerados
como representantes do tenentismo profissional, alinhando-se, nas causas e nos objetivos,
com o tenentismo político.
O objetivo do estágio na Alemanha era bem claro: “formar no exterior instrutores
perfeitamente habilitados para lecionar nas escolas militares, cujos currículos passariam a
privilegiar uma orientação mais prática e profissional em detrimento de uma orientação
teórica e de índole bacharelesca” 51. Cabe destacar que uma possível “missão militar alemã”
nunca chegou a ser contratada efetivamente, mesmo na presidência de Hermes da Fonseca
(1910-1914), profundo admirador do modelo de doutrina de guerra alemã. Mesmo assim, a
influência desse conjunto de jovens oficiais, que trouxeram da Alemanha algumas das
prerrogativas para a formação do militar moderno, foi em muito sentida na caserna. Entre
os anos de 1919 até 1923 foram os responsáveis pelo desenvolvimento da denominada
“missão indígena”, com o claro objetivo de modernizar a instituição.
De outra parte, um dos principais resultados desse projeto modernizador pode ser
encontrado na revista “A Defesa Nacional” (1913), publicação mensal que transmitia
ensinamentos técnicos aprendidos pelos tenentes durante o estágio no Exército alemão,
além de condensar um projeto de nação, que englobaria a participação do Exército na
política, conforme indicação de seu primeiro editorial: “o Exército, única força
verdadeiramente organizada no seio de uma tumultuosa massa efervescente, vai, às vezes,
um pouco além de seus deveres profissionais para tornar-se, em dados momentos, um fator
de transformação política ou de estabilização social” (NASCIMENTO, 2009, p. 956). Para

50
Essa denominação se refere à forma depreciativa com que os jovens tenentes foram tratados pelos oficiais
mais antigos. A expressão, que, de forma pejorativa, faz analogia aos jovens oficiais da Turquiade Mustafa
Kemal que buscaram modernizar o Exército daquele país, foi incorporada, servindo de símbolo da causa
(MORAIS, 2009); (RODRIGUES, 2011).
51
Ver em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/JOVENS%20TURCOS.pdf

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Morais (2009, p. 63), os “jovens turcos” inauguraram, de baixo para cima da estrutura
hierárquica, “a cultura da técnica militar moderna como elemento efetivo de
profissionalismo”.
Em 1922 e 1924, duas sublevações militares, respectivamente no Rio de Janeiro e
São Paulo, tendo como protagonistas oficiais subalternos (tenentes e capitães),
movimentaram o cenário político-militar nacional52. Diferentemente do tenentismo
profissional, que buscava a imposição da transformação tendo como ponto de partida a
própria instituição, o tenentismo político direcionou suas ações para um espectro mais
amplo, focalizando as questões políticas e administrativas da nação. Nas palavras de João
Morais (2014, p. 92) o tenentismo pode ser considerado “a centelha que, acesa por atritos
tão estruturais, não poderia ser apagada por simples e ocasional repressão pela força”, por
isso “seria o marco inicial desse processo revolucionário que tinha na base o
questionamento do lugar (ou papel) do Exército na sociedade”.
Pedro Ernesto Fagundes (2010, p. 130), ao interpretar tenentismo sob a perspectiva
de José Murilo de Carvalho, salienta que o movimento foi resultado de uma “conjugação
dos problemas internos e externos dos militares e, em especial, tiveram papel privilegiado
no início do movimento as questões relativas à institucionalização do Exército durante essa
época”. Para Morais (2009, p. 68), o tenentismo político compartilhava as mesmas
concepções modernas do tenentismo dos jovens turcos, entretanto, nas palavras do autor,
“concentravam a ação político-militar contra as estruturas do poder político nacional a fim
de qualificar o Exército brasileiro para as reformas que lhe garantiam o papel
centralizador”. Por isso, a opção pela ação revolucionária como forma de combater a
precária condição de vida e a desestruturação da Força militar, especialmente nos aspectos
referentes aos baixos soldos, aos privilégios nas promoções e, por fim, aos aspectos
relativos à precária e incipiente profissionalização.

52
É preciso destacar que na década de 1920 eclodiram diversos movimentos de contestação da situação
política vigente no país. De acordo com (Fagundes, 2010), essas manifestações indicavam o
descontentamento de setores da população brasileira com os rumos da República., tendo o movimento
Tenentista, a Reação Republicana, a Semana de Arte Moderna, a “Revolução de 1924”, a Coluna Prestes e a
fundação do Partido Comunista do Brasil, como suas expressões mais conhecidas.

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Desta forma, a historiografia parece coincidir no fato de que as primeiras medidas


modernizadoras da instituição foram concebidas (e assim colocadas em prática) de baixo
para cima da hierarquia. Esse modelo de transformação, de acordo com Morais (2009),
“representou mudança mais no campo da superestrutura militar do que no das estruturas
institucionais”. Ou seja, com a parcialidade faltava, ainda, mais um importante vetor de
modernização, mais uma força a estar inserida no processo de transformação com vistas a
atingir a instituição de uma forma ainda mais completa (de cima para baixo) e efetivar a
inserção do Exército nos parâmetros de uma instituição total. A Missão militar Francesa
(1919 – 1939) completou este projeto. Desta feita, toda a hierarquia militar precisou se
atualizar, se reformar e se modernizar.
Sob o comando do General Maurice Gamelin, a Missão Militar Francesa 53 se
tornou um dos vetores mais importantes, dentro de um conjunto de “acontecimentos”, a
exercer influência no processo de modernização do Exército brasileiro 54. O efeito de suas
transformações pôde ser sentido, em grande medida e num primeiro momento, nos oficiais
de baixa hierarquia (subalternos). Ao chegarem na tropa, apresentavam uma melhor
preparação que seus chefes, sendo alvos, muitas vezes, de perseguições e de conflitos.
Ronaldo Queiroz de Morais (2009, p. 143) salienta que, para além de uma influência que
atingia o desenvolvimento das instruções técnicas, a Missão Militar Francesa “produziu
efeitos identitários nos corpos militares, essencialmente, com o crescente disciplinamento
de cada indivíduo do corpo da tropa a fim de vinculá-lo à imagem institucional.” Os vinte
anos de sua experiência no Exército Brasileiro, a doutrina militar francesa induziu as ações

53
Um dos motivos para a contratação de uma missão militar, naquele contexto, se deve especialmente à
percepção, por parte das autoridades políticas, principalmente pelo então ministro da Guerra, Pandiá
Calógeras, das necessidades de se “instituir uma força de terra orgânica e próspera, atendendo ao diagnóstico
dos graves problemas detectados, que assinalava a carência de efetivo, de armamentos e de preparo militar.”
(BELLINTANI, 2009, p. 544).
54
Segundo Adriana Bellintani (2009, p. 24), o desenvolvimento da Missão Militar Francesa se deu em duas
etapas: “Nos anos 20, os franceses reorganizam os cursos regulares de carreira, principalmente os do Estado
Maior do Exército (EME): são construídas novas instalações, elaborados novos regulamentos e enviados
oficiais à França para realizarem cursos de aperfeiçoamento. Nos anos 30, o número de oficiais franceses nas
MMFs é reduzido, e a continuidade dos trabalhos se dá com o auxílio de militares brasileiros, devidamente
capacitados e instruídos. A política de valorização do Exército, desenvolvida por Vargas, amplia as
importações de armamentos, aumenta o efetivo militar e eleva os soldos.”

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no sentido de se proclamar desenvolver uma fissura identitária entre o meio civil e o meio
militar, não havendo mais espaço para a cultura paisana que se manifestara através do
bacharelismo. Para Adriana Bellintani (2009, p. 548),

A MMF é, sem dúvida, responsável pela modernização do Exército


Brasileiro pela instrução militar ministrada, pela doutrina militar
defendida e, essencialmente, pela concepção de profissionalismo imposta
e pela conscientização da importância de um exército forte e coeso para a
sociedade e o estado. Com os franceses, cria-se, nos quartéis, uma
mentalidade voltada para a importância moral do soldado, do homem de
tropa e do oficial, conscientizando-o da relevância de seu papel junto ao
poder político tanto na manutenção da ordem interna e externa, como na
afirmação da hegemonia do estado frente a outras nações.

Com a revolução de 1930, o Exército começou a efetivar a pleno as reformas


construídas e iniciadas nas décadas anteriores. A articulação entre civis e militares
(especialmente aqueles do tenentismo) derrubou a denominada república oligárquica,
dando início às ações político-militar sob a forma de um caráter institucional, e não mais a
partir de esforços segmentados nas classes subalternas 55. Por outro lado, foi o período em
que a modernização institucional, de forma isolada, chegava ao seu limite. O novo
entendimento, que cada vez mais sobressaia nas ações políticas, era que o Exército possuía
as ferramentas para a condução da nação à modernização geral. Conforme Celso Castro
(2000, p. 104), “mais do que a ‘reorganização’ de uma instituição fragmentada [...] o que
ocorreu foi a invenção do Exército como uma instituição nacional, herdeira de uma
tradição específica e com um papel a desempenhar na construção da Nação brasileira”. Só
que, essa consolidação institucional, uma verdadeira militarização dos militares, só se
efetivaria com um Estado forte, com a capacidade suficiente de manter a coesão e
disciplina no corpo militar, afastando-o decisivamente da política partidária56. A saída
autoritária de 1937 proporcionou as condições necessárias para o Exército consolidar sua
55
Inclusive o próprio tenentismo político, nesse contexto, ficou relegado ao ostracismo, sem espaço de
atuação no “novo” país que surgia. Além disso, o período compreendido entre 1934 a 1937 é marcado por
uma crescente tensão – crise política e econômica mundial, ideias extremistas em ascensão, cuja repercussão
interna acabou desencadeando num período ditatorial com o advento do Estado Novo. (MORAIS, 2009)
56
Importante ressaltar que, nesse contexto, mais especificamente após 1935, a questão comunista passou a
permear pelo pensamento militar, não tanto por uma efetiva mobilização de ação, mas fundamentalmente
pelo “valor simbólico de mobilização geral das forças militares no sentido da coesão” (Morais, 2009, p. 98).

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importância nacional, especialmente com a paulatina desconstrução das forças militares


regionais, ficando as mesmas subordinadas ao Exército 57.
Quando a instituição militar adentrou ao ano de 1940, então, assim o fez sob uma
nova roupagem institucional, resultado direto de aproximadamente quatro décadas de
profundas transformações, cujos principais vetores foram resumidamente apresentados.
Quando o efetivo de Organizações Militares, sob a coordenação da 3ª Região Militar,
realizou os exercícios no Campo de Instrução de Saicã, assim o fez plenamente inserido
nos novos códigos do profissionalismo militar.
O conjunto de imagens produzidas desta manobra, copiladas no Álbum objeto/fonte
desta investigação, pode ser considerado, ao mesmo tempo, resultado e difusor do
imaginário de modernização da força armada. Resultado, pois é possível evidenciar, em
sua formatação, todos os indícios que representam um corpo militar coeso, homogêneo, em
profunda simbiose com aquelas que seriam suas novas atribuições e exigências, no tocante
às questões bélicas e ações políticas. Por outro lado, o álbum também se tornava um polo
difusor na medida em que a modernização não se encerra em si mesma, mas deve ser um
processo, em permanente construção e, nesse sentido, precisando sempre ser reforçada,
carregando e construindo, através da produção e reprodução das representações inerentes
ao novo status da instituição, a própria configuração do seu imaginário, cujo efeito último
deve ser medido através dos processos de identificação, decisivos na formatação de uma
instituição que ser quer coesa e homogênea, nos sentidos de atuação, de sua doutrina e na
instrumentalização política.

O Álbum de Fotografia da “Grande manobra da 3ª Região Militar”

Após a realização da manobra militar no Campo de Instrução de Saicã, um conjunto


de fotografias originais foi compilado num álbum que, ainda no ano de 1940, foi objeto de

57
Ronaldo Queiroz de Morais (2009, p. 94) salienta que a questão das definições políticas relacionadas ao
Exército, no período da Era Vargas, ficou concentrada na “dupla” Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra,
respectivamente Chefe do estado Maior e Ministro da Guerra. Os “artífices do Exército moderno”, nas
palavras do autor, proporcionaram a execução de uma política militar “de normalização produtiva no interior
da caserna”.

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uma publicação – devidamente autorizada pelo Comando da 3ª Região Militar – pela


editora Globo, sob a denominação “A grande manobra da 3ª Região Militar”. Organizado
pelo fotógrafo Sioma Breitman (um dos fotógrafos da manobra) e pelo publicitário
“Andrade”58, o álbum acabou resultando em diversas cópias, distribuídas especialmente
para os setores militar e de imprensa. Algumas décadas depois, os filhos de Sioma, Samuel
e Irineu Breitman, doaram o álbum original e uma cópia impressa ao Quartel da 3ª RM
que, em 2003, os repassou aos cuidados do Museu Militar do Comando Militar do Sul -
MMCMS, onde se encontram atualmente.
Tendo como ponto de partida os resultados obtidos pelo estudo apresentado na
primeira parte do artigo, neste momento pretende-se analisar e problematizar o Álbum da
manobra em um sentido que permita aferir a sua potencialidade enquanto objeto/fonte de
pesquisa para a construção do conhecimento histórico, notadamente circunscrito (mas não
só) aos processos mais abrangentes de modernização do Exército Brasileiro, permitindo
evidenciar quais aspectos, de forma e conteúdo, o qualificam enquanto repositório de uma
memória institucional que primava pela difusão de um imaginário de modernização.
Uma das primeiras questões que surgem ao pesquisador – e aqui já é possível
evidenciar algumas das possibilidades analíticas e riqueza dessa fonte – é justamente
compreender quais motivos teriam levado Sioma Breitman, renomado fotógrafo da época,
a registrar uma manobra militar e, mais do que isso, montar e difundir o álbum aqui
analisado. Parte dessa explicação pode ser aferida justamente pelo “contexto fotográfico”
daqueles anos 1930-1940, cuja prática desse ofício esteve, em parte e em alguns casos,
estreitamente articulada com alguns segmentos do poder público (especialmente político,
militar e eclesiástico), notadamente no esforço de consolidação da imagem de pessoas
públicas. Ao analisar um conjunto de imagens e álbuns produzidos no período, Rodrigo de
Souza Massia (2008, p. 77) explica essa questão: “Trata-se de um regime visual das figuras
políticas que teve forte uso durante o Estado Novo, como pode ser percebido na
recorrência das fotografias de Getúlio Vargas, que obedeciam a um cânone oficial, do
retrato clássico”.

58
Não foi possível encontrar referência que indicasse o nome completo do referido publicitário.

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Sioma foi um fotógrafo que transitou entre as maiores personalidades daquela


época. No seu estúdio foram produzidos os retratos oficiais de personalidades políticas
como Getúlio Vargas, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, do escritor Érico Verissimo,
além de diversas personalidades da alta sociedade porto-alegrense (MASSIA, 2008). O
fato de aceitar o convite para fotografar a “Grande manobra da 3º Região Militar”,
portanto, consistiu em mais um trabalho perfeitamente inserido na prática do seu ofício 59,
desta feita materializada em retratar uma instituição (seus comandantes e os políticos
presentes) que, naquele contexto, já estava plenamente estabelecida sua importância quanto
aos rumos da nação.
Por outro lado, também surge como um fator a ser explorado pelo pesquisador a
própria constituição do álbum, não necessariamente focalizando nas possíveis intenções
mais imediatas dos seus autores, mas justamente na tentativa de problematizar esse
acontecimento – a constituição do álbum – à luz de metodologias analíticas do campo
historiográfico. Evidencia-se, nesse sentido, a necessidade de se questionar as condições de
emergência do seu aparecimento (FOUCAULT, 2014), cuja especificidade pode ser
(hipótese que ainda precisa ser melhor analisada) remetida às interlocuções discursivas que
faziam eco às estratégias de se dar visibilidade para a instituição militar que, conforme
visto no tópico anterior, surgia como um importante ator político naquele contexto. Não se
tratou de imprimir qualquer tipo de visibilidade, mas, de fato, buscou apresentar uma
narrativa visual que pudesse dar conta de informar e reforçar a imagem de uma instituição
que estaria plenamente inserida no ideário moderno. Daí a necessidade de focalizar o curso
analítico aqui desenvolvido na própria organização do álbum, a escolha e a sequência de
imagens com que foi apresentado, levando em conta que “o estabelecimento do lugar que
cada imagem deve ocupar no interior dos álbuns não é resultado de uma escolha arbitrária,
mas revela a preocupação de conduzir o receptor a uma determinada leitura” (SILVA,
2005, p. 2), nesse caso em estreita articulação em formular um tipo específico de

59
Sem dúvida ainda cabe um estudo mais aprofundado que leve em conta a tentativa de compreender o
resultado do trabalho de Sioma (especificamente retratando a manobra aqui analisada) a partir da análise da
sua trajetória, sua formação cultural, sociabilidade e criatividade que imprimia em seu trabalho. Kossoy
(2001, p. 42-43) chama atenção para esse aspecto e o quanto isso pode revelar o próprio olhar do fotógrafo,
suas visões de realidade e suas atitudes.

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concepção de Exército e de Nação.


Outra forma de apropriação dessa fonte por parte do pesquisador (tomando por base
especialmente a edição impressa) coloca em evidência algumas questões importantes no
esforço de demarcar como se deram as condições de produção e de circulação do álbum.
Nesse sentido, é preciso concordar com Carolina da Costa e Silva (2008, p. 25) quando
afirma que esses aspectos remetem “aos dispositivos que foram empregados na
materialização do álbum como fundamentais para compreender as formas pelas quais o
impresso pretendeu atingir o seu ‘leitor’”. O álbum impresso foi distribuído para militares
e para setores da imprensa escrita, sendo, inclusive, alvo de algumas matérias,
especialmente na Revista do Globo (MASSIA, 2008). Não se tem dados objetivos que
podem aferir a quantidade de exemplares impressos. Contudo, o número de patrocinadores
(40 empresas, no total) das mais diversas regiões do estrado do Rio Grande do Sul é um
indício de que, muito provavelmente, a tiragem pode ter atingido um número bastante
significativo, tendo circulado por inúmeras regiões. Mesmo que não se possa aferir com
precisão acerca da circulação e dos usos a que o álbum foi submetido, e que esse aspecto se
torne mais uma via de possibilidades analíticas que a fonte pode despertar, é possível
constatar que a formatação impressa produziu, necessariamente, sentidos, significados,
representações, resultado de apropriações características de uma publicação daquele
contexto.
É possível, por outro lado, a partir de uma quantificação dos temas apresentados,
colocar em evidência alguns indícios das intencionalidades, manifestas justamente na
materialidade com que os álbuns foram constituídos. Com relação ao álbum original, em
primeiro lugar, constata-se a existência de 154 fotografias, com autoria dividida entre os
três fotógrafos já mencionados, distribuídas por algumas subdivisões, como aquelas que
retrataram a organização do Exército (total de 64) – Infantaria (6), Cavalaria (13),
Artilharia (9), Engenharia (13), Aviação (6), Transmissões (6), Serviço de Saúde (5),
Serviço de Veterinária (5) e Subsistência (1) – aquelas que retrataram as Inspeções
realizadas por autoridades militares e civis (total de 62) – Inspeção do General
Comandante da 3ª RM (14), Inspeção do Ministro da Guerra (12), Inspeção do Presidente
da República (28) – e aquelas que enfatizaram os momentos de confraternização e o desfile

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da tropa (36).
Por seu turno, o álbum impresso contou com um número significativamente maior
de fotografias (232), dispostas em 34 páginas. Este apresenta uma lógica estrutural
relativamente semelhante ao álbum original, com quase as mesmas subdivisões (armas,
serviços, fases da manobra, revista da tropa e os grupamentos) sendo, entretanto – e não
poderia ser diferente por se tratar de uma publicação com alcance variado – incrementado
com alguns artifícios gráficos, cujas principais características podem ser evidenciadas nos
desenhos e sobreposições de imagens, passando ao observador uma impressão de
“movimento”, de “ação” e de dinamicidade do Exército em exercício de campanha,
conforme demonstra a imagem abaixo:

Figura 1: Arma de Infantaria. Fotomontagem impressa. Fonte: Álbum “Grande


Manobra da 3ª Região Militar. 1940”. Organizado por Sioma & Andrade.
Acervo: Museu Militar do Comando Militar do Sul.

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Assim como o álbum original, as fotografias do álbum impresso também foram


ordenadas por tipologia, a saber: Altas autoridades (15), Inspeções (15), chagada e
inspeção do General Dutra (19), chegada e inspeção do Presidente Getúlio Vargas (36),
Armas e Serviços (Infantaria (9), Cavalaria (8), Artilharia (4), Aviação (5), Engenharia
(15), Serviço de Saúde (5), de Veterinária (4)), Vista geral da manobra (5), Rancho (8),
Aspectos do serviço (7), Diversas seções e grupos (33), visitas ao posto de Comando da
Brigada Militar (12), oficiais da Brigada Militar (7), desfile e encerramento (31).
Essa quantificação, mesmo de que forma sucinta e parcial, permite que sejam
evidenciados alguns resultados que corroboram a ideia de que, no conjunto de imagens,
especialmente na forma com que foram ordenadas e na própria seleção daquelas que iriam
compor os álbuns, transparece a possibilidade dos mesmos (especialmente o impresso, em
função de sua circulação) serem considerados um resultado/produto de um imaginário de
modernização e, ao mesmo tempo, um “artefato” que também permitia difundir esse
imaginário, multiplicando, talvez, seu alcance. Fazendo uma rápida análise dos números
acima apresentados, evidencia-se que quase a totalidade das imagens teve como foco
principal demonstrar a estrutura e organização do Exército, com as funções perfeitamente
partilhadas, cada Arma ou Serviço com seus efetivos, operando aquelas que seriam suas
respectivas funções em combate, e todos esses aspectos sob o exame e avaliação das
autoridades competentes, características marcantes de uma força armada profissional,
organizada, coesa, disciplinada, portanto, moderna.

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Figura 2: Guarnição de uma peça de


artilharia. Fotografia. Autor: Sioma Breitman.
Fonte: Álbum de fotografias da manobra de
Saicã.
Acervo: Museu Militar do Comando Militar
do Sul.

Figura 3: O Presidente Getúlio Vargas


inspecionando uma posição de
metralhadora.
Autor: Sioma Breitman. Fonte: Álbum de
fotografias da manobra de Saicã. Acervo:
Museu Militar do Comando Militar do Sul.

Foi referido anteriormente, durante a apresentação da trajetória do Exército ao


longo das primeiras décadas do século XX, que um dos principais objetivos a serem
atingidos, a partir de um conjunto de novas diretrizes e regulamentos, era justamente
aumentar o grau de profissionalismo da instituição – dos seus componentes – a partir da
militarização dos soldados, transformando-os, de forma contínua, em corpos dóceis.
Corolário desse objetivo a ordem, disciplina e coesão. A intenção dos autores em

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demonstrar essa narrativa específica, um conjunto de enunciados 60 que elevam os militares


num patamar inerente à modernidade, é perfeitamente perceptível quando se observa a
quantidade de imagens que focalizam os soldados em simulação de combate: uso de
uniformes e equipamentos adequados, precisão no manuseio de armamentos, sobriedade
nas posições e perícia nos usos de equipamentos.

Figura 4: Guarnição de Metralhadora. Autor: Santos Vidarte. Fonte: Álbum de fotografias


da manobra de Saicã. Acervo: Museu Militar do Comando Militar do Sul.

Além das imagens produzirem um conjunto de enunciados, a partir da seleção e


ordenamento efetivado pelos seus autores, também é possível evidenciar um conjunto de
enunciados transmitidos através de pequenos textos distribuídos por diversas páginas ao
longo da publicação. Isso remete a pensar na possibilidade desses textos – e seus
enunciados – reforçarem determinados sentidos contidos nas imagens, possivelmente
conduzindo os observadores do álbum a valorizar determinados aspectos. Ao problematizar
a presença de legendas em álbuns de fotografias, Lima e Carvalho (1997, p. 110) salientam
que elas “ajudam aproximando imagens, adjetivando o tema proposto, dando acabamento
para as noções que se quer apresentar”.

60
A noção de enunciado está sendo entendida como a “unidade molecular” do discurso, a qual é sempre
“uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com
conteúdos concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT, 2014, p. 105). Neste sentido, ainda de acordo
com o autor (p. 111), o referencial do enunciado “define as possibilidades de aparecimento e de delimitação
do que dá a frase seu sentido, à proposição do seu valor de verdade”.

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No “introito” (introdução) da edição impressa, no qual Sioma e Andrade


apresentaram um pequeno texto contendo agradecimentos e demonstrando aquelas que
seriam suas intenções com a publicação, é possível elencar passagens que podem dizer
muito sobre o olho – proposição de sentido – do fotógrafo, sua seleção de cenários, focos,
as próprias escolhas demandadas no ato de fotografar, mas também no ato de selecionar as
imagens que iram compor a obra:

A iniciativa da elaboração deste Album [...] tem por objetivo mostrar


fotograficamente o elevado panorama das atividades de nossa força
armada [...] é um repositório onde os soldados do Brasil encontrarão, a
todos os momentos, o espírito de camaradagem tão indispensável para a
colimação do alto objetivo de unidade pátria [...]. O Brasil acompanha as
jornadas de seu Exército e sabe-se capaz de manter a integridade
nacional.

Sobressai, nesse sentido, um conjunto de enunciados que pretenderam ressaltar um


perfeito entrelaçamento entre a instituição militar e a sociedade sob o prisma do
patriotismo. Sobre essa questão, Celso Castro (2002, p. 38) afirma que “a identificação do
Exército com estes conceitos abstratos de Pátria e Nação unificava a instituição, afastando-
a, no plano simbólico, dos conflitos políticos e ideológicos [...]”. Tanto na capa quanto na
contracapa, esse aspecto ficou bem representativo. Na capa, o desenho de um militar, em
posição de toque de corneta, com seu olhar altivo, devidamente equipado, sobrepondo, na
diagramação, à bandeira nacional. A imagem transmite a ideia de um chamado, um apelo à
brasilidade, à união, colocando o Exército como ator primordial e exemplar destas
intenções.

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Figura 5: Capa da edição impressa do álbum “Grande Manobra da 3ª Região Militar. 1940”.
Organizado por Sioma & Andrade. Acervo: Museu Militar do Comando Militar do Sul.

Na contracapa, colorida em verde e amarelo, um pequeno texto centralizado,


corroborando com os enunciados evidenciados na abertura do documento:

Ama ao Brasil sobre todas as coisas do mundo, porque é a tua pátria.


Lembra-te que tua pátria é a mais bela, a mais nobre e a mais digna, e sua
história, que deves conhecer, é brilhante. Ama ao exército em que tens a
honra de servir, porque é o guardião do Território Nacional, e não te
esqueças que ele soube escrever páginas de glória, imorredoura nos
campos de batalha neste continente, e que si preciso, saberá escrever
muitas outras mais.

Por outro lado, mas ainda buscando apontar as questões complementares entre as
imagens e textos e, nesse sentido, evidenciar proposições de sentidos expostas pelos
autores, cabe salientar o grande volume de publicidade impressa no álbum, localizada
especificamente no verso das páginas que continham as imagens da manobra. Abrangendo
um total de 40 anúncios publicitários, composto por empresas localizadas em diferentes
cidades do Estado do Rio Grande do Sul, destaca-se, na parte inferior destas páginas, a
projeção de diversas frases recheadas de enunciados com estreita ligação (complementando
e reforçando) com as imagens. Todas essas “mensagens” pareciam responder às questões
conexas ao esforço de se construir uma identidade nacional, assentada na realidade política
daqueles anos. Na publicidade da empresa Bromberg Sociedade Anônima, por exemplo, foi

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exposto o seguinte: “Ser brasileiro é cooperar esforçada e dedicadamente, com os


patrióticos dirigentes atuais do País, em todas as oportunidades que se apresentam”.
As imagens do Exército em manobra reforçando a ideia de coesão, organização,
homogeneidade, padronização e unidade, explicitamente manifestas, eram prontamente
corroboradas através das intensões expressas pelo meio civil, conteúdo que chancelava o
ideário de pertencimento, identificação e patriotismo, enquanto atributos inerentes ao
desenvolvimento da sociedade como um todo. A frase impressa na publicidade da empresa
Fernandes Costa atesta, de forma direta, essa afirmativa: “Ser brasileiro é amparar, sobre
todas as coisas, a ação patriótica, dinâmica e bem intencionada de Getúlio Vargas”. De
outra parte, ficam evidenciados, também, um conjunto de enunciados que, correlacionados
com as imagens do Presidente da Nação, representando o setor político, em profunda
integração com o setor militar,
seja durante a inspeção da
manobra, seja durante a
confraternização ao fim do
exercício, parecem ser bem
representativas do esforço
empreendido em construir,
desenvolver e difundir o
imaginário de modernização
do Exército e seu papel ativo
como ator político naquele
contexto61. Figura 6: Presidente Vargas e um militar dentro de um posto
de observação. Fotografia. Autor: desconhecido Fonte:
Álbum de fotografias da manobra de Saicã. Acervo: Museu
Militar do Comando Militar do Sul.

61
Ao estudar o “Culto a Caxias” e o estabelecimento institucional deste enquanto Patrono do Exército, Celso
Castro (2000) salienta que, a partir de 1930, passou-se a enfatizar fusão do Exército com a Nação, tendo
como ponto focal Caxias, apresentado como o maior lutador pela unidade e integridade da Pátria. Afirma o
autor, ainda, que a imagem evocada de Caxias passou a destacar cada vez mais sua autoridade e suas
qualidades de chefe militar a serviço de um Estado forte. Não foi sem propósito, então, que neste contexto,
Caxias passou a personificar a união militar e da própria nação.

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Figura 7: Presidente Vargas com uniforme militar. Fotografia.


Autor: Sioma Breitman. Fonte: Álbum de fotografias da manobra de Saicã.
Acervo: Museu Militar do Comando Militar do Sul.

Figura 8: General Dutra (Ministro da Guerra) discursando na presença


de autoridades civis e militares. Fotografia. Autor: Sioma Breitman.
Fonte: Álbum de fotografias da manobra de Saicã.
Acervo: Museu Militar do Comando Militar do Sul.

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BARROCO JESUÍTICO-GUARANI?

Jacqueline Ahlert62

RESUMO: O acervo remanescente da estatuária missioneira ainda está sob o estigma do


ideal estético barroco. Salvo algumas exceções, reproduz-se, ainda hoje, o imaginário
planeado pelos padres jesuítas, sobretudo durante o século XVIII, para adornar,
didaticamente, as igrejas e demais espaços oficiais de culto nas missões religiosas.
Encartes turísticos, páginas da internet, livros de história, reiteram a ideia de que o
imaginário escultórico missional constituiu-se de imagens monumentais, carregadas de
poder persuasivo expresso nos drapeados, douramentos, gestos e semblantes dos santos
esculpidos em madeira. No entanto, parte significativa deste acervo é composta de
pequenas e médias imagens que carregam a historicidade do complexo processo de
“redução” de indígenas à vida missioneira. Apesar de uma atuante ambiência religiosa
barroquista, ocorreram transposições em que os elementos formais barrocos cederam lugar
à rigidez, ao frontalismo, geometrismo e esquematismo indígena. A partir da bricolagem
efetuada sobre estas representações, podem-se denominar de “barroco jesuítico-guarani” as
manifestações artísticas, mais precisamente escultóricas, realizadas nas reduções? Eis
alguns dos problemas que norteiam a construção deste artigo.

Palavras-chave: Barroco; Arte missioneira; Missões Jesuíticas.

O estilo de arte barroca chegou à América como instrumento didático mediador da


compreensão dos preceitos da religião católica romana por parte dos indígenas e no âmbito
litúrgico-cultural do colonizador. No caso das populações ameríndias, além de suprir a
dificuldade de comunicação oral nos primeiros contatos, veio introduzir um panteão de
outras divindades.
A ambiência barroquizante abrangia desde a igreja e o plano urbanístico das
reduções até os ritos festivos e religiosos. Houve um aproveitamento, por parte dos

62
Professora do PPGH da Universidade de Passo Fundo, doutora em História pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: ahlert@upf.br.

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missionários, das afinidades lúdicas e míticas, expressas no canto, dança e na palavra


rezada, reinterpretadas nas longas orações, cerimônias faladas e nas teatralizações festivas
(MARTINS, 2006).
Nos templos, “tudo está com tanto adorno e cuidado, que ao entrar na igreja,
abertas as portas e janelas, infunde tal alegria e conforto espiritual, que parece que está se
adentrando um palácio do céu” (CARDIEL em Furlong [1747], 1953, p. 156). Como
destacou Meliá, os nativos envoltos pela estetização urbana e pela sacralização do
cotidiano, “agora cantavam e dançavam na igreja e na praça, sob a nova ordem reducional.
A vida havia sido ritualizada segundo pautas novas” (MELIÁ, 1988, p. 185).
A mecânica comunicativa barroca contemplava as manifestações imateriais das
orquestras, coros em latim, missas, procissões, danças e encenações, celebrações sacras,
jogos e recepção de autoridades até as vestimentas especiais, a gestualização e organização
teatral em que eram dispostas as imagens no interior da igreja. Conforme o motivo
celebrativo, as intervenções formavam sobre o espaço central do povoado uma nova e
efêmera cenografia de arcos triunfais, altares portáteis, capelas domésticas, fogos, flores,
plumagens. Conforme o narrado pelos padres nas cartas ânuas, as chamas das velas,
tochas, incensos, os toques dos sinos e outros mecanismos de persuasão causavam
deslumbramento na população autóctone.
Germain Bazin, em O barroco – um estado de consciência, compreende o estilo
além das suas características artísticas, literárias e musicais. Para o autor, representa uma
sistematização de gosto que se reflete em diferentes níveis perceptivos vivenciais e
comportamentais. A linguagem barroca, na sua urgência comunicativa, segundo outro
autor, Affonso Ávila, colocou-se sob o primado de três elementos fundamentais: o lúdico,
a ênfase visual e o persuasório. Esses três elementos, convergindo na feição característica
do estilo artístico, acabariam mudando não só as regras do modo de formar do artista,
como também, mais significativamente, as regras do ver e do sentir.
Ávila define como pacto lúdico o que então se estabeleceu, passando este a ser o
elo de todas as manifestações de uma sociedade empolgada tanto pela terrenalidade e
passionismo da religião, quanto pelo colorido exterior que a Igreja e o Estado emprestam
ao ritual litúrgico. A arte, para ele, foi assimilada de tal maneira pelo sistema, na sua

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organização religiosa e absolutista, que terminou por adquirir neste uma função de
estrutura, não apenas decorativa ou de fantasia (1980, p. 22 e 36)63.
A parafernália litúrgica barroca deveria causar grande impacto na população nativa,
de modo que os padres não demoraram a se dar conta do poder de mediação das imagens e
sonoridades. Orientados pelos ditames das estratégias contrarreformistas 64, utilizaram-se
amplamente da iconografia de Nossa Senhora da Conceição, a Virgem Conquistadora, e
envolveram os índios com a operística barroca, visual, sonora e sensitivamente.

Uma imagem da Virgem, prenda querida do santo Padre Roque, a qual


havia sido companheira em suas peregrinações e que, colocada nalgum
povo, depois de este se achar fundado, ele mesmo conduzia a outro.
Assim, e com razão, chamava-a “a Conquistadora”, atribuindo à sua
presença os sucessos prósperos de suas empresas. Nessa conquista ia-se
para perder e para ganhar, pois fenecendo sua pintura e seus corpos, estes
hoje gozam no céu da gloria imortal (MONTOYA, [1639] 1985, p. 200).

Ainda na segunda metade do sec XVIII, o estandarte de Nossa Senhora


acompanhava os caçadores de infiéis nos montes. Junto com presentes dos missionários, o
padre Paucke entregou aos índios que visitariam seus amigos a convite de se reduzirem,
“uma bandeirinha branca que tinha de um lado a imagem de Nossa Senhora das Dores e do
outro a de São Francisco Xavier, sinal pelo qual sempre poderiam ser identificados como
índios cristãos” (PAUCKE em Auweiler, [1752] 1900, p. 111).
A longa empreitada de catequizar os ameríndios (e populações nativas de outros
continentes) fazia parte das razões pelas quais a Companhia de Jesus havia sido criada.
Diferente de outras que a haviam antecedido, a Ordem do jesuítas nasceu na Modernidade
e com isso a exploração da retórica e o sentido pragmático estiveram condensados em sua
didática.

63
Afonso Ávila se refere, em especial, a sociedade mineira do século XVIII. Elucida uma assimilação do
barroco que não se aplica em sua totalidade as Missões Jesuíticas do Paraguai.
64
A Ordem dos Jesuítas não foi a única criada na primeira metade do século XVI com o intuito de contribuir
com o processo reformador da Igreja. Os Teatinos (1524), os Irmãos Menores Capuchinos (1528), os
Samascos (1537) e os Barnabistas (1539) constituem-se em outras ordens religiosas que podem ser
consideradas “nascidas reformadas”.

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A era da Contrarreforma nasceu antes do Concílio de Trento, realizado entre os


anos de 1545 e 1563. A resposta católica ao Protestantismo foi anunciada pela fundação da
Companhia de Jesus, aprovada pela instituição da Inquisição (1542) e pela censura à
imprensa (1543) (ARGAN; FAGIOLO,1992, p. 68).
Apesar de a ordem jesuítica haver sido criada no cerne da idealização da didática
barroca como linguagem persuasiva adequada à catequização, alguns subsídios indicados
pelo Concílio de Trento tiveram de ser adaptados à filosofia e estética loyolistas. De modo
que os excessos ornamentais do barroco foram suavizados, como se percebe na
comparação dos templos jesuíticos com os franciscanos, por exemplo. Como elaboração
plástica, Darko Sustercic afirma que o estilo barroco alcançou às doutrinas paraguaias
somente com a chegada de José Brasanelli, arquiteto, pintor e escultor que trabalhou nos
ateliêrs missioneiros de1691 até 1728 (SUSTERSIC, 1975, p. 54).
O estilo barroco não estava indissociavelmente atrelado a normas do Concílio de
Trento. Datações dificilmente correspondem às realidades estritas – quando mais
complexas como a americana –, servindo somente como orientação. Os traços
fisionômicos dos Seiscentos já começaram a delinear-se antes, assim como condicionaram,
por outro lado, a fisionomia do século XVIII e após65.
Pela recorrência das observações nos relatos dos inacianos, supõe-se o quanto era
necessário “despertar-lhes e gravar-lhes com o aparato litúrgico exterior uma inclinação
interior para com a religião cristã” (SEPP, 1943, p. 141). A força mitológica e alegórica
das representações imagéticas contribuíu na adesão dos indígenas à vida nos povoados
missionais. Introduzidas desde as missões volantes, as imagens de santos, da Virgem e de
Cristo foram protagonistas da cenografia catequizadora.
As formas estéticas, nos seus objetivos expressivo, persuasório e comunicativo,
acabaram por fazer com que essa mesma propensão atingisse as demais formas de vida
espiritual e social, colocando-as sob a égide de um estilo comum de representação, fosse

65
Ferreira Gullar situa o barroco entre 1610 e 1750. Na América espanhola, esta datação corresponde a quase
totalidade do período das reduções da Província Jesuítica do Paraguai. Em 1610, foi fundada a primeira e, em
1750, foi assinado o Tratado de Madri, que ocasionou a expulsão da ordem em 1767/8. Ver: GULLAR,
Ferreira. Barroco: olhar e vertigem. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
e WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da historia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.19.

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ele nas atividades litúrgicas cotidianas, fosse nas festivas. Esses artifícios, ao modo de uma
“catequese lúdica”, aproximavam-se da ritualistica festiva presente no mundo indígena,
possibilitando a formulação de vínculos de sentido para a ressignificação de tais práticas.
A ritualização era prática intrínseca à vida social dos povoados, esteve ligada
diretamente a uma concepção reciprocitária indígena que não reconhecia distinção clara
entre as relações econômicas, políticas e sociais (WILDE, 2003, p. 206).
O centro nevrálgico desse arranjo era o complexo formado pela igreja e pela praça
central. Wölfflin (1996) observou que, sempre que possível, a arquitetura barroca procurou
deixar um espaço vazio – uma esplanada – diante do edifício. Este aspecto já iniciara sua
elaboração nas construções maneiristas, em geral, graciosas e preocupadas em integrar a
obra ao ambiente, mas configurou-se no barroco, uma vez que a praça era tratada como
uma esplanada.
Este era um elemento organizador do espaço urbano, onde se concentrava o
conjunto de atividades da comunidade. Essa função vinculava a estrutura missioneira à
espacialidade da aldeia guarani, elemento incorporado e adaptado na redução.
Nesse espaço era potencializada a característica barroquista de sacralização da
rotina, dando uma nova faceta ao tradicional esquema de acumulação de funções que
definiam a centralidade urbana hispano-americana. A praça – mediadora das organizações
e sistemas medievais, barrocos e maneiristas – era vestida e decorada conforme as ocasiões
adequadas: cívicas, religiosas, culturais, esportivas ou militares.
No que compreende a igreja, a maior parte da produção das oficinas – no tocante às
talhas, ornamentos, instrumentos musicais –, tinha como destino ornamentá-la. Abóbodas
pintadas, altares “muito grandes, cheios de talhas e dourados com arcos setoriais”
compunham as estratégias suasórias elaboradas pelos padres (AZARA, [1781] 1998, p.
239-40).
As igrejas possuíam de três a cinco naves e de cinco a sete altares cada uma, todos
ornados com retábulos dourados que abrigavam esculturas de santos. As paredes,
comumente, eram pintadas com passagens da vida de Cristo e cenas do Velho Testamento.

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No teto, explorava-se a técnica do trompe-l'oeil66, cuja noção de profundidade elevava


ilusionisticamente ao céu. Conforme Furlong, “todo o espaço não ocupado por altares
estava coberto de pinturas ou telas de pincel requintado” (1962, p. 224).
Gonzalo Doblas, tenente-governador que chegou às Missões por volta de 1785,
observou que “o primeiro que se apresenta à vista são os templos; estes, ainda que não
guardem regularidade em sua arquitetura e sejam de pouca duração, são muy suntuosos e
estão bem adornados interiormente de retábulos” (1836, p. 56).
Todas as ruas da doutrina convergiam à igreja, o único edifício vertical do povoado,
o centro espiritual e material a acentuar o sentido transcendente do projeto missioneiro,
constituindo o principal marco morfológico da redução. Conforme Kern, “na praça central,
a igreja dominava o povo inteiro, simbolizando o predomínio da ideia religiosa sobre a
comunidade e materializando a autoridade dos missionários sobre o conjunto das Missões”
(1982, p. 128)67.
No espaço da religiosidade “oficial”, representado pela igreja, as imagens, além de
representar, objetivavam simultaneamente, persuadir, domínio este fortemente barroco.
Além de expressão, a arte manifestava solicitação, assumindo um caráter propagandístico.
A retórica, assim, torna-se um dos seus elementos mais importantes, “a mais simples e
objetiva enunciação da arte é igualmente evocação [...], produção mágica da coisa e
encantamento da pessoa” (HAUSER, 1988, p.85).
No entanto, é imprescindível considerar que a Igreja, enquanto edifício e
instituição,não agia como definidora única do espaço sagrado. Este estava presente
também na construção de um imaginário e de uma lógica de tempo e devoção afastados do
que apreendiam diretamente os padres. Assim, a mobilidade das imagens (esculturas de

66
Trompe-l'oeil é uma expressão francesa: “enganar o olho”, usada principalmente em pintura e arquitetura,
por meio de uma técnica artística que, com efeitos de perspectiva, cria uma ilusão ótica que sugere
profundidades, volumes e formas que não existem realmente.
67
A forma predominantemente retangular das plantas das igrejas missioneiras levou muitos historiadores a
estabelecerem paralelos com a igreja de Gesú, em Roma, marco identificador da Companhia, vista como
arquétipo nos projetos jesuíticos em todos os continentes, inclusive nas reduções da Província Jesuítica do
Paraguai. Sobre este engano, Sustersic afirma que: “eles esquecem que a arquitetura é fundamentalmente
ordenação e experiência do espaço, as plantas e elevações não são, neste caso, os elementos definidores do
mesmo”. E complementa: “a planta de uma igreja missioneira de três naves mostra pouca diferença com as
basílicas paleocristãs. Porém, o espaço de uma e outra é inteiramente distinto”(2004, p. 38).

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uso pessoal, medalhas, estampas, agnus dei, etc.) dentro do espaço missioneiro é entendida
não somente como o alargamento de práticas religiosas, mas como a tradução e a
ressignificação dessas práticas no cotidiano indígena.
Mesmo considerando-se a importância de tais estruturas, deve-se atentar a
complexidade do espaço missional. Esse é,comumente, reduzido a um sinônimo do “plano
urbanístico reducional”, ou seja, a disposição do sítio onde se construíram os edifícios
principais. Ainda que o pueblo se apresentasse como ponto de referência – pois abrigavaa
igreja, as oficinas, o cabildo, a casa dos padres, as moradias, a hospedaria, o cotiguaçu, o
cemitério etc. -, a abrangência territorial das missões compreendia, na área rural, estâncias,
fazendas e ervais, ligados por caminhos interceptados por capelas. Nas imediações, havia
fontes de água, hortas, hospitais, pedreiras, cárceres, entre outras instalações vinculadas a
estrutura produtiva das doutrinas. As imagens estavam presentes em todos esses domínios,
abrangiam desde a composição de capelas, oratórios móveis, altares portáteis e ermidas até
a utilização independente, situação em que sua presença estava cingida pela simbologia da
companhia e proteção divinas.
Com premissas similares de totalização homogeneizante, é comum a tendência de
resumir todas as manifestações simbólicas ou ritualísticas das reduções a
“expressõesbarrocas”, ou regras ditadas pelo Concilio de Trento. O termo tornou-se
cômodo e redutivo, e não representa todo o complexo artístico e social das Missões. De
fato, a presença barroca é inegável, mas insuficiente para explicar o processo histórico
missioneiro.

Barroco missioneiro?

Os catálogos turísticos, os livros de história (mesmo os didáticos), os de história da


arte (nas raras vezes que incluem a arte colonial sul-americana e rio-grandense), as páginas
da web das cidades e dos museus vinculados à experiência missional, estão “decoradas”
com as representações correspondentes ao estilo artístico barroco, fortalecendo a
construção do estereótipo: “barroco missioneiro”.

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Ainda que estas representações sejam de suma importância histórica – pois, em


termos de talha, por exemplo, evidenciam a capacidade técnica dos artesãos indígenas e o
poder de persuasão explorado pelos inacianos, ancorado nas imagens, expresso na
suntuosidade dos seus detalhes, mesmo que perdidos os arranjos que formavam inseridas
em conjuntos cenográficos –, formam somente uma fração do acervo total da imaginária.
Se considerada a existência de uma “arte” missioneira, sua maior expressividade
estaria nas representações em que há interferência da estética indígena e não na iconografia
canônica barroca, apesar de toda contradição que aparente carregar essa afirmação.
A formação de uma linguagem original, definida também como estilo, somente
pode ser considerada a partir da intervenção indígena. Imagens elaboradas por jesuítas e
reproduções fiéis ao cânone são a-históricas. Configuram um tipo ideal, ao passo que a
construção de um estilo é um fenômeno histórico.
Com a ressalva de que não se está buscando compreender a expressão estética
como um reflexo da forma de conceber a religião, procura-se entendê-la como
transformações constitutivas da própria cultura, da história das práticas religiosas e
artísticas milenares dessa sociedade, transformadas pelo cristianismo. As contribuições de
Hauser (1973) são profícuas no que diz respeito à formação de um estilo:

O tipo ideal é um conceito estrutural a-histórico, enquanto um estilo é,


por si e sem exceção, histórico. No tipo não histórico exprime-se a
irrealidade de um; no caráter histórico, a realidade do outro. Um estilo
mostra, neste sentido, e para se distinguir do todo ideal [...], a ideia de
realização gradual, quando não forçosamente contínua e sempre
progressiva, de uma intenção, de uma vontade artística, de uma
concepção formal, que nada tem a ver com a intensificação do valor
artístico. Essa força deve ser pensada como uma força comum a outros
sujeitos, mas transformando-se, em cada sujeito criador, numa dinâmica
própria, interior e pessoal, apenas de acordo com o incitamento da
influência de tradições, convenções e instituições (1973, p. 71).

Apesar de todas as evidências históricas contrárias, Trevisan afirmou: “se algum


estilo houve, na escultura dos Sete Povos, este estilo foi o barroco” (1978, p. 50). Porém,
rever os condicionantes da escultura religiosa guarani não basta para tentar encontrar uma
nomenclatura mais condizente, em que pese os condicionantes não terem sido somente

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barrocos, mas de influências várias, como a românica e gótica, renascentista e pré-


renascentista, entre outras. Atendo-se às substâncias próprias da linguagem estética,
considerando suas características peculiares, uma denominação que não estivesse
condicionada a designações estilísticas europeias saltaria à vista.
Não se trata da reivindicação de uma autonomia de tendências, pois cada desígnio
classificatório tem de levar em conta a singularidade das composições caracterizadas pelo
hibridismo. As percepções componentes dessa expressão estética são advindas de
cosmovisões distintas que, entretanto, nesse contexto, não se contradizem; pelo contrário,
interatuam numa simbiose de contribuições desequilibradas, que proporcionam o elemento
de sua originalidade. A presença do gesto e da imaginária indígena é o que as destaca
enquanto produção cultural e artística do período colonial, fornecendo a medida da
peculiaridade do acervo.
A ambiência religiosa barroquista sempre esteve atuante. O que ocorreu foi uma
transposição em que os elementos formais barrocos cederam lugar à rigidez, ao
frontalismo, geometrismo e esquematismo indígena. A partir da bricolagem efetuada sobre
estas representações, não se pode generalizar a denominação de “barroco jesuítico-
guarani” para a flagrante maioria das manifestações artísticas, mais precisamente
escultóricas, realizadas nas reduções.
Somente nas obras reconhecidamente executadas por jesuítas, principalmente por
José Brasanelli, e nas esculturas indígenas copiadas de modelos europeus, encontramos as
características estéticas barrocas de movimento, ornamentação e suntuosidade.
Ainda que o estilo barroco assumisse características distintas de um país para o
outro, seus princípios estéticos de ornamentação, dramaticidade e emoção, perpetuavam. A
aspiração à santidade era representada num diálogo entre a figura sagrada, Deus, e o
espectador. Esta corrente, ascendente e descendente, tendo a obra como mediadora, através
de suas expressões corporais, contorções, drapeados, olhos revirados, cabeça inclinada,
convida o espectador ao deleite, ao gozo possível somente entrega à fé católica.
O acervo missioneiro possui exemplares desta didática, com a ressalva da alteração
da conotação sensual dada às imagens. A exploração da sensualidade nas reduções ganhou

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um apelo positivo, moral que, de certa forma, conteve essa expressão em suas formas
plásticas.

Figura 1: Imagem de Nossa Senhora da Figura 2: Imagem de Santo


Conceição, 210 cm x 100 cm. Isidro, 100 cm x 43 cm. Museu
Museu das Missões. São Miguel/RS. das Missões. São Miguel/RS.
Reprodução: Jacqueline Ahlert Reprodução: Jacqueline Ahlert

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Figura 3: Detalhe da imagem de Santo Isidro, 100 cm x 43 cm.


Museu das Missões. São Miguel/RS. Reprodução: Jacqueline Ahlert

No que se refere à influência do barroco europeu, com interferências indígenas,


podemos citar Nossa Senhora da Conceição (Figura 1). Suas características poderiam ser
comparadas às da Santa Tereza de Gian Lorenzo Bernini 68. Somente seu pé fica à mostra; a
boca está entreaberta; os olhos voltados para o céu; no seu cabelo as flores de maracujá
fazem a vez do manto ou das estrelas - iconografia tradicional -; seu corpo se contorce
numa mistura de emoção e prazer, envolvendo e arrebatando o espectador. Santo Isidro
(Figura 2), produzido dentro das mesmas premissas, tem suas expressões submergindo do
êxtase divino, os olhos quase se fechando, a boca semiaberta, os cabelos com um ondulado
livre, os braços receptivos, como quem se encontra pronto para entrega celestial.

68
Gian Lorenzo Bernini foi um artista pioneiro na criação da linguagem plástica barroca. Suas obras foram
altamente revolucionárias pelo movimento, os valores tácteis e a expressão dos rostos. De origem italiana,
viveu entre os anos de 1598 e 1680. Foi escultor, arquiteto e pintor.

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Estas obras são expressão do barroco como um estilo de produção iconográfica e


representação simbólica, de uma arte didaticamente pensada como intermédio figurativo,
no qual a fé se apoiou para ascender ao dogma que ela revestiu e representou, e onde os
jesuítas encontraram os suportes de persuasão que precisavam.
Entretanto, quanto mais o indígena se distanciou do modelo, mais radicais
tornaram-se as feições plácidas, sem o enlevo do gozo frente à agonia – na religião cristã, o
sofrimento era valorizado, ao passo que, nas sociedades indígenas significava uma
anormalidade que deveria ser reposta através de rituais –, não reproduzindo o imaginário
artístico da Contrarreforma. Esculpiam o que viam da santidade. Os arquétipos indígenas
inseriram outros signos nas representações.
Nas peças de menor porte, não há nenhuma que corresponda à definição formal
clássica de arte barroca realizada por Heinrich Wölfflin:

O Barroco possui uma arte dessa natureza: uma escultura na qual os


contornos foram desvalorizados e a expressão já não ganha forma na
linha. O Barroco desvaloriza a linha enquanto contorno, multiplica as
bordas e, enquanto a forma em si se complica e a ordenação se torna mais
confusa, fica mais difícil para as partes isoladas imporem seu valor
plástico: por sobre a soma das partes desencadeia-se um movimento
(puramente óptico), independentemente do ângulo de observação
particular (1996, p. 73-87).

A abdicação de uma forma – cânone –, que já não apresentava conteúdo e a busca


da expressão adequada, incitadas pela inquietação espontânea do sentimento tradicional
indígena, deu ao processo histórico das esculturas o seu cunho especial, particularidades
que justificam a denominação de artísticas.
Não há consenso para a classificação das imagens. Pode-se notar que a significação
das peças é muito mais ampla do que a tipologia e as teorias que tentaram classificá-las.
Existe o que é possível chamar de “estilo missioneiro”, que reside nas imagens onde
ocorreu a interferência indígena nos ícones cristãos.
Este, em determinado momento da criação artística já não desejava mais o efeito
geral do barroco, mas a forma isolada; não mais o encanto de uma aparência conjunta, mas
a forma tal como ela poderia ser vivida, manipulada, pertencente ao seu cotidiano.

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Figura 4: São José, 150 cm x 85


cm. Museu das Missões. São
Miguel/RS. Reprodução: Jacqueline
Ahlert.

Figura 5: São José, 9 cmx 4 cm.


Museu Monsenhor Estanislau
Wolski. Santo Antônio das Missões.
Reprodução: Jacqueline Ahlert. A
diferença entre as representações é
elucidativa da incorporação e
hibridização iconográfica realizada
pelos artesãos missioneiros.

A arte voltava, assim, à sua dinâmica animista, portava anima, e espraiava-se pelas
solicitações da vida prática. A modificação da forma, a seleção de atributos, ou seja, a
expressão do conteúdo era articulada pela emoção e estava intimamente ligada ao plano em
que originalmente se realizou a conversão, aos pontos identificatórios que conferiram
sentido ao catolicismo.
Essas imagens, mestiças e de feitio autóctone, não correspondem a um ideal
estético adequado aos padrões europeus de arte barroca (vejam-se, comparativamente, as
Figuras 4 e 5). Satisfazem as tendências da expressão nativa que aplica às suas obras traços
formais de esquematismo e geometrismo. Produtos dos plurifacetários contornos de uma

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sociedade em processo de transculturação, que tanto apresenta santos europeus como peças
zoomorfas, ambos dentro de esferas diferentes de sacralidade.
Reconhecer um estilo de expressão missioneiro é assumir a complexidade da
variedade dos estágios de desenvolvimentos reais, históricos e contextualizados, resultado
de reflexões decorrentes de uma situação de fronteira – o tomar como exemplo certas
formas e a rejeição de outras, a alteração do ritmo das convenções de cada fator da
produção artística e a heterogeneidade das contradições.

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ENTUSIASTAS DA FOTOGRAFIA: O PHOTO-CLUB HELIOS,


DE PORTO ALEGRE

Luzia Costa Rodeghiero 69

RESUMO: Fundado em 1907, em Porto Alegre, o Photo-Club Helios existiu até 1949
exercendo a prática da fotografia amadora num circuito urbano de cultura visual, através de
exposições locais, participação em eventos e promoção de concursos. Predominantemente
formado por imigrantes alemães e descendentes, o grupo foi um dos primeiros e principais
fotoclubes do Brasil e realizou intercâmbios com outras associações do Rio de Janeiro e da
Europa, especialmente da Alemanha. Exemplares da relação “arte, fotografia e sociedade”,
que já estava consolidada nas primeiras décadas do século XX, esses entusiastas da
fotografia faziam parte da uma rede internacional estabelecida pelo movimento
fotoclubista, que reunia amadores interessados na produção da fotografia artística e
articulados para a promoção de seu trabalho em ambientes de visibilidade e
reconhecimento. A partir de investigação já realizada pela autora durante seu mestrado e
que prossegue em seu doutorado, constatou-se que o Photo-Club Helios está na história da
fotografia brasileira, que se construiu permeada pela diversidade de práticas sociais e
culturais. Assim, esta comunicação objetiva apresentar resultados do trabalho.

Palavras-chave: Fotoclubismo em Porto Alegre; Fotografia brasileira.

Introdução

Espaço de muitas etnias que contribuíram para sua formação, a cidade de Porto
Alegre recebeu uma significativa imigração de alemães, ou povos da chamada “ordem

69
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), na Linha de Pesquisa “Cultura Visual, História Intelectual e Patrimônios”. Mestra em Memória
Social e Patrimônio Cultural (UFPel). E-mail: luziarodeghiero@yahoo.com.br

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alemã”70 (RAMBO, 2005, p. 203) segundo a abordagem do autor sobre os imigrantes


vindos para a América do Sul. Estabelecidos a partir de 1824 na área onde hoje se localiza
a Região Metropolitana do Estado, esses grupos germânicos foram determinantes para o
desenvolvimento do Sul do Brasil, especialmente em seus aspectos econômicos, sociais e
culturais.
No final do século XIX, era expressivo na capital o número de empresas de alemães
que, aproveitando um mercado local em crescimento, também se associavam à
comunidade luso-brasileira, gerando parcerias comerciais com os herdeiros dos primeiros
colonizadores açorianos que fundaram Porto Alegre, em 1772. Simultaneamente, era posta
em prática uma característica comum nas comunidades teutas: o associativismo que,
segundo Janice Zarpellon Mazo (2003, p. 23) “está relacionado ao processo de
industrialização, urbanização e instauração dos regimes democráticos”. A autora
complementa que:

Nas sociedades democráticas multiplicaram-se as associações atendendo


interesses e atividades diversificadas, como por exemplo, associações
políticas, econômicas e sociais, que ajudam a compreender as dinâmicas
sociais e asseguram aos seus membros a intervenção no controle dessas
associações (MAZO, 2003, p. 23).

E dentre as instituições associativas fundadas por alemães, o Deutscher Turnverein


(Sociedade Alemã de Ginástica), de 1867, buscava reunir seu quadro social em torno da
prática da ginástica e do cultivo da língua e dos costumes ancestrais. Fruto da reunião de
outras sociedades com a mesma finalidade, a entidade mudou de nome, para Turnerbund
(Aliança de Ginástica), em 1892, assim permanecendo até 1942, quando passou a utilizar
sua denominação em português, Sociedade de Ginástica Porto Alegre, 1867 - SOGIPA,
num contexto de forte repressão sobre os alemães, na Segunda Guerra Mundial.
Atualmente, a SOGIPA figura entre os principais clubes sociais e esportivos brasileiros e
possui presença no circuito internacional do esporte.

70
Para todos os efeitos práticos, portanto, eram alemães os imigrantes vindos dos territórios da Alemanha
atual, da Áustria, Suíça, Alsácia, Lorena, Luxemburgo, da Pomerânia, da Silésia, da Boêmia etc. (...) para
todos os efeitos práticos de identidade étnica, entraram no Brasil como alemães (RAMBO, 2005, p. 203).

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O Photo-Club Helios e o tempo de expansão da cultura visual

Ainda quando o clube se chamava Turnerbund, foi fundado, em 1907, o Photo-


Club Helios, de forma independente, mas realizando suas reuniões em espaços cedidos
pela instituição e, também, em casas de associados. Assim como ocorreu em outros centros
urbanos, no início do século XX, a cidade de Porto Alegre foi um ambiente propício para a
formação de grupos direcionados à cultura visual, neste caso, em torno da fotografia. O
fotoclube porto-alegrense foi extinto em 1949, após ter as atividades interrompidas durante
a duas guerras e ter desenvolvido uma produção prática e teórica que, além de ser visível
em Porto Alegre, chegou ao centro do país e ao exterior.
Em abril de 1936, foi promovida uma exposição de fotografias do grupo, no Rio de
Janeiro, em parceria com o carioca Photo Club Brasileiro. Ressalta-se que artigos e
fotografias que representavam parte da produção de associados do Helios foram veiculados
em publicações que circularam na Região Sudeste e na Europa, como jornais e revistas
ilustradas, ou através dos portfólios itinerantes que foram trocados com sociedades de
fotografia estabelecidas em cidades da Alemanha.
Obras de referência sobre a história da fotografia no Brasil, tais como: (KOSSOY,
1980), (LIMA, 2008), (COSTA, 2008) e (MAGALHÃES; PEREGRINO, 2004; 2012)
mencionam o Photo-Club Helios, com variações sobre a data de sua fundação, por
exemplo, e sem dúvida, reconhecem a importância do fotoclube dentre os demais que
existiram no país. Outros autores que fundamentam a pesquisa, por estudar os agentes da
fotografia e as relações estabelecidas em Porto Alegre, no âmbito de um circuito da cultura
visual, são, dentre outros, (POSSAMAI, 2005; 2006) e (STUMVOLL, 2007). E sobre a
modernidade da cultura fotográfica brasileira, é elucidativo o estudo de (COSTA &
SILVA, 2004); e a respeito da relação entre arte e fotografia, numa abordagem do
pictorialismo, é destacada a pesquisa de (MELLO, 1998).
Frisa-se que o desencontro de informações verificado em algumas dessas obras
essenciais para a área se deve à inacessibilidade às fontes primárias de pesquisa por parte
dos autores. Para a produção da dissertação da autora (RODEGHIERO, 2014) foi possível

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acessar um conjunto de fontes originais 71 através do qual se pôde conhecer e confrontar


dados até então inéditos em nossa bibliografia e que revelaram uma parcela da trajetória do
Photo-Club Helios. Faz-se, aqui, referência à citação publicada durante a fase de pesquisa
para a dissertação, na obra do pesquisador paulistano (MENDES, 2013, p. 9), de circulação
nacional e também disponível na Web, que destacou uma comunicação apresentada em
evento realizado em 2012 (RODEGHIERO, 2013) como o início de uma recuperação das
primeiras ações do Helios.
Foram analisadas as fontes documentais produzidas na década de 1900, os
relatórios anuais (Jahres-Bericht) e os livros de atas do Turnerbund, nos anos que
antecederam a fundação formal independente do Photo-Club Helios, entre 1900 e 1907.
Essa análise objetivou verificar se o grupo já poderia existir no clube, realizando suas
reuniões periódicas, por exemplo, já que foi feita referência a um “concurso promovido
pelo Photo-Club Hélios” em 1904 (KOSSOY, 1980, p. 83)72.
Foi constatado que, antes de 1908, não há qualquer menção ao Helios nos
documentos do Turnerbund, que contêm os registros sobre todos os departamentos ou
atividades desenvolvidas na entidade. O Jahres-Bericht de 1908 (p. 5-6) é a fonte da
instituição que traz a primeira referência ao “Photoclub ‘Helios’”, que apresentou slides
sobre ginástica durante uma palestra do Dr. Otto Meyer 73 sobre a XI Deutschen Turnfests
Turnenschaft in Frankfurt. A figura 1 reproduz a capa do relatório escrito em alemão
gótico.

71
Dentre outras, o LIVRO de Atas do Photo Club Helios - II, (Registros entre 11/02/1933 e 7 de dezembro
de 1949).
72
Boris Kossoy se refere a uma premiação recebida pelo fotógrafo amador Lunara (Luiz do Nascimento
Ramos, Porto Alegre, 1864-1937) e, conforme citação do autor, a fonte dessa informação é o CATÁLOGO
da exposição Lunara “Amador” 1900, realizada pelo Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa,
Secretaria da Cultura, Desportos e Turismo, em 1979, em Porto Alegre.
73
É possível que se trate do poeta e professor, vinculado à Bismarckrunde, a confraria fundada na adega de
Jacob Aloys Friederichs, “congregando alemães natos e naturalizados, cidadãos alemães e alemães étnicos,
autoridades diplomáticas alemãs e fomentadores da germanidade no Brasil; enfim, indivíduos letrados,
influentes social, política e economicamente” (SILVA, 2006, p. 272). Mas também pode ser um homônimo.
Não confundir com Ernst Otto Meyer, fundador da VARIG, que chegou ao Brasil em 1921 e fundou a
companhia aérea em 1927.

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Figura 1: Reprodução da capa do Jahres-Bericht des Turner-Bundes zu


Porto Alegre, 1908. Acervo: Memorial SOGIPA.

Por sua característica de imagem técnica plena de universalidade, a fotografia


possibilitou que o mundo conhecesse as representações visuais, tanto das classes que
dispunham de recursos para pagar por seus retratos, quanto dos lugares e povos mais
distantes e exóticos, com um sentido de registro documental. E, também, havendo a
possibilidade da prática artística, fosse pelo fotógrafo profissional em seu estúdio, ou pelo
fotógrafo amador, de perfil burguês, que se aventurava à produção de imagens.
Justamente, a produção desses fotógrafos do Photo-Club Helios, com trânsito entre
Porto Alegre, o Rio de Janeiro e a Europa, em sintonia com outras associações de
fotógrafos amadores, possuía um caráter de reflexão sobre a prática fotográfica que
cultuavam, geravam e buscavam promover sua visibilidade no contexto da profusão
imagética a que o século XX assistiu desde seu início. Ainda que alavancada no final do
século XIX, com o desenvolvimento tecnológico da fotografia e a comercialização das
câmeras portáteis, essa disseminação permitiu que o cidadão comum fotografasse as mais

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diversas situações que vivenciava em seu meio social e também se interessasse pela arte
fotográfica.
E pensar sobre esse tempo, que segundo Jacques Le Goff (2012, p. 218) se encontra
“entre a vivência do passado, a história do presente e o fascínio do futuro”, quando a
humanidade se viu em meio a uma “crise do progresso”, é atitude que fundamenta o
conhecimento e a apropriação de parte da trajetória dos grupos que se organizaram nesse
movimento fotoclubista. Ainda, de acordo com o autor:

A aceleração da história, por outro lado, levou as massas dos países


industrializados a ligarem-se nostalgicamente às suas raízes: daí a moda
retrô, o gosto pela história e pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o
entusiasmo pela fotografia, criadora de memórias e recordações, o
prestígio da noção de patrimônio (LE GOFF, 2012, p. 218-219).

Lembra-se que a atividade fotoclubista só foi possível de se concretizar a partir do


consumo urbano e sendo um produto da sociedade industrial que, em Porto Alegre, se
desenvolvia muito por responsabilidade do núcleo de teuto-brasileiros que, entre outros
insumos, também comercializava e importava materiais e equipamentos fotográficos. E,
conquistada a estabilidade econômica, nos momentos de lazer desses empresários e
profissionais liberais era dado espaço à fruição artística, à erudição cultural, cuja presença
sempre fora constante na formação das famílias de origem germânica, desde as pequenas
colônias e cidades fundadas ainda no século XIX, nas quais havia as práticas da música, da
literatura e do teatro.
E a fotografia, caracterizada como imagem polissêmica e presente numa sociedade
que jamais relegou suas origens europeias, veio ao encontro de uma distinção que
singularizava os imigrantes e descendentes, com seu “modo de ser alemão” (SILVA,
2006), de preservar sua cultura própria por meio da língua e dos costumes. A finalidade do
grupo, ao fundar o Photo-Club Helios, não era a de concorrer com os fotógrafos
profissionais locais74 mas, sim, de cultivar a “photographia artística”, segundo seu

74
FORTINI, Archymedes. Photo-Clube Hélios, o pioneiro no sul... / Como era a fotografia no início do
século XX. In: Folha da Tarde (Suplemento), Porto Alegre, 06/12/1958, p. 5.

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estatuto75. Portanto, esse interesse pela arte fotográfica era adequado à tecnologia de ponta
desenvolvida pelas empresas alemãs ou belgas76 fabricantes de câmeras, objetivas, filmes e
químicos. Ampliavam-se as possibilidades e processos técnicos para produzir as
fotografias e, ainda, para garantir sua circularidade por meio das publicações impressas
nacionais ou estrangeiras.
Sob o conceito de Pierre Nora (1993), pode-se categorizar a fotografia como “lugar
de memória”, mesmo que se trate de um meio com tantas ambiguidades, que represente
parte das sociedades e seus espaços. Os termos paradoxais utilizados pelo autor, como
“aceleração da história”, que sobrepôs os tempos e dos quais restaram apenas “resíduos”,
constituindo-se, assim, como fragmentos de memória, alinham-se com a história obscura
do Photo-Club Helios, até recentemente. A frase “Fala-se tanto de memória porque ela não
existe mais (...)” (NORA, 1993, p. 7) é coerente com a fragmentação ocorrida no tempo de
muitos registros que povoaram e documentaram as ações do grupo.
De suas fotografias, que foram reunidas, ou não, nos portfólios itinerantes que
chegaram até Hannover 77, por exemplo, poucas restaram e, se outras ainda existem, podem
estar esquecidas no silêncio dos acervos e arquivos78. Uma das razões que levaram a essa
perda, além do curso acelerado da história, foi o fato de que o grupo, por ser independente,
possuía autonomia para preservar ou descartar — nas casas de seus associados — seus
suportes memoriais, aqui se acrescendo ao conjunto imagético as revistas ilustradas, um
primeiro Livro de Atas, que pode ter registrado as atividades entre 1907 e 1933,
correspondências e demais fontes escritas.
Um dos acervos ainda preservados por seus descendentes é o de Jacob Prudêncio
Herrmann (1896-1967), contador de profissão, associado e também tesoureiro do Photo-
Club Helios durante os vários anos em que fez parte do grupo, o que se estima tenha sido
no período entre 1930 e 1949. Através do acervo de negativos de vidro e de acetato, e de

75
ESTATUTO do Photo-Club Helios. (Documento datilografado, sem data).
76
Tais como: Zeiss-Ikon, Leica e Agfa.
77
De acordo com os dados registrados no LIVRO de Atas do Photo Club Helios - II, (Registros entre
11/02/1933 e 7/12/1949).
78
Para reunir outras fontes que embasem sua tese de doutorado, a autora realiza, desde o início de 2015, a
pesquisa sobre os diversificados acervos e arquivos que ainda preservam originais (fotografias e documentos
textuais) produzidos pelos associados do Photo-Club Helios ou a eles correlatos.

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cópias ampliadas em papel ou digitalizadas, observa-se que Herrmann foi um estudioso da


fotografia — assim como seus companheiros de fotoclubismo — e retratou uma Porto
Alegre bucólica, na década de 1930, que já começava a perder os traços interioranos e se
construía rumo à metrópole que se tornou79. Além das fotografias que registraram
paisagens da cidade (Figura 2) e seus arrabaldes e figuras humanas típicas de outros
tempos, o acervo de Herrmann também reúne os diplomas (Figura 3) que recebeu por
premiação a suas fotografias apresentadas em concursos promovidos pelo Photo-Club
Helios.

Figura 2: Diploma do Photo-Club Helios concedido a Jacob P. Herrmann no concurso


do troféu móvel, sob o tema “Paisagens riograndenses e tipos”, 19/11/1937.
Acervo Família Herrmann. Reprodução digital: Jeff Minchef.

79
O neto de Jacob, o artista plástico Jorge Herrmann, e a pesquisadora Kátia Lorentz realizaram, em 2002, o
projeto que contemplou uma exposição de parte desse acervo e uma publicação (CATÁLOGO Jacob
Prudêncio: Uma Visão Estética e Histórica da Porto Alegre da Década de 30. Porto Alegre: Secretaria
Municipal da Cultura, Fumproarte, 2002).

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Figura 3: Jacob Prudêncio Herrmann – “Entardecer”, [193-], 18x24 cm.


Acervo Família Herrmann. Reprodução digital: Jeff Minchef.

Repare-se que a figura 3 reproduz a imagem da antiga Ponte de Pedra, construída


sobre o “Riacho”, ainda navegável naquela época, margeando o Centro de Porto Alegre e
limítrofe ao bairro Cidade Baixa. Após o desvio do curso do Riacho, o “Arroio Dilúvio”,
cujas obras na Avenida Ipiranga iniciaram a partir da década de 1940, foi construído um
lago artificial sob a ponte para manter a referência do que ali existiu. A visão dessa
fotografia que Jacob P. Herrmann captou de uma cidade do passado é impactante, em
nossos dias, por haver naquele local tombado pelo município um espaço degradado, que
80
passa por reforma neste ano de 2015 (já interrompida ou que segue lentamente) e sofre
com atos de vandalismo, além da própria omissão do poder público quanto a seu
patrimônio cultural durante décadas.
Carlo Ginzburg (2001) sintetiza em sua obra os paradigmas elaborados sobre a
História, no capítulo “Distancia e perspectiva”, ressaltando que o trabalho do historiador
contemporâneo deve estar amparado sobre esses modelos fundados em distintos períodos

80
A matéria de Helena Rocha (Prefeitura estuda reforma da Ponte de Pedra. In: Editorial J, 24/06/2015)
informa que as obras ocorrem por determinação do Ministério Público. Uma imagem da área em obras, com
a drenagem do lago em andamento, foi publicada junto ao texto.

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por pensadores referenciais. Ele escreve: “O núcleo do paradigma historiográfico corrente


é uma versão secularizada do modelo de adaptação, combinado com doses variadas de
conflito e multiplicidade” (GINZBURG, 2001, p. 196). Desta forma, a fim de analisar o
conjunto de vestígios que possibilitem um conhecimento mais amplo dos fatos inerentes à
trajetória do fotoclubismo exercido pelos amadores de Porto Alegre, se busca apreender e
aplicar, da forma que for mais adequada, tal embasamento na construção da pesquisa que
se encontra em realização.
E nesse conjunto de referências, a reflexão de Reinhart Koselleck (2006) em sua
obra basilar sobre os tempos históricos que, ao cabo dessa “temporalização da história”,
“se encontra uma forma peculiar de aceleração que caracteriza a nossa modernidade”
(KOSELLECK, 2006, p. 23). O autor prossegue que sua análise será circunscrita “à
perspectiva que se descortina a partir daquele futuro concebido pelas gerações passadas;
dito mais concisamente, a partir do futuro passado” (idem).
O olhar contemporâneo voltado para os tempos do Photo-Club Helios,
considerando um ponto de vista provido de distanciamento, pode indicar que “a
objetividade só pode ser alcançada observando-se a realidade do exterior, de longe (...)”
(GINZBURG, 2001, p. 191). E numa perspectiva atual, que se propõe mirar o século XX e
dele extrair os fragmentos que privilegiaram a existência de uma cultura fotográfica,
poderá se conhecer com maior clareza o contexto que envolveu tal passado.

Considerações finais

A análise efetuada na pesquisa acadêmica anterior, cujos resultados indicaram a


continuidade da investigação sobre o Photo-Club Helios, a fim de se verificar as
influências estéticas que recebeu e de se elucidar aspectos ainda nebulosos de sua
trajetória, oportuniza a produção científica a respeito de um tema que teve destaque na
história da fotografia brasileira. As associações de fotógrafos amadores reuniram — e

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ainda reúnem81 — aficionados pela imagem surgida e aperfeiçoada sob a ordem industrial,
dentro de um mercado de consumo urbano, atrativo por sua diversidade de opções que
permitiam ao cidadão comum, porém, detentor de sensibilidade artística, produzir a sua
própria arte fotográfica.
O fotoclubista, pertencente a uma classe burguesa em ascensão, buscava a
capacitação técnica para materializar e aprimorar suas fotografias e ganhava
reconhecimento em seu meio. A saber, tal meio não se restringia apenas ao círculo social
do fotógrafo amador. Conforme foi constatado, os integrantes do Helios promoviam seu
intercâmbio com outras sociedades e conviviam com intelectuais que faziam parte da
crítica de arte nacional, com destaque para a cidade do Rio de Janeiro e suas influências
acadêmicas.
Sua relevância ultrapassou fronteiras e foi reconhecida por fotoclubistas europeus.
Haveria, então, semelhança entre as imagens produzidas pelos porto-alegrenses e a
premissa estética em voga na Europa, na primeira metade do século XX? As respostas a
essa e a outras perguntas se pretende obter com base nos dados já levantados e na
construção da pesquisa atual, que considera o pensamento dos teóricos da História para
analisar os muitos tempos que permearam a vida do Photo-Club Helios. Uma vida de
entusiastas da fotografia.

*Agradecimentos a Jorge Herrmann e a Jeff Minchef.

81
É considerável o número de cursos, grupos e escolas que se especializam no estudo e na prática da
fotografia digital contemporânea e sua gama de possibilidades (câmeras, softwares, pigmentos minerais,
papéis para impressão Fine Art, etc.) seja para o conhecimento técnico amador ou para o profissional que
busca pelo aperfeiçoamento de sua prática cotidiana. No site da Confederação Brasileira de Fotografia
(CONFOTO) podem-se verificar as atividades constantes na área e o número expressivo de fotoclubes que
surgiu na década de 2000, quando a fotografia digital superou a analógica e essa ficou em desuso, sendo
ainda praticada pelos fotógrafos que dispõem de laboratório ou podem terceirizar o processamento técnico
dos filmes e se interessam pelo estudo da mágica matriz fotográfica popularizada desde o final do século
XIX.

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Fontes

Acervo Memorial da SOGIPA


ESTATUTO do Photo-Club Helios. (Documento datilografado, sem data).
FORTINI, Archymedes. Photo-Clube Hélios, o pioneiro no sul... / Como era a fotografia
no início do século XX. In: Folha da Tarde (Suplemento), Porto Alegre, 06/12/1958, p. 5.
Jahres-Bericht des Turner-Bundes zu Porto Alegre, Rio Grande do Sul – Brasilien für das
Jahr 1908 (Realizado na Assembleia Geral de 30/01/1909.). Typographia do Centro: Porto
Alegre, 1908.
LIVRO de Atas do Photo Club Helios - II, (Registros entre 11/02/1933 e 7/12/1949).

Acervo Família Herrmann


HERRMANN, Jacob Prudêncio. Entardecer. [193-]. Fotografia, 18x24 cm.
Urkunde der Photo-Club Helios verleiht herrn Jacob P. Herrmann den 1. und 3. Preis im
Wanderpreis-Wettbewerb am 19. November 1937 mit dem Thema “Riograndenser
Landschaften und Typen”.

Referências bibliográficas e eletrônicas

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Comunicação Social Hipólito José da Costa; Secretaria da Cultura, Desportos e Turismo,
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NOS PONTEIROS DA NAÇÃO: TEMPORALIDADES MODERNAS


NO DESENHO DE FLÁVIO DE CARVALHO (DÉCADA DE 1920)

Marcelo Téo82

RESUMO: O presente texto trata de analisar a emergência de novas formas de percepção


do tempo, a partir do desenho de Flávio de Carvalho. Tomamos como base o projeto
Eficácia para o Palácio do Governo de São Paulo, articulando-o aos projetos políticos que
acompanharam a formação de um discurso moderno na arte e na arquitetura modernista
nos anos de 1920. Não restrito às questões arquitetônicas, o racionalismo do engenheiro
Flávio de Carvalho aplica-se também aos murais previstos para o interior do edifício (nos
salões de festa e de banquete) que são o foco da análise aqui empreendida. Os painéis, tal
como o projeto, jamais chegaram a ser realizados. Restaram apenas os esboços e algumas
descrições oferecidas por Flávio. Se a arquitetura bélica e imponente do palácio
ambicionava, como percebeu Mário de Andrade, dar conta da grandeza do Estado, os
painéis expunham os caminhos e as tendências que simbolizavam a vitória paulista na
visão do autor. As temáticas eleitas por Flávio de Carvalho foram o trabalho e a dança,
ambas tratadas a partir do problema do movimento enquanto metáfora do tempo, fato
mencionado de forma indireta pelo artista em seus escritos sobre o projeto. Os temas da
dança e do trabalho colocam em pauta pontos críticos das discussões sobre a modernidade
e a nacionalidade: o lugar do corpo na formação das identidades nacionais/regionais e, de
um modo mais geral, na representação do homem e da cidade modernos; e a imagem de
cidade moderna desejada pela elite paulistana, em oposição à elite carioca. Contudo, o
tratamento dado por Flávio extrapola tais condicionantes ideológicas, ampliando os
sentidos e os significados históricos de uma modernidade desejada.

Palavras-chave: Tempo; Corpo; Moderno.

A reflexão sobre o nacional na arte brasileira dos anos de 1920 é uma constante.
Entretanto, embora perpasse, de forma direta ou indireta, a quase totalidade de trabalhos

82
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Professor colaborador do
departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail:
marceloteo@hotmail.com

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artísticos e intelectuais do período, são inúmeras as proposições, diagnósticos e embates,


todos entranhados numa realidade que ora se expande ao contexto internacional, ora se
contrai, reduzindo-se ao cenário local e às suas singularidades. Cria-se, nesse movimento
orgânico de expansão e contração, uma tensão que caracteriza a arte e o intelectual
moderno brasileiro, divididos entre as profecias da modernidade europeia e a busca de
autonomia criativa, entendida como um dos veículos centrais na consolidação de uma
imagem positiva e sólida da nação, capaz de projetar o país no cenário internacional.
A obra e a trajetória do pintor e arquiteto Flávio de Carvalho (1899-1973) parecem
encarnar esta tensão de forma bastante original. Não mais a partir da união consciente entre
a pesquisa estética e o projeto político, mas na constituição de sua “personalidade
artística”, articulando experiência individual ao cenário artístico brasileiro, aos espaços e
energias que propiciavam e geravam movimento no interior do campo. Sua relativa
independência política, seu espírito conhecidamente contestador, seu relativo isolamento
criativo, agregam sentido à produção do modernismo paulista, cumprindo, na maioria das
vezes, a função de dissonância.Nesse sentido, Flávio de Carvalho me parece o artista ideal
para discutir os limites de uma interpretação pautada apenas pelos diálogos formais, bem
como de uma análise que reduza o processo criativo às amarras impostas por uma noção de
contexto estática. Sua trajetória coloca ambas em jogo, salientando a necessidade de uma
análise multidirecional e dinâmica.

Desenho, corpo e mobilidade

Flávio de Carvalho vinha de uma família aristocrática, tanto do lado paterno,


quanto materno83. Cresce em São Paulo, para onde seu pai trouxera a família no ano de
1900, a fim de investir na produção de café. Aos oitos anos é matriculado na Escola
Americana de São Paulo, o Mackenzie College, onde aprende inglês, francês e violino,
instrumento que, na velhice, afirmou ter aprendido em função da admiração que tinha pela

83
Conforme J. Toledo, “o grande clã dos Carvalho ramificava-se ali, com os Rezende de Minas, numa
vertiginosa ascendência que se perdia na história, de Tiradentes a Martim Afonso de Souza, dos soberanos
portugueses aos antigos reis visigodos” (TOLEDO, 1994, p. 2-3).

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“postura elegante dos violinistas”. Aos 12, parte para Europa com os pais em viagem que
duraria um ano, mas que, para Flávio, acabou por estender-se. Seu pai o matriculara no
Lycée Janson de Sailly, refinado estabelecimento de ensino de orientação católica que
deveria prepará-lo para o ingresso na mais famosa escola de engenharia da Europa, a
L’École Nationale des Ponts et Chaussées, em Paris.
Já no liceu Flávio iniciou seu envolvimento com o desenho, recebendo algumas
menções na cadeira Dessin d’imitation. Apesar dos planos implacáveis do pai, a eclosão da
I Guerra em 1914 acabou por dificultar sua estadia em Paris. O Lycée Janson dispensara
alunos e funcionários para tornar-se abrigo da Cruz Vermelha. Aproveitando o período de
férias, o já adolescente Flávio de Carvalho rumou para Londres, onde, pelo menos
inicialmente, a situação parecia estar menos complicada do que no lado continental do
Canal da Mancha. Contudo, apenas alguns dias após sua chegada, o Rei George V declarou
a entrada da Inglaterra no conflito. Decidido a sair de Paris, Flávio convence a família da
necessidade de mudança, matriculando-se, exultante, no Claphan College em Londres.
Após passagens por outras escolas e cidades inglesas, e uma breve inclinação em cursar
Letras em Oxford, em meados de 1917 decide cursar Engenharia no Amstrong College da
Durham University, em New Castle, garantindo assim as gordas mesadas que só assim seu
pai seguiria lhe enviando. Paralelamente, frequentou o curso de belas artes da conservadora
King Edward Seventh School of Fine Arts, vinculada à mesma
universidade. Daí se conhecem alguns poucos trabalhos, tais como
Mulher (1918) (Figura 1). Os gestos extremamente polidos da
figura remetem à gramática do desenho acadêmico. Os volumes e
contrastes entre áreas de luz e sombra não lembram, nem de longe,
o movimento frenético dos desenhos de prostitutas e nus da década
de 1930, onde o traço foge nitidamente da disciplina em busca de
uma vibração rítmica que caracterizará seu expressionismo.

Figura 1: Flávio de Carvalho. Mulher (1918).


Lápis (48 x 29cm). Col. Família Custódio R. de Carvalho Jr, São Paulo.

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Não se sabe ao certo por quanto tempo Flávio estudou na King Edward, tampouco a
profundidade de seu vínculo, de sua dedicação aos estudos artísticos tal qual propostos por
aquela conservadora instituição. Poucas conexões diretas podem ser estabelecidas entre o
período em que a frequentou e a constituição do estilo de Flávio de Carvalho: talvez o
gosto pelo retrato adquirido nos longos passeios pela Royal Academy, onde teve contato
com mestres acadêmicos da época como Philip Connard e Melton Fisher, artistas
profundamente admirados entre tradicionalistas e conservadores; e a fascinação com o
mundo da cor a partir da descoberta de Turner. Este último foi objeto de estudos exaustivos
por parte do célebre crítico de arte inglês John Ruskin, do qual alguns de seus professores
na King Edward, como R. G. Hatton e R. Bullock, eram fervorosos seguidores. Embora
décadas mais tarde Flávio tenha desprezado seus mestres do período inglês, apontando-os
como “medíocres”, de “importância menor”, conforme afirmam seus biógrafos (TOLEDO,
1994, p. 35), não seria insensato sugerir que sua descoberta da cor e seu vínculo com a
estética expressionista tenham sido semeados neste período, numa apreciação de Turner,
cuja violência no uso das cores pode ter impressionado o jovem amador do desenho.
Embora não se tenham registros que comprovem seu interesse por movimentos de
vanguarda nesse período, J. Toledo afirma o gosto de seu biografado por escolas como De
Stijl e Bauhaus. Ainda que não encarnasse os valores e as filosofias destes grupos, pode
sim ter assimilado alguns de seus ideais de criação, que marcarão sua atividade artística,
embora seja mais sensato sugerir que a constituição de sua concepção artística tenha se
dado, em grande parte, após o retorno ao Brasil. Todavia, já durante a estadia na Europa, e
sobretudo no período em que se instala na Inglaterra, o artista passa a utilizar-se do
desenho como instrumento de expressão. Considerando a alta valorização do corpo em sua
obra pictórica e em seus escritos jornalísticos, conforme veremos mais adiante, é bem
provável que o então garoto Flávio de Carvalho tenha se impressionado com a figura de
Nijinsky e com os balés de Diaghilev, que vinham causando grande impacto em toda a
Europa entre os anos de 1912 e 1917. É nesse período também que Flávio desenvolve um
estilo pessoal excêntrico, vestindo-se de forma ousada, com atitudes por vezes chocantes,
traços que marcarão sua “performance” artística no Brasil.

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Seu intenso envolvimento com atividades esportivas também deve ser ressaltado,
tendo em vista o papel fundamental que o corpo assumirá em sua criação, tanto nas obras
de pintura quanto em suas proposições precursoras no âmbito da arquitetura e do vestuário,
sobretudo na década de 1930. Em seus anos na Europa, na condição de verdadeiro
playboy, Flávio desenvolveu um grande número de atividades físicas (tiro, remo, esgrima,
tênis, equitação, natação, entre outras). Possuidor de um físico atlético, era adepto do
cuidado meticuloso do corpo, hábito que adquiriu em casa. É sabido que seu pai possuía
verdadeira obsessão com a saúde e a aparência corporal, submetendo a todos que o
rodeavam (família, empregados, etc.) a uma rotina extenuante de duas horas de exercícios
diários. Aí, talvez, tenham sido plantadas as primeiras sementes do profundo interesse do
artista em questões relativas à corporalidade. Para além dos estímulos familiares, Flávio
viveu um período de intensas transformações no que diz respeito ao lugar do corpo e dos
sentidos, sobretudo na Europa, onde se encontrava entre os anos de 1910 e parte da década
seguinte. A experiência dos campos de batalha durante a I Guerra Mundial, as novas
constatações no âmbito das ciências sociais, sobretudo da sociologia e da antropologia, as
novas expectativas estatais de engajamento político dos cidadãos e mesmo algumas das
tendências mais contundentes da arte moderna: todos apontavam para a soberania do
corpo, dos instintos, da vida dos sentidos. Esse estado de excitação e automatização das
energias sensoriais se traduzia na febre esportiva dos anos de 1910 e 1920, atitude que,
conforme Nicolau Sevcenko, implicava uma reformulação profunda da experiência da vida
(SEVCENKO, 1992, p. 52). A própria ideia de regeneração ou aperfeiçoamento das raças,
que emergia na Europa, sobretudo na Alemanha, encontrava na prática esportiva um
instrumento poderoso para o adestramento dos corpos. A ênfase nas potencialidades físicas
era incitada através de campanhas publicitárias, de revistas e periódicos voltados
exclusivamente para o tema da saúde corporal, além da multiplicação de espaços para a
prática esportiva, de competições, celebridades do mundo do esporte e a inserção de
atividades físicas nos currículos de instituições de ensino. Expandia-se uma aura sedutora

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em torno do corpo. E os impulsos sensoriais passam a “falar mais alto do que a cultura
herdada”84.
O envolvimento visceral com a nova realidade em suas dimensões mais fascinantes
– a dos lazeres, da moda, do culto ao corpo, do desfrute das novas tecnologias e da
velocidade – indica um ponto de convergência, que nunca deve ser tomado como absoluto,
entre o homem Flávio de Carvalho e seu tempo. Tal sugestão pode causar certo
desconforto, já que usualmente o artista é visto antes como criador, transformador e crítico
da realidade, raramente como fruto dela, condição atrelada ao “homem comum”. Todavia,
uma olhada atenta na biografia, sempre articulada a uma noção dinâmica de contexto, que
se desloca sem pudor do interior do lar aos cenários políticos mais gerais, fornece, no mais
das vezes, dados que informam, de alguma maneira, sobre a produção e a postura do
criador. O interesse pelo desenho articulado à febre do corpo e à mobilidade de Flávio de
Carvalho, indo e vindo entre as fronteiras europeias durante os anos de estudo, dão a ver –
ainda que sem explicar – alguns pontos de partida para compreender sua atuação artística
após o retorno ao Brasil. Sua condição financeira privilegiada e as pressões familiares
também foram fatores que funcionaram ora como estímulo ora como limite à construção de
sua personalidade criadora. Todavia, na mesma medida em que o homem é explicado pelo
tempo, deve servir, especialmente através de sua obra, para acoplar significados e expandir
a compreensão histórica do momento do qual tomou parte. É esta a dimensão que mais
interessa aqui.

A dança como dimensão visual da música: corporalidade e expressão

Flávio volta aos trópicos em algum momento entre 1922 e 192385, pouco tempo
após a realização da Semana de Arte Moderna, já com o diploma de engenheiro, chegando
a trabalhar como calculista de estruturas em firmas importantes de São Paulo. Sua
aproximação com os modernistas paulistas é demorada, tendo sido, até 1927, pontual e

84
Maria Odila Leite, parafraseando Walter Benjamin no prefácio de SEVCENKO, 1992: XV.
85
DAHER, 1982; SANGIRARDI, 1985; e MORAES, 1986 apontam o ano de 1923 como data do retorno de
Flávio ao Brasil. TOLEDO, 1994, assegura que o retorno de Flávio se deu em agosto de 1922. LEITE, 1994,
corrobora a data deste último.

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secundária. Apesar de ter frequentado os salões de Olívia Penteado, tal qual fazia a parte
mais expressiva da intelectualidade paulista ligada ao Modernismo, a presença de Flávio
era pouco expressiva nos primeiros anos após seu retorno ao Brasil. Depois de rápidas
passagens por firmas de engenharia – empregos arranjados e impostos pelo pai –, Flávio
ingressa, através de sua rede de contatos, no mundo da imprensa, passando a colaborar
como ilustrador e repórter em periódicos da capital, sobretudo o Diário da Noite, que tinha
Rubens Amaral, conhecido de Flávio, como chefe de redação. Estas atividades passam a
ser seu ganha-pão após o rompimento com Dr. Raul, causado pela recusa em submeter-se à
vida profissional traçada pelo autoritário patriarca. Assim o futuro artista entrava em
contato com a realidade de boa parte da intelectualidade local, que tinha na produção
jornalística o meio principal de ação, inserção e, no caso dos menos abastados, sustento.
Flávio frequentou espetáculos e eventos, escreveu artigos de jornal e manifestou
intenso interesse pela dança e pela dimensão rítmico-visual do corpo como elemento
expressivo. Seu primeiro encargo foi a cobertura de um balé de Loie Fuller, que se
apresentava em São Paulo com muito sucesso no ano de 1924, após uma longa temporada
de vastas plateias nos Estados Unidos e na Europa, onde seu pioneirismo na dança
moderna, bem como no uso da iluminação cênica causara grande impacto. Apesar da idade
avançada – ultrapassara os sessenta anos –, a dançarina ainda impressionava pela exótica
virtuosidade. Sua original performance juntava corporalidade, plasticidade, cor e
movimento, valendo-se de luzes, tecidos e movimentos harmônicos em busca de um
impacto visual bem próximo daquele almejado pela pintura pós-impressionista86.
O envolvimento de Flávio de Carvalho com o universo da dança foi marcado por
esta impactante apresentação. Sua preocupação, ao retratar a bailarina (Figura 2), não era
com os tecidos, as cores, mas com a estilização dos movimentos, entendendo o corpo como
vetor, como base para um desenho cru que dá vazão a uma expressão híbrida,
geometrizada e orgânica, sintética e expressiva, diferente, portanto, da preocupação com a
leveza e liberdade no traço, tão comum a artistas de fins do século XIX, momento em que

86
Talvez por isso tenha chamado a atenção de artistas como Toulouse-Lautrec já em fins do século XIX,
momento em que a dança e a figura da bailarina exerciam grande fascínio entre os pintores. Para visualizar
uma das performances de Loie Fuller, datada de 1896, acessar
http://www.youtube.com/watch?v=fIrnFrDXjlk.

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o exercício do desenho era primordialmente entendido como maneira de ver a forma,


materializando construções do olhar e dando vazão à complexidade da sensação que
engloba o ato de ver (VALÉRY, 2012, p. 139). É a busca de uma expressão mista, que
ultrapassa a mimese e confere ao desenho um caráter autônomo e expressivo. A disciplina
da mão seria a forma de dar vazão ao estado sensível do espírito diante da música
materializada pela dança (VALÉRY, 2012, p. 140). Diferente da pintura musical de Seurat,
marcada pelos acordes de cor formados no olho, pintores como Henri Toulouse-Lautrec e
Edgar Degas concedem ao desenho um papel central no diálogo com a música, entendida
não como modelo teórico para a pintura, mas como estímulo sensorial que age sobre o
corpo e gera, através da dança, a mais pura e primitiva expressão humana. O desenho
apresenta-se, aí, como uma “obsedante tentação do espírito” (VALÉRY, 2003, p. 125),
através da qual se busca possuir o que se quer ver.

Figura 2: Flávio de Carvalho. Figura 3: Henri Toulouse-Lautrec.


Impressões do bailado de Loie Loie Fuller (1892).
Fuller (1924). Diário da Noite, São
Paulo, 31/7/1924.

A fascinação diante dos efeitos da música sobre o corpo é compartilhada por Flávio
de Carvalho, arrebatado, tal qual fora Lautrec três décadas antes (Figura 3), pela
performance de Loie Fuller. Contudo, uma série de detalhes separa os dois desenhos. A
começar pela sua funcionalidade: Flávio o produziu como parte de uma reportagem

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jornalística, a ser impressa às centenas, em preto e branco. Seu interesse pela dança, ao
mesmo tempo que se confunde com o do francês na busca por traduzir o movimento
expressivo da bailarina, negando a gramática gestual da pintura acadêmica, se distancia de
forma radical. Primeiro, pelo seu entendimento distinto do corpo, que, para Toulouse-
Lautrec, parecia ser mero motivo expressivo, abafado pela ênfase nos volumes, nos
tecidos, nos espaços criados para servirem à cor. Em Flávio de Carvalho, por outro lado,
predomina um ideal de síntese que integra sua compreensão do desenho, funcionando
como indicador estético numa busca pautada pela geometrização das formas, pela precisão
angulosa dos movimentos, pela regularidade dos contrastes, pela eliminação de detalhes
irrelevantes nos figurinos e movimentos, marcados por um ideal cubista de estilização
antinatural.
Sua atuação articulava a crítica textual e a crônica visual. Através de ambas, Flávio
encarna uma nova percepção com relação à dança e ao corpo, defendendo ideais típicos da
belle époque, conectados ao mundo da máquina e da cidade moderna por um lado, e de
culto ao primitivo, anti-intelectual, por outro. Conceitos como ritmo e constância
apareciam repetidamente em seus textos de crítica de espetáculos de dança. Os desenhos,
esboços e caricaturas publicados nesse período demonstram essa dualidade, misturando
formas sintéticas de tendência geometrizante a um traço claramente influenciado pelo
discurso e pela arte primitivistas, negando a técnica acadêmico-naturalista que marcou seus
primeiros desenhos, realizados na Europa alguns anos antes.
O movimento associado ao corpo foi um problema amplamente discutido e
desdobrado pelas vanguardas europeias, assumindo, nas primeiras décadas do século XX,
um sentido metafórico antiintelectualista, de combate às convenções e tradições herdadas.
À gramática de movimentos do balé clássico opunham-se novas tendências da dança
moderna, negando o corpo “desmaterializado” da arte acadêmica, em busca de expressar
experiências intransponíveis através da palavra (DAHER, 1984, p. 11). Paul Valéry (1871-
1945), em produção contemporânea à de Flávio de Carvalho, identificou tal separação,
deixando claro seu profundo interesse por questões relacionadas ao corpo.

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Eu mesmo me sinto invadido de energias extraordinárias; eu as sinto


irradiarem de mim, que ignorava conter tais virtualidades. Num mundo
sonoro, retumbante e ritmado, a intensa festa do corpo diante da nossa
alma oferece alegria e luz; qualquer coisa é solene, qualquer coisa é
simples, tudo é vivo e forte, tudo é possível de um outro modo, tudo pode
recomeçar indefinidamente. Nada resiste à batida alternada dos fortes e
dos fracos. Bate! (...) Um corpo com a sua simples energia, num ato, é
forte o suficiente para alterar mais profundamente a natureza das coisas,
do que o intelecto com seus sonhos e especulações jamais alcançará
(VALÉRY, 1978, p. 199-201).

No trecho acima, originalmente publicado em A alma e a dança, de 1923, o poeta


francês lê a cidade através do universo rítmico-musical, a partir do qual a urbanidade
adquire sentido. Diante da realidade pulsante, o corpo funciona como meio mais eficaz do
que o intelecto na transformação do mundo. Em Degas Dança Desenho, Valéry, ao referir-
se aos modos rústicos do pintor, salienta o valor dos novos postos assumidos pelo corpo e
pelos sentidos na educação moderna:

A instrução que se dispensava por volta de 1850 nos colégios devia ser
tão absurda, embora mais forte, quanto a que se dá hoje. (...) Nem a
limpeza, nem as menores noções de higiene, nem a arte de se portar, nem
mesmo a pronúncia de nossa língua apareciam nos programas desse
ensino inacreditável, de cujas concepções o corpo, os sentidos, o céu, as
artes e a vida social eram cuidadosamente excluídos (VALÉRY, 2012, p.
39).

Movido por questionamentos semelhantes, mas em busca de respostas distintas,


moldadas pelo cruzamento dinâmico entre seu campo de atuação, seus interesses e aptidões
pessoais, Flávio de Carvalho expõe suas impressões através de artigos ligeiros sobre dança
e, principalmente, por meio de esboços apressados. Estes últimos destinados a registrar os
movimentos exibidos pelas bailarinas – algumas de fama internacional, como Miss
Hughes, Josephine Baker e Loie Fuller – que se apresentavam em São Paulo durante a
década de 1920, especialmente no Teatro Santana, e que provocaram o fascínio de diversos
artistas dentro e fora do país 87. Além dos espetáculos de dança promovidos em teatros da

87
Vale ressaltar que entre a dança de Loie Fuller e Josephine Baker há uma dessemelhança fundamental. Se
para a primeira, o corpo, bem como as luzes e tecidos utilizados, são vetores de uma expressividade
essencialmente visual, para a segunda é o próprio fim, sendo a dança ritmo vivido no corpo. Para uma

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capital, a década de 1920 marcou também uma guinada no carnaval paulista, que passa a
contar com a presença das elites em meio aos festejos de operários, ambulantes,
camponeses, indicando uma convergência de símbolos entre setores díspares da população.
A dança emergia como símbolo paradoxal, capaz de englobar – sem pacificar – dimensões
díspares da modernidade que invadia as principais cidades do país. Espetáculos de dança
moderna indicavam a atualidade e o caráter cosmopolita da metrópole nascente, para o
deleite da intelectualidade local. A moda dos chás dançantes, dos clubes recreativos, dos
bailes, crescia exponencialmente, mantendo viva, ao longo do ano, a febre carnavalesca. E
a imagem do corpo dançante parecia refletir a vida da própria cidade, que se definia através
da ideia de ritmo, a qual acusava tanto a permanência dos velhos ritos e costumes
populares quanto o pulsar mecânico que raiava com a crescente industrialização. Os textos
de Flávio de Carvalho sobre dança, publicados em diversos periódicos da capital paulista,
acusavam a atualidade da questão corporal em meio aos fluxos de modernidade que
invadiam a cidade. Mais do que reproduzir pontos pacíficos do debate, Flávio investiu na
fixação de uma determinada visão sobre o corpo, de forte teor estético, impregnada pelo
discurso futurista da maquinização do cotidiano e do triunfo do homem sobre a natureza,
dando forma a uma concepção singular na qual o homem sensorial e a cidade-máquina
eram partes inseparáveis de uma modernidade ideal. Este breve mapeamento de ideias e
imagens servirá de base para a análise de duas imagens do pintor, as quais constituem o
cerne deste artigo.

Os tempos do corpo: a dança e o ritmo como ícones do moderno

Marcada não apenas pelo discurso moderno que se erigiu em São Paulo nos anos
20, mas pela própria experiência proporcionada pela cidade, a produção do jovem Flávio
de Carvalho apresenta pontos de profundo interesse para melhor entendermos os
desdobramentos das questões acima apresentadas. Indício disso é o colossal projeto para o
Palácio do Governo de São Paulo, dando início à extensa série de concursos arquitetônicos

discussão sobre Josephine Baker e o lugar da dança e do corpo nos anos de 1920, ver GUMBRECHT, 1999,
p. 111-9.

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prestados pelo arquiteto. O projeto teve papel providencial na criação de uma nova posição
conquistada pelo seu autor no cenário artístico-intelectual local. Inaugura, pelo seu caráter
abertamente modernista, a vanguarda arquitetônica brasileira, ausente na Semana de 2288,
embora não tenha saído do papel, como a grande maioria dos realizados por Flávio 89. Foi,
todavia, o mais discutido, provocando extensas querelas, algumas das quais reproduzidas
nos jornais de então, estendendo-se desde fins de 1927 até os primeiros meses do ano
seguinte.
As dimensões bélicas do projeto (Figura 4) – aparência de fortaleza, exterior
adequado à técnica de camuflagem, campos de descida de helicópteros, espaços destinados
à presença de armas de alto calibre (metralhadoras, canhões, catapultas) – causaram grande
estranhamento, tendo sido um dos pontos mais discutidos e questionados da proposta.
Embora a eleição de Washington Luiz tenha sido recebida com grande esperança após um
período de agitações políticas, sobretudo no meio paulistano, um clima tenso ainda pairava
sobre o país. A memória recente dos levantes e do estado de sítio que caracterizara o
governo de Artur Bernardes (1922-6), bem como a progressiva instabilidade nas relações
internas entre oligarquias e dissidências democráticas durante a República Velha sugeriam,
no entender de Flávio, a necessidade de medidas preventivas à situação de crise ou
possíveis ataques ao governo. O golpe de 1930 mostrou que suas previsões não eram assim
tão descabidas, embora as soluções propostas o fossem em certa medida.

88
Flávio de Carvalho divide o posto de fundador da arquitetura moderna no Brasil com o russo Gregori
Warchavchik, autor de um manifesto em prol da arquitetura modernista publicado inicialmente em italiano
no jornal Il Piccolo (15/6/1925), sob o título de "Futurismo?", o qual foi traduzido posteriormente e
republicado no Correio da Manhã (1º/11/1925) como "Acerca da Architectura Moderna". Warchavchik
também foi responsável pela primeira construção modernista, sua própria casa, situada à Rua Santa Cruz
(Vila Mariana, São Paulo), erigida entre 1927 e 1928.
89
Conforme apontou Rui Moreira Leite, estudioso da obra do artista, sua participação em sucessivos
concursos oficiais no Brasil e no exterior deve ser interpretada na qualidade de “propaganda do projeto
moderno (...). Se os projetos seriam previsivelmente recusados, os concursos oficiais – como reduto das
tendências conservadoras – eram um espaço privilegiado de discussão. A atitude provocadora se completaria
com a reinterpretação dos programas estabelecidos nos concursos realizados por Flávio de Carvalho em seus
projetos” (LEITE, 1994: 8-9).

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Figura 4: Flávio de Carvalho. Fachada do projeto Eficácia para o Palácio do governo de São
Paulo (1927). Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE) – IEL – UNICAMP.

Mário de Andrade chegou a publicar três textos no Diário Nacional, discutindo o


projeto de Flávio 90. Defendeu a postura inovadora do arquiteto, então identificado pelo
pseudônimo Eficácia. Ressaltou sua busca por efeitos psicológicos tanto através do senso
de monumentalidade, quanto da “graça de morro extremamente forte e primitiva”, sugerida
pelos jardins suspensos em meio ao aglomerado de formas que constituem o projeto do
edifício. A busca obsessiva por simetria, bem como os exageros que davam ao projeto um
caráter excessivamente teórico, foram duramente criticados por Mário, que percebeu um
prejuízo tanto do aspecto funcional dos espaços quanto do lirismo criativo. Crente no valor
fundamental da planta, portadora do “ritmo primário”, da “essência da sensação”, bem ao
estilo da escola de Le Corbusier, o arquiteto defende uma arte-ciência pautada pela busca
de fórmulas de efeito não apenas estético, mas em conexão com os problemas sócio-
políticos envolvidos na sua feitura – neste caso, um projeto destinado a lançar uma imagem
do poder político-econômico de São Paulo.Essa convergência entre estética e ciência
perpassa tanto o projeto quanto os artigos publicados pelo arquiteto na imprensa 91.

90
Para acompanhar as discussões sobre o projeto arquitetônico entre Flávio de Carvalho e Mário de Andrade
ver, deste último, “Arquitetura moderna I”, “Arquitetura moderna II” e “Arquitetura moderna III”,
publicados no Diário Nacional nos dias 2, 3 e 4/1928. Do primeiro, ver “O palácio do governo – a propósito
do anteprojeto ‘Eficácia’”. Diário Nacional, fev./1928; e “O novo palácio do governo e o anteprojeto
modernista”. Diário da Noite, fev./1928.
91
Ver “O Palácio do Governo – a propósito do anteprojeto Eficácia”. In: Diário Nacional (fevereiro de
1928), apud TOLEDO, 1994, p. 51.

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Não restrito às questões arquitetônicas, o racionalismo do engenheiro aplica-se


também aos murais previstos para o interior do edifício, os quais constituem o foco da
análise do projeto aqui empreendida. Os painéis, tal como o projeto, jamais chegaram a ser
realizados. Restaram apenas os esboços e algumas descrições oferecidas pelo próprio
arquiteto. Figurariam nos salões de festa e de banquete do Palácio. Em ambos é possível
perceber o cruzamento entre a formação do engenheiro e do artista, bem como entre os
problemas inerentes às duas dimensões de sua atuação. Se a arquitetura bélica do projeto
ambicionava, como percebeu Mário de Andrade, dar conta da grandeza do Estado, os
painéis expunham os caminhos e as tendências que simbolizavam a vitória paulista na
visão do autor, tanto pelos temas quanto pela linguagem selecionados. As temáticas eleitas
por Flávio de Carvalho foram o trabalho e a dança, ambas tratadas a partir do problema do
movimento92.
O tema do trabalho cumpre, no cenário paulistano, um papel importante ao propor
uma imagem da cidade moderna desejada pela elite, indo ao encontro da realidade fabril,
das máquinas, da velocidade, dos arranha-céus. A ideologia do trabalho servia, neste
contexto, como forma de viabilizar o enriquecimento e a transformação ágil da cidade,
bem como auxiliar na construção de um estereótipo regional da nacionalidade oposto ao da
capital federal – boemia, malandragem,
culto ao ócio. Contudo, o tratamento dado
por Flávio merece maior atenção, tendo
em vista que extrapola tais condicionantes
ideológicas.
Intitulado Painel da vida rural
(Figura 5), propunha uma imagem da vida
no interior, no amanhecer do dia (por
volta das cinco horas da manhã). Os Figura 5: Flávio de Carvalho. Painel da
gestos insinuam um esforço penoso, vida rural (1927). Esboço de painel para
o salão de banquete do Palácio do
Governo de São Paulo.
92
Conforme atesta o próprio artista: “No hall de festas, e no de banquete, há painéis decorativos
representando formas em movimento”. CARVALHO, Flávio. Ainda o atordoante projeto Efficácia. Diário
da Noite, São Paulo, 6/2/1928.

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árduo, onde as magras figuras se aplicam em dar sequência ao trabalho excessivo. A


mistura entre o homem e a paisagem é evidente, dificultando em certa medida a
compreensão da dimensão figurativa. A interpenetração entre as figuras humanas e a
natureza se dá, contudo, numa ótica bastante distinta daquela proposta cerca de três
décadas antes por Almeida Júnior, para quem a cor terrosa insinuava a fusão, numa
linguagem realista, entre o caboclo e seu meio. O olhar do pintor de Itu é de identificação.
As formas angulosas que perpassam o desenho de Flávio de Carvalho e que proporcionam
a “integração” entre homem e natureza, diferente do olhar harmônico do autor de O
violeiro (1899), instauram a dissonância do olhar urbano sobre o campo, do olhar marcado
pela realidade das máquinas, pelas noções de ritmo plástico advindas do futurismo, nas
versões professadas por pintores como Giacomo Balla e Umberto Boccioni, e
principalmente, pelo cubismo de Léger. Não busca, portanto, a mimese do gesto, mas sua
síntese estética, como estilização do trabalho em meio à dura realidade do campo.
É, portanto, o homem da cidade quem vê a vida rural sob o estigma do atraso e da
miséria, mas também da vida ascética sob a disciplina do trabalho, condição básica de
sobrevivência. Essa dicotomia está sugerida nas figuras antagônicas do corvo e da pomba
branca: o primeiro remetendo à miséria e às dificuldades da vida no campo, a segunda, à
dignidade pacífica do trabalho rural. Todavia, ainda que o arquiteto enfatize seu olhar
urbano, não abandona o problema da identidade ligada à natureza tropical. A bananeira
substitui a fábrica, e as vestes camponesas os uniformes fabris. O ímpeto urbanista e
moderno dos paulistas não abdica, como nos mostram também as obras de Tarsila desse
período, a tendência em associar humanidade e natureza tropical, professada já pelos
viajantes estrangeiros ao longo do século XIX. Entretanto, Flávio se distancia da visão
romântica, bem como do cubismo colorido e bem humorado de Tarsila do Amaral,
valendo-se de uma linguagem mais agressiva e dramática. Ciente do choque que poderia
causar aos espectadores, o artista se explica: “o leitor há de estranhar as figuras curiosas
que o autor pintou. Mas é preciso dizer que essas figuras aparecem através de linhas

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geométricas, mostrando sua eficiência” 93, conceito este nitidamente associado à construção
rítmica do desenho, bem ao estilo do futurismo, submetendo o tratamento formal a
princípios provenientes da realidade moderna.
A curiosa opção por uma cena rural, em tudo contrastante com a estética cubo-
futurista, traz, contudo, uma segunda linha interpretativa, pautada por um elevado grau de
ironia, tão típico deste artista. O problema da eficiência exposto através de variações
rítmico-geométricas é submetido à lógica do trabalho manual, da exploração ineficaz dos
corpos à beira da falência. A imagem de uma São Paulo moderna é exposta pelo artista não
como solução, mas como problema a ser discutido – ainda mais se levarmos em conta sua
simpatia pelo Partido Democrático, que então fazia oposição aos governos federal e
estadual. O painel contempla as dissonâncias do progresso em sua versão tupiniquim, o
que nos faz relativizar o alcance do discurso tecnicista do arquiteto, tendo em vista a
pluralidade e a ambivalência das significações que parecem escapar ao seu controle.
No esboço do Painel sobre a dança (Figura 6), há, como no primeiro, um complexo
enlace entre tema e forma. A distância entre os temas, entretanto, gera uma dissonância
estilística considerável. A linguagem futurista do primeiro painel estava em acordo com o
tema do trabalho, da fábrica, embora Flávio a tenha submetido a um tema rural, investindo
no caráter ambíguo da proclamada eficácia do Estado moderno. No Painel sobre a dança,
o pintor se vale de uma linguagem mais próxima do primitivismo, em diálogo com
algumas das figuras centrais do Modernismo europeu, colocando em pauta mais um ponto
crítico das discussões sobre a modernidade e a nacionalidade: o lugar do corpo na
formação das identidades nacionais/regionais e, de um modo mais geral, na representação
do homem e da cidade modernos.

93
CARVALHO, Flávio. “Ainda o atordoante projeto Efficácia”. Diário da Noite, São Paulo, 6/2/1928. É
importante lembrar que era prática comum àquela época a exposição dos projetos que concorriam a editais
públicos, os quais eram debatidos na imprensa e nos cafés por alguns segmentos da população. Diferente das
exposições modernistas, visitadas por um público restrito, a exposição destes projetos dizia respeito
diretamente à imagem da cidade, sob a qual residia substrato significativo das identidades regionais – e, no
caso das grandes capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro, pretensamente nacionais.

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Figura 6: Flávio de Carvalho. Painel sobre a Dança (1927). Esboço de


painel para o salão de festas do Palácio do Governo de São Paulo.

Em descrição da obra, Flávio salienta que as figuras seriam douradas, com cabelos
de prata, insinuando, talvez, o alto valor que atribuía ao corpo e à dança, possíveis tesouros
nacionais. Se no painel anterior, a forma estava submetida à ação, neste se associa
diretamente ao produtor da ação, o corpo. Não há referências à paisagem rural ou à
natureza tropical. São somente corpos femininos isolados, explorando a gestualidade em
sua dimensão expressiva. Os movimentos perdem o sentido dinâmico para alcançar a
síntese estética, cuja violência e magnitude justificam a deformação dos membros e o
caráter antinatural das poses. Os adereços e gestos musicais, comuns a obras realizadas no
mesmo período sobre o tema da dança, estão ausentes, o que acaba por conferir à
gestualidade grande autonomia, simulando sua potência expressiva.
A autonomia atribuída ao gesto faz transcender a concepção do corpo como sujeito
da enunciação (gestualidade comunicativa), transformando-o no próprio agente do
enunciado (práxis gestual) (MENESES, 2007, p. 3). Os corpos do Painel sobre a dança
são o próprio enunciado que circula. Não é a gestualidade como contrato, que visa
comunicar, mas como presença, dando um sentido quase ritualístico à obra. Por outro lado,
conserva-se um certo ímpeto em anular o espaço – e não consagrá-lo, função primeira do
ritual – tal qual na concepção da dança ocidental, em que o corpo luta contra as leis físicas
que o apreendem, buscando a flexibilidade das formas, o seu alargamento, a sua
centralidade absoluta diante do meio dissolvido. No lugar de uma representação voltada a
identificar espaço e cultura através do gesto musical, Flávio de Carvalho busca a

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uniformidade temporal, universalizando movimentos corporais através de um ritmo


plástico rígido e incessante.
O traço primitivo remete às suas próprias caricaturas publicadas ao longo dos anos
20 em jornais brasileiros, onde a ideia das variações sobre um tema já estava presente. No
painel, contudo, Flávio explora tal conceito de forma mais acabada. Luiz Carlos Daher
sugere uma aproximação com a obra de Matisse La danse (1910), apontando a diferença
entre a “versão purificada da dança do fauve e o olhar dissonante do expressionista”
(DAHER, 1984, p. 14-6). Embora não ofereça dados que justifiquem sua afirmação, pode-
se dizer que há aí um caminho de análise. La danse, junto com La musique, oferecem uma
visão idílica da existência, avessa ao racionalismo ocidental (Figuras 7 e 8). Seguindo um
caminho que vinha trilhando desde aproximadamente 1904, em contato com a poesia de
Baudelaire, com a obra e as ideias de Paul Signac sobre uma futura época de ouro
(HUGHES, 1991), e principalmente, com a descoberta, por volta de 1906, da arte africana
(RUBIN, 1991, p. 215), Matisse evoca uma espécie de síntese das artes, onde convergem
música e poesia através da pintura. Conforme apontou Argan, Matisse opõe à análise
racional cubista uma “intuição sintética do todo”, “da máxima complexidade expressa com
a máxima simplicidade” (ARGAN, 1992, p. 259).
O esboço do Painel sobre a Dança de Flávio de Carvalho, por outro lado, sugere
um estado de êxtase histérico, com gestos rígidos, em nada naturais ou harmônicos como
os que compõem a obra de Matisse. A dança é entendida como sintoma de modernidade,
remetendo à tensão entre a razão e o instinto – e não à negação da primeira. A arte, numa
conexão efetiva com a corporalidade, concede a esta última a autonomia absoluta,
elevando-a ao status de símbolo moderno, via pela qual o país deveria oferecer uma
contribuição original – já que nossa economia ainda se movia a passos lentos, problema
visível no primeiro painel. A estilização dos corpos enfatiza sua dimensão erótica,
exaltando as curvas sensuais de mulheres esbeltas, alusão ao excitamento dos sentidos
diante da vida na cidade 94.

94
A carga erótica do painel fez aumentar ainda mais as polêmicas em torno do projeto. Em crítica anônima
publicada no Diário Nacional, um indignado defensor da honra e da família paulista exigia que a exposição
do projeto Efficácia fosse restrita a horários noturnos – após as oito da noite, “hora em que os menores não

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Esta, outra dissonância com relação à obra de Matisse, marcada por um clima
compenetrado de ritual que remete às origens da música e do homem. Na obra do pintor
francês, há uma síntese entre representação e decoração, cruzando um ímpeto formalista –
que dá autonomia ao traço, à cor e aos volumes – com a busca pela representação artística
das verdades supremas do homem e do Universo. Para Flávio, interessa essencialmente
oferecer uma síntese estética da dança como meio de expressão autônomo e como sintoma
dos tempos modernos. O arquiteto se vale do corpo feminino como território de conquistas
urbanas, representando a um só tempo a modernidade paulista e a originalidade do homem
brasileiro, ambas tratadas a partir da ênfase na gramática gestual, sendo o corpo elemento
motriz da transformação do mundo, através do qual significamos o tempo por meio de
ações ritmicamente “adestradas”.

Figuras 7 e 8: Henri Matisse (1869-1954), La Danse (à esquerda), 1909, óleo sobre tela,
260 x 389 cm; e La musique (à direita), 1910, óleo sobre tela, 260 x 389 cm.
Museu Hermitage, São Petersburgo.

Muito embora Flávio de Carvalho, naquele momento, se identificasse com a análise


racional dos objetos, típica do cubismo, movimento ao qual Matisse parece se opor, a
estruturação do Painel sobre a dança se aproxima mais daquela dos painéis do fauve,
sobretudo em La danse, do que do tratamento mais esquemático dado por Picasso em obras

poderão entrar” – em função das silhuetas femininas expostas no Painel sobre a Dança. Seguem as palavras
do anônimo reacionário: “E é com meu pudor ofendido, em defesa da família paulista, temendo as futuras
críticas à nossa civilização na história, que assim estou procedendo. Deus o poderá castigar com muito maior
facilidade que o Sr. Presidente do Estado”. In: “O Palácio do Governo”. Diário Nacional. São Paulo, fev.
1928, apud TOLEDO, 1994, p. 57.

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de temática semelhante, como em La danse aux voiles (1907). Nesta obra (Figura 9),
Picasso se vale de uma arquitetura fechada, tensa, opondo-se visivelmente aos ritmos
soltos e à espacialidade aberta das obras de Matisse, em que predomina uma visão lírica do
mundo95. Tal como na conhecida Les demoiselles d’Avignon (1907), o espaço é um
elemento concreto, finito, articulado e formado junto às figuras, todos conectados pela teia
rítmica construída num jogo que engloba a linha e a cor e que tende à contração. No caso
de Matisse, os elementos (céu, terra e homem) são estruturados de forma a expandir os
limites espaciais. As formas tendem à união, alongando-se, deformando-se pelo ritmo, que
cumpre um papel transformador e, sobretudo, desbravador. Não há formas finitas, mas
contínuas. Essa continuidade é rítmica, trazendo figura e fundo para um mesmo plano, no
qual sua ideia cósmica do belo se realiza. Em La danse, o movimento é expansivo, rumo ao
infinito.

Figura 9 : Pablo Picasso (1881-1973). La danse aux voiles (nu à la


draperie), 1907, óleo sobre tela, 152 x 101cm. Museu Hermitage,
São Petersburgo.

Se a postura de Flávio diante do fazer artístico se aproximava mais da de Picasso,


para quem a obra é problema – e não efusão lírica, como no caso de Matisse (ARGAN,
1992, p. 423) –, a construção do espaço no Painel sobre a dança se aproxima da
arquitetura matisseana, mantendo, a partir de núcleos rítmicos circulares, uma continuidade

95
Além dos painéis aqui discutidos, vale citar a obra-prima de Matisse, La joie de vivre (1906), à qual,
segundo Argan, Picasso parece reagir em Les demoiselles d’Avignon (1907). Ver ARGAN, 1992, p. 423.

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que tende ao infinito. Os grupos são compostos por três figuras femininas, abruptamente
interrompidos à direita e a ponto de desaparecer à esquerda, como que representando o
movimento de fotogramas na projeção cinematográfica. Essa ideia é reforçada pela relativa
continuidade das poses, sugerindo a existência de um único grupo que se reproduz,
simulando movimento 96. A sucessão de gestos dá a ideia de um leitmotiv, que se repete e se
transforma ao longo do trajeto, sem fim... sem começo. O ritmo, ainda que abdique do
caráter cósmico oferecido por Matisse, ajuda a desconstruir os limites espaciais da obra,
tornando-a aberta, ilimitada, aproximando-se, neste quesito, do mural La danse do pintor
francês. Esse caráter expansivo do painel é alcançado através da circularidade que conecta
os corpos, como num zootroscópio ou numa tira de filme em loop, simulando movimento
através de sucessivas variações sobre um corpo. O efeito final, todavia, é imensamente
distinto. Flávio procura conectar a dança à nova realidade pulsante da cidade, ao passo que
Matisse oferece justamente uma saída outra que não a da vida racionalizada do homem
moderno. Segundo Flávio, em texto publicado na imprensa paulista:

a bailarina precisa funcionar como um boneco nas danças puramente


simbólicas onde a vida reaparece em uma forma condensada e cada
tempo sugere toda uma sátira da vida do homem, e representa um mundo
aparte (...). A bailarina se pareceria com um motor funcionando
devagar97.

Se para o pintor francês a ideia de movimento é expansiva, em Flávio o movimento


é contráctil, tornando os corpos tensos e rígidos, articulados a uma expressividade plástica
artificialmente elaborada. Todavia, em ambos os casos o corpo funciona não como veículo
de sugestibilidade, mas como práxis gestual – é o próprio enunciado. Em trechos dispersos
de sua produção crítica, Flávio chega a discutir as implicações do envolvimento rítmico e
espacial dos corpos que dançam, como no excerto abaixo, onde comenta o bailado de Miss
Hughs:

96
A estética cinematográfica provocou profundo impacto em Flávio, levando-o, anos mais tarde, a aventurar-
se em tentativas frustradas de dirigir um filme sobre lendas indígenas na Amazônia.
97
CARVALHO, Flávio de. “O bailado de Chinita”. Correio da Tarde, São Paulo, 28/7/1931.

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Os seus movimentos ainda estão um tanto desorganizados, o que não


impressiona bem. Falta-lhe ainda muito contraste no conjunto de seus
movimentos. Para haver contraste é preciso haver variedade sem excesso
de um ritmo de movimento. (...) bailado para causar o efeito que deve
causar precisa de contraste de luz e estilização dos movimentos. Precisa
realçar a ideia da forma mostrando superfícies planas ou curvas, não
diminuídas por detalhes inúteis. O conjunto de cores deve ter mais
mudanças violentas de tons, porém, demoradas (apud DAHER, 1984, p.
14).

A proximidade com o mural de Matisse é muito grande. A limpeza das formas, as


zonas de cor definidas, em sintonia com as mudanças de superfície, a cumplicidade entre o
gesto e o equilíbrio plástico, a fusão entre o símbolo e a realidade corpórea através da
estilização dos movimentos: são alguns dos traços que definiram o olhar de Matisse sobre a
música e a dança na primeira década do século XX, e que, ao que tudo indica, foram
apropriados e reelaborados por Flávio de Carvalho duas décadas mais tarde na elaboração
do Painel sobre a dança.Entretanto, as diferenças apontadas com relação à obra do pintor
francês dão mostras do caráter híbrido e original da obra de Flávio, envolvendo numa
única solução correntes modernistas distantes – e mesmo opostas do ponto de vista formal
– como é o caso do cubismo de Picasso e do fauvismo de Matisse por volta de 1910. Não
há dúvidas que Flávio tivesse conhecimento destas obras, bem como uma sofisticada
compreensão das questões a elas vinculadas, sobretudo no que diz respeito à estrutura
plástica, talvez ignorando os significados e embates políticos nelas implícitos 98.
Sem seguir um plano de coerência estilística, Flávio se serve, já nos primeiros
trabalhos, de linguagens plurais, sem necessariamente permanecer fiel às questões e
perspectivas gerais atreladas a elas. A linguagem cubo-futurista do primeiro painel, antes
de louvar os novos ritmos da modernidade, explora justamente sua ambiguidade, seus
limites. As relações entre o tema do trabalho e a eficácia maquínica são postas em jogo no
contraste entre a linguagem urbana – próxima do cubismo – e a opção pelo campo como
cenário, representado não como território exótico, mas como palco de uma vida difícil,
miserável e digna. No segundo painel, o traço primitivo e a espacialidade aberta criam uma

98
Para uma abordagem acerca da significação política dos diálogos com a arte primitiva nos primeiros anos
do século XX, ver LEIGHTEN, 1990.

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atmosfera mítica que se conecta paradoxalmente à ideia de modernidade, oferecendo,


agora sim, um olhar positivo, onde o corpo funciona como depositário dos fluxos urbanos,
e também como metáfora da cidade, assumindo seus ritmos, seu pulso. A sugestão de
movimento simula apenas sua força motriz, sem nada de misticismo, concedendo-lhe a
chave da emancipação individual e social através de uma doutrina do tempo que se instaura
pela via corporal.
Em ambos os casos, o corpo é monumento, atraindo para si as principais tensões e
conquistas da modernidade: a desigualdade implícita no par urbano/rural ou
centro/periferia; o engajamento na promoção do progresso através da busca de controle e
potencialização da ação; a permeabilidade entre o nacional e o estrangeiro. O embate, tão
vivo na cultura e na política brasileira de então, entre a ação e a impotência, entre a
violência do “ser moderno” e a indolência do homem do interior, é colocado aqui dentro de
uma lógica única e avassaladora: a do ritmo, metáfora ambígua para o tempo como agente
organizador da realidade, da qual não deveriam escapar nem a cidade nem o campo, nem o
homem nem a mulher, nem o trabalho nem o lazer. A tensão física e sensual caracteriza
uma ação direta, que independe das circunstâncias em que ocorre e que estabelece uma
ligação tensa com o ambiente em que se realiza (GUMBRECHT, 1999, p. 291-9). Quem
quer que a desempenhe, o faz de forma a sancioná-la como norma, estimulando sua
repetição, sua continuidade.
O segredo para alcançar a “unidade nacional”, sonho do modernismo tupiniquim
entendido como condição para a originalidade moderna, parecia estar, para Flávio de
Carvalho, numa espécie de doutrina temporal, na qual o espaço, mas sobretudo os corpos,
deveriam estar sujeitos. O tempo contínuo dos fauves e o tempo esquadrinhado do cubismo
se unem numa espécie de cronômetro universal a replicar contínuos amanheceres, sempre
marcados pela lembrança insistente de um mesmo e único sonho: o de uma nação coesa e
eficaz. Entretanto, sendo um leitor dedicado de psicanálise, Flávio jamais encarou tais
espasmos do inconsciente de forma unívoca, deixando espaço em suas obras para a
pluralidade e a ambiguidade.
Estas obras, ou melhor, seus projetos, provocaram vastas discussões entre os anos
de 1927 e 1928, envolvendo a crítica especializada e a população, representada por alguns

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leitores indignados. Condensam, assim, alguns dos problemas definidores da cultura


brasileira daquele momento, indicando a evidência da articulação entre corpo e
temporalidade diante dos dilemas do moderno, servindo ora como via para compreendê-
los, ora como canal para criticá-los. Apresentam-se – as obras – como verdadeiras
intervenções históricas, empreendidas de forma incerta, escapando aos limites do projeto,
tornando-se um empreendimento dinâmico, exposto às mudanças e intempéries da vida e
da realidade, quase como um delírio febril99.

Referências bibliográficas

ARGAN Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos.


São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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Projeto Editores, 1982.
__________________. Flávio de Carvalho e a volúpia da forma. São Paulo: MWM-IFK,
1984.
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Paulo: Editora Record, 1999.

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MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A materialidade do patrimônio imaterial. São


Luís do Maranhão: IPHAN, 2007 (manuscrito).

99
Conforme Giulio Carlo Argan, um quadro, tal qual qualquer intervenção histórica é “uma ação que se
realiza; é um empreendimento que se assume e não se sabe como irá terminar. A chamada coerência
estilística (...) é um preconceito a ser eliminado: a arte é realidade e vida, a realidade e a vida não são
coerentes. Se as circunstâncias mudam enquanto o artista está compondo um quadro, o quadro há de registrar
a mudança, há de terminar de uma maneira diferente de como se iniciara” (ARGAN, 1992, p. 424).

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RUBIN, William (org.). Le primitivisme dans l’art du 20e siècle: les artistes modernes
devant l’art tribal. Paris: Flammarion, 1991.
SANGIRARDI JÚNIOR. Flávio de Carvalho: o revolucionário romântico. Rio de Janeiro:
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frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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Brasiliense; Editora da UNICAMP, 1994.
VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
_____________. Poésie. Milano: Feltrinelli, 1978.

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PEDAGOGIAS DA IMPRENSA NEGRA: NEGOCIAÇÕES DE


SENTIDOS E TRANSGRESSÕES SIMBÓLICAS

Maria Angélica Zubaran100

Resumo: Neste trabalho analiso as possíveis pedagogias disseminadas em homenagens


prestadas por jornalistas afrodescendentes aos seus colegas de imprensa no jornal O
Exemplo, na última fase de publicação do jornal, entre os anos de 1916 e 1930.
Inicialmente, analiso os fragmentos biográficos produzidos sobre os afrodescendentes
homenageados por ocasião de suas formaturas ou de suas mortes. Em um segundo
momento, interpreto as imagens fotográficas desses afrodescendentes, que eram
representados vestindo a toga da formatura. Na direção apontada por Foucault e Hall,
pretendo me apropriar da noção de transgressão como uma metáfora alternativa para
pensar as possíveis pedagogias produzidas pelos textos verbais e imagéticos veiculados nas
homenagens a afrodescentes no jornal O Exemplo. Proponho que ao nomear e visibilizar o
protagonismo negro na sociedade brasileira da época a imprensa negra ultrapassou as
fronteiras simbólicas da normatividade branca e desestabilizou o silêncio e o ocultamento
sobre intelectuais negros e suas contribuições à cultura nacional. Nesses momentos,
conforme sugeriu Foucault, o ser limitado afirmava-se e ultrapassava os limites da
interdição ou, conforme Hall, “os traços africanos, escravizados e colonizados, que sempre
foram não-ditos, subterrâneos e subversivos, se tornavam visíveis” (2003, p. 42). Por outro
lado, pretendo demonstrar que tanto os fragmentos biográficos como as fotografias de
afrodescendentes em traje de formatura foram estrategicamente produzidos para
disseminar pedagogias, construindo modelos de negros que serviriam de exemplo à
comunidade negra local, com os quais os afrodescendentes poderiam se identificar e
construir sua autoestima no pós-abolição.

Palavras-chave: Pedagogias culturais; Imprensa negra; Fotografia.

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Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), doutorado em História na StateUniversity of New York, SUNY
at Stone Brook. E-mail: angelicazubaran@yahoo.com.br

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ISSN: 2178-1761

Este estudo analisa fragmentos biográficos e imagens fotográficas de


afrodescendentes vestindo togas de formatura, que foram veiculados no jornal O Exemplo,
nas primeiras décadas do século XX. Pretendo demonstrar que tanto os fragmentos
biográficos, quanto as fotografias, foram estrategicamente produzidos para disseminar
pedagogias e construir modelos de negros que serviriam de exemplo à comunidade negra
local, com os quais os afrodescendentes poderiam se identificar e construir sua autoestima
no pós-abolição.
O jornal O Exemplo, artefato selecionado para esta análise, é um periódico da
chamada imprensa negra, produzido por afro-rio-grandenses na cidade de Porto Alegre e
que circulou no período entre 1892 e 1930. A trajetória do jornal foi marcada por quatro
fases relativas aos diferentes períodos de sua publicação: 1892/97, 1902/05, 1908/11 e
1916/30. Neste estudo, meu foco será no período que corresponde à última fase de
existência do jornal, entre 1916 e 1930.
O jornal foi fundado por um grupo de jovens negros, “moços esperançosos e ávidos
de justiça”, que costumavam reunir-se em uma barbearia, o Salão Calixto, situado à Rua
dos Andradas no. 247, no centro da cidade de Porto Alegre. A maioria dos diretores e
redatores do jornal O Exemplo tinha como principal fonte de renda o emprego público
federal. Havia entre eles um núcleo de profissionais liberais, advogados como Arthur
Ferreira de Andrade, Dário de Bittencourt e José da Silva Dias, acadêmicos de direito e de
medicina, como os irmãos João Baptista da Silva Junior e Felippe Baptista da Silva e os
médicos Dr. Alcides Feijó das Chagas Carvalho e Dr. Arnaldo Dutra. Além deles, havia um
número de operários, que trabalhavam nas fábricas da capital gaúcha. Em geral, eles se
declaravam católicos e republicanos e pertenciam e circulavam em diferentes espaços de
uma ampla rede social que incluía associações culturais, religiosas, musicais, esportivas,
dramáticas e carnavalescas. Vale destacar, como mostraram Felipe Bohrer (2014) e Isabel
Silveira dos Santos (2015), que entre os afrodescendentes que participaram como
colaboradores do jornal O Exemplo, em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX,
muitos se dedicaram as artes, principalmente à música e ao teatro, destacando-se grande
número de músicos, maestros, atores e atrizes negros.

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Quanto ao papel pedagógico da mídia impressa, compartilho com Rosa B. Fischer


(2002) e Marisa V. Costa (2012), a ideia de que a mídia não se constitui apenas como uma
fonte básica de informação e lazer, mas que se trata de um lugar poderoso no que diz
respeito à produção e à circulação de valores, concepções e representações. De acordo com
Fischer, “o próprio sentido do que seja educar-se amplia-se” com a contribuição inegável
dos meios de comunicação (FISCHER, 2002, p.153). Também Durval Muniz de
Albuquerque (2008), ao discutir o processo de educação que se passa fora do recinto da
escola, chamou atenção para a multiplicidade de pedagogias que operam no cotidiano e
argumentou que “a mídia e os meios de comunicação de massa são pedagogos onipresentes
orientando nossas vidas e nossas mortes” (p. 2). Nesta direção, este estudo considera que a
mídia impressa, mais especificamente, o jornal O Exemplo, produziu e disseminou
múltiplos ensinamentos na cultura e teve uma participação decisiva na formação de
subjetividades e identidades negras.
Inicialmente, me aproprio da noção de transgressão, como uma metáfora para
pensar as possíveis pedagogias da imprensa negra. Proponho que a imprensa negra ao
nomear e visibilizar o protagonismo negro na sociedade brasileira da época, ultrapassou as
fronteiras simbólicas da normatividade branca e desestabilizou o silêncio e o ocultamento
sobre os intelectuais negros e as suas contribuições à cultura nacional. Nestes momentos,
conforme sugeriu Michel Foucault (2001), o ser limitado afirmava-se e ultrapassava os
limites da interdição ou, conforme Stuart Hall (2003), “os traços “africanos”, escravizados
e colonizados, que sempre foram não-ditos, subterrâneos e subversivos, se tornavam
visíveis. Portanto, as narrativas verbais e imagéticas veiculadas no jornal O Exemplo, ao
encenarem publicamente o “direito de significar” para os afrodescendentes se constituíram
como um espaço de transgressão.
Para entender-se a ideia da transgressão dos limites, torna-se importante também
compreender de que forma a norma funciona na produção de identidades e diferenças.
Conforme Tomaz Tadeu da Silva (2000), “a norma é uma das formas privilegiadas de
hierarquização das identidades e das diferenças”. Neste sentido, normalizar é “eleger
arbitrariamente uma identidade específica como o parâmetro em relação a qual as outras
identidades são avaliadas e hierarquizadas” (p.83). Significa também atribuir

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características positivas à identidade hegemônica, representada como natural e única,


enquanto a diferença é representada como inferior e negativa. Neste processo de produção
da identidade e da diferença, numa sociedade em que impera a superioridade branca, há
por um lado os processos que tendem a fixar e estabilizar essa identidade e, por outro lado,
a tendência de diferentes grupos e minorias políticas a deslocar e desestabilizar a
identidade branca hegemônica, seja através de negociações de sentidos, como também, por
meio de transgressões às normas e aos limites.
Inicialmente, investigo os fragmentos biográficos produzidos nas homenagens
veiculadas no jornal O Exemplo, os modos como jornalistas afrodescendentes
representaram as trajetórias de vida de seus colegas de imprensa, abrindo espaços para
outros sentidos de comunidade. De acordo com Leonor Arfuch (2010):

É justamente por meio do processo narrativo que os seres humanos se


imaginam a si mesmos também enquanto leitores/receptores – como
sujeitos de uma biografia, cultivada amorosamente através de certas
“artes da memória”. Mas, nenhum autorretrato, então, poderá se
desprender da moldura de uma época e, nesse sentido, falará também de
uma comunidade (p. 140-141).

Falar de fragmentos biográficos de afrodescendentes, não remete apenas a um


arrolar de acontecimentos numa ordem sequencial daquilo que seria o registro de uma vida
humana, mas opera na imprensa negra como um arquivo de modelos de histórias
individuais articuladas a um projeto pedagógico que lhes dá sentido, qual seja, o
aperfeiçoamento moral e intelectual dos “homens de cor”.O potencial pedagógico e a
vontade de formar afrodescendentes por meio de modelos de negros se expressava de
forma explícita no editorial do jornal O Exemplo sob o título “o preconceito e a
nacionalidade” em que o redator afirmava:

Com efeito, em que mais O Exemplo pode concorrer para o


aperfeiçoamento de um indivíduo, de uma sociedade? Onde buscar mais
fartos ensinamentos que nos exemplos dos que são os nossos mentores?
Os deste jornal sabem que mais vale um só exemplo do que cem colunas
de áridas definições (O Exemplo, 03/07/1927).

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François Hartog (2014), ao discutir os regimes de historicidade, afirma que a


concepção da história enquanto fornecedora de exemplos é baseada no modelo da
“História magistra vitae”, que remonta a Cícero e a um regime antigo de historicidade,
que expressava a concepção clássica de História e que conjugava exemplaridade e
repetição. Neste sentido, apesar do advento do regime moderno de historicidade, que toma
forma por volta de 1789, os redatores do jornal O Exemplo não abandonaram na sua escrita
os preceitos da história magistra ao destacarem a importância do exemplo até mesmo no
título do jornal.
Por outro lado, inspiro-me nas reflexões de Camozzato e Costa (2013) para pensar
as possíveis pedagogias disseminadas pelo jornal O Exemplo, mais especificamente,
quando afirmam que uma multiplicidade de pedagogias adquire proeminência nas décadas
finais do século XX, assim como, quando argumentam sobre o funcionamento do que
chamam “vontade de pedagogias”. Para as autoras, “a pedagogia se relaciona, assim, com
o modo de conduzir os sujeitos, de operar sobre eles para obter determinadas ações” (p.
26), constituindo-se numa vontade de produzir determinadas subjetividades e identidades.
Neste sentido, aproprio-me da ideia de “vontade de pedagogia”para destacar que já no
início do século XX, pode-se apontar na imprensa negra, uma multiplicidade de
pedagogias em atividade, assim como uma vontade de pedagogia que se manifesta nos
esforços contínuos dos jornalistas afrodescendentes para conduzir e “dar forma” aos
sujeitos da comunidade negra porto-alegrense e de atuar em vários âmbitos de suas vidas.
Sublinho também,na direção apontada pelas autoras, a maleabilidade da pedagogia frente
às contingências de cada tempo/espaço. E, no contexto das décadas que se seguiram ao
pós-abolição, em que o abalo sobre as relações sociais e de trabalho foram vivenciadas
com grande dificuldade pelos afrodescendentes, aponto para a disseminação de múltiplas
pedagogias na imprensa negra para conduzir os sujeitos negros nas suas aspirações de
ascensão social.
A seguir, analiso os “clichês” fotográficos de afrodescendentes homenageados na
primeira página do jornal O Exemplo, destacados em espaço centralizado na ocasião de
suas formaturas. Como destacam Ana Maria Mauad (2008) e Machado Júnior (2012) as
próprias imagens e seus temas recorrentes, particularmente as imagens fotográficas, vão

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sugerindo a criação de tipologias temáticas. Neste caso particular, os redatores do jornal O


Exemplo para potencializar o protagonismo dos “homens de cor”, os representaram
vestindo a toga da formatura, produzindo uma tipologia de imagens que podemos chamar
de “fotografias de togados”.
As fotos de indivíduos togados, principalmente daqueles formados em Direito ou
Medicina, fizeram parte da cultura visual dos anos de 1920 no Brasil e foram divulgadas
publicamente, em revistas e jornais da época, articuladas às transformações relativas ao
processo de urbanização que se delineava naquela época, como símbolo de distinção de
uma parcela de indivíduos letrados da população brasileira. As fotografias de indivíduos
togados, também podem ser estudadas como fotobiografias, que conforme Fabiana Bruno
(2012) pode ser compreendida como uma imagem-memória, conectada ao universo da
“fotografia de família”, no contexto da vida privada e das relações familiares. No entanto,
neste trabalho, o interesse de pesquisa sobre as fotografias de indivíduos togados relaciona-
se à circulação dessas fotografias na mídia impressa e ao seu potencial pedagógico.
Para análise dessas imagens fotográficas me aproprio inicialmente das
contribuições de Stuart Hall (1997) em seu estudo de imagens de negros na mídia, quando
o autor destaca que as imagens visuais são poderosas e apresentam significados potenciais
e ambíguos e não têm um significado único, verdadeiro e definitivo, uma vez que seus
significados “flutuam”. Neste sentido, a pergunta seria: que significados os jornalistas
afrodescendentes do jornal O Exemplo pretenderam privilegiar com a produção de imagens
de negros vestindo togas?
Conforme aponta Hall, é claro que não há uma resposta “certa” nem “errada” para
esta pergunta. A imagem tem vários significados, todos eles plausíveis. No entanto, uma
possível resposta, no nível denotativo, de significação literal, seria de que as imagens de
afrodescendentes de toga teriam a ver com a construção das identidades étnico-raciais
desse grupo no início do século XX. Um grupo que frequentemente era representado nas
notícias como “vítimas” ou “perdedores” e que nessas imagens afirmava-se como
vencedor, em um momento de vitória, da conquista de um diploma. Nesta direção, Petrônio
Domingues (2013) refere que no pós-abolição o negro “descobriu” cada vez mais a

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importância da educação e o valor dos diplomas. “Não somente os descobriu como


resolveu agenciá-los por iniciativas próprias, sem depender da ação do Estado” (p. 295).
Neste estudo, privilegiarei os significados conotativos ou temáticos das imagens
desses afrodescendentes homenageados, que dizem respeito ao seu potencial pedagógico,
como produtoras de modelos de negros para a comunidade afrodescendente de Porto
Alegre. Começo esse exercício de análise com a homenagem prestada ao afrodescendente
Octávio Feijó, de apenas 18 anos, homenageado no jornal O Exemplo, por ocasião da
conclusão de seu Curso de Modelagem Mecânica no Instituto Técnico Profissional de
Porto Alegre.

Figura 1: Octávio Feijó. Fotogravura. Jornal


O Exemplo, Porto Alegre, 21/01/1917, p. 1.

De acordo com Roland Barthes (apud. HALL, 1997), frequentemente é a manchete


que faz a seleção dos vários significados possíveis da imagem e o ancora com palavras. O
“significado” da fotografia existe então na conjunção da imagem e do texto. Neste caso, a
manchete “honra ao esforço próprio” parece marcar a importância que os redatores do
Exemplo atribuíam ao esforço pessoal no enfrentamento das dificuldades de mobilidade e
ascensão social da comunidade negra no início do século XX. O texto verbal da
homenagem conclamava os pais de família a instruírem seus filhos a seguirem o modelo de

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Octávio Feijó: “Mirem-se nesse exemplo todos aqueles que preferem não deixar os filhos
sem instrução e sem ofício. É assim que vão se fazendo os futuros notáveis e grandes
servidores da pátria, da família e da sociedade, nossos parabéns ao recém-formado! Honra
ao esforço próprio!” (O Exemplo, 21.01.1917). Saliento, a partir da noção de
endereçamento de Elizabeth Ellsworth, que a seleção da imagem de um jovem para essa
homenagem, melhor interpelaria o público de jovens negros, “sem instrução e sem ofício”,
para quem o apelo do “esforço próprio” estaria dirigido.
Hall (1997) destaca que os textos verbais e imagéticos ganham em significação
quando são lidos considerando-se o contexto da época. Neste sentido, para entender-se o
valor positivo atribuído à pátria é importante considerar que, a partir da I Guerra Mundial,
a emergência de um discurso nacionalista no Brasil ajudou a impulsionar um orgulho
nacionalista e a ideia da defesa da pátria. Esses sentimentos ganharam completa expressão
com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, em que intelectuais como Oswald
de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral propuseram novas visões da cultura
nacional. Micol Siegel (2007) e Paulina Alberto (2011) apontaram que os redatores da
imprensa negra paulista estrategicamente apropriaram-se do discurso do nacionalismo e o
associaram ao ideal de integração na nação, enquanto brasileiros que tinham direitos iguais
aos dos brancos.
O Dr. Alcides Feijó das Chagas Carvalho, diretor do jornal O Exemplo entre 1916 e
1918, também foi homenageado pelos seus colegas redatores na ocasião em que deixava a
direção do jornal. A imagem selecionada para representá-lo foi sua fotografia vestindo a
toga de sua formatura na Escola Médico Cirúrgica de Porto Alegre. O texto da homenagem
salienta as “vicissitudes” e “dificuldades” enfrentadas ao longo de sua vida, que, no
entanto, “não lhe tiraram a energia, nem lhe arrefeceram a vontade firme de trabalhar e
estudar”.

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Figura 2: Dr. Alcides Feijó das Chagas Carvalho.


Fotogravura. Jornal O Exemplo, Porto Alegre, 04/02/1917, p. 1.

Ele foi representado como um “espírito forte, aparelhado para as grandes lutas” e
que “jamais descuidou os estudos” “sem alhear-se as atividades da imprensa nas poucas
horas que lhe sobravam de descanso” (O Exemplo, 04.02.1917). Pedagogicamente, os
redatores do jornal O Exemplo salientavam atributos considerados fundamentais para os
jovens afrodescendentes triunfarem na sociedade brasileira: trabalhar e estudar, além de
enfrentar com tenacidade as dificuldades que o contexto histórico da jovem república lhes
reservava.
Também o jovem Dario de Bittencourt, diretor do jornal O Exemplo na década de
1920, foi homenageado pelos seus colegas e representado com a toga, na ocasião da sua
formatura no Curso de Direito da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Na imagem selecionada para representar Dario de Bittencourt, mais
uma vez, os redatores D’O Exemplo pedagogicamente subvertiam a imagem estereotipada
e negativa do negro sem cultura pela representação positiva do afrodescendente culto e
bem apresentado. No breve texto de sua homenagem salientava-se seus “pertinazes
esforços”, representando-o como um exemplo de admirável tenacidade e “energitismo
moral” (O Exemplo, 04/01/1925, p. 1).

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Figura 3: Dario de Bittencourt. Fotogravura. Jornal


O Exemplo, Porto Alegre, 04/01/1925, p. 1.

A estratégia pedagógica de produzir modelos de negros com os quais a comunidade


negra de Porto Alegre pudesse se identificar e se inspirar na construção de suas
subjetividades e identidades e de visibilizá-los no jornal por meio de fotografias vestindo a
toga de formatura repetiu-se nas representações dos afrodescendentes Silva Dias e Arnaldo
Dutra, que reproduzo a seguir:

Figura 4: Dr. Silva Dias. Figura 5: Dr. Arnaldo Dutra.


Fotogravura. Jornal O Exemplo, Fotogravura. Jornal O Exemplo,
Porto Alegre, 05/05/1925, p. 1. Porto Alegre, 27/05/1929, p. 1.

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José da Silva Dias era um dos membros mantenedores do jornal O Exemplo. O


redator do jornal traçou seu perfil salientando seu alto grau de instrução, enfatizando sua
vida acadêmica e acrescentando que após concluir seus estudos secundários em Porto
Alegre, recebeu o grau de bacharel na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de
Brasília. Silva Dias foi representado como “batalhador”, “grande espírito em contínuo e
ascendente aperfeiçoamento”, “grande inteligência”, “caráter justiceiro e retilíneo” e
admirado pela sua inteireza moral. Desta forma, os jornalistas negros mobilizavam e
positivavam certos atributos como a moralidade, para construir um modelo ideal de negro.
É interessante observar, na direção apontada por Paula Sibilia (2012) para o
ocidente no final do século XIX, que também no início do século XX reverberavam, na
imprensa negra, as máximas da pedagogia kantiana do século XVIII: disciplinar, adestrar,
civilizar e moralizar (p. 40). A moralização dos costumes da comunidade afrodescendente
foi uma das principais bandeiras do jornal O Exemplo nas primeiras décadas do século XX,
em sintonia com a campanha de “saneamento moral” levada a cabo pelas elites políticas da
época, visando a modernização da cidade de Porto Alegre. Esta linguagem moralizadora
foi apropriada e negociada pelos jornalistas afrodescendentes em suas campanhas pela
moralização dos costumes da comunidade negra, adaptando-a aos seus próprios sentidos de
“melhoramento moral da raça”.
Também as homenagens prestadas ao Dr. Arnaldo Dutra, ator, músico e também
médico, que foi redator-chefe do jornal O Exemplo a partir de1927, destacavam suas
qualidades morais e sua inteligência. Arnaldo Dutra foi representado como “um filho
amantíssimo, esposo fiel, irmão dedicado, nitidamente fortalecendo seus laços familiares.
Seu caráter foi representado como exemplar, “em que sobressaía a sua culta inteligência
que punha a serviço das causas nobres” e seu “grande valor intelectual”.
Hall (1995), em sua discussão sobre codificação/decodificação, argumentou que
uma das formas do receptor interpretar os textos da cultura dominante é negociando
sentidos e atrelando-os aos seus próprios códigos de referência. Nesta direção, jornalistas
afrodescendentes elaboraram diferentes leituras dos códigos hegemônicos em circulação na
cultura da época. Assim, pode-se observar que laços familiares, relacionamentos sociais,

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força de vontade, trabalho e estudo foram marcadores pedagogicamente acionados nos


textos verbais das homenagens prestadas pelos jornalistas afrodescendentes aos seus
colegas de imprensa. No que se refere à ênfase nos laços sociais, pareciam se contrapor às
representações de anomia social, frequentemente associadas à comunidade negra e que
aparentemente explicava o fracasso dos negros no pós-abolição. No que diz respeito às
referências positivas atribuídas às famílias negras nos textos das homenagens, remetem as
tentativas de subversão das representações estereotipadas que com frequência
representavam os negros como incapazes de manter famílias nucleares.
Para finalizar, considero que as pedagogias culturais disseminadas pelo jornal O
Exemplo durante as homenagens prestadas a afrodescendentes pelos seus colegas de
imprensa, demonstraram o protagonismo desses intelectuais negros e oscilaram entre
negociações de sentidos e transgressões simbólicas. Os jornalistas negros do jornal O
Exemplo, tanto adaptaram os discursos dominantes aos seus próprios códigos culturais,
como os deslocaram e ultrapassaram, ampliando o repertório de representações de sujeitos
negros, desnaturalizando lugares sociais cristalizados e afirmando por meio de textos e
imagens outras formas de narrar o negro e de construir subjetividades e identidades negras
positivas em Porto Alegre, já nas primeiras décadas do século XX.

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IMIGRAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL: UMA


NARRATIVA VISUAL

Marlise Regina Meyrer101

RESUMO: O trabalho estuda uma narrativa fílmica sobre a colônia alemã de São
Leopoldo realizada em 1926. O filme foi produzido como material promocional da
Comunidade Evangélica de Hamburger Berg - RS, especialmente da escola de meninas
Evangelisches Stift, fundada em 1886. O filme insere-se na categoria de documentários do
período silencioso (MORETTIN, 2011) e é entendido como uma narrativa histórica de
determinados aspectos da dinâmica social da colônia alemã do período, atribuindo-lhe
determinados significados pautados pela experiência vivida, pela finalidade da obra, bem
como pelo olhar estrangeiro do autor, ou seja, pela integração entre a "experiência" e a
consciência, base de toda narrativa (RICOEUR, 1994). Lugar de memória, este registro
visual constitui-se em documento/monumento que permite uma outra forma de acesso à
história da colonização alemã no Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Cinema; Memória; Imigração alemã.

O artigo analisa um documentário cinematográfico produzido em 1927 na região de


colonização alemã do Vale dos Sinos - RS, cujo tema central é uma escola de meninas
alemã, de confissão luterana, a EvangelishesStift. O filme foi produzido por um alemão, Sr.
Hubner, recém chegado a localidade, imprimindo a obra o referencial do olhar estrangeiro
sobre a região.
A EvangelischesStift foi fundada em Hamburger Berg, em 1886. Recebia alunas
provenientes de várias localidades do Rio Grande do Sul, especialmente a capital. Durante
seus primeiros nove anos de existência, a “Töchterpensionat”, embora tivesse mantido um

101
PUCRS – Doutorado em História – Professora do PPGH – UPF. E-mail: meyrer_nh@hotmail.com

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estreito vínculo com a Igreja Evangélica 102, cuja filosofia influenciava, em grande parte, a
sua prática pedagógica, não era, oficialmente, uma escola confessional. Em 1895,
entretanto, este caráter passou a oficial, quando as suas fundadoras decidiram doá-la ao
Sínodo Riograndense103, que, por sua vez, criou uma sociedade, denominando-a de
EvangelischesStift (Töchterpensionat), cuja tradução literal é Fundação Evangélica
(Pensionato para filhas) 104.
O filme pode ser caracterizado como documentário do período, definido como o do
"cinema silencioso". Moretin (2012) afirma ser este segmento uma das principais lacunas
na produção historiográfica sobre o cinema no Brasil e que os autores optam, na maioria
das vezes, pela análise da produção ficcional, sendo que no período em questão, esta
modalidade era exceção. Os dados fornecidos pela cinemateca brasileira, disponíveis no
site http://www.cinemateca.gov.br, comprovam essa afirmativa. Entre as produções
cinematográficas do início do século XX encontramos o registro de dois documentários
referentes a região de colonização Alemã do Rio Grande do Sul. Um deles, sobre a
indústria de conservas Tigre, em Novo Hamburgo e outro sobre os cem anos da Imigração
Alemã em São Leopoldo, que apresenta a presença do Dr. Borges de Medeiros, então
presidente do Estado, nas comemorações do centenário em São Leopoldo. Ambos os
filmes, entretanto, constam como desaparecidos.
O material aqui analisado, ainda carece de pesquisa mais ampla sobre sua produção,
circulação e objetivos. Como a maioria deste tipo de documentos no Brasil, além de
escassas referências, trabalha-se com "o que sobrou", muitas vezes já alterado tanto pelas

102
Quando citarmos a Igreja Evangélica, neste trabalho, estamos nos referindo, especificamente, a
esta Instituição de confissão luterana.
103
Primeira organização eclesial permanente dos Luteranos no Rio Grande do Sul, fundado em maio de
1886, em São Leopoldo/RS.
104
A forma administrativa desta sociedade foi definida nos estatutos da EvangelischesStift de 1895,
ficando estabelecido que o órgão máximo era a Assembleia Geral, composta pela diretoria do Sínodo,
pastores e membros leigos das comunidades evangélicas e pelas fundadoras da escola Amalie e Lina
Engel. A Assembleia reunia-se duas vezes por ano, podendo ocorrer convocações extraordinárias. Qualquer
decisão em relação à escola como: Contratação e demissão de professores, despesas financeiras,
valor da pensão do internato ou mesmo as taxas escolares eram definidas por esta Assembleia. Além desta,
tinha um Conselho Administrativo ou Curatório, escolhido através de voto pelos membros da Assembleia
Geral. Este era composto inicialmente pelas professoras fundadoras (posteriormente este cargo passou a ser
ocupado pela diretora em exercício) e por cinco membros da Assembleia Geral. (KANNEMERG, 1987, p.
38)

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condições do tempo, quanto pelo processo de recuperação, cuja interferência, em alguns


casos, impossibilita a recuperação da narrativa original, sendo que o que temos são apenas
pistas, que relacionadas com outros documentos imagéticos ou textuais, nos orientam na
interpretação dos significados do filme.
O filme em estudo encontra-se no acervo da escola luterana Fundação Evangélica
de Novo Hamburgo, antiga EvangelishesStift, objeto central do documentário em questão.
Segundo informações orais, uma grande quantidade de rolos de filmes estavam nos
arquivos da Instituição que, em 1986, por ocasião do seu centenário, produziu a conversão
de parte do material em película para VHS. As informações dão conta, ainda, que outros
rolos foram deixados de lado, sendo que operou-se um recorte temático do material,
selecionando somente a parte que dizia respeito a escola, num processo seletivo da
memória da Instituição. Assim, o material que dispomos não corresponde a integralidade
do que foi produzido na época, pois as perdas decorrentes dos cortes e/ou deteriorização,
impossibilitam o conhecimento do filme original.
A informação que dispomos sobre a produção desse documentário limita-se ao
registro de Hilmar Kanemberg (1987), publicado em seu livro sobre a Fundação
Evangélica de Novo Hamburgo. Segundo este autor, a produção do filme fez parte de um
projeto elaborado por ocasião da posse da nova diretora da EvangelishesStift, em 1926,
Dra. Humbert, vinda da Alemanha "formada e diplomada em faculdade especializada na
Alemanha" (KANEMBERG, 1987, p. 91). Seguindo os princípios da Instituição, com
respaldo do Sínodo Rio-grandense, todas as diretoras deveriam vir da Alemanha, sendo
que diretoras brasileiras assumiam somente em caráter temporário. O mesmo autor afirma
que a nova diretora e seu marido trouxeram propostas modernizantes e promessas de
renovação, tanto em termos pedagógicos, quanto administrativos e estruturais para a
escola, sendo essas iniciativas saudadas com entusiasmo pela diretoria do Sínodo. Entre
essas propostas estava a confecção de um "[...] filme promocional sobre a Fundação,
Hamburgo Velho, a colonização alemã e seu contexto no Vale e no Estado, com objetivos
de angariar fundos aqui e no exterior" (KANEMBERG, 1987, p. 92).
A partir dessas informações e outros registros informais, acreditamos que os rolos
de filmes não aproveitados na transposição para VHS e que, até o momento, não tivemos

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acesso, tratam de filmagens mais amplas da região do Vale dos Sinos. Necessário enfatizar
a importância da verba recebida de sociedades alemãs ligadas a Igreja Evangélica para
manutenção desta escola e outras ações da Igreja Luterana no sul do Brasil. Entre estas
sociedades de auxílio, podemos citar a Sociedade Evangélica de Barmen e a Sociedade
Gustavo Adolfo, esta última a patrocinadora da vinda da Dra. Hubner e seu esposo para o
Brasil.
Entretanto, o casal ficou menos de um ano no Brasil. Em documentos da diretoria
da Instituição, citados por Kanemberg (1987) e em cartas enviadas a Igreja na
Alemanha105, o Sr. Hubner foi alvo de diversas acusações, em especial ligadas ao uso
indevido de verbas da Instituição, além de ter contraído dívidas na sociedade local. Entre
os recursos recebidos da Igreja estavam "10.000$000 para o fundo Memorial da Fundação,
na qual inseria-se a realização do filme. Ainda Kanemberg (1987) avalia que a Dra.
Hubner, com ou sem o apoio do esposo, trouxe importantes contribuições para a
Instituição, mas que sua visão de futuro era grande demais para a época e a Igreja local.
É nesse sentido que se insere a proposta do filme, por si só, produto representativo
de uma modernidade que se pretendia trazer para a localidade, um novo tempo evidenciado
pela chegada da nova diretora estrangeira e suas propostas modernizantes para a Instituição
que tinha como público principal, a elite local.
Na década de 1920, o cinema tinha a mesma função das Exposições Universais,
servindo de vitrine e celebração das virtudes nacionais (MORETTIN, 2012). Embora o
filme não trate das especificamente das virtudes nacionais, a função de vitrine parece ter
sido o principal propósito de sua produção. Mostrar de um lado a Instituição escolar e seu
modelo educacional, pautado pelos valores burgueses da sociedade européia, entremeado
por um componente étnico e religiosos, de outro, a capacidade civilizatória do elemento
germânico na região, servindo como uma espécie de vitrine étnica. Esta referência, aliada à
caracterização do discurso do filme como um documentário com finalidade
propagandística, nos auxilia na análise, uma vez que inexiste, na época, referências de
autoria, portanto, a subjetividade do produtor/diretor, é avaliada nesses quadros

105
Evangesches Zentralarchiv in Berlin. Kirtchliches Aubenamt. 1927. Band 2247. Fiche: 4400. (Original
manuscrito).

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referenciais, ou seja, gênero de discurso no qual está inserido - propaganda institucional - e


ao contexto histórico-cultural daquele espaço-tempo.
Hamburgerberg era uma localidade pertencente a colônia alemã de São Leopoldo,
no Rio Grande do Sul, criada oficialmente em 1824, passando, a partir de 1927, a integrar
o recém emancipado município de Novo Hamburgo. O local era, no período em questão,
um pequeno núcleo urbano, porém economicamente expressivo naquele contexto,
participando do processo de modernização e urbanização que passou a ser promovido com
mais intensidade a partir da Proclamação da República, quando os imigrantes alemães e
seus descendentes, no sul do país, passaram a ter maior expressão política e apoio do
governo republicano estadual. Formou-se, assim, uma elite política étnica, que passou a
distinguir-se tanto por fatores sócio-econômicos, quanto étnicos.
Este cenário justifica o investimento da Igreja Evangélica alemã a
EvangelischesStift. O desenvolvimento econômico da região de colonização alemã no sul
do Brasil, no final do século XIX fez surgir um grupo econômico e socialmente
diferenciado no interior da sociedade teuto-sul-rio-grandense. Este passou, cada vez mais,
a ocupar posições distintas na estratificação social. Algumas camadas desta sociedade
buscavam a aquisição de status acentuando os aspectos simbólicos do grupo que pudessem
defini-lo muito mais pelo seu ser do que pelo seu ter. Nesse processo de construção das
distinções sociais, um importante papel coube ao sistema educacional, na medida que, em
decorrência do desenvolvimento econômico, político e ideológico dominante na sociedade
sul-rio-grandense, em especial na teuto-brasileira, surgiram escolas diferenciadas para
atender grupos sociais distintos.
Considerando o grupo étnico em questão, estas diferenças estabeleciam-se entre as
escolas comunitárias, destinadas exclusivamente ao ensino elementar e dirigidas,
principalmente à população rural, isto é, aos colonos e às mais avançadas - educandários de
aperfeiçoamento - nos quais os teuto-brasileiros recebiam uma educação diferenciada.
Estas últimas situavam-se geralmente nos núcleos urbanos e destinavam-se apenas a uma
fração do grupo, que poderia prolongar a educação dos filhos e arcar com os custos
elevados deste ensino, como foi a EvangelischesStift.

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O sul do Brasil é um pólo de referência da imigração alemã, onde se concentra o


maior número de indivíduos dessa ascendência, bem como de comunidades que ainda
mantém fortes características étnicas. Desde o início de sua instalação em território
brasileiro, os grupos de imigrantes preocuparam-se com a preservação da memória, tanto
familiar quanto coletiva. Esta preocupação esteve presente na fundação das diversas
associações culturais e recreativas, bem como de igrejas e escolas de caráter étnico, criadas
desde os primórdios de imigração no Estado, num processo de “institucionalização de
identidades” (WEBER, 2008, p. 236).
Sendo os imigrantes, por definição, indivíduos desconectados espacialmente de seu
passado, vivendo uma situação de duplicidade de identidade, ocupando um “lugar bastardo
entre o ser e não ser social” (BOURDIEU, 1998, p. 11), a construção de lembranças
tornou-se fundamental na (re)elaboração de sua identidade no novo território, na medida
em que a memória, na sua acepção mais básica, é a presença do passado. Porém, não o
passado em si, mas a sua representação seletiva, sendo que esta seleção – o que esquecer e
o que lembrar – é definida pelo grupo familiar, social, étnico, nacional. É o que Halbwachs
(2004) define como memória coletiva.
Esta seleção, entretanto, não se dá sem disputas. Em geral, a memória não é apenas
conquista, mas também um instrumento de poder. Existe uma luta pela dominação da
recordação e da tradição, estabelecendo aquilo que deve ser lembrado e aquilo que deve ser
esquecido. A memória, assim, serve para manter a coesão interna dos grupos e instituições,
bem como definir suas fronteiras, num processo de enquadramento da memória, na medida
em que institui alguns pontos comuns de referência (POLLAK, 1989). Este trabalho de
enquadramento é feito por instituições, poderes políticos instituídos, historiadores que
reinterpretam incessantemente o passado e, no caso da colônia alemã de São Leopoldo,
também por uma elite étnica e socialmente distinta que, neste caso, patrocinou a produção
do filme em questão, num processo de monumentalização, um trabalho especializado, que
teve como objetivo enquadrar cenas da memória, corroborando com a afirmação de Pollak
(1989, p.11), de que: "o filme-testemunho ou documentário tornou-se um instrumento
poderosos para rearranjos sucessivos da memória coletiva [...]".

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Estes filmes-testemunhos exercem significativa influência sobre a sociedade, na


medida em que na atividade de enquadramento da memória, os lugares-comuns ou pontos
de referência são reforçados. É nesse sentido que o filme é entendido pelo historiador
como um documento útil de análise da sociedade, não como representação da realidade
vivida mas, segundo Hagemeyer (2012), como um registro da memória de uma época, em
que um determinado setor da sociedade representa sua versão da história. Para o autor,
"um filme pode ser lido, desta forma, como expressão ideológica da sociedade, segundo as
escolhas narrativas realizadas por seus autores, de acordo com o desejo dos seus
produtores" (HAGEMEYER, 2012, p. 48).
Orientamos nossa análise pela proposta de Morettin (2012, p. 26) que propõe
observar o processo de monumentalização das imagens perceptíveis no filme. A imagem
cinematográfica, nesse sentido, fixa determinada visão da região de colonização alemã do
Vale do Rio dos Sinos, adquirindo um estatuto de memória. O autor cita Bosséno (1997, p.
8) para dizer que o cinema foi instrumento de memória antes de instrumento de ficção, na
medida em que os primeiros filmes tinham como objetivo arquivar imagens de grandes
acontecimentos.
Como instrumento de memória, o filme também é monumento. Le Goff (1996)
lembra que Monumentum remete à raiz indo-européia menque exprime uma das funções
essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa “fazer
recordar”, “avisar”, “iluminar”, “instruir”. O monumentum é um sinal do passado – tudo
aquilo que pode evocar o passado e perpetuar a recordação (LE GOFF, 1996). O mesmo
autor defende o caráter de documento do monumento e vice-versa, pois ambos são fruto de
escolhas de quem os elabora.
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para
impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias.
No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao
historiador não fazer o papel de ingênuo (LE GOFF, 1996, p.547-548).
É nessa perspectiva que o cinema é entendido pela história enquanto documento.
Todo filme é uma narrativa que contém representações sobre determinada realidade e
sobre a realidade do filme em si. Enquanto documento, sua crítica deve levar em

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consideração a forma como o filme foi concebido - sua estrutura, as cenas, a seqüência,
etc., escolhas que evidenciam determinada visão de mundo. Esta, no entanto, é
condicionada pela tecnologia e estilo do cinema da época, bem como pelo diálogo com
outros suportes imagéticos - como a fotografia - dentro de um sistema de representação
visual do período, que contribuem na definição do que e como filmar. Nesse sentido, o
filme em questão segue o modelo documentário da época caracterizado pela

[...] predominância das imagens descritivas, a minimização da montagem


na caracterização do ambiente e das ações, de modo a não acentuar o
efeito de modulação do tempo ou a criação de um espaço cinematográfico
mais elaborado. Temos a apresentação dos ambientes, as panorâmicas,
alguns planos fixos a mostrar operações completas, a alternância de
planos mais próximos e mais afastados, sem preocupação com efeitos de
ritmo (XAVIER, 2012, p. 45).

A narrativa do filme

O filme inicia-se com a apresentação de um mapa do Brasil seguido de outro do


Rio Grande do Sul, com legendas em português e alemão, indicando que seria apresentado
para os dois públicos, alemão e brasileiro. Seguem-se as cenas, sendo que a maioria delas é
precedida de um título explicativo, alguns em português e alemão, outros somente em
alemão. A organização dos títulos e das cenas evidencia o caráter didático e descritivo da
narrativa.
A primeira cena é uma vista panorâmica de Hamburgerberg. A vista é filmada
através do movimento de câmera em panorâmica horizontal, numa exposição didática e
lenta, retendo-se por mais tempo na tomada da chegada do trem na estação. O registro
fílmico da chegada do trem reforça o seu significado de símbolo do progresso, na medida
em que ambos são ícones da modernidade tecnológica. No mesmo plano, a câmera se
move para a esquerda seguindo o trajeto do trem encontrando um conjunto de construções
que denotam a existência de um povoamento mais denso. Na seqüência, o próximo plano
mostra a paisagem natural, quase que totalmente deserta. Urbano e rural, assim, compõe de
forma equilibrada o mesmo espaço da narrativa fílmica.

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A cena seguinte apresenta em primeiro plano um grupo de alunas que saem do


prédio da escola em passeio pelas ruas do povoado. Vestidos e chapéus brancos,
contrastam com as ruas sem calçamento, onde circulam animais de tração. A presença dos
animais foi propositalmente registrada em uma cena a parte, na qual eles constituem o
elemento central no enquadramento da cena. A câmera continua a acompanhar o percurso
das meninas ao mesmo tempo que registra as casas comerciais, a serraria, a Igreja, o
encontro com pessoas do lugar, evidenciando espaços públicos de desenvolvimento
econômico e de sociabilidade.
A cena posterior registra o encontro dos membros da diretoria da Instituição -
Kuratorium, sob o título: Der Vorstanddes Stiftskuratoriums in Seinem Garten. Uma
seqüência de planos compõe a cena que é dominada por um grupo de homens, que
conversam, fumam e posam para a câmera em posição de autoridade e distinção. Somente
em um dos planos uma mulher une-se ao grupo masculino, provavelmente a diretora, Dra.
Hubner. Na continuidade da cena, um plano focaliza o projeto do novo prédio, sendo
apresentado pelos integrantes da nova diretoria.
Na seqüência, a próxima cena anunciada no título, em português e alemão, é: Uma
visita ao EvangelischesStift. Novamente um grupo masculino, distintamente vestido (terno,
chapéu, guarda-chuva) aparece em primeiro plano, chegando ao prédio da escola. Cada um
dos homens, ao entrar no prédio, faz uma saudação em direção a câmara, num gesto
ensaiado. Segue-se uma nova cena precedida da legenda: Saudações pelas alumnas,
cantando o hyno alemão e, abaixo a tradução em alemão. Movimentando-se para a
esquerda, a câmera mostra o grupo de meninas ao centro, em posição de sentido e
organizadas hierarquicamente de acordo com sua estatura, ladeadas pelo grupo de homens
(membros da diretoria) e outras mulheres, provavelmente professoras da escola, tendo ao
fundo o prédio da escola. Após a tomada geral da cena, a câmera faz um enquadramento
individual em primeiro plano de cada um dos representantes da diretoria. Fecha-se a cena.
As cenas seguintes dão continuidade ao registro da visita da diretoria, sendo
precedidas de legendas explicativas em português e alemão: Allocução dos visitantes as
alumnas, onde os membros da diretoria discursam para os demais; Bailados durante o café
servido aos visitantes, que mostra a diretoria em torno de uma mesa de refeições e, após

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um corte, segue-se a imagem das meninas, em plano geral, numa apresentação de dança,
tendo, ao fundo, a mesa do café ocupada pela diretoria, que as assiste.
A próxima cena apresenta-se sob o título (somente em alemão): Arbeitundspiel. Em
vários planos, a câmera registra as atividades das meninas na escola - sala de aula,
trabalhos manuais, aulas de ginástica. A última cena sob este título mostra as brincadeiras -
ordeiras - realizadas no pátio da escola. Ao final, legendas em português e alemão
reforçam a mensagem pretendida: A aula é o fundamento do Estado e da economia social.
A legenda AmSontag, anuncia as próximas imagens. O prédio da Igreja é
enquadrado em primeiro plano, sendo que na seqüência a cena tem como plano geral as
alunas, vestidas igualmente de branco e em fila dupla, saindo do prédio da escola. Na
próxima tomada elas aparecem ao fundo da imagem, tendo como primeiro plano a rua.
Elas se aproximam até ocuparem todo o plano da imagem. Ao lado da fila de meninas, a
figura da professora representa a autoridade responsável pela manutenção da ordem e da
disciplina. Os planos seguintes registram a entrada na Igreja e as meninas no seu interior.
Os momentos de lazer também são alvos da filmagem. Esta é a proposta da cena em
seguimento àquela da Igreja. Em primeiro plano vê-se um automóvel chegando em frente à
escola. As meninas e professoras entram no veículo que parte, sendo que a câmera
enquadra seu afastamento até desaparecer na linha do horizonte. Já na próxima imagem, o
mesmo veículo pode ser visto buscando as meninas para o retorno do passeio, porém na
imagem seguinte, as meninas aparecem brincando em um rio, provavelmente o destino do
passeio de carro. Acreditamos que seqüência cronológica deve ter sido invertida na
transposição da película para a VHS. As cenas retratam a natureza da região, rios, árvores,
plantas exóticas e, no mesmo contexto, a cena de um homem, aparentemente com trajes de
gaúcho, montado em um cavalo branco. O cenário, provavelmente, é a atual cidade de Dois
Irmãos, que fica bem próxima a Hamburgerberg.
Um novo título introduz a próxima cena, que dá continuidade ao registro do cenário
da região: Carroças de mulas. Paisagem rural, carroças conduzidas por trabalhadores e
casas simples, distribuídas de forma esparsa no espaço, constituem-se em um cenário
diferente daquele de Hamburgerberg. Na sequência, a legenda anuncia: Cabanas de
negros. Seguem imagens de pequenos casebres, sendo que na última cena, um grupo de

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negros, composto por mulheres e crianças posam para o registro em frente à cabana. A
câmera detém-se longamente nesta imagem. A cena seguinte, sem nenhuma legenda que a
descreva, mostra agricultores em uma carreta de bois. Os personagens, numa evidente
atitude de encenação para a filmagem, exibem orgulhosamente sua colheita de aipim,
apresentando exemplares do produto com um tamanho maior do que o comumente
conhecido. Este bloco, que registra o cenário rural da região, finaliza com a imagem de um
grupo de pessoas, homens e mulheres (agricultores?), alguns a pé, outros montados em
cavalos, que lentamente se aproximam da câmera.
Abre-se uma nova cena sob a legenda: Cascata e usina electrica do município de
São Leopoldo, com tradução em alemão. A cascata apresenta-se enquadrada no centro da
imagem em primeiro plano. A câmera detém-se longamente, como que contemplando a
beleza natural, para em seguida, na cena seguinte, mostrar o prédio da Usina, que aparece
na direita da imagem, de maneira que cascata e prédio sejam vistos conjuntamente em um
grande plano geral, tornando explícito seu significado.
Em seguida, apresenta-se a cena final do filme, em que duas alunas da escola,
uniformizadas, surgem em meio a um jardim coberto e erguem uma guirlanda de flores, em
cujo centro aparece a palavra FIM, em português e alemão.
O caráter propagandístico, ou de vitrine, do filme, dirige a organização dos temas e
cenas privilegiadas. O espaço filmado aparece como lugar de possibilidades naturais,
técnicas e humanas. Nesse sentido cenas da paisagem natural evidenciando terras ainda a
desbravar, aparecem em harmonia com os avanços técnicos (trem, carro, usina elétrica).
Da mesma forma, agricultores que, embora denotem certa rusticidade, revelam sua
competência para o trabalho. Da mesma forma, os membros da diretoria da Igreja, as
meninas da escola, educadas e disciplinadas e as ações pedagógicas da mesma, pretendem
demonstrar a existência de um grupo distinto, capaz de dirigir o processo civilizatório em
andamento. O caráter propagandístico, no entanto, não consegue dissimular o olhar
estrangeiro do produtor do filme, identificado na narrativa.
Este olhar do outro, europeu, permeou as narrativas dos viajantes estrangeiros que
circularam pela região de colonização alemã desde meados do século XIX, sendo que sua
visão pouco se modificou até meados do século XX. Segundo RAMOS (2012, p. 245),

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"atualizava-se a viagem com o trem e a máquina fotográfica no início do século XX, mas o
olhar do viajante ainda era o olhar do outro, do europeu sobre nós". Este olhar europeu era
carregado de uma bagagem cultural que pressupunha a superioridade européia com relação
aos outros povos. É nesse sentido que o produtor, Sr. Hubner, registrou as cenas da cabana
de negros, o homem vestido de gaúcho, a vegetação ou mesmo a carroça de mulas. Cenas
que contrastavam àquelas protagonizadas pelo grupo germânico, que aparecem como os
elementos humanos responsáveis pelo desenvolvimento econômico, social e cultural do
lugar.
A narrativa está estruturada alternando aspectos urbanos com elementos rurais;
símbolos do progresso com outros que remetem a ideia de atraso. Embora na estrutura
geral do filme estes elementos apareçam separadamente, representando distinção social e
espacial, em alguns momentos são introduzidas cenas que evidenciam exatamente o
contrário, ou seja, o fato de que este espaço, no período, ainda era predominantemente
rural. A escola aparece sempre integrada a parte mais urbanizada e economicamente
desenvolvida do local, representada por construções (Igreja, comércio, indústria) ruas
regulares, mais ou menos organizadas, enfim, o lugar onde o trem chegou, representação
icônica da chegada do progresso.
Por outro lado, o cenário rural também é representado, nas imagens, embora
separado do local da escola. Este espaço é caracterizado essencialmente pelos elementos
naturais e ocupado por trabalhadores negros e agricultores, contraponto as alunas da
escola, dos membros da diretoria e professoras. Nesse sentido, a carroça de mulas, bem
como os cavalos, aparecem como contraponto ao trem e ao automóvel. As pessoas bem
vestidas, que circulam nas ruas do centro urbano parecem neste cenário - rural - somente
enquanto visitantes, turistas, para quem este espaço tem outro significado, o de lazer.
Porém, em alguns momentos, são inseridas imagens que parecem fugir a narrativa
central como quando, entre as cenas que retratam o passeio das alunas pela cidade,
introduz-se uma cena da rua em que a circulação de animais é o enfoque principal. Como
não temos como saber até que ponto a estrutura da narrativa é original e o quanto ela foi
alterada no processo de conversão para VHS, não podemos nos aprofundar nessa
discussão. Mas podemos questionar sobre o porquê da seleção dessas imagens, na

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transposição feita por ocasião do centenário da escola em 1986, num processo de


ressignificação das cenas produzidas em 1927.
Cabe lembrar que a atual Fundação Evangélica de Novo Hamburgo, assim como a
antiga EvangelishesStift, é uma escola cujo público principal é composto pelas camadas
social e economicamente dominantes daquela sociedade, sendo que o componente étnico e
luterano, embora mais diluído, ainda compõe o perfil da escola A localidade de
Hamburgerberg é hoje o bairro de Hamburgo Velho, onde ainda situa-se a escola. O bairro
constitui-se na parte histórica da cidade, com algumas áreas e prédios tombados. Enquanto
as outras áreas da cidade foram perdendo seu caráter germânico, o bairro permanece como
um lugar de memória da imigração alemã.
Quanto a produção do filme, podemos dizer que as imagens analisadas representam
dois aspectos daquela realidade, representações construídas a partir da posição social dos
patrocinadores e de seus objetivos, que procuraram construir imagens que celebrassem o
imigrante alemão, a Igreja e a escola como portadores do progresso e da cultura
"civilizada"; mas também do autor, cujo olhar estrangeiro, não deixou de registrar os
aspectos "exóticos" da paisagem e , de certa forma, ligados a ideia de atraso - em
contraponto ao moderno -, como o registro das cabanas de negros ou as carroças de
mulas.
Cabe ainda assinalar que o filme apresenta um padrão visual que pode ser
relacionado aquele representado nas imagens fotográficas da região colonial alemã do Rio
Grande do Sul, em que há uma preocupação em mostrar a prosperidade e as possibilidades
produtivas daquela área, bem como os diferentes espaços de sociabilidade em que o grupo
étnico - imigrantes e/ou seus descendentes - protagonizam as cenas. Da mesma forma o
cenário apresenta-se como um espaço "entre" o rural e o urbano. Diferentemente das
imagens fotográficas das principais cidades brasileiras da época, em que há uma grande
preocupação com a ocultação dos espaços vazios, privilegiando os espaços urbanos, nas
imagens produzidas na e sobre a região colonial, estes vazios do território apresentam-se
enquanto possibilidade de expansão, sendo que elementos como a abundância da natureza
e, sobretudo, da terra, compõe os cenários contrabalançados pelas imagens das instituições,

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construções e pequenos núcleos urbanos como resultado da introdução do elemento


imigrante.
Conforme visto, este padrão visual fotográfico apresenta similaridade com a
produção fílmica aqui analisada, acrescida de uma narrativa específica, que vincula-se
tanto aos objetivos da produção, quanto ao próprio estilo cinematográfico da época.
Assim, as imagens em movimento funcionam como intensificador do sentido de real
atribuído ao documento, que também é monumento, na medida em que foi produzido para
que estes registros fixem parte da memória da colonização alemã do Vale do Rio dos Sinos
e, especificamente da Evangelisches Stift, sentido reatualizado em 1986, quando o filme foi
adaptado a um novo suporte.

Referências bibliográficas

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ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

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BRINCAR E GUARDAR: CAMINHOS INTERPRETATIVOS PARA


UMA COLEÇÃO DE BRINQUEDOS NO MUSEU PARANAENSE

Martha H. L. Becker Morales106

RESUMO: Em 2014, o Museu Paranaense recebeu duas doações compostas por


brinquedos. Estas coleções abrangem ferroramas, bonecas, miniaturas, jogos de chá,
quebra-cabeças, enfim – peças com as mais variadas tipologias materiais, cores e
tamanhos. Artefatos como estes evocam muitos sentimentos nostálgicos associados por
adultos à infância, porém logo surgiu a questão de como incorporar estas coleções no
circuito expositivo indo além da mera estética de uma cultura material fortemente marcada
pelos avanços na produção industrial em massa de meados do século XX. Dessa forma, foi
constituído o Grupo de Trabalho em Cultura Material e Infância, formado por técnicos da
instituição e universitários de Curitiba, com o intuito de promover um estudo deste acervo
como objetos culturais cuja produção foi imbuída dos valores de seus idealizadores, das
concepções acerca da criança de uma época e de um projeto de formatação dos modos de
vida – especialmente na atribuição dos papéis de gênero. No entanto, considera-se também
a recepção destes brinquedos como objetos de consumo que ultrapassaram o universo
infantil e, findas as brincadeiras, foram guardados e convertidos em semióforos. Sendo
assim, este trabalho propõe compartilhar os caminhos interpretativos percorridos, lidando
com a materialidade da infância do século XX, com o objetivo ulterior de musealizar a
intangibilidade dos sentidos encontrados em algo de tão fácil reconhecimento quanto um
carrinho de fricção ou um pequeno par de sapatos de plástico. Nesta familiaridade, reside
uma multiplicidade de apropriações e circulações de coisas e saberes que nem sempre uma
vitrine de museu torna perceptível, aí está o grande desafio a ser debatido.

Palavras-chave: Coleção; Brinquedo; Museu.

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Doutora em História (Universidade Federal do Paraná). INDEX Informação Integrada/ Museu Paranaense.
Contato: mhlbecker@gmail.com

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Introdução

Um museu pode se denominar ‘de história’, ‘de ciências’, ‘itinerante’, ‘de arte’,
dentre muitas outras formas. Em última instância, porém, um museu é definido por aquilo
que guarda, estuda e expõe: seu acervo. O Museu Paranaense, localizado em Curitiba,
Paraná, ao longo de seus 139 anos de existência foi caracterizado por coleções
tradicionalmente associadas aos grandes museus nacionais da virada do século XIX para o
XX, com uma ênfase inicial nas Ciências Naturais, um espaço significativo para
Arqueologia e Etnografia e uma forte presença de itens da História Militar. Ainda assim, o
ecletismo sempre marcante das aquisições desta instituição vez ou outra abriu margem a
várias possibilidades interpretativas, hoje, mais do que nunca, exploradas diante das novas
propostas museológicas para narrar o passado.
Recentemente, a doação de dois conjuntos materiais profundamente ligados ao
universo infantil se apresentou como uma oportunidade interessante para exercitar os
diferentes níveis de atuação do museu e torná-la uma situação de aprendizagem tanto para
a equipe quanto para pesquisadores voluntários. Foi grande o volume de miniaturas,
bonecas, roupas, jogos, livros educativos e cadernetas de atividades, em excelentes
condições de preservação, entregue aos cuidados da instituição, sobretudo associado à
primeira metade do século XX. Dessa forma, foi instituído o Grupo de Trabalho em
Cultura Material e Infância com o intuito de explorar com profundidade o processo de
inserção destes objetos nas atividades expositivas, educativas e sociais do Museu
Paranaense. Este artigo visa delinear alguns preceitos básicos que fundamentaram as
discussões do GT e apontar os caminhos escolhidos para o estudo e a divulgação deste
acervo no contexto museal.

O museu como lugar de brinquedos

Desde finais da década de 1980, com a publicação do Thesaurus para acervos


museológicos de Ferrez e Bianchini (1987), brinquedos são documentos museológicos
incontestes, categorizados junto ao Lazer/Desporto, embora não escape às autoras a

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complexidade própria destes que se confundem com os artefatos em escala reduzida que
poderiam ter outra função, alheia ao divertimento infantil. No entanto, tais objetos
compõem acervos de museus desde muito antes, como indica Guedes (2003) no que se
refere aos brinquedos do Museu Histórico Nacional, por exemplo, coletados nos primeiros
anos de funcionamento da instituição.
O objeto identificado como brinquedo apresenta uma dualidade interessante ao
museu, uma vez que sua conotação aparentemente infantil evoca também no público adulto
uma série de sentimentos de afeto, de nostalgia, de estranhamento, de curiosidade, de
empatia; estas múltiplas sensações do visitante (seja ele adulto ou criança) facilita seu
envolvimento com a história que o circuito pretende contar, potencializando o impacto
reflexivo de uma exposição bem planejada. Neste contexto, mesmo a ausência de alguns
tipos de objetos, a falha em representar certos sujeitos ou a invisibilidade de memórias
esquecidas podem ser exploradas como pontos de contraste às vitrines preenchidas por
conjuntos materiais específicos de determinados grupos sociais ou culturais. A
interpretação depende, enfim, da proposta efetivada pela experiência na visitação.
Se muitas lacunas são encontradas nas coleções museológicas, há igualmente muito
a ser explorado em cada uma delas – conforme Pereira (2009), por exemplo, todo
brinquedo carrega em si a época na qual foi produzido, o mundo que o gerou, a educação
que propunha, um projeto de sociedade. Aliás, não são poucos os autores que argumentam
o quanto a história da moda e da tecnologia está documentada em bonecas e carrinhos,
especialmente do século XIX em diante. Isto é especialmente válido para os brinquedos
industrializados, acompanhados de uma infinidade de dados complementares –
transformados em fontes pelos historiadores – tais como anúncios em jornais, estatísticas
dos fabricantes, campanhas publicitárias e a utilização de todo o potencial midiático com
histórias em quadrinhos, animações e filmes.
O perfil das coleções doadas ao Museu Paranaense está enquadrado neste período
de profusão de informações, situação ideal a princípio, entretanto a questão que se colocou
foi, acima de tudo, qual história gostaríamos de contar? Enquanto uma instituição
comprometida em explorar as narrativas da ocupação do atual território paranaense, de que
maneira um conjunto de brinquedos poderia contribuir e acrescentar?

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Deste modo, a criação de um Grupo de Trabalho centrado no estudo deste acervo


em especial partiu da constatação que “muitos dos brinquedos são fabricados para ‘ensinar’
comportamentos, gestos, atitudes, valores considerados ‘corretos’ em nossa sociedade”
(VOLPATO, 2002, p. 220), formatando a experiência da infância enquanto uma espécie de
projeto. Inserido neste projeto, seria possível tangenciar os ideais do mundo adulto, a
atribuição de papéis de gênero, a pedagogia e a civilidade, em suas manifestações histórica
e geograficamente localizadas. Contudo, conforme esclareço a seguir, a problematização
da infância e sua cultura material que pretendeu explorar as novas aquisições terminou
como uma incursão ao acervo preexistente e suas vocações dialógicas.

O Grupo de Trabalho em Cultura Material e Infância

Desde o início, o objetivo do GT foi problematizar conceitos que tomam a infância


e seus artefatos como naturalizados e universais. Isto se deveu à consciência de que o
conjunto material com o qual estávamos lidando era bastante específico: brinquedos,
sobretudo industrializados, que pertenceram a três gerações de crianças de uma família de
imigrantes europeus com boas condições financeiras, ao longo do século XX. Dessa forma,
as discussões deveriam ser complementadas por uma bibliografia que levasse em
consideração outras crianças e seus brinquedos, em situações distintas, inseridas em grupos
distintos, de outras épocas e outros lugares. Por mais que as lacunas persistam, o GT se
constituiu sobre um ideal de compreensão da pluralidade que permeia o passado e com a
finalidade de transpô-la ao público visitante.
O levantamento bibliográfico no qual as discussões se pautaram foi beneficiado
pela emergência da infância como tema de estudos multidisciplinares nos últimos anos
(CASTRO, 2007). Autores de diferentes áreas entraram em consenso ao tomá-la como um
fenômeno social e cultural a ser estudado com atenção às particularidades de cada
contexto. As muitas possibilidades de recorte foram delimitadas a cinco temáticas,
exploradas em debates quinzenais no primeiro semestre de 2015, como forma de direcionar
as atividades iniciais do GT:

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1. Infância como construção, conceito: criança(s) no tempo e no espaço


2. Cultura material e imaterial: musealização do intangível
3. Séculos XX e XXI: musealização do passado recente e do presente
4. Perspectiva de gênero na construção (material e imaterial) da infância
5. Relação adulto(s) X criança(s): educação e disciplina na cultura material

Conforme o esperado, cada temática desdobrou-se em uma série de preocupações


paralelas, como, por exemplo, a questão da brincadeira como uma atividade que não se
limitaria à infância. De acordo com Tavares,

Quando um adulto penetra na esfera do divertimento, ele o faz tentando


evadir-se da realidade, fugindo dos padrões de comportamento que a
sociedade lhe impõe. Ao contrário, quando uma criança brinca, ela está
mergulhando de corpo e alma no mundo que a rodeia, pois é na situação
do faz-de-conta que a criança se relaciona com o real e se prepara para o
desempenho de papéis sociais. (TAVARES, 2004, p. 17)

Sendo assim, o alcance da brincadeira, enquanto ação, e do brinquedo, enquanto


objeto mediador da ação, extrapola o universo infantil, mas é neste universo que se
configura um processo de aprendizagem, de inserção no meio em se vive. Considerando o
acervo em questão, esta inserção é também mediada pela indústria produtora do brinquedo
e pelo adulto responsável por sua compra, direcionando os interesses da criança que o
recebe.
Os adultos apontados como os responsáveis pela imposição da cultura material às
crianças definiriam, assim, a adequação da escolha e do manuseio dos brinquedos
(BROOKSHAW, 2010). Os escritos de Michel Foucault são mencionados pela
historiografia, não raro, para exemplificar o exercício de poder sobre os corpos a serem
disciplinados, incluindo neste sentido os brinquedos cuja função abarca a intenção de
controlar e tornar dóceis e produtivos seus usuários (vide LEMOS, 2007). De fato, esta é
uma observação sustentada pela variedade de objetos educativos encontrados ainda hoje à
venda em lojas especializadas, acompanhados de uma série de recomendações
profissionais e seus respectivos estudos psicossociais. No entanto, é fundamental

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considerar a agência da criança enquanto um ser social próprio, mais do que um


prolongamento de seus pais ou um adulto incompleto. Pereira (2009, p. 6) destaca que “as
crianças transgridem o suposto conteúdo do brinquedo: utilizam-no de forma não pensada
pelo seu fabricante, encantam-se com detalhes que pareciam secundários, inventam novos
usos, os destroem a fim de encontrar sua alma”, ou seja, por mais categorizado que um
brinquedo se apresente, a imaginação da criança pode sempre surpreender – situação que
desafia a leitura proposta por Walter Benjamin e perpetuada por vários autores que
lamentam a morte da criatividade infantil nas mãos do brinquedo industrial capitalista.
Estes são apenas alguns exemplos das questões que emergiram em meio a leituras,
estudos de acervo e debates conduzidos por pessoas de trajetórias acadêmicas distintas –
história, antropologia, arqueologia, artes e psicologia. Para os fins deste texto, enfatizo o
brinquedo como um objeto de grande interesse museológico, devido à gama de
possibilidades que este apresenta a ser exploradas, mas também enquanto um semióforo de
especial significado para uma instituição que lida com memórias e sentimentos.

Brinquedo infantil, fonte de pesquisa e semióforo: biografias materiais

Para definir o escopo de atuação do GT foi importante compreender que a cultura


material relativa à infância não se limita ao objeto brinquedo. Segundo Romero (2010),
crianças em geral manipulam (e, às vezes, produzem) três tipos de artefatos: peças para
brincar, réplicas de objetos em menor escala e peças do universo material adulto. Devem-
se acrescentar, também, os objetos próprios da maternidade, nem sempre essenciais às
crianças, mas a elas associados. Ou seja, tomando infância como um conceito amplo,
culturalmente relativo, e cultura material como uma noção tão abrangente quanto,
englobando uma infinidade de manifestações concretas, o GT parecia propor-se a uma
missão irrealizável. Todavia, a amplitude do nome denotava os caminhos ainda
desconhecidos que seriam trilhados, conforme se manifestaram interesses de pesquisa,
dúvidas e curiosidades entre os membros. Em comum, apenas o acervo – os brinquedos.
A liberdade experimentada no trabalho com este acervo, que permitiu ao GT aspirar
à tamanha amplitude, se deve à extensa biografia cultural atribuída a estes brinquedos.

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Kopytoff (2004) argumenta que objetos são entidades culturalmente construídas, assim
como o são seus significados e suas muitas classificações e reclassificações, permitindo
pensar suas trajetórias biográficas como histórias dotadas de incertezas e valores
transitórios.
Volpato (2002) afirma, relembrando Benjamin, que não são poucos os objetos de
culto mais antigos que foram transformados em brinquedos, ressignificados e
reformatados. De certa forma, qualquer objeto pode virar brinquedo – improvisados,
desenhados, reconstruídos; novamente a agência é um fator a ser considerado, basta que se
dê crédito ao poder imaginativo e criativo da criança. E, assim como a cultura material da
infância é mais do que o brinquedo, o brinquedo é mais do que a cultura material da
infância – adultos colecionam estes objetos ou guardam seus brinquedos antigos com afeto.
Os brinquedos que chegaram ao museu foram guardados, e com muito cuidado
preservados no seio familiar, conservados apesar da passagem das gerações, das muitas
mãos que os manipularam. Mas houve aqueles – improvisados, desenhados, reconstruídos,
repito – que não sobreviveram, por serem frágeis, efêmeros, por terem sido esquecidos,
perdidos, quebrados.
Além disso, Guedes (2004, p. 39) observa que “a maioria das pessoas tem a
tendência de doar brinquedos usados para obras de caridade ou até jogarem foram”,
situação que a autora atribui ao desconhecimento que a população tem com relação ao
interesse dos museus em suas vivências infantis. Isto também reflete a percepção difundida
entre a população de que museus históricos acumulam objetos de estética mais artística ou
muito antigos, associados a determinados personagens.
Porém, as renovações do pensamento das Ciências Humanas e Sociais na segunda
metade do século XX incluíram a ampliação do que significa “objeto de museu”,
provocando uma alteração profunda em políticas de aquisição antes conservadoras e
elitistas. Portanto, se há uma tendência em áreas como a Pedagogia em valorizar
brinquedos populares, que se valem da reutilização do lixo ou são confeccionados à mão
com materiais simples (SOUSA; MELO, 2009), esta também se apresenta nas instituições
de memória que pretendem direcionar suas práticas preservacionistas para as

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manifestações mais fugazes e intangíveis – neste caso, as brincadeiras de rua, os jogos de


improviso.
O ponto ao qual quero chegar é a alteração nos valores e significados de um objeto
como a boneca, por exemplo. Historicamente, é possível resgatar toda uma trajetória da
figura antropomorfa como símbolo de fertilidade, de coragem, de saúde. Como objeto de
culto, pode ter usos xamânicos, pode proteger do mal, pode infligir o mau. A anatomia é
motivo de debate, a intencionalidade de suas formas ocultadas ou acentuadas denota os
objetivos de sua feitura. Industrializada, carrega um projeto mercadológico, uma proposta
publicitária, uma imagem associada, talvez um nome e uma profissão. Tornada brinquedo,
pode ter cunho educativo, pode ser signo de afeto, pode ter o cabelo cortado, o corpo
costurado, pode ser recomposta. Guardada, pode significar a lembrança de uma data, de
um parente, de uma fase da vida. Descartada, pode ser lixo. Resgatada do fundo de um baú
esquecido, doada ao museu, torna-se semióforo.
Conforme Pomian (1984), semióforos são aqueles objetos protegidos, conservados
ou reproduzidos; ações definidas pelo interesse manifestado por determinados grupos
sociais. Junto ao ímpeto das atitudes que mantêm esta cultura material em estado
privilegiado, continua, firmaram-se as disciplinas que ‘descobrem’, ou melhor, constroem
novos semióforos, teorizando sobre sua classificação, sua datação e sua hierarquização. A
princípio, mesmo antes da chegada dos brinquedos no acervo do museu há, em alguns
casos, a sua transformação em semióforo, devido ao cuidado despendido em favor de sua
preservação. Entretanto, é no museu que esta atribuição ganha caráter público e coletivo, o
brinquedo deixa de ser significativo para um indivíduo para atuar como representante de
toda uma classe, de uma etnia ou de uma localidade.
Em suma, o objeto classificado como brinquedo, tornado fonte historiográfica e
sacralizado pelo museu apresenta uma biografia muito rica ao pesquisador. Não apenas
seus significados são múltiplos como podem diferir de objetos semelhantes, devido ao
cuidado que lhe foi dedicado. Reconhecida essa incerteza e valorizados os caminhos que
trouxeram este acervo até o Museu Paranaense, o maior desafio, talvez, se apresenta: como
musealizar significados intangíveis?

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Tempo de brincar: caminhos escolhidos

O objetivo último do GT, após pesquisa, leitura e discussões, é a montagem de uma


exposição que reflita os temas abordados, que proponha inclusive a continuidade do debate
inserindo o público visitante na proposta, a fim de receber seu feedback e compreender a
recepção das ideias. Neste momento, esta etapa ainda não se concretizou, atualmente
encontrando-se no estágio do projeto expográfico.
Feitas as pesquisas, o papel destes brinquedos no museu pareceu se delinear como
uma oportunidade importante de valorizar a criança enquanto sujeito nas narrativas do
passado. Brookshaw (2010) argumenta que a ausência de crianças em exposições perpetua
a ideia de que o passado foi povoado somente por adultos, ou que a passividade e a
insignificância marcam o lugar percebido da criança na sociedade, como um sujeito que
não faz história, apenas a apreende.
Por outro lado, crianças e seus objetos têm um apelo forte entre o público adulto,
que romantiza e reverencia a infância como um período positivo, povoado por memórias
calorosas. Roberts (2006) chega a equiparar museus da infância a exposições somente de
brinquedos, nos quais a criança é isolada da realidade adulta em uma terra de conforto e
alegrias, ocasionando uma imagem idealizada. Como alternativa, a autora sugere que os
aspectos mais positivos, como brinquedos e jogos, sejam balanceados com os menos
atrativos, ou seja, a pobreza, a subnutrição e o trabalho infantil – algo que efetivaria um
museu mais controverso e provocativo. A limitação das culturas materiais presentes em
museus neste sentido é flagrante, contudo, Roberts propõe a utilização de outros métodos
expositivos, como reproduções fotográficas e depoimentos em áudio e vídeo.
Contemplado o brinquedo como memória de práticas educativas, história da
tecnologia, forma de subsistência de grupos marginalizados, objetos de arte, manifestação
de identidades e de sentimentos, o GT optou por interpelar os visitantes mais assíduos do
Museu Paranaense: o público em idade escolar. Conduzido pelo Setor de Ação Educativa,
um questionário ainda em fase de aplicação vem demonstrando que há um interesse grande
das crianças em conhecerem brinquedos ‘antigos’, que seus pais e avôs tiveram. É possível
que isso ecoe a percepção do museu como lugar ‘de coisas velhas’ e espaço sagrado do

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antigo e do exótico, no qual as crianças são orientadas a caminharem em silêncio, com as


mãos nas costas, atentos à mediação e mantendo certa distância.
Em atenção ao interesse manifesto, ainda que este tenha sido cerceado por pré-
concepções no que diz respeito ao formato tradicional dos museus, o GT propôs uma
expografia que contemple o brinquedo do/no museu, além de questionar de onde vêm estes
brinquedos, enquanto produtos artesanais ou industrializados. Com a exposição da
variedade do acervo, em termos de matéria-prima, formas de brincar, cores, tamanhos e
épocas, impõe-se a recomendação de Breier (2005) de dar historicidade aos objetos,
substituindo a mera contemplação pelo incentivo ao pensamento crítico.
Tal incentivo deverá ser estimulado por meio da transposição e da problematização
dos significados que permeiam os objetos e imagens selecionadas: meninos e suas figuras
de ação musculosas, ensinando a bravura e oferecendo um escape ao comportamento
agressivo; meninas e bonecas que orientam a maternidade, a higiene pessoal e o romance
(EDWARDS, 2010). A atribuição dos papéis de gênero, a propósito, é um dos aspectos
mais interessantes a serem explorados neste conjunto material específico, determinado por
trens elétricos e conjuntos mecânicos com meninos retratados em seus manuais e
numerosos jogos de chá de porcelana de fabricação nacional e estrangeira, associados à
atenção à hospitalidade e à etiqueta.
Para concluir, cabe destacar os pontos nos quais o novo conjunto de brinquedos fez
convergir o olhar aos objetos preexistentes no acervo do Museu Paranaense: quais crianças
eram estas, no Paraná do século XX? Filhos de imigrantes, de ascendência europeia, com
boas condições financeiras e acesso à produção mais recente das indústrias de brinquedo
internacionais eram a norma? Partindo do pressuposto que a resposta é negativa, ainda que
não tenham sido conduzidos estudos estatísticos da população no período, algumas
soluções foram encontradas como forma de incluir na exposição pequenos pontos de
provocação. A predominância de brinquedos de fabricação industrial poderia supor uma
sucessão linear que substituiu e eliminou a produção artesanal, entretanto,

O avanço da industrialização não causou apenas opções novas em


brinquedos mais modernos, mas também uma diferenciação na criação

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dos brinquedos populares que adquiriram uma característica até então


inovadora em sua construção: peças manufaturadas utilizando já produtos
industrializados. A união do tradicional e o moderno no mesmo objeto.
(...) Um exemplo desta inovação é a peteca, que mesmo a que é feita à
mão, utiliza-se a borracha e penas sintéticas (CARVALHO; STORI;
MOSANER Jr., 2014, p. 10).

Ainda que o museu não possua em seu acervo exemplares como a peteca
mencionada, um objeto como este é facilmente confeccionado e pode resultar em um
elemento de contraste interessante numa vitrine de brinquedos de fabricação complexa e
atribuição gendrificada. Outrossim, esta solução de hibridismo nas matérias-prima compõe
não apenas os brinquedos populares, como também muitos brinquedos indígenas
confeccionados em beiras de estrada como formas de sobrevivência, à venda para turistas
que não necessariamente vão utilizá-los como brinquedos, considerando-os artesanato.
Brinquedos indígenas, além disso, são abundantes no acervo etnográfico do Museu
Paranaense, permitindo que bonecas Karajá e miniaturas de animais em cera de abelha ou
madeira sejam inseridos entre as bonecas de porcelana e os soldadinhos de chumbo
montados em camelos. Por que não aproveitar a oportunidade e pensar nos grupos
indígenas que tem sua própria concepção de infância, com seus próprios significados e
culturas materiais?
Por fim, a proposta deste GT se resume em demonstrar as possibilidades
encontradas na busca por alternativas aos formatos narrativos tradicionais que caracterizam
alguns museus históricos, tomando por base um trabalho ativo de pesquisa de acervo aliado
a discussões bibliográficas e intercâmbios disciplinares. Dessa forma, os circuitos
cronológicos, exemplificados por cenários estanques higienizados e idealizados dão lugar
ao conflito, à problematização de aspectos nem sempre positivos e ao uso de outros
elementos associados à cultura material encontrada no acervo. Como se trata de um projeto
inacabado, este texto não apresenta um estudo de recepção que sinalize ajustes ou novos
caminhos a serem trilhados no futuro, porém, a introdução de novas concepções
expográficas e o acolhimento da proposta como experiência evidenciam o quanto o Museu
Paranaense tem se mostrado aberto a atender as necessidades de um público cada vez mais
participativo e crítico.

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Agradecimentos

Este trabalho não teria sido viabilizado sem a contribuição essencial dos
participantes do Grupo de Trabalho em Cultura Material e Infância, em especial os
envolvidos na fase das discussões bibliográficas: Alexandre Cozer, Denise Haas, Douglas
Scirea, Gustavo Anderson, Jamile Silva, João Carlos Coronel, Kamila Bach, Lorena
Pantaleão, Neusa Cassanelli, Raíza Luara da Silva e Willian Funke. Da mesma forma sou
grata ao diretor do Museu Paranaense, Renato Carneiro Jr., pela possibilidade e o
compromisso de levar a ideia adiante, e à Tatiana Takatuzi, Ellen Nascimento, Janaik
Helcias, Gerson Tuleski Jr. e Flaviane Silva por seu envolvimento fundamental na fase da
exposição.

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OS DETENTOS TÊM ROSTO: O ÁLBUM DO MÉDICO SEBASTIÃO


LEÃO – PORTO ALEGRE, 1896

Raquel Braun Figueiró 107

Resumo: O presente trabalho é fruto de dissertação de mestrado defendida em 2014. Nele


é analisado o álbum intitulado Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico
organisado pelo Dr. Sebastião Leão, produzido na Oficina de Identificação
Antropométrica da Casa de Correção do Rio Grande do Sul, em 1896, e publicado no ano
seguinte. Leão se baseou nos preceitos de Alphonse Bertillon para fotografar os detentos e
utilizou o álbum como suporte para o seu estudo de antropologia criminal. Através dele, é
possível visualizar pessoas que dificilmente seriam fotografadas se não fosse tal ocasião.
Nesse sentido, objetiva-se pensar a especificidade da fotografia jurídico-criminal naquele
período de recente surgimento dessa técnica de captura de imagem. Problematiza-se a
relação da produção do álbum com aquele contexto científico. Por último, questiona-se a
possibilidade de autorrepresentação e a subjetividade presentes em uma produção
imagética dita tão objetiva. A análise utiliza principalmente o estudo de Sandra Pesavento
(2009) sobre a mesma documentação e emprega como aporte teórico o conceito de
apropriação de Certeau (1994), bem como algumas apreciações de Chartier (1988; 1998;
2004). O primeiro visando a entender como Sebastião Leão se apropria da fotografia para
complementar o seu trabalho de antropologia criminal e o segundo para pensar a relação
que cada obra tem com o mundo social, a luta de representações como tão constituinte do
mundo social quanto as lutas econômicas e o potencial de aculturação do uso de
representações imagéticas. Portanto, o entendimento da imagem não se limita em si
mesmo, operam-se arranjos e desvios que manifestam cada apropriação específica.

Palavras-chave: Fotografia; Teorias raciais; Crime.

107
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da rede estadual de ensino no
Colégio Inácio Montanha. E-mail: raquelbraun1@gmail.com

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Desde o seu surgimento, na primeira metade do século XIX, até os dias atuais, os
usos da fotografia foram múltiplos e podem nos ajudar a compreender parte do passado, ao
utilizá-la como fonte histórica a partir de uma problemática pertinente. O objetivo desse
texto é pensar uma produção fotográfica realizada na Casa de Correção de Porto Alegre. O
então médico da instituição, Sebastião Leão, publicou, em 1897, um álbum fotográfico dos
detentos, intitulado Os criminosos do Rio Grande do Sul, organizado por ele ao longo do
ano de 1896. Torna-se necessário pensar a especificidade da fotografia jurídico-criminal,
naquele período de recente surgimento dessa técnica de captura de imagem. Problematiza-
se a relação da produção do álbum com aquele contexto científico. Por último, questiona-
se a possibilidade de auto-representação e a subjetividade presentes em uma produção
imagética dita tão objetiva.
O trabalho aqui exposto é parte de uma dissertação de mestrado que buscou
entender a apropriação das teorias raciais através da obra do médico porto-alegrense
Sebastião Leão, na segunda metade do século XIX. A sua obra refere-se às suas
publicações no jornal Correio do Povo, como médico e como cronista histórico, ao álbum
fotográfico e ao estudo de antropologia criminal (também publicado em 1897), em que ele
analisa os detentos da Casa de Correção. Esse documento foi enviado ao Secretário de
Estado dos Negócios do Interior e Exterior, João Abott e, depois, anexado no relatório
desse último, ao Presidente do Estado Júlio de Castilhos, em 1897. Esse estudo foi
produzido na Oficina de Identificação Antropométrica, criada em 08 de janeiro de 1896,
com o aval de Borges de Medeiros, então chefe da polícia. Leão visava entender se o
criminoso era formado pelo meio social ou por caracteres atávicos, bem como se a raça
influenciava na formação do criminoso.
Sua produção intelectual é entendida não como uma produção isolada, como se
suas ideias estivessem soltas no ar, mas como parte de uma prática social perpassada por
diversas características intercambiadas naquele processo histórico específico. Dentre os
elementos que intercruzam a sua trajetória e perpassam a sua produção poderíamos
relacionar a forma de dividir as pessoas por raças, o governo do Partido Republicano Rio-
Grandense, a condição de classe de Sebastião Leão, os questionamentos científicos do final
do século XIX, a reestruturação do sistema penal em diversos países do mundo, o

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desenvolvimento da medicina legal, a concepção de criminoso, a sociabilidade do cárcere,


as desigualdades que levam ao crime e ao encarceramento de uma parcela específica da
população, o desenvolvimento da fotografia com forma de registro e de prática social que
começa a se difundir naquele período. Não é o caso de aprofundar todos esses elementos,
mas cabe pensá-los como relacionados à produção visual aqui analisada, para não se perder
de vista a complexidade que cada contexto histórico enseja.
Juntamente com a produção escrita de seu estudo de antropologia criminal,
Sebastião Leão contaria com um Laboratório Fotográfico na Oficina de Identificação da
Casa de Correção de Porto Alegre, em funcionamento desde 1896. Com tal ateliê
fotográfico, foi possível ao médico produzir um Álbum com as fotos de 101 presos. A
maioria das fotos tem a anotação do nome e crime cometido pelo detento fotografado,
abaixo da imagem. Porém, algumas não dispõem de nenhuma informação sobre a
fotografia.
A fotografia passou a ser um elemento na prática da antropologia criminal e do
registro dos detentos – visando identificar recidivistas. A fotografia surge no mesmo
período em que surgia a antropologia. Enquanto disciplina científica, a antropologia
utilizava a fotografia buscando a observação neutra do “objeto” observado. Porém, essa
busca por neutralidade científica na utilização da fotografia não deixa de produzir sentido,
a começar pelo fato de tornar grupos humanos passíveis de serem considerados objetos de
estudos de uma ciência desenvolvida a partir da Europa e dos Estados Unidos. Mesmo
utilizada como neutra e representação do real pela antropologia criminal, hoje se pode
visualizar os processos sociais envolvidos no discurso de neutralidade cientifica das teorias
raciais da segunda metade do século XIX, para o qual a fotografia também serviu de
instrumento de análise da sociedade naquele período. A fotografia não se mostra um
documento isento e neutro que traz a verdade sobre aquela realidade social, mas um
instrumento, um vestígio histórico que nos permite entendê-la melhor no intercâmbio
complexo das vicissitudes de seu tempo.
A antropologia foi se consolidando como a ciência que tinha como objetivo central
entender e classificar as raças humanas hierarquicamente. Ideia perpassada pela noção de
que, a partir de uma determinação biológica, a inteligência poderia ser medida

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isoladamente e, a partir dela, se poderia proceder a uma valoração dos indivíduos, das
raças e de grupos sociais. Entende-se que a ciência feita por esses homens era um
fenômeno social e por isso não era imparcial. Com isso, não se afirma que esses homens
não tinham seriedade ao analisar seus dados ou que eram maquiavélicos na elaboração de
suas conclusões. Como qualquer outro aspecto da ciência, os dados quantitativos e a ideia
de que a inteligência de cada indivíduo podia ser ordenada conforme uma escala gradual
ascendente também eram sujeitos ao condicionamento cultural. Conforme Gould (1991, p.
12), “[...] os argumentos deterministas para classificar as pessoas segundo uma escala de
inteligência, por mais refinados que fossem numericamente, limitaram-se praticamente a
reproduzir um preconceito social [...]”.
Na segunda metade de século XIX, progredia a antropologia na Europa, surgindo
trabalhos de estudiosos em todos os lugares do continente, com especial expressão na
Alemanha, na França e na Inglaterra. Desde a primeira metade do século XIX, a
antropologia criminal ganha destaque e começam a ser fundadas sociedades para debater e
pesquisar a temática em diferentes países da Europa. Exemplos disso seriam: Sociedade
Frenológica (1831), na França; Sociedade de Antropologia de Paris (1859), fundada por
Paul Broca; Sociedade de Autópsia (1876).
No correr do século XIX, surgem revistas, jornais e se formam congressos sobre
antropologia criminal, reunindo antropólogos, biólogos, psiquiatras, médicos-legistas,
sociólogos, juristas. Além disso, “A partir de 1885, congressos internacionais de
antropologia criminal reúnem a cada quatro anos não apenas médicos, mas também
magistrados, policiais e políticos de todos os países” (DARMON, 1991, p. 85). Esses são
realizados até 1906 e param de ocorrer somente após a morte de Lombroso, em 1909.
O estudo do Dr. Sebastião Leão segue, portanto, essa tradição de estudos em
processo de organização na segunda metade do século XIX. Seu trabalho resultou de um
estudo científico realizado em 1897, em sua Oficina de Identificação, estabelecida na Casa
de Correção de Porto Alegre. O autor utilizou as teorias raciais de forma original para
entender e refletir sobre o seu contexto local, de modo a debater com autores europeus.
Entre os autores lidos por Sebastião Leão nessa obra, pode-se destacar: Alphonse Bertillon,
Maudsley, Cesare Lombroso e Lacassagne. Os dois primeiros ele utiliza como inspiração

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metodológica. Os outros dois autores são fundamentais para o seu estudo, pois Leão se
identifica com a teoria do francês Lacassagne, valorizando a influência do meio no
surgimento dos criminosos, em contraposição ao cientista italiano Césare Lombroso, que
afirmava ser o criminoso definido por caracteres atávicos. Isso não significa que Leão não
concorde com Lombroso em alguns aspectos, além de utilizá-lo como aporte metodológico
para as características dos detentos que analisou.
Outra questão colocada por Leão foi quanto à influência das raças em relação aos
tipos de crimes cometidos por pessoas de diferentes origens geográficas ou raciais 108. O
autor não chega a nenhuma conclusão sobre esse assunto, pois afirma “que o material de
que dispunha, parte completamente original, era deficiente e devia limitar-me a considerá-
lo como contingente à elucidação da questão por espíritos melhor orientados, ou
tardiamente, por mim próprio, uma vez que disponha de soma de elementos” (LEÃO,
1897, p. 243). Porém, mesmo realizando essa afirmação inconclusa, ele atribuiu diversas
diferenciações raciais ao longo de seu estudo que demonstram seu entendimento
diferenciado de pessoas através das raças. Não é o caso de aprofundar essa questão nessa
comunicação. Mas, citarei apenas um exemplo, que possibilita relacionar as afirmações do
médico com o álbum fotográfico, para pensarmos como diferentes fontes podem fazer o
historiador entender melhor práticas sociais do passado. Sebastião Leão afirmou ser as
expressões no olhar de negros e crioulos menos desagradáveis do que de caboclos,
indiáticos e brancos (!) (LEÃO, 1897, p. 222). Lombroso afirmou “que o traço mais
característico, verdadeiramente especial nos delinquentes natos, reside no olhar”. Curioso
dessa afirmação do médico italiano é que justamente um dos traços estabelecidos por ele
que poderia ser julgado o mais subjetivo seria o mais característico do criminoso.

108
Ressalte-se que a raça está sendo considerada como uma construção social, que apenas faz sentido no
interior de uma sociedade racista. Para saber mais consultar: GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo.
Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 1999.

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Figura 1: Os criminosos do Rio Grande Figura 2: Os criminosos do Rio


do Sul. Album Photographico organisado Grande do Sul. Album Photographico
pelo Dr. Sebastião Leão, Diretor da organisado pelo Dr. Sebastião Leão,
Officina de Anthropologia Criminal. Porto Diretor da Officina de Anthropologia
Alegre, 1897. Imagem 84. Criminal. Porto Alegre, 1897. Imagem
24.

Fica difícil concordar com Sebastião Leão quanto à expressão no olhar de um


detento negro e um branco, ao analisar as duas fotos acima. A afirmação do médico
exprime um tipo de representação racial comum para a época. Essa assertiva sobre o olhar
sugere um perfil de subserviência de negros e crioulos. Ambas as fontes históricas foram
produzidas pelo mesmo médico (ou sob a orientação dele, para o caso do álbum), mas ao
cruzá-las para buscar entender o desenvolvimento das teorias raciais na Casa de Correção
do Rio Grande do Sul, visualizamos a contradição na qual o autor se coloca ao reproduzir
um entendimento da sociedade baseado em diferenciações raciais.
O álbum foi produzido em conjunto com um estudo de antropologia criminal
realizado pelo médico da Casa de Correção de Porto Alegre, de maneira que ele se apropria

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do conhecimento científico em voga para realizar o seu trabalho no interior do cárcere,


visando refletir sobre as teorias raciais e as práticas jurídicas da época. O consumo cultural
realizado por Sebastião Leão, metaforizado no ato de ler, permite uma margem de
liberdade para utilizar o conhecimento consumido mesmo que quem produza o texto deseje
estabelecer uma forma verdadeira de interpretação. A absorção das teorias raciais ocorre de
modo a tornar o texto consumido semelhante ao que se é, tornando-o próprio, fazendo com
que Leão se aproprie e reaproprie delas (CERTEAU, 1994).
Mais especificamente, quanto à fotografia enquanto prática social e sobre o seu uso
na área criminal, cabe realizar algumas considerações antes de dar sequência às análises
colocadas por esse texto. A fotografia surgiu na primeira metade do século XIX com a
invenção de Daguerre, em 1839 e, no ano seguinte, já havia notícia das primeiras
experiências no Rio de Janeiro. No decorrer do século, a técnica foi sendo aperfeiçoada e,
aos poucos, ficando mais acessível à população, permitindo a democratização desse retrato.
Com a captura da imagem através da foto, acreditava-se obter uma representação “fiel da
realidade”. O surgimento da fotografia também mexe com a individualidade das pessoas.
Conforme Corbin, “Ascender à representação e pose de sua própria imagem é algo que
instiga o sentimento de autoestima, que democratiza o desejo de atestado social. Os
fotógrafos o percebem muitíssimo bem” (2010, p.425).
As fotografias eram exploradas como cartão de visita, álbuns de família, fotos ao
lado do túmulo, etc. Os tipos de capturas e a possibilidade de obtê-las variavam conforme
o objetivo da fotografia e as condições econômicas das pessoas. A possibilidade de se
representar em uma foto ou em um álbum de família converteu-se em um símbolo de
distinção. A fotografia “soleniza corpo e a posição social do retratado. Além das
homenagens e dos afetos, afirmam-se disputas por capital simbólico em torno dos mínimos
sinais de distinção” (SEGALA, 1998, p. 48). Entretanto, além das imagens demandadas
pelas próprias pessoas, havia aquelas em que a pessoa era retrata sem ser consultada (como
fotos de escravos ou amas-de-leite) ou em troca de algum tipo de pagamento (fotos
etnográficas).
As representações de não brancos nas fotografias, ao longo do século XIX,
ocorriam de diversas formas: libertos que queriam mostrar uma condição distinta; donos de

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escravos que queriam mostrar seus escravos como bens, ou como parte de uma cena em
que os senhores eram os principais; amas-de-leite com crianças no colo; detentos de Casas
de Correção; figuras tidas como “exóticas” onde se demonstrava a sua etnia ou o seu modo
de vida para venda de souvenir; pessoas classificadas como “objetos” de análise científica.
Esses dois últimos tipos de imagem eram adquiridos para estudos científicos, embora a
foto do tipo souvenir não tenha sido, necessariamente, produzida para esse fim. Nesse
sentido,

Enquanto objetos etnográficos, quem definiu suas classificações e seus


usos foram, principalmente, os compradores das fotos. É bastante
possível que muita foto produzida na chave do exótico, vendida como
souvenir, tenha sido explorada como documento etnográfico em trabalhos
“científicos. E vice-versa (KOUSOUKOS, 2010, p.135).

Sendo assim, no interior do meio científico da época, houve fotografias


especificamente produzidas para auxiliar os estudos sobre as diferentes raças humanas.
Sobre esse tipo de imagem, Kousoukos explica que:

[...] foi explicitamente usada como coleta de dados para sustentação de


trabalhos “científicos” baseados em teorias racistas então em voga. Esse
segundo grupo se dividiu entre retratos, sobretudo de bustos e meio
perfil, e fotografias com características antropométricas (de bustos ou de
corpos inteiros, de frente, de perfil e de costas), adquiridas como o
objetivo de dar suporte visual a estudos comparativos sobre raça humana;
estudos nos quais, invariavelmente, se procurava demonstrar a
superioridade branca sobre as demais (KOUSOUKOS, 2010, p.115-116).

O desenvolvimento da técnica fotográfica possibilitou diversas formas de utilização


das imagens das pessoas e as fotos possibilitaram um novo modo de pensar a respeito de si
próprio. Além disso, mesmo nas pessoas que não eram fotografadas por vontade própria, a
autora acima citada afirma haver, por vezes, uma margem para se auto-representar.
Nessa busca por singularidades individuais, o serviço policial também começou a
utilizar a fotografia na identificação dos delinquentes. Quando começou a ser usada pela
polícia francesa, na década de 1870, as fotografias “tomadas de todos os ângulos e
guardadas em desordem, têm pouquíssima valia; de todo modo, não permitem que se

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descubra a verdadeira identidade de um falsário. Tudo muda a partir de 1882, com o


emprego da identificação antropométrica estabelecida por Alphonse Bertillon” (CORBIN,
2010, p. 432).
Alphonse Bertillon foi um funcionário da polícia francesa que sistematizou
detalhadamente e, pela primeira vez, um princípio para identificar criminosos recidivistas,
conhecido como antropometria judiciária. A antropometria desenvolvida por Bertillon
estava baseada na medição dos ossos do esqueleto humano, partindo do critério objetivo da
sua imutabilidade a partir dos vinte anos de idade. O sistema de Bertillon se consolidou
depois de ele ter realizado milhares de medições e chegado à conclusão de que havia
apenas uma chance em mais de quatro milhões de que dois indivíduos apresentassem onze
medidas idênticas. Além disso, a forma como organizou as fichas dos detentos permitiu
que se chegasse a um recidivista em minutos, ao contrário das diversas horas que se levava
através do sistema antigo. A bertillonnage, como foi chamada na época, foi inaugurada na
França, em fevereiro de 1888, e se espalhou pelo mundo no decorrer dos anos seguintes.
No mesmo mês, o Serviço Fotográfico foi incluído no Serviço Antropométrico de
Bertillon. O desenvolvimento dessa técnica de identificação dos presos foi muito além dos
embates teóricos e filosóficos de como se forma um criminoso. Pois, conforme
Darmon,“Os resultados de um método como esse não dão margem nem à contestação nem
a polêmica. Aqui, tudo faz parte do domínio do real, do palpável, do imediato” (1991, p.
209). Posteriormente, a berillonnage foi substituída como método de identificação pela
datiloscopia.
No caso do cárcere gaúcho, o método antropométrico deveria ser implementado por
Sebastião Leão a partir da data de criação da oficina, em 1896. Porém, não foram
encontradas fichas semelhantes ao método desenvolvido por Bertillon. É possível
considerar que essas fichas foram produzidas e se perderam com o tempo, pois o próprio
Bertillon havia elogiado o trabalho do médico porto-alegrense, como esse último informa
em relatório de 1899 (LEÃO, 1899, p. 312). Na Casa de Correção gaúcha, Leão executava
várias medições e se pode perceber a influência dos estudos franceses de Bertillon no
cárcere até a consolidação da datiloscopia, em 1907. Podemos refletir se Leão não

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pretendia fazer no Rio Grande do Sul o que Bertillon fez para a França. Porém, ele não
teve a estrutura necessária que esse último contou pra realizar o seu trabalho.
Se pensarmos no álbum de Sebastião Leão como forma de identificação de
recidivistas, ele tinha uma valia limitada. Por mais que estivessem identificadas, as fotos
eram guardadas em um mesmo álbum, tendo o funcionário que folhá-lo por inteiro para
reconhecer um antigo detento. Não se sabe se havia outro lugar em que as imagens
estavam dispostas, já que não foram encontradas fichas individuais de cada detento.
Porém, produzir o álbum foi importante, pois “no enquadramento e na fixação da
imagem do outro, tinha-se a disciplinarização do condenado; o que criava uma relação
interessante entre poder e foto do preso, como bem cabia a um país civilizado”
(KOUTSOUKOS, 2010, p. 243).
A forma de fotografar os detentos foi especificada por Alphonse Bertillon na
década de 1880. Para ele, as fotografias dos delinquentes não deveriam representá-los de
forma artística como queriam muitos fotógrafos. Essas fotografias “deveriam ser, ao
contrário, de uma escrupulosa feiúra, de maneira a pôr em evidência verrugas, sinais,
cicatrizes, barba e pequenas rugas” (DARMON, 1991, p. 222). Surgiram as duas
fotografias tradicionais de infratores: uma do perfil direito e outra da face. Essas
fotografias passaram a ser acrescentadas à ficha antropométrica e deveriam ser tiradas à
mesma distância e com as mesmas condições de iluminação. Além disso, Bertillon fixou
regras sobre a fotografia realizada no local dos crimes e inventou a técnica do retrato
falado. Essa última foi aperfeiçoada depois pelos doutores Reiss, de Lausanne, e Icard, de
Marselha.
O álbum produzido por Sebastião Leão seguiu em parte os preceitos de Bertillon,
uma vez que apresentou as fotos sem realizar uma representação artística dos detentos e
expôs a foto da face. Porém, dos 101 presos fotografados, apenas 11 tiveram as fotos de
perfil. Isso pode representar pouco cuidado do médico, como também displicência do
fotógrafo ou erro na revelação.

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Figura 3: Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico organisado


pelo Dr. Sebastião Leão, Diretor da Officina de Anthropologia Criminal.
Porto Alegre, 1897. Imagens 25, 25A, 26 e 26A.

A historiadora Sandra Pesavento reconstruiu em seu livro Visões do Cárcere (2009)


a história dos condenados cruzando as informações do Álbum Fotográfico, do Livro de
Sentenciados e dos processos-crime que conseguiu encontrar de cada um dos detentos
fotografados. Pesavento deu vida a esses indivíduos esquecidos pela história, fazendo-os
ressurgir do passado. A partir dessa obra, é possível traçar apreciações sobre esse material.
As fotos são extremamente expressivas, principalmente, pelo olhar dos
sentenciados, dentre os quais:

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Há aqueles que fixam a máquina de forma desafiante, como que a


enfrentar o procedimento da antropologia criminal, de fixar a imagem e
catalogá-la. Outros encaram o fotógrafo e a máquina com o olhar de
desconfiança, por vezes de apreensão, ou até mesmo de desafio. Em
geral, há uma seriedade na fisionomia. De modo geral, as expressões não
são apáticas. Quase todos dirigem o olhar para a máquina fotográfica, e
raros são os que têm a vista dirigida a um outro ponto. No que toca à
indumentária, a maior parte dos sentenciados enverga o uniforme da
prisão, mas as mulheres parecem exibir a roupa que levavam consigo
para a cadeia, pois não segue um modelo ou padrão determinado
(PESAVENTO, 2009, p. 125).

Pode-se cruzar a afirmação dessa historiadora com a de Koutsoukos sobre a


possibilidade de autorepresentação, mesmo que pequena, de pessoas que estão sendo
fotografados por obrigação. Interessante refletir que “[...] todos os condenados se
encontram distintos uns dos outros. Apesar da construção e da ordenação da foto de preso,
cada um dos detentos também conseguiu se mostrar, posar como sujeito do retrato, com
dignidade [...]” (KOUTSOUKOS, 2010, p. 256). Portanto, o Álbum de Leão nos permite
visualizar os agentes considerados perigosos em uma época e suas expressões, permitindo-
nos montar um cenário do passado em nossas mentes. Seguem alguns exemplos dessas
expressões:

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História, Cultura e Imagem
Porto Alegre (RS), 14 e 15 de agosto de 2015.
ISSN: 2178-1761

Figura 4: Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico organisado pelo Dr.
Sebastião Leão, Diretor da Officina de Anthropologia Criminal. Porto Alegre, 1897.
Imagens 01, 02, 03 e 04.

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Figura 5: Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico organisado pelo Dr.
Sebastião Leão, Diretor da Officina de Anthropologia Criminal. Porto Alegre, 1897.
Imagens 13, 14, 15 e 16.

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Figura 6: Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico organisado pelo Dr.
Sebastião Leão, Diretor da Officina de Anthropologia Criminal. Porto Alegre, 1897.
Imagens 83, 84, 85 e 86.

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Com essas imagens é possível concordar com Sandra Pesavento sobre a


expressividade do olhar desses indivíduos que viveram há mais de um século. Com o
álbum, também se pode contrapor as afirmativas compostas nos livros dos sentenciados e,
às vezes, discordar, sendo que:

Por vezes parece que o que presidira a identificação não foram os


centímetros, mas a apreciação pura do funcionário encarregado. [...] Os
descuidos ou os padrões dos funcionários da Cadeia parecem que não
colaboravam na tarefa científica na qual se empenhava o diligente Doutor
Leão! (PESAVENTO, 2009, p. 127).

A partir dessa afirmação temos outro exemplo de como o cruzamento de fontes


pode nos expor práticas sociais de um período. Torna-se possível problematizar as
características dos detentos descritas nas fontes escritas a partir daquelas colocadas pelas
fontes iconográficas – sem cair no erro de julgá-las como a representação fiel da realidade.
O estudo de Pesavento permite que entendamos um presídio não como um lugar onde as
individualidades se perdem, mas onde elas permanecem presentes e instigam um tipo de
socialização que marca o ambiente de crime e do criminoso. Podemos visualizar os
detentos como agentes de seus retratos. A partir de Os criminosos do Rio Grande do Sul.
Album Photographico organisado pelo Dr. Sebastião Leão é possível visualizar pessoas
que dificilmente seriam fotografadas, não fossem tal ocasião. Embora tratados como objeto
de estudo, cada um dos detentos teve uma mínima brecha para se auto-representar, através
do olhar.
A partir do entendimento dos processos históricos que perpassam a produção do
álbum, podemos entender um pouco mais sobre as práticas sociais relacionadas aquele
contexto carcerário e científico do final do século XIX. Problematiza-se a construção de
significados a partir da realidade empírica de cada sociedade, ao pensar nas diferentes
apropriações de cada instância social e cultural. Para Chartier, “pensar as práticas culturais
em relação de apropriações diferenciais autoriza também a não considerar como totalmente
eficazes e radicalmente aculturantes os textos, as falas, ou os exemplos que visam moldar
pensamentos e as condutas da maioria” (2004, p. 13). Portanto, o entendimento da imagem

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não se limita em si mesmo, operam-se arranjos e desvios que manifestam cada apropriação
específica. Entende-se que cada vestígio histórico representa o real e só pode ser entendido
quando se relaciona com seu contexto, para apreendermos sua historicidade. Sendo assim,

Esta historicização da especificidade tem por corolário a interrogação


sobre as relações que as obras mantêm com o mundo social. Longe da
tentação (que foi forte entre os historiadores) por reduzir os textos a um
puro estatuto documental, deve-se trabalhar as distâncias. Distâncias
entre as representações literárias e as realidades sociais […]. Distâncias
entre a significação e a interpretação (CHARTIER, 1998, p. 49)109.

O álbum organizado por Leão representa significações de um período histórico


específico, que podem ser apreendidas de diferentes formas, conforme a interpretação e a
época em que o lemos. Porém, é preciso entender essa significação nas vicissitudes do seu
tempo. O estudo de cada vestígio histórico deve atentar para as diferentes condições sob as
quais os seus significados são criados.
Outra característica que nos remete o estudo do álbum dos detentos é pensar como
uns grupos sociais eram vistos por outros, quais tinham o lugar de fala sobre o outro e
quais eram silenciados pelas diferenciações teóricas e práticas sobre os agentes. No final
do século XIX, era recorrente classificar e hierarquizar a personalidade e as características
subjetivas dos seres humanos conforme a cor, a hereditariedade e o envolvimento com
práticas criminosas passíveis de encarceramento. O álbum de 1897 simboliza uma situação
objetiva de desenvolvimento de políticas públicas pelas elites masculinas e brancas
baseadas em certas concepções de vida em sociedade. Fonte histórica e contexto histórico
são relacionais, uma vez que:

As lutas de representações têm tanta importância como as lutas


econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que

109
Tradução da autora. Citação original: Esta historizacion de la especificidad de la tiene por corolário la
interrogación sobre las relaciones que las obras mantienen con el mundo social. Lejos de la tentación (que fue
fuerte en los historiadores) por reducir los textos a un puro estatuto documental, hay que trabajar sobre las
distancias. Distancias entre las representaciones literarias y las realidades sociales […]. Distancias entre la
significación e la interpretación (CHARTIER, 1998, p. 49).

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são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificação ou


de delimitações não é, portanto, afastar-se do social [...], muito pelo
contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais
decisivos quanto menos imediatamente materiais (CHARTIER, 1988, p,
17).

Então, quem dizia quem era o criminoso? Quem era o criminoso encarcerado
naquele momento? A partir dessas questões, é possível pensar se a objetivação desses
detentos fotografados implicou marcas e hábitos de criminosos, como um modo de se fazer
representar frente à complexa dialética do cotidiano, em que diversas características da
sociedade se intercruzam em suas trajetórias individuais. É possível entender, através desse
trabalho, as representações desse álbum para o médico da Casa de Correção e para as
autoridades policiais e estatais. Representações relacionadas ao discurso científico de
entendimento da formação do criminoso e às práticas sociais de encarceramento daqueles
considerados perigosos. Porém, entender a significação desse álbum e do encarceramento
na forma em que cada detento se auto-representava socialmente para além do cárcere e
deslocava-se em sua trajetória é uma parte dessa luta por representação que ainda está por
ser apreendida – a partir do entendimento das diferentes concepções de mundo de
diferentes setores sociais, cada qual com seus próprios valores e referenciais simbólicos.
Por enquanto, ficamos com os olhares dos 101 detentos fotografados fazendo-se
representar diante da lente uniformizante do laboratório fotográfico do antigo cárcere.

Fontes
Os criminosos do Rio Grande do Sul. Album Photographico organisado pelo Dr. Sebastião
Leão, Diretor da Officina de Anthropologia Criminal. Porto Alegre, 1897.
Relatorio apresentado ao Sr. Dr. Julio Prates de Castilhos, Presidente do estado do Rio
Grande do Sul pelo Dr. João Abott Secretario d’Estado dos Negócios do Interior e
Exterior em 30 de julho de 1897. Porto Alegre: Officinas a vapor da Livraria Americana,
1897. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Localização: SIE.3-005.
Relatorio apresentado ao Sr. Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros, Presidente do
estado do Rio Grande do Sul pelo Dr. João Abott Secretario d’Estado dos Negócios do
Interior e Exterior em 30 de julho de 1899. Porto Alegre: Officinas a vapor da Livraria
Americana, 1899. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Localização: SIE.3-007; 670p.

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Referências bibliográficas

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1988.
________________. Escribir las prácticas: discurso, práctica, representación. In:
Cuadernos de Trabajo, Valencia: Fundación Cañada Blanch, n. 2, p.157-162, 1998.
________________. Leitura e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP,
2004.
CORBIN, Alain. Os bastidores. In: PERROT, Michelle. História da vida privada. Vol. 4:
Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, p. 413-
611.
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo: Brasil, segunda
metade do século XIX. Campinas: Unicamp, 2010.
MENESES, Ulpiano T. B. de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço
provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p.
11-36, 2003. Disponível em:
<http://www.anpuh.org/revistabrasileira/view?ID_REVISTA_BRASILEIRA=43>. Acesso
em: 06 ago. 2015.
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do
espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Recordação da Casa dos Mortos: Introdução ao
relatório do Dr. Sebastião Leão. In: 1º SEMINÁRIO DE PESQUISA DE PESQUISA DO
AHRS, 2001, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul,
2001. 01 CD.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Visões do Cárcere. Proto Alegre: Zouk, 2009.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEGALA, Lygia. Ensaio das luzes sobre um Brasil pitoresco: o projeto fotográfico de
Victor Frond. 1998. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1998. 388p.

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GT HISTÓRIA CULTURAL DA ANPUH-RS

A História Cultural investiga representações e imaginários, isto é,


"reapresentações" do outro, produzidas num âmbito específico, que não visa reproduzir,
mas criar. Ela trata de sistemas imaginários e relaciona-se, cada vez mais, com vários
domínios das ciências humanas e sociais, tais como antropologia, literatura, psicologia,
arquitetura, comunicação e, também, as artes visuais, teatro, patrimônio. Enquanto vertente
historiográfica, tem possibilitado aos estudiosos abordarem um vasto leque de temáticas,
tais como: literatura, cidade, loucura, memória, religiosidade, cidadania, modernidade,
individualismo, espaços público e privado e a escrita dos 'homens comuns', entre outras.
Dessa forma, vem se consolidando, mais incisivamente, a partir e ao longo da
última década do século XX, enquanto aporte teórico de análise, tanto para a disciplina de
História quanto para todas as outras que se dispõem à transdisciplinaridade. Visando
expandir o debate neste viés teórico, é que foi criado o Grupo de Trabalho História
Cultural (GTHC-RS) em Porto Alegre, no ano de 1997, tendo à frente de sua fundação e
coordenação a historiadora Dr.ª Sandra Jatahy Pesavento, professora titular de História da
UFRGS. Vinculado à Associação Nacional de História – Seção Rio Grande do Sul
(ANPUH-RS), este grupo logo se ampliou e contribuiu para formar e consolidar o GTHC
Nacional, que congrega reconhecidos pesquisadores de várias instituições do país
empenhados em discutir amplamente as produções realizadas sob esta égide.
Desde o início, o GT criou diversas atividades de discussão e debate, acadêmicos e
também fora da academia, que vingaram em suas várias edições. Citamos, principalmente,
as “Jornadas de História Cultural”, evento bianual que acontece em Porto Alegre e que já
está em sua décima segunda edição. Outra realização importante deste GT são as chamadas
“Leituras de História Cultural”, que iniciaram no ano de 2003 na Livraria Cultura de Porto
Alegre e que continuaram sendo realizadas nos anos seguintes, em parceria com várias

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instituições de ensino, pesquisa e cultura (PUCRS, UFRGS, Livraria e Editora Zouk,


Centro Cultural Érico Veríssimo, Memorial do RGS). Outros locais públicos de debates e
ligados à cultura municipal e estadual também têm sido sede de eventos do GT História
Cultural – RS, entre eles: MARGS – Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Museu Júlio de
Castilhos, Memorial do Rio Grande do Sul, Casa de Cultura Mário Quintana, IHGRS e
Santander Cultural. E como parceira, desde 2005, temos a Câmara Rio-grandense do Livro,
entidade responsável pelo evento anual na cidade “Feira do Livro de Porto Alegre”, que
todos os anos conta com a presença do GT e seus membros na grade de suas atividades.

Para mais informações:

E-mail: gthistoriacultural@anpuh-rs.org.br

Site: http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs

Facebook: https://www.facebook.com/gthistoriaculturalrs

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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA,


SEÇÃO RIO GRANDE DO SUL – ANPUH-RS

No Rio Grande do Sul, o Núcleo Regional da ANPUH está organizado desde o ano
de 1979, tendo sofrido uma reestruturação em 1994. Possui em torno de 300 associados
ativos anualmente espalhados por todo o Estado e é o segundo maior núcleo em número de
filiados do Brasil. Parte dos seus sócios está organizada em Grupos de Trabalho (GTs) que
visam trabalhar temas específicos de interesse histórico e/ou profissional.
O Encontro Estadual de História é a principal das diversas atividades científicas da
ANPUH no Estado. É realizado bienalmente, nos anos pares, contando com um tema
central escolhido de acordo com a pertinência historiográfica e social. Constitui-se num
momento privilegiado de intercâmbio entre a comunidade dos historiadores e de
articulação entre os estudos e as pesquisas já realizados ou em andamento.
Desde 2008, a ANPUH-RS possui uma sede própria, localizada no centro de Porto
Alegre, onde está localizado seu arquivo administrativo. O local possui ainda uma sala de
reuniões com capacidade para aproximadamente 30 pessoas, onde são realizadas atividades
de iniciativa dos membros dos GTs e de sócios com anuidade em dia.
Os sócios da ANPUH com o pagamento em dia da anuidade, além de garantirem os
seus direitos estatutários, recebem regularmente os informes eletrônicos da ANPUH-RS e
podem enviar artigos para a Revista Brasileira de História. Também ganham descontos na
compra de publicações da Coleção ANPUH-RS e inscrevem-se nos encontros estaduais e
nos simpósios nacionais com valores de taxas diferenciadas.
Para mais informações: www.anpuh-rs.org.br.

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