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2016

Deus não existe E eu posso provar


Divina de Jesus Scarpim

Produção Gráfica: Editora Essencial Capa: Dimitri Zeis Assistente Editorial:


Marcia Villaça Obra revisada pelo próprio autor
SC286d Scarpim, Divina de Jesus
Deus não existe e eu posso provar / Divina Scarpim / São Paulo, 366 págs - Editora Essencial - 2016
ISBN: 978-85-68672-24-2
1.Título 2 . Filosofia
CDD 190 CDU 141
Copyright © 2016 Divina de Jesus Scarpim

Direitos da edição impressa adquiridos pela EDITORA ESSENCIAL CNPJ:


14.001.349/0001−52 Fone: (11) 98763.5313 / (11) 3459.5255

Dedico esse livro a todos os teístas que em algum momento aceitaram conversar
comigo sobre deus. Respeitosamente ou não, apresentaram argumentos que me
ajudaram a pensar novas questões e procurar mais informações. Sou muito grata
por isso.

Deus Existe?

Antes de cada ponto, entre cada vírgula, entre muitos parágrafos, a professora
Divina questiona a existência de Deus, através de textos e questões polêmicas.
Suas páginas são de indignação humana e com fortes razões.

Quando a conheci na Feira de Livros da zona sul de São Paulo, Divina


aparentemente não me parecia uma pessoa de grandes polêmicas. Simples,
sorridente, de bem com a vida. Depois fui pesquisando suas ideias e textos. E só
após ela me entregar este livro de mil vozes, é que pude perceber o quanto estava
enganado.

Sua convicta coragem alerta as pessoas mais incautas sobre o poder das religiões
na mente. Como agem politicamente e praticam intolerância para manter “a
palavra de deus”. Os textos muitas vezes históricos transpassam por filosofias e
definições de intelectuais levantando grandes questões sobre a existência deste
deus bíblico de muitas faces religiosas.
Pessoalmente não sou ateu. Mas também não sigo nenhuma religião. Costumo
dizer que a arte é meu caminho religioso, meditação e coluna ereta. O resto são
princípios e valores que não devemos esquecer.

Em tempos de procura de uma “verdade religiosa”, liderando políticas nacionais


e internacionais, partidos, povos e guerras, este livro é pura reflexão.

Boa leitura Carlos A. Torres - Editor da Essencial

Sumário

Prefácio - O crepúsculo de Deus


Começando
Quem é Deus? De que Deus eu falo? 15 A Presença do Mal 137 Biografia 359
Bibliografia 360

Prefácio O crepúsculo de Deus

Se como quer Nietzsche “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o
são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais
como moedas”, a originalidade do trabalho de Scarpim está justamente na
proposição de novas metáforas para explicar antigas questões.

Mudar o valor nominal das moedas com as quais fazemos o “comércio” da


divindade em um mundo cada vez mais carente de paradigmas que deem sentido
a antigas questões éticas e morais é um desafio que poucos se propõem a
enfrentar.

Propositadamente, não faço nenhuma citação de passagens do livro neste


prefácio, porque espero que o leitor experimente o mesmo sabor de novidade
que experimentei desde a apresentação até a última linha de um trabalho que é
no mínimo um desafioàs nossas certezas e incertezas.

Ao estilo limpo e incisivo da autora alia-se um cuidadoso trabalho de pesquisa


que não apenas dá suporte à sua argumentação, mas também abre perspectivas
para outras abordagens a partir de suas reflexões.

Os ecos e reverberações de outros textos e ideias em seu trabalho possibilitarão


diálogos intertextuais tão férteis quanto as provocações que faz.

Impossível ficar indiferente.


Avram Ascot (Abrahão)
Primavera de 2016/hemisfério sul

Abrahão Costa de Freitas, Escritor, é formado em Letras, com especialização em


Jornalismo Internacional com larga experiência no magistério lecionando para o
ensino fundamental, médio e superior. Além disso, atuou também como Tradutor
de Língua Inglesa e espanhola e Produtor de Eventos Culturais.

Sua trajetória literária inclui a participação em diversas antologias e concursos


literários, tendo sido premiado em vários deles. Em julho de 2016, lançou a
coletânea de contos “Acontecências”, pela Editora APMC. Coletânea esta que
será relançada em breve pela Editora Essencial em edição revista e ampliada.
“Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa
tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu!
Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas
Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas
que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua
estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas
palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e
que te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos e para condenar-me assim ao
universo, à humilhação e à vergonha de existir.”
Emil Cioran1

1 In: A arrogância da oração: http://ateus.net/artigos/filosofia/aarrogancia-da-oracao/ - Acesso em: 02 Nov.


2011

COMEÇANDO

Antes de tudo quero falar de todas as pessoas religiosas que são decentes, boas,
amigas de verdade e que procuram viver da melhor forma sempre respeitando o
outro e as diferenças de opiniões e crenças. Não pretendo, em nenhum momento,
ofender essas pessoas, tenho muitas delas entre meus amigos e em minha
família; uma delas me cuidou e me deu esse nome que tenho como contradição.

Gostaria que ficasse claro que não estou tentando ofender todos os religiosos do
mundo quando coloco em dúvida a crença religiosa e, principalmente, quando
coloco em dúvida o que algumas pessoas fazem em nome dessa crença. Sei que
há muitos e muitos religiosos de várias correntes, de várias igrejas, de várias fés,
que não tomam posturas abomináveis e que, eles também, são contra o
radicalismo e a intolerância.

O cristianismo é o foco central de minhas observações e críticas apenas pela


maior familiaridade que tenho com ele uma vez que – como a grande maioria
dos brasileiros – fui criada em lar cristão; e meu nome comprova isto. Mas não
quero me restringir apenas ao cristianismo porque acredito que muitos dos
principais argumentos utilizados aqui são válidos também para o islamismo, o
judaísmo ou qualquer religião, seita ou crença individual que defenda a
existência de um deus criador onipresente, onipotente, onisciente justo e bom.

Questiono até onde a crença em deus se justifica diante da realidade do mal. Uso
aqui o termo teísta para me referir a todas as pessoas que acreditam na existência
de um determinado deus criador do universo e o que definem como sendo
onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo, independente de que nome o
chamem. O termo teísta vale para todos os religiosos praticantes e vale também
para aqueles que não são adeptos de nenhuma religião. Tenho visto que muitos
teístas convictos se sentem horrorizados com a possibilidade da existência do
terrível deus do Antigo Testamento; é comum ouvir deles a frase: “Não é nesse
deus que eu acredito”. Não importa em qual deus você acredita; se você acredita
em um deus criador do universo, onipotente, onisciente, onipresente, bom e
justo, eu o chamo teísta.

Exceto em começo de frases, claro, utilizo a palavra deus grafada com letras
minúsculas e essa foi uma decisão que demorei muito a tomar. Quando fiz meu
TCC, o professor orientador disse que a grafia deveria ser com inicial maiúscula
porque mesmo não acreditando em sua existência eu estava usando o nome de
uma entidade, mas aqui não estou falando exatamente o nome de uma entidade
(e não estava também no TCC) estou falando de uma ideia, ou do “fator deus”
como disse Saramago2, uma ideia que provoca sentimentos e ações variados nas
pessoas, uma ideia que, na maioria das vezes não equivale apenas a um conceito
mas a três, ou mais. Portanto, concluí que a grafia respeitosa usada nas
referências ao deus bíblico pelos que nele acreditam não seria a mais adequada.
2 “Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo
que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o
senhor dela”. - SARAMAGO, J. O fator Deus, texto publicado no jornal Folha de São Paulo, em
19/09/2001 Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29519.shtml. Acesso em: 13
dez. 2010.

Muitas pessoas, cultas e não cultas, são contra qualquer debate, conversa ou
tentativa de argumentação sobre o assunto religião, alegam que “religião não se
discute”, dizem que não vale a pena falar sobre isso porque não chegaremos a
nenhuma conclusão, dizem que o tema é demasiado complexo para ser analisado
pela mente humana e, além disso, juram que é mais do que sabido por todos que
não é possível provar a existência ou a inexistência de Deus. Mas, apesar de
todas as discordâncias e certezas, resolvi não só tocar no assunto como também
tentar mostrar que se pode sim provar a inexistência de deus.

Não pretendo desrespeitar a fé de ninguém, apenas discutir a lógica e o sentido


dessa fé, olhar para ela sem tê-la como verdade absoluta e intocável; e mais,
pretendo, sempre que necessário, questionar a fé, questionar a religião e seus
preceitos, questionar suas verdades e seus dogmas3. Não faço isso para ofender,
apenas para apontar as incoerências que percebo, para mostrar as minhas
dúvidas, para expor meus pensamentos e sentimentos; para conseguir, talvez,
que algum teísta me dê uma explicação que faça sentido.

Muitas vezes a discordância religiosa, para não dizer intolerância, acaba por
produzir eventos desagradáveis e expor comportamentos antiéticos. São muitos
os casos a se
3 Não seria ridículo alguém que tentasse rejeitar a explicação de Newton para o maravilhoso fenômeno do
arco-íris alegando que essa explicação faz uma análise minuciosa dos raios de luz, um assunto, na verdade,
demasiado refinado para a compreensão humana? E o que diria alguém que, nada tendo de particular a
objetar aos argumentos de Copérnico e de Galileu a favor do movimento da terra, suspendeu o seu juízo em
virtude do princípio geral segundo o qual esses assuntos são demasiado grandiosos e remotos para serem
explicados pela estreita e falaciosa razão dos seres humanos? (HUME, D. Obras Sobre Religião 2005, p.
14-15)

lamentar: manifestações populares marcadas pela violência a propósito de


qualquer lei de um estado laico que venha a contrariar preceitos e dogmas
religiosos são comuns; as depredações a clínicas que fazem aborto e até o
assassinatos de médicos chegaram a ser notícia várias vezes nos países em que o
aborto não é criminalizado; menos conhecidas mas igualmente recorrentes são as
proibições de palestras e as agressões a filósofos e cientistas de pensamentos
mais liberais, e portanto mais polêmicos.

Essas intolerâncias e tentativas de tornar lei o que é apenas preceito religioso


têm também, e infelizmente, o potencial de causar sérios entraves a avanços
significativos no campo da ciência; e causam até mesmo sérios atrasos e
proibições absurdas – que em muitos casos custam vidas
– às descobertas científicas que trazem melhorias para a saúde e qualidade de
vida das pessoas. Isso sem contar os diversos casos de preconceito e
discriminação perpetrados e incentivados pelo excessivo apego religioso.

Como exemplos – não únicos – de problemas graves causados pela intolerância


religiosa para pensadores e cientistas, posso citar os casos de Baruch de
Espinosa, excomungado e amaldiçoado pelo cristianismo e pelo judaísmo por
ousar defender um deus-natureza que não seguia as descrições estipuladas pelos
líderes da igreja e da sinagoga; e Hipátia, filósofa e estudiosa que foi torturada e
assassinada pelo crime de ser mulher, culta, inteligente e não cristã.

Um caso menos antigo é o de Bertrand Russell4, que, nos anos 40, foi vítima de
uma série de críticas, ameaças e calúnias com o objetivo (alcançado) de impedi-
lo de lecionar na faculdade municipal de Nova York e, como caso mais
4 Apêndice: Como Bertrand Russell foi impedido de lecionar na faculdade municipal de Nova York. In:
RUSSELL, B. Por que não sou cristão, 2009. p. 176

recente, o filósofo Peter Singer5, cujos comportamento e discurso éticos não


combinam com a tarja de nazista que lhe deram. Singer é um pensador obrigado
a enfrentar a fúria de grupos religiosos que o atacam por sua postura não radical
diante dos temas da eutanásia e do aborto.

Penso que discutir o assunto é sempre uma maneira de colaborar para que os
radicalismos sejam minimizados. Argumentos lógicos podem não levar ninguém
a se tornar ateu – e nem é isso que pretendo – mas existe a chance de que eles
consigam ajudar as pessoas a compreenderem que não temos obrigação de
aceitar suas verdades como leis.

É possível que falar sobre o assunto como estou falando ajude as pessoas a
deixarem de pensar que somos vilões. Talvez elas não fechem os olhos com tanta
força quando compreenderem melhor os motivos da nossa descrença; e,
principalmente, pode ser que elas não se deixem tentar pelo desejo de levar sua
religiosidade a extremos. Essa sim, além do puro, simples e humano desabafo, é
minha intenção.

Devo esclarecer logo de início para que ninguém use esse argumento para dizer
que sou no final das contas uma teísta, como muitas vezes tentam fazer, que
quando falo em deus como afirmação em expressões do tipo “deus criou”, “deus
quis”, “deus é”, estou sempre – sempre mesmo! – me referindo a deus da forma
que os teístas o veem e da forma que descrevem suas ações, ficaria muito
cansativo se em todos os momentos eu tivesse que escrever “se existisse” ou “de
acordo com o que dizem os teístas”. Faço essa ressalva em muitos momentos,
mas não em todos; por favor, que
5 [Peter Singer] Dá aulas com a polícia à porta, para os manifestantes não o impedirem de leccionar. É
acusado de ser Nazi, mas é na verdade um filósofo de esquerda, que luta incansavelmente em prol da
liberdade e da igualdade. Foi impedido de falar na Alemanha e na Áustria. É autor de uma vasta bibliografia
filosófica na área da ética aplicada.ǁ (Disponível em:
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/11/10768. shtml. Acesso em: 12 abr. 2011)

ninguém pegue uma dessas omissões para dizer absurdos como “você mesma
disse que deus existe quando...”.

Peço desculpas antecipadas por me tornar muito repetitiva em vários momentos,


mas não pude evitar (e confesso que nem tentei muito) porque muitas vezes um
argumento, um fato, um exemplo acabam servindo em mais de um caso, em
mais de uma situação e em mais de um ponto sobre o qual se analisa e se discute
o tema em questão. Além disso, sem querer de forma alguma ofender a
inteligência de quem porventura me leia, sinto a necessidade de ser o mais clara
possível para que meus argumentos e minhas palavras não soem ou não pareçam
diferentes do que eu quis que parecessem.

O receio de não ser clara o suficiente, o receio de não saber me explicar de


forma a não deixar margem a uma interpretação que ofenda as pessoas, o receio
de que eu não consiga me fazer entender, o receio de que a pessoa leia um
argumento importante e não o leve em consideração ou o esqueça
completamente antes de discordar, muitas vezes a ponto de me mandar para o
inferno ou querer de moto próprio me levar para lá é o que me faz detalhar mais
de uma vez e o mais possível meus argumentos, repetindo e frisando a origem
desses argumentos. Prefiro ser repetitiva a ser hermética.

E por último: Sim, eu uso referências da Wikipédia! Esse livro é uma exposição
de ideias e não um tratado científico, a Wikipédia é a enciclopédia mais à mão
para qualquer pessoa que use computador. Se você quiser aprofundar mais o
assunto ou confirmar os dados fornecidos, faça como eu quando me encontro
nessa situação: procure outras fontes.

QUEM É DEUS? DE QUE DEUS EU FALO?

I
É
comum, diante de quaisquer textos com questionamentos que ousem ir contra
religiões, religião ou deus, pessoas comentarem esses textos perguntando a que
deus o autor do texto se refere; alguns perguntam: “Você está falando de Zeus,
de Odin ou de Rá?”. Claro que quem faz essa pergunta quase nunca é um
religioso fanático, embora muitas vezes seja um daqueles que são ou se acham
muito cultos e por isso pensam que será muito fácil convencer essa ateia aqui de
que o deus deles é muito diferente dos acima citados.

Os teístas mais suaves e tolerantes me informam de que mesmo que eu não


acredite em deus ele acredita em mim, e afirmam ainda que deus (ou Jesus) me
ama. Outros, entre o fanatismo e a tolerância, afirmam que sou uma infeliz, sem
amor, frustrada e egoísta, e dizem que odeio deus porque sofri alguma grande
perda e, por ser fraca e egoísta, culpei deus por isso; juram que um dia vou
“receber uma graça”, enxergar a verdade e me arrepender de tudo o que digo. Já
os mais fanáticos lamentam minha ignorância, me ofendem com palavrões e
“convites” não muito aceitáveis e, invariavelmente, me ameaçam com o fogo
eterno; às vezes acrescentam que eles estarão, no paraíso e envoltos em delícias,
me vendo queimar e rindo do meu sofrimento, que será, segundo alguns, um
motivo a mais para o seu deleite.

Quanto aos primeiros não tenho como não achar divertida essa ingenuidade
contraditória – eles afirmam sempre que ninguém pode saber nada sobre deus,
mas sabem que ele me ama e que acredita em mim; quanto ao segundo grupo
não entendo como podem tirar tantas conclusões erradas sobre mim e sobre a
minha vida com tanta convicção; e quanto aos últimos fico impressionada com a
“piedade” deles e do seu deus-todo-bondade.

Os que me perguntam sobre que deus eu falo em alguns casos comentam a


existência de vários deuses, citam deuses de várias religiões, relacionam vários
conceitos ligados a cultos, mitologias e cerimônias do passado e do presente de
várias culturas e de vários povos ao longo da nossa história. São informações
válidas, interessantes e muitas vezes trazem novidades que são bastante úteis.
Mas basicamente todo ateu sabe que existem e existiram muitos deuses na
história da humanidade e eu também sei, não poderia deixar de sabê-lo sendo
essa apaixonada por mitologia que fui desde criança, uma paixão que me levou a
roubar do meu pai – nota a nota, moeda a moeda em malabarismos de aventuras
e mentirinhas bem elaboradas – o dinheiro para completar a coleção Mitologia,
publicada em fascículos nos anos 70, que li diversas vezes e que ainda hoje
tenho, amarelada e envelhecida, em minha estante.

Também sou apaixonada por literatura e tenho muito interesse por história,
inclusive história das religiões. Além disso, eu e muitos ateus também nos
interessamos por livros e filmes de ficção científica, do tipo Isaac Asimov e Star
Trek, portanto, alguns de nós temos conhecimento até mesmo de algumas
projeções de deuses para o futuro, projeções que, diga-se de passagem, pelo
menos pelo que vi até agora – e vi muito – não conseguem ser muito diferentes
dos deuses de que temos notícias lendo história e atualidades.

Tudo bem que ninguém é obrigado a saber disso tudo a meu respeito apenas
lendo um texto crítico de cunho religioso, mas um dos meus argumentos básicos
sobre o ateísmo é que ser ateu não é uma ação, uma escolha, um desejo ou uma
opção de vida; em geral não escolhemos o ateísmo como quem escolhe uma
roupa para sair à noite. Ser ateu é antes de tudo uma reação, portanto, se um ateu
tem que explicar de qual deus afinal está falando quando afirma que deus não
existe e que as religiões são coleções bem guardadas de absurdos, o ateu, de
qualquer lugar do mundo e de qualquer cultura, país oucomunidade – caso lhe
seja permitido ser ateu sem que por isso seja punido severamente ou até mesmo
morto – dirá ao religioso que fala de todo e qualquer deus, mas que fala
especialmente de um deus. E qual seria esse deus? Respondo por mim e acho
que por todos os ateus: De que deus eu falo? Ora, gente, falo do deus de que me
falam!

No meu caso específico falo principalmente do deus judaico-cristão, isso porque


vivo em uma cultura predominantemente católica e predominantemente cristã e,
portanto, é do deus judaico-cristão que estiveram me falando desde minha mais
tenra infância e é da existência dele que sempre tentaram, e ainda tentam, me
convencer. Se tivesse nascido na Arábia, no Iraque, no Egito ou em qualquer
outro país muçulmano, e se porventura pudesse fazê-lo sem correr o risco de ser
assassinada, estaria falando de Alá; e se tivesse nascido judia, estaria falando do
deus judeu, aquele que está na torá e no talmude e que é o mesmo deus dos
cristãos, e também o mesmo deus dos muçulmanos, no fim das contas.

Esse é o deus, ou esses são os deuses, cuja existência os teístas tentam afirmar a
qualquer custo e que, em alguns casos muito infelizes, tentam – e às vezes
conseguem – impor pela força e a custa de muito sofrimento e muitas mortes. É
também o deus, ou são os deuses, que os ateus mais radicais tentam negar com
veemência, quando podem fazê-lo sem perder a vida.

Dizem – principalmente os teístas que aceitam debater com ateus – que a história
mostra que ateus fanáticos podem impor sua não crença com atos de violência
tão danosos quanto têm sido os crimes praticados pela intolerância religiosa.
Fico sempre muito reticente quanto a isso porque os exemplos que dão não me
parecem ser de imposição do ateísmo pura e simplesmente, mas sim de
imposição de mais um sistema de governo autoritário e ditatorial que, nesses
casos, incluem a proibição de todas as religiões; da mesma forma que outros
casos de outros sistemas de governos autoritários incluem a proibição de todas as
religiões exceto uma, aquela que esse ditador usa como justificativa para suas
práticas.

Quero crer que não estou me comportando como uma ateia radical,
principalmente porque tento não ser intolerante e jamais aceitaria participar de
qualquer tipo de ação que pudesse ser sequer parecida com uma imposição de
crença, de falta de crença ou mesmo da imposição de uma determinada postura,
com respeito à religião, à ausência de religião ou a qualquer outro assunto. Na
verdade, mesmo os ateus mais radicais, pelo menos até onde eu vi, não tentam
impor sua não crença a força como fazem os religiosos fundamentalistas, em
geral toda a violência do radicalismo ateu se resume a duvidar, ironizar e negar,
algumas vezes de forma equivocada e até muito desrespeitosa, a inteligência de
todas as pessoas que acreditam em deus.

Concordo que essas não são atitudes muito pacíficas e educadas, concordo que
os teístas menos radicais e até mesmo os próprios ateus mais moderados não
deixam de ter uma certa razão quando protestam contra esse “radicalismo ateu”,
mas o fato é que os ateus não tentam usar força física para obrigar ninguém a
deixar de acreditar. Eu nunca vi radicalismo ateu que fosse além de palavras, em
geral escritas.

Então, como disse, procuro não ser e nem parecer uma ateia radical, embora
minhas experiências tenham mostrado que para muitos religiosos –
principalmente os mais fundamentalistas – apenas dizer-se ateu já é radicalismo
suficiente. E não, eles não percebem a contradição.

Vejo-me apenas como uma pessoa que não compreende o que afirmam ser a
“verdade”, uma pessoa que pensa muito a respeito do que ouve e lê, uma pessoa
que, à força deteimar em pensar sem as travas da fé, tira conclusões diferentes do
que comumente percebe na maioria das outras pessoas. Sou alguém que sempre
que pode coloca suas questões, fala sobre seus pensamentos e revela suas
conclusões; mesmo correndo o risco de irritar muita gente.

O deus defendido pelo teísta e negado por mim é, em geral, definido – pelo
teísta, é claro – como um tipo de entidade suprema além e acima da matéria. Ele
é o Criador do mundo6, do universo, da natureza, do homem. Ele é o criador de
tudo que, curiosamente, não criou o mal; ou não é responsável pela existência do
mal mesmo que o tenha criado.

Esse argumento não convence quem não tem o privilégio de ter a inabalável fé
de um teísta porque, se usamos apenas a lógica em lugar de apenas a fé e o
medo, podemos ver que não é possível livrar a responsabilidade de deus pelo
mal e pela existência do mal. A verdade racional é que só ateus
6 “Só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os
mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”. In:
Neemias 9:6.

podem afirmar que deus não criou o mal, já que para o ateu deus não existe e o
que não existe não cria nada. Os teístas, por mais que pensem o contrário, não
podem dizer isso sem estarem quebrando uma lógica mais do que perceptível; e
contrariando a bíblia, claro.7

Enfim, deus é o criador transcendente basicamente dotado de cinco


características que lhe são próprias e essenciais: justiça, bondade, onipotência,
onisciência e onipresença. Da mesma forma que quando definimos um quadrado
como sendo uma figura geométrica com quatro lados de mesmo comprimento e
quatro ângulos retos estamos automaticamente dizendo que qualquer coisa que
não seja uma figura geométrica, que não tenha quatro lados iguais e que não
tenha quatro ângulos retos não será um quadrado, quando definem deus como
sendo o criador justo e bom, onipotente, onisciente e onipresente, estão
automaticamente dizendo que qualquer ser, existente ou não, que não tenha essas
características – sejam algumas delas ou mesmo uma única – não será O deus.

Podemos, por exemplo, falar de outras figuras geométricas, mas se não tiverem
quatro lados iguais e quatro ângulos retos, elas não serão quadrados, da mesma
forma podemos falar de um deus que não tenha uma, ou mais de uma, das
características que os teístas usam para definir seu deus, esse ser assim, digamos,
incompleto pode até ser um deus – como os da mitologia greco-romana – mas
não será o deus de que me falam.

Nunca bateram à minha porta para trazer a palavra de um deus que criou uma
parte do universo; nunca armaram aparelhos de som na praça aqui do lado de
casa para gritar e louvar um deus poderoso mas não muito; nunca entraram em
7 “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas”. In: Isaías
45:7

um ônibus em que eu estivesse para dizer que preciso amar e respeitar um deus
que é bonzinho só de vez em quando; que eu saiba ninguém vai à igreja para
rezar ou orar a um deus que pensa que pode não estar lá; eu nunca soube de
alguém que estivesse pedindo uma graça a um deus achando que ele pode não
saber como fazer esse milagre; e finalmente, nunca ouvi algum religioso dizer
que devemos ser bons porque uma vez ou outra deus é justo.

Enfim, odeus de que me falam tem todas as características que o definem, todas
juntas e todas em grau máximo, não falta nenhuma, nenhuma é menos do que o
máximo. Um deus que não seja assim será outro deus; será um personagem
mitológico, será uma fantasia, será parte do folclore de um povo, será, como
gostam de dizer os evangélicos, um falso deus.

O pintor belga René Magritte tem um quadro famoso que nos mostra um
desenho muito realista de um cachimbo e sob ele a inscrição “Ceci n’est pas une
pipe” – isso não é um cachimbo – alguém que veja o quadro pela primeira vez
pode estranhar, afinal, aos olhos de qualquer um, o objeto representado ali é sim
um cachimbo. Quando disseram a Magritte que o que ele fez foi sim um
cachimbo, ele respondeu: “OK, você deve tentar enchê-lo de tabaco então”.

Se alguém me mostrar um dado colorido, piramidal, daqueles usados para jogar


RPG e me disser que é um quadrado porque é uma figura geométrica que tem
lados e ângulos, não poderei aceitar o argumento. Da mesma forma que a pintura
de Magritte apresenta alguns aspectos de um cachimbo mas não o suficiente para
SER um cachimbo, um dado de RPG piramidal apresenta algumas características
de um quadrado mas não o suficiente para SER um quadrado.

É mais ou menos isso que acontece quando tentam me dizer que não é possível
provar a inexistência de deus. Se estivessem tentando me convencer da
existência de um deus que não criou tudo, apenas algumas coisas; que não é
onipotente, apenas muito poderoso; que não é onisciente, apenas conhece muita
coisa; que não é onipresente, apenas passeia muito e, se você der sorte, ele pode
estar por perto quando você precisar; aí então eu precisaria de outros argumentos
para explicar por que não acredito nele.

Mas se o seu deus é o criador único de tudo que existe, se é onipotente,


onipresente, onisciente, onibenevolente e justo então o fato mais do que
comprovável logicamente é que esse deus não existe. E essa é a minha tese
principal: não é verdade que não se pode provar a inexistência de deus, SE
estivermos falando do deus das religiões monoteístas que predominam no
mundo, do deus cuja existência é e foi defendida historicamente por muitos
filósofos, cientistas e gênios nas mais diversas áreas do conhecimento, então sua
inexistência pode ser provada sim.

Dizer que não se pode provar a inexistência não é uma verdade completa. Você
pode provar a não existência de um triângulo quadrado definindo essas figuras
geométricas e dessa forma mostrando que elas são logicamente excludentes e
que a existência de um triângulo quadrado é uma impossibilidade lógica.
Alguém que insistisse em afirmar que existe um triângulo quadrado estaria
sendo irracional.

A simples definição do que é um quadrado exclui a possibilidade de que um


triângulo seja quadrado ou um quadrado seja triangular, a inexistência dessas
figuras paradoxais está provada pela definição de cada uma das figuras
geométricas independentemente do que alguém possa dizer em favor delas. É
claro que não existem pessoas afirmando a existência do triângulo quadrado e
ninguém nega que, caso uma criança me perguntasse se isso existe, eu não
estaria faltando com a verdade se dissesse que não.

Outro exemplo: Digamos que vou à sua casa e digo que você deve se mudar
imediatamente porque eu sou a nova proprietária e tenho um documento que
prova isso. Você vai querer ver esse documento e quando eu disser que o
documento é invisível e imaterial você pensará que estou louca ou que estou
brincando com você. Documentos de propriedade são textos escritos em papel,
reconhecidos em cartório e assinados por pessoas em determinadas funções e
com determinada autoridade. Qualquer coisa diferente disso não poderá ser um
documento de propriedade e não terá valor como tal.
Se eu digo que o meu documento de propriedade foi escrito com uma luz mágica
em uma nuvem invisível e que foi assinado pelo extraterrestre que é o
proprietário original do planeta, você pode até suspender o julgamento sobre o
extraterrestre, mas não vai aceitar que qualquer coisa que ele escreva seja um
documento de propriedade válido.

Qualquer coisa que eu apresente e que não seja um papel, um papel de celulose,
palpável e visível, registrado e assinado pelos órgãos e pessoas competentes
simplesmente não será um documento de propriedade válido e não terá o poder
de fazer com que você abandone sua casa legalmente. Você e qualquer pessoa
dirá que não existem documentos de propriedade escritos com luz mágica em
nuvens invisíveis porque documento de propriedade é definido como papel,
reconhecido em cartório e assinado por pessoas em determinadas funções e com
determinada autoridade. Você poderá recorrer ao dicionário e com isso provará
que esse documento não existe e que eu não posso tirá-lo de sua casa.

Portanto, você pode sim provar a inexistência de algo se o algo que for
apresentado como sendo aquele ser ou aquela coisa não corresponder às
definições do que seja esse algo. Se uma determinada coisa não possuir as
características que definem determinado ser, essa coisa – existindo ou não – não
poderá ser aceita como sendo o ser cujas características não possui; ou seja, não
existirá como o ser cujas características não possui.

Tentando ser ainda mais clara: se zulix é definido como um objeto octogonal
macio e sonoro fabricado pela brinkedix, qualquer coisa que me apresentem e
que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix
não será um zulix porque não existe “zulix” octogonal macio e sonoro fabricado
pela brinkedix que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado
pela brinkedix.

Mesmo que eu não possa provar que o objeto que me foi apresentado como
sendo um “zulix” não existe porque podem ter mostrado apenas uma foto ou
filme, eu posso provar que “AQUELE zulix” que me apresentaram, porque não é
octogonal macio e sonoro e não foi fabricado pela brinkedix não existe, aquele
zulix não existe porque não existe zulix que não seja octogonal macio e sonoro e
que não seja fabricado pela brinkedix uma vez que a definição de zulix é “um
objeto octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix”.

O tal objeto apresentado pode existir ou não, mas não será um zulix, não existirá
como zulix. E se eu souber que não existe nenhum objeto com a definição que
foi dada para definir um zulix, por exemplo, porque a brinkedix nunca fabricou
um objeto octogonal macio e sonoro então posso concluir – e provar – que zulix
não existem. Pronto! Apresentei provas de inexistência!

O problema é que, lendo alguns filósofos com suas teodiceias e ouvindo alguns
teístas com seus argumentos de fé, acabei por perceber que, para os que não
abrem mão de acreditar e de tentar convencer, vale até mesmo tirar ou
enfraquecer algumas das características básicas de deus; desde que isso não
fique muito óbvio para o ouvinte ou leitor comum. É como dizer que um zulix
octogonal macio e sonoro é um quadrado duro e silencioso; ou só levemente
octogonal, um pouco macio e de vez em quando silencioso.

Debati com um teísta que, durante a conversa e para não abrir mão da sua
verdade, tirou não uma ou outra mas todas
ascaracterísticasdefinidorasdodeusqueestavadefendendo. Esse teísta me disse
que quando deus surgiu o universo já existia e já estava povoado por outros
seres, portanto deus não pode ser culpado pela criação de nada; disse que deus é
o Tudo e o Nada e que isso significa que deus pode ser bom oumau, justo ou
injusto; disse que deus é onipotente mas não pode tudo “só porque você quer que
ele faça isso”; disse que deus é onisciente mas só sabe das coisas depois que elas
acontecem ou, nas palavras dele “depois que algo tem início”. Por essas
características todas (ou falta delas), defendia ele, deus não é culpado por
absolutamente nada do que acontece ou tenha acontecido, nós sim, por o termos
desobedecido, somos culpados por tudo.

Esse teísta ficou tremendamente ofendido quando eu disse que ele estava me
descrevendo um deus bipolar e inútil e argumentou que deus não existe só para
ser útil “como um kit da Kodak”. Ah, e ele usava a bíblia para cada uma de suas
afirmações; mais uma prova de que a bíblia pode ser usada para justificar
qualquer coisa. Fiquei pensando como pode a necessidade de acreditar levar a
tão completa incoerência. Depois disso fica até possível compreender o fato de
os outros teístas não conseguirem perceber a incoerência do deus em que creem.
Talvez.

Então fico pensando que, no final das contas, as pessoas chamam de deus
simplesmente tudo aquilo que querem acreditar que existe e que interfere na vida
delas, se importa com elas; querem chamar de deus aquele ser que ama, conhece,
aceita e compreende incondicionalmente a maneira como elas são e se
comportam, e que as perdoa quando erram. Elas chamam deus a elas mesmas!!

II

Todos os que acreditam em deus, independente de serem adeptos de uma religião


ou não, falam de um deus que tem como uma de suas características essenciais o
fato de ser o criador “incriado” do mundo. Segundo os teístas, deus criou tudo,
absolutamente tudo o que existe nesse mundo, a partir do nada, ou de si mesmo.
Ainda segundo eles, ninguém além de deus tem o poder de criar. Nenhum outro
ser, e menos ainda o ser humano, pode reivindicar para si a criação de qualquer
coisa, a não ser que essa seja uma criação a partir de algo anteriormente criado
por deus; como um artista que cria sua obra a partir de materiais, tinta e tela,
argila ou mármore, que já existiam porque, segundo os teístas, foram criados por
deus.

Assim sendo, deus é definido como o criador onipotente, onisciente, onipresente,


bom e justo. Essa é sua essência, essa é sua real definição no conceito dos que
nele creem. Aliás, pensando um pouco melhor nessas três características
– “oni”potência, “oni”(s)ciência, “oni”presença – percebo que os três “onis”
poderiam ser reduzidos a um só, afinal, os dois últimos “onis” (ciência e
presença) deveriam estar contidos no primeiro.

Veja bem: não dá para ser onipotente sem saber tudo e não dá para saber tudo
sem estar de alguma forma em todos os lugares; daí que bastaria definir deus
como o criador onipotente que é todo bondade, isso porque bondade e justiça
também são características que podem ser reduzidas a uma única, afinal, não
parece possível ser bom sem ser justo. Então, seguindo o que dizem os teístas e
respondendo a pergunta do título desse capítulo, posso dizer que falo do deus
criador, onipotente e bom cuja existência eles, os teístas, muitas vezes vêm à
minha porta afirmar.

Será mesmo possível que exista esse ser tão poderoso e perfeito e, ainda assim,
exista esse mundo da maneira que esse mundo é e com todos os horrores que
esse mundo contém apesar das maravilhas tão insistentemente mostradas como
prova dessa existência que não consigo perceber? Na minha visão essa
coexistência – deus e este mundo – é tão impossível quanto a existência de um
quadrado triangular; ou, talvez, ainda mais impossível.

Como não podemos duvidar da existência desse mundo com muita facilidade
porque estamos nele e somos parte dele, como não podemos com muita
facilidade duvidar da existência de todos os horrores porque somos testemunhas
e muitas vezes vítimas diretas ou indiretas de tantas e tantas catástrofes
inexplicáveis, parece bem mais lógico duvidar da existência de deus.

Para evitar que seu raciocínio aceite essa lógica e para continuar acreditando, os
teístas costumam se obrigar a dizer e acreditar também que “Deus nos deu a dor
e o sofrimento apenas para que a gente aprenda, e deixa que a gente sofra apenas
porque nos ama, como um pai que deixa seu filho caminhar por conta própria
mesmo sabendo que ele vai levar alguns tombos antes de conseguir andar”. Perdi
a conta de quantas vezes usaram esse argumento comigo.

Quando meu filho começou a andar, eu tinha o maior prazer em estar com meus
braços sempre a seu alcance para que ele tivesse onde se apoiar até ter mais
firmeza. Eu, a mãe humana e imperfeita, colocava meu filho para ensaiar seus
primeiros passos apenas sobre o tapete ou na grama do parque porque assim ele
só cairia em lugar onde a chance de se machucar fosse mínima e eu nunca, nunca
mesmo, em hipótese alguma, castigava meu filho pelas quedas que levava nesses
ensaios de andar.

Nenhuma vez me ocorreu, e nunca deve ter ocorrido a nenhuma mãeou pai, a
ideia de soltar meu filho para aprender a andar no meio de uma avenida
movimentada ou na jaula de um tigre. O mundo em que vivemos é muito mais
perigoso do que uma avenida movimentada ou a jaula de um tigre e, no entanto,
foi nesse mundo que, de acordo com os teístas, fomos colocados por deus para
aprender.

Como é possível que eu, uma mulher comum e limitada cheia de erros, falhas e
imperfeições, tenha sido sempre muito mais decentes com meu filho como mãe
do que deus é com o ser humano de quem dizem que ele também é pai?

III

Há muitas pessoas que nãopertencem a nenhuma religião institucionalizada, ou


que pertencem mas se definem como
“nãopraticante”;essaspessoasfrequentementeafirmamque acreditam em deus,
mas ressaltam: “O meu deus é diferente”. Nem sei dizer quantas vezes já ouvi
essa frase!

Só que quando elas explicam esse seu deus “diferente”, o que percebo é que na
verdade ele não parece ser tão diferente assim do deus que os que seguem e
praticam uma religião definem como sendo o deus dessa religião. Esse deus
“diferente” é o criador de tudo o que existe, é onipotente, é bom e, em geral, é
uma “presença” que aquela pessoa diz que pode sentir.

O que fica bem claro para mim é que essas pessoas são lúcidas demais para
acreditar no terrível deus bíblico, mas por alguma razão não têm forças para
concluir que não existe deus nenhum, então elas “tiram” todas as características
de ditador sádico, incoerente e megalomaníaco que sua capacidade de bondade e
sua ética não puderam deixar de perceber no deus bíblico e “fabricam” um deus
especial, mais “light” que não assusta, não horroriza e não enoja como o deus
bíblico faz a qualquer pessoa que consiga ler a bíblia sem a venda da fé cega.

Ou seja, a diferença se resume basicamente na crença de que esse deus


“diferente” éum deus “pessoal e intransferível” como um cartão bancário; é deus
apenas dessa pessoa e embora eventualmente interfira na vida dos que estão
próximos a essa pessoa, sempre o faz a pedido dela ou para a felicidade dela.
Um deus pessoal e único, que só atende uma pessoa. Eu tive um deus desses
durante muitos anos, antes de conseguir reunir coragem para pensar melhor no
meu deus “diferente” quando olhava para os lados.

Esse deus cartão bancário só tem a capacidade de atender às necessidades de crer


dessas pessoas porque depois de criá-lo, elas em geral suspendem qualquer
pensamento crítico mais profundo a respeito dele – o que não é tão difícil, afinal,
ele não é o deus tão obviamente terrível no qual “os outros” acreditam. Mas, na
verdade, se pensassem melhor a lógica do deus que criaram, essas pessoas
veriam que esse seu “deus diferente”, por mais confortável que seja, é um
contrassenso total porque criou a humanidade toda mas, na prática, está a serviço
de uma única pessoa.

Em resumo o que acontece é que a pessoa que diz acreditar nesse deus
“diferente” não se dá conta de queo que fez foi pegar as características que lhe
agradam do deus de todos os teístas, muitas vezes acrescentando características
de deuses diferentes do deus bíblico, como os deuses hindus, por exemplo,
efabricar com elas o seu deus pessoal. A pessoa usou a imaginação e
transformou deus em seu “bichinho poderoso de estimação”.

Muitas dessas pessoas afirmam, inclusive, que não rezam nem oram como “os
religiosos” fazem, mas que “conversam” com deus. E por que não o fariam?
Deus não é, no fim das contas, apenas o ser que está à disposição dessa pessoa e
de mais ninguém? Não é sem razão que vemos deus ser comparado – pelos ateus
– ao amigo imaginário que muitas crianças têm, a semelhança é muito óbvia para
que não se faça tal comparação; deus seria então um amigo imaginário do adulto.

Então, ouvindo as explicações e justificativas de todos aqueles que me dizem


que “meu deus é diferente”, pensando sobre essas explicações e definições e
lembrando minha própria experiência, não consigo perceber uma diferença real e
fundamental que seja suficiente para separar esse “deus diferente” dos outros
deuses de que me falam. Portanto, a possibilidade de existência desse deus
“único-porque-é-sómeu” me parece tão nula quanto a possibilidade de existência
de qualquer outro deus.

IV

Segundo os teístas deus é bom8, é a própria bondade, uma bondade tão completa
e tão perfeita que está acima da compreensão humana. Mas, estranhamente,
parece que não é sempre que essa bondade está mesmo acima dos padrões e
conceitos humanos. Isso porque, mostrando que compreende claramente a tal
“bondade divina”, é coisa das mais comuns que um teísta atribua à bondade de
deus toda e qualquer coisa boa que lhe aconteça. É por causa dessas coisas boas
– às vezes as mais banais possíveis – que eles estão sempre agradecendo, ou
dando graças, a deus.

Embora no cotidiano todo teísta mostre, com suas orações e agradecimentos, que
a bondade que vê em deus é perfeitamente compreensível dentro dos padrões
humanos, se um ateu atrevido ousa expor sua visão sobre o paradoxo de um deus
bom que cria, mantém e promove o mal, o teísta contestará e tentará mostrar,
contra todas as evidências, que não há paradoxo, que deus não criou e/ou não é
responsável pelo mal porque o mal é apenas o resultado das ações dos homens,
porque o mal é resultado da influência do diabo ou então porque o mal
simplesmente não existe e é apenas a ausência do bem.

E se não conseguir convencer com esses argumentos, como em geral não


consegue, esse teísta dirá que a bondade de deus não é compreensível para os
seres humanos. Até o momento em que precisou desse argumento, o teísta
compreendeu bem a bondade de deus, mas quando precisou disso como um
argumento contra o ateu herege e atrevido, essa bondade passou a ser
incompreensível. E eles não veem nenhuma contradição aqui.
8 “Ninguém é bom, senão um, que é Deus”. In: Lucas 18:19.

O deus do teísta é tão bom que é quase sempre definido como o próprio e o
máximo Bem. E como o Bem, para que seja Bem, é perfeito e justo, então deus é
a própria Perfeição e a própria Justiça. Como e por que a perfeição pode precisar
da adoração, dos louvores e das orações dos seres humanos, isso eu não entendo.

Já li em muitos lugares – e concordo – que a ideia da total perfeição não faz


sentido se não estiver associada à ideia da total falta de necessidades, desejos e
vontades. Ter vontade é desejar ou precisar de algo que falta. Aquilo a que falta
algo é um algo incompleto e, consequentemente, imperfeito. Acho que ser
perfeito implicaria obrigatoriamente em não precisar de nada, em não desejar
nada, em não querer nada, em não exigir nada.

Não é assim o deus que os teístas descrevem se ele precisou nos criar, se precisa
das nossas orações, da nossa obediência e dos nossos louvores. Somos o que
faltava a deus antes da criação? Então deus não pode ser perfeito.

Alguns podem argumentar que deus não precisava nos criar, que não somos o
que faltava a ele porque, como perfeição, a ele nada faltava. Podem dizer, com
toda convicção, que ele nos criou não por uma imperfeição – que ele não tem –
mas por sua infinita bondade e pelo nosso bem. Sua bondade suprema e seu
amor extremado deram a nós e para nosso próprio benefício, a existência.

O problema é que dizer que a existência é um benefício é um argumento bastante


discutível. A existência, com todos os males que ela contém e com todas as dores
que implica, não parece, analisando fria e imparcialmente, ser algo que se
sobreponha com muita vantagem sobre o não existir, o não ter existido nunca, o
nada.

Se nos atrevermos a falar em “nós” não como eu e você, mas como todos os
seres vivos do planeta em todos os tempos. Se nos atrevermos a falar em “nós”
como todos os seres que vivem, que viveram e que viverão. Se nos atrevermos a
falar da Vida, assim, com letra maiúscula, como sendo a Vida ela mesma e não
apenas a minha vida ou a sua vida. Se nos abstrairmos de nós mesmos um
pouco. Se abandonarmos todo e qualquer egoísmo. Se deixarmos de olhar
“apenas para nossos próprios umbigos”. Se conseguirmos fazer esse exercício de
pensar no outro até as últimas consequências, me parece claro que, por mais que
eu seja feliz e que você seja feliz, o que concluiremos é que – como um todo
para todos – a vida não pode ser chamada de dádiva de amor e bondade de um
ser onipotente.

Será mesmo que para todos aqueles de nós que conseguirem deixar o egoísmo
natural e humano em segundo plano tempo suficiente para pensar nessa história
– a história de todos os seres vivos desde os primeiros organismos unicelulares,
até a última barata ou o último organismo unicelular que resistir à morte do Sol –
a nossa história individual e coletiva poderá mesmo ser percebida como dádiva
de amor e bondade de um ser onipotente?

No que me diz respeito afirmo que não. Acho que muitos daqueles dentre nós
que têm ou tiveram condições de conhecer um pouco que seja da nossa história
como vida no planeta, se não se cobrirem com o véu da fé cega ou do egoísmo
individualista, se depois de conhecer essa história conseguirem pensar nela mais
do que superficialmente e mais do que apenas como indivíduo ou apenas como
humanidade, por mais felizes que sejam em suas vidas pessoais, serão capazes
de se sentir doer diante dessa “dádiva” que chamam Vida.

Mas a maioria não se deixará “pegar” por esses pensamentos, afinal por que
pensar tão profundamente se isso fará doer? É tão mais simples aceitar que tudo
é maravilhoso porque estamos bem ou, se não estivermos tão bem assim,
acreditar que tem um ser poderoso que nos ama, cuida de nós e que fará com que
tudo fique bem logo.

Por que pensar em todos os outros seres vivos do planeta se eu e minha família
vamos muito bem, obrigado? Por que sentir dor pelo sofrimento de milhões de
seres humanos que nunca foram felizes um dia na vida se eu não os conheço, se
muitos deles estão em outros países e se muitos mais já morreram há séculos?

Melhor acreditar que logo ficarão bem ou que agora estão bem – se foram bons –
porque posso me forçar a crer que existe justiça depois da morte para compensar
as muitas vezes que injustiças acontecem diante de mim desmentindo minha
outra crença fácil de que todos colhemos apenas o que plantamos.

A comodidade de não pensar o sofrimento do outro distante no tempo e no


espaço é muito grande para que se abra mão dela assim à toa. A comodidade de
não pensar no sofrimento de seres que sequer são da nossa mesma espécie chega
a fazer com que pensar no sofrimento desses seres pareça absurdo.

Afinal, para que se preocupar com isso? Não consta que uma barata ou uma
lagartixa sofram por lembranças do passado e expectativa do futuro; até onde
sabemos apenas nós, humanos, e talvez um ou outro mamífero como o cachorro
e o macaco, podemos sofrer pelo passado; no caso dos cachorros e macacos é
melhor acreditar que sofrem mas esquecem logo; e provavelmente apenas nós,
humanos, podemos sofrer pelo futuro.

Mas, se pensarmos um pouco, veremos que a vida de seres não humanos


também pode doer em nós, afinal por que outro motivo existiriam os
vegetarianos? E quantas pessoas há que se entristecem ao lembrar-se de um gato
ou cachorro que morreu há décadas?

Eu não suporto ver aqueles programas de televisão sobre vida selvagem nos
quais aparecem animais caçando e comendo outros animais, muitas vezes
começando a refeição antes mesmo que a presa esteja morta. Não sei se é assim,
mas não acho mesmo que eu seja a única pessoa a não suportar a visão dessas
imagens.

Milhões de animais são mortos todos os dias sem que a imensa maioria das
pessoas leve seu pensamento a esse fato por um segundo que seja, não nos
damos ao trabalho de perguntar quantos deles sofrem, quantos sentem medo.
Somos assim. Mas, será que se pudesse opinar, um animal que, depois de uma
vida inteira de medo e fuga, terá parte de suas entranhas devorada enquanto se
debate no chão sob as garras de um predador dirá que a vida é um bem supremo
acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência?

E a dor pelo passado da humanidade pode ser sentida folheando um livro de


história ou ouvindo o relato da vovozinha sobre o antepassado que teve uma vida
sofrida. Será mesmo que todas as crianças que foram mortas pela fome ou pelas
inúmeras guerras que assolaram a humanidade ao longo de toda a nossa história,
se pudessem expressar sua opinião, diriam mesmo que a vida é um bem supremo
acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência?

Será que todos os pais e mães que viram seus filhos serem mortos ou levados
para uma vida inteira de escravidão, se pudessem opinar, diriam que a vida é um
bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência?

Será que cada uma das pessoas que viveram e morreram sob a ameaça da peste,
da inquisição, do nazismo, das invasões bárbaras e barbarizantes, das inúmeras
guerras pequenas e grandes, da escravidão e dos sacrifícios religiosos, se
pudessem opinar, diriam mesmo que a vida é um bem supremo acima de
qualquer coisa e em muito superior à não existência?

Nosso presente, individual e coletivo, dói em nós muitas vezes e por muitas
razões. Essa dor se manifesta na preocupação que muitos dos melhores de nós
têm com os outros seres humanos; essa dor é visível no nosso medo de doenças,
de catástrofes, de acidentes, da morte. Por essa preocupação e esses medos,
muitos de nós se organizam e se engajam no combate à violência, em campanhas
de saúde pública, em esforços comunitários que visam maiores cuidados com a
alimentação.

A dor está também na preocupação com outros seres vivos; e ela é muito visível
nas comoções coletivas pelo sofrimento dos animais quando são maltratados em
circos ou em captura e comércio ilegais, é visível na luta de muitas pessoas e
grupos de pessoas contra os desmatamentos, contra o confinamento de animais
para abate, contra o uso de animais em experiências de laboratório. Essa dor está
presente e manifesta em todo vegetariano. Será que todas essas pessoas – todas
mesmo! – se lhes fosse perguntado, diriam que a vida é um bem supremo acima
de qualquer coisa e em muito superior à não existência?

E nosso futuro, individual e coletivo, muitas vezes nos enche de apreensões,


preocupações e dores. Muitos se aplicam demasiadamente no trabalho e nos
estudos a fim de garantir para si e para sua família um futuro tranquilo, e muitos,
em nome dessa preocupação, se angustiam no medo do desemprego, da crise, de
uma doença.

Muitas das ações de grupos e ongs são motivadas por essa preocupação com o
futuro: os movimentos pela utilização racional da água, pelo desenvolvimento
sustentável, pelo reflorestamento; todos esses exemplos são resultados de uma
preocupação não exatamente com o futuro do planeta, como aparece escrito em
muitos cartazes e ouvimos em muitos discursos de ambientalistas, mas com o
futuro da vida no planeta, da nossa vida.

E se pensarmos, como propus acima, na Vida ela mesma como um todo, é


possível que muitos de nós, unindo passado, presente e futuro, sintamos também
as dores do primeiro e do último ser vivo do planeta. Se todos fizéssemos esse
exercício de não egoísmo será que poderíamos mesmo dizer em uníssono que a
vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não
existência?
A não existência não é a mesma coisa que a morte, porque a morte em geral nos
apavora. Somos animais, o instinto de sobrevivência é parte integrante e
constituinte de nossa essência e o medo da morte está em nossa genética e foi o
que nos trouxe até aqui. Não teríamos sobrevivido como espécie se não
preservássemos a própria vida; se não tivéssemos medo da morte. O deixar de
existir depois de já ter existido nos inquieta sobremaneira mesmo nas poucas
vezes que nos atrai.

Mas a não existência não é morte. A não existência é o infinito anterior à


primeira consciência, ou à primeira manifestação de vida, é aquele tempo
indefinível em que fomos o nada, ou em que éramos poeira de estrelas, como
dizem Carl Sagan e o astrofísico Neil deGrasse Tyson. Esse infinito – que não é
morte – nunca nos faz doer.

Nunca um sentimento de dor, de preocupação, ou mesmo de saudade pelo tempo


em que fomos nada nos turva os pensamentos. No nada anterior à existência não
existe a dor, a morte, o sofrimento. O nada que fomos, e de onde, de acordo com
os teístas, deus nos tirou à nossa revelia, em oposição ao ser de dores e males
que somos, parece levar uma vantagem considerável.

Um teísta pode argumentar dizendo: “Eu não concordo! A vida é preciosa e vale
mais do que o nada”. Tudo bem, acho mesmo que o teísta, ou qualquer pessoa
que seja, tem todo o direito de pensar dessa forma, mas eu não penso assim e,
que me conste, muitos dos suicidas – e os há aos montes
– também não pensavam dessa forma. Até os suicidas “em nome de Deus”,
embora por razões diferentes da minha, não parecem achar que a vida é um bem
assim tão valioso, caso contrário não se deixariam convencer tão facilmente de
que a fantasia da fé em outra vida é melhor do que a vida.

Parece que para qualquer muçulmano fundamentalista que decide se amarrar a


bombas e se explodir em nome de Alá, setenta e duas virgens valem mais do que
a vida.

Parece também que a proibição do suicídio, a determinação de que o suicida irá


para o inferno sem direito a qualquer apelação e de que, por ser um pecador sem
direito a perdão, o suicida não pode ser enterrado em solo sagrado foi um
recurso criado para que não houvesse suicídios em massa, principalmente nos
muitos tempos mais negros da história; afinal qualquer religioso medianamente
inteligente concluiria que o paraíso prometido pelos padres e pastores é em
muito superior à vida que levavam, ou levam ainda em muitos casos e em muitos
lugares.

Quase todas as religiões têm seus mártires e o cristianismo é especialmente


pródigo em nos oferecer exemplos. Na minha visão se oferecer ao martírio “em
nome de deus” é sempre uma maneira muito esperta de cometer suicídio sem
cometer suicídio e, em lugar de ser castigado como pegador imperdoável, ser
premiado mais cedo com o paraíso prometido por deus.

Só é possível, a meu ver, deixa-se convencer a deixar a vida, que é o certo, pelo
duvidoso, que é a outra vida, e se forçar a acreditar que o duvidoso é real sem
provas – ainda maisentregando-seamartíriosdolorososcomomuitossantos cristãos
fizeram – se o duvidoso realmente valer a pena, ou seja, se for algo muito
superior ao certo.

Ainda hoje eu me arriscaria a dizer que o número de suicidas seria


consideravelmente maior se os dogmas de quase todas as religiões não tivessem
relacionado o suicídio como um dos grandes pecados e incutido essa crença em
todos nós tão profundamente e de tal forma que continuamos com ela mesmo
depois de nos afastar da religião e mesmo sem perceber que a temos por motivo
religioso.

Mesmo dentre os teístas que argumentam ser a vida um bem valioso dado por
deus, há aqueles – e não devem ser poucos – que em algum momento dessa vida
sentiram ou pensaram que ela não valia tanto assim. Afinal, poucos seres
humanos nunca passaram por uma dor profunda, e dores profundas facilmente
nos levam a sentir e perceber que a vida não é assim tão boa quanto afirmam,
mesmo que essa sensação seja passageira e que depois a gente consiga continuar
olhando apenas para o próprio umbigo e esqueça os milhões de seres cuja dor
profunda não passa nunca e que não têm nenhuma razão para louvar essa “vida
preciosa que vale mais do que o nada”.

Não acho que alguém em algum lugar e em alguma época já tenha feito essa
pesquisa, mas quase apostaria que se ela fosse feita, muitas pessoas, por mais
que prefiram não morrer e por mais que se incomodem com a perspectiva da
morte inevitável, concordando comigo, diriam que nunca ter existido parece
melhor do que existir, principalmente quando estamos infelizes. Todos nós
sabemos que algumas pessoas, em algumas situações extremas, só não cometem
suicídio porque são impedidas pela religião, ou então porque têm medo da
morte, da dor ou do desconhecido.

Além disso, penso que, por mais que um ou muitos milhões de teístas convictos
afirmem que a vida é um presente valiosodado por deus, e por mais que esses
teístas acreditem realmente nisso, se uma única pessoa em um único momento
de sua existência não concordar com eles, a afirmação não pode ter valor de
verdade. Então, diante de todos esses fatos, não há como não pensar que o
argumento de que a vida é uma dádiva maravilhosa é na verdade um argumento
muito frágil.

Para justificar o argumento de que a nossa existência é uma dádiva, um bem


supremo que supera todos os males e todas as dores, essa teria que ser a opinião
e a certeza de todos os envolvidos, em todos os momentos; ou seja, para todas as
pessoas que estão, estiveram ou estarão vivas, durante todo o tempo que
estiveram ou estarão vivas. Caso contrário, pela lógica que posso perceber, o
argumento, no mínimo, enfraquece bastante.

Se somos todos seres vivos que foram tirados à nossa revelia da não-existência
para a existência, se essa existência foi dada a você e a todos sem que nenhum
de nós tivesse direito ou condição de manifestar qualquer opinião a respeito, se
existimos, você e todos nós, apenas por decisão e ato de um ser todo-poder,
então essa existência chamada vida só pode ser definida como dádiva de
suprema bondade se for vista e sentida como dádiva de suprema bondade tanto
por você quanto por todos os seres humanos da face da terra, e de todos os
tempos. E eu nem estou falando dos animais!

Estamos todos vivos, estamos todos em uma mesma situação, sua vida não veio
a você de forma diferente do que a vida veio a todas as pessoas, nenhum de nós
teve como opinar sobre a nossa existência ANTES de existirmos; pelo menos
não que a gente se lembre; e mesmo que você seja espírita e acredite que essa
não é nossa primeira vida e que nós escolhemos sim onde e como nasceríamos e
viveríamos, mesmo assim tem que ter tido uma primeira vida, uma primeira vez
que existimos e que não passamos a existir por nossa própria escolha mas porque
deus, se existir, decidiu nos criar.

Portanto, se estamos todos vivos, todos temos, agora, o mesmo direito de


nomear, classificar ou adjetivar a vida. Esse direito não é só meu ou só seu,
temos esse direito na mais completa situação de igualdade com todos os seres
humanos do planeta e de todos os tempos, e a vida só poderá ser definida como
dádiva de suprema bondade com valor acima da não existência se for
considerada como tal por todos os seres vivos. Só a unanimidade daria valor de
verdade a essa afirmação. Então, sua adjetivação não vale mais do que a de
ninguém.

Quando você fala em vida dando a ela qualidades genéricas, você está falando da
Vida ela mesma, você está falando não apenas da sua vida, mas também da
minha e da de todos aqueles que estão, estiveram ou estarão vivos. Isso significa
que em qualquer opinião que você dê sobre a vida estará obrigatoriamente se
referindo tanto à vida de todos quanto à sua, por isso você não pode analisar a
sua vida e simplesmente dar a sua opinião como uma definição para o todo com
valor de verdade absoluta.

Não esqueça: é a sua opinião e a sua opinião não vale mais do que a opinião de
ninguém. Se você vê a vida como uma dádiva de deus, ótimo! Que bom pra
você, fico feliz que pense e sinta dessa forma; mas se outra pessoa a vê como um
castigo e outra ainda como um aprendizado, isso nãote dá o direito de
desconsiderar todas as outras definições, definir a vida como uma dádiva de deus
e achar que essa opinião é um argumento válido.

E eu, sobre a vida, o que faço é me perguntar: Se foi em nosso benefício que um
deus todo poderoso decidiu nos criar, então por que não nos criou melhores,
menos imperfeitos e menos infelizes? Que raio de dádiva suprema é essa que
tantos, inclusive eu, se tivessem sido consultados, teriam recusado sem precisar
pensar duas vezes?

Na minha visão, um presente que nos fosse dado por um ser perfeito, bom, justo
e todo-poderoso; um presente que fosse uma dádiva de amor e de bondade desse
ser tão perfeito e bom seria logo reconhecido como tal e nunca seria recusado
pelo presenteado. Se um só dos presenteados (e eu levanto minha mão) teria, se
pudesse, recusado tal dádiva, isso significa, no mínimo, que esse presente pode
não ser assim tão valioso e, portanto, que esse ser “todo bondade” não é tão bom
assim.

Deus é onipotente9, seu poder é tal que para ele nada é impossível, exceto, na
opinião de alguns, contrariar a lógica mais básica como criar uma pedra tão
pesada que nem mesmo ele possa levantar. E, na opinião dos teístas, isso não
significaria – contra toda a lógica – que a lógica é mais poderosa do que deus.
Não deixa de ser engraçado pensar
9 “Eis que eu sou o Senhor, o Deus de todos os viventes; acaso, haveria cousa demasiadamente maravilhosa
para mim?” In: Jeremias 32:27.

que muitas pessoas, muitas mesmo, conseguem contrariar a lógica para acreditar
em deus, mas deus não pode contrariar a lógica apesar de toda a sua onipotência.
Sim, estou sendo irônica.

Deus também não pode criar algo conceitualmente contraditório, como um


círculo quadrado, por exemplo, porque as definições, de quadrado e de círculo,
são nomenclaturas naturalmente excludentes. No entanto deus pode ser um e ser
três ao mesmo tempo, e consegue também ser seu próprio filho e seu próprio pai.
Isso, para qualquer um que olhe de fora, parece pertencer igualmente à classe de
nomenclaturas naturalmente excludentes. Um ser totalmente bondade que cria,
mantém e permite a existência do mal é algo contraditório; um ser onisciente que
não soubesse que sua criação daria errado é algo contraditório, um ser onipotente
que não consegue criar nada melhor do que esse mundo é algo muito
contraditório. Mas, de alguma forma que eu não consigo compreender, os teístas
conseguem achar que não há nenhuma incoerência nisso tudo.

Outra exceçãoao onipoder divino – que é uma inexplicável condescendência


para com o homem – é que deus não pode violar o nosso livre arbítrio. Temos
mais poder do que o ser onipotente que nos criou porque esse ser criou também
um tipo de presente maldito que nos deu como prova de sua extrema bondade;
um “presente” que serve para que possamos ser maus e que ele não pode nos
tirar nem mesmo para que o mal não exista.

Ele, o deus todo-poderoso é obrigado a suportar a existência do mal sem


interferir porque nós não permitimos que ele acabe com o mal sem tirar nosso
“presente” que ele não pode tirar de nós. Isso tudo porque ele, o extremo poder,
quando decidiu criar o universo e seus habitantes “mais incrivelmente
fantásticos” não pôde pensar em uma maneira de criar seres com livre arbítrio
que não usassem esse livre arbítrio para o mal. Por que às vezes parece que só
para mim isso soa como um total absurdo?

Depois de nos ter criado e de nos ter dado esse poder sobre sua onipotência, esse
deus todo poder e bondade, que não pode tirar o nosso “presente” de nós porque
nós gostamos de cometer maldades e não queremos ser robozinhos bonzinhos,
tem que “nos engolir” e passar o resto da nossa eternidade sendo bom, mas
aceitando o mal que nós fazemos, temos e somos. Mesmo sendo superpoderoso,
Ele é impotente diante de nosso poder de usar seu “presentinho” para praticar o
mal.

Ah, e isso tudo acontece, claro, porque as únicas duas possibilidades de um deus
que é todo poderoso nos criar seriam essas: ou com o livre arbítrio e o mal ou
sem livre arbítrio e robozinhos. Ele, o deus todo poderoso, não pôde pensar em
outras maneiras de criar seres sencientes além dessas duas. Nem uma única
maneira além dessas duas! Por que será que esse onipoder não me impressiona?

De qualquer forma o livre arbítrio é uma coisa que não vejo em mim, não vejo
em qualquer ser vivo com quem tenha tido qualquer tipo de contato ou do qual
tenha tido algum conhecimento, não vejo em nenhum personagem de fantasia e
não vejo nem mesmo no próprio deus como esse deus é descrito e louvado pelos
que nele acreditam.

Por isso não compreendo como algo aparentemente inexistente ou cuja


existência é, no mínimo, tão discutível quanto a existência do próprio deus pode
ser uma restrição tão poderosa à onipotência. De qualquer forma, por mais
improvável que pareça para mim, os teístas juram que o livre arbítrio existe, que
é bom e que deus nos deu. Falaremos mais um pouco sobre ele mais adiante.

VI

Deus é onisciente10e por isso sabe tudo sobre o passado, o presente, o futuro e o
que vai no mais profundo do coração e da mente de cada pessoa desde o início
dos tempos até o Armageddon. Mas, inexplicavelmente, pelo que podemos ver
nas igrejas, templos e sinagogas de todo o mundo, parece que deus não saberá
que as pessoas o adoram a não ser que elas o demonstrem veementemente com
palavras e posturas de humilhação e com orações e cânticos de louvor e
submissão.

Que me desculpem os religiosos que se ajoelham, que se denominam ovelhas ou


servos, que usam roupas esquisitas e chapéus espalhafatosos, que gritam “me
use” ou que levantam a bunda com a cabeça quase encostada na bunda do outro,
a testa no chão e o cocuruto voltado para Meca, mas isso tudo me parece muito
engraçado. Assim como a cada um deles essas mesmas posturas, roupas e modos
dos outros certamente parecem engraçados, enquanto as suas não o são.
De acordo com o discurso de muitos teístas, parece que deus permite que o mal
exista para que o ser humano seja tentado por ele e tenha a chance de resistir a
essas tentações e com isso mostrar – porque deus é onisciente, mas não sabe –
quem são seus servos fiéis e humildes. Mas se acaso alguns indivíduos, usando o
tão precioso livre arbítrio, ousam contestar de alguma forma essa criação
“perfeita” que inclui e permitea existência do mal, então deus tomará as
necessárias providências para que os males sejam ainda maiores a fim de que
essa ovelha desgarrada retorne ao rebanho.

E se, por um acaso, esse infiel for tão teimoso a ponto de


10 “Acaso sou Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também de longe? Ocultar-se-ia alguém em
esconderijos, de modo que eu não o veja? – diz o Senhor; porventura, não encho eu os céus e a terra? – diz
o Senhor” In: Jeremias 23:23,24.

não virar cordeirinho nunca, então o deus; que é onisciente mas que não sabia
que seus “bichinhos” poderiam ser tão rebeldes; seguindo uma determinação
dele mesmo, se vê obrigado, mesmo sendo todo-poderoso e não podendo ser
obrigado a nada, a castigar esse rebelde que ele não sabia que se rebelaria e que
ele queria que seguisse as normas. Ele, que tudo pode e tudo sabe, não queria ter
que seguir tais normas e não sabia que teria que segui-las, mas mesmo
contrariado
– sim, a onisciência pode ficar decepcionada! – permite, ou manda, que essa
ovelha negra seja jogada eternamente em um lugar terrível que ele, o deus
onisciente, criou para isso mas não queria que ninguém fosse para lá. Fácil de
entender, não?

“Deus quer que todos sejam salvos”11repetem e repetem os teístas –


principalmente os evangélicos – mas como deus pode querer se deus sabe?
Muitas e muitas vezes me disseram as frases “Deus quer que você se arrependa”
ou “Deus fica triste quando você se nega a sentir sua presença”. Faz algum
sentido dizer que deus tem o conhecimento de tudo e, depois, dizer que deus
quer alguma coisa e que EU devo me esforçar para satisfazer esse desejo dele?

Como um ser onisciente pode ficar triste por algo que acontece e contraria sua
vontade? Sério que ele não sabia que isso aconteceria? Como então pode ser
onisciente? Se elesabe,sempresoubeesaberáparasempre,absolutamente tudo o
que penso e sinto em todos os momentos da minha vida, desde meu nascimento
até a minha morte, como pode querer que eu pense e sinta uma coisa e ficar
“decepcionado” porque pensei e senti outra coisa? Que sentido pode fazer isso?
11 “Exorto, pois, antes de tudo que se façam súplicas, orações, intercessões, e ações de graças por todos os
homens, pelos reis, e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e
sossegada, em toda a piedade e honestidade. Pois isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o
qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. In: 1Timóteo
2:1-4

Mais um absurdo entre tantos absurdos. Uma enorme quantidade de vezes desde
quando eu era criança e minha mãeme alertava do perigo, tenho ouvido de teístas
o conselho para que não se diga em voz alta qualquer coisa que seja
contráriaaoquedeussupostamenteaprovaria.Funcionamais ou menos assim; você
diz algo como “Deus parece mesmo muito ruim por permitir que essa catástrofe
aconteça” e um teísta se apressa a dizer, às vezes em tom sussurrante como se
quisesse evitar que “alguém” o ouça “Não diga uma coisa dessas, deus pode
castigá-lo!”.

Aliás, a expressão “Deus castiga” é lembrança comum em muitas infâncias e na


minha com certeza. Precisamos tomar muito cuidado com o que dizemos. Claro
que precisamos tomar muito cuidado também com o que pensamos, mas parece
que pensar é um pouquinho menos perigoso. A impressão que dá muitas vezes é
que estão nos dizendo que deus, pelo menos algumas vezes, não sabe o que
pensamos a não ser que o expressemos em voz alta.

Deus também não sabia – mesmo sendo onisciente


– que Adão e Eva o desobedeceriam. Não sabia que, em consequência da
desobediência, ele “teria” que – mesmo não podendo ser obrigado a nada porque
é onipotente – sacrificar seu próprio filho; que é ele mesmo, mas isso é outro
paradoxo.

Se for onisciente, então deus, no caso de Adão e Eva, além de ser um mau deus
teria se mostrado também um péssimo pai. Mas deus não sabia disso tudo –
mesmo sendo onisciente – e também não sabia que esse sacrifício – dele mesmo
para ele mesmo – traria como consequência a criação e o desenvolvimento de
uma religião que escreveria sua história com sangue.

Isso – é claro – se eu compreendi bem que Cristo veio ao mundo para nos salvar
do pecado original. Esse tema da razão da vinda de Cristo e do que foi mesmo
que ele nos salvou é algoextremamente confuso para mim. Já pedi explicação
para vários teístas, mas além de muita bondade, muito carinho e muito boa
vontade, não obtive nenhuma resposta que me tirasse da confusão. O fato é que,
para um ser onisciente, deus ignora muitas coisas.
VII

E deus é também onipresente12, ou seja, está em todos os lugares ao mesmo


tempo. Mas parece que nós, humanos, somos ignorantes demais para entender
como é que ele consegue estar no lugar onde uma criança é torturada e morta e
não fazer nada para evitar esse horror. Uma amiga me garantiu que deus faz sim!
Segundo ela, deus esteve o tempo todo ao lado da criança torturada, segurando
suas mãos e ajudando-a a suportar o tormento.

Que me desculpem os teístas e que me desculpe minha amiga, mas um deus


onipotente que faça algo assim me revira o estômago de nojo e, para mim, na
escala entre o bom e o mau, está muitos graus abaixo do que eu chamaria de um
sádico doente. O próprio torturador da criança do meu exemplo ficaria
parecendo um santo se comparado com esse deus.

E, lembrando, esse é apenas um exemplo dentre tantos outros exemplos que eu


poderia dar do mistério da onipresença
12 “Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se
faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho
nos confins dos mares, ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá. Se eu digo: as
trevas, com efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas não te serão
escuras: as trevas e a luz são a mesma cousa” In: Salmo 139:7–12.

do bem, inativo e indiferente, diante da cara terrível do mal. Os teístas


aparentemente conseguem entender – mas não conseguem explicar – a presença
e a não interferência do deus de bondade nos momentos e nos lugares em que
ocorreram tantos males, em que ocorrem tantos crimes, em que ocorrerão tantos
dos maiores horrores.

O deus onipresente não evita, não interfere, não arrefece nenhum dos males que
existiram ao longo da história plena de terror, não evita nenhum dos males que
vemos nos noticiários do nosso dia a dia, e provavelmente não deixará de
permitir todos os males que existirão em todos os tempos e em todos os lugares
da Terra; como sempre, desde sempre e para sempre.

Fica muito difícil, e até mesmo impossível eu diria, aceitar como verdade a
existência de um deus onipresente, bom e todo poderoso que criou um mundo no
qual, por exemplo, grandesterremotospodemacontecereque,emumterremoto de
grandes proporções, permite que morram centenas de pessoas enquanto ele,
presente e poderoso, mais se assemelhando ao acaso do que a um deus, se
abstém de mostrar sua bondade infinita exceto para uma meia dúzia de
privilegiados nem mais nem menos merecedores do que os que morreram ou
perderam seus entes queridos.

Todas, absolutamente todas, as tentativas de justificar essa indiferença divina


diante do mal me soaram como um alinhavar de falácias óbvias ou não tão
óbvias, mas sempre falácias; sempre me parecem inexplicáveis ginásticas
mentais ditadas pelo medo de duvidar. Acho terrível – e isso me deixa muito
triste e muitas vezes chocada – quando ouço ou leio “explicações” para a
presença e indiferença de deus diante dos males mais terríveis que são uma triste
e maldosa conivência de quem não se importa nem um pouco com o que
acontece com o outro, mesmo que esse outro seja uma criança inocente.

Dizem que deus está certo em não interferir, dão desculpas das mais esfarrapadas
e usam todos os seus preconceitos para que isso “faça sentido”. Todos podem
sofrer, todos os horrores podem acontecer e isso está certo e é bom, desde que o
teísta que usa esses argumentos seja e continue sendo o “eleito” queridinho e
predileto do seu deus.

Quando esse tipo de explicação egoísta e egocêntrica vem de alguma pessoa que
amo e que considero, fico realmente muito triste, tento mudar de assunto o mais
rápido possível, tento dizer a mim mesma que essa pessoa não sabe o que estava
dizendo e tento com todas as minhas forças lutar contra meus sentimentos de
aversão e nojo porque simplesmente não consigo entender como é que pessoas
boas conseguem dizer, pensar e sentir coisas tão terríveis com o único objetivo
de continuarem adorando a si mesmas.

Ouvir esse tipo de argumento de uma pessoa amiga dói bem mais do que uma
traição, juro.
VIII

Fala-se muito também em “Justiça Divina”. Não é fácil entender isso de justiça
divina, onde está ela que não a vemos em canto nenhum desse mundo em que
vivemos? Tudo bem que muitos teístas afirmam em várias ocasiões e a propósito
de vários pontos que “A justiça de deus não falha”, mas o que acontece de fato é
que essa tal justiça, caso existisse, falharia sim e muito. Os próprios teístas
muitas vezes são vítimas de injustiças e, se não estão falando ou sendo
questionados sobre deus, reconhecem isso.
É comum ouvir teístas dizendo que “Fulano não merecia isso” quando ninguém
está falando em deus, apenas na catástrofe, acidente, doença ou qualquer outra
desgraça que atingiu alguém. Mas, se alguém lembra deus, então mudam
imediatamente o foco e começam a procurar justificativas; em geral a primeira
providência é atribuir a injustiça aos próprios homens ou a qualquer outra coisa
que não seja deus.

Mas se, por exemplo, um pai amoroso, honesto, trabalhador e bom em todos os
aspectos perde seu único filho em um terremoto e não há maneira de dizer que
essa injustiça foi do ser humano e não de deus porque seres humanos – até onde
sabemos – não causam terremotos nem escolhem suas vítimas, então, como
sempre, os teístas defensores da tal “justiça” divina desencavarão novamente o
argumento coringa do mistério: “Deus sabe o que faz”, “Quem somos nós para
compreender os desígnios de deus?” e outras frases batidas, que não são capazes
de explicar nada, que funcionam apenas como um “calaboca” para o cético e,
principalmente, como um “calamente” para o próprio teísta, que não quer pensar
porque sabe que se o fizer vai concluir que não existe justiça divina.

E isso me faz lembrar novamente aquela minha amiga que me disse que prefere
não pensar nisso porque não se sente capaz de viver sem acreditar em deus.

Dizem alguns que a justiça está em termos todos a mesma capacidade. Mas isso
não é verdade! Temos sim muitas capacidades e temos sim muitos casos notáveis
de pessoas com deficiências das mais variadas que nos deram e dão lições de
superação todos os dias, pessoas incríveis que conquistaram importantíssimas
vitórias nos mais variados campos, desde a arte até o esporte, mostrando aos
preconceituosos de plantão que deficiência física ou mental não é deficiência
total nem falta de humanidade, e que o fato de uma pessoa ter uma deficiência
não dá direito a ninguém de julgar essa pessoa como incapaz.

Temos tudo isso, vemos tudo isso! Nos comovemos, nos enchemos de orgulho e
até mesmo renovamos nossa fé na humanidade com essas histórias de superação,
mas basta olhar para ver que um deficiente físico, um portador de síndrome de
down, um deficiente visual não têm, para determinadas atividades, a mesma
capacidade de uma pessoa sem essas deficiências.

Algumas deficiências podem até, em alguns aspectos específicos, fazer com que
seu portador leve vantagem sobre os tidos como normais, e isso efetivamente
acontece – o mais conhecido exemplo é a superior sensibilidade auditiva e tátil
do deficiente visual – o que na verdade, nesse aspecto, reverteria os polos e
tornaria os outros os menos capacitados; mas certamente nos aspectos mais
cotidianos as capacidades acabam sendo diferenciadas em favor dos não
portadores de deficiências porque é adaptado a essa maioria que está, digamos
que, construído o mundo.

Por exemplo, um cadeirante, embora muito progresso tenha sido feito nos
últimos tempos, ainda não pode se movimentar por todos os lugares por onde um
não cadeirante pode caminhar
livremente;umdeficientevisualnãopode,logicamente,pormais que tenha acesso às
universidades, escolher determinadas profissões, como medicina, arquitetura ou
designer sem que para isso precise de um aparato tecnológico tremendamente
complexo e caro; se é que já existe aparato tecnológico que consiga, por
exemplo, compensar a impossibilidade do contato dessas pessoas com a cor.

Claro que essas dificuldades muitas vezes podem ser – e são – superadas pela
criatividade e pela ciência, e isso é notável, maravilhoso e nos faz sonhar com
novos progressos que tornem ainda melhor a vida dessas pessoas; mas no geral
as limitações existem, e nos tornam diferentes em nossas diferentes capacidades.

Os tidos e chamados “normais” são os que, infelizmente, em muitos lugares e


em muitos momentos da pavorosa e triste história da humanidade foram
considerados os únicos com direito “divino” de sobrevivência. Não tenho dados
estatísticos, mas duvido que o número de deficientes físicos e mentais que foram
mortos e torturados ao longo da história esteja abaixo da casa dos milhões; sem
contar os canhotos.

Então, para não endossar retrocessos e para deixar muito clara minha suprema
aversão ao preconceito, tenho que frisar mais esse aspecto e destacar, de novo e
de novo, que deficientes físicos ou mentais não devem nunca deixar de ser
considerados dentro do seu aspecto de humanidade e não devem nunca deixar de
ser respeitados em todos os seus direitos de cidadãos e de indivíduos. É preciso
dizer também que não devemos nunca deixar de reconhecer onde ela se
apresenta – e que ninguém duvide de que ela se apresenta muitas vezes! – a
superioridade dessas pessoas sobre nós, os ditos “normais”.

Mas essa diferença de capacidades de que estou tentando falar não se resume às
deficiências físicas e mentais. Mesmo entre os “normais” há diferenças de
capacidade muito grandes e elas existem de diferentes formas e por diferentes
motivos, muitas vezes os motivos são sociais e são gerados pelo puro
preconceito, outras vezes são de personalidade mesmo.

Uma criança nascida na Somália, de pais miseráveis e famintos e ela mesma


vivendo de fome, certamente terá, pelas circunstâncias, menos capacidade de se
tornar um cientista ou um empresário de sucesso do que um filho de um
professor universitário de um dos países chamados de “primeiro mundo”.

Eu, que sempre tive enormes dificuldades com números tive também, desde
sempre, menos capacidade para me tornar uma astrofísica de sucesso do que
teria uma pessoa nas mesmas condições socioculturais e geográficas que tivesse
muita afinidade com os números.

São exemplos talvez até um tanto grosseiros, mas são reais.


Claro que alguém pode argumentar que o que falta à criança da Somália não é
capacidade e sim oportunidade e que o que faltou a mim não foi capacidade e
sim esforço. Vão dizer que se a criança da Somália tivesse oportunidade poderia
sim se tornar um cientista ou empresário de sucesso e que eu, se tivesse me
esforçado e desejado muito, poderia ter superado minha aversão a números e me
tornado uma astrofísica de sucesso.
Até concordo que existe essa possibilidade, mas acho que nossa mente foi muito
provavelmente afetada pela nossa situação, digamos “diferenciada”. A da criança
mais do que a minhaporqueasubnutriçãoinfantil,principalmenteprolongada,
seguramente afeta o intelecto. Daí que, provavelmente, temos sim menos
capacidade nesses aspectos específicos do que outras pessoas que estão em
situação diferente. Mas atenção que eu disse menos capacidade, não
incapacidade; como acho que deixei claro lá em cima, pessoas superam e se
superam o tempo todo.
O que quero dizer com tudo isso no final das contas é que não é verdade que
temos todos a mesma capacidade, não sou neurocientista, mas acho que o
cérebro das pessoas é diferenciado de forma a torná-las mais capacitadas para
determinadas coisas do que para outras, da mesma forma que acontece
fisicamente, afinal todos sabemos que pessoas mais altas costumam se sair bem
melhor no basquete.
Melhor dizendo: acho que somos fisicamente diferentes sempre! O cérebro é
fisicamente diferente da mesma forma que o resto do corpo, e da mesma forma
que acontece com o resto do corpo, essas diferenças não costumam ter uma
causa única, são determinadas por uma série de fatores físicos e sociais, como a
formação, a genética, a alimentação, o grupo social, e toda a lista de influências
que temos, das mais diversas, durante nosso desenvolvimento, desde como são
os gametas que nos formaram até o último lapso de compreensão antes do fim.
Às vezes me pego pensando se não aconteceram muitos casos de pessoas
nascerem, por exemplo, com o dom de Mozart para tocar piano antes de os
pianos serem inventados; ou se não nasceram “mozarts” que nunca foram
apresentados a um piano porque nasceram em lugares onde esse instrumento
musical é um luxo impensável. Uma pessoa nessas condições, provavelmente,
viveu e morreu como um incompetente sem nenhuma aptidão para nada, ou
talvez tenha se tornado um tocador de flauta de bambu ou de tambor apenas
razoável.
E não nos esqueçamos de que a oportunidade de viver uma vida mais ou menos
digna tendo nascido com alguma deficiência física ou mental séria só acontece
agora e apenas nos lugares ditos “civilizados”, entre os animais e entre os
humanos há não tanto tempo assim, essas diferenças de capacidade significam e
significavam a morte. E elas sempre aconteceram.
Então me parece que esse argumento de que a justiça está em termos todos a
mesma capacidade, quando usado em favor da “justiça divina”, é uma falácia
facilmente detectável por qualquer um que se dê ao trabalho de pensar um pouco
sem deixar que a venda da fé lhe impeça a visão da realidade que se faz presente
à sua volta e em si mesmo.
Basta olhar para ver que um órfão jogado em orfanatosdepósitos ou nas ruas
para comer cola e craque até que qualquer brilho de inteligência seja queimado
no seu cérebro em formação não tem a mesma capacidade nem a mesma
oportunidade de uma pessoa que nasce perfeita em um lar saudável; basta olhar
para ver que uma borboleta de asas imperfeitas não terá a mesma capacidade de
procriação que uma borboleta perfeita; basta olhar para ver que um leão albino
não tem a mesma capacidade de sobrevivência que tem um leão normal. Não dá
para falar em justiça se a gente for por aí.

IX

Uma das questões mais intrigantes com respeito à existência de deus é o fato de
esse deus único ter se dividido em três deuses: Um, mais antigo, tem os judeus
como povo escolhido e – no livro “sagrado” – dá a eles o direito de exterminar
outros povos e castiga-os por qualquer desobediência com anos ou décadas de
escravidão; o segundo teve um filho com uma virgem e salvará das chamas
eternas do inferno apenas alguns cristãos que se prostrarem e o adorarem como
ovelhinhas acéfalas; e o terceiro tem Maomé como seu único profeta e dará (sem
perguntar a elas como se sentem a respeito) setenta e duas virgens a todos
aqueles que morrerem por ele, de preferência matando muitos “infiéis” no
processo.

Esses são os três principais, sem contar os milhares de deuses que são e foram
cultuados por todos os povos ao longo da história. Acontece que, se existisse
mesmo esse deus único que meus amigos cristãos afirmam; por ele ser único e
por não existirem outros; o que se seguiria como logicamente consequente é que
tanto os outros dois deuses principais cultuados hoje quanto os milhares de
deuses anteriores e posteriores a eles, todos seriam nada mais do que outras
divisões desse deus único e verdadeiro; ou então seriam, no mínimo, mentiras
criadas pelos homens que o deus único e verdadeiro nunca achou que precisasse
desmentir, nem mesmo para salvar vidas e evitar guerras.

Por que deus, sendo bom e justo, permitiria essa divisão, ou essas mentiras que,
desde sempre, têm causado tantas torturas, horrores e mortes? Por que esse deus
de bondade e justiça, sendo o criador todo poderoso e único, permitiria que o
cultuassem com muitos nomes que não o dele? Por que ele permitiria que
homens, muitas vezes gananciosos e sedentos de poder, se proclamassem seus
sacerdotes, profetas, enviados ou representantes e falassem em seu nome? Por
que esse deus de poder, justiça e bondade permitiria que esses sacerdotes
exigissem, em seu nome, o sacrifício de donzelas, de crianças, de guerreiros
“inimigos”? Que bondade suprema permitiria todo o sangue derramado, por
exemplo, pelos sacerdotes incas durante aproximadamente trezentos anos?

Podem argumentar que “Deus fez com que parassem e a prova disso é que a
civilização inca não existe mais”. Depois de um argumento como esse a única
coisa que me ocorre dizer é: Mas eles não foram os únicos, e arrancaram os
corações pulsantes de suas vítimas em honra do “Deus Sol” durante trezentos
anos! Ou deus não existe ou foi muito, muito lento mesmo em tomar algum tipo
de providência. E que tipo de providência tomou? Trouxe um povo sanguinário
que exterminou toda uma cultura em nome do seu próprio deus sedento de
sangue.

Os incas não existem mais, um número muito grande de deuses que “exigiam”
sacrifícios humanos não existem mais, e o deus do Antigo Testamento, que
gostava tanto do cheiro de carne queimada, também se modernizou e não já não
exige mais sacrifícios. Essa foi a providência tomada pelo “deus verdadeiro”
para acabar com o horror dos “falsos deuses”? Mas se ainda existem, aqui e ali,
alguns pontos do planeta onde deuses com outros nomes continuam a aceitar
sacrifícios de animais e mutilação de pessoas! E se mesmo esses três grandes
deuses de que falamos, em algumas culturas, tribos ou grupos ainda aceitam
sacrifícios e mutilações, reais ou metafóricos! Que “providências” afinal foram
essas?

Não vejo como não duvidar – e muito! – de que deus alguma vez tenha
interferido de alguma forma porque, como todos sabem, os adeptos de cada um
dos três deuses principais que disputam território cultivam a rivalidade e o ódio
sem tréguas desde o seu surgimento até os dias de hoje em vários pontos do
planeta. Há exemplos antigos e recentes muito convincentes desses absurdos de
intolerância; como o atentado de 11 de setembro, as eternas guerras no Oriente
Médio e os conflitos na Irlanda.

E mesmo em países mais “civilizados”, onde essa rivalidade não chega a fazer
vítimas, ainda se pode sentir nos partidários de um deus o desprezo, a
indiferença ou um tratamento de tolerante superioridade com relação aos adeptos
dos outros dois. E diante de tudo isso não se vê nenhuma reação que pareça, nem
de longe, ter influência do que seria uma atitude digna de um deus que fosse
realmente bom, justo e poderoso.

O deus que os adeptos dos três deuses defendem é, para esses adeptos, único e
verdadeiro, mas nem o deus do cristão nem o deus do judeu se chama Alá e
Jesus não é uma pessoa do deus do muçulmano nem é uma pessoa do deus do
judeu porque nem um desses dois deuses é uma trindade. Ou seja,
odeusúnico,criadoronipotente,onipresente,onisciente,bom e justo – se existir –
dividiu-se em três deuses diferentes, irreconciliáveis e quase sempre armados
para a guerra.

Para o deus dos judeus, na minha visão, caberia perguntar: Se esse deus criou a
humanidade inteira, por que escolheria um único povo para proteger e guiar?
Para o deus dos cristãos a pergunta seria: Por que deus se mostraria tão diferente
de si mesmo nas duas partes do livro que deixou como sendo sua palavra
imutável? Não pergunto nada a Alá porque não posso perguntar nada que seja
diferente do que um muçulmano decente provavelmente perguntaria: Por que um
deus de amor permite que se cultive tanto ódio?

Mas a verdade é que essa pergunta seria válida para todos os três. Supondo que
existisse um deus único e que esse fosse o deus raiz dos outros dois – o deus de
Abraão
– por que ele permitiria que o dividissem em três e que em seu nome se criasse e
alimentasse tanta rivalidade? Eu não posso crer em um deus tão incoerente, e
não entendo como as pessoas conseguem.

Para os adeptos de cada uma das três religiões, seu deus não é o mesmo deus das
outras duas, tanto que sua “palavra” é outra, embora os três livros tenham muitos
pontos comuns e derivem da mesma raiz. Cada um desses três deuses; que é um
único deus, mas que não é visto dessa forma por
seguidoresdeumadesuasfacesquandojulgamosseguidores de suas outras faces; é
descrito como bom. Essa divisão de um deus em três deuses, por todos os crimes
que fomentou, é um dos maiores males da história da humanidade e não faz jus,
portanto, ao que logicamente se esperaria de um deus bom.

Por mais que se possa acusar os próprios homens pelas guerras, conflitos e
opressões religiosas, se existisse esse deus único que apregoam com tanta
ênfase, ele seria culpado por omissão porque, de forma totalmente incoerente
com sua pretensa bondade, em existindo, o deus único só pode ter permitido, e
até incentivado, tal divisão, tais crimes e tais conflitos, uma vez que, como
argumentam seus seguidores, deus é onipotente e, portanto, poderia se dar a
conhecer de forma menos conflituosa e fazer com que a discordância cessasse,
ou nem sequer tivesse começado.

Podemos ter todo tipo de ideia sobre deus, e temos respaldo para isso nos livros
sagrados e nos dogmas de todas as religiões. Existem e existiram muitas
religiões diferentes. Ao longo da história essas religiões vêm se rivalizando ao
ponto de se poder contar – em números que estão, no mínimo, na casa dos
milhões – as vítimas feitas pelos rituais e pelos conflitos religiosos. Tais fatos
comprovam, se pensarmos bem, que deus não existe, ou pelo menos não existe
como é definido pelos adeptos das três maiores religiões do mundo.

Se deus existisse e fosse como o definem, o mundo e as pessoas (suas criações)


não seriam nem sequer parecidos com o que são porque não conheceriam o mal,
não seriam capazes de praticá-lo e, mais ainda, não haveria como duvidar de sua
existência, não haveria como vê-lo de duas maneiras diferentes, menos ainda de
diversas. Deus, se existisse e fosse como seus adeptos o definem, teria deixado
sua existência e tudoo mais ligado a ele comocoisas claras e inequivocamente
expressas, desde sempre e através de um veículo confiável, nunca de livros
velhos e multi-interpretativos.

Que me perdoem aqueles que acreditam na bíblia como livro sagrado, mas basta
lê-la sem a venda da fé para ver que ela não é de forma alguma coerente com o
que um deus que realmente fosse bom e poderoso deixaria como prova de sua
existência e como sua palavra13. Um deus que existisse, por amar as pessoas,
como os teístas afirmam que ele ama, não teria sequer remotamente a ideia de
deixar para essa criação amada um livro – ou três – que, pelas suas muitas
possibilidades de interpretação, fosse capaz de gerar conflitos, guerras, chacinas.

Um deus todo bondade e onipotente que existisse de fato não permitiria que sua
existência fosse motivo de conflitos, não permitiria que uma pessoa matasse
outra pessoa – ou muitas – porque acredita que ele, deus, mandou que assim o
fizesse. Não faz absolutamente nenhum sentido um deus bom e poderoso; mais
que isso, um deus todo bom e todo poderoso, permitir que se tenha mais de um
livro “sagrado” em que estão escritas – de forma mais do que confusa, absurda e
contraditória – suas leis e suas ordens. Um deus todo poderoso e bom teria
criado o mundo de tal forma que não precisaria nunca ditar leis ou dar ordens.

Esse deus, se existisse, deixaria a verdade de sua existência mais do que clara e
mais do que evidente para toda e qualquer pessoa. Porque é um deus que tudo
pode, poderia falar com cada um dos homens e não apenas com meia dúzia de
“escolhidos”, e não permitiria que, por erro de interpretação, houvesse pessoas e
grupos de religiosos
13 “A Bíblia contradiz a moral, contradiz a razão, contradiz a si mesma inúmeras vezes; mas ela é a palavra
de Deus, a eterna verdade e a verdade não pode se contradizer. Como então o crente na revelação sai desta
contradição entre a ideia da revelação como uma verdade divina, harmônica e a suposta revelação real?
Somente através de autotapeações, somente através dos argumentos mais tolos e falsos, somente através dos
piores e mais mentirosos sofismas”. (FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo 1988, p. 253-254)

radicais que, em seu nome, matam, ofendem, segregam e discriminam outras


pessoas e outros grupos. Um deus todo poder e todo bondade não pediria a suas
criaturas sacrifícios que vão além eaté contra sua própria natureza e não
permitiria nunca, em hipótese alguma, sob nenhuma circunstância ou
justificativa, que o mal pudesse fazer parte da natureza de qualquer uma de suas
criações.

Não faz nenhum sentido, por exemplo, um deus todo bom e todo poderoso criar
o ser humano com desejos sexuais e órgãos genitais e, ao mesmo tempo, permitir
que se acredite que ele mandou, ou ordenou, que não se sinta esses desejos e até
que se mutile esses órgãos porque eles são de alguma forma ruins, sujos,
vergonhosos. Somente em nome da proibição do instinto sexual natural e sadio
já se criou tantos absurdos em nome de deus – ou de um deus – que as histórias
de muitos desses fatos chocam até mesmo os espíritos mais frios.

O celibato dos padres, que ao longo da história tem levado a crimes como
estupro e pedofilia; o tabu da virgindade, que arrasou a vida de muitas mulheres
ao longo da história e que em muitos lugares causa dor e sofrimento ainda hoje;
o horror da infibulação, que tem dolorosamente mutilado tantas crianças e
matado tantas outras; a própria visão da mulher como representante de tudo que
é mal; e até a circuncisão a que crianças judias são submetidas. De acordo com
alguns, a circuncisão tem sua raiz na profilaxia da fimose e infecções
consequentes. Esse argumento – além de ressaltar uma “falha de projeto” do
criador que se diz perfeito – até poderia servir como justificativa em tempos
remotos mas não faz nenhum sentido atualmente.

Isso sem contar as aberrações e taras – como a pedofilia e o estupro já citados –


que são sérios desvios de comportamento que parecem, a mim pelo menos, com
o que se poderia chamar de “defeito de fabricação” desse tal “deus de bondade”,
caso existisse. Isso porque somente um cérebro mal formado e
consequentemente doente pode explicar o fato de existirem pessoas capazes de
estuprarem outras pessoas, inclusive crianças e bebês. E eu diria ainda que só um
cérebro mal formado e consequentemente doente pode explicar o fato de
existirem pessoas – como o ex-papa Ratzinger14e outros religiosos – que para
preservar uma instituição foram e ainda são capazes de acobertar esse tipo de
criminoso.

Não há como crer que um deus que realmente existisse, que realmente fosse bom
e que realmente fosse o criador todo poderoso permitiria que em seu nome se
fizesse tanta confusão e se praticasse tanta maldade. Mesmo que se argumente
que deus não interfere porque deu ao homem o livre arbítrio, pode-se pensar que
o ser humano faria melhor uso de seu livre arbítrio se não fosse deixado na
ignorância.

Não há justificativa lógica para que deus não se explicasse e definisse com
palavras mais claras e com exemplos mais nobres. Essa obscuridade, essa gama
tão mal explicada e tão pouco convincente de “revelações” faz pensar em apenas
duas possibilidades: ou não existe nenhum deus, ou há apenas um deus sádico,
que se diverte em criar armadilhas para que as pessoas se enganem sempre e
sejam sempre induzidas a procurar o caminho do inferno, onde parece que
estaria a maior diversão para esse deus diabólico.
14 Entre outros, notícias sobre o envolvimento do ex-papa com a pedofilia podem sem encontradas em:
http://noticias.terra.com.br/mundo/ europa/acusado-de-acobertar-pedofilia-bento-xvi-deixara-desafio-para
sucessor,768ba268ab9cc310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html - Acesso em: 19 Ag. 2013 e
http://www.dignow.org/post/v%C3%ADtimas-de-pedofilia-denunciam-papapara-tribunal-internacional-
2888537-52106.html - Acesso em: 19 Ag. 2013

XI

Embora os teístas costumem eximir suas igrejas das acusações de intolerâncias,


violências, crimes e desmandos, atribuindo esses males a membros isolados que,
segundo dizem, não seriam verdadeiros fiéis, o fato é que basta uma pesquisa
rápida no Google para ver que a história das religiões é escrita com muito sangue
e que os alicerces de seus templos têm sido erguidos sobre os cadáveres de suas
vítimas.

Além dos recentes ataques às Torres Gêmeas e do terror dos homens-bomba,


podemos lembrar que muita gente foi queimada, torturada e assassinada em
nome de deus, e muitas vezes a mando de seus máximos representantes, ao
longo da história e, infelizmente, não parece haver indícios fortes o suficiente
para que alguém consiga afirmar que esse tipo de horror deixará de acontecer
nas próximas décadas.

Assim foi com as Cruzadas, de ambição mais econômica doque religiosa por
parte dos líderes, mas totalmente religiosa em seu cerne; com a Inquisição, na
Europa e nas Américas; com o assassinato de milhares de protestantes na França,
em 24 de agosto de 1571, na Noite de são Bartolomeu; com os conflitos ditados
pela intolerância religiosa na Irlanda em 2001. Isso para falar apenas do
cristianismo.

Matar em nome de deus, porém, nunca foi privilégio dos cristãos, e estão aí os
fundamentalistas islâmicos para nos mostrar isso, além do exemplo dos já
citados incas. E tanto na bíblia quanto nos livros de história, tanto hoje quanto no
passado, tanto pelo deus cristão quanto por muitos outros deuses, ao longo de
toda a história humana podemos ver que as religiões, desde sempre, vêm
formando um colar de contas de sangue e horror.

O que acho curioso é que muitos cristãos conseguem culpar a religião


muçulmana pelos ataques de 11 de setembro e conseguem culpar a religião
muçulmana e o judaísmo pelos conflitos no Oriente Médio, mas não admitiriam
em hipótese alguma a responsabilidade do cristianismo pela Inquisição.

Felizmente não são todos os cristãos que fazem isso, mas é sempre um exemplo
de como temos dificuldade em assumir nossas culpas e facilidade em demonizar
o outro, como bem explica Michael Shermer em seu livro Cérebro e Crença.
(SHERMER, 2012)

E muitos cristãos, mesmo quando assumem que a igreja católica é responsável


por muitos horrores, colocam tudo isso como sendo passado, esquecido e
apagado e, sem nenhum tipo de constrangimento ou desconforto, conseguem
pagar o dízimo, ir à missa todos os domingos e reverenciar o papa da vez. Eu
não consigo entender como fazem isso.

As “guerras santas” se veem desde a tomada da Terra Prometida descrita no


Antigo Testamento. O livro conhecido como “Palavra de Deus” traz em suas
páginas uma história de chacinas que me horrorizou quando li a bíblia pela
primeira vez e que me horroriza ainda hoje, com a diferença de que hoje os
horrores lá relatados não me horrorizam tanto quanto saber que milhões de
pessoas conseguem aceitar tudo aquilo como exemplo “da grandeza, da bondade
e da ‘maravilha’ do poder de deus”.

Nos cultos e missas das igrejas evangélicas e católicas os fiéis continuam


louvando o nome de Josué como um “escolhido de deus” enquanto se pode ler a
relação de crianças, mulheres, velhos, animais e povos inteiros na lista de suas
vítimas. Não entendo como as pessoas não conseguem perceber o que estão
fazendo.

E as tais guerras santas continuaram! Passando pelos Cavaleiros Templários e


pelas Cruzadas podemos ver os pés cristãos marchando sobre o barro misturado
ao sangue das vítimas e as mãos cristãs carregando suas espadas cada vez mais
afiadas a fim de cortar também os ossos dos que cometiam o “pecado” de
estarem no caminho por onde esses “bons homens” passavam.

E chegamos às vítimas inocentes dos jihads muçulmanos, tão severamente


criticados pelos mesmos cristãos que fazem questão de “esquecer” a própria
história. Isso sem contar os casos “menores” como a constrangedora cena,
transmitida ao mundo pela televisão, em que pessoas adultas fazem “corredores”
de ofensas e demonstrações de ódio pela rua por onde passavam crianças a
caminho da escola15.

Para os adoradores de um deus, é tragicamente comum que os outros deuses


representem uma espécie de mal a ser combatido na pessoa de seus fieis; isso
sem contar as inúmeras cismas que existem mesmo dentro das grandes religiões.
Para confirmar esse fato, temos os conflitos entre protestantes e católicos; são
exemplos mas não são casos únicos, a Noite de São Bartolomeu, os conflitos na
Irlanda, além das lutas ocorridas entre maio de 1532 e junho de 1535 na cidade
alemã de Münster e magistralmente retratadas por José Saramago em sua peça In
Nomine Dei (1993).

E há ainda a rivalidade dos evangélicos contra os espíritas e os adeptos das


religiões afro, estas felizmente não
15 “Abaixo está transcrita uma reportagem, datada de 3 de setembro de 2001, do programa Irish Aires da
emissora americana de rádio KPFT-FM. Meninas católicas enfrentaram protestos de unionistas quando
tentavam entrar na Escola Primária para Meninas Santa Cruz, na Ardoyne Road, no norte de Belfast.
Oficiais do Regimento Real do Ulster (Royal Ulster Constabulary — RUC) e soldados do Exército britânico
tiveram de afastar os manifestantes que tentavam isolar a escola. Barreiras de contenção foram erguidas
para permitir às crianças passar pelo protesto e chegar à escola. Os unionistas gritavam ofensas sectárias
enquanto as crianças, algumas de quatro anos de idade, eram protegidas pelos pais ao entrar na instituição.
Enquanto crianças e pais entravam pelo portão principal da escola, os unionistas lançavam garrafas e
pedras”. (DAWKINS, R. Deus um Delírio 2007, p 431)

tão violentas – ainda! – mas mais próxima de nós. Todos são cristãos, mas cada
um deles aparentemente cultua um deus diferente e antagônico.

Não vejo como acreditar que um deus perfeito permita que os adeptos de cada
uma de suas faces se hostilizem violentamente durante séculos. Esse deus
seguramente não faz jus a todo o poder e toda a bondade que lhe atribuem
porque nunca se manifesta, em nenhuma de suas formas, a nãoservia
enigmáticos textos “sagrados”, multi-interpretativos e adaptáveis a qualquer tipo
de preconceito e fobia.

É muito difícil, se não impossível, quando se pensa no que seja justiça, bondade,
tolerância, amor, imaginar que um deus com essas características, caso existisse,
se esconderia por trás de palavras dúbias, contraditórias e arcaicas e permitiria
essa rivalidade, esses conflitos, essas guerras e todos os horrores que foram, são
e ainda serão praticados em seu nome.

Para se justificar com respeito a esses fatos que é comum serem levantados pelos
ateus quando debatem com um teísta, o que esse teísta costuma argumentar é que
a violência e a hostilidade ao outro é uma característica do ser humano e que o
próprio ateísmo tem sua história de horror. Daí eles citam Stalin e Mao, entre
outros exemplos que a história registra da violência perpetrada em nome da
negação de deus; e, se o ateu permitir, o teísta vai mais longe e cita também
inúmeros exemplos de violência comuns no passado e no presente e que nem
sequer têm motivação religiosa, como as disputas por território e até mesmo as
brigas de torcedores de times de futebol. E o teísta está certo!

A violência e a hostilidade ao outro é uma característica do ser humano e não


precisamos da religião para sair matando nossos irmãos com requintes de
crueldade; tanto é que, ao contrário de alguns ateus mais radicais, eu não
acredito que o mundo seria maravilhoso e que viveríamos em paz caso as
religiões deixassem de existir.

O fato de que o ser humano consegue agredir, humilhar e até matar outro ser
humano não apenas sob o pretexto da religião mas também sob o pretexto do
patriotismo, dos mitos de uma pretensa superioridade racial, dos mais variados e
sempre insanos preconceitos e até mesmo da paixão irracional por um time de
futebol parece comprovar que a presença do mal não é resultado de uma suposta
liberdade que nos teria sido dada no ato da criação mas sim algo inato, existente
sempre e para sempre como parte integrante da natureza humana.

E aqui entra a minha incredulidade mais profunda: Como e por que um deus que
existisse todo-poderoso e bom permitiria essa briga toda? Se penso que deus não
existe, fica muito fácil entender, e até aceitar, a violência como parte da natureza
humana. A violência se justifica pela própria essência do ser humano, pela
necessidade de sobrevivência que permitiu aos nossos ancestrais a transmissão
de seus genes, a saída das cavernas, a criação de ferramentas, a superioridade
sobre os outros animais para os quais, se não fosse pela capacidade de raciocinar
e pela capacidade de matar, os homens primitivos seriam apenas mais uma presa
rapidamente extinta.

Em lugar do extermínio que teria sido o fim lógico caso fôssemos pacíficos e
incapazes de matar, nossos ancestrais progrediram e criaram a civilização.
Pensando nossa história pela ótica da ciência evolutiva, fica muito fácil aceitar e
compreender essa violência nata que no final das contas acabou sendo
responsável por estarmos aqui, criticando a violência. Isso eu entendo!

Mas, se pensar que existe um deus todo-poderoso e todo bom, aí então essa
nossa violência intrínseca não encontra justificativa nenhuma, e não encontra
porque, em existindo e sendo esse ser todo poder e todo bondade que descrevem,
deus não permitiria que essa violência acontecesse, ou mais ainda, como criador
do homem, um deus todo poderoso e bom não teria determinado que a propensão
à violência seria característica da sua criatura. Pelo menos é isso que eu imagino
que faria sentido diante de um supremo poder aliado a uma suprema bondade.

Por ser todo poderoso ele PODERIA fazer diferente, e por ser todo bom ele
FARIA diferente! Então, novamente, deus, o deus que os teístas descrevem, não
tem como existir porque a bondade, essa sua característica tão propagada, não
convive logicamente com a violência existente no mundo.

Deus não seria todo bondade porque por todo e qualquer ato de violência
praticado pelo homem, seja em seu nome, seja em nome de um time de futebol,
um deus criador e onipotente, se existisse, seria diretamente culpado. Afinal ele
teria criado o homem e dado a ele essa violência e hostilidade que o próprio
teísta afirma ser característica da nossa espécie, não teria?

E, como não havia ninguém para decidir por ele ou para influenciá-lo, deus
certamente teria que ter pensado e decidido criar dessa forma, teria que
forçosamente ter criado e permitido todo tipo de violência e horror que existiria
a partir daquele momento em que, por sua decisão e de acordo com sua vontade,
tudo começou a existir.

Que algum tipo de bondade pode ser possível em tal situação é algo que me
parece totalmente impossível.
XII

Antes de começar a falar sobre a bíblia deixa esclarecer alguns pontos que julgo
fundamentais: Não sou expert no assunto, não li a bíblia no original hebraico ou
aramaico ou grego ou latino, não estudei os manuscritos mais antigos e nem
sequer li os textos apócrifos; não tenho e certamente nunca terei conhecimento
para isso. O que fiz foi apenas ler, quando era adolescente, de capa a capa, a
bíblia em português, num volume que minha mãe, na época católica praticante,
tinha em casa e, mais tarde, lê-la novamente, e novamente em português, num
volume que ainda tenho em casa e que foi um presente que meu marido ganhou
de um amigo evangélico.

Fora essas duas leituras completas em duas fases de minha vida, li trechos,
capítulos e passagens em diversos contextos e por diversos motivos, desde
confirmar uma impressão quando escrevia algo até procurar comprovar se aquilo
que me disseram que a bíblia dizia em determinada passagem estava mesmo lá
embora eu não me lembrasse disso. Não passei anos estudando a bíblia sob a
ótica de uma determinada religião, como fizeram alguns dos teístas que me
escrevem, não sei citar de cor passagens bíblicas e muitas vezes lembro de uma
determinada passagem mas não tenho certeza de em qual livro da bíblia está
aquele determinado trecho. Esse é todo meu conhecimento.

A bíblia é o livro que a imensa maioria dos adeptos das religiões cristãs costuma
usar para provar a existência de deus. As duas outras grandes religiões – o
judaísmo e o islamismo – também têm seus livros e os três livros estão
intimamente ligados porque historicamente derivam uns dos outros.

Estou falando nas três principais religiões mas não são apenas elas que têm seus
livros “sagrados”, há vário outros livros e mesmo a bíblia não é única e igual
para todos os cristãos. Se você digitar “Livros sagrados” no Google, vai
encontrar uma lista de nove religiões que têm seus livros, mas por falta de
conhecimento de todas e por suspeitar fortemente de que não há tanta diferença
assim na maneira com que cada religião define seu livro, vamos nos ater às três
principais e à bíblia em particular.

Cada uma das três religiões dá a seu livro o mesmo valor de Verdade, de
“Palavra de Deus”, de Guia Moral, e cada uma das três religiões despreza os
livros das outras duas como mentirosos ou, no mínimo, como incompletos. Os
“ensinamentos” contidos na bíblia são tão complicados que várias igrejas cristãs
mantêm os chamados grupos de estudos bíblicos nos quais algumas pessoas
passam anos. Os judeus também têm algo semelhante pelo que sei, só que no
caso deles os livros estudados são outros, um deles, me disseram, é o Pentateuco,
que equivale aos cinco primeiros livros do antigo testamento da bíblia.

Muitos dos cristãos que passaram anos em um dos grupos de estudos bíblicos já
me escreveram para dizer que são profundos conhecedores da “palavra de deus”
e para afirmar que, por não ter passado anos e anos estudando os textos bíblicos
sob a ótica de determinada religião, sou uma ignorante e, portanto, não tenho o
direito de falar a respeito dela. Isso quando não concluem, sem nenhuma razão
aparente, que nunca li a bíblia e estou criticando algo que não conheço. Nos dois
casos me chamam de ignorante e me mandam estudar antes de falar do que não
sei.
Mesmo quando informo que sou professora de português e que mais de uma vez,
embora por conta própria e sem grupo de estudo, li cada uma das páginas da
bíblia, eles me respondem que não sou capaz de compreender os textos bíblicos,
que não fui iluminada pelo espírito santo e por isso nãosei nada a respeito dessas
verdades; dizem que não tenho capacidade nem conhecimento que me dê o
direito de criticar a bíblia. Ao mesmo tempo vejo uma leva de pessoas que são
semianalfabetas e que, como constato em minhas aulas, não conseguem
compreender gibi da Mônica, mas que têm toda a autoridade para falar a todo
mundo sobre as “verdades” da bíblia, e inclusive para tentar ensiná-las a mim.

Já tive mais de um aluno que, nas aulas, mostravam que não tinham condições
de compreender os textos mais simples, como os enunciados das questões dos
exercícios e provas escolares de nível fundamental; mas esses alunos muitas
vezes achavam que tinham autoridade não só para falar sobre a bíblia como para
ensinar a outros, muitas vezes ainda mais analfabetos, o que significa – ou o que
querem que signifique – o que nela está escrito. Tive alunos assim que eram
professores de religião em suas igrejas e que lá ensinavam crianças a “entender”
a bíblia. Devo dizer que nenhum deles fazia isso por maldade ou de má vontade,
pelo contrário, eram aplicados, dedicados e realmente achavam que estavam
fazendo um bem e que tinham condições de fazê-lo. Eu ouso discordar.

Cristãos, islâmicos e judeus definem seu livro como sendo a “Palavra de Deus”,
afirmam que ali estão todos os ensinamentos que deus quis transmitir. Para
muitos religiosos discordar, ironizar ou contrariar o que quer que esteja escrito
no seu livro, por mais contraditório, absurdo ou grotesco que seja, é ofensa
seríssima. Para os católicos antigos e para os fundamentalistas islâmicos atuais a
ofensa é passível depena de morte. Muitos teístas, cada um sobre o seu livro,
afirmam veementemente que a bíblia, o alcorão ou o talmude (ou torá; nunca
tenho muita certeza) nunca podem ser questionados porque aquele texto é a
“palavra de deus”. E a “palavra de deus” é a Verdade.

Uma vez uma colega me disse que, antes de abrir a bíblia, a gente deve fazer
uma oração pedindo “iluminação” para que sejamos dignos de compreender o
texto sagrado. Fiquei chocada porque essa moça era uma professora de história,
não argumentei, apenas mudei de assunto, mas fiquei me perguntando como é
que um professor de história consegue pensar dessa forma. Mais tarde conheci
muitos outros como ela.

Entre os cristãos – e não é diferente com os adeptos dos outros dois livros – a
bíblia é considerada tão importante que perdemos para sempre valiosíssimos e
insubstituíveis livros, documentos, testemunhos e relatos históricos porque
religiosos mais radicais argumentaram que “Toda a Verdade está na bíblia”,
portanto, para eles, todos os outros livros eram mentirosos e deviam ser
destruídos. E foram!

A bíblia é extremamente confusa, ambígua e contraditória, mas, dizem os teístas,


todos nós devemos compreendê-la e segui-la; por mais que se possa comprovar
que seguir a bíblia mesmo, atualmente, daria cadeia. Na minha visão irônica o
que percebo disso tudo é que deus ordenou que seus fiéis compreendam o
incompreensível; e para resolver esse problema sem grandes trabalhos, muitos
teístas se abstêm de ler a bíblia, exceto talvez o trecho que o pastor ou o padre
usou no último sermão. Ou leem e, por não entenderem nada do que leram,
continuam repetindo apenas as passagens que o pastor leu e dando a elas o
significado que o pastor deu. Minha mãe faz mais ou menos isso.

Não consigo perceber como nesse país onde a imensa maioria dos cristãos são
pessoas analfabetas, semianalfabetas ou analfabetos funcionais seria possível
que todas as pessoas compreendessem e seguissem a bíblia, mas parece que os
teístas entendem essa possibilidade, por isso formam grupos de estudo que estão
– nas três religiões – eternamente lendo, relendo e interpretando cada letra, cada
vírgula, cada “entrelinha” e “entrepalavra”, sempre de forma a que esse símbolo
e seu possível significado seja coincidente com o que o grupo que o estuda
acredita que deve ser o símbolo e o significado da palavra de deus.

Sei queparece muita ousadia da minha parte afirmar isso e muitos teístas que
estudam a “palavra de deus” vão discordar e provavelmente citarão exemplos de
passagens bíblicas que são contrárias ao que “nós gostaríamos de ler”, mas,
mesmo assim ouso manter minha afirmação porque, infelizmente, ao longo da
história e mesmo nos dias atuais, muitas vezes e ao preço de muito sofrimento,
grupos de “estudiosos” dos textos sagrados têm conseguido fazer com que a
“palavra de deus” coincida com seus preconceitos, apoie seus ódios e justifique
seus crimes.

Para alguém que está de fora, como é meu caso, o que parece mesmo é que o
homem primeiro criou deus, depois escreveu seus próprios desejos e suas
próprias ambições em pergaminhos e deu a esses escritos o título de “palavra de
deus” e, depois disso e por todos os tempos, estão sempre se aplicando na arte de
forçar deus a dizer o que eles querem que deus diga, seja para o bem, seja para o
mal. E quando alguém ousa, como venho tentando, externar essa impressão, em
lugar de pensar nisso o que eles fazem é ficar ofendidos.

Na bíblia e em cada um dos outros dois livros está descrito efalaomesmodeus


onipotente, onisciente,onipresente, bom e justo criador de tudo o que existe, o
mesmo deus que criou o homem e que de alguma forma convenceu esse homem
de que ele – o homem com certeza e a mulher um pouco menos
– é o ápice dessa criação, dileto e amado ser do qual deus espera sempre
obediência e submissão; e da mulher deus espera, inclusive, obediência e
submissão ao homem. Mas modernamente os estudiosos da bíblia vêm
conseguindofazer com que deus diga que não é bem assim e que as mulheres são
mais importantes e mais independentes do que ele vinha dizendo que elas eram
nos últimos milênios. Deus também evolui; demora muito, mas evolui.

Gostei muito da expressão “Teologia curupira” que uma amiga virtual disse que
um teólogo que ela conhece define como sendo a tentativa de ler e seguir a bíblia
como ela está escrita, sem levar em conta a passagem do tempo e as mudanças
que a história impõe, ele diz que ler a bíblia dessa forma é colocar-se na posição
de um curupira, a cabeça para a frente, mas os pés para trás, ou seja, esse
teólogo, de uma forma até engraçadinha, defende que a bíblia deve ser
interpretada e não seguida à risca.

E ele faz parte de um grupo até bastante grande de teístas que, embora
continuem tendo a bíblia como “palavra dedeus” estão cada vez mais
conseguindo ver o mundo de forma não fundamentalista e ver o outro de forma
não preconceituosa. Impossível não sentir uma enorme simpatia por esses teístas
que conseguem contrariar sua religião e sua história para manter e sustentar sua
decência, sua ética e sua bondade.

Mas aí entra a minha lógica questionadora e teimosa: Se a pessoa é religiosa e


pertence a uma religião que afirma que a bíblia é a palavra de deus, ela, pela
lógica, teria que aceitar a bíblia literalmente sempre e para sempre sem nunca
mudar nada, sem nunca dar mais do que uma e única interpretação ao que está
escrito nela.

Adoro que não façam isso, mas mesmo assim sou obrigada a afirmar que, pela
lógica que consigo perceber, não faz sentido aceitar o texto como a palavra de
deus mas supor que esse deus mudou de opinião ou não foi suficiente claro e por
isso o fiel tem que ficar fazendo “interpretações” e adaptações para a realidade
atual.

Se eles se perguntassem, será que seriam capazes de perceber algo como, por
exemplo, deus dizendo daqui a dois milênios que não há restrições para o sexo,
que casamento nãoé necessário e que a reprodução in vitro com planejamento
genético é a maneira mais santa de procriação e perpetuação da espécie?

Se deus existisse e fosse tão perfeito como dizem, ele não poderia ser mutável de
acordo com o tempo e as circunstâncias, ele teria que, obrigatoriamente ser
constante e único, portanto sua palavra teria que ser também obrigatoriamente
única, permanente e imutável, daí que a bíblia ou é a palavra de deus ou não é a
palavra de deus.

Essa coisa de “interpretação de acordo com o tempo” não faz nenhum sentido
quando se fala de um deus perfeito. Esse meio termo “É; mas depende” que
inventaram só serve para que as pessoas deixem de ver o óbvio: que a bíblia não
faz sentido nenhum como palavra de deus nenhum; e o mesmo vale para os
outros dois livros “sagrados” das outras duas grandes religiões monoteístas do
planeta.

Um deus que se diz único e perfeito – já que a perfeição, justamente por ser
perfeição, não admite mudanças – será também imutável. Se esse deus tiver uma
palavra, é lógico que essa palavra também tem que ser única, perfeita e imutável.
Daí que, para que a bíblia se sustente pelo menos na aparência como “palavra de
deus” – o que claramente ela não é – inventou-se essa coisa de “interpretação”.

Sei que alguns teístas argumentariam que “Não foi deus que mudou, foi o
homem que interpretou errado”, ou seja, são os homens (sempre a culpa é dos
homens!) e é por isso que a palavra de deus tem que ser interpretada de acordo
com a época, porque os homens mudaram não porque deus mudou.

Dito assim parece fazer sentido, não é? Mas não faz. Eu não sei como
“interpretar errado” a maioria das aberrações, contradições e mentiras do texto
bíblico. Deus manda que se mate o vizinho que usa roupas de dois tipos de
tecidos diferentes, deus manda que se mate um povo inteiro para roubar suas
terras, deus manda que se mate um filho que não obedece seu pai, deus manda
matar, e manda matar uma enormidade de vezes, e depois dizem que não
devemos matar porque deus disse “Não matarás”, e vão me convencer de que
quem mudou foi o homem?
Quando converso com algum teísta e ele, pacientemente, tenta mostrar isso só
consigo ver um malabarismo mental que não faz o menor sentido lógico. Essa
mudança de acordo com o tempo de um deus perfeito e imutável pode convencer
os teístas porque – como é próprio da raça humana – eles adoram ser
convencidos daquilo em que querem mesmo acreditar, mas não tem nenhuma
chance de convencer um ateu.

O homem sempre foi um assassino e sempre procura razões para matar, antes
deus dava essas razões ou semrazões e o homem matava sob suas ordens; “Não
matarás” foi um dos dez mandamentos, mas tem tanta exceção na bíblia que
sempre ficou muito fácil seguir as ordens de deus matando, principalmente
matando o outro, o estrangeiro, o estranho, o que pertence a outro grupo, outra
família, outra tribo, outra religião.

Mas, coincidentemente depois que o homem começou a criar leis cada vez mais
independentes dos dogmas da religião, aos poucos, tudo foi mudando e o que era
uma ordem um tanto esporádica na prática passou a ser proibição mais efetiva –
mesmo que essa proibição na realidade esteja sempre em vigor apenas para
alguns casos e a pena quase nunca seja aplicável para todas as situações e
nuances desses casos – e o mandamento “Não matarás” passou a ser um pouco
mais abrangente.

O homem continuou sendo um assassino, mas por força das necessidades


trazidas pelo nascimento, crescimento e desenvolvimento das cidades surgiram
as leis através das quais os próprios homens procuraram refrear seu instinto
assassino colocando mais a polícia do que a bíblia como agente de controle. E
então, provavelmente para estarem em conformidade com essas necessidades
óbvias, os teístas colocaram em destaque a proibição do assassinato, agora como
lei (quase) irrevogável de deus.

O fato é que o homem mudou deus para que deus mudasse o homem. E as leis
determinadas pela sociedade,
porforçadessanecessidadedeconvivênciaentregruposcada vez maiores e cada vez
mais heterogêneos, foram tornando a realidade tão distante da bíblia que, embora
existam muitos religiosos que afirmam que o fazem, é lógico que nos dias de
hoje não é possível seguir o “livro sagrado” literalmente; se é que um dia foi
possível fazer isso já que ele tem ordens contraditórias e qualquer chefe ou
comandante sabe que ordens contraditórias meio que dificultam a obediência de
seus subordinados por mais boa vontade que eles tenham para acatá-las. Só para
ilustrar aqui vai um exemplo bem light:

A mulher viúva tem que se casar com o cunhado ou não? Deuteronômio 25-5
“Quando irmãos morarem juntos, e um deles morrer, e não tiver filho, então a
mulher do falecido não se casará com homem estranho, de fora; seu cunhado
estará com ela, e a receberá por mulher, e fará a obrigação de cunhado para com
ela”. Mas parece que essa ordem não é muito rigorosa, qual das duas atitudes
será obediência afinal de contas? I coríntios 7- 39 “A mulher casada está ligada
pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica
livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor.”

Parece que nesse caso um raciocínio possível é que a mulher só fica obrigada a
se casar com o cunhado quando os irmãos morarem juntos, se cada irmão viver
em uma casa diferente a obrigação deixa de existir. Ainda bem que meu marido
não morreu no tempo em que tivemos uma dificuldade financeira séria e fomos
obrigados a morar com minha sogra!

Mas, espere um pouco, na segunda ordem não fala nada sobre morar junto ou
não, então a mulher está na verdade desobrigada de se casar com o cunhado.
Ufa, que alívio! Mas, espere um pouco de novo, então como é que fica a
primeira ordem? Não vale? Não foi deus quem a deu? Deus mudou de ideia?
Raios! Como obedecer uma ordem dessas?

E essa é só uma das contradições! Como conseguem dizer que esse livro é a
palavra de um deus perfeito?
Basta ler a bíblia para ver que ela manda cometer crimes que certamente
levariam o fiel de hoje – caso este resolvesse segui-la – à prisão. Muitos desses
crimes incentivados, e até ordenados, pelo deus bíblico eu sei que as pessoas
maravilhosas que existem e que são religiosas, mesmo em nome da sua religião,
não os cometeriam. Mas basta ver os noticiários para saber que o instinto
assassino do ser humano continua muito ativo e que livros ditos “palavra de
deus” ainda dão respaldo para assassinatos.
Ou seja, o homem urbano mudou deus para que deus mudasse o homem, mas o
homem não pode mudar tanto assim; e para continuar sendo o que sempre foi
pode se reunir em grupos e usar como justificativa o que foi escrito na Idade do
Bronze, literalmente, sem fazer muito esforço de interpretação.
Enfim, sei que existem muitos teístas que são maravilhosos, que não matariam
nem mesmo por ordem de suas religiões porque interpretariam essa ordem como
o pronunciamento de um líder que se corrompeu e que não está mais falando por
deus. Mas sou realista e leio jornal vezes suficientes para saber que,
infelizmente, existem os teístas que, mesmo sendo bons em circunstâncias
normais, são sugestionáveis a ponto de ver – se forem conduzidos a isso – essas
ordens como algo que devem seguir à risca. Então, na verdade, acho que faz-se a
chamada “interpretação” para escapar da arapuca que o texto coloca e não levar
tantos religiosos à prisão ou ao assassinato.
É como os oráculos da Grécia antiga: Cada templo tinha seus sacerdotes cuja
função era “interpretar” o que a Pítia dizia sob efeito da fumaça aromática que
ela cheirava. E os sacerdotes de então – como os de hoje – recebiam presentes e
eram sustentados pelos fieis do templo. A bíblia pode ser, de certa forma
comparada a uma Pítia dos nossos tempos; as pessoas não podem lê-la e segui-la
à risca porque se o fizerem cometerão crimes e irão para a cadeia; ao mesmo
tempo, é bom que – pelo menos a maioria – não possa lê-la e entendê-la
sozinhos porque correrão o risco de entendê-la mesmo, e se o fizerem cometerão
muitos crimes ou, se forem mais espertos, perceberão os absurdos e perderão a
fé.
Daí é preciso que os especialistas, os iniciados, os “escolhidos” a interpretem ea
traduzam para o rebanho. Como pagamento por isso recebem o dízimo e aceitam
doações; o fiel só precisa balançar a cabeça, concordar e nunca, em hipótese
alguma relacionar uma parte com outra parte para não correr o risco de perceber
as contradições, mas caso o façam os intérpretes são bons o suficiente para
convencê-los; e eles estão suficientemente dispostos a aceitar; que deus na
verdade não disse o que disse.
Aí está e sempre esteve a necessidade e o ganha-pão
– e também a oportunidade de roubo e exploração – dos líderes religiosos:
traduzir “a palavra de deus” para os reles mortais. E isso acontece desde antes do
cristianismo já que, pelo que parece, os judeus interpretavam a bíblia deles (que
chamam de torah) antes mesmo de Jesus nascer, se é que Jesus existiu.
Essa necessidade de interpretação seja da bíblia, da torah, do Alcorão ou de
qualquer livro sagrado ou “revelação” é, para mim, uma prova bastante
convincente de que deus não existe e, portanto, não deixou palavra nenhuma.
Um deus que fosse tudo o que dizem dele não deixaria nunca palavras obscuras e
duvidosas e muito menos ordens para que se matasse ou discriminasse pessoas.
O que acontece é que os mesmos teístas que defendem a bíblia como um espelho
de toda a Verdade, quando confrontados com algumas das muitas incoerências
do livro respondem que aquilo está em “sentido figurado”, que aquele
ensinamento, pedido, ordem, relato ou atitude é apenas algo que espelha a época
em que o livro foi escrito. Alguns religiosos mais dedicados perdem as
estribeiras e dizem que os não iniciados ou não crentes não têm capacidade de
compreender a palavra de deus. Um deus perfeito sim, mas seletivo: escreveu
apenas para os “escolhidos”.
Eu não saberia nunca respeitar um deus que tivesse “escolhidos”.
Essa alegação claramente depõe, pela lógica, contra a crença de todos os teístas
de que deus é justo, afinal, um deus que fosse realmente justo, teria que deixar
sua palavra e seus desígnios, caso esses existissem mesmo, claros para todos e
não apenas para os privilegiados, sejam eles poucos ou muitos. Sempre senti
que, em quaisquer circunstâncias e em qualquer lugar, se existem privilegiados,
existe injustiça.
Tenho certeza de que mesmo os próprios teístas que se colocam entreos
“escolhidos” quando o assunto é sua religião e seu deus, se mudarem o foco, se
estão falando em outro ambiente, em outra circunstância e sobre outro tema que
não seja a religião, a igreja ou deus, como, por exemplo, seu emprego ou sua
escola, ficarão indignados caso percebam que há “escolhidos” e vão concordar
com minha afirmação: Onde tem privilégio tem injustiça.
Mas, enfim, por conta desses absurdos e incoerências, um leitor neutro fica sem
compreender o que há mesmo de sagrado no livro e por que uma determinada
passagem é válida e outra não ou uma mesma passagem é válida em um
momento e em uma situação e em outra não.
A impressão mais forte que fica é a de que muito poucos teístas que afirmam que
a bíblia é sagrada, é a palavra de deus e só contém verdades e bons ensinamentos
na verdade já leram o livro todo, e qualquer professor de português tem total
certeza de que a grande maioria das pessoas não entenderia a bíblia se a lesse. O
que acontece é que a maioria lê apenas passagens ou no máximo acompanha
com os olhos a leitura que o padre ou pastor faz do trecho que ele escolheu para
o sermão e com isso acha que é expert em “palavra de deus”.
E por falar em incoerência, um bom exemplo da arapuca em que fica o leitor
leigo e imparcial é a história de Adão e Eva e o pecado original aliada à história
da vinda, vida e morte de Jesus. Os teístas mais esclarecidos, mais cultos e mais
livres, embora muitas vezes digam coisas como “Vocês, mulheres, sofrem as
dores do parto porque Eva desobedeceu a deus”, admitem que a história de Adão
e Eva, da maçã e da serpente não deve ter ocorrido como narra a bíblia, vários
religiosos definem essa narrativa como um exemplo do que, na bíblia, está
colocado em “sentido figurado”. Daí que não houve um Éden, deus não
amaldiçoou a mulher, não existe essa coisa de pecado original. Viram? não existe
pecado original!
Pois pensemos então: se aceitamos que Adão e Eva na verdade não existiram tal
qual consta no gênesis, que os fatos não aconteceram exatamente da maneira
como vêm relatados, apesar de a minha mãe ter me dito que me batizou na igreja
católica para me livrar do pecado original, aceitaremos que o pecado original –
que é aquele cometido pelo casal primordial no momento em que,
desobedecendo às orientações de deus, resolveram provar o gosto do fruto da
árvore do bem e do mal – não existiu.
É ótimo poder eliminar o pecado original da história porque o castigo por essas
“dentadas impensadas” é um dos momentos em que, se prestarmos atenção, o
significado do termo “justiça divina” sofre o maior abalo, afinal, uma falta que a
maioria dos pais terrenos puniria com atitudes como fazer o filho dormir sem
sobremesa, deus puniu com a expulsão do paraíso e uma praga que atinge, de
acordo com a bíblia, toda a descendência do casal primordial.
Seria como eu ter punido meu filho, que aos dois aninhos conseguiu subir na
cadeira e pegar um pedaço de bolo que estava em cima da pia, com a expulsão
de casa e uma praga terrível que atingiria toda a sua descendência para todo o
sempre. Se eutivesse dado um tapa no meu filho nessedia, já sentiria que estava
praticando uma injustiça enorme, imagina o que eu pensaria desse deus se ele
tivesse feito mesmo o que diz no gênesis que ele fez.
Na visão de qualquer pessoa que pense nisso de forma racional e que não esteja
influenciada pela fé, esse castigo, pela sua desproporcionalidade, parece
tremendamente injusto. Mas, tudo bem, não houve essa imensa injustiça quanto
à proporção falta/castigo porque a história não aconteceu de fato. Maravilha! O
homem está aliviado do pecado original e pode seguir em frente acreditando que
o deus bíblico não cometeu na verdade essa gigantesca injustiça.
Talvez com isso o teísta ache até que o ateu deixou de ter uma razão – bem forte
diga-se de passagem – para não crer em deus, na sua bondade e na sua justiça.
Mas aí chega o novo testamento e lá está um Jesus que veio ao mundo para
sofrer de forma inimaginável com o objetivo de livrar a humanidade do pecado
original. Pronto, deixou de fazer qualquer sentido: Se o pecado original não
existiu porque toda a passagem de Adão, Eva, Éden, Árvore, Serpente, Fruto é
“sentido figurado” então como pode Jesus ter sofrido para que a humanidade
fosse redimida do pecado original? Ou foi por outro pecado que Jesus veio?
Qual outro pecado se todo e qualquer pecado que a gente cometa pode nos levar
ao inferno pela eternidade?
E esse é apenas um exemplo de absurdo e incoerência; um dos tantos e um dos
que não adianta tentar entender porque fazer isso sem ter a chamada fé é tarefa
impossível.
Faz-se necessário, nessa altura, parar um pouco sobre o termo “Sentido
figurado” aqui colocado entre aspas porque não costuma ser explicado pelos que
o usam para eliminar ou suspender a validade de partes da bíblia que geram
conflitos racionais mais sérios. Em sala de aula já aconteceu de ouvir uma aluna
explicando que determinada passagem da bíblia era sentido figurado e, dias
depois, quando, seguindo com a matéria, fui trabalhar sentido denotativo e
sentido conotativo, percebi que ela absolutamente não sabia o que significa
sentido figurado. Pois vamos lá então: Sentido figurado, qualquer professor de
português pode ensinar, é o sentido conotativo ou não literal das palavras, é um
outro sentido que se pode atribuir a essas palavras por analogia, é quando se usa
alguma figura de linguagem, como a metáfora por exemplo.
Mas se uma palavra ou um texto está colocado em sentido figurado, é possível e
de se esperar que um leitor experiente consiga sem grandes dificuldades captar
qual foi o verdadeiro sentido em que aquele texto foi escrito, em outras palavras,
qual foi a intenção do autor do texto, que sentido real está “por trás” desse
sentido literal que não é válido nesse caso e, principalmente, o sentido figurado
tem que, obrigatoriamente, ter alguma relação com o sentido literal, afinal, como
ensinam muitos bons professores de literatura: todo texto é uma obra aberta, mas
não escancarada. Ou seja, um texto pode até, e isso é sinal de riqueza, admitir
mais do que uma interpretação, mas o texto não admite QUALQUER
interpretação.
Perceber o sentido figurado nos textos poéticos ou literários em geral e até
mesmo nos textos jornalísticos quando eles os têm é uma das grandes
dificuldades que os alunos têm em sala de aula, e mostrar essas possibilidades de
interpretação é uma das maiores e mais difíceis tarefas dos professores de
português. E ouso dizer que muitos e muitos profissionais formados e pós-
graduados têm as mesmas dificuldades em suas leituras.
Outra dificuldade muito grande é conseguir que os alunos compreendam textos
mais antigos, mesmo que muitíssimo menos antigos do que a bíblia; às vezes de
apenas de algumas décadas atrás. Como então acreditar que os teístas, em sua
maioria, conseguem entender a bíblia se e quando a leem? Como acreditar até
mesmo que o pastor daquela igrejinha de fundo de quintal sabe o que está lendo
para seus ouvintes? Acho bem mais crível que em sua imensa maioria os teístas
afirmam e acreditam que a bíblia é a palavra de deus porque não sabem ler o
suficiente para perceber as incongruências presentes em suas páginas.
Na verdade, no caso da bíblia em muitos momentos, nem um leitor experiente
vai captar o sentido oculto do texto; e caso tente não vai conseguir encontrar
porque, aparentemente, o religioso não sabe qual é esse sentido ou então o que
vai fazer é criar um “sentido”, muitas vezes incoerente, que possa servir como
justificativa para o que ele quer que aquele texto signifique naquele momento.
Qualquer coisa para defender seu deus dos ataques dos hereges feito eu!
E mesmo quando a explicação do sentido figurado é dada de forma convincente,
o fato de os textos, histórias e ensinamentos da bíblia estarem, no dizer do teísta,
no sentido figurado apenas em algumas situações e em alguns momentos, de
acordo com a conveniência do argumentador, é algo que não dá para ser aceito
por uma ateia teimosa e questionadora como eu.

XIII

Desde sempre, o ser humano tem curiosidade de saber onde e de que forma tudo
começou. Para explicar tudo o que esse ser humano não conseguia explicar, de
uma forma que o consolasse, surgiram as religiões, muitas das quais hoje
chamamos de mitologia. Acho que as teogonias são mais antigas do que
qualquer coisa que depois viemos a chamar de civilização.

Para a religião da qual (ou das quais) estamos falando a teoria é essa: No
princípio não existia nada, e com nada se diz nada mesmo, total zero, total
ausência. Não existia o tempo, não existia a forma, não existia a física e nem as
leis da física, não existia natureza, não existia lei da gravidade, não existia
matéria. Só existia deus. Onde ele estava? Em lugar nenhum porque não
existiam lugares. Pode alguma coisa estar em lugar nenhum? Isso é um problema
(mais um problema) para os teístas resolverem.

E aí vem o segundo problema: Muitos teístas não aceitam o evolucionismo como


explicação científica para a existência do mundo e argumentam que para isso
seria preciso aceitar que algo tão complexo como a natureza e tudo o que vemos
à nossa volta teria surgido do nada, embora Darwin nunca tenha dito isso. E
afirmam sorrindo “bondosamente” como se nos chamassem de burros, que isso é
totalmente inaceitável.

Mas é engraçado que eles conseguem aceitar sem problema que algo como deus
– muito mais complexo que a natureza – surgiu do nada. Ou será que os teístas
não acham que o deus deles é mais complexo do que a natureza ou o universo?
Alguns dizem que deus não surgiu, ele apenas existe, é o “incriado”. E acham
que essa teoria é mais simples do que a teoria da evolução. Não consigo perceber
onde está essa simplicidade.

Felizmente, para dar respostas sem fantasias e sem apelar para o conhecimento
mais do que ultrapassado de homens que viveram na Idade do Bronze, existe a
ciência. Se você quer respostas que realmente satisfaçam, embora aumentem
ainda mais sua curiosidade e o número de perguntas que terá, estude ciência.

A procura pelo conhecimento é essa busca incessante por algoque você sabe que
não vai encontrar. Essa é a inquietação de todo cientista e da própria ciência. Se
pensar, se não optar por suspender o racional, você jamais terá as certezas que
procura, mas mesmo não sabendo tudo, e mesmo sabendo que nunca saberá,
verá que a procura por respostas é algo compensador. Por isso não é comum
cientista abrir mão da ciência. “Posso jamais encontrar o jardim que procuro,
mas é o perfume de suas flores que me ajuda a viver!”16.

Teístas que tentam desacreditar a ciência dizem: “O que a Ciência faz é


simplesmente deduzir; todas as “comprovações” são meras deduções”. Eu fico
realmente espantada por ouvir, muitas vezes de pessoas inteligentes e cultas. Um
argumento tão pobre! E o incrível é que muitas vezes argumentos desse tipo são
colocados em uma conversa pela internet! “simplesmente deduzir”? “meras
deduções”?

Por favor senhor teísta, reveja o que você está dizendo. Você está usando uma
“mera dedução” para conversar comigo! Quando fica doente você vai até a
farmácia para tomar uma “mera dedução” e fica curado. Ao contrário da religião,
a ciência pesquisa, estuda, testa, procura respostas, erra até, mas não empina o
nariz para dizer que tem a resposta final.

Por exemplo, em nenhum momento do seu livro Criação Imperfeita (GLEISER,


2010) o físico brasileiro Marcelo Gleiser afirma que a ciência sabe tudo, pelo
contrário, sobre várias coisas ele chega a dizer que a ciência provavelmente
nunca encontrará resposta. Para a ciência a verdade é provisória, tudo é
considerado verdade apenas e tão somente até o momento em que alguém
consiga provar que não é. Cientistas ganham fama e reconhecimento fazendo
descobertas, aprofundando estudos ou falseando afirmações de outros cientistas,
por isso é natural que estejam sempre testando as conclusões dos colegas.
16 Essa frase é minha mesmo, mas me pareceu tão óbvia que achei melhor colocar entre aspas porque não
acho que fui a primeira pessoa a dizer isso.

Além disso, quando não se consegue provar a falsidade de uma teoria, esta pode
ser usada em novos estudos e experimentos porque se pode confiar nela, embora
essa confiança seja sempre provisória. É exatamente isso que vem acontecendo
com a teoria da evolução desde que Darwin a publicou. Até agora ninguém
conseguiu falseá-la, apenas adaptá-la e acrescentar mais detalhes e informações à
medida que novas descobertas são feitas com o uso de tecnologias mais
avançadas. Para a frustração dos criacionistas, a teoria da evolução é mais válida
do que nunca.
“Sabe por que a ciência não consegue tal façanha? É porque só deus pode fazer
isto!”. Essa é uma das frases preferidas dos teístas e foi dita várias vezes a
respeito de várias coisas que hoje são corriqueiras. Houve um tempo em que se
afirmava que a ciência não valia nada porque não se conseguia criar em
laboratório nenhum dos compostos que estão presentes no e que são produzidos
pelo corpo humano, mas Friedrich Wöhler (1800-1882) conseguiu processar a
ureia17, que é empregada em muitos setores da indústria, e que recentemente foi
usada por comerciantes desonestos para adulterar o leite “de caixinha”.

Repetiram a frase para dizer que nunca seria possível voar com um objeto mais
pesado do que o ar, falar em tempo real com alguém que está do outro lado do
mundo, clonar tecido vivo. A moda agora é “desafiar” a ciência como totalmente
inválida porqueela não consegue“criar a vida a partir donada”.
17 A ureia foi descoberta por Hilaire Rouelle em 1773. Foi o primeiro composto orgânico sintetizado
artificialmente em 1828 por Friedrich Wöhler, obtido a partir do aquecimento do cianeto de amônio (sal
inorgânico). Esta síntese derrubou a teoria de que os compostos orgânicos só poderiam ser sintetizados
pelos organismos vivos (teoria da força vital). (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ureia - Acesso
em: 20/08/2013)

Eu não acredito em deus e, portanto, não acredito que deus tenha gerado a vida a
partir do nada, e mesmo que os cientistas nunca consigam criar a vida – o que é
muito provável que aconteça – nada prova que deus o tenha feito. Se não se pode
provar que deus existe, por mais que os religiosos venham tentando isso há
séculos, menos ainda se pode provar que ele tenha criado a vida a partir do nada,
portanto, esse “desafio” chega a soar ridículo.

Nenhum cientista sério diria que a ciência pode criar vida, mas
éfazendoperguntas eprocurando respostas quea ciência avança e para quase todas
as questões que a ciência levanta se pode dar como resposta a frase: “Quem sabe
um dia...”

Várias vezes as afirmações dos teístas se mostraram falsas, não está na hora de
serem menos prepotentes?
Nós, ateus, somos acusados com muita frequência de endeusar a ciência, dizem
que não existem ateus de fato, que todos os que se dizem ateus são na verdade
“cultuadores” de um deus chamado ciência. Algumas vezes “demonstram” essa
“verdade” dizendo que nós sempre falamos em milagres da ciência e que usar a
palavra milagre significa dizer que a ciência é um deus porque só deus faz
milagres. Mas, como vimos acima, muitas coisas que a ciência fez eram, antes
que a ciência o fizesse, coisas que “só deus poderia conseguir”, nesse sentido,
milagre bem poderia ser definido como aquilo que a ciência AINDA não
conseguiu fazer ou explicar.
Não acreditar na ciência é não acreditar na realidade. Não digo que não existam
ateus que, quando falam na ciência, realmente dão a impressão de estarem
cultuando a ciência como se fosse um deus, estão errados. A ciência, se fosse um
deus, não seria um deus capaz de se prestar a muitos cultos; como disse Carl
Sagan “Não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade” e eu posso afirmar
que nunca senti a mínima vontade de erguer um altar para o meu forno de micro-
ondas ou para Stephen William Hawking, o maior cientista vivo.
Um deus não admite ser contrariado, não admite que suas verdades sejam postas
à prova e derrubadas como falsas; a ciência vive disso. Quer um exemplo?
Marcelo Gleiser, em seu livro já citado, fala de quando foi descoberto e se
começou a produzir o gás CFC. Antes de iniciar a produção do gás, fez-se todas
as pesquisas e se comprovou que o gás era inofensivo ao ser humano e que era
estável a ponto de, ao ser lançado na atmosfera não reagir com nenhum outro gás
e, portanto, não ajudar a formar nenhuma substância nociva à saúde. Isso era um
fato, um fato comprovado em laboratório e, portanto, uma verdade científica.
Mas, décadas depois, se descobriu que, embora seja inofensivo à saúde e embora
realmente não se combine com nenhuma outra substância para formar algo
danoso dentro da nossa atmosfera e na altura em que estão os gases que
respiramos, esse gás CFC, justamente por ser estável, acaba por chegar intacto à
camada de ozônio que está bem acima denós e que nos protege contra os raios
ultravioletas do sol, e lá – só lá – onde o ozônio é abundante, se pode ver quanto
de dano isso pode causar à nossa vida porque o CFC reage com o ozônio e o
destrói quebrando suas moléculas.
Marcelo Gleiser dá a explicação detalhada e coloca as fórmulas químicas para
que o leitor consiga fazer uma ideia de como isso acontece, mesmo que seja –
como é o meu caso – um leigo no assunto. O fato final é que esse gás CFC, que
era comprovadamente inofensivo, mostrou-se tremendamente danoso para a vida
humana. Uma verdade científica comprovada – e provisória como toda verdade
científica – passou, depois de algumas décadas, a ser uma mentira.
Isso, que é comum na ciência, não costuma acontecer na religião. Normalmente
a religião se apega a seus conceitos ultrapassados e errados com tanto afinco que
aceita sem problemas negar a realidade em nome de suas “verdades”
inquestionáveis. Portanto, acusar os ateus de cultuarem a ciência como um deus
é desconhecer o que seja ciência e o quanto ela é impermeável ao culto no
sentido religioso da palavra.
Outro argumento que com frequência tentam usar é dar exemplos de coisas ruins
que a ciência fez – e não é difícil encontrar esses exemplos – para dizer que os
ateus cultuam um deus falível e nocivo. Acontece que um dos “milagres” da
ciência foi conseguir reproduzir e tornar possível ao homem um ato que até
então só deus tinha feito: Destruir pelo fogo uma cidade inteira.
Veja então que, se for usar as coisas ruins e terríveis descobertas e colocadas em
prática pela ciência, coisas que nenhum ateu nega, os crentes acabam por se
deparar, em alguns casos, com essas mesmas coisas praticadas pelo seu deus e
descritas no seu livro sagrado; a diferença é que nenhum ateu considera a ciência
infalível e todo crente afirma e reafirma, contrariando qualquer lógica racional, a
infalibilidade de seu deus.
Sim, a ciência cria armas, bombas, estratégias de assassinato e tortura. Dizem
que algumas vacinas criadas pela ciência servem para doenças que também
foram criadas pela ciência e que estão nos quartéis para serem usadas em caso de
guerra biológica. Não tenho provas sobre isso, mas não duvido. Acontece que
embora ambas, ciência e religião, possam ser usadas para o mal – e são – a
diferença básica é que mesmo as invenções mais terríveis da ciência
FUNCIONAM.
O fato é que muitos dos religiosos e muitos dos cientistas não passam de
mercenários egoístas, preocupados apenas com a fama e com o dinheiroque vão
tirar dos fieis acéfalos ou dos doentes e desesperados. Sei que nem todos são
assim, nem de um lado nem de outro, felizmente, mas eles existem e são muitos.
Isso porque o ser humano é mau e defeituoso. Digo novamente: Se existisse –
por ter criado o homem como ele é – deus seria culpado tanto pelos horrores
praticados pela religião quanto pelos horrores praticados pela ciência.
Finalmente, se um dia – contrariando todas as minhas certezas – a ciência provar
que deus existe, então não existirão mais ateus. Mas também não existirão mais
crentes fanáticos dizendo que a ciência não sabe nada. É característica da
religiãorejeitar a ciência no que ela contraria sua fé e abraçá-la de bom grado
quando alguma descoberta científica concorda com qualquer história da bíblia,
com qualquer mínima parte de toda a mitologia que compõe a religião.
Muitas vezes os teístas chegam a distorcer a ciência com argumentos
inconsistentes na tentativa de fazer com que provas científicas não entrem em
choque com a religião, prova disso é a recente declaração do papa de que a teoria
da evolução de Darwin não contraria a história da criação contada no gênese.
Imagino quanta ginástica mental precisaram para dar uma aparência de verdade
a essa afirmação.
De qualquer forma, se a ciência provar que deus existe e que ele é exatamente
aquele deus cristão do qual os teístas me falam, nem eu serei ateia nem você será
crente, afinal crer, no sentido religioso, é não ter provas e você as terá. Nós nos
dividiremos em dois grupos: o grupo dos que o adoram
– do qual você, teísta, certamente fará parte – e o grupo, muitíssimo menor, dos
que o desprezam. Eu estarei com certeza nesse segundo grupo.

XIV

Pelo que se lê na bíblia e pelo que se ouve dos deístas, o que a lógica permite
que se conclua é que, se existir um deus, ele deve ser megalomaníaco e deve ter
optado por criar o mundo para ser adorado e venerado, para ter seres que se
humilham diante dele, para ter servos e escravos, afinal não é como “servos de
deus” que muitos dos que creem nele se definem?

Pelo que podemos ver e ouvir, essa relação entre deus e os que acreditam nele
parece se caracterizar mais como servos-senhor do que comofilhos-pai. E a
existência de servos pressupõe um amo, um ditador e nunca um pai. Um filho
comum nunca se sentiu servo do seu pai e provavelmente nunca conheceu
alguém que se sentisse dessa forma com respeito a seu pai, digamos, terreno. No
entanto, muitos dos religiosos, que se dizem filhos de deus, se dizem também
servos de deus. Para quem está vendo de fora, essa relação não parece uma
relação sadia, não parece uma relação pai e filho e, decididamente, não parece
fundamentada no amor.

Por que se dizem filhos e, ao mesmo tempo, servos de deus? Que raio de pai é
esse que quer seus filhos como escravos? Em todo tipo de oração tem essa coisa
do “me use”, “sou teu servo”, “sou a ovelha pronta para o sacrifício”, “Senhor,
fazei de mim um instrumento”... Haja humilhação! Será que há possibilidade de
existir realmente um deus que, mesmo sendo bom, se agrada apenas das pessoas
que sabem se humilhar bastante?

Onde é que estaria, escondida – e muito bem escondida


– a suprema bondade desse deus com toda a aparência de um senhor escravagista
de chibata na mão? Por que um deus todobondade iria querer esse tipo de relação
degradante com suas criaturas se ele as ama, como tanto propagam os teístas?
Para mim, que vejo meio de fora, essa relação homem-deus parece mais uma
relação vítima-algoz, e as religiões parecem ser produtos da tão conhecida
síndrome de Stocolmo.

Só para lembrar: Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico desenvolvido


por pessoas que são vítimas de sequestro. A origem dessa síndrome é a tentativa
da vítima de, por medo, se identificar com seu captor ou, na intenção de salvar-
se, a tentativa de agir de forma a conquistar a simpatia do sequestrador. Pela
fragilidade emocional da vítima, esta acabaria por tornar real essa identificação e
por assumir essa simpatia no sentido inverso, em lugar de despertar no
sequestrador a simpatia por ela, de alguma forma que só a situação de tensão
psicológica explica, a vítima desperta em si mesma a simpatia pelo sequestrador
e de vítima passa a agir como cúmplice a ponto de defender seu algoz diante da
polícia que vem libertá-la.

Isso é tido e havido como uma patologia, uma doença, e que me perdoem os que
acharem que estou pegando muito pesado, mas para uma ateia chata feito eu,
esse apego que muitos teístas e que os preceitos das religiões mostram com
respeito a deus lembra muito, muito mesmo, a síndrome de Stocolmo.

Como teimosa questionadora que sou, em alguns momentos sinto pelas pessoas
religiosas que conheço, que sei que existem, que sei que são boas, amigas e
generosas o mesmo tipo de pena melancólica que se pode sentir por uma vítima
da síndrome de Stocolmo porque, apesar de tudo o que comprovaria o contrário,
fazendo questão de ignorar toda e qualquer contradição, por mais óbvia que esta
seja, tem muita gente que não apenas admite a existência de deus, mas que a
afirma com toda a certeza.

O que parece totalmente incompreensível para mim, é que muitas dessas pessoas
acreditam na existência de deus, segundo elas, com base na razão! Pelo menos é
isso que afirmam, por mais difícil de compreender que essa afirmação seja.
Pessoas como Tomás de Aquino, Agostinho e C.S. Lewis tiveram ao longo da
história um trabalhão enorme para fornecer “provas” e os mais elaborados tipos
de argumentos “racionais” que pudessem ajudar todas as pessoas que querem
crer com base na razão.

Mas aí está um problema grande para mim, uma ateia comum: por mais que leia
Tomás de Aquino, minha razão não consegue admitir a existência de um deus
criador. Não consigo pensar em um deus que, sendo todo poderoso e todo bom,
fosse capaz, conscientemente, de criar o mundo e a vida como eles são. Chego a
admirar, embora nunca compreenda, as pessoas que conseguem isso, elas se
apoiam em conceitos lógicos que não me parecem lógicos mas que o são para
elas, e acreditam. Eu não posso.

Li com toda a atenção As Cinco Vias que Levam a Deus, de Tomás de Aquino e
não tive como concordar com elas ou levá-las a sério de verdade, li também As
Vinte e Quatro Teses Tomistas e mesmo depois de voltar a Aristóteles e voltar
novamente a Aristóteles para conseguir compreender bem do que Tomás de
Aquino falava, saí da leitura tão ateia quanto antes. Enfim, sempre que leio a
defesa da existência de deus de algum filósofo o que concluo é que ele na
verdade não questionou a existência de deus, apenas tomou essa existência como
fato inquestionável e daí, a partir desse alicerce etéreo, construiu toda a sua
teoria.

Recentemente, lendo o livro Cérebro e Crença, de Michael Shermer (2012),


encontrei uma possível explicação para esse fenômeno. Nesse livro, Shermer
defende a tese de que primeiro as crenças surgem e se instalam em nossos
cérebros, depois conseguimos, via muitos “truques” e subterfúgios, encontrar as
explicações “lógicas” para essas crenças. O autor demonstra essa tese
apresentando inúmeros estudos feitos por neurocientistas; tais estudos envolvem
pesquisas com instrumentos de altíssima precisão e tecnologia, pesquisas
controladas e monitoradas com todo critério e com números expressivos de
pesquisados e até mesmo experiências pessoais.

Boa parte das explicações mais específicas e técnicas apresentadas no livro


fogem à minha capacidade de compreensão por envolverem detalhes dos
conhecimentos científicos a respeito do funcionamento do cérebro que, me
pareceu, ficariam mais claros para pessoas que estivessem a par desses avanços.
Não é o meu caso. Mas, mesmo sem poder levantar bandeira, os argumentos me
pareceram bastante convincentes e bem embasados. O que quero dizer é que, na
prática e pelas observações que tenho feito, a afirmação de Shermer parece
totalmente condizente com o que penso a esse respeito.

Em alguns casos me parece que pelo menos alguns desses teístas “racionais” na
verdade não acreditam realmente em deus, mas – conscientemente ou não – se
recusam a duvidar porcontadareligiosidadearraigadaemsuapersonalidadepor
influência do meio ou até mesmo da época em que viveram. Esse me parece ser
o caso, por exemplo, de Spinoza.

Tais teístas me passam às vezes a impressão de que se recusaram – ou forçaram


o próprio cérebro a se recusar
– a afirmar sua descrença por medo das retaliações, que vão desde a inquisição
que condenou Galileu Galilei até o fechamento das portas da vida acadêmica,
que efetivamente se lacraram para David Hume. O resultado, para mim, seja da
leitura de Tomás de Aquino, seja da leitura de descartes, de Leibniz, de Berkeley
ou mesmo de Kant, é quase sempre um belo gigante com pés de barro. É essa a
impressão dessa ignorante que vos escreve.

A simples razão não consegue, na minha cabeça, casar uma bondade suprema
aliada a um poder supremo que crie, por exemplo, coisas que matam crianças.
Essa coexistência é irracional independente do que sejam essas coisas: outros
seres humanos, vírus, bactérias, catástrofes naturais, parasitas, não importa. Um
deus bom seria incapaz de criar algo que mate crianças! Isso eu vejo como uma
afirmação racional, por menos racional que possa parecer aos teístas “racionais”
de plantão.

E esse, como ficou explicado lá em cima, é só um dos motivos que levam minha
razão – e acho que qualquer razão destituída da cegueira da fé religiosa – a
rejeitar a possibilidade da existência de deus. Sei que muitos argumentarão que,
ao citar a morte de crianças como razão para não crer, estou avaliando deus pela
minha ótica humana e dando ao ser humano uma importância que ele não tem;
mas quando o teísta diz que deus criou o homem à sua imagem e semelhança,
quando afirma que deus é bom porque nos criou e “nos ama tanto que entregou o
seu filho único em sacrifício”, eles não estão dando ao ser humano uma
importância que ele não tem? Qual de nós dois está dando mais valor (indevido)
ao ser humano?

O ser humano como raça é o protótipo de tudo que é abominável. O ser humano
adulto é muitas vezes tão asqueroso quefaz com que uma pessoa
medianamentesadia sinta vergonha de pertencer a essa raça, mas uma criança?
Uma criança é quase uma árvore no sentido de que a árvore é o ser vivo mais
maravilhoso do planeta. Uma criança é toda uma promessa, toda uma
descoberta, todo um milagre.

Sim, não se espantem amigos, sou ateia, não creio em deus e se nele cresse o
odiaria, mas creio em milagres no sentido de que é assim e só assim que consigo
definir coisas maravilhosas que existem e de cuja causa não tenho explicação.
Mas minha afirmação de milagre não é religiosa porque para mim, essa
explicação que não tenho decididamente não pode ser esse deus doente de
sadismo que os teístas cultuam.

Tem algumas pessoas que não se ligam a nenhuma religião tradicional, em


alguns casos são mesmo contrárias às religiões institucionalizadas, aceitam a
ideia de um criador, mas acreditam que ele não interfere na criação. De acordo
com esses teístas, deus teria criado tudo, dado o “pontapé inicial” para o
surgimento da vida através da teoria da evolução e não interfere mais, ou seja,
depois de criar, ele cruzou os braços ou foi ler um livro. Dizem apenas que deus
é bom porque a sua criação é boa. Como podem afirmar que essa criação, se
criação for, é boa eu não sei; o que pergunto é: Boa comparando com o quê?

Já abordei esse tema quando falei sobre as características fundamentais de deus,


mas vou correr o risco de ser repetitiva e explanar novamente o mesmo assunto.
Se pensar quediante de cada uma das maravilhas – que existem e que são muitas
– podemos colocar um ou vários horrores, como podemos afirmar que “Deus é
bom porque a sua criação é boa”? Muita gente, muitas músicas, muitas crenças
afirmam que a vida é maravilhosa, é um milagre, é um presente de deus, é uma
dádiva que não sabemos valorizar; já fui muito questionada pelo meu ateísmo
com frases do tipo “Como é que você pode não acreditar em deus se ele te deu a
vida e se a vida é a maior de todas as dádivas?”.

Tudo isso é dito como verdade irrefutável. Será irrefutável mesmo? Tem tanto de
ruim na vida de tanta gente e de tanto bicho que podemos perguntar: Será que se
pode considerar maravilhosa essa coisa tão cheia de medo, dor, tristeza, fome,
miséria, desastre... que chamamos de vida? Minha resposta é um sonoro NÃO.

Aparentemente, quem fala da beleza e da maravilha da vida é porque está


olhando apenas um lado da moeda, ou está olhando apenas para a sua própria
vida e coincidiu de essa pessoa ser uma das poucas privilegiadas do planeta a ter
uma vida que realmente se pode chamar de bela, de boa, de maravilhosa. Ou, o
que é mais provável, a vida dessa pessoa é apenas medianamente boa – ou até
mesmo ruim
– mas somos fundamentalmente otimistas! Temos o medo natural e atávico da
morte e, talvez como “estratégia” para nos “desviar” dessa morte que nos
apavora, temos também uma forte tendência não apenas a esperar que tudo
melhore como também a achar que tudo está melhor do que realmente está; pelo
menos quando nosso objetivo é nos sentirmos privilegiados. Isso tudo graças ao
fato de que somos animais dotados do instinto de autopreservação.

E, acrescentado a esse medo, a lavagem cerebral dos conceitos a religiosos que


foram arraigados em nós desde nossos ancestrais acaba fazendo com que muitos
de nós – no momento de tachar a vida como algo maravilhoso – pensem apenas
nas coisas boas e na esperança de coisas boas e se esqueçam de olhar para a vida
como ela realmente é. É por isso, em minha opinião que mesmo entre pessoas
sem religião essa tendência a ver a vida como maravilha é muito forte.

Mas essas pessoas, que são maioria e que afirmam a vida como
inquestionavelmente perfeita, se pararem de olhar o particular e olharem o geral,
se deixarem de ver a própria vida ou apenas a vida restrita do seu grupo, dos
privilegiados que têm uma família, um teto e condições de ter objetivos e
realizá-los e se procurarem enxergar a Vida mesma como um todo, e se
conseguirem fazer isso sem a venda do medo religioso, será que conseguirão
continuar a dizer que a vida é linda, que a vida e maravilhosa, que a vida “É
bonita e é bonita”? Eu, quando fiz isso, não consegui.

Quanto ao deus que cria e depois “sai para dar um passeio” deixando tudo “ao
deus dará”, o deus “diferente” no qual muitos teístas dizem acreditar, talvez para
evitarem o que consideram dois extremos indesejáveis: o ateísmo para o qual
não estão prontos e a adesão irrestrita a uma das religiões institucionalizadas que
não conseguem mais manter; para a minha razão leiga e ateia, o deus que
afirmam ser todo bondade fica pior do que o já tão terrível deus que interfere de
forma aleatória e injusta, se é que é possível ficar pior.

Esse deus “diferente” cria todo o circo de horrores que é a vida – apesar do que
dizem em contrário – usa seu onipoder para tirar da paz do nada absoluto os
seres que não pediram a existência e que não puderam escolher se queriam ou
não essa vida de medo, dor e pena, coloca suas criaturas nesse mundo hostil,
inseridas numa corrente macabra de sangue e de morte, deixa que se virem como
puderem, e depois sai de cena sem tomar conhecimento e sem se importar com o
que acontece. Isso é mais que maldade, é irresponsabilidade no mais alto grau.

Nesse caso, se deus criou e saiu de perto, não está nem olhando, não sabe nem
quer saber o que se passa, ele é mau por omisso. Atémesmo na lei dos
imperfeitos homens omissão é considerada crime: um motorista que, sem querer,
atropela alguém e, apavorado, foge será processado por omissão de socorro, o
que dizer de um deus que criou tudo isso e se afasta solenemente sem se
interessar pelas consequências de sua criação?

Eu condenaria sem apelação um ser que tivesse criado o mundo, se afastasse e


nunca tomasse conhecimento das mortes e dos horrores por que passam muitas e
muitas e tantas e tantas vezes as crianças. Depois o condenaria pelo sofrimento
dos animais e, por último, pelo sofrimento do restante da humanidade. A pena
seria máxima para todos os crimes.
Mas se, por outro lado, ele criou tudo e não se afastou, fica apenas olhando sem
interferir, e não interfere porque nos deu sem que tivéssemos pedido, além da
vida, um tal de muito mal acabado e mal explicado livre-arbítrio, então ele é mau
por sadismo e sadismo é algo tido e havido como, no mínimo, uma doença; e já
que não se pode falar em doença quando se fala de deus porque um deus que é
perfeito e que é ao mesmo tempo doente é uma ideia contraditória e
inadmissível, então teríamos que aceitar que nele o sadismo não é doença, é
normal e é característica de sua personalidade. Eu não poderia, de maneira
nenhuma, amar, ou mesmo respeitar, um deus sádico; e não entendo que o
façam.

Enfim, essas são, nas opções que os que creem em deus mas não em milagres
admitem, as possibilidades do comportamento do deus criador: criar e se afastar,
ou criar e ficar só olhando sem interferir. Ambas são horríveis e nenhuma delas
combina em nada com o que se poderia definir como atitudes dignas de um deus
todo poderoso e todo bondade. Quase não dá para decidir em qual dos dois casos
deus seria pior. Se ele existisse claro.

XV

Quanto aos desejos e prescrições de deus, dizem muitos, ou todos os que


professam o cristianismo, que estamos salvos de complicações porque Jesus
simplificou tudo para nós. Jesus, o filho de deus por excelência, do qual
inexplicavelmente não somos irmãos embora sejamos nós também filhos de
deus, teria reduzido os mandamentos e facilitado para nós, não tão filhos de deus
assim, o árduo trabalho de seguir o que deus mandou que seguíssemos. Isso se
alguém puder compreender o que realmente deus mandou que seguíssemos a
partir de um livro tão contraditório quanto a bíblia.

Enfim, os cristão afirmam que Jesus, em sua infinita bondade e graças ao amor
que tem por nós, o amor mais incompreensível que se possa imaginar, diga-se de
passagem, simplificou toda a bíblia, toda aquela sequência de ordens e
mandamentos contraditórios, e não apenas os dez que Moises trouxe de trás da
sarsa ardente. Jesus transformou, como num passe de mágica, todo um livro, ou
vários na verdade porque a bíblia é uma coleção de livros, em um preceito único:
Amai ao próximo como a ti mesmo.

Então vamos sonhar um pouquinho: dá para imaginar que mundo lindo teríamos
se metade, só metade dos cristãos porque teríamos que contar fora desse
conjunto os cristão resistentes e os cristãos de fachada; se essa metade dos
cristão desprezasse todo o restante da bíblia, boa parte da qual já desprezam
porque caso contrário estariam na cadeia, e se só essa metade cumprisse somente
o que eles chamam de principal mandamento do cristianismo e que já me
disseram mais de uma vez ser o mandamento único a que Jesus reduziu os dez
do velho testamento “simplificando” assim a maneira de seguir a bíblia, como se
a bíblia fosse ou tivesse como ordens só os dez mandamentos.

Repetindo: O que eles chamam de “simples” é o “Amai ao próximo como a ti


mesmo”. Certo que, antes disso, ele diz para amar a deus (ou a ele mesmo) sobre
todas as coisas e com dedicação total e irrestrita, mas deixemos essa parte – que
denota insegurança e prepotência – de lado e paremos um pouco sobre o “Amai
ao próximo como a ti mesmo”, esse mandamento chave.

Amar é mais forte do que gostar, é mais forte do que querer bem e é mais forte
do que se importar, e Jesus não manda que a gente goste ou que queira bem ou
mesmo que a gente se importe com as pessoas, ele manda que a gente as ame! E
por incrível que pareça existem cristão, e muitos, que afirmam e juram de pés
juntos que realmente amam ao próximo como a si mesmos.

Sobre o próximo, quem é esse próximo? Os teístas dirão que são as outras
pessoas, todas as outras pessoas que conosco dividem esse planeta azul, todos os
seres humanos do mundo; e há ainda os que tentam incluir nessa definição de
“próximos” inclusive os animais que, segundo eles, são também nossos irmãos,
embora Jesus não seja.

Mas em nossa imaginação, em nossa fantasia de como seria o mundo se metade


deles estivesse dizendo a verdade, nãosejamos assim tão otimistas, vamos
admitir que a palavra se refere apenas aos seres humanos e não aos bichos
porque se incluirmos os bichos nessa definição de próximo teremos que
imaginar um mundo com uma quantidade muito maior de vegetarianos e muito
menor de criadores, só para começar.

Embora já se tenha dito que pela escrita original do texto bíblico a palavra que
da língua original, o aramaico ou o Grego Koine, foi traduzida como “próximo”
significaria apenas aquele que pertence ao povo hebreu e não a humanidade
como um todo, o fato é que Paulo de Tarso, numa genial jogada de marketing,
resolveu estender o cristianismo também para os não judeus – ou os gentios – e,
ao assumir a bíblia como palavra do seu deus, o cristão se colocou também, à
revelia dos judeus que nunca concordaram com isso, como parte do povo
escolhido, ou mais ainda, o cristão acusou o judeu de ter matado Jesus, colocou
o judeu como raça maldita e se
colocouasimesmocomooprópriopovoescolhido,eliminando os judeus da lista.

E esse cristão – pode perguntar a eles se você duvidar


– costuma dizer que “próximo” é a humanidade toda porque nós, seres humanos,
somos todos irmãos. É o que afirmam, embora às vezes excluam dessa definição
de irmãos pessoas como homossexuais, umbandistas e ateus. Pelo menos
enquanto essas pessoas não “abjurarem seus pecados” e não “aceitarem Jesus”.

Daí que quando chamam esse mandamento de simples certamente o fazem


porquenão o entendem e não o praticam. Em defesa deles devemos notar que não
o praticam por total impossibilidade de fazê-lo. Mentem, mas não é por má
vontade, é por ignorância (no bom sentido) e impossibilidade física, psicológica,
mental, de formação, atávica, humana, animal, de praticar o que afirmam
praticar.

Sim, porque se você pensar um pouco saberá que amor não é voluntário e a
intensidade do amor é menos voluntária ainda. Não há como um ser humano
amar da mesma forma todos os outros seres humanos; mais impossível ainda
éamar todos os seres humanos como a si mesmo. Amar a si mesmo não é uma
escolha, é a obediência a um instinto; e mesmo assim devem existir outros seres
humanos como eu que, emboracontinuematendendoaoinstintodaautopreservação,
não amam a si mesmos. Pelo menos não no sentido de se reconhecer como
alguém com qualidades “amoráveis” e que valoriza o amor-próprio como
condição sine qua non para a felicidade. Mas acho que não cabe muito entrar em
mais detalhes aqui.

Pense: o nosso próprio instinto de sobrevivência faz com que cada um de nós,
em geral e salvando-se raríssimas exceções, ame a si mesmo acima de toda e
qualquer outra pessoa, excetuando-se, em muitos casos mas não em todos, os
próprios filhos. Na verdade acho que é mais correto dizer que o amor a si mesmo
é o instinto de sobrevivência do que dizer que ele é causado pelo instinto de
sobrevivência.

Amar alguém, quem quer que seja, como a si mesmo é algo que vai contra a
própria essência do ser humano como animal que ele é; e por mais que a gente
goste de tentar pensar que somos melhores, pelo menos quanto aos instintos
básicos; por mais que tentemos colocar a razão como princípio, nós não nos
diferenciamos tanto assim dos animais. Amor próprio em última análise não
passa de instinto de sobrevivência e autopreservação.

Portanto, amar alguém, que não seja um filho – e mesmo nesse caso não dá para
generalizar – como a si próprio é algo que o ser humano simplesmente não pode
fazer, por mais que Jesus tenha afirmado que deve ser assim e por mais que os
cristãos continuem chamando isso de “simplificação”.

Vamos pensar mais um pouco: Amar ao próximo como a si mesmo equivaleria a


amar todas as pessoas do planeta da mesma forma e com a mesma intensidade.
Imagine alguém que ama todas as crianças exatamente como ama a criança que
um dia foi, ou como ama o próprio filho; como essa pessoa conseguiria não
cuidar e não ter sob seu mesmo teto todas as crianças do mundo?

Imagine alguém que em situação de pânico e estando os dois juntos se preocupa


tanto em salvar o estranho completo quanto o próprio irmão de sangue; alguém
que gastaria o último centavo e o último esforço para salvar a mulher da qual
ouviu falar da mesmíssima forma e com o mesmíssimo desespero e preocupação
que dedica naturalmente à sua mãe doente.

Pela quantidade de desastres, doenças, sofrimentos e catástrofes que existem no


mundo, é muito lógico supor que alguém que amasse ao próximo como a si
mesmo não poderia sobreviver porque estaria preocupado, apreensivo, tenso e
apavorado em tempo integral, e não acredito que alguém tenha coração capaz de
resistir a tal pressão.

Mesmo quando pensamos nas exceções, aquelas poucas pessoas que vivem em
função do que comumente chamamos de “fazer o bem”, ainda assim cabe
perguntar: Há ou houve no mundo alguma pessoa que amou o próximo como a si
mesmo? O cético dirá que não, o mais crente e iludido Polyana daria uma dúzia
de nomes, alguém menos Polyana, mas ainda assim crédulo, daria o exemplo de
uma ou duas pessoas ao longo da história, Jesus e Gandhi talvez.

Ainda que você tome a palavra “próximo” com o sentido de proximidade mais
ou menos geográfica, ou seja, de nacionalidade, parentesco, vizinhança,
amizade, companheirismo, ainda assim o “amai ao próximo como a ti mesmo”
não se sustenta. Como ficariam as disputas dos esportes e as corridas pelo
sucesso no trabalho com pessoas que amam ao próximo como a si mesmas?
Poderia existir o boxe? Poderia existir o funcionário subalterno?

Mesmo assim vamos sonhar, afinal os cristãos afirmam que Jesus permite que
amemos o próximo como a nós mesmos, então sejamos otimistas e vamos
acreditar nos teístas que disseram que “próximo” é toda a humanidade. Pois
bem, se metade daqueles cristãos que dizem praticar esse mandamento e tentam
nos convencer de que isso é simples fizesse mesmo o que dizem fazer, nós,
pobres mortais, ateus, agnósticos, descrentes e não-cristãos, certamente
viveríamos em um mundo extremamente melhor, mais humano, mais bonito,
mais justo e mais limpo.

Olhando no Google podemos ver que no mundo existem aproximadamente 2,1


bilhões de cristãos, quanto é a metade disso? Arredondando para baixo teremos
um bilhão de pessoas espalhadas pelo mundo, sendo a maioria no ocidente. No
Brasil temos aproximadamente 26 milhões de cristãos, novamente dividindo ao
meio teríamos, no Brasil, 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si
mesmas.

Esses 13 milhões de pessoas não permitiriam que elas mesmas passassem fome,
sofressem maus tratos, vivessem jogadas pelas ruas, morressem abandonadas;
portanto alimentariam e cuidariam de todos os mendigos e crianças abandonadas
do país, já que, seguindo o mandamento único e simples, amam a cada uma
dessas pessoas como a si mesmas. Parece que 13 milhões de pessoas, algumas
certamente ricas, poderiam acabar com a fome no país sem dificuldade.

Detalhando: 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si mesmas não


permitiriam jamais que uma criança vivesse sem lar: Quantas crianças
abandonadas temos? Numa pesquisa rápida podemos ver que existem no Brasil
por volta de dois milhões de crianças abandonadas, se cada cristão que ama o
próximo como a si mesmo adotasse uma criança ou duas certamente não
teríamos mais crianças jogadas pelas ruas, na verdade não teríamos sequer
crianças abandonadas em número suficiente para que todo cristão que ama ao
próximo como a si mesmo adotasse uma.

E porque, olhando os números, podemos perceber que se 13 milhões de cristãos


que amam ao próximo como a si mesmos resolvessem adotar todos os menores
abandonados do país não teria menor para todo mundo, acho que ocorreria aos
que não adotassem crianças que poderiam acolher um mendigo ou um velho, sim
porque existem também pessoas que não são menores mas que estão igualmente
abandonadas.

Tendo 13 milhões de pessoas acolhendo um ser humano abandonado adulto ou


criança, que eles amam como a si mesmos, não teríamos mais pessoas, menores
ou maiores, jogadas pelas ruas e praças das cidades brasileiras. Um grande
problema social estaria resolvido, uma das grandes razões por que sou ateia não
existiria.

Ainda temos o problema não menos grave das famílias que vivem em condições
que os sociólogos chamam de “abaixo da linha de pobreza”. Então esses 13
milhões de cristãos que realmente seguem o principal mandamento, de repente
poderiam pegar o dízimo, que nem sempre é usado de forma honesta pelos
representantes das diversas igrejas, e fazer uma desviadazinha básica aplicando
essa grana em recursos para ajudar as famílias, primeiro com o urgente e depois
dando cursos, profissionalizando e colocando no mercado de trabalho toda essa
gente que precisa alimentar, vestir e educar seus filhos mas não pode.

E lembre-se de que, se for pensar mesmo, o dízimo é muito pouco para quem
ama o próximo como a si mesmo, na verdade para ser coerente com o que dizem
sentir, os cristãos que amam ao próximo como a si mesmos deveriam dar
metade, não menos do que a metade do seu rendimento para ajudar seu próximo,
que amam como a si mesmos. Muitos desses 13 milhões de cristãos que amam
ao próximo como a si mesmos são empresários e, portanto, poderiam empregar e
pagar salários dignos a essas e a todas as pessoas, que eles amam como a si
mesmos.

E nem vou dizer que os cristãos que afirmam amar ao próximo como a si
mesmos administrariam melhor as cidades, os estados e os países, causando uma
diminuição sensível nos números que representam a corrupção no Brasil e no
mundo; não vou dizer isso porque sou pessimista demais para acreditar de
verdade que entre os políticos existam cristãos que amam ao próximo como a si
mesmos. Que me perdoem os políticos se eu estiver enganada, mas até hoje não
consegui vislumbrar qualquer indício dessa existência.

Políticos à parte, pensem agora nos outros países de maioria cristã; alguns desses
países são ricos e podem, portanto, com sua metade de cristãos que realmente
seguem o principal mandamento, não só acabar com esses mesmos flagelos que
citei como possíveis de serem resolvidos aqui no Brasil e que em seus países
existem em números geralmente bem menores, como ainda poderiam ajudar, e
muito, a metade de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos que, em
alguns países, não estejam em número suficiente para conseguirem sanar esses
problemas.

Isso aconteceria principalmente nos países mais pobres e nos países onde não há
uma maioria de cristãos. Então, os cristãos dos países ricos poderiam ajudar a
acabar com os mais graves problemas decorrentes da pobreza e do desamor não
só nos seus próprios países como também nos demais países do mundo.

Se metade dos cristãos dos Estados Unidos e dos países mais ricos da Europa
fossem cristãos que seguem o mandamento principal, podemos dizer, e é difícil
que estejamos errados, que não haveria mais crianças morrendo de fome na
África, na China, na Índia. Parando por aí já temos o fim, ou algobem próximo
disso, de três flagelos: o menor abandonado, o maior abandonado e a família
abandonada. No Brasil isso certamente seria possível, já vimos os números, no
resto do mundo quase com certeza seria possível também. Talvez até a
exploração do outro como meio de enriquecimento e poder e a corrupção nos
governos e órgãos públicos diminuíssem.

Podemos ainda pensar na “contaminação” que essas providências radicais de


metade dos cristãos do mundo teria no restante dos cristãos e até nos não
cristãos. Religiosos de outras religiões e seitas e teístas sem religião instituída
ficariam contaminados e sentiriam que seus deuses também querem deles uma
atitude de verdadeiro amor ao próximo, então haveria budistas, xaonistas, wicas,
e mais milhões de pessoas de todas as religiões do mundo contagiadas pelo
“amai ao próximo como a ti mesmo” trabalhando em tempo integral para tornar
o mundo melhor.

Quantos cristãos ou religiosos de outras correntes, amando ao próximo como a si


mesmos, conseguiriam pegar em armas e sair a campo matando gente? Os
exércitos do mundo seriam muitíssimo menos violentos, menos letais e mais
úteis porque em guerras nem se poderia pensar e ao invés de estarem os soldados
de um país, armados até os dentes, distribuindo tiros e coronhadas para
“pacificar” revoltas, estariam os soldados de um país, armados do amor ao
próximo, distribuindo sorrisos, alimentos e esperanças para tornar belas as vidas
dos habitantes do seu e dos outros países, pessoas que eles amariam como a si
mesmos.

Além disso, esses soldados estariam obrigatoriamente bem menos armados; sim
porque existem também, e deixariam de existir, pelo menos pela metade, cristãos
que dizem amar ao próximo como a si mesmos e que são proprietários,
instrutores de uso, engenheiros, inventores e vendedores de armas.
Decididamente nenhum cristão que ama ao próximo como a si mesmo se
envolveria de nenhuma maneira com qualquer tipo de arma que possa ter
potencial de morte; desde o projeto até a compra desses artefatos não se poderia
nunca encontrar um único cristão que ama ao próximo como a si mesmo
envolvido.

E olha que nem citamos os ateus, os agnósticos, os iconoclastas, os descrentes,


que são vistos por muitos cristãos que dizem amar ao próximo como a si
mesmos como seres daninhos, crias do mal e entes não humanos que devem ser
eliminados da face da terra ou, no mínimo, perder o direito de serem
considerados como cidadãos, mas que certamente teriam muitos de seus
representantes (eu inclusive) de mãos dadas com esses cristãos, trabalhando por
esse mundo utópico.

Agora dá para se perguntar: Se metade dos cristãos realmente seguisse o


mandamento que dizem seguir e que afirmam ser básico, resumo e simplificação
da bíblia, viveríamos ou não em um mundo melhor? Será que estou sendo
otimista demais ao dizer que se o principal mandamento fosse assim tão fácil de
ser seguido e se metade dos cristãos que afirmam segui-lo realmente o fizessem
logo logo os não cristãos nem sequer teriam como fazer caridade porque não
existiriam mais pessoas pobres, famintas e necessitadas no mundo?

É claro que há um exagero porque estamos ignorando tudo o que há de ruim e


que continuaria a acontecer promovido pelos não cristãos, pelos não religiosos e
até mesmo – não sejamos tão otimistas assim – por alguns dos cristãos que
prefeririam manter a mentira e não aderir de verdade a esse espírito de amar ao
próximo como a si mesmos. Eles estariam em maioria e, em muitos casos,
reprimiriam, até com violência, as iniciativas dessa metade de cristãos que
resolvessem realmente amar ao próximo como a si mesmos juntamente com
todos os não cristãos que estariam aliados a esses.

Mas também não sejamos tão pessimistas, essa metade de cristãos que resolvesse
não aderir ao “amar ao próximo como a si mesmo” somado a todos os não
cristãos do planeta que também não adeririam ao “amar ao próximo como a si
mesmo” seria certamente composta, em sua maioria, de pessoas comuns e não de
bandidos e assassinos, seriam pessoas que, embora preferissem não acolher um
estranho em sua casa, poderiam perfeitamente doar recursos para que os outros o
fizessem, seriam pessoas que, embora não aceitassem levar um mendigo para
comer em sua mesa, também não sairiam por aí botando fogo ou espancando
pessoas menos favorecidas.

Muitas, muitas mesmo, dentre essas que não aderiram ao “amar ao próximo
como a si mesmo” continuariam sendo exatamente como são, pessoas comuns
que ajudam quando podem e que não atrapalham se puderem não atrapalhar.

Então, com metade dos cristãos amando ao próximo como a si mesmos, com
muitos não cristãos que se aliariam a esses cristãos que seguem à risca o
principal mandamento e com a grande maioria das demais pessoas continuando a
ser as pessoas comuns que somos; ainda que meus números e descrições estejam
muito otimistas, ainda que continuassem a existir exploradores, ladrões,
assassinos, traficantes, fanáticos religiosos, preconceituosos e desviados mentais
de toda espécie; ainda assim eu acho que só o acréscimo dessa parcela de
pessoas capazes de cumprir mesmo o principal mandamento juntamente com
aqueles que resolvessem se aliar aos que o fazem certamente conseguiriam
tornar esse mundo muito melhor para todos.

Como minha fantasia é só isso: uma fantasia; como vemos todos que isso não
acontece e como meu pessimismo atávico me diz que essa utopia, como toda
utopia, não acontecerá jamais, sou obrigada a afirmar que esses cristãos mentem
quando afirmam que Jesus simplificou a bíblia deixando apenas um mandamento
e que é esse que eles seguem.

Por mais que respeite a todos e por mais que ame alguns deles porque são meus
amigos e pessoas da minha família, sou obrigada a afirmar que os cristão que
dizem amar ao próximo como a si mesmos, que afirmam seguir o principal
mandamento, mesmo sem ter essa intenção, mentem. E afirmo ainda que eles,
cegos pela venda da fé, nunca se deram ao trabalho de pensar no quanto é
impossível seguir esse principal mandamento e em que arapuca deus os estaria
colocando se realmente existisse e se realmente, através do seu filho que não é
nosso irmão, exigisse isso deles.

XVI

O ateu em geral e eu em particular não levamos a teologia a sério como uma


ciência à parte; mas eu adoro filosofia! A filosofia, que de certa forma inclui a
teologia, mas que está longe de parar por aí, é a ciência das perguntas, dos
questionamentos. A filosofia é livre, é a ciência que não para de perguntar e que
não tem medo de perguntar e de procurar respostas em todos os campos.

Quando a filosofia encontra respostas lógicas e comprovadas em um


determinado campo do conhecimento, vira ciência. Foi daí que surgiram muitas
das ciências que temos hoje, como a física, a biologia e a química. E isso é
maravilhoso!

Mas quando a filosofia, aliada, aliciada ou até coagida pela religião para de
perguntar porque “encontrou” as respostas não comprováveis e não embasadas
na lógica; quando em lugar deperguntar sem travas ela se dedica apenas a
procurar as explicações e justificativas para essas respostas prontas, ou seja,
quando ela deixa de ser livre e se torna escrava da religião, ou se refugia na
religião e por isso deixa de ser livre. Quando acontece isso, para muitos filósofos
e para mim também, o que há é simplesmente a morte, o abandono da filosofia;
ou pelo menos de uma parte importante dela. Isso é terrível e infelizmente já
aconteceu muitas vezes ao longo da história e acontece ainda hoje.

Se a filosofia é a ciência das perguntas, da investigação, da busca do


conhecimento e se essa busca, esse questionarse é algo próprio do ser humano, é
natural e até óbvio que a filosofia se encontre em toda e qualquer atividade ou
criação humana, inclusive na religião porque a religião é uma criação humana.

O encontro da filosofia com outras áreas do conhecimento em geral traz


benefícios para ambos os lados, mas quando a religião deixa de ser vista como o
objeto de estudo que é e passa a ser vista – de forma inadequada – como outra
ciência ou outra área do conhecimento, o encontro da filosofia com a religião
gera, fatalmente, a submissão da filosofia à religião e traz a morte da filosofia e
o fortalecimento perigoso da ditadura da religião.

A religião não admite questionamentos e posições antagônicas, ela cala ou limita


a liberdade das perguntas e a possibilidade de debates e discussões abertas de
pontos de vista e de posições contrárias. Uma vez que a total liberdade das
perguntas, a possibilidade e o estímulo de debates e discussões abertas entre
pontos de vista e posições contrárias é a alma, a essência e a própria vida da
filosofia; quando se alia à religião, a filosofia comete suicídio.

A bíblia é um livro de histórias, mitologias, usos e costumes de um povo, ou


seja, a bíblia é uma criação humana; e como criação humana ela tem,
forçosamente, base filosófica, ou é base para estudos filosóficos; mas isso não
tem absolutamente nada a ver com veracidade, principalmente porque muito do
que nela está escrito não só foge à verdade como à lógica.

Muitos teístas afirmam que o fato de se encontrar base filosófica na bíblia é


prova inquestionável da veracidade e da credibilidade do livro, essas pessoas
dizem “Tem filosofia na bíblia” exatamente com o mesmo sentido que teria a
frase “A bíblia é expressão da verdade”, elas acreditam mesmo que o livro
sagrado dos teístas se torna inquestionável pelo fato de ele conter questões
filosóficas; dizer isso é saber muito pouco de filosofia.

Lembre-se, afinal, de que a mitologia grega e os poemas de Camões – entre


muitas outras mitologias e muitas outras obras de arte que poderíamos citar –
também “têm filosofia”, e nem por isso são considerados como expressões da
verdade. Eu mesma já encontrei profundas reflexões filosóficas até mesmo em
gibi da Mônica.

Outra coisa com que não consigo concordar, ainda nas malhas da teologia e que
está muito na moda afirmar, é isso de que a ciência, a filosofia e a religião
podem andar juntas. Podem andar juntas sim, mas não como querem os teístas;
podem andar juntas com a religião sendo objeto de estudo da filosofia e da
ciência, mas não podem andar juntas com a filosofia e com a ciência seguindo os
preceitos, aceitando os dogmas e as ordens dos líderes religiosos ou dos livros
sagrados de qualquer fé.

Ciência e filosofia sim, sem dúvida podem e devem andar juntas, são irmãs, são
mãe e filha, são consequência uma da outra. A ciência pesquisa e descobre que
algo é assim, a filosofia pergunta por que é assim e de que forma podemos usar
esse conhecimento; a ciência dá uma resposta e voltase para a próxima pergunta,
a filosofia pensa o que fazer com essa resposta. Mas e a religião?

A religião amarra a ciência e submete a filosofia; a religião tem respostas prontas


onde a ciência tem teorias, pesquisas e experimentos e onde a filosofia tem
perguntas; a religião não aceita os avanços científicos, distorce verdades,
engessa pensamentos, persegue filósofos e nega provas na teima por suas
“verdades” e seus dogmas.

O casamento da filosofia e da ciência com a religião só serve para atrasar


qualquer avanço no pensamento humano, a história já mostrou isso diversas
vezes. Religião não busca conhecimento, ela se julga dona dele. A mais atual
prova do absurdo desse casamento é o fato de a religião estar querendo forçar o
ensino do criacionismo junto com a teoria da evolução nas aulas de ciências. Em
vários lugares dos Estados Unidos já estão fazendo isso, e há uma pressão para
que o mesmo seja feito aqui no Brasil. Não faz sentido o casamento da liberdade
de pensamento e pesquisa com a proibição da liberdade em qualquer sentido em
que esta se manifeste.

Sei que os teístas em geral se afirmam livres e por isso não concordam comigo
quando digo que a religião tira a liberdade dos filósofos, dos cientistas e das
pessoas em geral, mas eu afirmo que é exatamente isso o que acontece, afirmo
que os teístas se consideram livres mas não são. Não têm nem mesmo essa pouca
liberdade que a própria condição humana permite que se tenha e não permite que
se vá além. Essa minha afirmação é sem dúvida apenas uma questão de opinião,
mas eu diria que não é uma opinião destituída de sentido, afinal, o teísta não está
livre, entre outras coisas, para questionar deus porque questionar deus é
blasfêmia, é pecadoe pode, na visão de muitos deles, levar o questionador ao
inferno; aliás, não é justamente por se atrever a questionar deus que os ateus são
tão abominados? Daí que, pela lógica e pelo que entendo de liberdade, afirmo
que o teísta não é livre.

Quando a ciência tem, para continuar suas pesquisas e para dar destino a elas,
que seguir as ordens da religião, ela pode estar sendo amarrada e estar inclusive
desrespeitando a ética; e quando a filosofia tem que começar as questões a partir
de um conceito alicerçado e inquestionável – embora tão ilógico – como a
“verdade” da existência de deus, ela está se construindo sobre nada e perde
muito de sua beleza.

Ao contrário do que afirmam os teístas, a ciência se torna mais ética quando está
aliada à filosofia e a filosofia se torna mais humana quando se alia à ciência; mas
nenhuma das duas ganha nada quando se alia à religião.

Sem falar dos radicalismos do oriente médio, um argumento que já seria


apelação de tão óbvio; outra coisa que mostra bem a intransigência da religião e
seu estranhamento quanto à ciência e até quanto à ética, é o número crescente de
assassinatos de médicos que fazem aborto, e o exemplo que foi noticia há algum
tempo da excomunhão, por parte da igreja católica, do médico e da mãe que,
com a intenção de salvar a vida de uma menina de nove anos estuprada pelo
padrasto, optaram pelo aborto.

Sei que muitos teístas não concordaram em absoluto com essa injustiça, mas ela
foi praticada e o foi pela religião. Estas histórias, que dariam nojo a uma pessoa
leiga e não “tocada” pela fé a ponto de se recusar a pensar, e que certamente dão
nojo em muitos teístas mais éticos do que fanáticos, não conseguem tirar os fieis
das igrejas; e eu simplesmente não consigo entender por quê.

Talvez eu seja radical demais – ou esteja sendo radical demais – mas é que vejo
as coisas acontecendo, ouço os argumentos dos teístas, leio seus textos na
internet e nos livros, leio seu livro dito sagrado e sinto que quando a religião fala
em liberdade ela mente, e eu vejo essa mentira e não gosto dela porque ela
parece uma mentira deliberadamente construída com aparência de verdade para
enganar e direcionar os pensamentos para onde a religião quer que eles se
direcionem.

Vejo a religião criando, fomentando ou mantendo mentalidades embotadas e


comportamentos radicais, desumanos e antiéticos e por vezes tenho medo de que
o número de pessoas maravilhosas dentro dessas instituições não seja suficiente
para evitar mais horrores.

Eu não consigo me imaginar livre sem poder, por exemplo, questionar a


existência de deus a ponto de negá-lo e de questionar a bondade de deus a ponto
de responsabilizálo se meus questionamentos me levarem a isso, como é de fato
o caso; não consigo me imaginar livre se não puder olhar a vida e a história da
mulher antes de condená-la e de condenar o aborto; e não consigo me imaginar
livre se não puder, quando vejo crianças jogadas pela calçada das cidades
grandes, perguntar e me perguntar que raio de deus é esse que permite algo
assim em nome de uma abstração tão falsa quanto incoerente chamada livre-
arbítrio.

Se a liberdade tem que ser montada sobre uma verdade construída e


inquestionável ela deixa de ser liberdade. É assim que a filosofia fica quando se
alia à religião.

XVII

Descartes dizia aceitar que o mundo tivesse sido criado por deus, dizia aceitar
que, se deus existisse, ele seria garantia e suporte de todas as outras verdades.
Mas, como saber se deus existe ou não? Como provar a sua existência se apenas
podia ter a certeza da existência do cogito? Descartes apresentou em seus
escritos três provas da existência de deus. Vamos olhar cada uma delas:

Na primeira, chamada de prova a priori, Descartes procura mostrar que, porque


existe em nós a ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta obrigatoriamente
que esse ser perfeito tem que existir uma vez que a existência seria ela mesma
uma característica constituinte desse ser perfeito, ou, em outras palavras, que a
existência seria parte integrante a priori e sine qua non do ser perfeito. Daí que,
para Descartes, se eu tenho em mim a ideia do ser perfeito e se a existência é
característica constituinte do ser perfeito, característica sem a qual o ser não seria
perfeito, então o ser perfeito existe de fato e obrigatoriamente e o ser perfeito é
deus, portanto deus existe.

O argumento é bem convincente sem dúvida, só que quando analiso a MINHA


ideia de ser perfeito descubro que ela é diferente da ideia de ser perfeito da
maioria das outras pessoas; e se começo a investigar a ideia de perfeição que as
pessoas à minha volta têm, descubro que a ideia da perfeição é única e pessoal,
ou seja, parece que cada pessoa tem uma ideia de perfeição diferente, muito ou
pouco, das demais pessoas. Disso posso concluir que a ideia de perfeição que
tenho não é confiável a ponto de ser nomeada como A IDEIA DE PERFEIÇÃO
única possível, então não posso confiar que minha ideia de perfeição seja mesmo
a verdadeira ideia de perfeição e não apenas e simplesmente a ideia de algo que
EU acredito ser a perfeição.

Com base nesse fato ou se aceitaria que existem bilhões de seres perfeitos, um
para cada ideia de perfeição que cada habitante do planeta tem – o que acabaria
com a unicidade que é outra característica constituinte de deus de acordo com os
que defendem sua existência – ou a ideia da existência de deus provada dessa
forma enfraquece consideravelmente.

Analisando mais de perto vejo que quanto à ideia de perfeição chamada deus
acontece entre os teístas exatamente aquiloqueHumeafirma acontecercom as
ideias das coisas em geral que são nomeadas e compreendidas e que chegaram
até a ser por muitos filósofos chamadas de ideias a priori.

Cada um de nós tem, formada ao longo da vida e pela experiência, uma ideia
diferente do que seja homem, diferente mas semelhante o suficiente umas das
outras para que, quando ouço a palavra homem, cuja ideia naquele que a
pronunciou é diferente da que tenho em mim, essa minha ideia se adapte a ponto
de eu poder compreender o significado da palavra que o outro pronunciou e de
podermos nos comunicar.

A ideia de um ser perfeito – que seria deus – me parece algomuito adequado para
ilustrar esse conceito de Hume; cada pessoa tem uma ideia, diferente mas
semelhante em muitos aspectos do que seja um ser perfeito, e todas chamam
deus a essa ideia, então essas ideias diferentes se tornam, quando alguém
pronuncia a palavra deus, igualmente compreensíveis para todos. Mas não tão
igualmente compreensível a ponto de evitar conflitos e guerras, pelo que parece.

Acontece que alguns de nós temos uma ideia de ser perfeito que foge demais à
ideia de ser perfeito da maioria dos teístas, daí que quando essas pessoas tentam,
com palavras ditas ou escritas, descrever o ser perfeito que elas chamam deus,
nós percebemos que esse ser perfeito que elas imaginam é um ser que para nós
parece muitíssimo imperfeito.

Em geral, para os meus sentidos, os teístas estão descrevendo um monstro


terrível e chamando esse monstro de perfeição, então não consigo entender a
adoração deles. O ser perfeito dos teístas é diferente demais do ser perfeito que
imagino e por isso o ser perfeito da minha imaginação não é deus, não pode ter
esse nome; não pode sequer existir porque é uma fantasia utópica impossível
diante do mundo no qual me encontro e do ser que percebo que sou.

E por essa diferença tão grande de conceito – até mesmo de oposição – o que
acontece é que esses teístas passam a não me parecer confiáveis e quando eles
afirmam que aquele ser perfeito da imaginação deles existe concluo
racionalmente que não pode ser verdade, e não acredito na existência nem do ser
perfeito da imaginação deles nem do ser perfeito da minha própria imaginação.
E, finalizando, se eu imaginar uma fada perfeita, as fadas passarão a existir? É
aí, e é por isso, que sou ateia.

Na segunda prova, chamada de prova a posteriori, Descartes conclui que deus


existe pelo fato de a sua ideia existir em nós, e diz que porque possuímos a ideia
de deus como ser perfeito seremos levados a concluir que esse ser realmente
existe, afinal, diz ele, não poderíamos ter em nós a ideia de perfeição sendo nós
os seres imperfeitos que somos. Ele não aceita a possibilidade de que o menos
perfeito (nós) possa ser causa do mais perfeito (a ideia de deus). Descartes
conclui então que deve existir um ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de
perfeição. E esse ser perfeito só pode ser deus.
Pois bem, com base no que eu disse anteriormente, não é confiável que nós
tenhamos realmente a ideia de perfeição uma vez que essa ideia varia tanto de
pessoa para pessoa; em função disso posso concluir que essa segunda prova só
poderia ter possibilidade de ser considerada válida no caso de a primeira prova
ter sido aceita.

Como já afirmei que não aceito a primeira prova e expliquei o porquê dessa
minha não aceitação, a segunda prova fica, então, sem efeito porque eu mesma –
ser imperfeito – posso ter colocado em mim a MINHA ideia de perfeição que
pode não ser na verdade uma ideia de perfeição condizente com algo que
realmente fosse perfeito.

Minha ideia de perfeição, como procurei demonstrar acima, não é confiável,


portanto não tem condição de provar nenhuma perfeição e, portanto, não tem
como provar também a existência de qualquer tipo de ser perfeito.

Se o deus perfeito que as pessoas imaginam não me parece perfeito de forma


nenhuma quando elas o descrevem, então não posso afirmar que elas tenham em
si a ideia de perfeição. É a mesma coisa que acontece do meu lado; se a ideia de
perfeição que o outro tem não se parece em nada com a minha ideia de
perfeição, então não posso confiar que ele tenha em si realmente uma ideia de
perfeição. A ideia de perfeição do outro pode ser apenas uma ideia a que esse
outro deu o nome de perfeição mas que na verdade não é nem parecida com o
que realmente seria a perfeição.

Temos então, tanto eu quanto o teísta, mais motivos para desconfiar de nós
mesmos e um do outro do que para acreditar que algum de nós tem uma ideia de
perfeição que seja realmente válida. Enfim, não somos confiáveis; nem eu nem
ninguém; e a verdadeira perfeição pode não existir nem mesmo como ideia ou
pode ser diferente de tudo o que nós somos capazes de conceber. Ter uma ideia
de perfeição decididamente não prova a existência de deus.

Seguindo o que Descartes postulou; que o fato de existir em nós a ideia de um


ser perfeito e infinito, resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem que
existir uma vez que a existência seria ela mesma uma característica constituinte
desse ser perfeito, então, como Descartes não excluiu ninguém desse “nós”
dotado da capacidade de ter essa “ideia de um ser perfeito”, a ideia que tenho de
um ser perfeito teria que ser válida como prova tanto quanto a ideia que qualquer
outra pessoa possa ter de um ser perfeito; na verdade teria que ser a mesmíssima
ideia.

Daí queminha prova maior da não existência de deus seria essa: Tenho em mim
uma ideia de ser perfeito e a minha ideia de ser perfeito seria um ser que por ser
perfeito não criaria nada que fosse imperfeito, incluindo eu mesma. Se aceitar a
existência de deus terei que aceitar que fui criada por ele; mas eu sou imperfeita,
sou tremendamente imperfeita, e o ser perfeito do qual tenho a ideia não criaria
nada imperfeito, portanto não criaria a mim. Daí que minha existência mesma é
prova de que o ser perfeito não existe. Se, como afirma Descartes, o ser perfeito
é deus, então minha existência é prova de que deus não existe. Eu e deus não
coexistimos logicamente.

A terceira prova, chamada também de prova a posteriori, é onde Descartes tenta


demonstrar a existência de deus a partir do fato de que não podemos nos
conservar, ou manter a vida e a existência de nós mesmos. Diz ele que se nós não
podemos garantir a nossa própria existência, e no entanto existimos (pelo menos
como cogito), é certo que alguém nos terá garantido essa existência e esse
alguém só pode ser deus.

Essa ideia me parece esbarrar no vazio quando afirma que “écerto” e que “só
pode”, essas certezas não são condizentes com a filosofia – nenhuma certeza é –
então quando Descartes diz que é certo que alguém nos terá garantido a
existência, a afirmação soa apenas como uma opinião; não vejo, e acho que
ninguém vê nenhuma comprovação de que isso seja verdade, afinal, esse
“alguém” pode ser também uma força, uma energia, um algo não consciente.

E ao afirmar que esse alguém “só pode” ser deus, novamente Descartes parece
estar apenas afirmando uma opinião pessoal; está nomeando deus da mesma
forma que poderia nomear fada ou gnomo um algo que ele acredita existir mas
do qual não tem nenhuma comprovação.

Quando leio essas afirmações e afirmações desse tipo, tanto de Descartes quanto
de outros filósofos, a impressão que tenho é que eles eram inteligentes e
racionais demais para realmente não pensar suas afirmativas da forma que estou
pensando, portanto, parece mais que eles estão, de forma até irônica, afirmando a
existência de deus canhestramente e só para convencer a ingenuidade daquelas
pessoas que poderiam prejudicá-los no caso de saberem que eles na verdade não
acreditavam em deus.
Não consigo de forma nenhuma acreditar que minha inteligência restrita,
pequena e limitada conseguiu perceber detalhes que enfraquecem a afirmação
deles e que eles, tão mais inteligentes do que eu e do que o comum dos mortais,
não tenham percebido essas falhas no momento mesmo em que formularam os
argumentos que não podem me convencer.

Descartes afirma que só se pode dizer que existe aquiloque puder ser provado e,
baseado nisso, busca provar a existência do próprio eu com seu famoso “ego
cogito ergo sum”: penso logo existo. Mas se só reconheço minha existência
como res cogito, ou seja, como coisa pensante, então não posso reconhecer como
existente meu dedão do pé, minhas mãos, meu coração ou meu corpo como um
(quase) todo.

Além disso, se só posso me reconhecer como res cogito imagino que não tenha
como saber o que constitui esse res cogito que sou. Qual é a matéria, qual é a
substância que constitui o res cogito? Não posso determinar isso, então,
consequentemente, não posso mesmo na verdade confirmar como realidade a
existência do res cogito e muito menos a existência de algo que o tenha
provocado. Pelo menos não da forma que me vejo e me sinto.

Se, seguindo o raciocínio de Descartes, chego à conclusão de que nem mesmo a


minha própria existência é algo comprovável, logicamente, a existência de deus
ou de algo que tenha provocado minha existência também não pode, dentro
desse raciocínio, ser comprovada.

Como já disse ali em cima, não consigo evitar o pensamento de que há uma forte
dose de ironia nas provas da existência de deus de Descartes, da mesma forma
que sinto uma forte ironia na sua frase: “O bom senso é o que há de mais bem
distribuído no mundo, pois cada um pensa estar bem provido dele.” Nessa frase
fica claro que ele está afirmando a prepotência humana de se achar
suficientemente provido de bom senso quando logicamente não está, e para
comprovar isso basta que olhemos a nosso redor.

Chego a pensar – numa “viagem” muito audaciosa, concordo – que essa frase
mesma comprova que Descartes estava de certa forma brincando com o “bom
senso” dos religiosos que condenaram Galileu Galilei e dando, de forma tão sutil
que o senso limitado deles não perceberia, a informação de que tudo que disse
sobre a existência de deus era brincadeira para “salvar a pele”.
Parece-me que, impedido que foi de negar deus, pela época, pela conjuntura em
que viveu e até mesmo pela sua própria criação, Descartes encontrou essas
“provas” claramente falsas para ele mesmo, mas, ao mesmo tempo, providas de
raciocínio facilmente aceitável pelas instituições religiosas e, principalmente,
pelo senso comum.

Acho que ele pode bem ter articulado as tais “provas” com o fim de salvaguardar
sua integridade física e não correr o risco que correu seu contemporâneo Galileu
Galilei cuja trajetória Descartes acompanhou e cujo desfecho sabe-se que
influenciou grandemente seu comportamento, e não tem por que não se acreditar
que deve ter influenciado também seu pensamento; ou ao menos a forma de
expô-lo.

Enfim, para mim e na minha visão, as provas da existência de deus de Descartes


carecem de fundamento lógico quando aplicamos a elas, inclusive, as próprias
conclusões de Descartes, e não tenho como não pensar que o próprio Descartes
sabia muito bem disso. Agora, se aplico minhas conclusões a respeito do cogito
ergo sum de Descartes, chego à prova de que minha própria existência, caso eu
me aceite como ser existente com base no cogito ergo sum de Descartes, pode
ser usada como prova da não existência de deus.

E pode ser usada porque – de acordo com o que expus acima – se não tenho
como provar minha existência, ou no mínimoa existência das partes do meu
corpo que não pensam, não tem sentido dizer que minha existência teve uma
causa e que a existência dessa causa pode ser provada. Se minha existência e a
causa dela não podem ser provadas e se essa causa, caso existisse, seria deus,
então a existência de deus não pode ser provada também.

XVIII

O que se diz comumente é que o tomismo usa de argumentos de cunho empírico


porque emprega a razão a serviço da fé cristã usando fatos que se demonstram
por via da experiência, e que é a partir desses elementos que Tomás de Aquino
prova a existência de Deus. Uma parte dessas chamadas provas empíricas são as
que ficaram conhecidas como as Cinco Vias que Levam a Deus, de santo Tomás
de Aquino.

Mas, analisando de forma menos apaixonada, o que se nota é que esses


argumentos não são realmente empíricos porque na verdade não se demonstram
por via da experiência. O que eles fazem é refletir explicações arduamente
procuradas e trabalhadas para dar lógica – uma lógica discutível por sinal
– a uma opinião formada: a afirmação de uma “verdade”, para a época e para o
autor, inquestionável.

Em Tomás de Aquino e nos demais filósofos religiosos, desde Santo Agostinho


até Bereley, e antes de um e depois do outro, os argumentos e toda a construção
da teoria filosófica não partem da dúvida, ponto fundamental de todo estudo que
se possa chamar de imparcial; partem de uma certeza e usam de todos os
subterfúgios de uma aparente racionalidade para confirmar essa certeza.

Não há uma verdadeira pesquisa racional sobre se deus existe ou não, essa
questão jamais é levantada, há uma construção de argumentos deliberada e
cuidadosamente preparados para convencer qualquer um que ouse duvidar;
apenas.

E isso, para mim, é uma inversão de caminho. A filosofia que, nas demais
investigações parte das perguntas para, na tentativa de respondê-las construir um
arcabouço teórico, nesse caso inverte a ordem e parte de uma resposta
inquestionável – o que em geral as respostas filosóficas não são – para construir
toda uma gama de explicações que corroborem essa resposta prévia. Despreza-se
qualquer argumento, por mais razoável que ele seja, se esse argumento trouxer
algum perigo para a confirmação dessa “verdade” preestabelecida; isso, a meu
ver, não é a verdadeira filosofia.

A primeira via é a Via do Movimento: o argumento parteda constatação de que


as coisas se movem. Todas as coisas se movem, desde as galáxias até as
moléculas – não que Tomás de Aquino tivesse lá muito conhecimento sobre
galáxias e moléculas, claro, mas Eppur si muove – tudo na natureza, homens
animais, plantas rochas, planetas, tudo está em constante movimento e em
constante transformação.

Para Tomás de Aquino se existe movimento existe também a causa desse


movimento, existe aquilo que provoca o movimento, o “primeiro motor”.

Ele explica que um jogador que impulsiona uma bola, que um raio que cai na
terra e incendeia uma árvore ou uma floresta, ou que a força da gravidade que
nos mantém sobre a superfície e que mantém corpos celestes em órbita, são os
motores desses movimentos relacionados – novamente, não consta que Tomás de
Aquino tivesse conhecimentos precisos sobre a lei da gravidade; ainda faltava
muito tempo para que Isaac Newton fosse atingido por uma maça.

E Tomás de Aquino constata que o agente do movimento é externo ao objeto


movido, ou seja, nada pode mover-se a si próprio, nada pode ser motor e movido
ao mesmo tempo; nenhum carro se locomove sem algum tipo de combustível.

Porém, esse raciocínio conduz a um absurdo lógico e parece que Tomaz de


Aquino não o percebe tão bem assim, o que ele conclui é simplesmente que se
todo movido possui um motor, teria que obrigatoriamente haver uma sucessão
quase infinita de motores e movidos. Pela necessidade de chegar a algum lugar e
retrocedendo até um determinado ponto que ele julga necessário, Tomás de
Aquino conclui que teria que haver um primeiro motor e que não havendo um
primeiro motor, também não haveria um primeiro movido e um segundo motor e
assim por diante.

Resumindo, de acordo com esse raciocínio sem um primeiro motor o movimento


seria impossível. Daí que, para ele a única forma de explicar o movimento é
conceber um primeiro motor e para ele esse primeiro motor seria
obrigatoriamente deus, portanto deus seria a causa primeira de todas as coisas,
seria esse primeiro motor que não é movido por nenhum outro.

Mas a própria lógica de Tomás de Aquino se embaraça e tropeça nessa teia de


argumentação; se nada se move sem uma causa externa e se pode ter uma causa
primeira, então temos um problema que pode ser insolúvel porque poderíamos
perguntar qual é a causa primeira de deus uma vez que, logicamente e
racionalmente, nada nos obrigaria a parar em deus o raciocínio que Tomás de
Aquino construiu. Daí que podemos perguntar, com todo o direito lógico de
fazêlo: Se nada se move sem uma causa externa não há razão para que deus seja
exceção à regra, portanto, quem move deus?

Outra hipótese possível, e que não foi considerada por Tomás de Aquino porque
a existência de deus não era algo questionável para ele, é essa simples e lógica
dúvida: Sepode ter uma causa primeira, essa causa primeira precisa mesmo ser
deus? Aparentemente não, ela pode ser, por exemplo, a lei da gravidade, ou a
força de atração; ou uma força outra qualquer que nem sequer conhecemos.

A segunda via é chamada de Causalidade e é parecida com a primeira. Observa-


se na natureza uma ordem segundo uma relação de causa e efeito. O jogador que
chuta é a causa, a bola que entra no gol é o efeito. Da mesma forma que é
impossível algo mover a si próprio, é impossível algo ser causa e efeito ao
mesmo tempo: a bola não entra no gol sozinha.

Então, se toda causa tem um efeito, novamente haveria uma sequência infinita de
causa e efeito até chegar a um determinado ponto, estipulado por Tomás de
Aquino como sendo deus, mas que, da mesma forma e com os mesmos
argumentos da teoria do primeiro motor, pode ser discutido e refutado. Ele diz
novamente que a relação causa-efeito não seria possível a menos que admitamos
uma causa primeira no universo, e que essa primeira causa é deus.

E o que vemos é que o problema e a resposta são similares à teoria do primeiro


motor: 1 – Se todo efeito tem que obrigatoriamente ter uma causa, deus é um
PUTA efeito: Qual seria a causa? 2 – Se pode ter uma causa primeira para todos
os efeitos, nada obriga logicamente a que essa causa primeira seja a que Tomás
de Aquino estipulou que seria.

Tomás de Aquino parou a corrente onde quis e onde era conveniente para ele;
parou onde quis para tornar seus argumentos suficientes para o que ele queria.
Na verdade, essa primeira causa, mesmo que precise existir não precisa ser
obrigatoriamente deus, pode ser qualquer outra coisa mais simples como, por
exemplo, a eletricidade. Ou uma outra força tão desconhecida para nós hoje
como era a eletricidade para Tomás de Aquino.

Na terceira via, chamada dePossível e Necessário, Tomás de Aquino fala que


todas as coisas podem ser e podem não ser. Todas as pessoas que conhecemos,
todas as coisas que vemos e nós mesmos não existimos para sempre. As coisas
todas, animadas ou inanimadas, nascem, se transformam e morrem ou se
acabam. Em outras palavras, seres vivos ou coisas, somos todos finitos e
efêmeros.

E isso nos leva a pensar que houve um momento ou um tempo infinito em que
nada existia, um instante ou uma eternidade de puro nada, que os astrônomos,
atualmente, localizam antes do “Big Bang”, se é que se pode falar em “antes”
quando o tempo ainda não existia. De qualquer forma, de acordo com a ciência
moderna, esse puro nada nem seria esse “puro nada” assim tão absoluto. Mas,
para Tomás de Aquino, houve um puro nada, e nesse tempo de puro nada algo
aconteceu e deu origem a tudo que há no universo.
Para que o universo saísse da mera possibilidade, a potência de que fala
Aristóteles, para a existência, ou o ato aristotélico, é preciso imaginar que algo
tenha provocado isso, caso contrário o nada continuaria sempre e para sempre
sendo nada. Consequentemente, na visão de Tomás de Aquino, entre todos os
seres possíveis, todos os seres em potência, ou, entre todos os seres que podem
ser e podem não ser, é razoável acreditar que haja um que seja necessário, e que
esse necessário seja puro ato.

É necessário acreditar que nessa cadeia de potência-ato tem que existir algo que
nunca tenha sido em potência, isto é, um ser não contingente, um ser que nunca
foi possibilidade, foi sempre realidade. Daí, a menos que Deus exista como
sendo esse ato puro, esse ser necessário por si mesmo, segundo Tomás de
Aquino, retornaremos ao absurdo das cadeias causais infinitas dos dois
argumentos anteriores.

Mas Tomás de Aquino não atenta para o detalhe lógico de que se existia deus
antes de tudo, então não existia o nada; nada é ausência de toda e qualquer coisa
e deus é alguma coisa, portanto, se existe “apenas” não existe o nada. Repetindo:
Uma vez que o nada é a ausência de toda e qualquer coisa e uma vez que deus é
alguma coisa, mesmo com a ausência de tudo o mais que foi criado por deus,
com a presença de deus existe apenas deus, que é alguma coisa, e essa presença
única é mais do que suficiente para anular a presença do nada.

O nada mesmo seria então antes de deus, daí que se existiu um nada existiu um
momento ou um infinito de tempo em que deus não existia. E volta a questão: se
nada cria a si mesmo e se nada move a si mesmo, o que criou deus? Se existiu
um nada existiu um antes de deus que foi o nada, e não um nada antes de tudo
que veio depois de deus porque esse não seria nada. Se existia um nada, o nada
deixou de existir quando deus passou a existir e não quando deus criou o
universo, daí temos que voltar à pergunta: quem criou deus?

O quarto argumento, chamado de Graus de Perfeição, é mais fácil de entender.


Diz Tomás de Aquino: “Encontramse nas coisas algo mais ou menos bom, mais
ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre, etc.” Por exemplo, Marisa é mais
simpática que Luísa, o leão é mais feroz que o cachorro, o produto fabricado
pela empresa X é mais confiável que o produto fabricado pela empresa Y, etc.
“Ora, mais ou menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam
diferentemente daquilo que é em si o máximo”.
Ou seja, a gente diz que uma coisa é mais ou menos algo aproximando ou
afastando mais essa coisa da ideia de perfeição; é necessário, portanto que se
tenha algo como parâmetro comparativo, esse algo seria a perfeição absoluta,
como um belo absoluto que me permite afirmar que Marina é muito bela e Luzia
é apenas bonita. Tomás de Aquino conclui a partir desse argumento que: “Existe
algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a
perfeição: nós o chamamos deus”.

Mas esse argumento nos leva de volta às refutações que fiz no capítulo anterior
das provas da existência de deus de Descartes; minha ideia de perfeição, sobre
qualquer aspecto, não é igual à ideia de perfeição de outra pessoa e nenhuma das
duas ideias de perfeição é confiável. Além disso, afirmar que alguma coisa existe
não faz com que ela exista, posso afirmar que existe uma cobra perfeita de um
perfeito azul abraçando o universo; o que essa afirmação acrescentaria aos
conhecimentos que temos do universo? Absolutamente nada já que a minha
afirmação da existência de uma cobra azul abraçando o universo não tem o
poder de fazer com que efetivamente exista uma cobra azul abraçando o
universo. Por mais perfeita que seja a cobra e seu azul.

A mesma coisa vale para a perfeição: afirmar que deve existir um perfeito bem,
uma perfeita beleza, etc., não obriga a que esses perfeitos existam nem obriga a
que sejam absolutos e não relativos e particulares e variáveis de pessoa para
pessoa como eles parecem efetivamente ser.

Sei o que é quente, mas uma vez que o contato com um determinado grau de
quente eliminaria minha existência é lógico que sei o que é quente sem nunca ter
o conhecimento empírico do grau máximo de quente; e se não tenho e não posso
ter esse contato empírico posso até concluir que esse grau máximo não precisa
existir, a partir daí posso concluir que nenhum grau máximo precisa existir, e o
mesmo posso dizer da perfeição que dizem ser deus.

A quinta e última via, chamada Finalidade, trata dos seres que se movem em
uma direção, dos seres que possuem uma finalidade, o que, de acordo com
Tomás de Aquino, é facilmente verificável na vida na Terra, que, ainda de
acordo com ele, progride rumo a maiores níveis de organização, desde simples
bactérias até modernas sociedades humanas. Tomás de Aquino usa como
exemplo o arqueiro: a flecha só parte em direção ao alvo porque existe o
arqueiro que mira e dispara, isto é, porque há uma inteligência guiando a flecha.
O “arqueiro” do universo, por assim dizer, é deus.
Acontece que não há nenhuma prova de que realmente todas as coisas e todos os
seres possuam uma finalidade ou mesmo de que progridam. Na verdade,
observando com mais cuidado a própria vida e existência das pessoas, o que
parece é justamente o contrário; a vida da grande maioria das pessoas, olhadas
de uma certa distância, em nada, absolutamente nada, parece ter mudado ou se
transformado e, olhada de uma distância maior, a própria vida na terra e até a
própria terra não parecem ter nenhuma importância.

Essa afirmação de Tomás de Aquino está aparentemente baseada apenas em uma


opinião e, como toda opinião, pode perfeitamente não ser aceita. Em especial, a
afirmação de que as coisas progridem é inclusive refutável pela ciência; a Teoria
da Evolução fala em mudança, em adaptação, não em progresso; e mesmo a
sociologia e a antropologia podem contestar com argumentos bastante fortes esse
conceito de que haja uma evolução, no sentido de progresso, do ser humano. Daí
se conclui que não há como uma opinião discutível ser prova de nada.

Se o que parece haver na verdade é uma sequência de acasos, azares e


coincidências, não fica tão óbvio assim detectar uma “mão de arqueiro”
dirigindo essa flecha que seria a existência; com tantas causalidades e relações
aleatórias fica na verdade muito difícil perceber uma inteligência que seja
conscientemente boa ou má e menos ainda perfeita, nos vários sentidos que o ser
humano pode dar esse conceito.

Parece mais lógico que não exista nada, ou que exista alguma coisa, mas alguma
coisa totalmente diferente desse deus que os teístas vão às igrejas e aos templos
cultuar, como uma outra coisa, sem juízo de valor, ou com juízos de valor
totalmente diferentes e alheios à nossa existência. Uma coisa que deveria ser
nomeada de outra forma, não como deus.

Esse algo; que pode ser uma força inconsciente como o é a gravidade, que pode
ser algo coletivo como uma nuvem de elétrons, ou que pode ser partes de nada
constituintes de uma força como a eletricidade; não pode e não tem como ser
chamado deus sendo deus esse ser tão humanamente variável como o ser que os
teístas descrevem como deus.

A PRESENÇA DO MAL

I
Uma definição que com muita frequência se costuma usar para o mal, um
“presente” de Santo Agostinho18para a força de argumentação de muitos dos
teístas diante do paradoxo do deus todo bondade que cria tudo mas não cria o
mal, é a de que o mal não existe porque nada mais seria se não a ausência do
bem; e como deus é o supremo bem, o mal seria a ausência de deus.

Esse argumento é tão comum que podemos vê-lo e ouvi-lo em todos os níveis e
de todo tipo de pessoa; a grande maioria dos que o usam mal sabem quem foi
Agostinho e não fazem ideia de quem foi Plotino; ouviram no culto ou na missa,
de seu padre ou pastor, acreditaram que estavam ouvindo uma grande verdade e
não sabem que esse argumento foi usado por Agostinho, que o pegou
“emprestado” de Plotino.

O argumento parece tão bom aos teístas que se tornou comum receber por e-mail
ou encontrar nas postagens publicadas nas redes sociais, historinhas
“verdadeiras” criadas com base nele. Uma delas fala de um aluno “topetudo”
que teria “calado a boca” de um professor ateu perguntando a ele se existe o frio
e, quando o professor diz que sim o aluno contesta afirmando que o frio é apenas
a ausência de calor e “explica” que o mesmo acontece com o mal; é a ausência
do bem, é a ausência de deus.

Ao final da história acrescentou-se que esse aluno


18 “Portanto, todas as coisas que são, são boas, e aquele mal, cuja origem eu procurava, não é substância,
porque, se fosse substância, seria um bem. Com efeito, ou seria substância incorruptível, de toda a maneira
um grande bem, ou seria substância corruptível, que, se não fosse boa, não se poderia corromper”
(AGOSTINHO, Confissões 1988, p. 155)

atrevido e “brilhante” é nada mais nada menos do que o grande físico que foi
reprovado em química: Albert Einstein. Os teístas acreditam, se comovem e
espalham a historinha de todas as formas e por todos os meios. Mas ela é falsa,
totalmente falsa, e seu argumento tão “genial” é na verdade muito fraco.

Sim, essa definição do mal como sendo a ausência do bem não satisfaz. Não
satisfaz porque “O mal é a ausência do bem” é um enunciado tão válido quanto
“O bem é a ausência do mal”. É como dizer “A alegria é a ausência da tristeza”
ou “A tristeza é a ausência da alegria”. Se podemos definir o mal como a
ausência do bem, podemos igualmente definir o bem como a ausência do mal.

Nenhuma das duas afirmações pode racionalmente ter mais peso do que a outra,
nenhuma das duas afirmativas define o mal ou o bem, e – principalmente –
nenhuma das alternativas comprova a existência ou necessidade de deus.
Nenhuma delas se sustenta como verdade única. A escolha fica a critério do
falante e será ditada apenas pela conclusão que esse falante quer tirar da
afirmação. E essa conclusão será sempre uma afirmativa sem valor de verdade.

Mas, independente de toda equalquer definição afirmativa ou negativa do mal, o


fato é que se alguém é espancado por um grupo de pessoas que acham divertido
dar socos e pontapés em seres humanos somente porque esses seres humanos
moram nas ruas, são índios ou são homossexuais; ou ainda se uma pessoa foi
atingida e gravemente ferida por uma parede que desabou durante um terremoto
que destruiu sua casa e matou pessoas de sua família; enquanto está no hospital
esperando que se consertem seus ossos quebrados, cada uma dessas vítimas, por
mais simples e ignorante que seja, saberá sim que o que aconteceu com ela foi
um mal.

Dizer que o mal é “apenas” a ausência do bem, afirmar e tentar provar com
historinhas fantasiosas que o mal não existe são atitudes que não encontram
respaldo na lógica porque, empiricamente, as pessoas sabem o que é o mal.
Quem é atingido pelo mal o reconhece; pelo menos quando ele as atinge.

Agostinho certamente queria “salvar” deus desfazendo o paradoxo da criação e


manutenção do mal por um deus que é definido como bom, para isso conseguiu
montar um argumento que tem força de verdade na mente de muitos teístas. Mas
a solução de Agostinho não convence quem não parte do pressuposto da
existência de deus. Como disse Steiner, o frio também pode ser definido como a
ausência de calor, mas nem por isso deixamos de providenciar nossos casacos.19

E mesmo que aceitássemos a definição do mal como ausência do bem, ficaria


muito difícil compreender como e por que um deus onipotente que fosse a
suprema bondade estaria ausente em tantos momentos e em tantos lugares a
ponto de que sua ausência se fizesse sentir da forma tão terrível como é sentida
até mesmo pelos que acreditam nele.

Raciocinando de acordo com o que ensina Agostinho, aceitando o mal como


inexistente por ser apenas a ausência do bem, ou a ausência de deus – que é a
mesma coisa pois segundo Agostinho deus é o supremo bem – caímos em outra
armadilha porque outro ponto dessa afirmação é que ela
invalidaaprópriadefiniçãododeuscujaexistênciaquerafirmar.
19 “Sto. Agostinho chegou à estranha conclusão de que o mal e o erro não existiam de fato, mas eram
apenas negação ou ausência do bem, de modo análogo à escuridão, que não teria realidade em si, mas seria
entendida como ausência de luz: “Um ser finito possui fraquezas e não pode contínua e eternamente efetuar
bons atos.” Essa explicação é para Steiner insatisfatória, pois é como se quiséssemos esclarecer o frio como
negação do calor e isso não nos exime da necessidade de usarmos roupas quentes no inverno.”
- MARANHÃO, Carlos Augusto. (Membro da Diretoria da Sociedade Antroposófica no Brasil). A questão
do mal, Texto publicado originalmente no Boletim da Sociedade Antroposófica no Brasil, Nº. 49, março de
2008, pp. 6-9 (Disponível em: http://www. sab.org.br/antrop/a-questao-do-mal.htm. Acesso: 23 Out. 2010)

Vejamos: Deus é, por definição, onipresente e o supremo bem; se o mal é a


ausência do bem e se deus é o bem por definição então, existindo essa ausência
(que é o mal) existe também, consequentemente, lugar, momento, situação em
que deus, o supremo bem, não está presente. Isso significa que deus não pode ser
onipresente.

Daí que não dá para aceitar racionalmente a existência ao mesmo tempo desse
deus-supremo-bem-onipresente e do mal como ausência desse deus; a existência
de um obrigatoriamente invalidaria a existência (ou ausência de existência) do
outro. E se eu sei com toda certeza que o mal existe – ou a ausência do bem
acontece – porque o presencio, o vejo, o sinto e até mesmo o tenho em mim,
então a existência invalidada nesse caso seria a existência de deus. Fica difícil,
portanto, dessa forma, acreditar racionalmente na existência de deus e mais
difícil ainda acreditar nessa existência aceitando ao mesmo tempo a definição do
mal como a simples ausência do bem.

A resposta dos teístas para essa questão costuma ser que deus não fica onde não
permitem sua permanência, ou seja, quando o homem nega deus está usando de
seu livre arbítrio e “fechando seu coração e sua casa para deus”. Afirmam que,
por ter lhe dado o livre arbítrio, deus não fica com o homem se esse “fechar sua
porta para deus”, ou “fechar seu coração para deus”.

Depois de dizer que temos o poder de expulsar o deus onipresente – Que poder
enorme! – eles nos ameaçam com toda seriedade: não podemos culpar deus
pelos males que entrarem em nosso lar e em nossa vida porque foi escolha nossa
não permitir a entrada de deus em nossos domínios.

Esse argumento, embora à primeira vista pareça bastante válido, e embora sirva
para convencer muitos fieis e até para acrescentar mais ovelhas ao rebanho dos
pastores e dos padres, é na verdade muito fraco. O fato logicamente perceptível é
que não importa a razão por que deus não está em um determinado lugar.

Ele pode não estar em minha casa porque sou uma ateia e não manifesto nenhum
amor ou respeito por ele, pode também não estar na casa do grande traficante de
drogas do Rio de Janeiro porque esse homem é um criminoso, pode
aindanãoestarnocoraçãodopsicopataporqueumpsicopata é o que há de mais
próximo de uma personificação do mal.

Não importa onde ou por que razões deus não estava presente, o fato é que,
logicamente, estão afirmando que existem lugares e momentos em que deus não
está presente
– e são muitos mesmo, se pensarmos em quantos horrores acontecem no mundo
desde sempre.

Se existem lugares e momentos em que deus não está presente, deus não é
onipresente. Sem presença, sem onipresença, certo?

Outro problema lógico me ocorre com respeito a esse nosso poderdeafastar deus
denossa presença quando somos maus. Imagine um homem mau que rapta uma
criança e aprisiona essa criança em seu porão; há casos desse tipo acontecendo
em vários lugares do mundo. Essa semana mesmo saiu a notícia chocante de três
jovens que foram raptadas e que só agora – depois de 10 anos – conseguiram ser
resgatadas; há alguns anos foi libertada uma mulher e os vários filhos que teve
com seu carcereiro, estuprador e pai durante os muitos anos que esteve
aprisionada com as crianças no porão, sem que nenhum deles pudesse sequer ver
a luz do dia.

Então, pela lógica teísta da ausência de deus quando uma pessoa se torna má e o
expulsa, posso concluir que essas crianças e mulheres raptadas, estupradas e
mantidas em cativeiro por décadas não foram resgatadas porque seus raptores
expulsaram deus de suas casas e ele, obedientemente, se ausentou para que essas
pessoas pudessem cometer seus crimes sem interferência?

A respeito desse argumento de que grandes catástrofes acontecem quando Deus


não está presente porque nós, usando de nosso livre-arbítrio, o expulsamos ou
não permitimos sua presença nos lugares onde estamos e “em nossos corações”,
vou colocar aqui um trecho da resposta que dei há algum tempo a um texto que
circula com muita frequência nas redes sociais.

Procure no google que você vai encontrá-lo em diversas páginas e sites


religiosos; sempre com muitos comentários de entusiasmado elogio a esse
raciocínio tacanho feitos pelos teístas mais entusiasmados e, infelizmente, os
mais propensos a colocar a bíblia em lugar da Constituição, seus líderes
religiosos mais gananciosos e sedentos de poder no governo e impor a todos nós
seus dogmas e suas leis, numa apavorante volta à Idade Média, ou à teocracia
nos moldes dos países muçulmanos mais radicais, de tristes lembranças e tristes
memórias.

Principalmentepor conta desse perigo que não me parece assim tão distante
como querem alguns que preferem “respeitar a religião dos outros” e nunca falar
do assunto por mais que seja visível o quanto o fundamentalismo vem ganhando
força, acho válido colocar aqui alguns trechos da resposta que dei, já há alguns
anos, a um texto, que recebi muitas vezes por e-mail.20

Pela frequência com que é divulgado e pelos comentários de aprovação que


recebe, nota-se que é um texto muito convincente para os que já são teístas. De
acordo com o texto, Anne Graham, filha do pastor evangélico Billy Graham, em
uma entrevista para um programa de televisão respondeu “sabiamente” à
pergunta “Como é que Deus permitiu que algo horroroso como este dia 11 de
setembro acontecesse nos Estados Unidos?”.
20 Minha resposta completa pode ser encontrada em: http://www. recantodasletras.com.br/artigos/1577327

Anne Graham: “Eu creio que tudo começou desde que Madeline Murray O’hare
(que foi assassinada), se queixou de queera impróprio se fazer oração nas escolas
Americanas como se fazia tradicionalmente, e nós concordamos com a sua
opinião.”

Eu: Aqui no Brasil, o índice de violência nas escolas nunca foi tão grande e, no
entanto, temos até mesmo a disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas do
Rio de Janeiro, um estado ainda famoso pela violência, embora estatísticas
afirmem que essa violência diminuiu muito depois da pacificação das favelas.
Providência tomada não pela igreja nem por deus, mas por um estado corrupto e
desonesto cujas estatísticas não são muito confiáveis. E desde quando o fato de
Madeline Murray O’hare, a mulher citada no texto, ter sido assassinada é
relevante? Ela não poderia ter sido assassinada justamente por ter dito isso, e o
assassino não poderia ser justamente um adepto do “deus de amor” que esse
texto defende? Provavelmente não, mas de qualquer forma milhões de pessoas já
morreram assassinadas sem que tenham falado ou agido contra a religião. Ah,
sim! E cabe perguntar a essa argumentadora “tão inteligente”: antes que
Madeline Murray O’hare dissesse isso não existiam horrores no mundo? No
tempo em que se faziam orações nas escolas os Estados Unidos eram um
paraíso? Ficam claras demais as falácias dessas argumentações!

Anne Graham: “Senhor, porque não salvaste aquela criança na escola?” A


resposta dele: “Querida criança, não me deixam entrar nas escolas!!!”

Eu: Penso que essa pergunta e resposta foram acrescentadas por alguém que
recomeçou essa “corrente” logo após um dos casos de assassinato de crianças
nas escolas dos EUA, ou do caso semelhante ocorrido na escola do Realengo, no
Rio de Janeiro, mas isso não fica claro em todas as versões. De qualquer forma,
por que então deus não salva as milhares de crianças que sofrem maus tratos e
violência fora das escolas, e inclusive dentro das igrejas? Se fosse mesmo
verdade o que os religiosos afirmam o tempo todo: “Jesus te ama”, “Deus é
bom”, “Jesus disse: Vinde a mim as criancinhas”, e outras coisas do tipo; se deus
soubesse
– pelo menos isso – reconhecer que crianças são inocentes e não têm que ser
castigadas por atitudes de adultos; ele entraria sim nas escolas sem que fosse
preciso ficar rezando e citando trechos da bíblia. Estaria lá porque “está em
todos os lugares”, não é isso que dizem dele?

A experiência tem mostrado diversas vezes que os males acontecem também


para pessoas e em lugares que não estão e que não foram “fechados para deus”.
A destruição de igrejas e morte de fieis durante os cultos e orações nos
terremotos de Lisboa e do Haiti são exemplos disso. A própria “casa de deus”
não está livre de ser atingida pelo mal. Essa realidade parece mostrar que deus,
se existe, simplesmente não está em todos os lugares, ou porque não pode ou
porque não quer.

Senãoestá porque não quer, ele não só não é onipresente como também não é
bom; se não está porque não pode, ele não só não é onipresente como também
não é onipotente. De qualquer forma deus perderia duas de suas características
definidoras, ou seja, perderia sua essência. Deus, portanto, como é definido pelos
teístas, deixaria de existir.

Negando a existência do mal Agostinho não prova a existência de deus, pelo


contrário, mata-o.
II

Definir o mal, se não pensarmos profundamente nisso, não parece difícil, mas;
como acontece com quase tudo o que é conceito; quando a gente começa a
alinhar as palavras elas se mostram incompletas, inadequadas, insuficientes. Se
queremos uma definição que se aproxime da verdade, somos obrigados a
abandonar o senso comum e a pesquisar e pensar filosoficamente, ou pelo menos
tentar.

Sócrates diz “Só sei uma coisa, e é que nada sei” e muitos outros depois dele,
como David Hume e Bertrand Russell, mostram que não podemos ter certeza de
saber nada, ou quase nada, do que pensamos saber. No entanto, empiricamente,
ou seja, na prática, sabemos o que é o mal porque o vemos, porque o sentimos,
porque o temos como parte de nós.

Da mesma forma que uma pessoa sente a própria existência como realidade
mesmo que alguma filosofia diga que não se pode ter certeza sobre nenhuma
realidade, essa pessoa sente também a existência do mal. Pelo menos e com
certeza, do mal que a atinge. Não foi por outro motivo que se criou, desde muito
antes do cristianismo, a imagem do demônio, ou dos demônios: a personificação
do mal.

Se você tentar fazer esse exercício vai perceber que não é fácil, para não dizer
que é impossível, explicar satisfatoriamente e completamente o que ou quem é
você: Quem é esse ser que você sente e sabe como sua primeira realidade? E,
continuando o exercício, você vai perceber também que não pode sequer provar
de forma total, completa e irrefutável que você realmente existe.

Quase da mesma forma, é difícil explicar, satisfatoriamente e completamente o


que seja o mal. O que podemos afirmar é que, mesmo que não possamos explicar
ou provar nossa própriaexistência,dentrodoque,empiricamente,entendemos por
existir, eu existo e você existe. E o mal existe também! E existe até mesmo
porque faz parte do que eu sou e do que você é. Negar a existência do mal é
negar nossa própria existência, pois o mal é parte do que nos constitui. Não há
como convencer ninguém que não seja um psicopata – e, portanto, uma
manifestação concreta do próprio mal – de que torturar, estuprar e matar uma
criança não seja um mal. Por mais que muitos teístas, usando como base o
pensamento de Santo Agostinho, digam que o mal não existe, que o mal é apenas
a ausência do bem, que o mal é a ausência de deus; o fato é que quando somos
colocados diante dele nós o reconhecemos.

E nós o reconhecemos mesmo que seja apenas em certa medida e mesmo que
seja apenas quando nós mesmos somos atingidos por ele. Nós o reconhecemos!

Cecília Meireles diz a respeito da liberdade:

Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: não há ninguém que
explique, e ninguém que não entenda!”21
21 In: Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência. MEIRELES, C. Romanceiro da Inconfidência,
2005
Poderíamos parafrasear Cecília e dizer algo como:

O Mal é essa palavra


que o pesadelo humano alimenta: não há ninguém que explique, e ninguém que
não entenda.

O mal incita muitas outras perguntas além da própria existência do mal, eis
algumas dessas perguntas: Uma pessoa que pratica o mal é obrigatoriamente má?
Quem de nós já não praticou, ou desejou praticar, algum tipo de mal na vida? E,
no entanto, pelo menos a maioria de nós, nem se julga nem é julgado como uma
pessoa má.

Aliás, a maioria de nós se lembra com tristeza e arrependimento dos males que
alguma vez praticou e sabe que esse arrependimento, embora seja algo positivo
para nos lembrar de não repetir o feito, não vai ter o poder de evitar que
pratiquemos outros males ao longo de nossas vidas. “Viver é falar de corda em
casa de enforcado” já diz o velho ditado. E falar de corda em casa de enforcado é
praticar o mal, o mal de ofender ou magoar alguém. Somos então todos maus?

Não parece muito lógico dizer que somos todos maus quando cada um de nós é
capaz de pensar em pelo menos um ser humano que definiríamos como bom,
seja uma pessoa pública como Gandhi ou Mandela, seja alguém das nossas
relações, como nossa mãe ou um amigo especial. Além disso, a maioria de nós
com certeza procura agir com honestidade e decência. A grande maioria de nós,
se não consegue ser bom em tempo integral, pelo menos tentamos ser bons na
maior quantidade de tempo possível.

Ser bom é a ambição de muitos dos seres humanos que habitam esse planeta,
quer acreditem ou não em deus. Então cabe perguntar: Se não somos todos maus
– nem bons – em tempo integral, quando então uma pessoa é má? Uma pessoa é
má apenas quando suas ações, todas e sempre, são conscientemente direcionadas
para o mal? Existe mesmo alguém assim?

Quando conhecemos de forma direta ou indireta alguém que é tido e sabido


como uma pessoa má, em geral nos surpreendemos e temos até dificuldade em
acreditar que essa pessoa era ou é uma boa pessoa para alguém que conviveu
com ela – talvez a mãe, ou um filho. Para a nossa justa tendência a demonizar os
assassinos, estupradores e pedófilos é difícil aceitar que tenha havido alguém
para quem eles foram bons, mas isso acontece com frequência.

Descobrimos, espantados, que um estuprador em série era um marido amoroso;


descobrimos que um assassino sanguinário é um filho muito amado que trata sua
mãe com todo carinho e respeito; descobrimos que muitos dos nazistas que
participaram ativamente do extermínio de mais de seis milhões de pessoas eram
pais de família exemplares. Essas pessoas então não são más?

Uma pessoa é má ou está má? O que eu tenho concluído, pelo que vejo e penso,
é que alguns de nós, ao longo da vida, praticam atos de maldade em muito pouca
quantidade, e outros de nós praticam atos de maldade em uma quantidade
significativamente maior. O que sinto é que, felizmente, a imensa maioria de nós
não somos pessoas más em tempo integral. Então, fica aparentemente mais
correto dizer que nós – na maioria das vezes e talvez salvando-se algumas
exceções – apenas estamos maus, num determinado momento ou sobre um
determinado assunto. Estamos maus apenas nos momentos – para muitos
bastante raros – em que cometemos alguma maldade.

Porexemplo:umapessoaestácompressa, dáum encontrão em um idoso, quase o


derruba no chão e sai apressado xingando, por dentro ou em voz alta, aquele
“trambolho” que não saiu do caminho; uma outra pessoa lê um livro que lhe
disseram ser“sagrado”, acreditounesselivroe, por conta disso e sem questionar,
usa esse livro como justificativa para incitar o ódio e o preconceito. Nos dois
exemplos essas pessoas podem ser, quanto ao resto do tempo ou dos temas,
extremamente bondosas, MAS, naquele momento e naquele assunto, ambas as
pessoas estão sendo más.

É mau alguém que pratica o mal sem ter intenção de fazêlo? Praticar o mal sem
intenção é acontecimento até bastante comum na vida das pessoas; os casos mais
simples, aqueles que causam pequenas dores, pequenos ferimentos, mágoa,
tristeza ou decepção a alguém, chamamos de “pagar mico”, “fazer besteira”,
“dar bola fora”, “pisar na bola” e outras expressões similares que muitas vezes
traduzem o ato que involuntariamente causou algum tipo de mal a alguém.

Provavelmente se pudéssemos fazer um levantamento não conseguiríamos


encontrar uma única pessoa que nunca tenha causado um mal involuntário.
Como foi dito acima “Viver é falar de corda em casa de enforcado”, e é também
andar meio cego por entre “vitrines” de fragilidades. Se perguntarmos “Quem
nunca pagou um mico na vida?” só não levantarão a mão as pessoas que não
souberem o significado da expressão “pagar um mico”. Já os casos mais graves
são chamados acidentes, fatalidades, infeliz acaso, desastre, e outros nomes de
conotação bem mais triste do que a palavra “mico”. Esses muitos atos
involuntários costumam causar grande sofrimento, grandes ferimentos e até
morte.

Muitas vezes as dores e sofrimentos causados pelos casos involuntários mais


graves atingem tanto aqueles que foram vítimas quanto aqueles que foram a
causa. Às vezes o impacto é tão grande que, ao tomar conhecimento da notícia,
ficamos nos perguntando se a pessoa que praticou a ação involuntária vai
conseguir algum dia se recuperar da dor e do remorso. Fica até difícil, em casos
assim, perguntar se somos maus quando os praticamos. A resposta negativa
parece ser a única que faz algum sentido.

A quem podemos então atribuir a culpa por um mal que advém do acaso e não da
intencionalidade? Tudo bem dizer que se não foi intencional não é minha culpa;
mas é culpa de quem então? Se não existir deus a resposta é simples: culpa de
ninguém, culpa do acaso. Mas se existir deus não existe acaso, pelo menos pelo
muito que já li e ouvi dos teístas o fato é que nada acontece sem que deus
permita; portanto, se deus existe, ele é o culpado por todos os males
involuntários que nós praticamos.

Parece estranho para você? Então como conciliar a ideia de que nada acontece
sem que seja vontade de deus com a existência do acaso, do acidente, da ação
involuntária que resulta em dor, sofrimento e/ou morte? Deus quis se divertir um
pouco e deixou as coisas acontecerem como nas modernas “videocassetadas”,
aqueles quadros de tremendo mal gosto22 que são tão comuns na televisão? Ou
será que deus estava tirando um cochilo naquele momento? Considerando-se o
grande número de acidentes mais ou menos graves que acontecem todos os dias
em todos os lugares, deus parece que cochila demais.

Como vimos, o ser humano é muito variado; praticamos


22 Usei o termo “mal gosto” propositadamente, para significar o mau gosto que tem nele embutido o mal, o
mal de maldade mesmo, da maldade que faz com que as pessoas se divirtam com a humilhação ou o
sofrimento do outro, como é o caso das tais videocassetadas

ações boas e ações ruins em tempos e situações diferentes. Será que é mesmo
possível dizer de determinada pessoa que é uma pessoa boa, ou má? Eu não sei
com certeza, mas acho que para a maioria das pessoas nenhum desses dois
adjetivos pode ser válido de forma absoluta. Eu, por exemplo, já me senti uma
pessoa boa e já me senti uma pessoa má em alguns momentos da vida; e na
maioria do tempo não me sinto nem uma coisa nem outra. Será que as outras
pessoas se sentem como eu? Não sei.

O fato é que além de mim mesma, devo confessar que é dessa forma que vejo
muitas das pessoas com quem ao longo da vida me encontro, às vezes elas são
boas, às vezes são más; sobre determinados assuntos têm uma postura
extremamente ética e decente, sobre outras têm conceitos que não me parecem
nada éticos e que às vezes até me chocam. Logicamente tenho tendência a julgar
meus amigos e todas as pessoas que amo como unicamente boas, mas, quando as
comparo comigo, confesso que não confio tanto assim no meu próprio
julgamento.

Você quer exemplos? Tive e tenho amigos que são pessoas excelentes, que
mostram em diversos momentos e por diversas razões um comportamento ético
e um sentido de justiça que me torna sua admiradora. Gosto dessas pessoas,
tenho prazer em vê-las e em estar com elas, eu as admiro e me sinto feliz e
privilegiada por saber que essas pessoas me veem como amiga. No entanto, em
um determinado ponto, em uma conversa descontraída ou em uma situação
corriqueira, mais de uma vez amigos como descrevi acima, mostraram ou
assumiram características que considero um exemplo do que eu definiria como
mal.

Coisas como dizer que não gosta de baianos, de cariocas, ou de judeus; coisas
como dizer que sentiria imenso prazer se pudesse pegar uma arma e matar um
desses menores que ficam se drogando e cometendo pequenos roubos nos
grandes centros; dizer que não se incomoda em absoluto pelo fato de um animal
ter sido torturado para produzir um alimento mais saboroso. Essas pessoas são
más? Não na minha experiência. Então concluo que as pessoas, em sua grande
maioria e incluindo eu mesma, ESTÃO más e ESTÃO boas em momentos
diferentes e quanto a temas diferentes; e isso, é claro, em minha opinião e
quando discordo delas. Não somos maus, temos o mal em nós e ele se manifesta
de forma variada.

Pergunto ainda: O mal é também aquilo que não tem a interferência do homem,
como os terremotos e os furacões? Se não, de que forma qualificar esses
fenômenos quando causam sofrimento, destruição e morte? Vou detalhar melhor
esse tema mais adiante, por enquanto deixo apenas a pergunta: Será que uma
vítima direta ou indireta de uma catástrofe natural consegue dizer que aquilo não
é um mal?

Eu acho que os terremotos, as enchentes, os furacões, as grandes secas são


grandes males que afligem a humanidade, será que, de verdade, alguém
consegue pensar diferente de mim? Mesmo quando é vítima ou tem algum ser
amado como vítima? Talvez com a bíblia na mão, longe do epicentro da
catástrofe e tendo a capacidade de raciocínio impedida pela venda da fé, algum
pastor ou padre consiga negar esse fato e suas “ovelhas” consigam concordar
com ele; mas de outra forma, duvido mesmo.

Um doente, um psicopata, uma pessoa mentalmente perturbada, um animal pode


ser mau ou bom? Em que nível? Costumamos dizer ou ouvir dizer quando surge
a notícia de alguém que cometeu um terrível crime que essa pessoa é “um
doente”; normalmente não nos debruçamos muito sobre essa ideia, mas cabe
perguntar: essa pessoa é mesmo doente?

Sabemos muito pouco sobre a mente humana, mas sabemos que ela pode sofrer
danos sérios, congênitos ou adquiridos. Até que ponto um psicopata é uma
pessoa saudável? Juro que não sei a resposta e, provavelmente da mesma forma
que acontece com você, a mim causa um desconforto muito grande pensar que
um psicopata, um assassino frio, um torturador ou um pedófilo possa deixar de
pagar pelos seus crimes sob a alegação de que é um “doente”; mas o que não
consigo deixar de pensar é que a mente deles simplesmente NÃO PODE ser
normal.

Mas vamos esquecer por um momento os males naturais, os acidentes e os casos


para os quais não temos resposta e pensar apenas nos males que os seres
humanos praticam consciente e voluntariamente; podemos pensar então na
intenção do mal. Esta é uma visão que adotamos com frequência: colocar o mal
principalmente na intenção do mal, ou pelo menos parece ser assim. O tempo
todo ouvimos teístas afirmando convictamente que somos os responsáveis
pelomal porque deus nos deu o livre arbítrio e nós escolhemos o caminho do
mal; aí está a intenção!

Como, teoricamente, só nós, humanos, podemos praticar um ato com intenção


ou premeditação, isso significaria que só nós, humanos, podemos ser maus ou
bons. Essa visão está de acordo com o argumento, também muito comum entre
os teístas, de que deus não é responsável pelo mal e sim nós, os homens.

Fico sempre com a sensação de que o teísta, para aceitar essa “inocência divina”,
se obriga a não voltar às origens, porque se voltasse perceberia que deus, por ser
onisciente e por ter criado o homem sabendo que esse homem “criaria” o mal,
sempre será o primeiro responsável.

Para mim, na possibilidade de deus existir, só ele pode ser culpado pelos crimes
que nós humanos – mesmo os piores de nós, como os psicopatas – cometemos.
Se deus criou o homem e se o homem tem tantos defeitos tão graves, a
responsabilidade, a meu ver, só pode ser desse criador.

Na verdade, saindo do tema religião e responsabilidade divina, os próprios


teístas estão muito de acordo com esse meu argumento. Nossas leis não preveem
que um fabricante é responsável pela qualidade dos produtos que cria, lança,
fabrica, vende? Não responsabilizamos os fabricantes de automóveis quando
esses saem com defeitos de fabricação que causam acidentes? Não temos a
obrigatoriedade do recall23tão frequente em todo tipo de indústria ou produto?
Que eu saiba não é comum um comprador deixar de atender a um recall e
continuar andando com seu carro com defeito, ou possibilidade de, por achar que
o fabricante não tem culpa de, por exemplo, aquela alavanca se quebrar com
frequência.

Por que o criador humano, e consequentemente imperfeito, é considerado


responsável e responsabilizado por lei pela qualidade do que criou enquanto que
deus, que dizem perfeito, não pode ser considerado responsável e muito menos
ser responsabilizado pelos males que todos podemos ver e sentir na sua criação?
Para mim isso não faz o menor sentido.

Já li e ouvi muitos teístas argumentando que deus nos criou perfeitos, mas que
depois nós nos corrompemos, mas dizer que deus criou o homem e que só
depois, em consequência de uma liberdade mal usada, esse homem se tornou
mau e
23 In: O direito à informação e o direito à segurança são um dos direitos básicos dos consumidores, previsto
nos termos da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Desta forma, o Recall, ou chamamento,
é o procedimento gratuito pelo qual o fornecedor informa o público e/ou eventualmente o convoca para
sanar os defeitos encontrados em produtos vendidos ou serviços prestados. (Disponível em:
http://www.procon.pa.gov.br/?q=node/92. Acesso em: 05 Abr. 2013)

causou a existência do mal parece algo tão absurdo quanto seria dizer que sou
responsável pela existência da Europa porque um dia eu quis viajar e conhecer
outros lugares.

O ser humano é um animal e, por mais que tente negálo, age instintivamente e
com o objetivo de autopreservação e preservação da espécie; como todos os
animais, usa para isso os recursos que a natureza lhe deu. Acontece que a
natureza deu ao homem alguns recursos de que os outros animais não dispõem, a
prepotência é um deles.

Daí que esse argumento não me convence porque não consigo evitar as
perguntas que me vêm à mente: Mas deus não é onisciente? Então ele saberia
que nos corromperíamos antes mesmo de nos criar, não saberia? Ele não é
onipotente? Então poderia ter nos criado incorruptíveis; ou não poderia?
Desculpe, mas eu tenho a forte impressão de que seu deus, seja ele qual for, não
tem como escapar dessa lógica.

E se continuarmos falando do paralelo com o criador humano; ninguém deixa de


responsabilizar o fabricante – que não é nem onisciente nem onipotente – se um
produto sai da fábrica perfeito, mas vai dar defeito logo em seguida, muito antes
de que acabe a garantia. O “dois pesos e duas medidas” fica muito óbvio quando
se pensa nisso, mas o fato é que essa necessária e tão óbvia responsabilidade de
deus decididamente é coisa que um teísta não quer perceber.

E quando cobramos que deus não evita que os males aconteçam, os teístas dizem
que deus não interfere porque se o fizesse estaria ferindo o livre-arbítrio
concedido por esse mesmo deus a Adão e Eva – acho que a Eva não tanto – no
paraíso. Mas acontece que um dos argumentos mais usados por todas as religiões
em favor da existência de deus são os milagres. E o que seria um milagre se não
uma interferência de deus na vida das pessoas?

De muitos teístas ouvi histórias de “milagres” que “aconteceram” com eles e na


vida deles e que eles usam como “prova” da existência de deus, e tenho certeza
de que não sou a única. Quem não ouviu nunca algo do tipo: “Eu posso provar
que deus existe! Minha irmã (tia, mãe, prima, filha, vizinha) tinha uma doença
incurável (e ele conta os detalhes) mas foi curada por deus, nem os médicos
acreditaram!” Afirmações desse tipo são tão comuns que se fossem mesmo
dignas de confiança não existiriam ateus no mundo.

Além disso, muitos teístas costumam afirmar que todas as coisas boas que
acontecem com eles – inclusive as mais banais – são dádivas de deus. O
elevador chegou assim que entrei no prédio? “Graças a deus!”, o jogador do meu
time fez um gol? “Graças a deus!”, eu precisava sair de casa e não choveu?
“Graças a deus!”. E afirmam que tudo o que têm é “graças a deus” que “deu” a
ele – e só a ele – uma família maravilhosa, um bom emprego, saúde de ferro;
enfim, mil coisas que milhões de pessoas não têm.

Mas, curiosamente, o fato de alguém não ter o que deveria ser direito de todos
não é “graças a deus!” – aí não! E os pedidos e orações? Alguns em suas igrejas,
outros em suas próprias casas, fazem preces e pedem a deus que cure seus
doentes, dê emprego a seus familiares, não permita que nenhum mal aconteça a
eles e aos seus. Tudo isso não são interferências? E a oração ensinada por Jesus
na bíblia (Mateus 6,9-13) e repetida incansavelmente por cristãos de todas as fés,
não é um pedido de interferência?

Então, dizer que “deus não interfere porque se o fizesse estaria ferindo o livre-
arbítrio” é um argumento tão fraco que nem merece o nome de argumento.
Pensando apenas nos acidentes que vitimam crianças; um único exemplo de mal,
um mal que não é culpa do ser humano, que acontece aos montes e que deus não
evita mesmo sendo um “cara” que interfere tantas vezes na vida de tantas
pessoas. E lembrando, sempre, que esse é apenas UM exemplo dentre tantos
outros, podemos dizer: Se existem acidentes que vitimam crianças é possível,
parafraseando Epicuro, perceber três possibilidades de explicação:

1 - Deus não é bom e não quis evitar o acidente;


2 - Deus não é todo poderoso nem onipresente e por ter estado ausente não teve
o poder de evitar aquele desastre;
3 - Deus não existe.

A primeira hipótese mostra deus como um sádico porque vê, sabe e não faz
nada; a segunda mostra um deus fraco e totalmente descaracterizado, que está
ausente com muita frequência, afinal, acontecem muitos acidentes todos os dias;
a terceira, na minha visão, é a mais lógica e aceitável: Deus não existe.
Quantas vezes, a respeito de quantos exemplos de mal, podemos aplicar esse
mesmo raciocínio “epicuriano” e chegar ao mesmo resultado e à mesma
resposta? Eu bem que gostaria de ver como deus, se existisse, escaparia dessa.

Cada estupro, cada assassinato, cada violência que acontece no mundo prova a
inexistência de deus. Para mim simplesmente não há como ver a coisa toda de
outro modo. Uma notícia ruim no jornal (e elas são tantas todos os dias!), seja a
notícia de um desastre causado por algum fenômeno natural como tempestade ou
terremoto ou um crime cometido por um ser humano, é sempre uma confirmação
da impossibilidade da existência de um deus criador que seja consciente e bom.
Estamos em um mundo que de forma alguma poderia ter sido criado por um
personagem como esse no qual – inexplicavelmente para mim – tanta gente
acredita.

Como posso estar mergulhada em mal, vendo e sentindo o mal à minha volta em
todos os momentos e mesmo dentro de mim algumas vezes e, aomesmotempo,
acreditar sinceramente que um deus todo bondade e pleno de poder criou tudo?
Como posso acreditar que um deus todo poder, bondade e justiça mantém tudo
como está porque há uma ordem que chamam de perfeita, mas cuja perfeição eu
não vejo?

Como posso acreditar que esse deus-perfeição interfere apenas vez ou outra,
muitas vezes de forma idiota como aparecer em uma torrada e só o faz na
opinião dos muitos teístas que, contra todo o bom senso, acreditam em milagres?
Como podem acreditar que esse deus, apesar de tudo isso, não criou o mal e não
é responsável por ele? Como podem alinhavar tanto contrassenso em uma única
ideia? Que o façam os que quiserem, eu não consigo acreditar na existência dele,
e consigo muito menos ainda amar ou mesmo respeitar esse deus.

III

Muitos teístas e muitas religiões – principalmente antigos cristãos e atuais


evangélicos – definem o mal como sendo o diabo, ou as ações do diaboque, por
odiar os homens e seopor a deus, pratica e representa todos os males e é,
juntamente com os próprios homens, o responsável por todas as coisas ruins que
existem e acontecem no mundo. Sem esquecer de ressaltar que, como ateia, não
acredito em diabos e demônios da mesma forma que não acredito em deus, uma
vez que para mim diabos e demônios também são deuses; deuses do mal ou
deuses menores dependendo da religião; novamente podemos usar aqui o
argumento da volta às origens:

Mesmo que tenha criado o diabo como um anjo de perfeição e que este tenha
mudado sua essência, deus, como um ser onisciente, saberia, antes mesmo de
criá-lo, que o diabo “criaria” o mal; por isso deus seria, sem dúvida, o primeiro
responsável e o criador do mal. E mesmo tentando pôr a culpa no diabo, pela
lógica não poderiam sequer dizer que deus é “apenas” o criador indireto – e
involuntário – do mal. Se eu crio uma obra de arte, uma pintura em tela, por
exemplo, e se nela uso a cor vermelha, não posso me dizer responsável pela obra
mas não por ela ser vermelha.

E outro paralelo, mais direto, para ilustrar a responsabilidade de deus pela


existência do mal: Imagine um fabricante de armas que desenvolvesse uma arma
que desde o primeiro projeto ele saberia ser poderosa a ponto de exterminar
quase toda a vida existente no planeta e que, depois de pronta a arma, esse
fabricante a entregasse nas mãos de alguém que ele sabe com toda a certeza que
vai usar a tal arma sem medir as consequências.

Certamente nenhum cristão negaria que esse fabricante seria tão culpado pela
destruição da vida quanto aquele que usou a arma. Como é que, para seu deus
onisciente e onipotente, esse cristão faz questão de não usar o mesmo raciocínio
lógico? A fé realmente cega as pessoas.

Além disso, quando atribuem a responsabilidade pela existência do mal ao


diabo, os teístas, aparentemente, estão tão ansiosos para inocentar seu deus que
nunca se dão conta de que com esse argumentos estão atribuindo ao diabo a
criação das doenças, dos vírus, das bactérias, da cadeia alimentar, dos parasitas,
dos defeitos congênitos, das catástrofes naturais.

Eles – sem perceber que estão fazendo tal afirmação e sem perceber o quanto ela
é absurda – estão dizendo que o deus que criou tudo e de quem eles mesmos não
cansam de dizer que é o único que tem o poder de criar algo a partir do nada na
verdade não criou tudo porque, propositadamente e conscientemente, deixou a
“parte feia” da criação sob responsabilidade do diabo.

Parece que estão dizendo ou que o diabo é tão poderoso quanto deus, já que
também tem o poder de criar algo a partir do nada; ou que é ainda mais poderoso
do que deus, já que pode criar sem que deus saiba, permita ou tenha o poder de
interferir. Ou ainda, estão dizendo que o diabo é muito poderoso – como um
deus menor – e é um subordinado de deus que criou o mal sob suas ordens.
Afinal, é fato que o mal existe no mundo, e me parece até, embora eu não tenha
nenhuma prova disso, que o mal existe em maiores proporções do que o bem.

Dessa forma só se pode concluir que, sendo bom, deus não teria tido o poder de
evitar as criações do diabo, ou, no mínimo, não teria tido o poder sequer de saber
que essa criação aconteceria ou mesmo de anular ou destruir essa criação
danosa, acabando com o mal e com o próprio diabo logo que a “brincadeira”
começou. Isso faz com que deus pareça um fraco sem grandes poderes reais ou,
se for realmente todo poderoso, um ser ainda pior do que o próprio diabo. Não
consigo ver uma terceira opção.

“Mas não se preocupe – dizem alguns teístas – deus vai derrotar o diabo quando
Jesus voltar; e esse dia está próximo”. O dia da volta de Jesus “está próximo”
desde as semanas seguintes à ressurreição; se é que Jesus existiu como dizem,
coisa que eu duvido muito; ou melhor dizendo, coisa em que não acredito;
absolutamente não acredito em Jesus, menos ainda que ele ressuscitou.

Acontece que essa volta pirotécnica descrita no Apocalipse, prometida e


esperada há séculos, parece um espetáculo de filme de terror classe C ou de
seriados do tipo walking dead – e eu não gosto de filmes de terror – com mortos
saindo das tumbas em um show de horror e mau gosto sem lógica e sem sentido.
Além disso, eu perguntaria: por que tanta demora? Um deus todo bondade e todo
poder não estava preparado para exterminar o mal assim que ele surgiu?
Desculpem mas esse argumento e toda essa história de “volta de Jesus” não me
parecem nada convincentes.

Há ainda os teístas que afirmam que o mal é aquilo que o homem pratica quando
não segue os ensinamentos de deus, versões dessa “verdade” são lugar-comum
em textos religiosos impressos, textos publicados na internet e discursos
depadres e pastores nos cultos e missas. Nesse momento os teístas, mesmo
empunhando a bíblia e definindo-a como “Palavra de Deus”, esquecem os
muitos males que se encontram na própria bíblia e que foram praticados,
ordenados, apoiados ou incentivados pelo seu deus.24

“Nós somos os responsáveis pela existência do mal” é frase tão comum que até
mesmo muitas pessoas que nem sequer são religiosas acreditam piamente nisso.
Elas esquecem os muitos males que existiam antes de o homem habitar a terra,
como as catástrofes naturais, que antes que nossos ancestrais descessem das
árvores já causavam destruição e morte de muitos animais com seus habitats,
ninhos, tocas e filhotes. E esquecem também os males que existem sem que o
homem, em qualquer tempo, tivesse o
24 “Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém
matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos”. In: 1Samuel
15:3 – “E, o Senhor, teu Deus, a dará na tua mão, e todos os do sexo masculino que houver nela passarás a
fio de espada; mas mulheres e as crianças, e os animais e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo,
tomarás para ti, e desfrutarás o despojo dos inimigos que o Senhor, teu Deus, te deu”. In: Deuteronômio
20:13-14 – “A feiticeira não deixarás viver”. In: Êxodo 22:18. Etc...

poder de criá-los.

Às vezes parece que, em defesa do seu deus, mesmo os teístas mais cultos e
informados esquecem, ou fazem questão de não saber, que antes de o homem
existir, nosso pequeno planetinha azul passou por nada menos do que seis
extinções em massa. Não sei, sinceramente, o que pode levar a não considerar
uma extinção em massa como um mal, a não ser o extremado e incoerente zelo
religioso. E sobre as doenças, muitas delas anteriores à própria
noçãodepecadoecertamente anteriores à vinda de Cristo e até mesmo a Abraão?

Não há como dizer que os homens sejam culpados por essas doenças uma vez
que muitas delas são causadas por outros seres vivos e se tem uma coisa que
todo teísta afirma a respeito do ser humano é que mesmo com toda a nossa
ciência nós não somos – e segundo eles nunca seremos – capazes de criar a vida
– mesmo a mais simples – a partir do nada. Na sanha de inocentar seu deus, os
teístas não se dão conta de que estão dando ao homem um poder que ele nunca
teve. Não se dão conta de que o homem não pode ser o criador do mal; apenas
foi, é e será um dos seus agentes e uma de suas vítimas.

Muitas pessoas, até mesmo sem nenhuma intenção de ligação com religião ou
teísmo, dizem que o mal acontece àqueles que praticam o mal; foi para isso que
cunharam famosos ditados como “Aqui se faz, aqui se paga” e “Quem semeia
vento colhe tempestade”, muita gente usa frases feitas como essas para justificar
a existência do mal; e usam outras frases tão ou mais absurdas até mesmo para
justificar coisas ruins que acontecem com pessoas que aparentemente não
mereciam: “Não se sabe que pecados essa pessoa cometeu”
– dizem.

Ao dizer isso, as pessoas não parecem ter em bom estado sua noção de
proporcionalidade, afinal, é bem difícil pensar que uma pessoa comum tenha
praticado tanto mal a ponto de merecer, por exemplo, perder um filho em
condições trágicas. Eu não sei você, mas tenho dificuldade em imaginar para
mim mesma um mal maior do que perder meu filho.

Se fosse verdadeiro o tal “aqui se faz aqui se paga” e seus correlatos, pelo menos
uma certa noção de justiça quanto à distribuição dos males entre as pessoas
deveria ser notada; alguns males mais terríveis, como perder um filho em
condições trágicas, aconteceriam raramente e apenas para umas poucas pessoas
sabidamente más – e mesmo assim não seria justiça porque o filho que sofreria a
tragédia estaria pagando pelo quê?

De qualquer forma, o que acontece com muita frequência é que percebemos


justamente o contrário de qualquer aparência de justiça. Olhando para os
exemplos que temos todos os dias diante de nós, o que parece bem mais crível é
que tanto o mal quanto o bem têm sido, ao longo de todos os tempos,
distribuídos entre os seres vivos do planeta de forma extremamente aleatória.
Acho até que foi por perceber muito bem o acaso dessa “distribuição” que
cunhamos e usamos com frequência as palavras “sorte” e “azar”.

O curioso sobre essa visão do “Aqui se faz, aqui se paga” é que aqueles teístas
mais convencionais que acreditam na existência do inferno, quando manifestam
acreditar nessa organização do mundo, não percebem que, com esse raciocínio,
estão eliminando a “utilidade” do inferno. Afinal, se pagamos aqui mesmo pelos
pecados que cometemos, estaremos “quites” quando morrermos; então para que
existiria o inferno?

E talvez mais grave ainda: se é deus quem determina e decide tudo o que
acontece, se tudo de bom ou de ruim que ocorre na vida de um teísta foi “graças
a deus” ou “porque deus quis assim” como eles tanto gostam de propagar, então
nenhum teísta teria sorte ou azar. Mas eu ouço teístas falando em sorte e em azar
o tempo todo. As casas lotéricas não andam se queixando de falta de clientes, e
quando tem alguma loteria acumulada elas ficam cheias. Como nós, ateus,
somos minoria, tendo a achar que boa parte dos que “apostam na sorte” são
teístas. Se eles fazem essas apostas, fico no mínimo com a impressão de que
acreditam na sorte. Parece que eles nunca se deram ao trabalho de pensar na
incoerência disso.

Aqueles que seguem o conceito de que “aqui se faz, aqui se paga” ficam com
problemas sérios de lógica quando colocam o seu deus como agente principal e
único dessa “empresa de cobrança”. Quando a vítima do mal é uma criança,
jovem e inocente demais para ter cometido qualquer pecado ou crime, muitos
teístas dizem que essa criança pode ter praticado o mal em uma vida anterior.

Pensando o algoz de acordo com esse raciocínio, pareceria lícito concluir que
deus faz com que uma pessoa nasça com o objetivo de praticar o mal para uma
outra pessoa que, em uma vida anterior, praticou o mal para alguém. Ou seja,
quando um estuprador morre, ele volta a nascer e será vítima de estupro, daí
aquele que estuprar essa pessoa que, em uma vida anterior, foi um estuprador,
está sendo apenas um instrumento de justiça de deus.

Esse raciocínio compromete seriamente o conceito de livre-arbítrio; afinal, se


nasci para praticar o mal para determinada pessoa porque ela praticou um mal
em outra vida e eu sou o instrumento que deus está usando para punila agora,
que liberdade eu tenho? Além disso, cabe perguntar agora se a pessoa será
castigada por cumprir a “missão” para a qual foi destinada.

A pessoa foi usada por deus para que aquele que cometeu o pecado em vida
anterior pague por esse pecado sofrendo o mesmo tipo de agressão que praticou,
e será castigada por isso? Se for, esse castigo será injusto porque o mal praticado
era uma missão determinada e ordenada por deus, se não for, cai por terra o
próprio conceito do “aqui se faz, aqui se paga”. Fica estranho, não fica? Essa é
uma das razões por que não sou espírita.

Veja também que se o criminoso for punido, independentemente de a vítima


estar sendo punida justamente ou não, essa “lógica” vai gerar uma corrente sem
possibilidade de fim: um torturador morre, renasce e é torturado; o segundo
torturador morre, renasce e é torturado; o terceiro torturador morre, renasce e
será torturado, e assim vai seguindo até o fim dos tempos.

É claro que, para fugir dessa corrente, dá pra falar em castigo que não envolva
um algoz; um terremoto ou uma enchente seriam perfeitos para isso e a corrente
se quebraria, mas isso implicaria em uma injustiça do deus que definem como
sendo justo, afinal o castigo não seria proporcional ao crime. Seria?

E ainda fica em suspenso nessa equação, o número e o papel das pessoas que
amam aquela vítima ou aquele agressor. Os pais, avós, irmãos, amigos, tios,
primos de uma criança violentada; os pais, avós, irmãos, amigos, tios, primos de
um torturador. Será que em todos os casos são também pessoas que foram más
em outra vida e por isso merecem castigo? Então o torturador está sendo usado
como arma de vingança de diversos pecados para diversos pecadores. Haja
matemática e estômago para deixar limpa essa conta!

Mas se o algoz não for castigado não se criará a corrente e podemos também
pensar que, a partir disso, fica aparentemente fácil compreender os muitos atos
de maldade que vemos nodia a dia serem praticados e não serem punidos. Mas
acho que nem os crimes não punidos e não descobertos são em número tão
grande assim, nem há como deixar de sentir que ver a coisa dessa forma não
impede que fique em nós uma sensação muito forte de que algo não está certo.

Afinal, em nosso íntimo e por tudo o que sentimos quanto aoque é justo, pela
própria forma com que organizamos nossa sociedade, não costuma nos parecer
muito certo alguém cometer um crime – principalmente um crime do tipo que
chamamos hediondo – e não pagar por ele. Nosso sistema penal existe
justamente por causa dessa sensação.

Falando em sistema penal, castigar com a prisão alguém que cometeu um crime
contra uma criança poderia então ser um delito grave cometido pelos promotores
e magistrados, que teriam que voltar e, em outra vida, serem condenados por
crimes que não cometeram. Afinal, se a criança está apenas sendo punida por um
crime que cometeu em outra vida, então o criminoso estava cumprindo
determinações de deus e deus pode não gostar que nós, com nossas leis,
castiguemos seu “instrumento de justiça”.

Não sei não, mas não consigo ver nenhuma aparência de justiça nesse sistema de
castigar em uma vida posterior os crimes que se comete em vida anterior. Tenho
muita dificuldade de considerar justiça um castigo impingido a alguém que não
tem nenhuma memória e nenhum conhecimento de ter praticado o mal. Se vejo
uma criança sofrendo por maus tratos, fome ou uma doença grave, não consigo
deixar de sentir que essa criança não merece a dor que sente, mesmo que alguém
me diga que essa criança foi o próprio Torquemada, não vou conseguir vê-la
sofrer sem pensar que esse sofrimento é injusto, afinal, ela não sabe que foi
Torquemada!

O deus “justo” estaria então cometendo duas injustiças: a primeira, de punir ou


permitir que seja punida uma pessoa que apenas cumpriu seu destino, sem ter
escolha, sem ter liberdade, sem ter conhecimento do seu destino sinistro. A
segunda, a injustiça de punir alguém por um crime que essa pessoa não tem
conhecimento de ter cometido.

E ainda teria oagravante de fazer o que os teístas afirmam que deus não faz nem
mesmo para evitar que o mal aconteça: Ele teria tirado o livre arbítrio de uma
pessoa para que essa pessoa cometesse o crime, ou executasse o castigo. Não
imagino como o teísta que afirma que uma criança que sofre é apenas um ser que
paga por um crime que cometeu em outra vida explicaria todas essas coisas, mas
duvido muito que consiga me convencer de que há qualquer coisa semelhante a
justiça nisso.

O que muitas vezes argumentam para sair desse e de outros impasses que algo
do tipo “foi na outra vida” provoca é que a própria pessoa escolheu quem seria,
como e onde nasceria, para dessa forma poder, não pagar ou ser castigada, dizem
alguns, mas sim crescer espiritualmente compensando o que fez. Esse argumento
não chega a trazer nenhuma mudança substancial no que parece e continuará
parecendo um absurdo completo. Não me interessa se escolhi nascer na Somália
e morrer de fome; quando estou na Somália morrendo de fome eu NÃO SEI
disso!

Com base em que se pode dizer que é justo uma criança morrer de fome porque
um espírito que ela não sabe que é ou foi, em um momento que ela não sabe que
aconteceu, e por um motivo que ela não tem nenhuma ideia de qual seja,
“escolheu” nascer naquela situação? E como fica deus nessa história? Ele, em
existindo, teria começado tudo isso, não teria? Com que raio de alegação “justa”
um deus todo-poder começaria toda essa palhaçada? Desculpem os que
acreditam nisso, mas não consigo ver nada a não ser maldade, injustiça e um
grande nonsense nesse tipo de alegação.

Há muitos teístas ainda que, numa atitude bem pouco piedosa, explicam os
males sofridos pelas crianças “desencavando” os pecados dos pais dessas
crianças: “A criança não pecou, mas seus pais são conhecidos pecadores” ou “A
criança não pecou, mas só deus sabe quantos pecados seus pais cometeram”. “O
Faraó não permitiu que os hebreus saíssem do Egito então seu filho ficou doente
e morreu”.

Esse tipo de raciocínio está presente em vários momentos da bíblia25; é a base do


conceito de pecado original, tão caro ao cristianismo e, se não estou enganada,
em especial à Igreja Católica que prega que todos nascemos com o pecado
original, o pecado de Adão. Por isso é preciso que toda criança seja batizada, um
processo ritual pelo qual esta criança fica absolvida do pecado que não cometeu.

Ou seja, na visão de muitos teístas, nas palavras da bíblia e no conceito católico


de pecado original, o que se aceita é que o deus “justo” castiga no filho o pecado
do pai. E não só até a terceira geração mas sempre e para sempre. Alguém
consegue mesmo chamar isso de justiça?

Dizem-nos o tempo todo que Jesus veio ao mundo para nos salvar, mas salvar de
quê? Coloque essa pergunta para um ou para muitos teístas e, se você conseguir
uma resposta que faça sentido, você deu mais sorte do que eu. Perguntei a
muitos, recebi boa vontade, recebi bondade, recebi simpatia, mas não recebi
nenhuma resposta que fizesse algum sentido para mim; procurei em textos e sites
religiosos e não encontrei nada específico.
25 “... eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e
quarta geração daqueles que me aborrecem” In: Êxodo 20.5

De acordo com o que minha mãe me dizia quando eu era criança e com algumas
respostas que obtive na minha pesquisa, Jesus teria vindo justamente para nos
salvar do pecado original, aquele que herdamos de nossos bíblicos pais originais;
ou, em outras palavras, Jesus teria vindo para restituir o laço que nos ligava a
deus antes do pecado do casal primordial. Então, o batismona igreja católica não
é suficiente, continuamos culpados pelo pecado – que se pensar bem nem pecado
é – do primeiro homem e da primeira mulher.

Isso tudo, no fim das contas, quer dizer que para os cristãos em geral o pecado
original, ou seja, a ideia de castigar nos filhos os pecados dos pais é responsável
até mesmo pela existência do cristianismo. Se deus não castigasse nos filhos o
pecado dos pais, Jesus nunca teria vindo, não teria sofrido, nenhuma igreja e
nenhuma religião teria sido fundada em nome dele.

Não teria acontecido nenhuma Cruzada, nenhuma queima de hereges em


nenhuma fogueira da Inquisição, nenhuma Noite de São Bartolomeu, nenhuma
demonização dos judeus. Não haveria nenhum padre pedófilo acobertado por
nenhum papa que se faz de santo, não haveria nenhum pastor usando o nome de
Jesus para instigar preconceito, destilar ódio e roubar pessoas ingênuas e
desesperadas. Parece que seria muito bom se Jesus não tivesse vindo!

Mas ele veio e, de acordo com os cristãos, veio para nos salvar desse pecado
herdado ou para nos devolver a graça (seja lá isso o que for) que, não nós, não
nossos atos, não nossos próprios pecados, mas os atos e pecados de nossos
ingênuos, azarados e tristes primeiros ancestrais fizeram com que nós
perdêssemos antes de termos conhecido.

A vinda de Jesus é o marco inicial, básico e estrutural do cristianismo, portanto,


o cristianismo, dentro desse raciocínio, existe porque existe o pecado original.
Ignorante e herege como sou, não consigo deixar de pensar que o cristianismo
então nasceu da injustiça de um deus que é definido como justo. Os cristãos
entendem de modo diferente, eu não entendo como conseguem isso.

Tenho total certeza de que os teístas que pensam dessa forma não aceitariam
como justa uma pessoa que espancasse o neto porque seu filho foi desobediente
na infância, afinal, eu fui desobediente na infância e minha mãe, que é cristã
fervorosa, nunca sequer pensou em bater no meu filho por causa disso.

De qualquer forma essa equação depõe muito contra deus e mais uma vez coloca
em xeque sua capacidade de fazer justiça. Tanto castigar um criminoso que não
tem conhecimento do crime que cometeu quanto castigar no filho os pecados dos
pais são coisas que não parecem, pelo menos para mim, com nada que, em sã
consciência, se chamaria de justiça. Será que os teístas só aceitam essa injustiça
porque acreditam que vem de deus e têm medo de serem castigados caso ousem
pensar que deus cometeu uma injustiça?

IV

Muitos teístas acreditam seriamente na existência do inferno. A ameaça das


chamas eternas é um lugar-comum nos cultos evangélicos e na história da igreja
católica. Podemos dizer até que o medo de ir para o inferno muitas vezes faz
com que as pessoas procurem segurar seus impulsos mais negativos; esse é,
inclusive, um dos argumentos usados pelas pessoas que defendem a necessidade
da religião para a manutenção da sociedade.

Sem a religião, dizem, as pessoas não teriam razões para agirem corretamente.
Estão na verdade afirmando que somos
– todos nós e eles inclusive – seres muito medíocres. Querem dizer que todos
nós só conseguimos ser bons por medo do castigo ou mediante recompensa. Não
estão de todo errados.

Você nunca verá um teísta confirmar que tudo o que faz é aceitar a chantagem
proposta pelo seu líder religioso e, por extensão, pelo seu deus: “Creia em mim,
obedeça minhas leis e me ame ou queimará no inferno por toda a eternidade” diz
deus. Mesmo aqueles teístas mais convictos da existência do inferno, sempre
conseguirão uma desculpa esfarrapada para tentar nos convencer de que não é
verdade que acreditam em deus e aceitam as “verdades” ditas pelo padre, pastor
ou bíblia porque têm medo do inferno.

Não! Nunca! A fé deles é sincera! Podem até usar o argumento deque a religião
eo medo do inferno são úteis para fazer com que a criminalidade diminua, mas
com ELES não é assim! Cada um vai dizer que isso só vale para os outros. E
quando um deles ameaça o ateu com o “fogo do inferno caso não se arrependa”
se, em resposta, o ateu usar o argumento da chantagem, o teísta vai se desdobrar
para “provar” que na verdade não falou aquilo que acabou de falar. O famoso
“você entendeu errado” cabe bem nesses casos.

O problema com esse argumento de que a religião é útil para que as pessoas
contenham seus instintos maldosos está na própria história das religiões. Sempre
encontramos o mal sendo praticado, estimulado e justificado por centenas de
líderes religiosos que – bem intencionados ou não – interpretam “as leis” de
forma a estimular preconceitos, violência, guerras e todo tipo de injustiça.

Vemos muitos e muitos exemplos de interpretações “adequadas” das escrituras


sendo usadas por déspotas e ditadores que – com o apoio, conivência e parceria
dos líderes religiosos – usam a religião para manipular a massa em favor do mais
forte. Sempre houve líderes religiosos de todas as hierarquias, desde o pároco
aliado ao fazendeiro mais poderoso de um lugarejo perdido no meio do nada até
o papa aliado ao grande ditador. Sempre gananciosos e egoístas – muito bem
disfarçados de piedosos e bons – estiveram e ainda estão prontos para manipular
a massa usando a interpretação que melhor se adequar aos seus desejos e à sua
ambição.

Saramago, em seu livro Levantado do Chão26, cria um personagem muito


significativo que dificilmente pode ser tomado por pura invenção da mente
criativa de um artista das letras. O padre Agamedes representa sem muitas
fantasias milhares – talvez milhões – de religiosos que estiveram ao longo de
muitos séculos em quase todos os países da Europa e das Américas partilhando a
farta mesa do senhor proprietário “legitimamente designado por deus” logo
depois de discursar no púlpito sobre os benefícios da fome para a salvação do
espírito e de alertar seu rebanho para o quanto o “pecado” da revolta afasta o
pobre faminto de deus e da sua piedade.
A riqueza e prosperidade dos grandes latifundiários, a manutenção do regime
escravocrata por tantos anos e a “naturalidade” do racismo devem muito a esses
religiosos.

O livro negro do cristianismo27, para o teísta que tiver a coragemdelê-


lo,trazmuitosexemplosdehorrorespraticados em nome de uma interpretação mais
“conveniente” da bíblia
26 SARAMAGO, J. Levantado do Chão. São Paulo: DIFEL, 1982
27 FO, J.; TOMAT, S.; MALUCELLI, L. O livro negro do cristianismo 2007

e muitos exemplos de parcerias entre a igreja através de seus representantes e os


muitos ditadores e seus regimes de terror28. Mas, se você não quiser ler um livro,
basta acessar a internet que, numa pesquisa rápida, é possível ver imagens e ler
textos que deixam bastante clara a parceria de religiosos dos mais altos escalões
com os ditadores mais sanguinários da nossa história, como Franco, Hitler e
Pinochet. Um exemplo claro é essa imagem que fala em milagre e pede orações
para Salazar, ditador português desde 1933 até 1974:
28 “Nos últimos tempos surgiu uma nova discussão sobre a figura do papa Pio XII (1939-1958) e no seu
possível envolvimento no nazismo e no extermínio de judeus [...] por que o Vaticano não condenou o
progrom nazista de 1938 contra os judeus? O papa tinha conhecimento do extermínio de judeus? Como os
fundos colocados à disposição por uma organização judaica americana acabaram sendo usados pela Igreja
para salvar judeus convertidos e não todos os perseguidos? E quanto aos ciganos, negros e homossexuais? A
falta de desculpas da Igreja a estas minorias é uma aprovação ao massacre. É verdade que o papa deu sua
aprovação ao antissemitismo de Pétain em Vichy? Por que durante o famoso discurso do Natal de 1942 o
papa condenou as violências nazistas, mas sem fazer menção aos judeus? Por que a Santa Sé se opôs à
transferência dos judeus para a Palestina? [...] a Igreja ainda hoje responde a essas perguntas com o silêncio,
chegando a permitir, ironicamente, que a comissão só consulte os arquivos vaticanos até 1922. Outra
resposta significativa a essas perguntas foi a canonização do papa Pio XII por parte de João Paulo II”.
(Idem: p. 204-205)

Veja que a Igreja não poupa superlativos para defender e abençoar o ditador que,
coitadinho, sofreu um “infamissíssimo” atentado.29

Além desses muitos casos de interpretação da bíblia com o fim de obter ou


manter privilégios, riqueza, domínio, poder, status quo, temos os horrores
perpetrados pelos personagens bíblicos e pelo próprio deus, que são facilmente
encontrados nas páginas do texto dito sagrado e que em geral são usados como
argumento que dá razão e respaldo a essas interpretações “convenientes”.

Tudo isso faz pensar que a ideia e o argumento de que a religião e o medo do
inferno são úteis para fazer com que as pessoas reprimam seus impulsos mais
negativos tornandose mais éticas, fazendo com que a criminalidade diminua e
ajudando a formar uma sociedade mais justa simplesmente não se justifica.
Como bem disse Nietzsche “Você diz que acredita na necessidade da religião.
Seja sincero! Você acredita mesmo é na necessidade da polícia”.30

Por conta disso parece mais lógico concluir que muitas pessoas, quando são boas
e decentes, quando agem com honestidade e eticamente, o fazem porque são
assim, não porque a religião que professam é boa ou prega realmente o bem. As
pessoas são ou podem ser boas por outras razões além da religião, muitas vezes
por razões bem mais nobres.

Tanto é verdade que a religião e o medo do inferno não garantem a bondade das
pessoas que, em muitos casos – e inclusive no caso do cristianismo –, a mesma
religião que
29 Entre muitas páginas e sites onde se pode encontrar exemplos da conivência da Igreja com a ditadura e
os ditadores, eis um exemplo, apenas um exemplo: http:// unabrasil.wordpress.com/2009/04/30/salazar-o-
santo-lider-portugues

30 In: http://frases.globo.com/friedrich-nietzsche/15372 Acesso em: 22 Ag. 2013

hoje prega o amor, ontem mandava matar. E algumas delas mesmo em nossos
dias, enquanto se mostram tolerantes – ou pacíficas – em determinado lugar, em
outro ponto do mundo está pregando o ódio, matando e torturando “em nome de
deus”; é o caso, por exemplo, da religião muçulmana.

Religião não costuma ser exemplo e não dá nenhuma garantia de bom


comportamento moral. Se fosse assim, nos países onde o regime de governo é a
teocracia, a paz, a tolerância e a prosperidade reinariam; mas o que vemos,
infelizmente, é o contrário. Embora a perfeição não exista em nenhum país do
mundo, costumamos ter mais tolerância nos países onde a religião não tem
nenhuma, ou quase nenhuma, interferência nas decisões de governo, na
elaboração e no cumprimento das leis.

Principalmenteno que se refere a pensamentos e atitudes de tolerância e respeito


ao outro, acho que posso afirmar sem medo de errar que muitas pessoas
realmente bondosas e decentes que hoje seguem determinada religião, se
tivessem nascido em outra época – ou às vezes apenas em outro lugar
– seriam consideradas hereges e sofreriam penalidades que variariam da
excomunhão à pena de morte “em nome de deus” justamente por sua postura
ética e decente.

De qualquer forma não parece haver bondade nenhuma em agir de determinada


maneira apenas por interesse na recompensa ou medo do castigo. Mesmo os
teístas mais convictos em geral concordam com esse fato, principalmente
quando o exemplo é colocado fora de sua religião e de seu livro, ou seja, numa
situação em que ele possa avaliar o ato em si, e que não se sinta obrigado a
justificar o injustificável para manter sua fé intacta.

Há bons exemplos desse tipo de chantagem “ou faz o que mando ou será
castigado” e de como ele nos parece condenável. Quando a ameaça é aplicada na
educação ou quando alguém usa uma fraqueza do outro para conseguir dinheiro
ou favores, por exemplo. Atualmente, a chantagem como “recurso pedagógico”
encontra muitas restrições por parte dos educadores; muitas pessoas são contra
usar de chantagem para fazer com que as crianças nos obedeçam; dizem – com
razão – que o diálogo e o exemplo são métodos mais adequados e mais eficazes.

Se chantagear crianças nos parece condenável, se chantagear adultos pode até


dar cadeia, por que um deus chantagista seria digno de respeito e por que aceitar
a chantagem desse deus pareceria qualquer coisa diferente de pura hipocrisia?

De qualquer forma, sendo a chantagem válida ou não, se pensarmos bem, tanto a


onipresença quanto a suprema bondade de deus sofrem um abalo lógico bastante
grande quando se afirma o inferno como existente. Talvez por isso existam
tantos teístas que não acreditam no inferno e dizem que inferno é “apenas uma
metáfora”, embora afirmem que TUDO o que Jesus disse é a verdade e o bem.
Como sempre não parecem perceber a contradição.

No mínimo essas pessoas se esquecem de que Jesus acreditava no inferno; ou


pior, esquecem que Jesus SABIA que existe o inferno. Isso porque se Jesus é
mesmo deus, como sempre afirmam, e se a noção de trindade que defendem não
foi eliminada junto com o inferno, então Jesus não apenas acreditava no inferno,
ele sabia! Jesus é deus e deus não acredita, deus sabe! Portanto, se você acredita
em Jesus e se acredita que tudo que ele diz na bíblia é verdade, então, pela sua
própria lógica você tem que pensar que Jesus não manifesta uma crença quando
fala no inferno, ele dá uma informação.

Daí que definir o inferno como “uma metáfora” quando se acredita que Jesus é
real e é deus não faz muito sentido e, ao mesmo tempo, falar de Jesus como
apenas bondade e amor ter mais tolerância nos países onde a religião não tem
nenhuma, ou quase nenhuma, interferência nas decisões de governo, na
elaboração e no cumprimento das leis.

Principalmenteno que se refere a pensamentos e atitudes de tolerância e respeito


ao outro, acho que posso afirmar sem medo de errar que muitas pessoas
realmente bondosas e decentes que hoje seguem determinada religião, se
tivessem nascido em outra época – ou às vezes apenas em outro lugar
– seriam consideradas hereges e sofreriam penalidades que variariam da
excomunhão à pena de morte “em nome de deus” justamente por sua postura
ética e decente.

De qualquer forma não parece haver bondade nenhuma em agir de determinada


maneira apenas por interesse na recompensa ou medo do castigo. Mesmo os
teístas mais convictos em geral concordam com esse fato, principalmente
quando o exemplo é colocado fora de sua religião e de seu livro, ou seja, numa
situação em que ele possa avaliar o ato em si, e que não se sinta obrigado a
justificar o injustificável para manter sua fé intacta.

Há bons exemplos desse tipo de chantagem “ou faz o que mando ou será
castigado” e de como ele nos parece condenável. Quando a ameaça é aplicada na
educação ou quando alguém usa uma fraqueza do outro para conseguir dinheiro
ou favores, por exemplo. Atualmente, a chantagem como “recurso pedagógico”
encontra muitas restrições por parte dos educadores; muitas pessoas são contra
usar de chantagem para fazer com que as crianças nos obedeçam; dizem – com
razão – que o diálogo e o exemplo são métodos mais adequados e mais eficazes.

Se chantagear crianças nos parece condenável, se chantagear adultos pode até


dar cadeia, por que um deus chantagista seria digno de respeito e por que aceitar
a chantagem desse deus pareceria qualquer coisa diferente de pura hipocrisia?

De qualquer forma, sendo a chantagem válida ou não, se pensarmos bem, tanto a


onipresença quanto a suprema bondade de deus sofrem um abalo lógico bastante
grande quando se afirma o inferno como existente. Talvez por isso existam
tantos teístas que não acreditam no inferno e dizem que inferno é “apenas uma
metáfora”, embora afirmem que TUDO o que Jesus disse é a verdade e o bem.
Como sempre não parecem perceber a contradição.

No mínimo essas pessoas se esquecem de que Jesus acreditava no inferno; ou


pior, esquecem que Jesus SABIA que existe o inferno. Isso porque se Jesus é
mesmo deus, como sempre afirmam, e se a noção de trindade que defendem não
foi eliminada junto com o inferno, então Jesus não apenas acreditava no inferno,
ele sabia! Jesus é deus e deus não acredita, deus sabe! Portanto, se você acredita
em Jesus e se acredita que tudo que ele diz na bíblia é verdade, então, pela sua
própria lógica você tem que pensar que Jesus não manifesta uma crença quando
fala no inferno, ele dá uma informação.

Daí que definir o inferno como “uma metáfora” quando se acredita que Jesus é
real e é deus não faz muito sentido e, ao mesmo tempo, falar de Jesus como
apenas bondade e amor faz menos sentido ainda. Quando dizem que os horrores
do antigo testamento não valem mais porque Jesus revogou tudo aquilo e pregou
apenas o amor, eles esquecem que aquele “puro amor” que nunca pecou e que é
o próprio deus ameaça com o “choro e ranger de dentes” todos aqueles que não o
aceitarem; esquecem que esse “puro amor” em lugar de revogar reforçou o
conceito de inferno que, aparentemente, para ele, não estava suficientemente
claro na bíblia até então.

O deus vingativo, ciumento e sádico do Antigo Testamento às vezes dá a


impressão de que nos deixaria em paz depois da morte, mas esse deus “puro
amor” do novo testamento continua a nos torturar além da tumba. Isso torna o
segundo ainda mais terrível do que o primeiro, na minha visão, mas os cristãos
não veem dessa forma e continuam falando em deus de amor; mais incoerências,
inexplicadas e inexplicáveis, que os teístas precisam aceitar para continuar
acreditando.

Pesquisando um pouco sobre o inferno nas páginas cristãs da internet é possível


perceber que os cristãos não estão absolutamente de acordo com respeito a esse
tema. As descrições e definições são muito variadas, vão desde a realidade de
fogo e enxofre onde eu e toda pessoa que ousa duvidar estaremos “chorando e
rangendo os dentes” por toda a eternidade; passando por um castigo apenas
temporário, nesse mesmo ambiente inóspito, cuja durabilidade será determinada
pela “justiça” de deus até a total inexistência do lugar que, nesse caso, não seria
um lugar físico e sim “uma metáfora”.
Essa metáfora também varia bastante quando tentam responder à pergunta
“metáfora de quê”; passando por outras nuances, ela poderia ser a metáfora do
sofrimento que minha alma experimentará quando descobrir que a graça existe e
que eu não poderei alcançá-la porque não soube aceitála quando tive a chance,
ou seria apenas a morte; a morte definitiva – única em que eu acredito por sinal –
aquela morte que é o fim de tudo, a volta à não existência da qual fui tirada. O
inferno pode ser esse nada que me parece tão melhor do que qualquer graça ou
paraíso que qualquer teísta me possa descrever. Que sorte a minha!

Encontrei também uma “semi-metáfora”. De acordo com essa visão o inferno


existe sim, mas é o que acontecerá quando Jesus voltar e separar todos os que
viveram em culpados ou inocentes de acordo com o que ele julga ser o bom e o
mau, daí os bons irão para o paraíso eterno prometido enquanto que os maus
conhecerão a realidade do fogo do inferno. Mas esse não será um lugar físico e
você não queimará por toda a eternidade, será apenas um fogo intenso que arderá
até consumir o pecador por completo. Pelo que entendi o inferno seria algo
muito parecido com as fogueiras que queimavam as bruxas da Idade Média e
deus e Jesus seriam muito parecidos com Torquemada e outras centenas de
“defensores da igreja de Cristo” que torturavam e queimavam suas vítimas. Mas
não eternamente!

De acordo com essa visão nós, os hereges, juntamente com os homossexuais e


demais pecadores, seremos queimados em um fogo que será eterno apenas
enquanto houver vítimas sendo lançadas a ele e vítimas ainda não totalmente
consumidas. Esse fogo, que parece ser um fogo especial porque queima até
mesmo as almas, nos exterminará totalmente e depois disso – aí sim! – nossa
morte será definitiva.

A dor eo sofrimento por que passaremos nesse processo, assim como o fogo,
será eterna enquanto durar como oamor do Soneto de Fidelidade, do Vinícius de
Moraes31, mas não será eterna na realidade. Afinal as pessoas bondosas e
piedosas que se fizeram merecedoras do paraíso não poderão desfrutar a
felicidade eterna que mereceram se estiverem sabendo que um seu ente querido
está queimando em um lugar de sofrimento eterno. Parece que ter um ser querido
queimado num fogo “eterno enquanto dura” não tem problema.
31 Moraes, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960. p 96.

Se for considerado como real – da forma como e pela maneira com que nos
ameaçam, imagino que creem muitos teístas – o inferno é, por definição, o reino
do diabo e lá deus não está, ou não deveria estar. O inferno é o lugar do mal e o
mal é a ausência de deus, que é o supremo bem; se um ateu atrevido como eu
ousar dizer que deus está no inferno certamente a maioria dos teístas ouvirá isso
como uma suprema heresia.

Podemos lembrar as conversas entre deus e o diabo, que acontecem no livro de


Jó 32– a vítima inocente de uma brincadeira de moleques – podemos lembrar
também do Raul Seixas ter cantado lindamente no seu Trem das Sete: “Ói, ói o
Mal, vem de braços e abraços com o Bem num romanceastral” (e agora estou me
permitindo uma brincadeirinha musical). Mas apesar desses exemplos de
convivência pacífica, o que fica do que os teístas nos dizem quando afirmam seu
deus como existente, é que para esses teístas – e nas três principais religiões do
planeta – o supremo bem não convive com o supremo mal.

Se deus é o supremo bem e o diabo é o supremo mal, de acordo com a definição


comum do mal como sendo a ausência do bem, a única conclusão que podemos
tirar desse argumento é que, para os teístas, deus não está no Inferno, portanto –
mais uma vez – deus não é onipresente.

Mas suponha que se extrapole toda a lógica teísta comum. Vamos admitir a
onipresença divina; digamos que sim! Deus
32 “Pois nós, leitores, podemos ver que as coisas são ainda piores do que Jó suspeita. Ele implora
compreensão. Suponhamos que soubesse que a morte de seus 10 filhos era o resultado de uma aposta de
Deus com Satã, como dois colegiais briguentos disputando o poder. Alguém que ponha os justos à prova
dessa maneira deverá Ele próprio prestar contas mais cedo ou mais tarde”. (NEIMAN, S. O Mal no
Pensamento Moderno 2003, p. 31)

é onipresente, ser onipresente significa estar em todos os lugares, então deus está
também no Inferno. Pensando, ou aceitando pensar dessa forma, fica a pergunta:
como é que deus pode ser todo bondade, estar no inferno e não ouvir os gritos
dos torturados?

Como pode deus, a suprema bondade, estar presente em um lugar que é o reino
da suprema maldade e, sendo todo poderoso, permitir que essa suprema maldade
perdure por toda a eternidade? Como pode um lugar que seria habitado pelo mal
continuar sendo um lugar habitado pelo mal na presença do supremo bem? Deus
não é onipresente? Deus não é o supremo bem? Deus não é onipotente? Qual
deles ele deixa de ser quando o inferno se torna real?
A possibilidade da existência do inferno suscita tantas perguntas que euzinha
simplesmente não consigo entender como os teístas que acreditam na existência
do inferno não as fazem: Como um deus que é a suprema bondade pode ter
criado, a partir do nada, seres que ele, por ser onisciente, sabia que pecariam e
seriam jogados no inferno? Por que a suprema bondade de deus não escolheu
então não criar esses seres todos que povoariam o inferno, incluindo aí o próprio
anjo que – ele sabia – se transformaria no diabo?

Se deus criou tudo o que existe e se você acredita que o inferno existe então deus
criou o inferno? Criou com que objetivo? Mantém esse lugar, que aparentemente
recebe muito mais moradores do que o paraíso, com que objetivo? Por que fez as
coisas dessa forma e não de outra menos terrível? Ele não tinha poder para fazer
de forma diferente ou sempre teve esse poder, mas é um sádico e sua felicidade
eterna depende de ver pessoas queimando eternamente?

Embora muitos teístas acreditem, e o próprio Jesus Cristo acreditasse nele33, o


inferno não faz sentido por ser um castigo atemporal para crimes temporais e,
portanto, uma injustiça que seria cometida desde o começo dos tempos por um
deus que afirmam ser bom e justo. Somos seres temporais e nossos crimes, por
piores que sejam esses crimes, são temporais como nós.

Qual seria mesmo o crime que mereceria um castigo terrível e eterno? Eu não
consigo pensar em nenhum, a não ser talvez o crime de ter criado a partir do
nada, a vida, a humanidade e todos os horrores que existem nesse planeta e,
talvez, pelo universo a fora.

Quando ouço um teísta defendendo a ideia de que o inferno existe – geralmente


para me avisar de que é para lá que vou pelo pecado imperdoável de não crer e
de “falar tanto contra deus” – fico com uma sensação muito desconfortável de
dúvida a respeito da decência, da ética, da bondade genuína dessa pessoa que em
geral se considera eleita por deus para habitar o paraíso pela eternidade.
Confesso que tenho muita dificuldade para acreditar que alguém que seja
realmente bom possa amar – e apoiar – um deus que tenha criado ou que permita
a existência do inferno. Eu afirmo que jamais o faria!

Nós, humanos, cometemos crimes de vários tipos e com vários níveis de


requinte; podemos ofender uma pessoa com uma palavra dura ou matá-la depois
de mantê-la sob tortura durante dias, meses ou anos. Somos capazes de uma
gama enorme de crimes entre um e outro. Cometemos crimes com vários graus
de maldade envolvidos; desde o assassinato frio de um inimigo em uma guerra,
até o lento assassinato
33 “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo
eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. In: Mateus 25:41 – “Onde não lhes morre o verme, nem o fogo
se apaga”. In: Marcos 9:46 – “A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos; e não têm
descanso algum, nem de dia nem de noite.” In: Apocalipse 14:11

de alguém cujo sofrimento somos capazes de apreciar com um prazer que a


alguns de nós – dentre os quais me incluo – parece incompreensível. Com nossas
ações más causamos variados tipos de dano à vítima, desde uma mágoa profunda
até os piores sofrimentos sob as piores torturas, do tipo que são difíceis até de
imaginar para uma pessoa comum.

Quanto a nosso estado emocional, podemos apresentar, no momento do crime,


variados níveis de insanidade mental, temporária ou não; podemos estar sob
forte estresse, podemos estar totalmente fora de nossa consciência comum, ou
podemos estar calmos e tranquilamente conscientes do que fazemos.

Variamos também o número de vítimas atingidas pelos males que praticamos;


alguns matam ou torturam apenas uma pessoa, outros fazem isso com um país
inteiro ou todo um povo. Por conta de todas essas variantes e suas tantas e tantas
nuances, os males que causamos são compatíveis com variadas penas.

Tanto é verdade que a existência do inferno como punição eterna depõe


seriamente contra a ideia de bondade e justiça divina que ultimamente tenho
ouvido cada vez mais o argumento de que as pessoas que pecaram não ficarão no
inferno por toda a eternidade como consta na bíblia, ficarão ardendo e “rangendo
os dentes” apenas o tempo necessário para pagar por seus pecados, e esse tempo,
variando de pessoa para pessoa, será determinado por deus e sua justiça
“infalível e perfeita”.

Não consigo imaginar outro lugar onde podem ter encontrado respaldo para esse
argumento a não ser a corruptível, inadequada e imperfeita justiça dos homens
que, mesmo que em muitos casos mal e porcamente, reconhece essa variedade e,
pelo menos no papel, quase sempre tenta adequar a pena ao crime cometido.

Seexistir o inferno com o qual muitos religiosos costumam ameaçar os ateus,


cada uma das pessoas que estão ou estarão lá foram levadas por deus e lá estão
porque deus quer que estejam e quis que assim fosse desde o princípio. Afinal,
vejamos: se deus optou por tirar cada uma das pessoas que já existiram, que
existem e que ainda existirão, do nada mais absoluto para dar a elas a vida, e se,
podendo tudo, criou essas pessoas como seres fracos, ignorantes e capazes de
pecar, e ainda se, sendo onisciente, ele sabia desde sempre como, quando e
quanto cada uma das pessoas que criou pecaria, então, logicamente foi ele, por
suas próprias decisões e sua própria vontade, quem levou essas pessoas ao
inferno. Ou será que deus não tem livre-arbítrio?

Se deus existe e se o inferno existe, então eu posso, sem pecar contra a lógica,
concluir que cada ser humano pode ser comparado a um leitão que foi criado por
um fazendeiro para – no momento em que esse fazendeiro decidir – virar
churrasco. É como se o fazendeiro dissesse aos seus porcos: “Vou colocar no
espeto todos os porcos que se comportarem como porcos, ou seja, todos os que
chafurdarem na lama, todos os que roerem tudo o que estiver a seu alcance e
também todos aqueles que, se e quando virem uma oportunidade, tentarem fugir
do chiqueiro”.

Então o fazendeiro simplesmente faz churrasco todas as semanas porque sempre


encontra um porco que se comportou como porco. E ele se justifica dizendo que
avisou o porco, deu a ele a oportunidade e o livre-arbítrio para decidir chafurdar
ou não chafurdar na lama, roer ou não roer tudo o que estivesse a seu alcance,
tentar fugir quando a oportunidade se apresenta; ou ficar quieto no chiqueiro e
não tentar fugir nunca, mesmo que a porta seja deixada aberta.

Sei que a imensa maioria dos teístas ficaria chocada com essa minha comparação
que lhes pareceria cruel, mas o paralelo não é absurdo. Sei que se eu dissesse
isso num grupo de teístas alguns parariam por um momento inconscientemente
esperando que um raio caísse do céu e me fulminasse pela audácia de blasfemar
tanto assim, mas tenho certeza de que, se pudesse perder o medo, o teísta mesmo
veria que a comparação não é nada absurda.

Nesse caso o fazendeiro parece, em minha opinião, bem menos culpado que
deus, afinal, se dissesse isso, ele certamente estaria sendo mais irônico do que
malvado. Qualquer fazendeiro sabe que os porcos agirão como porcos,
independente do que se diga a eles; o fazendeiro não é onipotente, precisa se
alimentar para viver e não criou os porcos a partir do nada dando a eles sua sina
e seu destino de serem porcos.

Sei que diante dessa comparação muitos teístas diriam que os porcos não tem
consciência e nós temos, e eu sei disso! Sei também que isso faz de nós seres
muito diferentes dos porcos – embora não tanto quanto alguns teístas gostariam
– mas, se comparada a nossa consciência com a consciência de deus, será que
essa diferença não seria equivalente à não consciência do porco comparada com
a consciência do fazendeiro?

Pelo que afirmam os teístas a respeito da superioridade de deus sobre nós, a


diferença entre nossa consciência e a consciência de deus é astronômica, acho
que todo teísta concordará com qualquer um que disser que a consciência de
deuséinfinitamentesuperioràconsciênciadomaisinteligente dos seres humanos;
portanto, não vejo como absurda essa comparação de proporções.

Deus está para o homem assim como o fazendeiro está para o porco; e estou
correndo o risco de ser injusta porque a distância entre a consciência do
fazendeiro e a consciência do porco talvez não seja tão grande assim. O paralelo,
portanto, parece perfeitamente aceitável na hipótese de existir esse deus no qual
o ateu insiste em não crer.

O inferno, como é descrito, além de contrariar a onipresença e a suprema


bondade do deus criador, faria com que a imagem do deus justo também não
parecesse muito convincente porque sua pena única e eterna não faria nem
mesmo esse arremedo de justiça que são as nossas leis terrenas.

Certamente muitos teístas acabam por sentir essa verdade, mesmo que seja de
forma inconsciente, isso acontece por causa da ética e da decência que eles têm;
não por causa da religião que professam, mas apesar dela. Eles percebem que, se
o inferno existisse, não poderia existir bondade e justiça no deus que sua religião
prega. Como não conseguem negar a existência de deus, esses teístas começaram
a negar a existência do inferno. Para isso apelam às diversas possibilidades de
interpretação que conseguem, com uma boa vontade hercúlea, encontrar em
frases bíblicas do tipo “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua
esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o
diabo e seus anjos.” Mateus 25.41 e dizem: É uma metáfora.

Os argumentos que encontraram para justificar essa negação apesar de o inferno


estar descrito na bíblia; e com muita ênfase no Novo testamento; o que
impossibilita usarem o argumento comum de que a vinda de Jesus mudou as leis
de Moisés; foi dizer que essa parte da bíblia está em “sentido figurado”, ou então
– e esse parece que é razoavelmente novo – que o inferno existe mas a pena
deixou de ser eterna e passou a ser temporária.
É claro que não vão dizer que “a pena deixou de ser eterna”, dirão que nunca foi
eterna, apenas entendemos errado até agora. Ainda não ouvi muitas explicações
“teológicas” desse argumento além do “eterno enquanto dura” que comentei
acima, mas certamente eles as estão encontrando; e nunca nenhum teísta
admitirá que com esse esforço estão apenas copiando nosso próprio sistema
legal.

Quero deixar claro que digo isso sem nenhuma intenção de ofender os teístas,
pelo contrário – como já disse antes – admiro o esforço que fazem para
conseguir que deus diga o que eles, graças à sua bondade e decência, acham
queé certo deus dizer; mas o que acho é que eles não têm consciência ou
coragem de admitir que duvidaram da bondade e justiça de seu deus, então
inventam uma “interpretação” que modifica sua “palavra imutável” para que
esse seu deus não pareça assim tão terrível. São capazes de fazer qualquer coisa
para que a fé seja mantida, inclusive ler o oposto do que está escrito.

Podemos dizer que o mal é algo que, pela lógica religiosa, não deveria existir.
Epicuro lançou a questão: se existe um deus bom e ele criou o mundo, como é
possível o mal no mundo? Quando se pensa em um deus que tenha criado tudo
fica racionalmente difícil aceitar a existência do mal independentemente da
interferência de deus.

Embora filósofos, teólogos e teóricos de diversas áreas e em todas as épocas, que


têm ou tiveram em comum a crença em deus, tenham se esmerado de diversas
maneiras para transformar esse paradoxo em um argumento de certa forma
lógico, não acho que eles o tenham conseguido uma vez que, apesar de todas as
torturas e fogueiras, ainda existem ateus.

Kant, Agostinho, Rousseau emuitos outros filósofos teístas explicam o mal como
sendo o incompleto desenvolvimento no homem da sua capacidade para o bem,
ou então como o inadequado uso que o homem faz da sua liberdade. Para eles a
liberdade, como grande dádiva de deus aos homens, só poderia ser boa e levar ao
bem. Somos nós que, com nossas escolhas erradas, nos tornamos responsáveis
pelo mal.

Filósofos, teólogos, pensadores e estudiosos – teístas e não teístas – costumam


dividir o mal em moral e natural; mal moral seria, basicamente, o mal praticado
pelo homem, e mal natural seria o mal que vem da natureza, como enchentes,
furacões, etc. Essa divisão, porém, nunca foi muito precisa, entre outras razões
porque os teístas ao longo da história vêm acusando o homem igualmente pelos
dois.

Muita gente morreu em consequência dessa definição do mal tão mal arrumada
que esteve em voga nos negros tempos da Idade Média e está implantada na
mente demuitas pessoas ainda hoje. Histórias, infelizmente não ficcionais, de
linchamento, de tortura e de queima de judeus, de artistas, de céticos, de
mulheres que procuravam nas plantas a cura das doenças e que por isso eram
acusadas de bruxaria são comuns no período medieval, e também antes e depois
disso. Muitas vezes essas mortes se tornavam significantemente mais numerosas
depois ou durante uma catástrofe natural, e eram explicadas como uma maneira
de “tirar o mal” de entre as pessoas e “aplacar a ira de deus”.

Acontecia de ter uma epidemia de determinada doença, uma seca ou algum outro
tipo de calamidade que era logo vista como um castigo de deus naquele lugar e
com aquela comunidade; logo alguém concluía que a causa da desgraça era a
presença de uma pessoa ou grupo de pessoas que, por ser quem eram,
“desagradável aos olhos de deus”, teria provocado sua ira e o consequente
castigo a toda a comunidade.

Todos concordavam porque discordar significava ser acusado de participar desse


complô. Então toda a comunidade participava entusiasticamente da “limpeza” e
o judeu, a bruxa, o herege ou a família de estrangeiros eram devidamente
“desmontados” para que deus recolhesse sua fúria e a doença, seca, enchente ou
o que fosse deixasse de acontecer.

Ainda hoje essa mentalidade se mostra muito presente. Por exemplo, quando
uma cidade é atingida por um terremoto sempre haverá um religioso dizendo que
a causa foi a fé “errada” daquele povo; basta lembrar que, por ocasião do
terremoto no Haiti, ocorrido no dia 12 de janeiro de 2010, muitos líderes
religiosos pregaram em seu púlpito que a causa foi o fato de muitos haitianos
praticarem o vodu.

Esses líderes religiosos não pertencem ao mesmo grupo dos teístas que se
esforçam por interpretar a bíblia de maneira que seu texto esteja de acordo a
bondade e decência que eles têm e são.
Aparentemente a divisão do mal em moral e natural tem como objetivo diminuir
a responsabilidade de deus, porque assim fica fácil argumentar – e Kant o fez
muito bem – que o mal moral é de responsabilidade exclusiva do homem. Na
esteira dessa visão, muitos teístas pregam que todo o mal que existe no mundo
existe por causa e por culpa do homem, esse homem que recebeu a dádiva da
vida, que recebeu o livrearbítrio, que recebeu o paraíso como morada, que
recebeu e o privilégio de ter sido criado à imagem e semelhança de deus e que,
mesmo assim, preferiu trilhar o caminho das trevas, viver em pecado e negar seu
criador. Quanta choradeira para um deus onipotente!

E, quanto ao mal natural, não é difícil, em uma análise mais superficial,


argumentar que ele é parte da natureza, que a natureza, por ser destituída de
intenção, não poderia ser má e que, portanto, os chamados males naturais nem
sequer são males realmente.

Esse argumento é tão bom que até mesmo pessoas céticas quanto à religião o
consideram perfeitamente conciliável com a possibilidade da existência de deus.
Isso acontece, pelo que vi, principalmente com os biólogos e outros cientistas
naturais porque essas pessoas em geral amam e respeitam a natureza de tal forma
que não conseguem ver nela nada a não ser beleza.

Admiromuito essas pessoas e por mais que possa parecer contraditório tenho
uma tendência muito grande a concordar com elas. Mas só se elas tirarem deus
dos seus argumentos.

De acordo com esse raciocínio deus seria aquele ser transcendente, bom e justo
que salva milagrosamente uma vítima de terremoto ou de enchente e a quem
todos atribuem esse salvamento e agradecem por ele, inclusive muitas vezes o
próprio bombeiro ou o cidadão solidário e heroico que, este sim! com o risco da
própria vida, realizou o salvamento.

Mas, embora “onipoderoso”, “onibom” e onipresente, deus não seria o


responsável pela morte das outras centenas de pessoas, em geral incluindo
crianças inocentes, porque o povo atingido vivia contra suas leis; ou não seria
responsável porque, embora deus seja “onipoderoso”, “onibom” e onipresente,
terremotos e enchentes são acontecimentos naturais e a natureza não é boa nem
má.

Ouainda, argumento comum até mesmo entre os filósofos teístas, deus permitiu
aquela catástrofe e aquelas mortes por motivos que estão muito além da nossa
capacidade de compreensão. É o chamado “mistério”, palavrinha chave muito
útil e muito confortável que serve como resposta para todo e qualquer
questionamento para o qual o teísta não consiga encontrar resposta sem abrir
mão da fé.

Deus criou a natureza e a natureza, quando se fala em cores, perfumes e belas


paisagens, é “uma face de deus” e uma prova de sua existência. Todas as belezas
da natureza são provas óbvias da existência de deus que apenas a teimosia
impede que o ateu perceba; essas belezas são vistas até mesmo como sendo o
próprio deus, como queria Espinoza.

Mas curiosamente esse argumento costuma ficar esquecido; essa “realidade” em


geral é posta em suspenso quando se fala em terremotos, furacões, tempestades,
porque, ao falar dessas coisas, se não estiverem sendo provocadas para pensar o
papel que seu deus teria diante delas, as pessoas tendem a defini-las sempre e
cada uma delas como um mal. Não é possível, para quem tenta usar a mente sem
as peias do medo, compreender essa lógica.

Embora muitos deles tenham argumentado contra algumas das provas da


existência de deus – como Kant com respeito às provas dadas por Tomás de
Aquino, ou Paul Ricoeur com respeito ao argumento da não existência do mal
dado por Agostinho – o que passa é que os filósofos teístas, em seus argumentos
e suas teodiceias adequam seu pensamento de forma a fazer a existência de deus
caber nele como certa, indiscutível, verdadeira. Isso torna todo o raciocínio
artificial e frágil, como o gigante construído com pés de barro.

Verdadeiros monumentos de raciocínio filosófico foram construídos ao longo da


história por grandes pensadores a partir da “verdade” da existência de deus. Tire
deus desse arcabouço lógico e todo o resto desmorona.

O filósofo francês Paul Ricoeur (1986) é um dos que atribuem basicamente aos
homens a responsabilidade pela existência do mal. Mas ele, ao mesmo tempo,
reconhece a dificuldade que a realidade apresenta para que essa visão da culpa
seja dada exclusivamente ao ser humano, isso acontece principalmente quando
se fala da vítima do mal, a vítima que se pergunta “Por que eu?”.

Numa aparente fuga da possibilidade de admitir a incoerência da existência de


deus diante da realidade do mal34, Ricoeur volta-se para outro lado e se mostra
mais preocupado em procurar soluções do que em dar definições para o mal. A
pergunta fundamental para Ricoeur é: O que podemos fazer para combater o
mal? Esse desvio faz com que se conclua que ele não quis admitir que não há
nenhum argumento convincente e que o deus em que ele acredita, diante do
problema do mal, é indefensável.

Leibniz constrói um pensamento “lógico” que não serve para muita coisa além
de inspirar Voltaire a criar seu Cândido. Todos os filósofos e pensadores céticos,
e até mesmo muitos dos próprios teístas, perceberam falhas gigantescas na sua
Teodiceia. Leibniz, com sua teoria do melhor dos mundos possíveis, cria um
deus de mentalidade extremamente lógicomecanicista que, dentre todas as
possibilidades de mundo que poderia ter criado, escolheu o melhor.

O deus de Leibniz parece que, no mínimo, não tinha tanto poder assim, afinal, se
ele tinha uma quantidade X de mundos
34 Leibniz absolvia Deus restringindo suas escolhas mediante formas eternas. O resultado, como colocou
Hegel, era por demais um conto de fadas para realmente perturbar alguém [...] Rousseau absolvia Deus
mudando nosso foco para o mal moral e argumentando que Ele nos dera recursos para controlá-lo.
(NEIMAN, S. O Mal no Pensamento Moderno 2003, p. 73)

[Para Kant] Em sua descrição, o problema do mal pressupõe uma conexão sistemática entre a felicidade e a
virtude, ou, de modo inverso, entre o mal natural e o mal moral. Mas o mundo não parece mostrar nenhuma
conexão assim. (Idem, p. 76)

possíveis – fosse esse número X tão grande quanto se possa admitir – ele estaria
na verdade limitado a esse número e só poderia escolher o que criaria dentre
esses. Existiria – de acordo com o que se pode depreender da teoria de Leibniz
– uma quantidade Y de mundos que deus não poderia criar porque são os
mundos impossíveis. Mas os deístas defendem que “para deus nada é
impossível”, então, nesse caso, deus não poderia reivindicar, ou a ele não poderia
ser atribuída, a característica da onipotência.

Portanto, a teoria do melhor mundo possível de Leibniz não parece muito


convincente, daí que, a bondade de deus como sendo caracterizada pelo fato de
escolher o melhor mundo possível e administrar esse mundo fazendo sempre as
melhores escolhas possíveis a fim de que tudo funcione dentro da lógica
mecanicista de um relojoeiro fica na verdade bem pouco adequada para ser
levada seriamente em consideração.

Ao dizer que deus não poderia ter feito um mundo melhor do que este, o seu
famoso defensor arranca dele qualquer possibilidade de onipotência; e ao afirmar
que todas as ações de deus estão voltadas para o bem Leibniz transforma deus
em um bufão desastrado que causa toda espécie de acidente fatal com intenção
bondosa. Um deus como esse levaria a pensar que qualquer criação ficaria bem
melhor sem ele.

Tomás de Aquino, Agostinho, Kant, Leibniz e muitos outros tentaram encontrar


uma maneira de invalidar o paradoxo da existência de deus diante da realidade
do mal; na opinião de filósofos como Bertrand Russell, Davi Hume, Daniel
Dannett, Umberto Eco e muitos outros, eles não conseguiram. Cada um dos
teístas procurou criar um outro tipo de verdade que pudesse desfazer o paradoxo;
para os céticos – e porque ainda existem céticos – nenhum deles conseguiu isso.

VI

Paramimpareceverdadeiroesuficientementeabrangente definir o mal como sendo


tudo aquilo que causa ou é um dano para um ser senciente. Mesmo trazendo
benefício ao ser que o pratica, se esse dano não for compensado por um bem
maior que recaia – com seu conhecimento e concordância
– sobre o mesmo ser senciente sobre o qual recairá o dano, este será um mal.

Essa é a minha definição e devo dizer que ela foi estruturada e arrematada em
muito baseado na leitura dePeter Singer.35Na minha visão, essa definição é
muito adequada principalmente porque desfaz o argumento da relatividade do
mal, um argumento usado com muita frequência por todo tipo de teísta,
principalmente, na minha humilde opinião, por teístas que não têm em muito
bom estado o seu próprio conceito de ética.

Esse argumento diz basicamente que o mal é relativo porque o que é mal para
uns pode ser o bem para outros. Em geral colocam como exemplo casos mais ou
menos parecidos com esse: Eu causo um dano físico ou moral a uma pessoa, isso
será um mal para ela, mas pode ser um bem para mim que com isso posso estar,
por exemplo, tirando essa pessoa do caminho para conseguir uma promoção. Às
vezes os exemplos são ainda mais terríveis.
35 Singer defende que “... a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se
eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios
que tal comportamento me traz a mim.” – “A ética exige que nos abstraiamos do “eu” e do “tu” e que
cheguemos à lei universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial ou do
observador ideal, ou o que lhe quisermos chamar.” Se tomarmos como mal todo comportamento que não
seja ético, dentro dessa visão, teremos uma definição de mal bastante condizente com a que foi apresentada
acima. In: SINGER, Peter. Ética Prática (Disponível em: http:// www.scribd.com/doc/7299953/Peter-
Singer-Etica-Pratica. Acesso: 14 out. 201

Talvez seja bom tentar explicar melhor essa minha definição pedindo para que
você atente em alguns conceitos e alguns detalhes dela. Quando falo em ser
senciente, da mesma forma que Peter Singer, estou me referindo a todo ser capaz
de sentir e, principalmente, de sentir dor. Perceba que dessa forma incluo quase
todos os animais, se não todos uma vez que de muitos deles não temos como
saber realmente e com segurança se sentem dor ou não.

Além disso – se você pensarbem – pode incluir as plantas porque também não
sabemos com certeza se elas sentem ou não. Mas não precisamos ir tão longe;
para efeito prático podemos definir e tratar como seres sencientes todos aqueles
sobre os quais podemos afirmar que, por possuírem sistema nervoso, são capazes
de sentir dor e prazer. Em muitos casos, como acontece quanto aos nossos
cachorros ou gatos de estimação, nem precisamos ter conhecimento de um
estudo de suas anatomias, o comportamento deles já é suficiente para que
possamos ter certeza de que esses bichos sentem prazer e sentem dor.

Como muitas vezes somos obrigados a causar dor para salvar – e sabemos que
médicos e enfermeiros fazem isso o tempo todo – coloquei a ressalva de que o
mal será realmente um mal se não resultar dele um bem maior. E como a
expressão “de um mal resultar um bem maior” já foi argumento para muitos
males quando quem decidia qual era esse bem maior era justamente o autor do
mal e aquele que seria beneficiado pelo “bem maior” advindo desse “mal
necessário”, coloquei a ressalva de que esse bem maior deve recair sobre o
mesmo ser senciente sobre o qual recairá o dano e com o conhecimento e a
concordância desse ser senciente.

Afinal, lembre-se de que o assassinato de judeus era visto por muitos nazistas
como um mal que levaria a um bem maior. Nem ocorreu a eles perguntar o que
os judeus pensavam sobre isso. E esse é apenas um dentre tantos exemplos. A
hipocrisia desse raciocínio quase nunca é percebida pelo agente do mal.

Em seu livro Mal: o lado sombrio da realidade, Jonh A. Sanford (1988) conta a
história de uma epidemia que de 1616 a 1619 dizimou a população indígena de
uma localidade americana deixando as terras livres para serem ocupadas pelos
puritanos. Esses puritanos viram a epidemia como um grande bem e até mesmo
como um milagre. E agradeceram muito a deus por ter varrido os pagãos das
“suas” terras.
Sanford conta essa história justamente para falar da relatividade do mal. Dentro
da minha definição de mal não há essa relatividade e, embora tenha causado
alegria para os invasores, o extermínio de um povo inteiro por uma epidemia
será sempre um mal, sem nenhuma sombra de dúvida e sem nenhum “porém”.
Por maiores benefícios que seu extermínio possa ter trazido para os puritanos,
foram os índios que sofreram o dano, e para eles não houve nenhum benefício.

Há um outro tipo de atitude que quase todas as pessoas concordam que seja um
mal embora possam chamá-lo por outro nome – como pecado ou simplesmente
como falta de ética. Esse mal consiste em desejar a desgraça alheia ou se alegrar
com a infelicidade do outro, muitos padres e pastores pregam em seus altares e
púlpitos a frase “Não desejarás o mal” quase como se fosse um dos dez
mandamentos.

A atitude dos puritanos foi um exemplo desse mal, afinal eles festejaram e
agradeceram a seu deus o extermínio de todo um povo. A esses peregrinos, pelo
que conta a história, não deve ter ocorrido que esse povo dizimado era composto
por pessoas, por seres vivos capazes de sofrer, não parece ter ocorrido a eles que
certamente havia crianças inocentes entre eles, talvez pais e mães de família
amorosos e que nunca fizeram mal a ninguém.

Não ocorreu a eles que agradecer a deus ou a quem quer que seja por ter feito
um mal tão grande não parece uma atitude nem sequer minimamente decente. E,
seguramente, um mal de tal dimensão não parece condizente com o que seria, ou
deveria ser, a prática de um deus todo bondade, caso esse deus todo bondade
existisse.

Alguém pode argumentar que o mal feito a alguém pode ser um bem feito a
outro e pode ser também, justamente, algo digno de merecer gratidão; um
exemplo disso pode ser um tiro dado por um policial em um bandido por
legitima defesa num tiroteio. Outro exemplo pode ser um tiro dado por um
policial (não necessariamente o mesmo) momentos antes de esse bandido matar
uma ou mais pessoas em um assalto.

No primeiro caso o policial tem toda a razão para se sentir aliviado e até feliz, no
segundo caso os dois, tanto o policial quanto a vítima (ou as vítimas) salva por
ele têm toda a razão para se sentirem felizes. Qualquer pessoa que foi salva em
situações como essa terá toda a razão e todos os motivos para sesentir grata ao
policial. E certamente será grata a deus se for religiosa – uma gratidão egoísta e
hipócrita, na minha opinião, porque está agradecendo ao deus cuja “bondade” e
“justiça” a salvou mas não salva centenas de outros na mesma situação.

Mas, enfim, os teístas sempre agradecem em casos assim. De qualquer forma,


nos dois casos o bandido sofreu um dano pelo qual não foi compensado por um
bem maior. O argumento e os exemplos são perfeitos! Porém, nesses dois casos
temos um imperativo mais forte e determinante que supera a necessidade de não
praticar o mal: no primeiro caso é o instinto de sobrevivência, no segundo é a
necessidade de evitar um mal iminente aparentemente bem maior.

Quando defino o mal como tudo aquilo que causa ou é um dano para um ser
senciente, estou falando de um ser senciente inocente de, nesse caso e nessa
situação, estar causando ele mesmo, algum tipo de mal a um outro ser senciente.
Não coloco a palavra “inocente” logo depois de “senciente” no próprio
enunciado da definição porque essa palavra daria margem a argumentos que
levariam à justificação de muitos males, uma vez que sempre se pode
argumentar que ninguém, ou quase ninguém, é completamente inocente. Se,
como foi mostrado acima, até mesmo em pretensas vidas passadas às vezes as
pessoas comuns buscam culpa para justificar o sofrimento injustificável, o que
não fariam os genocidas com um “presente” desses?

Peter Singer deixa claro em seu livro que uma ética centrada no ser senciente
não deixa de apresentar dilemas extremamente complexos em algumas situações
e circunstâncias específicas; mas para esses casos existe a democracia, existem
as leis, existem os tribunais e existe – talvez menos confiável mas ainda assim
um recurso muitas vezes válido – o bom senso.

Há alguns casos em que se pode aplicar a definição do mal que leva em conta o
ser senciente que certamente não receberão o mesmo apoio e a concordância
quase unânime que a definição do assassinato e tortura de pessoas como sendo
um mal costuma receber.

Para a maioria das pessoas parece incompreensível e totalmente insano uma


pessoa gostar de matar, é quase certo que a imensa maioria das pessoas
concordaria que o prazer de matar é um mal, ficamos chocados com os
assassinos em série que vemos nos noticiários, ou mesmo nos filmes.

A grande maioria das pessoas, se perguntadas, certamente afirmaria com toda a


veemência e com toda a convicção que o prazer de matar é um mal e que uma
pessoa capaz de sentir esse tipo de prazer é um louco insano, e, se forem
religiosas, essas pessoas afirmarão ainda que o prazer em matar é um terrível
pecado.

No entanto muitas dessas mesmas pessoas definem a caça e a pesca como


esportes; e muitas delas acreditam que criar pássaros em gaiolas é um hábito
“inocente”, um “prazer” que as pessoas se dão. Quando abrem ou frequentam
uma das muitas lojas que ostentam subtítulos como “artigos para caça e pesca”
ou “casa de aves” que vendem e compram como “material esportivo” as armas,
os anzóis e arpões e como “material para seu hobby ou negócio” as gaiolas e os
próprios animais.

Mesmo os mais religiosos, que se afirmam defensores convictos do primeiro


mandamento “não matar” não percebem nenhuma incoerência na prática do seu
prazer, do seu hobby, do seu negócio. Eles simplesmente não levam em conta
que a caça e a pesca são atividades que matam, não ocorre a eles pensar que uma
gaiola também pode ser vista como um instrumento de tortura. Fazem questão de
não perceber que estão matando seres sencientes ou matando a liberdade que é a
essência daquele ser vivo. E fazem isso não por necessidade de sobrevivência,
mas por PRAZER!

Dentro dessa concepção de mal, que respeita todo ser senciente e não apenas o
ser humano, a caça é um mal, a pesca é um mal, criar pássaros em gaiola é um
mal. Isso sem falar das cobaias de laboratório, das brigas de galo, das touradas e
de outras maneiras ainda mais sofisticadas que o ser humano usa para se divertir
ou ter lucro a custa dos nossos companheiros de jornada.

É claro que não tenho como pôr objeção à prática da caça e da pesca para
subsistência. A natureza é assim e somos parte – uma parte privilegiada – da
cadeia alimentar; em diversos casos, em diversas situações, em diversos lugares
pessoas precisam caçar e pescar para sobreviver. MAS SENTIR PRAZER
NISSO? Para mim esse prazer é totalmente incompreensível.

E o mais terrível, na minha opinião, é que sou minoria. Os animais, até prova em
contrário, são seres sencientes que quando sofrem o dano não têm nem a culpa
que justificou a morte do bandido nos exemplos acima, nem a condição e
capacidade de serem consultados e concordarem em participar desses “esportes”,
e certamente se pudessem opinar não concordariam.
Apesar de sabermos que, dentro de determinadas circunstâncias, o ato de matar é
uma necessidade de sobrevivência, o prazer de matar que está presente na caça,
na pesca e na tortura (gaiola), quando consideradas como esporte ou passatempo,
será certamente um mal porque o caçador, o pescador ou o criador está causando
dano a um ser senciente com o fim apenas em seu próprio prazer (doentio).

Não há o atenuante da necessidade de sobrevivência, da legítima defesa, ou da


necessidade de salvar a vida de um inocente. É maldade pura. E o curioso é que
conheci muitas dessas pessoas que gostam de caçar, de pescar ou de prender
pássaros em gaiolas e elas não eram pessoas más. Não consigo entender como é
que conseguem, sendo boas, praticar o mal e não se darem conta disso.

Ainda quanto a isso fico me perguntando como é que as pessoas podem pensar
na caça e na pesca como uma necessidade e, portanto, como um bem quando
acreditam que existe um deus criador onipotente e todo bondade. Eu não entendo
isso porque para mim se existisse um deus que realmente fosse bom, ele
certamente não criaria seres que só podem sobreviver à custa da morte de outros
seres.

Como imperativo natural, a caça de subsistência faz todo sentido, como


necessidade da criação de um deus todo poder e todo bondade ela simplesmente
me parece um absurdo. Em outras palavras, sem deus eu posso aceitar a
necessidade de matar para viver como característica de uma natureza amoral que
contém o equilíbrio entrevida e morte como sua essência; mas, com deus, essa
necessidade de equilíbrio passa a ser imoral, teria que ser uma criação voluntária
e, portanto, uma maldade planejada.

No caso de deus existir, a necessidade de matar para sobreviver seria


obrigatoriamente algo desprezível que simplesmente não pode ter partido de um
ser todo poder e todo bondade. Novamente, aceitar a existência de deus nessas
circunstâncias é como aceitar a existência de um círculo triangular. Impossível!

Preciso esclarecer ainda que, dentro da minha definição de mal, chamo de dano a
todo e qualquer prejuízo, sofrimento, ou dor. Esse dano pode ser físico ou
mental, pode ser muito ou pouco duradouro, pode ser muito ou pouco intenso,
pode ser muitooupoucolesivo. Enfim, desdeuma mágoa passageira até um
assassinatosob tortura, tudooquepossa ser desagradável para o ser senciente por
ele atingido, será um mal.
E não nos esqueçamos de que o ato de maldade pode até mesmo ser praticado
em um terceiro corpo e não propriamente no corpo do ser senciente que sofrerá
com ele. Veja, por exemplo, o caso de um incêndio criminoso; o corpo atingido
foi outro e nem sequer foi o de um ser senciente, mas o ato foi um mal porque
representa um dano para o ser senciente que é o proprietário do imóvel.

Um outro exemplo, este um tanto polêmico, pode ser o de deixar morrer alguém
que está em estado vegetativo e, portanto, talvez não possa ser tido como um ser
senciente. Se a pessoa não manifestou claramente, antes de estar impossibilitada,
o desejo de que se fizesse a eutanásia e se tem um familiar que sofrerá com sua
morte caso ela seja permitida, a eutanásia será um mal.

Por conta desse último exemplo devo dizer que concordo muito com Peter
Singer quando ele expressa as opiniões pelas quais foi tão demonizado. Em
princípio, como ele, não sou contra eutanásia ou o aborto. Penso que há casos – e
muitos – em que ambos são perfeitamente aceitáveis e até mesmo eticamente
obrigatórios.

Acredito que, no caso da eutanásia, a opinião e o sentimento do próprio paciente


ou, no caso de o paciente não poder se expressar, dos familiares, é o único ponto
a ser levado em conta quando não há esperança de cura ou recuperação. Na
minha visão advogados ou promotores, políticos ou líderes religiosos, e até
mesmo médicos simplesmente não têm o direito de ter suas opiniões
consideradas acima da opinião e da vontade do próprio paciente ou das pessoas
que o conhecem e o amam.

Se o paciente quiser continuar a viver ou, na falta de possibilidade de consultá-


lo, se seus familiares quiserem que ele continue a viver, NINGUÉM deve ter o
direito de fazer a eutanásia, e se alguém o fizer será assassinato. Mas, se o
paciente ou, na falta de possibilidade de consultá-lo, aqueles que o amam,
decidirem que a eutanásia é o melhor caminho, então NINGUÉM tem o direito
de impedir que ela seja praticada.

Eu mesma gostaria que alguém fizesse a caridade de desligar os aparelhos caso


um dia me encontre em estado vegetativo sem esperança de cura, e conheço
muitas pessoas que pensam como eu. Não consigo imaginar por que a opinião de
alguém a respeito da MINHA vida – por mais “em nome de deus” que seja –
pode ter mais importância legal do que a minha própria opinião.
No caso do aborto, o sentimento e o desejo da própria mulher devem ser
observados e respeitados acima de quaisquer outros desejos ou opiniões e acima
da “vida” do embrião. Antes dos três meses de gestação, o único ser senciente
diretamente envolvido no processo de gravidez é a mulher, o embrião não tem
sistema nervoso, não tem cérebro, não tem ainda capacidade de sentir dor ou
prazer, é um aglomerado de células com o potencial de tornar-se um ser
senciente, mas NÃO É um ser senciente.

Em contrapartida a mulher, esta sim é um ser senciente completo, e ela é o ser


senciente sobre o qual recairá o dano tanto de uma gravidez interrompida sem
seu consentimento quanto de uma gravidez levada adiante sem o seu
consentimento. Ela é o único ser senciente cuja opinião deve ser acatada.

Advogados, promotores, políticos, líderes religiosos e médicos deveriam ser


honestos, deveriam ser éticos e saber reconhecer esse fato não interferindo em
nenhuma gravidez a não ser para evitar que alguém tente impedir que a vontade
da mulher seja respeitada. Isso é ética para mim, isso é bondade. O contrário
disso, por mais “em nome de deus” que seja, é o mal.

VII

Quanto aos fenômenos da natureza, dentro do meu conceito, eles também podem
ser um mal, isso porque a enchente que causa mortes é um mal para os seres
sencientes atingidos por ela, e o mesmo se pode dizer de todo e qualquer
fenômeno natural que, vez ou outra, se torna catástrofe. Tais fenômenos não são
conscientes, não têm intenção, mas são capazes de trazer e de ser um mal, e
muitas vezes um mal imenso.

Essas catástrofes naturais com muita frequência costumam causar danos a um


número muito grande de seres sencientes, animais e filhotes são mortos, ninhos e
tocas são destruídos, pessoas de todas as idades são feridas, desabrigadas e
mortas. Os sobreviventes e seus ferimentos e perdas olham para o vazio, amigos
e familiares que moram em lugares que não foram atingidos são vítimas
impotentes que choram seus entes queridos. Não entendo como alguém pode
pensar as catástrofes naturais como algo que nãopossa ser definido como mal;
como alguns dos mais terríveis males que atingem toda espécie de vida do
planeta.

Atente para o detalhe de que sempre relaciono entre as vítimas das catástrofes
naturais não só os homens e suas habitações, mas também os animais e suas
habitações; a gente tem mania de esquecer em nossos argumentos – e os teístas
sempre esquecem nos deles quando nos culpam pelos males que sofremos – que
as catástrofes naturais não matam e prejudicam apenas os seres humanos.

Quando um teísta mais radical diz que a enchente acontecida no ano tal e em tal
lugar foi na verdade um castigo de deus para o povo daquele lugar porque eles
eram adeptos de uma religião diferente da do teísta insensato, ele, esse teísta
desavisado para dizer o mínimo, está esquecendo que se o deus dele, num desejo
de vingança que qualquer pessoa de moral minimamente sadia consideraria
injusto, resolveu castigar homens pela sua religião “errada”; ele não teria
justificativa – nem mesmo uma esdrúxula como a tal religião errada – para
incluir nessa destruição também os animais que habitavam o lugar.

E as catástrofes naturais, mesmo sendo inconscientes e, portanto, não


responsáveis pelos horrores que causam, ainda assim conseguem ser eticamente
superiores a deus. O terremoto, por exemplo, mata igualmente o pobre e o rico, o
bom e o ruim, o velho e a criança, o homem e a mulher. Deus, ao contrário, é
muito seletivo.

Basta ler os jornais no dia seguinte a uma catástrofe e ver as entrevistas e


depoimentos das pessoas que sobreviveram e afirmam que foram salvas por ele
para concluir que ele sim, tem critério, escolhe alguns poucos privilegiados e
salva apenas aqueles enquanto permite que os outros morram. Agora, que raio de
critério “justo” é esse que faz com que deus salve um crente bajulador e deixe
morrer dezenas de crianças inocentes eu nunca vou entender.

O furacão, o terremoto, a chuva torrencial, o tsunami, o raio, a tempestade


marinha, o frio e o calor não são maus nem bons, certamente, mas deus, se um
deus existe, tem que ser obrigatoriamente mau por ter criado um mundo onde
esses fenômenos existem e se tornam catástrofes. E mais, os seres humanos que
agradecem a deus ou que atribuem a deus a responsabilidade por ter conseguido
sobreviver a uma dessas catástrofes naturais são maus, ou estão sendo maus,
porque não se dão conta – e não se dão conta porque não se deram ao trabalho de
pensar – de que estão agradecendo também e consequentemente, pela morte dos
que não conseguiram escapar e pela dor dos que perderam seus entes queridos
nessa calamidade.

A minha pergunta seria: Quem você pensa que é para merecer mais do que
qualquer um dos que morreram e dos que sofrem pela perda do seu ente querido?
Duvido que esse crente bajulador será capaz de responder a essa pergunta
simples de maneira a melhorar um pouco que seja a imagem de sádico injusto e
imoral que ficou de seu deus; e dele mesmo por tabela.

Muita gente diz que é apenas uma reação normal de alívio; que as pessoas que
dizem essas coisas não estão de forma alguma agradecendo pela desgraça alheia,
alguns dizem até que esse ”graças a deus” é apenas uma expressão e que nem
sequer significa mesmo o que parece significar. Que seja, que digam e que
pensem dessa forma, mas o fato é que essas explicações não eximem os
“agradecidos” da culpa de não ter se dado ao trabalho de ao menos olhar à sua
volta com um mínimo de sensibilidade, o suficiente para sentir vergonha de
sequer pensar em dizer um absurdo desses.

E certamente não exime deus de, caso existisse, ter possibilitado essa catástrofe,
ter permitido que tantos morressem ou sofressem e ter salvado logo um ser tão
insensível e incapaz de pensar como esse que não tem pejo de pronunciar frases
infelizes desse tipo; muitas vezes pela televisão em rede nacional e de novo e
sempre que pode até anos depois da tragédia, mostrando que não foi apenas
“uma reação normal de alívio”.

Desculpem, desculpem, desculpem! Sei que estou sendo muito dura, sei que
estou me deixando levar por uma revolta com a qual a grande maioria das
pessoas não concorda e que até mesmo pode ofender alguém, por isso peço
desculpas e peço desculpas novamente. Mas o fato é que fico mesmo revoltada
quando vejo ou leio essas frases, a verdade é que não entendo por que as pessoas
não se pronunciam contra esse hábito, não consigo perceber a tolerância das
pessoas, que não falam nada, que não fazem nada para mostrar para aqueles
egoístas insensatos que seus pronunciamentos são inadequados e até mesmo
ofensivos.

Daí que sinto raiva da pessoa que disse isso, sinto raiva das pessoas que ouviram
e não disseram nada e sentiria muita raiva de deus, se acreditasse nele, por
permitir que as pessoas se comportem dessa forma.

Para que não se diga que não compreendo esse “Graças a deus” dito por impulso
vou contar uma historinha real: Quando meu filho era pequeno, morei em uma
casa de fundos e a mulher que morava na frente tinha um neto com o mesmo
nome do meu filho e quase da mesma idade. Minha mãe veio me visitar um dia e
não me encontrou, falou então com a minha vizinha de frente perguntando se
estava tudo bem, a mulher respondeu que sim, mas que o Daniel estava no
hospital; minha mãe se desesperou, fez (provavelmente) aquela “cara de avó que
recebe má notícia” e a vizinha logo tratou de esclarecer que falava do Daniel
dela, não do Daniel da minha mãe. Então, num repente impensado e tomada pelo
alívio, minha mãe disse “Graças a deus!”, mas imediatamente percebeu a “gafe”
que tinha cometido e pediu mil desculpas à minha vizinha que a desculpou
imediatamente dizendo que compreendia e que provavelmente ela diria o mesmo
se estivesse no lugar da minha mãe.

Minha mãe sempre conta essa história, e eu certamente a ouvi vezes suficientes
para perceber que, apesar de toda sua religiosidade, ela teve e tem total
consciência de que esse “Graças a deus” não foi ético, foi apenas impensado.
Tenho certeza de que ela colocou esse episódio naquela lista de “quantas vezes
falei quando devia ter calado a boca” que todos nós temos, afinal, quem nunca
“pisou na bola” alguma vez na vida?

E eu compreendo perfeitamente esse “Graças a deus” impensado e impulsivo da


minha mãe, assim como minha vizinha compreendeu. Mas, depois de ter tido
tempo para pensar, às vezes semanas, ou até anos depois do fato; depois de saber
quantas vítimas aquela catástrofe fez, eu decididamente não acho desculpável
que alguém venha com esse “Graças a deus” em depoimento emocionado ao
repórter que cobriu a notícia ou que conte esse episódio “milagroso” dizendo
coisas como “Eu tenho prova da existência de deus, ele me salvou” omitindo,
propositadamente o que deveria ser o complemento dessa frase: “... enquanto
deixou que outras X pessoas morressem”. Isso é desonesto!

Por mais que as explicações dadas pelos geólogos sobre o movimento das placas
tectônicas, as diferenças de temperatura ou a pressão interna da Terra estejam
corretas, por mais explicações geológicas, físicas, climáticas, termodinâmicas ou
qualquer outro tipo de explicação científica que os cientistas de todas as áreas do
conhecimento possam dar, e por mais que com essas explicações eles possam
mostrar e provar que os fenômenos naturais são necessários e até vitais para o
planeta que habitamos; ainda assim, não há como deixar de julgar o terremoto,
as enchentes, as erupções vulcânicas e todas as outras catástrofes naturais como
um mal porque essas catástrofes quando acontecem ferem, desabrigam e matam
pessoas e animais.

Os cientistas podem mostrar como funcionam, podem explicar porque


acontecem podem explicar até mesmo a necessidade de sua existência, mas não
podem tirar delas o caráter de mal quando arrasam vidas. E eu, vendo essas
explicações e essas provas, compreendo essa necessidade de existência dos
fenômenos naturais da mesma forma que compreendo a cadeia alimentar; são
parte da natureza, a natureza é amoral e não posso julgá-la pelos meus padrões,
aceito isso e até admiro essas “soluções” naturais para que se mantenham os
sistemas geológico, os ciclos da água, a distribuição de temperatura, etc. Só não
posso aceitar isso quando colocam deus no jogo.

Os teístas que usam o argumento de que nós, os seres humanos, somos


responsáveis pelos males do mundo – inclusive o chamado mal natural – não
estão totalmente errados. Nós podemos ser acusados, até com muita justiça, de
sermos responsáveis pela maior gravidade e maior frequência de algumas
catástrofes naturais, porque sim, nós poluímos ar e a água, nós desmatamos, nós
não respeitamos a natureza. Sim! Nós somos culpados pelo aumento da
quantidade de vítimas das enchentes por construirmos cidades às margens dos
rios, nós somos responsáveis pelo aumento de vítimas de deslizamentos de terra
porque construímos casas em encostas. Os teístas ecológicos têm toda a razão,
com certeza somos responsáveis pela maior gravidade dos estragos causados
pelas catástrofes naturais. Somos sim!

Mas, apesar disso, não há como afirmar que os homens são responsáveis pela
existência da violência nos fenômenos da natureza. Não os criamos, não os
produzimos, não determinamos sua existência, não temos poder para
movimentar placas tectônicas, massas de ar ou nuvens; nunca tivemos. Esses
fenômenos existem e por vezes se mostram violentos desde muito antes da
existência dos seres humanos no planeta.

Até mesmo para acusar o diabo, embora alguns por vezes tenham tentado fazê-
lo, os teístas teriam dificuldades lógicas bastante sérias; afinal há que se atentar
para o fato de que as catástrofes naturais são causadas pela Natureza, que, no
dizer dos teístas, é a perfeita criação incontestável de deus. E no dizer de alguns
a natureza é o próprio deus.

Se existe esse deus e se ele é o Criador todo poderoso, então o lógico é que ele
tenha criado o homem e dado a ele essa capacidade de sentir prazer em matar,
essa prepotência que o torna capaz de agir apenas em seu próprio benefício com
total desprezo pela natureza, pelos animais e mesmo pelos seus iguais.
Se deus é o criador único e onipotente, o lógico é que ele tenha criado a terra e
dado a ela essa condição geológica que a faria ser – ao mesmo tempo que uma
mantenedora
– uma destruidora de vidas, uma causadora de sofrimentos, uma agente do mal.

Se existe deus, se deus é tão poderoso quanto dizem, então ele é responsável pela
existência do mal em todos os seus aspectos e manifestações, e é o responsável
também pela permanência e manutenção de todo o mal que existiu, que existe e
que existirá. Se existe deus, ele é o próprio mal.

VIII

Diante do terremoto de Lisboa podemos ouvir teólogos ortodoxos e


fundamentalistas sem noção de ética acusando a sociedade lisboeta de estar
mergulhada em pecado, podemos ouvir teólogos ortodoxos e fundamentalistas
sem noção de ética rogarem a essas desesperadas vítimas, mesmo que nenhuma
delas tenha jamais matado qualquer pessoa, que se lembrem dos milhares de
índios e africanos que seus ancestrais massacraram, novamente numa
demonstração da “justiça” do deus que castiga no filho os pecados do pai.

Diante do horror de Auschwitz podemos ouvir um antissemita mais radical e


ignorante como todos os radicais dizendo que as vítimas eram os assassinos de
Cristo, podemos ouvir cristãos cheios de bondade afirmando que a culpa não é
de deus e sim da maldade do homem – que é sempre culpado por tudo, mesmo
quando é vítima – e podemos ouvir até, coisa comum atualmente, os chamados
revisionistas que fecham os olhos para todas as provas materiais e conseguem se
fazer de “paladinos da verdade” negando que tudo aquilo tenha realmente
acontecido. Mas diante da existência da cadeia alimentar não ouvimos nada.

Qualquer biólogo diria que a cadeia alimentar é um ciclo necessário para manter
o equilíbrio biológico do planeta e não há quem possa discordar desse argumento
e dessa verdade tantas vezes comprovada na prática. Todos sabem que qualquer
forma de vida existente na terra precisa extrair energia de algum lugar para
crescer, se multiplicar, mover-se; enfim, viver; e a grande maioria dos seres
vivos do planeta tira a energia necessária para a própria vida da vida de outros
seres vivos.

Muitos seres vivos se reproduzem em um ritmo e em tal númeroque senão


tivessem predadores povoariam a terra de tal maneira que ameaçariam a
existência de outras espécies. Os exemplos que me ocorrem agora são os
gafanhotos e os ratos, mas certamente não são os únicos e acho que cada um de
nós, se parar um pouquinho pra pensar consegue se lembrar de mais alguns, e se
pesquisar no google você encontrará várias páginas falando das pragas urbanas.

Pragas urbanas são animais que por estarem em ambiente diferente de seu
habitat natural, estão longe também de seus predadores, então o que acontece é
que seu número se torna excessivo e prejudicial ao ambiente em que vivem. Há
também outras pragas, como os animais que deixaram de ter predador porque
esses foram exterminados ou reduzidos a números insignificantes, ou ainda
expulsos daquele habitat.

Ou seja, os animais “precisam” dos predadores para que não se tornem pragas.
Essa “convivência pacífica e necessária” entre predador e presa é o que os
biólogos chamam de Cadeia Alimentar.

A existência dos predadores controla a quantidade de indivíduos da espécie a que


pertencem as suas presas e, ao mesmo tempo, a quantidade de presas disponíveis
controla a quantidade de predadores, o que garante a sobrevivência das duas
espécies.

Em nenhum momento, no estudo, na definição, na defesa da beleza desse


equilíbrio natural há qualquer menção e, aparentemente não há qualquer
pensamento ou sentimento, que leve em conta o indivíduo, seja ele o predador
ou a presa. E eu entendo que não haja porque isso tornaria mais difícil tanto
compreender esse equilíbrio necessário, quanto ver os estudos e métodos de
controle como são; e mais difícil ainda fazer tais estudos e aplicar tais métodos.

Falando em natureza, em planeta Terra, em uma realidade preexistente, a cadeia


alimentar faz todo sentido e parece ser tão organizada e necessária que não fica
difícil compreender por que os teístas chegam a ver nisso um tipo de
planejamento. Não fica difícil entender também por que mesmo os cientistas não
religiosos, e até muitos dos ateus, defendam convictamente a beleza desse
equilíbrio. É comum encontrar o ateu culto que afirmaria, se perguntado “Não
acredito em deus, mas respeito e amo a natureza”, e isso faz todo sentido!

Porém, se considerarmos a existência de um deus onipotente, onisciente,


onipresente, suprema expressão da bondade e da justiça e criador do mundo, do
universo e da natureza, será que não teremos que olhar novamente e com outros
olhos a cadeia alimentar?36

Na abertura do seu livro Quebrando o encanto, o filósofo Daniel C. Dennett


(2006), descreve como o parasita Dicrocelium dentriticum domina o cérebro de
uma formiga e a leva a expor-se com o objetivo de ser devorada juntamente com
o capim sobre o qual sobe sempre cada vez mais alto. Isso acontece para que ela
possa “levar” o parasita que a dominou para dentro do estômago de uma vaca ou
carneiro. Ela será, claro, devorada e, consequentemente, morta para que o
parasita que a dominou consiga chegar ao seu habitat e lá se desenvolver e,
muito provavelmente, fazer adoecer o herbívoro que devorou aquela formiga
infectada.

Se puder parar um pouco e olhar essa cena não como um elo importante dessa
“maravilha” que é a Cadeia Alimentar, mas como a vida de três indivíduos, será
que nossa opinião sobre a maravilha da natureza consegue permanecer intacta?

Há um indivíduo, a formiga, que comete suicídio não porque decidiu que não
deseja viver, mas porque perdeu a capacidade de agir por conta própria. Há um
indivíduo que precisa viver e que provavelmente não tem, nem tem como ter,
conhecimento de que seu “transporte para casa” é um ser vivo cuja vida se foi
por sua causa. Há, por último, um indivíduo que nem sequer se alimenta de
animais, mas que involuntariamente devorou esse ser vivo involuntariamente
suicida e que em consequência disso pode vir a morrer também, talvez sem que
complete o ciclo de sua vida. Onde está a beleza disso?
36 John Stuart Mil: “Se uma décima parte do esforço feito para descobrir sinais de um deus benevolente
todo-poderoso tivesse sido empregada para reunir provas para sujar o caráter do criador, o que não teria sido
encontrado no reino animal? Ele é dividido em devoradores e devorados, a maioria das criaturas dotada de
instrumentos para atormentar suas presas”. Citado em: HITCHENS, C. Deus não é grande 2006, p. 77

Vespas parasitas põem seus ovos em lagartas e suas larvas crescem e se


alimentam do corpo da lagarta que vai sendo devorada de dentro para fora até
que, ao atingirem o desenvolvimento adequado, as larvas eclodem matando
finalmente sua enfraquecida hospedeira.37 Darwin teria encontrado dificuldades
para acreditar que um Deus bom e onipotente pudesse, propositalmente, criar
tais vespas: “Não posso convencer-me”, escreveu Darwin, “de que um Deus
benéfico e onipotente tenha criado propositalmente as Ichneumonidae com a
intenção expressa de que estas buscassem o seu alimento no interior do corpo
vivo das lagartas”38
No Discovery Chanel, no Net Geo e até na Globo é comum que passem
programas que tratam da vida dos animais; alguns desses programas têm nomes
como “predadores”, ou algo do tipo. Qualquer pessoa que já tenha alguma vez se
interessado pela vida dos animais ou que tenha visto um desses programas
certamente viu animais caçando, agarrando suas presas e devorando-as; é
comum inclusive, principalmente quando se trata dos grandes predadores, que a
presa comece a ser devorada enquanto ainda se debate.

Sei que muita gente consegue ver isso de forma muito natural e até aprecia os
programas encarando tudo como “Maravilhas da Natureza”. Eu não consigo, a
visão dessas mortes me provoca um mal estar físico. Mas isso é um
37 Esse horror pode ser visto em cores no filme da National Geografic. (Disponível em:
http://www.agrega.tv/?p=5214. Acesso: 04 Abr. 2011)

38 Disponível em: DAWKINS, R. O rio que saía do Éden. (http://pt.scribd.com/ doc/98099788/4/A-


FUNCAO-DE-UTILIDADE-DE-DEUS – Capítulo 4, página 52 – Acesso em: 10 Abr. 2013)

problema meu; sensibilidade em excesso. Sei lá.

Consigo compreender a cadeia alimentar como necessária; consigo perceber a


necessidade de que existam predadores e presas para que haja equilíbrio na
natureza; consigo até mesmo perceber – mesmo que não consiga ficar olhando –
a beleza desse equilíbrio que parece tão perfeito. Juro que consigo! Mas só posso
perceber tudo isso sem considerar deus como possibilidade.

Diante da hipótese da existência de deus tudo o que se pode chamar de cadeia


alimentar ou de equilíbrio da natureza passa a me parecer algo tão terrível que
esse deus ultrapassa em muito qualquer ideia que eu possa fazer do que seja um
sádico psicopata dos mais terríveis.

Se pensar que todas as garras, dentes e bicos foram criados por deus com o
objetivo de proporcionar aos seus portadores a possibilidade de rasgar a carne de
animais apavorados e indefesos e que os músculos, os venenos e toda peçonha
foram criados por deus para proporcionar aos seus portadores todas as
facilidades para matar e devorar, esse deus fica parecendo infinitamente mais
terrível do que qualquer assassino maníaco, e o Holocausto fica parecendo um
evento histórico até muito suave.

Se criou a necessidade no predador de atacar e devorar suas vítimas, se criou na


vítima o medo e a dor, se criou e mantém, desde as primeiras vidas primitivas e
unicelulares que habitavam as águas mornas da pré-história do planeta, esse
equilíbrio macabro, que tipo de “deus de bondade” pode ser esse seu, senhor
teísta?

Alguma vez já tentou se colocar na pele de alguma vítima pequena e apavorada


prestes a ser devorada antes de dizer que a Cadeia Alimentar é o equilíbrio
perfeito que prova a beleza da natureza e a perfeição de deus, senhor teísta?

Acho que já sei qual seria sua resposta: “Mas tem que haver predadores epresas,
você gostaria quealgumas espécies, como os insetos, porexemplo,
semultiplicassem livremente? Nãosabe que eles encheriam a terra e tornariam
impossível outra vida no planeta?” Pense, senhor teísta, pense um pouco antes de
dizer isso com tanta convicção. Seu deus não é onipotente?

A maioria dos vegetais não devora outros seres vivos para sobreviver. Será que
esse deus que se mostra tão criativo na extensa variedade dos meios e artifícios
de morte e tortura com que dotou os animais esgotou nas plantas sua capacidade
de criar seres que não precisam matar para sobreviver? Sua capacidade criativa
não é então infinita como seu poder?

Não consigo entender, não tenho como aceitar que um deus todo poderoso e
bondoso criaria um mundo do nada e nesse mundo colocaria seres que precisam
matar para viver; essa hipótese me soa tão absurda que nem tenho palavras para
exprimir já que a palavra “paradoxo” não tem embutido no seu significado o
nojo, o asco, o horror que essa ideia me provoca.

Para mim um deus que criasse o mundo e incluísse a cadeia alimentar nessa
criação seria mau, muito mau, tremendamente mau e doentiamente sádico; seria
mau em um nível muitas vezes mais alto do que todas as possibilidades de
imagens e descrições do diabo que eu possa me lembrar, imaginar ou ter visto.

Será que esse deus onipotente, caso existisse mesmo, não teria poder para criar
um mundo onde os seres vivos pudessem se reproduzir em número menor e
sobreviver sem que uns tivessem que servir de alimento a outros? Para que serve
sua onipotência se não pode sequer evitar o maior horror de todos os horrores
que existem no planeta?

Lembrando que as plantas também são seres vivos, senhor teísta, será que não
podemos concluir que seu deus poderia criar um mundo em que nem mesmo elas
tivessem que servir de alimento? Um deus que existisse, como você afirma que o
seu existe, e que fosse REALMENTE todo poderoso e todo bondade, como você
diz sempre que seu deus é, precisaria mesmo criar a Cadeia Alimentar como
única opção?

Pense, senhor teísta, coloque-se no lugar dos bilhões de animais e pessoas que
morreram, morrem e morrerão para que outros bilhões de animais e pessoas
vivessem e vivam. E para que vivam, muitas vezes, apenas o tempo necessário
para que, logo depois, encontrem outros predadores e sejam também mortos. Em
existindo um deus todo poderoso, é possível mesmo dizer e acreditar que é
necessário que exista a Cadeia Alimentar? Como?

Nenhum argumento teísta que se esforce por apontar o ser humano como
responsável pela existência do mal conseguiria fazer isso se repensasse a
existência da cadeia alimentar, se repensasse a existência do parasita que devora
e mata sob tortura não somente o homem mas também os animais, e não
somente desde que começamos a caminhar sobre esse chão e a conspurcá-lo com
nossos pecados, mas também antes de que existíssemos como espécie.

Um deus que consiga sequer imaginar a possibilidade de criar um mundo com


uma base de equilíbrio biológico tão terrível quanto a cadeia alimentar se torna
um deus muito difícil de ser defendido até mesmo por novos adeptos de Leibniz.

O melhor dos mundos possíveis, diante da visão realista do que é a cadeia


alimentar, pode ser visto por qualquer um que defina o mal de forma não egoísta
como um mundo tão terrível que certamente não teria sido criado por um deus de
bondade e de justiça.39
39 [...] a teodiceia é tão obviamente sofista que deveria ser negada. Assim, Schopenhauer, ironicamente,
apresentava um argumento de que este é o pior dos

Um deus bom – mesmo que fosse limitado como o deus de Leibniz – se não
tivesse o poder de criar um mundo melhor do que esse mundo em que vivemos,
certamente teria optado por não criar mundo nenhum.

IX

Livre-arbítrio significa “juízo livre”, pode ser definido como a capacidade de


escolha entre o bem e o mal feita apenas pela vontade humana. O conceito de
livre-arbítrio é uma crença religiosa e também uma proposta filosófica, ambas
defendem que o ser humano tem poder e liberdade para decidir suas ações
segundo seu próprio desejo.

Pessoas de todas as religiões e fés e muitos filósofos teístas afirmam que o mal
existe e que deus não o evita por causa do livre-arbítrio que ele – em sua
suprema bondade (?) – nos teria dado como um prêmio “para que não sejamos
robozinhos”. Mas basta olhar à nossa volta para concluirmos que o livre-arbítrio
é um benefício que só pode ser usufruído por aquele que pratica o mal e, claro,
se for um ser humano. Sem contar que a própria existência do livre-arbítrio é
muito questionável.

Uma pessoa quando é ameaçada com uma arma não tem o livre arbítrio de se
desviar da bala que pode atingi-la caso o agressor dispare; uma criança quando é
estuprada não tem o livre-arbítrio de se negar ao estuprador; um bebê quando é
espancado não tem o livre-arbítrio de se negar ao seu algoz; uma foca filhote,
velha, doente ou ferida não tem livre-arbítrio para fugir do predador; e esse
predador, se for uma orca, não tem o livre-arbítrio de evitar a necessidade de
caçar para se
mundos possíveis. Pois um mundo levemente pior deixaria de existir. (NEIMAN, S. O Mal no Pensamento
Moderno 2003, p. 220)

alimentar; uma criança quandoacometida por uma doença não tem o livre-
arbítrio de se negar ao vírus, bactéria ou parasita que a esteja matando; e este
vírus, essa bactéria, esse parasita, por sua vez, não têm o livre-arbítrio de negar a
sua natureza de agente do mal. E os exemplos não param nunca.

Diante disso, parece que a ausência do livre-arbítrio seria insuficiente para


impedir a existência do mal, porque sobram ainda muitos agentes, e parece
também que dizer que o mal existe APENAS porque temos livre-arbítrio é um
tipo de argumento extremamente rasteiro.

Caso exista, o livre-arbítrio não convence muito como “dádiva preciosa” porque
é coisa apenas de algozes, de algozes humanos, e de algozes humanos que já
tenham crescido o suficiente para serem capazes de agir – lembremos que
crianças também podem ser agentes em muitos casos. À vítima só resta a dor e o
espanto.

Por que o criador de todo o universo daria um “benefício tão precioso” apenas
aos seres humanos? Então esse deus não sabe agora e não soube nunca o quanto
esses “premiados” são capazes de praticar atos de maldade? Como chamar esse
livre-arbítrio de bem se justamente aquele que sofre não tem o direito de fazer
uso dele? Como algo pode ser um bem se só é um bem para quem pratica o mal?

Tudo bem que, como argumentam os teístas, o ser humano capaz de usufruir de
seu livre-arbítrio pode optar por não praticar o mal, mas no caso de esse ser
humano capaz de usufruir de seu livre-arbítrio optar por praticar o mal, que
opções a vítima tem? Eu não entendo por que os teístas valorizam tanto essa
liberdade que temos quando resolvemos praticar horrores, mas que não temos
para evitá-los quando somos a vítima desses horrores.

O livre-arbítrio, caso existisse como a “dádiva de deus” que os teístas


descrevem, seria suficiente para pôr em dúvida a bondade, a capacidade de fazer
justiça e também a onisciência desse deus, mas não seria suficiente para explicar
o mal.

Por que é que o livre-arbítrio não começa, por exemplo – e é só um exemplo! –


com deus dizendo algo do tipo “Olha, você vai nascer, não vai ser amado nem
aceito, vai sofrer fome e frio, será ofendido e espancado durante toda a primeira
infância; depois você vai crescer um pouquinho e passará a ser também
estuprado, além de continuar passando fome e frio e continuar a ser espancado e
violentado de várias formas durante toda a segunda infância e adolescência,
pelos seus pais e pela sociedade.

Depois, quando se tornar adulto, será revoltado e mentalmente desequilibrado,


mas aí você vai passar a ter o livre-arbítrio e vai poder escolher entre duas
opções muito claras: poderá dar vazão à sua revolta e ao seu desequilíbrio
mental e cometer crimes, ou então poderá pensar melhor e optar por ser uma
pessoa boa e honesta, crer em mim, tornarse meu servo e esperar pela
recompensa.

Se fizer tudo direitinho, você irá para o céu e passará a eternidade sendo feliz e
me bajulando; mas se não tiver forças para superar seu trauma e para consertar
seu desvio mental e por isso não fizer o que eu quero que você faça – ou seja, me
adorar – então seu destino vai depender do que eu decidir; ou vai para o inferno
ou será queimado na fogueira do apocalipse e voltará em definitivo para o nada.
O que você escolhe? Nascer ou não nascer?”

Aí o candidato a vivo poderia perguntar: “Mas, com uma primeira fase assim tão
traumatizante, qual será a chance de que eu – sem me lembrar de absolutamente
nada dessa nossa conversa – consiga controlar toda essa revolta e superar esse
desequilíbriomentalqueterei?”Deuscertamenteresponderia com um número
extremamente baixo nesse caso específico e com números pouca coisa menos
baixos em outros muitos casos não tão terríveis assim; acho que ele teria uma
espécie de “tabela de possibilidades” que não precisaria consultar porque sua
onisciência saberia inclusive SE essa pessoa iria ou não seguir a vida pelo
caminho por ele determinado; se depois da vida estaria ou não no paraíso.

Depois de ouvir a estatística – caso deus optasse por omitir o que realmente
aconteceria e desse apenas os números – acho que essa pessoa escolheria voltar
para o limbo; e acho que não seria só essa pessoa que abriria mão da existência,
acho que muitas e muitas outras, inclusive aquelas cuja estatística não fosse
assim tão desmotivadora fariam o mesmo.

Agora, se deus não omitisse a informação que tem e dissesse logo “Não, você
não vai conseguir superar o trauma, cometerá muitos crimes e, depois da morte,
será castigado e queimado”, então, nesse caso, tenho certeza de que a pessoa não
nasceria; e além dele ninguém, ninguém mesmo que fosse cometer crimes – ou
pecados – que o levariam ao castigo, escolheria nascer; este seria um livre-
arbítrio.

Mas essa conversa nunca aconteceu, e a prova disso é que estamos aqui; afinal,
se ela tivesse acontecido certamente não teríamos criminosos e pecadores entre
nós, e com certeza, mesmo sem contar os assassinos e torturadores, a imensa
maioria de nós não estaria aqui.

Outro detalhe importante é que, ainda assim, não seria um livre-arbítrio decente
porque, em minha opinião, não se lembrar de ter feito tal escolha é motivo mais
do que suficiente para anular a validade de tal escolha.

Os teístas certamente vão argumentar com o velho chavão “Mas aí você não
aprenderia nada!” eles afirmam que sofremos para aprender, para que nossas
almas se tornem superiores, seja lá o que isso for, e que só através do sofrimento
podemos alcançar esse aprendizado. Então responderiam que se deus dissesse o
que vai acontecer não teria aprendizado e a vida não teria valor. Mas, eu
pergunto, pode existir argumento mais absurdo do que esse?

Qual seria o “aprendizado necessário” para quem vai voltar ao nada? Qual seria
a necessidade de aprendizado que teria alguém que, se pudesse escolher, optaria
por não sair do nada? E, principalmente, que raio de deus todo-poderoso é esse
que não pode ensinar sem fazer sofrer?

Se esse argumento tivesse algum sentido, nenhuma das pessoas que fatalmente
não terão o “merecimento” da tal “vida eterna” estaria agora entre nós. Eu não
estaria aqui!

Os espíritas parece que pensam um pouquinho diferente porque acham que todos
têm direito ao tal aprendizado, mas aí volta a pergunta: Que porcaria de deus
superpoderoso é esse que não é capaz de ensinar ninguém sem usar para isso
tanto sofrimento e tanto horror? Só um sádico incompetente se encaixaria na
resposta a essa pergunta.

Além disso, o livre-arbítrio e a existência de deus como o


definemnãosecombinamlogicamente.Temos,deacordocom os teístas, a liberdade
de escolher entre duas opções: uma é o caminho “indicado” por deus através de
seu livro sagrado, da interpretação que seu líder religioso faz desse livro ou até
mesmo das próprias conclusões, a que esse teísta chega por si próprio e em geral
acreditando que foi magicamente “orientado” por deus para pensar dessa forma.

Mesmo nos muitos casos em que esse teísta pensa e age de forma ética e decente
quando seu livro “sagrado” indica que ele deveria agir de outra forma; mesmo
quando, por serem pessoas boas, os teístas em seu comportamento e em seus
pensamentos vão contrariando tanto o livro sagrado quanto os líderes religiosos;
mesmo quando as conclusões éticas e decentes a que chegam têm todo o aspecto
de serem apenas e tão somente deles mesmos, esses teístas não percebem isso e
atribuem sua própria bondade e decência a uma interferência de deus. Eles não
conseguem perceber que seu deus não possui essas qualidades. Nesse aspecto
são sim humildes demais.

Mas, independente de como chegam ao “conhecimento” de qual


éocaminhoindicadopor deus, os teístas afirmam, cada um sobre o seu, que este é
o único caminho certo e o único que leva ao paraíso, ou – para alguns dos que
acreditam em vida após a morte – é o único caminho que leva a um tipo de
crescimento espiritual, digamos, mais rápido e menos sofrido.

Para os teístas menos radicais existe também a possibilidade de o caminho


escolhido por outros teístas de outras crenças ser igualmente capaz de levá-los ao
paraíso ou ao crescimento espiritual, mas a tolerância total é muitíssimo rara, em
geral essa tolerância tem níveis.

Na maioria dos casos há tolerância genuína apenas na condição de que esses


caminhos sejam mais ou menos semelhantes ao seu. Por exemplo, um cristão
pode admitir que outro cristão, de outra igreja ou de igreja nenhuma mas que crê
em um deus parecido com o deus cristão esteja também no caminhocerto, mas
émais difícil queaceitequeum muçulmano ou um ateu esteja tão certo quanto ele
mesmo.

A máxima condescendência que costumam ter nesses casos de “desvio” é


esperar que o outro se converta.
E temos a segunda opção, que é o outro caminho, chamado “do mal”. Esse –
afirmam – certamente nos levará ao inferno. Muitos teístas, aparentemente
decentes demais para conseguir acreditar que seu deus seja tão terrivelmente
mau a ponto de criar aquele lugar pavoroso com o qual Jesus nos ameaça várias
vezes na bíblia, preferem definir o inferno como sendo “apenas o sofrimento que
nós mesmos procuramos”.
Às vezes dizem que não entendemos a bíblia, que Jesus não nos ameaçou com
“esse” inferno, lugar de fogo e caldeirões ferventes onde demônios nos espetam
com tridentes, dizem que o que está na bíblia “é uma metáfora”, inferno seria o
“vazio” que colocamos em nossa alma quando nos afastamos de deus. Fico
achando que estão dizendo que inferno mesmo é ser ateu.
De qualquer forma, por mais grata e compadecida que eu fique por essa ginástica
mental que os teístas mais decentes se dão ao trabalho de fazer para excluir essa
ideia terrível, o fato é que, lendo a bíblia, não parece muito crível que, seja quem
for que a tenha escrito, estivesse realmente pensando em um inferno metafórico.
Independente de aceitarmos o inferno como sendo “metáfora” ou como uma
ameaça real para o pós vida dos rebeldes feito eu, o que temos não deixa de ser
sempre os dois caminhos, únicos e opostos. Ou seguir o que deus manda e ir
pelo “bom caminho” – aceitando que deus “manda” da forma que eu “sentir”
que devo aceitar e sabendo que sempre haverá alguém que definirá isso também
como o caminho errado – ou negar deus e ir pelo “mau caminho”.
Não existe uma “saída pela direita”, não existe um “em cima do muro”, não
existe uma terceira opção. Ou você escolhe ser levado ao paraíso de delícias que
até hoje ninguém conseguiu descrever de forma diferente de um profundo e
incurável tédio, ou escolhe ser levado para o inferno, metafórico ou condizente
com aquele que foi descrito tantas vezes e com tantos detalhes.
Você simplesmente não tem como escolher o que eu escolheria: Ser deixada em
paz! Não ir para lugar nenhum simplesmente não é opção. Essa descrição
dualista que os teístas fazem, além de nos dar uma gama muito restrita de
alternativas, está mais para chantagem e coação do que para livre escolha.
Lembremos que deus seria, por definição, onisciente. Alguns teístas usam
argumentos que limitam essa onisciência para tentar escapar das armadilhas
lógicas que a onisciência apresenta quando se pensa a existência do mal; eles
dizem que o livre-arbítrio que nos deu faz com que deus não saiba o que faremos
no minuto seguinte porque temos liberdade de escolha40, mas ainda assim é
onisciente. Essa limitação não fica muito convincente.
Eles simplesmente ignoram o significado da palavra onisciente; esquecem que
ou deus é onisciente ou não é. Se for dizer que deus é onisciente, então tem que
ser ONI (= todo); se não for que se chame deus de adivinho ou de vidente, não
de onisciente porque a definição dessa palavra “onisciência” torna esse
argumento da limitação muito fraco.
Caso seja realmente onisciente e não apenas um vidente razoavelmente bom,
deus certamente saberia de
40 “Do mesmo modo que Swinburne afirma que a omnipotência de Deus se circunscreve àquilo que é
logicamente possível fazer, ele também afirma que a omnisciência de Deus se limita àquilo que é
logicamente possível saber. Assim, segundo este filósofo, Deus não pode saber o que é que uma pessoa fará
no dia seguinte, dada a liberdade de escolha e de decisão dessa pessoa. Swinburne afirma que, embora seja
omnisciente, Deus não pode saber qual a próxima decisão ou acção de uma pessoa, pois tal não é
logicamente possível. Uma vez mais, poderia objectar-se que, se a omnisciência de Deus está limitada
àquilo que é logicamente possível saber, então, tal como no que respeita à omnipotência, não é uma
omnisciência em sentido próprio, pois quando se diz que um ser é omnisciente, diz-se que esse ser sabe e
pode saber tudo. Contudo, ao invocar a liberdade de decisão e de acção das pessoas, Swinburne faz com que
tenha também de se ceder neste ponto, uma vez que as pessoas não são absolutamente determinadas e só
elas mesmas saberão aquilo que quererão fazer no momento seguinte. - Crítica: Revista de filosofia”.
(Disponível em: http://criticanarede. com/html/fil_2sobremal.html. Acesso: 06 fev. 2011)

absolutamente tudo desde sempre; saberia inclusive de cada uma das situações
de escolha com que cada ser humano vai se deparar ao longo da vida e qual
escolha esse ser humano fará em cada uma dessas situações. E olha só a gente
sendo “robozinhos” como os teístas afirmam que deus evitou que sejamos nos
dando o livre-arbítrio!

Alguns teístas afirmam que deus nos dá sempre a oportunidade de escolher, e


que teria dado ao casal Adão e Eva, os primeiros a receber a “dádiva” do livre-
arbítrio, a oportunidade de escolher a obediência, mas o casal primordial,
começando por Eva, rejeitou essa oportunidade, desobedeceu e pecou. O erro,
portanto, foi deles, não dedeus.

Novamente me encho de admiração pelos teístas que vejo com frequência


afirmando que a história toda de Adão e Eva é “apenas uma metáfora”. Sinto
que, embora não sejam capazes de abandonar a fé de que pensam necessitar para
viver, sentem que precisam de uma explicação menos terrível. Eu os admiro
porque sei quesão decentes demais para aceitar que acreditam em um deus capaz
de tal atrocidade.

Esses teístas tão superiores ao deus que adoram, são obrigados a tanto esforço
mental para manter sua fé que estou sempre me perguntando como conseguem.
Acho que instintivamente eles percebem que se aceitarem culpar Adão e Eva
para inocentar deus estarão dizendo que um casal que ainda não conhecia o mal
porque ainda não tinha comido o fruto que dava conhecimento do bem e do mal,
decidiu (como??) optar pelo mal e em consequência disso se tornou culpado não
só por todos os sofrimentos do mundo – que foram e são muitos e que
acontecem desde sempre e por milênios – como também pelo sofrimento e morte
de Jesus, pela existência do cristianismo e por todos os horrores que foram
praticados pelos cristãos “em nome de deus”.

Para evitar essa armadilha, esses teístas decentes optaram por dizer que toda a
história é “apenas uma metáfora” embora não consigam nunca explicar que tipo
de “metáfora” seja essa; pelo menos não de uma forma que possa dar a ela
qualquer aparência de legitimidade e de sentido que realmente inocente deus.
Funciona apenas para eles mesmos e os que partilham de sua fé e de sua
decência ética.

Quando meu filho era pequeno nós tínhamos um cachorro. Meu marido ouviu ou
leu em algum lugar a informação de que não se deve dar osso de frango para
cachorros porque a maneira como eles quebram o osso na mastigação faz com
que o animal engula farpas de ossos que se tornam pontiagudas e cortantes e
então os cachorros correm o risco de terem seu estômago perfurado por essas
farpas e morrerem de hemorragia interna.

Logo depois de ouvir isso, meu filho foi dar restos de comida para o cachorro
(era como alimentávamos os cachorros antes de as rações se tornarem comuns) e
havia ossos de frango em meio a esses restos. Meu filho, que tinha uns 10 anos
nessa época, antes de colocar o prato do cachorro no chão avisou: “Alf, você não
deve comer os ossos de frango porque você vai quebrar eles com os dentes e eles
ficarão como facas e quando você engolir eles podem te cortar e furar por dentro
e você pode morrer. Por isso, cuidado: não coma os ossos de frango!”.
Então meu filho colocou o prato diante do cachorro que, como de costume,
devorou vorazmente toda a comida, inclusive os ossos de frango. Olhando do
cachorro para mim, ele disse abrindo os braços: “Eu avisei!”.

Foi uma cena da qual rimos muito; o cachorro sempre comeu os ossos de frango
e morreu de velho, mas imagine que meu filho tivesse pegado um pau e
espancado o cachorro por ter desobedecido ao alerta, essa atitude teria sido, no
mínimo, injusta e, nesse caso, colocar os ossos de frango diante do cachorro
sabendo que ele os comeria mesmo depois do aviso e que seria castigado por
isso teria sido uma atitude irracional, um comportamento sádico. Felizmente
meu filho nunca foi sádico!

Na minha visão, o que o deus bíblico fez com Adão e Eva foi algo muito
parecido com essa atitude sádica que meu filho não teve. E para quem não crê
nessa mitologia bíblica, a situação não muda muito porque, se pensarmos a
respeito, é muito fácil concluir que caso as escolhas todas, desde Adão até o
último homem da terra, sejam conhecidas e préprogramadas, então na verdade
não existem escolhas.

Não só Adão pode ser comparado ao meu cachorro na situação que narrei, mas
também eu, você e todas as pessoas que existem, existiram e existirão. O único
que teve escolha, no episódio que contei, foi meu filho. No caso do livre-arbítrio
o único que teria escolha seria deus, que poderia ter escolhido não castigar uma
escolha pré-programada, não permitir que surgisse uma situação de escolha que
levasse ao mal ou então simplesmente não criar aqueles cujas escolhas levariam
ao mal.

A ideia do livre-arbítrio parece uma espécie de coringa que as pessoas


aprenderam a tirar da manga para justificar o injustificável, para nos acusar por
tudo o que há de errado e de ruim na vida e no mundo em que vivemos e para
inocentar o deus que criou a vida e o mundo em que vivemos da culpa que seria
só dele caso existisse.

Até mesmo os teístas mais “calmos” e menos convictos ou menos fanáticos em


geral puxam essa carta e a mostram com a certeza de que dessa forma encerram
o assunto e ganham qualquer discussão. Mas como? Não dá para entender um
deus todo bom e todo poderoso que, com a desculpa de um livre-arbítrio que
ninguém pediu, se omitisse de ajudar os seres que ele mesmo criou e colocou
para sofrer nesse teatro macabro também criado por ele. Que raio de deus bom
faria algo assim?

Na vida cotidiana poucas, muito poucas pessoas conscientemente tomam alguma


atitude em prejuízo próprio; e muitas pessoas, religiosas ou não, procuram
durante a vida inteira nunca tomar atitudes que prejudiquem outras pessoas. No
entanto há muitíssimas situações em que as pessoas escolhem um tal caminho na
certeza de estarem escolhendo bem e fazendo o bem, mas, se o “deus dos
enigmas” por um acaso achar que aquele é o caminho errado, então tudo estará
perdido e a pessoa estará condenada ao inferno por toda a eternidade. Assim
seria com esse deus de múltiplas faces e bondade extremamente discutível.

Um exemplo mais ou menos recente foi o do médico que, cumprindo a sua


promessa de lutar sempre para salvar vidas, optou por fazer o aborto de uma
criança de nove anos que foi estuprada pelo padrasto, que tinha uma gravidez de
extremo risco e que quase certamente não sobreviveria ao parto. Esse médico
teve, como diriam os teístas, o livre-arbítrio e, na opinião da igreja católica
representada por um de seus bispos, escolheu o caminho errado. O médico foi
então excomungado; isso significa, de acordo com a igreja católica, que está
condenado ao inferno e impedido para sempre de entrar no paraíso.

O bispo em questão apenas cumpria as determinações da instituição que


representa – e que dizem que representa deus – e, ainda de acordo com as leis
dessa instituição, o estuprador, o ser “humano” que foi capaz de estuprar uma
criança, este não só não foi e não será excomungado como ainda, caso se
arrependa, poderá ir para o paraíso, sentaà mão direita de deus e ficar
“apreciando”41 o sofrimento do médico, da mãe da menina e, provavelmente, da
própria menina, que pecou porque aceitou fazer o aborto e pecou também
porque, de acordo com a bíblia, quando foi estuprada, não gritou alto o suficiente
(Dt 22:23-24).

E então se conclui que esse caso da excomunhão do médico é um dos exemplos


– e muitos dos casos de aborto também são – de uso do livre-arbítrio que “dá
zica”. É claro que muitos teístas – e por isso mesmo estou afirmando desde o
começo que existem muitos teístas decentes, honestos e bons no mundo –
afirmariam que esse comportamento do bispo idiota e até mesmo da igreja
católica como entidade não é, nesse caso, representativo do que seria a decisão
de deus; deus, diriam esses teístas, nunca condenaria esse médico porque sabe
que ele agiu na melhor das intenções.
Mas eu perguntaria: então para que serve a igreja católica? E para que servem as
outras igrejas e as outras religiões se estão todas cheias de casos que, na opinião
de muitos teístas decentes e bons, contrariam a justiça de deus? Por que deus
apoiaria essas entidades? Por que permitiria que se chamassem santos os seus
representantes? Por que faria dessas igrejas a sua morada?

Já ouvi mais de uma vez de mais de um teísta o argumento de que “A igreja é


uma instituição formada por homens e os homens são imperfeitos, portanto, nada
mais natural do que encontrar imperfeições tanto entre os fiéis como entre os
líderes”. Com esse argumento, você pode até conseguir se
41 “Ah, que cena magnífica! Como eu vou rir e ser feliz e exultar quando eu vir esses filósofos tão sábios,
que ensinam que os deuses são indiferentes e que os homens não têm alma, assando e torrando diante de
seus discípulos no inferno (Tertuliano, “De Spectaculis”) - “Para que os santos possam desfrutar de sua
beatitude da graça de Deus mais abundantemente, lhes é permitido ver o sofrimento dos condenados no
inferno” (Tomás de Aquino, 1225-1274, “Summa Theologica”)

convencer de que deus é inocente porque quem pratica os crimes são os homens.
Você pode, eu não.

Na minha visão teimosinha deus seria culpado direto e ativo, caso existisse, mas
os teístas têm muitas “explicações”
– muitas vezes discordantes – que conseguem convencê-los da inocência de
deus. Então, para tentar não “brigar” muito com eles, afirmo que ao permitir a
existência e as ações dessas entidades e dessas pessoas, ao permitir que tais
pessoas sejam seus representantes e tais entidades sejam suas “casas”, deus está
– novamente – cometendo crime de conivência, cumplicidade ou omissão.

Deus seria criminoso por conivência não apenas no caso da excomunhão do


médico que fez esse aborto; seria criminoso em cada um dos crimes de
impunidade e acobertamento dos muitos padres pedófilos da igreja católica; seria
criminoso por conivência por cada um dos estupros cometidos por qualquer um
dos que se dizem seus representantes, seja na igreja católica ou em qualquer
outra igreja ou templo onde crimes desse tipo tenham acontecido.

Deus seria criminoso também no caso do bispo que negou o holocausto42e seria
criminoso por conivência em todas as igrejas – católicas e não católicas – nas
quais os representantes cometem erros, exploração de fiéis, enriquecimento
ilícito, fraudes e todo tipo de crimes e ações infelizes e impiedosas. Se existisse,
deus seria culpado – ao menos por omissão – por todos os crimes cometidos “em
nome de deus”.
Católicos, e até mesmo não católicos, argumentam que o bispo não cometeu
nenhum crime ao excomungar o médico, ele apenas aplicou o que dizem as
regras da igreja. Explicam que excomunhão se aplica no caso do aborto e não no
caso
42 In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Williamson - Acesso em: 03 Jul. 2013

deestupro, e explicam por que dizendo algo como “um écrime outro é pecado”
ou “um é passível de arrependimento outro não” e outros absurdos do tipo.

Como entidade, a igreja católica – e toda e qualquer igreja – tem sim, com
certeza, o direito de ter e praticar suas regras, suas leis e suas punições; desde
que não contrarie as leis do Estado, mas acontece que estou falando de deus, um
deus que se existisse certamente saberia o quanto é indecente castigar um
médico que salva uma vida e inocentar o estuprador de uma criança.

Então, olhando para o caso dessa forma, o que a instituição ICAR diz ou deixa
de dizer passa a ter muito pouca importância, e poderia servir apenas para
apontar mais um crime de conivência que deus teria cometido: o de permitir que
uma instituição que usa o seu nome tenha leis e regras tão imorais.

Diante desses “dilemas” do livre-arbítrio, o que dá pra pensar é que o deus dos
cristãos prepara essas armadilhas para que as pessoas caiam nelas e queimem no
inferno para seu eterno deleite. Se ele já gostava tanto do cheiro da carne
queimada dos animais perfeitos que os antigos fiéis sacrificavam a ele, segundo
suas orientações, de acordo com o que diz a bíblia, então deve adorar o cheiro da
carne queimada das pessoas que sofrem por toda a eternidade no inferno e que
foram para lá levadas – indiretamente, claro – por ele mesmo. Isso se o inferno
existir.

Os cristãos estão com sérias dificuldades para entrar num acordo quanto à
existência do inferno, um dos maiores dilemas, em minha opinião, é que sem
esse lugar o cristão simplesmente não consegue saber onde enfiar pessoas como
Adolf Hitler. Afinal, ele teve o livre-arbítrio e optou pelo mal com todas as
maiúsculas que se pode colocar.

Mudando um pouco mas não muito o foco, eu pergunto: E você, abriria mão de
seu livre-arbítrio para que não tivesse ocorrido o Holocausto? Abriria mão do
seu livre-arbítrio para que os séculos de escravidão não tivessem acontecido?
Você abriria mão do seu livre-arbítrio para que não tivessem ocorrido os
terremotos de Lisboa, do Japão e do Haiti? Abriria mão de seu livre-arbítrio para
que não tivesse ocorrido nenhum dos milhares e milhares de guerras, conflitos,
assassinatos em massa, extermínios de povos, aldeias, cidades, famílias? Você
abriria mão de seu livre-arbítrio para que não ocorra nenhum mal a seus filhos, a
seus pais, a seus irmãos, a seus amigos e até a seus vizinhos?

Provavelmente poucas pessoas com um senso de ética apenas razoável,


responderiam negativamente a todas essas perguntas, e algumas pessoas iriam
mais longe e diriam que, para que as grandes catástrofes que a história registra
não tivessem acontecido nunca, abririam mão até mesmo da própria existência,
com ou sem livre arbítrio. Ou seja, abririam mãode ter nascido, abririam mão de
cada minuto de felicidade de que desfrutaram. No entanto, ninguém teve o livre-
arbítrio de fazer essa escolha, você teve?

Por que um deus todo bondade não nos criou com tanto asco por praticar o mal
como temos por comer excrementos? Se esse deus criador pode conciliar nossa
necessidade de comer e nossa liberdade de escolher o que comemos com a nossa
impossibilidade de comer coisas que não são boas para nós – como areia,
excrementos, madeira – por que então ele não poderia ter conciliado nossa
liberdade de escolher o que fazemos com a impossibilidade de escolher fazer o
mal? Sei que alguns dirão coisas como “Mas se nós não podemos sequer saber
com certeza o que é o mal”, e eu respondo: Mas seu deus saberia, ou não?

Além disso, o deus que é todo poder não poderia ter dado mais do que apenas
duas opções? Não poderia ter dado apenas opções boas e que levassem ao bem?

Não seria bom, por exemplo, se em lugar de escolher entre: 1 – fazer uma guerra
ou 2 – não fazer uma guerra, como é comum acontecer, a gente pudesse escolher
apenas entre 1 – Sentar e conversar só os dois principais interessados em um país
neutro; 2 – Sentar e conversar num país neutro com o governante desse país
como mediador; 3 – Visitar e conhecer o país e o povo do país com o qual
tenhamos alguma divergência; 4 – Convidar o governante e os representantes do
povo do país com o qual tenhamos alguma divergência para visitar o nosso país
e conhecer nosso povo; 5 – Abrir as fronteiras de ambos os países para que o
povo de um possa transitar livremente pelo país do outro; 6 – Fazer uma troca de
professores, filósofos e cientistas entre os dois países para que os conhecimentos
sejam divididos e multiplicados; 7 – Unir os dois países em um só.

E, além dessas sete, talvez ainda mais algumas outras opções que não me
ocorreram no momento mas que certamente um deus onisciente e onipotente
poderia encontrar facilmente.

Seriam muitas opções e não apenas duas, e todas seriam boas porque fazer o mal
seria contra a natureza de todas as pessoas envolvidas, ou seja, a opção “fazer
uma guerra” simplesmente não seria aventada, a palavra guerra sequer teria sido
inventada e a ideia de matar o outro porque “ousou” nascer no país “errado”
sequer passaria pela cabeça dealgum governante ou cidadão; essa ideia bélica
seria tão impensável quanto é impensável preparar e saborear um banquete com
madeira assada ao molho de piche.

Um deus todo poderoso não conseguiria mesmo fazer algo assim? Se sua
onipotência se limita apenas ao que não é impossível em sua essência, ou seja,
àquilo que não é uma contradição lógica nos seus conceitos, então onde está a
impossibilidade dessa proposta que acabei de fazer? Não há como encontrar aqui
uma contradição ou paradoxo do tipo criar uma pedra tão pesada que ele não
consiga levantar ou um círculo triangular. Por que então o deus todo poder e
todo bondade não nos deu livre arbítrio sem que para isso precisasse criar ou
permitir a existência do mal? Por que os teístas nunca se fazem essas perguntas?

Desculpem mas não consigo levar Jesus muito a sério, para ser redundante, não
boto muita fé na existência de Jesus não. Acredito, pelo que já li a respeito, que
esse nome era bastante comum naquela época e naquele lugar e por isso posso
acreditar até que existiu uma pessoa com esse nome que andou pregando por
aqueles desertos e que morreu na cruz, mas, se existiu essa pessoa, tenho certeza
de que ele e sua história foram muito diferentes do que nos pregam e do que está
na bíblia.

Penso que, caso tenha existido, Jesus foi uma espécie de Antônio Conselheiro da
Palestina; mais um profeta meio maluco que conseguiu levar desesperados na
conversa, só isso. Pronto! Sou realmente uma herege! Não só não acredito no pai
como não acredito no filho. Mas acredito nas pessoas de bem e acredito que
pessoas boas usam o que há de bom no exemplo que elas dizem ser de Jesus para
nortear suas vidas, só não consigo fazer o mesmo. Acredito que, na verdade, não
é por causa do exemplo de Jesus que essas pessoas são boas, elas são boas por
elas mesmas, porque é da natureza delas serem boas; eu apostaria que, pelo
menos a maioria delas, seriam boas mesmo que nunca tivessem ouvido falar em
Jesus.

Falando de Jesus, os cristãos sempre falam da força de seu exemplo. A primeira


vez que uma pessoa mais chata e mais questionadora fica decepcionada com o
exemplo de Jesus é, em geral, a primeira vez que lê a bíblia, comigo foi lá pelos
14 ou 15 anos. Jesus trata a própria mãe com uma falta de respeito e de mínima
educação que não condiz de forma alguma com o comportamento de alguém que
tenha exemplos a dar.43

Lembra aquela recomendação romântico-social: “Não se apaixone nunca por um


rapaz (ou moça), por mais perfeito(a) que seja ou aparente ser, se ele(a), em um
restaurante, tratar mal o garçom. Porque se alguém não é capaz de tratar com
educação e respeito uma pessoa que está em determinado momento em uma
situação social inferior, é porque essa não é na verdade uma boa pessoa”. Que
me perdoem os cristãos, mas Jesus fez muito pior do que tratar mal o garçom;
em mais de uma passagem da bíblia ele tratou mal a própria mãe!

Se essa atitude não é algo que se espere de uma pessoa minimamente educada e
respeitosa, seria menos ainda uma atitude esperada ou mesmo aceitável de um
ser que se quer tão perfeito a ponto de ser um deus, o filho único desse deus do
qual, em mais uma das muitas incoerências, dizem que nós somos filhos sem nos
dar nunca o status de irmãos de Jesus. Não é muito engraçado dois seres que são
filhos do mesmo pai não serem irmãos?

E como Jesus pode ser o filho único de deus se todos somos filhos de deus?
“Deus nos ama tanto que nos deu seu
43 “Mulher, que tenho eu contigo?”. João 2-4

único filho em holocausto”44, “Somos todos filhos de deus”45, como essas duas
frases podem fazer sentido ao mesmo tempo? A explicação que dão quando
questionados é que “Somos filhos de deus por adoção, quando e se aceitarmos
Jesus”. Então tira esse “todos” daí, caramba! E parem de tentar me convencer
dizendo que eu também sou filha dedeus e que ele me ama! Por que os teístas
fazem tanta questão de não enxergar as incoerências do que dizem?

E tem mais uma porção de coisinhas sobre Jesus que não casam com sua
pretensa bondade e justiça: por exemplo, aquela história de colocar demônios
nos corpos dos porcos e depois levá-los à morte; que culpa têm os coitados dos
porcos? E o dono dos porcos? Um criador que por uma questão que
aparentemente não lhe dizia respeito de repente perdeu todos os seus animais,
que eram provavelmente o seu meio de vida, o seu ganha-pão e o sustento de sua
família.

E as curas então! Se é verdade que ele tinha poder, por que ao invés de curar
uma meia dúzia de leprosos, ele não curou logo a lepra? Por que ressuscitar
alguém da família e não uma criança que teria a vida toda pela frente? Por que
ele nunca curou um amputado? Aliás, por que os que afirmam que existem
milagres nunca dão como prova um milagre pouco mais difícil de duvidar, como
esse de curar um amputado?

Enfim, essas são questões que indicam, na minha visão e na visão de qualquer
ateu, que a existência, a vida e a importância de Jesus são na verdade mais
dignas de serem classificadas como lendas e charlatanismos do que como
44 “Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu filho unigênito para que todo aquele que
n’Ele crê não pereça”. João 3:16

45 “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder
de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome”. João 1:11-14

milagres e suprema bondade.

E tem ainda mais coisas que não fazem sentido e que os cristãos mais ferrenhos
não conseguem nunca explicar: Querem eles que o antigo testamento meio que
deixou de ter validade com o advento de Jesus, que o deus no qual creem, depois
da vinda de Jesus, não é mais aquele ser terrivelmente mal, megalomaníaco e
sádico do velho testamento.

Mas esses mesmos cristãos que tanto leem a bíblia parece que não leram ou não
entenderam a passagem em que Jesus diz que não veio para modificar as leis do
pai.46 Ou ele estaria falando de outras leis, ou estaria falando de outro pai, ou
então – o que é mais provável – essa história toda, que e por que não faz o menor
sentido, é pura lenda.

No espírito santo então é que não acredito mesmo! A tal ponto que nem sei se
evangélicos ou espíritas têm essa ideia de trindade. Fui ao Google e, pelo que
andei pesquisando parece que há diferenças sutis e diferenças não tão sutis entre
a maneira como cada religião e cada religioso vê o espírito santo; evangélicos e
espíritas em geral reconhecem o termo, mas tanto as diferentes correntes
evangélicas quanto, aparentemente, as diferentes correntes espíritas têm visões e
versões diferentes do que seja e do papel do espírito santo em sua doutrina, pelo
menos é o que dá para perceber pelo que dizem alguns dos adeptos dessa ou
daquela religião ou corrente de determinada religião.

De qualquer forma, parece que a ideia de trindade é mais forte e mais presente
no catolicismo, mas mesmo nesse não parece tão forte assim para quem vê de
fora. A impressão que
46 “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno
cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só
i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores
mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele,
porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus”. Mateus 5, 17-19

tenho às vezes é de que muitos dos próprios católicos não acreditam, ou não
pensam muito no espírito santo; talvez por serem inteligentes e racionais o
suficiente para perceber que a lógica dessa existência não se sustenta.

E o motivo porque tenho essa impressão de que o próprio católico não acredita
muito no espírito santo é a constatação de que os cristãos em geral –
principalmente evangélicos, mas não apenas eles – assediam o ateu com
“comprovações” da existência de deus, com afirmações de que “Jesus te ama”,
com historinhas e imagens bonitinhas e todo tipo de recurso que conseguem
imaginar, tanto dizem e tanto fazem que em deus e em Jesus o ateu é obrigado a
pensar, mas quantas vezes um ateu pensa no espírito santo?

Eu pelo menos, quase nenhuma, quase nunca, e não penso porque não recebo
dos católicos, e menos ainda dos evangélicos, qualquer tipo de afirmação de que
realmente existe essa pomba branca que fica sobre a cabeça das imagens comoos
pombos das praças ficam sobre as estátuas.

Exceto pelas medalhinhas bonitinhas com uma pomba de asas abertas que
viraram moda ultimamente e pelo folclore da Festa do Divino que a gente vê em
cidades muito pequenas de lugares longínquos, ninguém tenta me convencer de
que o espírito santo me ama ou de que o espírito santo vai me castigar por eu não
aceitar sua palavra. Aliás, ninguém nunca me disse que o espírito santo tem
alguma palavra.

Os católicos não tentam afirmar a existência do espírito santo, às vezes tenho a


impressão de que muitas das pessoas que usam a medalhinha sequer sabem que
ela representa o espírito santo, eu mesma demorei a ficar sabendo disso, achei
queera o “bichinhobonitoda moda” ecomo prefirocorujas resisti à tentação de
comprar uma, depois é que soube o que era.

Os evangélicos não tentam afirmar a existência do espírito santo, pelo menos


nunca vi ou ouvi nada nesse sentido daqueles que, com a bíblia aberta e os
nomes do demônio insistentemente repetidos, gritam pelas praças, ruas e
corredores de ônibus, trens e metrôs.

Os espíritas não tentam afirmar a existência do espírito santo, aliás, os espíritas


em geral não tentam afirmar nada, são muito discretos e pouco incomodam,
gosto muito disso neles. Portanto, o ateu não se dá ao trabalho sequer de pensar
no espírito santo.

Essa é mais uma prova de que o fato de falar e pensar em deus não é uma ação, é
uma Reação, e não faz de forma alguma do ateu um crente. Nós só pensamos no
assunto porque trazem o assunto até nós; simples assim.

XI

O ateu sempre se questionou e continua sempre se questionando mais e mais


quanto mais o tempo passa e quanto mais pensa e aprende sobre o que leva
pessoas boas e decentes a acreditarem a ponto de abraçarem religiões muitas
vezes exploradoras e claramente “lavadoras de cérebros”.

Apesar de serem incapazes de seguirem o principal mandamento que dizem ser a


simplificação que Jesus fez da bíblia, apesar de não assumirem que esse
mandamento é impossível de ser seguido, apesar de não pensarem nisso o
suficiente para perceber essa impossibilidade e apesar de acreditarem em seu
padre ou pastor que afirma que podem sim amar ao próximo como a si mesmos,
essas pessoas – pelo menos muita delas – com certeza não são burras; então por
que se deixam enganar com tanta facilidade? É isso que um ateu simplesmente
não consegue entender.

Além do caso óbvio e infelizmente tão comum daquelas pessoas que se deixam
explorar por verdadeiros bandidos que usam o nome de deus para tirar dinheiro
delas, é difícil para um ateu, por exemplo, entender como pessoas esclarecidas
conseguem ser católicas.

A história da igreja católica é tão horrível que abraçar essa religião se torna
muito parecido com aderir ao nazismo e afirmar que o faz porque “hoje o
nazismo é diferente e não se cria mais campos de extermínio”. Que me perdoem
os católicos, sei que podem se sentir chocados porque certamente nunca
pensaram dessa forma, mas se pensarem bem não sei como encontrarão a
diferença, afinal, nos dois casos, a pessoa está aderindo a uma instituição
horrível porque pensa que tal instituição deixou de ser horrível.

Por mais que eu saiba que existem católicos decentes e bons ao extremo, sei
também que não há exagero no paralelo, é bem por aí: Assim como alguém, se
aderisse ao nazismo hoje, mesmo não havendo mais campos de extermínio,
estaria obrigatoriamente aderindo à instituição que os aprovou e os colocou em
prática e, teoricamente, se propondo a participar ativamente caso essa atividade
volte a ser praticada; como católica uma pessoa, que não estivesse cega pela fé,
pensaria que está aderindo à instituição que criou e aplicou a Inquisição e que
estaria também, teoricamente, disposta a jogar seu fósforo aceso na lenha, ou a
se calar de medo, assim que essa instituição ache que devemos voltar a queimar
hereges.

Sei perfeitamente que nenhum católico com bom senso acredita que a Igreja
Católica vai um dia voltar a queimar bruxas em praça pública, mas ela o fez e
teoricamente poderia voltar a fazê-lo porque seus dogmas não mudaram tanto
assim de lá para cá.

A Igreja católica é uma das instituições mais ricas do planeta, o Vaticano é um


país; a ICAR tem até banco próprio e é instituição ativa no mercado financeiro
mundial. Seu patrimônio, falando apenas do país repleto de edifícios magníficos
e mobiliário idem e não dos milhões de igrejas, catedrais e dioceses espalhadas
pelo mundo, é estimado em 820 milhões de dólares (da última vez que
pesquisei).

Esse valor não inclui as obras de arte, até porque o valor de muitas delas é
simplesmente incalculável. Não se pode saber qual é o tamanho total da sua
riqueza porque, que eu saiba, boa parte dela não faz declaração de renda. E, se
pesquisarmos seriamente para tentar saber de onde veio essa fortuna toda e todo
esse poder, a resposta virá plena de histórias capazes de fazer tremer de horror
qualquer pessoa minimamente decente. Por que então pessoas decentes
continuam apoiando e defendendo a Igreja Católica? Eu não entendo!

Quem vai ao Vaticano fica pasmo com a quantidade de obras de arte e com a
pompa e riqueza do lugar. E no entanto toda igreja, pelo menos no Brasil, na
Espanha, em Portugal e na França, que são os lugares onde estive e onde entrei
em igrejas, tem lá o seu cartaz de elogio ao dizimista e, pelo que se pode sentir
das diversas campanhas e festas para arrecadação de fundos, parece que
normalmente não se troca uma lâmpada sem pedir para isso o dinheiro dos fiéis.

Digo isso porque mesmo nunca tendo sido católica já fui chamada a colaborar
com minhas parcas merrecas para construção, ampliação ou reforma de igrejas
católicas dos lugares onde já morei, então concluí que, se chamam para esses
trabalhos financeiramente mais pesados até mesmo quem não frequenta a igreja,
imagino que os que a frequentam assiduamente se responsabilizem
financeiramente e possivelmente também com mão de obra, pelos consertos
mais simples e até a manutenção do dia a dia.

É extremamente comum que se veja nos noticiários, os repórteres entrevistando


os grupos de fiéis que trabalham voluntariamente como pedreiros, pintores ou
marceneiros sempre que uma igreja é danificada por um acidente natural; do
qual deus não a protegeu.

Nãoconsigopensar nada debom deuma instituiçãotãorica que não se priva de


explorar as pessoas dessa forma. É exagero dizer isso? É possível, mas não
muito exagero certamente, basta entrar em uma igreja católica para ver riqueza e
pedidos de dinheiro. Tudo bem que também existem capelinhas e igrejinhas
simples e despojadas, mas as que são ricas e imensas são ricas e imensas
mesmo! E essas são muitas.

Como gosto de arquitetura e história e porque tive a sorte depoder viajar um


pouco, já entrei em muitas igrejas católicas imensas, antigas e ricas, já fui
inclusive ao Vaticano, e sempre fico me perguntando: Como é que podem ter a
indecência de ficar pedindo dinheiro aos fiéis? Como é que podem gastar
fortunas para travar o desenvolvimento da ciência, acobertar criminosos, ajudar a
propagar doenças proibindo o uso de camisinhas e ainda pedir dinheiro para
isso?

Dá para pertencer a uma igreja como essa? Como é que as pessoas esclarecidas
conseguem? Por mais que respeite as pessoas e suas opiniões não consigo
entender coisas como essas.

Falando em Vaticano, ao contrário do que diz o velho ditado “Fazer X e não


fazer Y é como ir a Roma e não ver o papa” – não sei se os mais jovens
conhecem essa fala – eu digo que ir a Roma e NÃO ver o papa é tudo que eu
aconselharia a alguém. Não estou me referindo só ao papa, o papa mesmo,
aquele velhinho que muitos católicos acham que é o representante de deus na
terra, isso quando o tal velhinho da vez não passa a impressão de se achar o
próprio deus.

Tudo bem que não parece ser o caso do atual, mas o anterior me parecia ter um
tanto desse complexo, de deus do mal, na minha opinião, e foi na época dele que
estive no Vaticano. Enfim, a minha referência quando falo em ir a Roma e não
ver o papa é ao Vaticano, o menor país do mundo, ou o menor país independente
do mundo, parece.

Vou contar a história dessa ateia aqui, que foi ao Vaticano numa viagem de um
fim de semana a Roma. Eu e meu marido resolvemos, apesar do espírito não
religioso de ambos, ir ao Vaticano, afinal, é voz corrente que não se pode ir a
Roma sem ver a Capela Sistina e o museu do Vaticano, além da imensidão
impressionante da praça e da catedral de São Pedro. Uma italiana que viajou
conosco no mesmo trem disse que ver a Capela Sistina causava uma emoção que
ela definia com uma palavra que significa algo que supera o deslumbramento,
nós ficamos mais curiosos ainda e resolvemos tentar saber que emoção era essa:
Foi uma das piores besteiras que fizemos!

Chegamos de manhã e vimos uma fila imensa encostada


feitoumacobra,seguindoasinuosidadedaenormemuralhaque cerca oVaticano, ou a
parteondeestá a Capela Sistina, mas nós somos, ou estávamos naquele momento,
otimistas e achamos que a fila estava rápida e que a entrada era logo à frente
onde a muralha dobrava em uma aresta e não se podia ver além, então ficamos
na fila. Sol quente, falta de sombra, calor, e cerveja a quatro euros o copo; copo,
não latinha! Havia também pessoas que a cada cinco metros vinham se oferecer
para, a um preço “módico”, deixar-nos entrar sem enfrentar a fila toda; achamos
isso uma tremenda sacanagem e não pagamos.

Tudo bem, pensei comigo, o papa pode bem ser que não saiba de nada disso,
mas sendo ele quem é, deveria tomar providências para saber, e para não
permitir coisas desse tipo, que tal mandar algum dos funcionários vir disfarçado
de turista comum para saber como é visitar a Capela Sistina? Será que ele é
“Papa demais” para pensar em algo desse tipo?

Desculpem os que estão me achando rabugenta demais até aqui (vão achar mais
ainda), é que tenho tolerância zero para corrupção e sacanagem, posso estar, e
quase sempre estou, em situação na qual pouco ou nada posso fazer para lutar
contra isso, mas nunca estou em posição que me impeça de me revoltar, de sentir
raiva e de me sentir injustiçada.

Bem, entre pensamentos e desconforto a fila foi andando, três horas depois
entramos, três horas porque a entrada era bem mais à frente do que nós e todos
os que estavam na fila tínhamos pensado. Vimos que tudo era grande, inclusive o
caminho até a Capela Sistina... A gente segue as indicações das placas e as
pessoas, que naquele dia eram muitas e iam todas na mesma direção que nós.
Pensamos que a capela estava logo ali e ela simplesmente nunca chegava.

A cada trecho que se andava tinha um balcão vendendo bugigangas; eram


rosários, medalhinhas, estatuetas, livrinhos, livrões, reproduções e postais.
Gente, prestem atenção que não estou criticando o fato de ter quiosques,
banquinhas ou balcões vendendo lembranças do lugar turístico que se visita, até
no Louvre tem isso e eu acho ótimo que tenha porque a gente muitas vezes quer
mesmo comprar, ou apenas olhar, as lembranças do lugar onde estamos e onde
não podemos ir com muita frequência; o que me deixou muito furiosa foi o
excesso, eram pontos e mais pontos de venda, não estavam apenas faturando
uma graninha satisfazendo um desejo e até uma necessidade dos que visitam o
Vaticano, estavam explorando mesmo.

Tenho fibromialgia, e comecei a sentir dor, a fibromialgia se manifestou com


tudo, talvez pelo desconforto e pela raiva de ver a exploração toda e de não
chegar nunca à tal capela. Eu já estava querendo dar meia volta e sair de lá,
desistindo sem remorso de qualquer emoção acima do deslumbramento em nome
da minha sanidade mental que, eu sentia, já começava a ser afetada pela dor e
pela raiva, mas não fiz isso porque nunca daria para saber se de repente para
voltar não teria que andar mais ainda do que para chegar à maldita capela!

Nessa altura, com todo o respeito aos católicos que, tenho certeza disso, em
muitos casos têm essa viagem como a realização de um dos seus melhores
sonhos, eu já estava passada a pontodedizer palavrões. Euficava pensando na
falta derespeitocom as pessoas, na clara exploraçãofinanceira que são aqueles
corredores, na dificuldade de algumas pessoas idosas e com problemas de
locomoção e me perguntava por que eles não tinham um atalho para a tal Capela.

Eu estava com dor e só quem tem fibromialgia sabe que essa dor não é algo que
nos mantenha com o espírito calmo. Nunca tinha visto e duvido que um dia verei
uma capela mais difícil de se chegar do que essa!

Quer outro exemplo de que era exploração? Muitas das obras expostas nos
salões não tinham nenhum cartão com referência, nenhum nome, nenhuma
explicação, tinham apenas um número e se você quisesse saber do que se tratava
tinha que comprar os livros que falam tudo sobre o Vaticano ou então pagar pelo
uso de um aparelho no qual você aperta a tecla indicada e ouve, na língua que
escolheu, a explicação que qualquer museu que se dê esse nome tem ali, ao lado
da obra.

Não que esses aparelhos não sejam úteis, e muito, em muitos lugares que você
visita quando faz turismo; usamos um desses no Coliseu de Roma mesmo,
usamos também no coliseu de Nimes, na França e usamos outras vezes em
visitas a castelos em Espanha e em Portugal; mas nos museus é de praxe que os
detalhes mais relevantes sobre as obras de arte expostas, pelo menos as
informações mais básicas, como título da obra e nome do autor, estejam em
pequenas placas colocadas ao lado da obra. Todo mundo que já foi a qualquer
museu pode constatar isso. No Vaticano tem-se que pagar por essas informações;
fiquei enojada sim!

Tudo bem que não se pode só falar mal, afinal de contas são muitas obras de
arte, todas elas maravilhosas, todas dignas de admiração embevecimento e
louvor (não no sentido religioso obrigatoriamente), mas ser obrigado a pagar
para saber que obra é aquela é muita sacanagem, sem dúvida. Foi isso que pensei
e foi isso que me deixou furiosa.

Cheguei a, numa brincadeira meio irônica, pensar que o papa bem que gostaria
de saber que eu, uma ateia assumida, estava lá, sofrendo dores e desconforto
para poder chegar a um dos principais ícones da igreja católica, talvez ele
dissesse que o nome disso era justiça; deus estava me castigando por tudo que já
disse e já pensei sobre ele. Eu responderia então que, caso o objetivo do castigo
fosse fazer com que eu me arrependesse e mudasse de ideia, não estava surtindo
efeito! Além disso, e as outras pessoas? A maioria católicas mesmo, mereciam
aquele desconforto e aquela exploração?

Finalmente, depois de muitos quilômetros de caminhada e de passar por muitas,


muitas e muitas lojinhas mesmo! chegamos à tão famosa Capela Sistina e...
Surpresa! Lá não pode tirar fotografia, mesmo sem flash; durante todo o
caminho se pode fotografar tudo, desde que seja sem flash, mas a capela não
pode e, o que é muito pior, tem que passar e sair correndo porque os guardas
ficam expulsando a gente insistentemente. Resultado: Ninguém que vai ver a
Capela Sistina vê a Capela Sistina! Deve ser para obrigar quem ainda não o fez a
comprar uma reprodução colorida ou um livro com cada parte detalhadamente
explicada como se fosse pelo
próprioMichelangelo.Nessaaltura,numataquedebomhumor meio duvidoso,
embora ditado pela dor, eu já estava cantando em ritmo do “Happy Birthday to
You” essa versãozinha muito pessoal:

O Papa é um filho da puta


O Papa é um filho da puta
O Papa é um filho da puuuuuuuuuuuuuta!!!!!!!! Ninguém pode negar!
Ninguém pode negar!
Ninguém pode negar!

Sei que essa musiquinha faz de mim uma pecadora aos olhos de cada católico do
planeta e que é uma blasfêmia imperdoável ofender dessa forma o representante
de uma igreja; uma blasfêmia comparável à de Sinead O’Connor quando ela, em
uma apresentação, rasgou a foto do papa dizendo que aquela era a foto do mal.
Peço perdão aos católicos pois não tive intenção de ofendê-los, mas é que a raiva
e a dor eram tantas que a musiquinha me veio à mente sem que eu a tivesse
chamado, confesso que a achei divertida e, para a ocasião, bem adequada. Não
me queimem, por favor!

No fim das contas saí de lá furiosa, não senti nenhuma emoção-mais-que-


deslumbramento e acho que o próprio Miguel ficaria muito puto se soubesse a
sacanagem que estão fazendo com ele. Se o papa pensa em contar com o
deslumbramento do luxo, da beleza e da pompa do Vaticano para conquistar fieis
e trazer para “os braços do senhor” as “ovelhas desgarradas”, não vai ser um
ateu mais crítico como eu que ele vai conseguir arrebanhar para o seu lado, pelo
contrário, a distância só se faz maior.

Claro que a pintura da Capela é linda, claro que tem muita coisa bonita naqueles
corredores todos que a gente é obrigada a seguir para chegar até ela, mas toda a
beleza fica perdida no meio da raiva, do desconforto e da exploração e, no meu
caso, na sensação frustrante de perda de tempo. Sim, porque chegamos a pensar
em tirar aquele dia para ir de ônibus até Pompéia e Herculano e acabamos não
conseguindo ver nenhum dos dois lugares. Era uma viagem rápida, só tínhamos
dois dias para ver Roma, escolhemos errado, muito errado, e perdemos quase
que inteirinho um dos dias que tínhamos para nos sentirmos torturados,
explorados e enganados no centro da igreja católica. Como diz minha mãe
(falando sempre sobre outras coisas é claro porque ela é muito religiosa): “Ah, se
arrependimento matasse!”

XII

Eu, como todo ateu, tenho muitos amigos religiosos, e tenho uma amiga muito
especial que é espírita. Ela é muito linda, é uma mulher forte, inteligente,
divertida, simpática e maravilhosa; é uma amiga de quem gosto muito mesmo!
Estamos afastadas já faz um bom tempo porque a vida nos levou para lados
diferentes, ficamos então com os “oi, eu te amo” que trocamos vez em quando
pela internet. Mas acho que ela sabe muito bem que tem um lugar especial no
meu gostar e que eu nunca teria nenhuma vontade ou intenção de ofendê-la,
diminuí-la ou desprezá-la de nenhuma forma, por isso espero que ela nunca
entenda como ofensa qualquer coisa que eu diga sobre sua religião. Te amo,
Márcia!

Ela já me falou um bocado de coisas a respeito do espiritismo, e me emprestou


alguns livros sobre o tema, que li. Penso e acho que o espiritismo não é uma
doutrina tão hipócrita quanto muitas das religiões cristãs e não cristãs que
conheço pouco mais ou pouco menos, mas os conceitos espíritas não conseguem
me convencer e em geral não conseguem convencer o ateu porque, para variar,
tem coisas demais que nós questionamos.

O próprio número de habitantes do planeta durante o tempo que a história marca


como “a evolução do homem na terra” dificulta bastante a compreensão do que o
espiritismo aceita como verdade; a pergunta é: De onde vieram tantas almas
tendo a população do planeta aumentado tanto? Pela teoria de que cada alma
reencarna num processo de evolução até se tornar algo especial que realmente
não consigo saber o que seja, a lógica seria que a população do mundo
diminuísse e não o contrário.

Para tentar responder essa questão é preciso que se imagine uma espécie de linha
de montagem de almas que vem funcionando a todo vapor desde a criação do
homem e imaginar um outro mundo – ou vários outros mundos – sabe-se lá
onde, no qual estariam as almas que conseguiram evoluir e um outro mundo – ou
vários outros mundos – onde estariam as almas menos evoluídas do que nós e de
onde nós viemos quando evoluímos o suficiente para sair de lá e chegar até aqui.
Estaríamos então em um mundo intermediário entre dois outros ou entre dezenas
de outros, não sabemos.

A única coisa da qual poderíamos ter quase certeza é de que as almas mais
evoluídas certamente não estão aqui, isso porque se estivessem certamente
teríamos um número muitíssimo maior de Gandhis e Mandelas, um número tão
maior que com certeza eles teriam conseguido desde há muito tempo influenciar
mais gente e transformar a realidade, tornando melhor esse mundo em que
vivemos. Ou será que não há outro mundo e só essas poucas almas evoluíram o
suficiente para se tornarem Gandhis e Mandelas? Afinal, se houvesse um mundo
para os mais evoluídos, o que estariam os Gandhis e Mandelas fazendo aqui?

Antes colocavam esse – ou esses – outro mundo em um plano astral e imaterial,


atualmente alguns espíritas têm falado em outros planetas. A coisa ficou então
um pouco mais acessível. Mesmo assim fica muito difícil entender e aceitar toda
essa linha de sucessão que leva a algo desconhecido que não me parece muito
atraente. Se pensar em um mundo anterior a esse, o mundo menos evoluído de
onde eu teria vindo, a ideia me revolta e me enoja.

Os espíritas acreditam em deus, por que e como um deus bom criaria almas
brutais como parecem ser algumas das pessoas que temos aqui e, pior ainda, por
que criaria almas ainda mais brutais num outro mundo anterior a esse? E, indo
para “cima”, por que um deus bom criaria um mundo para as almas mais
evoluídas quando elas seriam tão mais úteis aqui?

Essa escala de “evolução espiritual” envolvendo, como parece ser o caso, todo
tipo de sofrimentos e barbáries, não faz o menor sentido e a existência de um
esquema como esse faz menos sentido ainda. Por que um deus todo-poderoso
não pôde criar as almas já no estágio mais alto de evolução? Incompetência ou
maldade?

Mas esse não é o único problema que se apresenta para a minha mente
questionadora e teimosa; tem também o detalhe de Qual EU da pessoa
reencarnaria; sim porque uma pessoa é na verdade muitas, o eu-velho de alguém
não é a mesma pessoa que o eu-adulto desse mesmo alguém e não é a mesma
pessoa que o eu-jovem e não é a mesma pessoa que o eu-adolescente e por aí
vai; mesmo em se tratando do mesmo ser humano, em cada fase, em cada ano e
até em cada dia há uma pessoa diferente. Qual EU desses terá o privilégio de
reencarnar, e aprender, e evoluir, e tornar-se algo ou um espírito melhor?
E os outros EUs passados e futuros dessa pessoa? Esses morrerão
definitivamente? Quem escolheria o EU que vai reencarnar? Teria que ser esse
mesmo EU ou um outro? Seria um EU da própria pessoa ou um EU de outra
pessoa ligada a ela? Essa escolha seria democrática e justa? Acho que um
espírita diria que a escolha seria de deus, mas sou ateia e não acredito, não amo e
não respeito deus e não gostaria nem um pouco de passar essa responsabilidade a
esse ser que, como já expliquei antes, eu consideraria abominável caso existisse.
Será que eu e os demais ateus teríamos liberdade de não permitir que esse deus
que não respeitamos fizesse essa escolha tão importante por nós?

Um amigo me disse que é o espírito que sou em essência que passa por diversas
“vidas corporais” com o objetivo de adquirir experiência e aprendizados. Pela
explicação que tentou dar, achei que ele não entendeu bem o que eu disse sobre
os EUs passados e futuros dessa pessoa, parece que pensou que eu estivesse me
referindo a outras vidas e estou falando dessa mesma, somente e apenas essa, na
qual fui uma criança curiosa, uma adolescente rebelde, uma mulher agitada, uma
senhora brigona, mas vou entender que o processo seja o mesmo e que a resposta
dele significa que há uma essência que não mudou da minha infância até minha
velhice.

Acontece que a pergunta continua porque não consigo mesmo achar que a EU de
sete anos que roubou uma colher na escola é a mesma EU que está contando esse
episódio agora, tenho a lembrança mas não tenho nem uma célula no corpo e
acho que nenhum ou muito poucos traços daquela personalidade. Qual dessas
duas EUs reencarnaria? Qual delas contém mais da minha “essência”? Meu
amigo disse que isso se torna mais claro para o espírito quando este se encontra
no plano espiritual, entre uma encarnação e outra. Não consigo acreditar nisso,
cadê as provas?

Mas a pergunta mais terrível mesmo é outra: se estamos vivendo e evoluindo, se


estamos reencarnando sucessivamente a fim de aperfeiçoar quem somos, então
por que não evoluímos como espécie? Por que um deus bom e poderoso
mandaria as almas evoluídas para um outro mundo e as impediria dessa forma de
ajudar ou de participar da evolução moral do ser humano nesse mundo mesmo?
Por que ainda temos os crimes, os abusos de poder e todas as aberrações que
tínhamos desde que começamos a habitar o planeta? Por que crianças ainda
sofrem? Por que, como bem demonstrou Geoge Carlin, para que retornemos à
barbárie basta apagar a luz.47
Nenhuma resposta que tenha recebido ou que imagine para minhas muitas
perguntas consegue me convencer de que reencarnação, plano espiritual,
evolução espiritual e todas essas expressões façam qualquer sentido. Não
consigo perceber sentido no próprio conceito de espírito, fica mais difícil ainda
perceber sentido nessa “escola” mais ou menos sofisticada para formar sei lá o
quê. Desculpem meus amigos espíritas, mas essa trama tem fios soltos demais.

Sabemos que as coisas não precisam fazer sentido para existir porque muitas das
coisas que existem comprovam isso, como a própria vida, por exemplo, mas
acontece que as coisas sem sentido que existem e que sabemos que existem
47 In: http://www.youtube.com/watch?v=iMOdOaaYbzM - Acesso em: 22 Ag. 2013

são aquelas que podemos constatar pela experiência; afinal, por menos que a
vida faça sentido, posso comprovar, empiricamente e na medida em que posso
comprovar alguma coisa, que a vida existe porque sinto e sei – até prova em
contrário – que estou viva.

O fato é; para que eu; e qualquer ateu; tome alguma coisa como verdadeira sem
que se possa ter nenhuma prova empírica é preciso que tal existência faça
sentido quando pensamos logicamente, caso contrário nós a rejeitamos. Por mais
que a gente ame a amiga ou o amigo que nos fala disso. Quer um exemplo?
Nunca vi um átomo, não tenho experiência empírica da existência dos átomos,
mas quando vejo as explicações científicas, quando leio sobre a história e a vida
dos cientistas que chegaram a esse conhecimento, quando vejo as explicações, os
estudos e as experiências sobre a eletricidade, tudo faz sentido logicamente, por
isso acredito, não no sentido religioso mas no sentido lógico, que os átomos
existem. Não consigo aplicar esse mesmo método a nenhuma das explicações
dos espíritas. Desculpem.

Evoluímos a ponto de eliminar a escravidão de boa parte do mundo mas não


evoluímos a ponto de deixar de procurar e usar novas e antigas maneiras de
explorar nossos iguais; evoluímos a ponto de não termos mais em arenas os
gladiadores se matando em honra de César e para deleite do povo mas não
evoluímos a ponto de deixar de apreciar e de vibrar com os socos e os pontapés
das lutas de boxe ou das lutas estilo combate, UFC, MMA e outras modalidades;
evoluímos a ponto de não sacrificarmos animais nos altares dos nossos deuses
mas não evoluímos a ponto de deixar de chamar assassinato de esporte e de
lazer, como fazemos com os termos caça e pesca “esportiva”; evoluímos a ponto
de criar uma Declaração Universal dos Direitos do Homem mas não evoluímos a
ponto de cumpri-la; e, principalmente, não evoluímos a ponto de acabar com as
diversas e cada vez mais variadas e sofisticadas espécies de guerra, desde as
guerras de gangues e de torcidas organizadas de times de futebol até as guerras
políticas, econômicas e “santas”.

Além de tudo isso, o espiritismo é também cristão, também acredita em deus, na


bondade de deus, na justiça de deus, no poder de deus; e em Jesus e no fato de
que ele foi esse cara que o Paulo de Tarso inventou que ele era. Como nem deus
nem Jesus, caso ambos existissem, mereceriam as loas que lhes tecem, fica
difícil entender e concordar com meus amigos espíritas nesse ponto, da
mesmíssima forma que não posso concordar com nenhum outro teísta.

Tudo bem que há diferenças entre espíritas e cristãos de outras religiões, como o
fato de que para os espíritas Jesus não é bem um deus e sim uma alma mais
evoluída do que todas as outras, mas na essência do que é o cristianismo, eles
não são muito diferentes dos demais cristãos e mesmo dos judeus e dos
muçulmanos. Há o louvor a um deus criador, plenipotente e bom que,
inexplicavelmente, criou e mantém o mal. Tudo o que sou incapaz de
compreender como possibilidade.

XIII

Muitos teístas – principalmente via internet que é onde ouso falar sobre o
assunto com mais frequência – me criticam e às vezes até me ofendem porque
acham que eu não deveria escrever “essas coisas”. Mandam e-mails e deixam
comentários nos meus posts perguntando por que não me calo; não entendem por
que insisto tanto em “criticar deus” embora eu sempre tente deixar claro que não
acredito em deus e, portanto, não critico deus mas sim a ideia deus.

Para muitos desses teístas até mesmo pensar em deus de forma a questionar seus
“desígnios” é algo que deveria ser inaceitável para qualquer ser humano, falar e
escrever então são atrevimentos e ousadias do “inimigo” ou de seus adeptos,
como muitos deles nos chamam. Daí a frequente mania dos crentes mais
fanáticos de dizerem que os ateus são “adoradores do demônio”, eles não
entendem que para o ateu o demônio é apenas um outro deus, um deus do mal,
para nós tão impossível de existir quanto o deus “do bem” que os teístas adoram.

Por que comecei a pensar em deus e em religião até chegar ao ponto de sentir
necessidade de escrever este livro? Eu respondo essa pergunta usando a frase
que tanto já vi ser usada ironicamente pelos teístas para afirmar que na realidade
não existem ateus, a mentira consoladora que inventaram para não ter que pensar
muito em nós: Explico, usando a ironia deles, que sou ateia graças a deus.

O que estou dizendo com isso é que descobri que sou ateia graças ao tanto que
tentaram me convencer da “verdade” da existência de deus. Tantos religiosos
vêm tentando desde sempre me convencer e me converter de todas as maneiras
que não tive outra saída se não pensar no assunto! Principalmente depois que
passei a usar e-mails e mais ainda depois que comecei a dar aulas em escolas
estaduais do Rio de Janeiro.

A partir daí comecei a sentir que o assédio dos religiosos se tornou mais intenso,
tão intenso a ponto de eu não poder me virar sem encontrar em algum lugar os
transmissores da “boa nova” com os recadinhos do tipo “Jesus me ama”.

Tudo bem que conheço muitos religiosos que não são assim, que não ficam
incomodando ninguém com suas crenças e opiniões, são muitas pessoas decentes
e éticas o suficiente para serem amigas e aceitarem as outras pessoas sem querer
impor a elas seu deus e sua fé. Mas tem também
osreligiososinsistentes,persistenteseconvictosquechegam a se tornar incômodos e
inconvenientes; e, infelizmente, eles são muitos.

Estão tão certos de que sua missão na vida é captar adeptos que chegam a
incomodar até mesmo aqueles religiosos tolerantes e amigos que citei lá em
cima. Se a gente ousa dizer a eles que deviam parar com o assédio, vêm sempre
com um argumento do tipo “Não tenho vergonha de falar do meu deus” ou citam
um trecho da bíblia que diz algo sobre a missão do fiel de “espalhar a palavra”.
A experiência tem me mostrado que alguns se tornam ainda mais incômodos
quando a gente diz que eles estão incomodando.

Eles vêm à nossa casa no domingo de manhã, de repente o único dia que temos
para dormir um pouquinho mais; coisa que não conseguimos fazer por causa
deles que invadem nossa rua em bandos portando as revistinhas que eles parece
que decoraram antes e querem recitá-las inteiras na porta de cada casa!

Eles enchem a nossa caixa postal com os e-mails coloridos e cheios de


musiquinhas que, em pps, querem nos convencer definitivamente de que a
religião e o deus deles é solução para todos os problemas, nossos e do mundo.
Eles invadem as nossas páginas na internet com recadinhos cheios de brilho que
afirmam que “Jesus te ama”.

Eles nos cercam na rua para entregar “santinhos” e convites para a próxima
atração de suas igrejas e templos. Eles abarrotam os quadros de avisos das salas
de professores e os corredores das escolas com imagens e mensagens religiosas a
ponto de a gente não poder achar espaço para colocar alguma informação
pedagógica relevante.

Eles invadem ônibus, trens e praças gritando salmos e ofensas ao capeta que na
opinião deles está dentro de todos nós que não somos de suas religiões e não
“aceitamos” o seu deus. Eles aproveitam qualquer reunião de mais do que três
pessoas como ensejo para constranger as pessoas a darem-se as mãos e rezarem
ou orarem o padre nosso, isso quando não transformam reuniões cívicas ou
pedagógicas em verdadeiros cultos.

Eles chegam ao cúmulo de invadir os corredores do nosso prédio para enfiar por
debaixo da porta do nosso apartamento papeizinhos com recados religiosos, e até
(suprema e criminosa audácia!) constrangimentos financeiros como a oferta de
uma imagem de santo em troca da doação de uma determinada quantia mensal.

Acho tremendamente estranho e inexplicável – às vezes confesso que chego a


achar até mesmo divertido e um tanto infantil – esse hábito que muitos teístas
têm de não se contentarem em acreditar que deus existe, mas também, pelo que
afirmam, de saberem tudo sobre os sentimentos, pensamentos e vontades tanto
de deus quanto dos outros seres mitológicos em que acreditam, sejam esses
santos, Jesus ou o diabo.

Basta ver o quanto eles dizem que “Deus não quer que...”, “Deus se agrada de
pessoas que...”, “Jesus fica triste quando...”, “O diabo quer mesmo que...” e
frases do tipo para concluir que eles se sentem conhecedores do âmago do
espírito de deus e de todos os outros mitos em que acreditam.

Mas, caso alguém aponte isso a eles, com certeza negarão veementemente o que
suas próprias palavras afirmam, e explicarão tudinho de uma forma que eu não
poderei compreender porque estarão sempre dizendo que não afirmam o que
estão afirmando.

Esses religiosos que assediam e constrangem a gente de todas as formas em


geral não são tolerantes, éticos e amigos como muitos dos meus amigos
religiosos. Há sim muitos deles que, quando o assunto não é religião, quando não
sentem que estão falando com “um inimigo” ou a respeito de alguém de quem
“deus não se agrada” como os gays e os ateus, são pessoas bastante agradáveis e
gentis, mas se o tema da conversa é religião – tema que adoram introduzir nas
conversas – estão sempre mais preocupados em falar do que em ouvir e não
suportam qualquer argumento contrário.

É claro que não estou falando de todos os religiosos nem dessa ou daquela
religião, mas muitos deles sempre e o tempo todo enchem nossos ouvidos com
os carros de som a todo volume anunciando a “prece do descarrego” que parece
mais fantástica e saborosa do que as pamonhas de Piracicaba, e nos cercam na
rua para entregar os papeizinhos de propaganda da fé deles e até mesmo o
“santinho” do candidato deles para as próximas eleições.

Se você mora em apartamento eles dão um jeito de enfiar papeizinhos debaixo


da sua porta e alguns mais atrevidos, em uma clara violação de todos os
princípios de segurança, conseguem convencer os porteiros, que muitas vezes
são também religiosos, e talvez até da mesma igreja desses audaciosos
espalhadores da “palavra”, de que estão trabalhando por uma boa causa – afinal,
são servos de deus e estão trabalhando para deus – e, portanto, têm o direito de
até mesmo bater na sua porta para convidá-lo para o culto, reza, novena. E estou
falando com conhecimento de causa porque isso já aconteceu no prédio onde
moro, já fui assediada na minha porta por uma dupla que estava tocando a
campainha de todos os apartamentos para fazer “um convite”.

E você não pode passar na frente da igreja deles em determinadas horas porque
estão berrando com tal força e em tal altura que deveriam pagar multa por
“barulho ensurdecedor que prejudica a saúde auditiva das pessoas”. Uma das
recomendações para quem vai comprar ou alugar uma casa é “Fuja das
proximidades de certas igrejas”, ou seja, eles conseguem até mesmo desvalorizar
os imóveis!

E conseguem, numa jogada que chega a, pelo menos para mim, parecer
desonesta, conquistar a adesão dos nossos parentes mais ingênuos, como pais e
tios idosos, e convencer esses parentes a usarem de chantagem emocional para
nos convencer a fazer parte do grupo que terá direito ao paraíso eterno. Paraíso
esse, aliás, que, em se acreditando na explicação e nas descrições deles, tem
muito pouco de paraíso; está mais para Tédio Eterno. Tédio que pode ser
comprado ao custo de dez por cento dos seus rendimentos mensais e será mais
paraíso e mais certo ainda se, além dos dez por cento, ainda tiver uma doação
“por fora”.

Esses teístas incômodos estão presentes em quase todos os lugares que frequento
e é comum me constrangerem a participar, ao menos com minha presença, das
cerimônias que só interessam a eles, mas que não se sentem vexados por impô-
las porque foram ensinados pelos padres e pastores a falar de deus em todos os
lugares e momentos independente de quantas pessoas vão constranger e
incomodar com isso.

Quando alguém reclama, eles vêm com o argumento tosco de que são maioria e
a “palavra de deus não faz mal a ninguém”, não percebem ou não se dão ao
trabalho de pensar que estão decidindo por todos o que cabe a cada um decidir
por si mesmo.

Sempre recebo, como todo mundo, vindos de todos os lados, recados,


mensagens, avisos e até ameaças pretensamente chegados diretamente de deus.
Alguns deles chegam até a vir assinados!

Recebo direta e indiretamente em todas as formas, por todas as vias de


comunicação e praticamente em tempo integral, lembranças de religiosidade. E,
curiosamente, quando, num momento em que estou ouvindo absurdos ou
ingenuidades religiosas, ouso entrar na conversa e falar sobre o assunto
assumindo minha postura ateia, ouço sempre alguém dizer que “religião não se
discute”.

Pregação constrangimento todo mundo aceita. Existe um consenso não tão


velado assim de que é deseducado retrucar ou se posicionar de forma contrária a
alguém que está tecendo louvores e elogios ao seu deus e à sua fé, religião ou
igreja.

Todos aceitam e se calam ou balançam a cabeça concordando, ou ainda, se forem


da mesma opinião, entram entusiasticamente no tema e fazem coro com o orador
sempre que alguma pessoa, a propósito de qualquer coisa, se põe a falar de deus,
de religião, de fé; ninguém se manifesta nunca de forma contrária.

Diante de todo e qualquer discurso religioso a tolerância é obrigatória e ninguém


se mostra nunca constrangido ou contrariado; pelo menos eu nunca vejo isso.

A diferença – e assumo a culpa por isso – é que, no meu caso, muitos desses
constrangimentos, muitas dessas pessoas e muitos desses discursos me irritam,
me aborrecem, me revoltam, acionam em alto e bom som o meu alarme
“antiestupidez”. Daí que não consigo me segurar e entro na conversa se uma
conversa for, e invariavelmente sou obrigada a ouvir de alguém a frase-falácia
fatídica: “Religião não se discute” – parece que só se prega.

Então, como podem estranhar que os ateus se manifestem? Como podem


estranhar que os ateus existam? Sou sim um exemplo de “Ateu graças a deus”
porque se não fosse pelo tempo, pela frequência e pela insistência com que me
falam de deus; se não fosse pela maneira, muitas vezes até desonesta, com que
tentam impor a mim e a todos os preceitos e dogmas da sua religião e do seu
deus eu certamente não teria nenhuma razão para pensar nesse assunto, e não
estaria escrevendo esse livro.

XIV

Se me revolto com o exacerbamento da religião, quero crer que tenho motivos


mais do que justificados. Ao longo dos anos tenho visto uma crescente
intolerância que me preocupa sinceramente. A razão da minha revolta é a
percepção de que muitas pessoas se recusam a pensar e, o que é muito pior,
ensinam as crianças a não pensarem.

Já vi em sala de aula, aluninhos de quinta série (sexto ano) ofendendo colegas


por causa de religião com argumentos ditados por uma determinada religião,
com palavras e frases que não são deles, que ouviram em casa dos pais e na
igreja do padre ou do pastor. Algumas crianças e jovens, de todas as séries do
ensino fundamental ou médio, me olhavam como se eu fosse uma extraterrestre
quando eu dizia que não tinha religião; e se espantam muito mais agora que – só
e apenas quando sou perguntada e sem nunca fazer discurso – digo em sala de
aula que sou ateia!

Quando trabalho com o tema preconceito costumo falar de preconceito no geral


e não me ater apenas ao preconceito de cor como já vi mais de uma vez
professores fazerem. Enquanto abordo o preconceito de cor, o preconceito contra
os idosos, contra os deficientes físicos ou contra as mulheres, entre outros, tudo
está bem, eles leem os textos, concordam com minha indignação contra os
preconceituosos, trazem exemplo e participam ativamente da aula; mas quando
entro no tema homofobia muitos deles são rápidos em citar a bíblia para afirmar
que “Se encontro um “viado” na rua eu caceto mesmo!”, “Pode descer a lenha
sim, professora, deus não gosta dessa gente, tá na bíblia!” – Essas frases não
foram inventadas por mim, eu as ouvi de alunos.

É só permitir uma conversa a respeito da homossexualidade que qualquer


professor quase certamente vai ouvir frases desse tipo, pronunciadas poralunos
desdeas primeiras séries doensino fundamental até já adultos nas aulas do EJA,
antigo supletivo. Já aconteceu comigo de alunos mais velhos, já adultos, dos
cursos noturnos,ameaçaremmedenunciarnadireçãoporque,segundo eles, “A
senhora está falando de “outros assuntos” em lugar de cumprir sua obrigação que
é dar aulas!”.

Com alunos mais jovens já aconteceu de eles contarem em casa que eu disse –
falando contra a homofobia – que a bíblia não deve ser usada como desculpa
para justificar preconceito e os pais, indignados pela minha audácia em levantar
esse tema tão impróprio para uma turma de adolescentes de ensino médio, se
encarregaram de ir à escola reclamar na direção que “Essa professora ousou falar
mal da bíblia e de deus” em sua aula. Por essa razão fui aconselhada pela
diretora – que fazia pregações evangélicas todos os dias no pátio da escola
– a não tocar no tema da homossexualidade porque isso é “assunto para ser
tratado apenas pelo professor de filosofia”.

Mas o mais terrivelmente assustador é que se levantar o problema na sala dos


professores – eu já tive essa experiência – o professor corre o risco de ouvir, dos
próprios colegas, frases muito semelhantes às que ouve nas salas de aula. Daí se
pode compreender bem por que nas escolas não costuma haver muitos trabalhos
abordando preconceito e, quando há, a grande maioria deles tem o “cuidado” de
excluir qualquer menção à homofobia, como se homofobia não fosse
preconceito.

Não entendo por que e como muitas pessoas cultas, inteligentes e boas se
recusam a pensar, travam suas mentes e chegam até mesmo a travar seu sentido
de ética e de respeito ao ser humano quando sua religião e seu deus tem alguma
relação com o tema em questão seja ele qual for.

Em nome de um “amor a deus”, de uma adesão irrestrita aoque afirmam ser a


“verdade” e sem questionar nem mesmo a ausência de sentido ético presente
nessa “verdade”, as pessoas esquecem o simples e básico sentimento de respeito
ao próximo; e, inexplicavelmente, nem sequer se dão conta disso!

É comum, quase obrigatório, afirmar que não podemos falar mal de religião, que
não se pode criticar qualquer crença ou manifestação religiosa. A religião pode
criticar tudo, pode condenar tudo, pode abominar toda e qualquer pessoa por
todo e qualquer motivo, mas não pode nunca ser criticada. Não podemos nem
sequer reivindicar o direito básico de ter
umestadorealmentelaicocomoestádefinidonaConstituição.

Nenhuma tentativa de mostrar que escola pública é um órgão público, nem


mesmo pela redundância é levada a sério. Lá se faz orações no pátio com os
alunos, se abriga missas e cultos evangélicos a propósito de qualquer coisa, se
abarrota os quadros de avisos com imagens de santos, Jesus e coisas do tipo
acompanhadas de orações e de trechos bíblicos.

E temos que achar tudo isso adequado, muito lindo, muito educativo e muito
bom; sem nos importarmos com o desrespeito que representa para com as
minorias. É historicamente comprovado que muitos religiosos não sabem
reconhecer minorias, nem a existência nem os direitos delas.

E os professores de ensino religioso afirmam dar aulas de cidadania e não de


religião propriamente dita, juram ensinar tolerância religiosa e se mostram e se
sentem até ofendidos se alguém insinuar o contrário porque, de acordo com eles
e muitas vezes com suas convicções mesmo, não usam essas aulas como
desculpa para priorizar e orientar os alunos na sua própria religião e crença.

Mas já vi casos de professores que comemoram o “dia da bíblia”, com exposição


de trabalhos feitos pelos alunos e orientados por eles em evento escolar aberto à
comunidade. Só que esses professores, que afirmam e acreditam que ensinam
tolerância religiosa e respeito a todas as religiões, se forem perguntados, nem
sabem se existe, por exemplo, um “dia do alcorão”, e certamente não preparam
uma festa com exposição de trabalhos e participação da comunidade no dia de
Iansã ou de Shiva.

Eles não fazem por mal, eu juro, a intenção deles é boa e tenho certeza de que
nunca lhes ocorreu que estivessem cometendo alguma irregularidade;
comemoram o dia da bíblia porque são cristãos e no conceito deles a bíblia é o
livro sagrado de todas as religiões que, para eles, os alunos devem respeitar.

Nem sequer estão desrespeitando as religiões que não têm a bíblia como seu
livro sagrado, estão apenas esquecendo que elas existem, da mesma forma que a
direção da escola esquece que os ateus existem quando transforma uma reunião
pedagógica em culto ou missa. Ninguém faz por mal, disso eu tenho certeza.

É apenas o véu cegante da fé que faz com que as pessoas se comportem assim,
não a maldade ou uma intenção ruim e premeditada. Mas incomoda. Sinto dizer
isso, mas o fato é que me incomoda muito.

Esses professores de ensino religioso comemoram com orações e mensagens


bonitas o dia da páscoa, ensinando aos alunos seu valor religioso e os vejo
sempre alertando os alunos contra o apego excessivo ao chocolate porque, além
de ser um apelo comercial ao consumismo irracional, é também um pecado
contra “o verdadeiro sentido da data”.

Mas eles não fazem ideia do que significa a palavra Chanucá e – para ficar mais
“perto” – não falam nada, ou pelo menos eu nunca soube de um que falasse,
sobre a importância do dia de jogar rosas no mar em homenagem a Iemanjá.
Talvez na Bahia.

Aliás, muitos desses professores nem citam, ou mal citam, o candomblé como
religião; ou ignoram totalmente como se não existisse, ou citam rapidamente
como uma curiosidade folclórica, ou então, o que é terrivelmente pior, falam que
é “coisa do capeta”.

O fato é que, sem a intenção de maldade mas com a priorização da própria fé


como norte, os professores continuam dando aulas de “estudos” bíblicos e
cristianismo, as escolas continuam promovendo missas e cultos e muitas pessoas
continuam esquecendo a Constituição e o estado laico e defendendo a existência
da disciplina ensino religioso no currículo escolar.

E que alguém tente dizer que não aprova a existência dessa disciplina! No
mínimo será acusado de estar tentando tirar o trabalho dos colegas.

Tenho, porém, o dever de informar que, felizmente, nem todas as escolas em que
dei aulas tinham essa postura tão claramente contrária à laicidade, em algumas
delas a direção conseguiu substituir as aulas de religião por outras mais úteis e
menos ofensivas. Minhas homenagens a elas!

Já me senti muito mal dizendo essas coisas porque tive amigas quedavam aula
deensino religioso, amigas que sei serem pessoas maravilhosas, amigas que
considero muito e de quem gosto muito embora não estejamos mais trabalhando
na mesma escola. Eu nunca quis ofender essas pessoas, não quero magoálas,
nãoquerofazer com quepensem quetenhoalgocontra elas e nem quero tirar seus
empregos ou diminuir seus salários.

Mas será possível que não posso mesmo dizer que aulas de ensino religioso são
um retrocesso histórico e deveriam ser ilegais por serem basicamente
inconstitucionais e fundamentalmente antiéticas? Não posso mesmo defender
que o assunto cidadania e a preocupação com a moral e a ética deveriam ser
obrigação de todos os professores de todas as disciplinas e que a história e as
características das religiões deveria ser assunto de história, de filosofia, de
sociologia e até mesmo de literatura e de educação artística?

Fico brava! Fico irritada! Me sinto agredida! E não quero, não posso, não
consigo deixar de gritar que odeio tudo isso: e o faço! Amo do mais profundo da
minha alma os meus amigos, sei que muitos deles têm suas religiões, sei também
que há muitos amigos meus que, mesmo sem serem religiosos, não partilham da
minha raiva, e assim mesmo eu falo!

Só queria que meus amigos – religiosos ou não – entendessem que eu os amo e


que não quero ofendê-los. O problema é que acho que a imposição da religião
como matéria escolar é algo muito errado. Acho isso feio, acho desonesto e
simplesmente não consigo ficar indiferente e calada.

XV

Um ateu afirma que deus não existe e, se pensar bem, afirma também que todos
os agnósticos são ateus com um nome mais sonoro. Me parece que todas essas
pessoas que se dizem agnósticas porque não têm certeza sobre nada e não
conseguem se definir como uma coisa nem outra são ateias que ainda não sabem
que o são.

Não estou tentando ofender ou diminuir o agnóstico nem estou sendo irônica ou
sarcástica quando falo em “um nome mais sonoro”, é que acho mesmo a palavra
“agnóstico” muito mais bonita do que a palavra “ateu” e principalmente mais
bonita do que a palavra “ateia” que é uma palavra realmente muito feia.

Entendo perfeitamente o argumento dos agnósticos de que não estão “em cima
do muro”, apenas acham que não temos e não podemos ter conhecimento
suficiente para afirmar com toda a certeza que não existe e nunca existiu nenhum
tipo de deus. Eu também acho isso e sou ateia!
Muitas pessoas se definem como agnósticas, mas eu tenho a forte impressão de
que, pelo menos em muitos casos, adotar o termo “agnóstico” é uma forma de se
dizer ateu sem assumir a palavra “ateu”, que é mais pesada porque normalmente
pressupõe um tipo de militância a que o agnóstico não quer se engajar.

Muitas vezes a pessoa se diz agnóstica porque está em processo de estudo e, por
ser honesta, sente que não encontrou – nem vai encontrar – argumentos
suficientes para negar a possibilidade da existência de deus.

Acho que há ainda aquelas pessoas que se definem como agnósticas porque
aceitaram como razoável o argumento de que religião não se discute e até
mesmo falar sobre religião de forma contrária à crença comum pode ser uma
falta de respeito com a fé das pessoas, principalmente quando não se pode provar
que elas estejam completamente erradas.

Mas, o que me parece mesmo é que agnóstico é ateu porque, até onde eu sei, o
agnóstico não acredita de verdade no deus dos teístas seja ele qual for e não
acredita no “fato” de ser sagrado o livro sagrado dos teístas seja ele qual for; mas
admite a possibilidade (pela simples impossibilidade de provar o contrário) de
existir ou ter existido uma mente qualquer, inteligente e interessada – ou não –
que pode ter criado o universo e a vida.

O agnóstico não deixa de ser, no final das contas, um humilde, uma pessoa que
sabe de suas limitações e faz questão de deixar isso muito claro.

Por se conhecer e reconhecer como pertencente a uma espécie insignificante e


limitada, o agnóstico afirma que não se importa se esse ser, ente ou mente
criadora existe ou não porque para ele não há e não haverá nunca como saber
disso com certeza, então ele opta por não tomar partido. Não há como negar que
é uma opção perfeitamente racional.

Pois bem, eu concordo com todos esses argumentos dos agnósticos e também
admito que, seja como indivíduo seja como raça, muito possivelmente não tenho
e nunca terei conhecimento suficiente para negar com absoluta certeza que um
tipo qualquer de mente possa ter criado o universo e a vida.

Portanto, penso exatamente a mesma coisa e do mesmo modo que os agnósticos,


mas me defino como ateia, por quê? Simples: porque para mim essa mente, ou
seja lá o que for, que pode existir ou não e que pode ou não ter criado o universo,
não será, não é e não tem como, racionalmente falando, ser chamada de deus.
Sechamá-lasimplesmentedeIniciadorouMente criadora posso estar sem nem
saber me referindo apenas a um ET mais evoluído. Mas aí começaria novamente
a dúvida sobre quem criou o tal ET e nós nos tornaríamos novamente ateus ou
agnósticos.

Dequalquerforma,emminhaopinião,napossibilidadede existir ou de ter existido


uma mente criadora do universo, nós teríamos que encontrar outro nome para
esse “ser” porque a semelhança dele com deus seria, mais ou menos e mal
comparando, a mesma semelhança que pode existir entre um cachorro e uma
xícara de chá.

Talvez até se pudesse encontrar mais semelhanças entre o cachorro e a xícara de


chá do que encontraríamos, caso pudéssemos ver, entre essa Mente e o deus de
qualquer teísta, afinal, pelo menos, cachorro e xícara de chá partilham a
existência como matéria constituída de átomos, que formam moléculas, que
formam substâncias, que são acessíveis aos sentidos humanos e que estão nessa
parte desse universo.

Pode ser que não exista semelhança desse tipo entre a Mente criadora e o deus
cristão. É por isso que eu e – acho que – a maioria dos que conseguiram se
libertar das amarras da fé e se deram ao trabalho de pensar no assunto – não por
sermos mais inteligentes, mas por nos interessarmos pelo tema – negamos
veementemente a existência de deus e nos definimos como ateus.

O agnóstico não acredita no deus bíblico porque basta ler a bíblia para ver que
esse deus não faz nenhum sentido. Mas, como eu já disse antes, fazer sentido
não é e nunca foi um pressuposto para a existência; afinal, se olhada mais de
perto a própria Vida ela mesma não faz nenhum sentido. Tanto não faz sentido
que os místicos e religiosos precisam buscar sentido para a vida fora da vida ou
em outra vida.

Acontece que deus, esse deus que seria, nas palavras dos teístas, o “sentido da
vida”, esse sim, se existisse, teria obrigatoriamente que fazer sentido. Como
poderia aquilo que serve para dar sentido a algo sem sentido não ter sentido?
Parece brincadeira de salão.

Deus, portanto, teria que fazer sentido; e teria que fazer sentido não apenas para
os que optaram por acreditar nele, teria que fazer sentido para todos e
igualmente. Teria que fazer sentido inclusive para mim.
Nessesdeusesescritoresouinspiradoresdelivrossagrados, o agnóstico não acredita
porque a prova de sua não existência está no próprio texto que muitos teístas
querem usar como prova de sua existência e o agnóstico sabe disso. Ele admite
sim a possibilidade da existência de uma mente criadora justamente porque não
há como provar que ela não exista.

Usando a lógica, um Iniciador chega a fazer sentido, por isso o agnóstico fica no
meio, fica “em cima do muro”, não por covardia como irônica e falsamente
dizem alguns, mas por não poder acreditar nem duvidar totalmente já que falta
comprovação para ambas as hipóteses. Dá um espaço aí nesse muro que também
estou nele!

Por conta dessas concordâncias, acho que posso dizer que, além de não acreditar
em deus, não acredito também em agnósticos; e o que estou afirmando com isso
é que eu também não nego nem afirmo uma “mente criadora”, ou seja lá o que
for; e sei que não tenho como fazê-lo mesmo. O que estou afirmando é que me
sinto exatamente como o agnóstico quanto a essa possibilidade porque não há
como provar nem existência nem inexistência dessa mente.

Viu? O ateu é igualzinho o agnóstico! A diferença é que sou mais ousada e mais
faladora, mais audaciosa – talvez “metida a besta” seja uma expressão mais
adequada – e, consequentemente mais digna da excomunhão do que o agnóstico.
Também fico em cima do muro, mas fico gritando para alertar os que não estão
no muro que esse chão é movediço.

O que defendo e o que me faz negar o agnosticismo é que, seja lá o que for essa
“mente criadora” na qual não podemos acreditar e da qual não podemos duvidar,
esse ser, essa entidade, essa coisa não é a mesma coisa que deus. Essa “mente”,
que pode existir ou não, precisa de outro nome; e é bem possível que não seja
adequado usar algum dos nomes que filósofos mais ou menos antigos usaram
(por exemplo, o Uno de Heráclito) porque esses já foram tomados como
sinônimos absolutos de deus por outros filósofos e por teólogos.

Pensei na denominação que o George Lucas encontrou na trilogia Guerra nas


estrelas: “A Força”, mas me parece que, por ser originária de um filme de ficção
e não de um termo antigo em latim, grego ou sânscrito, vai ser difícil que esse
termo seja aceito; palavras tiradas de filmes não têm tradição de serem levadas
tão a sério assim. Além disso, “A Força” do filme se parece mais com o deus dos
teístas do que essa “mente” se pareceria.
Dequalquer forma o fato é que o nome deus decididamente não serve para essa
entidade de existência possível embora improvável. Essa é a minha teoria.

XVI

Eu me assumo ateia e falo sobre a lógica do meu ateísmo e sobre os caminhos


seguidos pelo meu raciocínio e que me levaram ao ateísmo e explico esse
raciocínio, explico essa incontrolável tendência a questionar que me leva sempre
a reforçar essa minha não crença.

Muitas pessoas, principalmente os teístas mas não somente eles, criticam os


ateus por falarem desse assunto; essas pessoas frequentemente dizem que esse
tema não deve ser discutido. Mesmo em casa, mesmo dos membros da própria
família é comum que o ateu ouça o conselho para não falar sobre religião; para
defender e justificar esse “conselho” os críticos do ateu praticante têm uma frase
da “sabedoria” popular que diz que “Política, futebol e religião não se discute”.

No entanto é engraçado que existem diversos programas na televisão e no rádio


cujo objetivo central, motivo de ser e de audiência é justamente a discussão
sobre futebol; em época de eleição as discussões sobre política são incentivadas
para que se vote certo e os debates entre candidatos se tornaram uma
necessidade para ajudar o eleitor a escolher, mas programas que debatem religião
simplesmente não existem, pelo menos não no Brasil, que eu saiba.

E quando o ateu faz um texto ou tem a audácia de falar do assunto, muitas vezes
recebe o “aviso” de que esse assunto não deve ser discutido, e até mesmo o
alerta de que discuti-lo é desrespeitar a religião “dos outros”.

O que eu sinto e o que todo ateu sente certamente é que há uma injustiça enorme
nessas observações. Afinal, o fato é que, por mais que o ateu falasse contra a
existência de deus, os que creem nele certamente já falaram e ainda falam muito
mais (muito mais mesmo!) a favor da existência dele.

Ao longo de toda a sua vida a maioria dos ateus foi levada às igrejas pelos pais,
afinal, quase todos os ateus quando crianças receberam todo tipo de lições
religiosas e foram catequizados e orientados na religião de seus pais, e isso
certamente vem acontecendo desde sempre e até hoje com todas as crianças
nascidas de pais religiosos.

Eu fiz primeira comunhão, muitos ateus que eu conheço frequentaram igrejas


durante anos, alguns chegaram a ser catequizadores ou seminaristas. Os pais
religiosos estão em grande número e os pais religiosos que procuram não
influenciar na religião de seus filhos são muitos poucos, eu acho; pelo menos
entre os religiosos praticantes.

Não é só o ateu que recebe todo tipo de mensagem religiosa em todas as fases de
sua vida – aliás, ultimamente parece que com mais ênfase e frequência – veja
você mesmo, preste atenção: quantas pessoas por dia te falam de deus na
televisão, no rádio, nos cartazes das ruas, nos diversos lugares que você
frequenta?

Quantas mensagens você recebe falando que deus te ama? Quantas historinhas
ilustradas te falam das maravilhas de deus? Quantas pessoas te chamam para a
igreja delas? Quantas te cercam na rua para te entregar o convite para o próximo
culto, uma foto com explicações sobre quem é o santo da semana ou o último
número do jornalzinho da igreja do bispo ladrão?

Agora conte dentre essas mensagens quantas argumentam contra a religião,


quantas dizem que deus não existe? Tenho certeza de que a quantidade de
mensagens a favor da existência de deus que você recebe é muito maior do que
as mensagens contra; como é o caso desta minha.

O ateu já é minoria, e o ateu que assume e fala do seu ateísmo é mais minoria
ainda; poucos, bem poucos, ateus se definem ateus sempre e em qualquer lugar,
alguns não o fazem porque dizem que os ateus assumidos são tão intolerantes
quanto os religiosos, eu acho que esses estão julgando todos por um número
muito pequeno.

Muitos outros ateus não têm coragem de assumir seu ateísmo abertamente
porque sabem que sofrerão restrições de todo tipo, inclusive profissionais; claro
que hoje não somos queimados em praça pública, pelo menos no ocidente, mas
certamente uma professora ateia como eu não tem lugar em escola confessional,
e isso é, queira ou não, uma restrição de oportunidade de trabalho.

O ateu que assume, fala e escreve o que pensa, como estou fazendo agora, sente-
se um ateu praticante, esse ateu assume seu ateísmo em qualquer lugar, avisa que
é ateu sempre que se descreve ou se define e, principalmente, sempre que
alguém fala algo sobre religião tentando colocá-lo como cúmplice ou catequizá-
lo.
É o que acontece comigo, percebi que somos tão minoria que antes da internet e
das redes sociais, eu nunca tinha me encontrado cara a cara com um ateu; antes
de conhecer pessoas via Orkut e Facebook eu nunca tinha conhecido um ateu
“assim de apertar a mão”, como diz um amigo meu sobre nunca ter conhecido
alguém que leu Ulisses, de James Joyce.

Em todos os lugares que frequento sou sempre a única ateia presente. Só em


2012, pela primeira vez, tive uma colega de trabalho ateia, e ela nem é
praticante. Muitos ateus só conseguem assumir seu ateísmo e encontrar outros
ateus no mundo virtual, eles se assumiram no Orkut, em um blog, no Facebook,
no twitter. Muitos, como eu, não encontram em nenhuma outra parte; escola,
trabalho, família, círculo de amigos, uma única pessoa que seja como eles.

Quase todo ateu assumido se sente um solitário. Os ateus em geral e eu em


particular não fazemos alarde da nossa postura religiosa no nosso cotidiano, ao
contrário de muitos dos teístas que o fazem em todos os lugares e em todas as
oportunidades, incomode a quem incomodar. Muitos teístas, embora não achem
que os ateus devam ter espaço, sentem-se, eles e só eles, no direito de sempre e
em qualquer lugar fazer uma oração, publicar uma mensagem via camiseta ou
adesivo de carro, aproveitar para meter um “Foi graças a deus”, “Foi a mão de
deus”, “Deus operou”, etc. em todo e qualquer discurso que façam.
Para constatar essa mania que invadiu a mídia basta ver os jogadores de futebol
dando entrevistas; a se crer neles deus toma partido em todos os jogos, e sempre
a favor daquele que está dando a entrevista. Muitos teístas têm o hábito de ouvir
música religiosa em público sem fone de ouvidos, às vezes cantando junto; saem
pelas ruas, ônibus, praças e trens com a bíblia debaixo do braço; às vezes vão em
grupos e levam até caixa de som para, aos gritos, “espalhar a palavra”. Depois
dizem que os ateus devem ficar quietos porque estão ofendendo.
Os ateus são mais criticados, mas no dia a dia são muito mais discretos,
principalmente em público; quantas pessoas com camiseta da ATEA ou de
qualquer grupo ateu você já encontrou na rua? Em contrapartida, alguns fazem
muito estardalhaço na internet, “lugar” onde, na opinião deles e na minha, não
vale a pena estar caso não se tenha liberdade para expressar sentimentos,
pensamentos e opiniões; desde que, é claro, não se cometa crimes e não se
ofenda ninguém que não mereça ser ofendido. Desculpem, mas ofender os
Malafaias, Bolsonaros e Felicianos da vida não pode ser considerado crime, e
pedir a prisão do ex-papa é mais do que obrigação de quem sabe quem é esse
cara.
Fora da internet, mesmo o ateu assumido e praticante fala de religião apenas
quando é provocado ou quando vê necessidade disso; da mesma forma que uma
pessoa avisa que é vegetariana toda vez que alguém lhe oferece carne mas não
sai gritando aos quatro ventos que optou por abrir mão de ser onívora.
O ateu, por mais que os religiosos gostem de afirmar o contrário na tentativa
infantil de desacreditá-los, não sente de forma nenhuma que sua postura é
parecida com a dos que creem em deus mas não praticam nenhuma religião;
ateísmo não é uma religião por mais que alguns deístas sorriam torto e digam
isso!
Muitos teístas dizem que o ateu é na verdade um crente; eles justificam de
diversas maneiras falaciosas essa opinião, principalmente dizendo que o ateu é
alguém que crê porque crê que deus não existe. Em resposta já disseram, e eu
faço minhas essas palavras, que ateísmo é uma religião da mesma forma que
careca é um tipo de penteado, abstinência é uma posição sexual, televisão
desligada é um canal, nudez é um tipo de roupa e seca é um tipo de chuva. É
irritante ouvir esse tipo de absurdo.
Essa colocação é, claro, invenção dos religiosos que, para refutar ou dar
aparência de que refutaram os argumentos dos ateus, querem fazer com que se
aceite coisas absurdas como o fato sem nexo de que o ateu crê em deus.
Afirmam isso apenas porque o ateu fala a respeito de deus; eles dizem, e alguns
até, inocentemente, creem nisso, que o fato de o ateu falar tanto a respeito de
deus, mesmo que seja contra, é prova mais do que certa de que o ateu na verdade
crê em deus, afinal afirmam eles, ninguém se dá ao trabalho de ficar falando e
escrevendo sobre algo em que não acredita.
Na opinião deles, é claro, J.R.R. Tolkien acreditava em orgs, em hobbits, em
faunos e na existência da Terra Média, caso contráriopor querazãoTolkien teria
escritotantos livros falando sobreeles? E AnneRicecertamenteacredita em
vampiros, caso contrário por que teria ela escrito tantos livros com histórias de
vampiros, não é mesmo? Lembrando que, no caso de J.R.R. Tolkien não foram
escritos apenas os três volumes de O Senhor dos Anéis, tem ainda O Hobbit,
Silmarillion, Contos Inacabados e As Aventuras de Tom Bombadil.
O argumento de que o ateu crê em deus é tão absurdo que só pode fazer sentido
para aqueles que não pensaram de verdade no que estão dizendo, ou porque não
querem ver seu amigo ou parente como um “inimigo” e por isso preferem aceitar
uma mentirinha confortável; ou porque estão tão cegos pela fé que não
conseguem ver a possibilidade de que alguém consegue negar tão
completamente aquilo que eles aprenderam que não é possível ser negado.
Eles não pensaram a respeito, a ponto de não perceberem que para o ateu falar
sobre deus não é uma ação, é uma reação. Se eles, teístas, principalmente
aqueles que são praticantes de alguma religião e que sentem que sua missão é
“espalhar a palavra”, não falassem tanto a favor de deus, os ateus, em muitos
casos, sequer se dariam ao trabalho de pensar em deus, ou na ideia deus.
Até mesmo nos países livres como o Brasil os teístas – não todos é claro, mas
um número assustadoramente grande deles – parece que querem obrigar o
mundo a crer como eles creem e, mais que isso, a frequentar a mesma igreja que
frequentam.
Eu e muitos ateus, se não todos, argumentamos contra a existência de deus
porque gostamos de pensar. Expor meus pensamentos e minhas conclusões me
ajuda muito a pensar mais e a, de certa forma, organizar esses pensamentos;
debater com teístas que conseguem fazer isso de forma educada é uma maneira
de pensar sobre aspectos da religião e da crença que podem não ter me ocorrido,
me ajuda a obter mais informações sobre o que e como pensam as pessoas que
creem.
O que acontece também é que eu, e acho que todos os outros ateus, desejamos
mesmo que as pessoas pensem sobre o assunto; que pensem de verdade e
pensem por si mesmas ao invés de simplesmente balançar a cabeça diante do que
o padre ou o pastor diz.
Gostaria mesmo de ajudar as pessoas a se tornarem mais livres porque sei, por
experiência, que pensar pode não dar o prazer acomodado da irresponsabilidade
de ser ovelha de rebanho, mas liberta. E não estou com isso dizendo que todo
teísta é apenas uma ovelha norebanho, mas muitos são esequer sabem disso,
seria bom que pudessem deixar de ser; então, mesmo que continuassem teístas,
seriam certamente teístas mais conscientes e, consequentemente menos
preconceituosos e melhor informados.

XVII

Outra coisa que me incomoda muito é que toda vez que aceito conversar sobre
deus com alguém, mais hora menos hora, se a pessoa não desiste simplesmente,
ela corta o assunto me acusando de ser infeliz. Sempre vem uma frase mais ou
menos assim: “Eu sou feliz e creio em deus, se você é infeliz e não acredita o
problema é seu.” E isso depois de eu ter afirmado que quando falo sobre a vida e
os horrores da vida estou falando no geral. Que parte de “no geral” essas pessoas
não entendem?

Para esses teístas talvez eu devesse começar cada página desse livro com o
seguinte aviso: “Sou ateia mas não sou infeliz, acho a vida horrível mas a minha
vida é ótima!” Será que assim vão parar de me julgar uma velha infeliz e
frustrada, ou uma “sapatona mal amada” como já disseram mais de uma vez?
Será que sou e serei sempre, na visão de algumas pessoas que me leem,
obrigatoriamente infeliz só porque não passo a vida olhando para o meu próprio
umbigo?

Embora compreenda que em geral nem é culpa dessas pessoas, embora


compreenda que elas estão apenas aceitando como fatos e verdades tudo o que
dizem seus líderes religiosos, embora compreenda que por acreditar nesses
líderes elas não param para pensar mesmo e a fundo nessas questões, chega a ser
revoltante ver que muitas pessoas acreditam em deus porque são felizes e
atribuem a deus o fato de serem felizes enquanto esquecem que milhões de
pessoas são infelizes porque lhes falta até o mínimo que um ser humano precisa
para viver com dignidade.

Na verdade a maioria das pessoas que passaram pelo planeta ao longo de toda a
história da vida do ser humano na terra nunca foi feliz, e a maioria dos que
passarão pelo planeta ao longo de toda a história que ainda resta para a vida do
ser humano na terra nunca será feliz.

Nem passa pela cabeça desses teístas felizes a possibilidade de que deus está
negando a uma imensidão de pessoas a felicidade que dá a eles sem que nada
justifique racionalmente essa preferência; não pensam que se deus existisse isso
seria uma injustiça.

O fato de serem favorecidos por essa injustiça faz com que deixem de ver que, se
deus existisse, a responsabilidade por cada um desses infelizes seria dele. E
sequer percebem o quanto estão sendo egoístas!

Agradecem a deus porque têm bens materiais, saúde, família, amor e esquecem
que milhões de outras pessoas não têm nada disso e que, se existisse mesmo um
deus que deu a eles tudo o que eles têm seria obrigatoriamente o mesmo deus
que teria negado essas mesmas coisas a outros milhões de pessoas, e seria
portanto um deus injusto e mau.

Em geral ouvir os teístas e seus louvores a deus dá na gente a impressão de que


não olham para fora de si mesmos, dá a impressão de que não leem jornal, não
veem televisão, não ouvem rádio, dá a impressão de que nem sequer tomam
conhecimento das desgraças que acontecem a seu redor e com seus vizinhos de
bairro ou rua.

No entanto, o discurso é diferente quando eles – em geral provocados por


alguma calamidade recente – parece que esquecem que são teísta porque não
estão nunca falando de deus eparticipam das citações, referências ecomentários
sobre as coisas ruins que acontecem no mundo a seu redor. Quando se fala das
infelicidades, catástrofes e calamidades, sejam de longe ou de perto e eles
participam da conversa. Então – desde que não apareça nenhum ateu para citar
deus como possível responsável – é como se para eles também deus não
existisse.

Em outras situações e quando tentam explicar sua fé fica parecendo que para
eles a existência de deus torna tudo maravilhoso. Por que será que tantos tendem
a tirar a conclusão de que tudo é maravilhoso só porque tem coisas boas no seu
pequeno mundinho? Será tão difícil assim olhar para fora da sua concha?

Tenho que afirmar novamente: Atenção gente, atenção todo mundo, que fique
bem claro e que todos saibam. EU SOU FELIZ! Tenho onde morar, tenho
amigos, tenho amor, tenho um filho do qual me orgulho, tenho tudo que qualquer
pessoa feliz pode ter e que qualquer pessoa pode querer para ser feliz. Falando
novamente: Eu sou muito feliz! EU.

Meus maiores problemas, minhas maiores raivas e minha maior infelicidade vêm
das notícias que recebo via jornais e revistas, com fotos de fome, guerras e
desastres; vêm das crianças e adultos que vejo jogados pelas ruas sempre que
saio de casa, vêm até mesmo da visão da vitrine do açougue e do olhar altivo do
milionário que passa em seu iate sem enxergar ninguém abaixo da sua linha de
visão medida em dólares.

O que acontece é que tenho senso de ética, tenho senso de moral, tenho senso de
justiça. Não que muitos teístas não tenham também senso de ética, moral e
justiça muitas vezes até maiores e mais apurados do que o meu, mas é que
muitos desses teístas não conseguem pensar da forma que eu penso porque tenho
a mente livre da fé e eles não.

A fé muitas vezes faz com que a ética, a justiça e a moral fiquem em segundo
lugar até mesmo sem que a pessoa perceba, principalmente na hora de avaliar
algumas coisas e situações que envolvem deus mais diretamente.

Meu senso de ética, de moral e de justiça, por ser livre da venda da fé, pode se
aplicar a qualquer coisa ou situação, inclusive a deus, um campo minado para o
teísta. E quando olha para esse deus cuja ideia os teístas cultivam, o que meu
senso de ética, de moral e de justiça vê é um ser que, se existisse, não seria ético,
não teria moral e não seria justo.

Daí que não posso, não sei enão consigo levantar louvores a deus se existir um
deus que me deu tudo que tenho sem ter dado a mesma coisa para o resto do
mundo. Não sou melhor do que o coitado que morre de câncer depois de muito
sofrer e muito rezar, por que mereço ter saúde e ele não?

O que os teístas não se cansam nunca de falar é que se tenho saúde, tenho saúde
porque deus, em sua infinita bondade, me deu saúde, e por isso devo agradecer a
ele e amá-lo; esse discurso não faz o menor sentido para mim. Eu tenho saúde
mas milhões de pessoas no mundo não têm; um deus bom teria dado saúde a
todos, não só a mim, não só a uns poucos privilegiados escolhidos
aleatoriamente.

Por que tenho que agradecer a deus se ele foi injusto? O fato de a injustiça desse
deus ter me favorecido, afinal não morri de câncer e o outro morreu, torna menos
injusto o que aconteceu? Em minha opinião não. Se existisse um deus tão
poderoso quanto os teístas afirmam o que eu teria a dizer para ele seria isso:
dispenso privilégios!

Como já disse antes, acho que as pessoas que usam o exemplo da cura das suas
mazelas como prova da existência de deus estão sendo muito egoístas, egoístas e
desonestas. Elas nem sequer se dão conta do quanto estão sendo desonestas, mas
estão! Elas nem percebem que estão o tempo todo apenas olhando para o próprio
umbigo, mas é o que estão fazendo. Tenho muita pena dessas pessoas!

Elas, muitas delas, são boas, são generosa, são maravilhosas em vários aspectos
da vida, mas nesse particular não são, e nem percebem o quanto são más! Elas
agradecem um ser por ter dado algo a elas e negado a outros e dizem desse ser
que “deus é justo”, mas elas mesmas se vissem um pai dar um prato de comida a
um dos filhos e deixar o outro com fome diriam desse pai que ele é injusto, mau,
criminoso.

É curioso, é estranho, é incompreensível que na cabeça dessas pessoas boas um


mesmo ato, se praticado por um ser humano, é crime ou maldade, mas quando
praticado obviamente e às carradas por seu deus é um bem pelo qual o
favorecido deve sentir-se grato; essa injustiça óbvia não consegue tirar de deus
os qualificativos de bondade e de justiça que querem ver nele a qualquer custo,
mesmo ao custo do próprio sentido da palavra justiça.

Quando afirmo que não acredito no deus delas, muitas pessoas cortam relações
comigo, me chamam de infeliz e frustrada. Algumas ainda me ameaçam com o
inferno eterno ou preveem que um dia algo de bom acontecerá em minha vida e
aí então vou creditar no deus delas. Mas se algo bom acontece para mim ao
mesmo tempo que “algos ruins” acontece para milhões de pessoas, não vou
passar a acreditar em deus, pelo contrário.

Muitas e muitas vezes algo bom já aconteceu para mim. Nesses momentos,
quando na opinião dos teístas eu deveria estar mais feliz, agradecida e certa da
existência, da grandeza e da bondade de deus, é justamente nesses momentos
que duvido mais; e se acreditasse ficaria com raiva dele e não agradecida.

Cada desgraça, cada calamidade, cada caso de doença, cada acidente fatal, cada
morte prematura, cada nascimento depessoa com deficiência física ou mental,
cada assassinato, cada bomba, cada arma, cada dentada que um animal dá na
carne de outro animal para mim são provas cabais da não existência de deus.
Não importa quantos sorrisos me venham, cada lágrima do outro está me
mostrando que deus não tem como existir.

Antes que alguém me acuse de mais essa, deixa esclarecer: Não, não sou boa,
não me acho um poço de bondade, não me acho acima de qualquer crítica. Sei
que sou má, sei que muitas vezes faço coisas erradas, piso na bola, faço
julgamentos injustos, tomo decisões precipitadas e até (isso eu juro que é sempre
sem querer) ofendo ou magoo as pessoas.

Mas pelo menos sou má com conhecimento de causa. Sei que sou má, por isso
estou sempre tentando melhorar; as pessoas que creem e louvam esse deus
injusto são más, ou pelo menos estão sendo más no momento em que o estão
louvando, e não sabem disso, são más, ou estão sendo más, todas as vezes que
agradecem a deus por ter dado a elas o que negou a milhões, mas por não
saberem disso, por não enxergarem essa maldade que praticam e que trazem
dentro delas, não têm como tentar melhorar.

Por que eu e não todo mundo? Por que algumas pessoas e não todas? Por mais
que eu afirme para os deístas que o deus deles, se existisse, seria ruim e injusto
demais para que euao menos o respeitasse, não adianta. Em geral não consigo
sequer explicar o que penso e o que sinto porque; e isso é uma coisa muito
curiosa; os teístas sempre preferem falar do que ouvir, eles estão sempre
pregando, sempre “espalhando a boa nova”, sempre catequizando.

Alguns deles repetem o jargão da minha suposta infelicidade e terminam com a


afirmação oca e sem sentido de que Jesus me ama. Chego a ter dúvidas sobre o
nível de alfabetização esobre a capacidade de compreensão da língua portuguesa
de algumas dessas pessoas.

Eu digo: Se deus me deu, por exemplo, uma casa mas tem milhões de pessoas
sem casa, então não vou agradecer a ele pela minha casa; na hipótese de que ele
exista, vou chamá-lo de injusto e cruel por ter dado uma casa a mim e não a
outros milhões de pessoas que mereciam mais do que eu ter uma casa e que,
apesar disso, enquanto estou confortavelmente instalada entre minhas paredes e
abrigada sob meu teto elas estão dormindo sobre papelão e abrigadas por folhas
de jornais, ou morando embaixo de pontes e viadutos dos centros das grandes
cidades ou ainda se abrigando em casebres caindo aos pedaços espalhados pelos
quatro cantos do mundo.

Eles dizem: Mas se tem tanta gente sem casa não é culpa de deus, é culpa do
homem e da ganância que não permite uma justa distribuição de renda. Aí dou
meu sorriso irônico e respondo: Mas peraí, se tenho uma casa e isso é prova da
bondade de deus que deu essa casa para mim, e se o fato de outro não ter uma
casa é culpa da ganância dos homens tem alguma coisa errada nessa equação.
Será que só eu estou percebendo uma falácia aqui? Dois mais dois está dando
cinco.

Como é que pode logicamente e com justiça um mesmo bem ser dádiva de um
deus para uns e, para outros, ser roubo praticado por humanos imperfeitos?
Explicando melhor: como é que posso atribuir a falta de casa daquele que não
tem casa à ganância dos homens e a existência da minha casa a deus? Como
posso não atribuir a deus a culpa por ter permitido que a ganância dos homens
tivesse roubado a casa dos que não têm casa?

Se deus pode dar uma casa para minzinha, que não fiz nada e que não sou nada
de especial, por que não pode fazer a mesma coisa para outras pessoas que até
fizeram por merecer? Se a ganância dos homens não impediu deus de me dar
uma casa, por que essa mesma ganância o impede de dar uma casa às outras
pessoas? Ele não é poderoso o suficiente e não é bom o suficiente para que seus
desejos sejam maiores do que a ganância dos homens?
E, não esqueçam, isso que estou dizendo sobre a casa vale para tudo, da casa à
existência da doença incurável. Decididamente acho mais fácil acreditar em
acaso e em coincidência. Pensar na possibilidade de existir um deus assim tão
injusto me dá muita raiva; a existência de deus não faria bem à minha saúde.

Nesse ponto dos meus argumentos os deístas em geral param a discussão.


Quando questiono a justiça de um deus que privilegia alguns em prejuízo de
outros, talvez justamente por uma espécie de vergonha inconsciente motivada
pelo fato de já terem me contado o quanto são eles próprios privilegiados, o
quanto são gratos a deus e, por tabela, o quanto não percebem a injustiça por
causa do orgulho de serem favorecidos por ela, eles não conseguem mais
continuar a conversa.

E me contaram tudo sobre o quanto são privilegiados e favorecidos numa


tentativa ingênua de me convencer da existência e suprema bondade de deus!
Então eles param de me responder, ou mandam uma última mensagem me
acusando de infeliz e informando que eles são felizes e por isso creem e
agradecem a deus, às vezes até me acusam de estar sendo mal educada.

Nãoentendoondeéquedeus escondeosenso de justiça de algumas das pessoas que


creem nele, e não entendo também como é que ele tira delas a capacidade de
compreensão de um raciocínio lógico tão simples. Como sei que não vou
entender isso nunca, nunquinha, jamais. Vouapenas reiterar aqui enovamente
minha afirmação: EU NÃO SOU INFELIZ, sou apenas ateia!

XVIII

Todos os ateus têm amigos religiosos. É preciso que tenham por dois motivos;
um é que, ao contrário do que alguns religiosos mais radicais pensam a respeito
deles, os ateus mesmo não consideram os religiosos como pessoas abomináveis,
muito pelo contrário. Todo ateu sabe, conhece e reconhece que existem pessoas
maravilhosas no mundo e à sua volta que são religiosas, e todo ateu sabe
também que essas pessoas maravilhosas pertencem a diferentes religiões e têm
maneiras diferentes de cultuar seu deus.

O outro motivo é que se o ateu for cultivar a amizade apenas de outros ateus,
além de – por um preconceito idiota como o são todos os preconceitos – perder a
oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas que são teístas, ainda ficará
sozinho porque terá muita dificuldade em encontrar outros ateus por perto.
As pessoas maravilhosas que conheço e as que sei que existem mesmo sem
conhecer, está claríssimo para mim que não são maravilhosas por causa da
religião que professam, pelo contrário, a religião que professam é que fica menos
ruim porque essas pessoas estão nelas. Em minha opinião as pessoas são
maravilhosas por elas mesmas, nunca por causa de suas religiões.

Mas o que às vezes me dá até um certo medo é que me parece ser muito
verdadeira a frase de Steven Weinberg que diz que “Mesmo sem religiões você
teria pessoas más fazendo coisas ruins epessoas boas fazendocoisas boas. Para
pessoas boas fazerem coisas ruins é necessária a religião.”

Tudo bem que o mesmo papel de levar pessoas boas a fazerem coisas ruins
também pode ser exercido por outras ideologias nocivas, como foi o caso, por
exemplo, do comunismo na Rússia, mas acontece que a religião é a ideologia
mais facilmente disseminada no mundo e, por isso, é, em minha opinião, a mais
nociva e a mais assustadora.

Sei que para muitas pessoas dizer que a religião é uma ideologia nociva pode
soar como ofensa pessoal, mas não há nessa minha colocação a intenção mais
remota de ofender pessoa alguma, seja de que religião for. Basta que qualquer
teísta olhe para a história e para a história das religiões para que ele mesmo, caso
não seja um fundamentalista, perceba que, como instituição, a religião tem sido
quase sempre e desde sempre uma ideologia negativa.

Para quem, como eu, está de fora e olha para a religião como um todo e não
apenas para uma determinada religião
– por mais que reconheça que existem muitas pessoas boas em todas elas – não
tem como ver a instituição religião de outra forma que não seja essa: uma
ideologia negativa e assustadora que desejo e espero que não cause mais danos
do que já causou porque espero e desejo que essas pessoas boas que aderiram a
essas religiões – e não entendo por que
– não permitam que isso aconteça.

Muitas coisas ruins, além da religião, existem no mundo. Nenhum ateu em sã


consciência acusaria as religiões institucionalizadas de serem os únicos males do
mundo, nem mesmo de serem o maior dos males do mundo, acho. Reconheço
inclusive que há muitos casos de criminosos e infelizes de vários tipos, como
drogados, assassinos, ladrões e vagabundos que, por causa da religião, acabam
por abandonar seus vícios e suas condições ruins e se tornam pessoas melhores;
embora saiba, e os teístas menos fanático têm que reconhecer também, que em
muitos casos essas pessoas saem de seus vícios ou de sua condição ruim mas se
tornam uns chatos fanáticos que dão mais a impressão de ter trocado um vício
pelo outro; mas, enfim, por um outro teoricamente menos danoso.

Sei queter chamado religiãode vício danoso, como no final das contas acabei por
fazer acima é algo que pode novamente ofender muita gente, mas venhamos e
convenhamos, um ser psicologicamente perturbado que troca o crime ou o vício
pela religião se torna facilmente um fanático, é facilmente manipulável e pode
sem grandes trabalhos ser usado para as práticas nada humanitárias às quais
fanáticos de todas as religiões aderiram no passado e aderem ainda hoje em
alguns lugares do mundo.

Bem manipuladas, essas pessoas e depois outras e mais outras podem ressuscitar
práticas tidas como totalmente mortas. Posso parecer excessivamente alarmista,
mas não acho que seja tanto exagero assim da minha parte afirmar que a
crescente influência atual da religião na política, por exemplo, pode desencadear
uma moderna Inquisição.

É comum que se pense que em nosso mundo moderno, cercados das mais altas
tecnologias, estamos longe da barbárie e de um passado de horror e intolerância
que se encontra apenas nos livros de história, mas isso não é totalmente verdade
e basta olhar ao redor para ver. Em praticamente todos os quarteirões há uma
igreja e nelas sempre há um esbravejador profissional capaz de manipular as
mentes que querem ser manipuladas, e elas são muitas.

Não pensar é bom, não pensar é cômodo, não assumir responsabilidades, não
tomar decisões, agir quando e como mandam agir e ainda receber em troca uma
eternidade de delícias num paraíso ilógico mas extremamente tentador quando
finalmente sair desse nosso mundo de dores e sofrimentos é uma proposta
vantajosa demais para não arrebanhar multidões acomodadas; sempre foi assim,
sempre será assim.

Daí que, por ser cética também quanto à crença na hipotética evolução moral do
homem, não consigo ver como impossibilidade uma onda de loucura que
predomine e que leve pessoas – inclusive pessoas boas – a achar, como acharam
no passado, que o livro sagrado deve ser seguido à risca e que alguns
discordantes são responsáveis pelos males maiores e por isso devem ser
eliminados. Seria um retrocesso enorme sim, mas a história mostra que já
retrocedemos antes.

De qualquer forma, alarmismos à parte, o fato é que as pessoas são fracas demais
e manipuláveis demais para perceberem que poderiam ter saído da criminalidade
ou do vício com uma boa dose de força de vontade, de tratamento e de ajuda de
amigos e familiares, isso sempre e certamente se elas, com elas e para elas,
decidissem aceitar essa ajuda externa e colocar suas forças internas em prol
dessa mudança.

Essas pessoas dificilmente percebem que se assim fizessem não precisariam da


religião e não precisariam trocar um vício pelo outro, uma dependência pela
outra. Principalmente depois de cooptadas pelos líderes religiosos, as pessoas
não conseguem ver de forma alguma que poderiam conseguir o mesmo
“milagre” sem a religião e que nesse caso sairiam livres e senhoras de si. Não
sabem que sairiam certamente melhores do que são os fanáticos religiosos
porque nessa altura já se tornaram fanáticos religiosos.

Muitas pessoas que são viciadas ou criminosas têm em si e nos amigos e


familiares; principalmente antes de mergulhar fundo demais e perder todos os
que realmente se importam; a força, toda a força de que precisam para sair dessa
situação, mas não o fazem porque não sabem que têm essa força. Por não
acreditarem em si mesmas elas têm necessidade de atribuir a própria força a um
algo externo e esse algo externo o líder religioso a convence de que é deus.

As pessoas na verdade conseguem muitas coisas por elas mesmas e usando


apenas os poderes humanos que possuem e que podem encontrar à sua volta
mas, por não acreditar na verdade desse poder que têm, sentem-se coagidas e são
convencidas a atribuir o resultado que conseguiram basicamente por elas
mesmas a esse ser imaginário que um espertalhão pode convencê-las de que
existe, de que foi quem as mudou e de que esse ser quer que elas façam coisas
em troca, coisas como dar parte do seu dinheiro, fazer propaganda via pregação
e – como possibilidade apenas – eliminar a concorrência.

O que coloquei acima não acontece apenas quanto aos casos mais graves como
vícios e crimes, acontece também quanto a coisas bem mais simples do que isso,
como uma dor de cabeça de cunho emocional ou uma determinada fobia. É
extremamente comum pessoas afirmarem que foram curadas de mazelas desse
tipo depois que aderiram a determinada religião ou começaram a frequentar
determinada igreja; o que não percebem e não aceitam é que elas se curaram a
elas mesmas, que se tivessem pensado na própria força e na própria capacidade
em lugar de pensar em deus ou em determinado santo teriam conseguido o
mesmo resultado sem ter de pagar dízimo.

Essas pessoas também são manipuláveis e também podem, talvez com um pouco
mais de trabalho do que os exemplos anteriormente mencionados, ser
convencidas de que estão fazendo determinada coisa porque “deus quer”. Na
verdade muitas pessoas já foram convencidas disso com respeito a algumas
coisas, elas acreditam que pagar o dízimo é algo que deus quer que elas façam e
os resultados das eleições mostram todo ano que muitas pessoas acreditaram que
deus queria que votassem em determinado candidato; ou no próprio pastor
quando esse se candidata a fim de impor os dogmas de sua religião como leis do
estado.

E acreditaram nisso porque o padre ou pastor cabo eleitoral ou ainda o pastor


candidato disse que era assim. E, seguindo essa linha, com um pouco mais de
trabalho ainda por parte dos aproveitadores fanáticos, essa determinada coisa
que “deus quer” que façam pode ser inclusive algo que fere os direitos humanos.
Chegar a isso não é tão impossível assim quando se é levado a acreditar que um
livro que estimula preconceito é a “palavra de deus”.

Sei perfeitamente que, no caso dos vícios pesados, fui um tanto quanto
insensível e talvez até exagerada nessa minha aparente certeza de que os
viciados crônicos conseguem mesmo, caso queiram, sair do vício sem a ajuda da
religião. Sei que não é fácil, sei que vão dizer que estou falando de algo que não
tenho ideia do que seja porque nunca vivi isso “na pele”, mas a minha razão para
dizê-lo baseia-se em dois pontos principais.

O primeiro é o fato de ver e saber que as pessoas que se recuperam pela religião
o fazem através de diversas religiões; acho que todas as religiões do planeta,
passadas e presentes, têm sua lista de fieis “ex-alguma-coisa”; então concluo que
não é o deus ou a religião que “cura” a pessoa, mas a pessoa mesma que, levada
pela força de sugestão desse grupo, por suas promessas atraentes e pelas
possibilidades de entrosamento e sentimento de importância, exclusividade e
preferência que as religiões incutem naqueles que abraçam suas crenças,
consegue se curar; acho que a pessoa consegue encontrar a força que não tinha
por conta do amor próprio que passa a ter.

Outra razão é que já vi uma pessoa que saiu do vício das drogas sem ser através
da religião, saiu pelo próprio desejo – nesse caso específico – de ter uma família,
um trabalho, uma vida “normal”, daquele tipo que muitas vezes nos deprimem
mas que em alguns momentos e para algumas pessoas pode ser um objetivo na
vida.

Nesse caso que conheci de perto alguns podem dizer que foi o amor romântico
que conseguiu o “milagre”, em minha opinião e sem tirar a importância do amor
romântico, foi mesmo o desejo burguês de ter uma casa com geladeira, filhos e
contas pra pagar.

Pode parecer deprimente à primeira vista, mas a forma como vi essa pessoa
assumir suas obrigações de marido, pai, companheiro, provedor, e o fato de que
foi dessa forma que se identificou como pessoa por todos os anos seguintes, me
faz pensar que estou certa.

Enfim, cada pessoa tem seus sonhos e seus desejos e alguns sonhos, por mais
que pareçam pequenos a muitos de nós, podem ter para outros, a força
descomunal que frequentementedizemserpossívelapenasnatranscendência. Eu é
que não vou tentar negar o sonho de alguém.

Enfim, oque espero e desejo como ateia é que as pessoas que são boas, justas e
íntegras acima e apesar da religião a que aderiram estejam em número suficiente
e tenham força suficiente para impedir que todos os meus receios alarmistas se
concretizem um dia.

Não aceito a existência de deus como uma verdade e por isso não tenho fé nele,
mas quero e quero muito crer nas pessoas boas e na capacidade delas de, se não
conseguirem fazer um mundo melhor, ao menos impedirem que esse piore
muito.

XIX

Tem gente que acredita em deus, estão em maioria, são felizes porque colocam
tudo “nas mãos de deus” e vivem suas vidas, alguns confundindo piedade com
egoísmo e fé com discriminação e outros realmente construindo vidas
iluminadas dia a dia pelo bem que estão sempre plantando à sua volta. Existem,
em contrapartida, aqueles que, como eu, não conseguem, não sabem, não têm
condições de acreditar nem em deus nem em paraíso eterno porque quando
pensamos nessa possibilidade, em lugar de nos trazer conforto, ela nos revolta e
nos enoja.
Se disséssemos que acreditamos estaríamos mentindo, e já fizemos isso durante
séculos para evitar a fogueira da Inquisição. Há lugares do mundo onde os ateus
mentem ainda hoje porque negar o deus que todos cultuam ainda é crime
passível de pena de morte em alguns países. Mesmo em países ocidentais e que,
pelo menos no papel, se definem como democracias, como é o caso do Brasil,
nem todos os ateus assumem seu ateísmo em qualquer situação e circunstância,
afinal, nem todos gostam de receber olhares atravessados ou ouvir gritos quase
histéricos do tipo “Como? Você não acredita em deus?” em plena rua ou em
outros lugares públicos quando alguém tenta pregar suas crenças e você,
educadamente, diz que é ateu.

Estou falando de experiências que eu mesma já tive; em uma dessas vezes todo
mundo no restaurante se virou para olhar e meu marido achou que a mulher
fosse me bater. Felizmente ela não o fez, era bem maior e eu teria apanhado feio.

De qualquer forma, o que quero dizer é que ateísmo não costuma ser uma
escolha. Na maioria dos casos, se não em todos, não é por querer, não é de
propósito, é por incapacidade mesmo; nós simplesmente não conseguimos
acreditar no deus, ou nos deuses que nos mostram, e por não conseguir
acabamos perdendo a oportunidade de fazer parte de um grupo de apoio muito
forte e perdemos o direito a um consolo muito confortador diante dos muitos
problemas que, como todo ser humano, nós, ateus, também temos.

Ou seja, no final das contas parece que quem sai mal nessa história é mesmo o
ateu, seja pela rejeição provocada pelo preconceito, seja pelo risco de vida
provocado pelo fanatismo – felizmente não aqui no Brasil, ainda – ou mesmo
pelo fato de que crer é confortador quando se consegue crer e esse tipo de
conforto é inacessível a nós. Mas, mesmo assim e apesar de tudo, nós não
conseguimos acreditar. Será mesmo por pura teimosia?

Tem gente, inclusive, que setorna ateia justamente quando procura ficar mais
próxima de deus. Ouvi uma pessoa contar que foi ler e pesquisar a bíblia e outros
textos religiosos com o objetivo de encontrar argumentos para poder dizer e
provar para os ateus que eles estavam errados; o que aconteceu foi que todo
argumento ateu que tentava derrubar, porque para ele e sua fé parecia claro que
tal argumento só podia ser falso ou mentiroso, acabava se mostrando correto. Ele
contou que isso era mais desconcertante ainda quando se tratava do que os ateus
diziam a respeito da bíblia.
Um ateu falava de uma coisa terrível que deus fez e dizia que estava na bíblia,
ele ia procurar e estava mesmo. Daí ele conversava com um pastor ou teólogo –
maior conhecedor da “palavra” – e este dizia que o ateu via a passagem fora do
contexto, então ele lia mais e não conseguia perceber nenhum contexto que
justificasse aquele horror. Essa pessoa viu que simplesmente não há razão lógica
nenhuma para acreditar que deus existe e se tornou um ateu militante.

Claro que nem todo teísta que estuda para argumentar com ateus se torna ateu,
menos ainda ateu militante, mas o risco existe e uma vez que procurar deus pode
levar ao ateísmo, parece mais segurofazer como muitos teístas fazem: acreditam
que já o encontraram e param de pensar nisso.

Tem gente que faz exatamente assim. Uma amiga minha muito querida me disse
com todas as letras exatamente isso: “Prefiro não pensar nisso porque se pensar
sei que vou parar de acreditar e não estou preparada para viver sem deus na
minha vida”. Eu não consegui deixar de lembrar de quando era pequena e ouvi
uma menina dizer que papai Noel não existia, saí de perto e não quis pensar
nisso, não quis nem falar mais com aquela menina porque queria continuar
acreditando em papai Noel.

Lembro que procurei minha mãe e meu pai e confirmei com eles que papai Noel
existia sim, disse a mim mesma que meu pai e minha mãe sabiam muito mais do
que aquela menina boba e consegui continuar acreditando em papai Noel mais
um tempo. Não muito tempo.

Mas quanto a deus não consegui usar o mesmo processo, eu já sabia há muito
tempo que meu pai e minha mãe não sabiam mais do que os cientistas e filósofos
que li; e como li a bíblia de capa a capa, não tive como não comprovar por mim
mesma que tudo aquilo simplesmente não fazia sentido. Fui incapaz de fazer
como minha amiga, mas não vou nunca tentar convencê-la de que está errada.

O fato é que algumas pessoas, quando se arriscam a pensar mais a fundo – se


conseguirem se libertar do medo do castigo ou do inferno e abrir mão da
segurança que a crença lhes dá – sentem que não ficariam bem e não viveriam
nunca em paz com esse deus criador caso acreditassem na existência dele. Sou
uma dessas pessoas; não consigo ver nem bondade nem justiça nessa ideia que
chamam deus.

Penso que, pelo menos nesse assunto, sou racional e teimosa demais para aceitar
sem questionar, e quanto mais questiono mais vejo que os pontos negativos
desse deus são muito maiores e estão em muito maior quantidade do que os
pontos positivos que tanto insistem em apontar os que creem.

O que de verdade faz sentido para mim é que só existem pontos positivos nas
pessoas que acreditam em deus, não no próprio deus. E comprovo isso com
muita ênfase quando vejo pessoas boas se recusarem a obedecer determinações
erradas da sua religião e pessoas más totalmente dispostas a abraçar até mesmo
as determinações religiosas mais terríveis. E eu vejo isso o tempo todo.

Acho que as pessoas que são excessivamente questionadoras e teimosas, quando


por alguma razão conseguem se libertar do medo que a religião sempre tenta
incutir em todos nós desde a infância, sentem que têm que ser ateias para não
odiar deus porque elas sabem que, caso existisse, os sentimentos que seriam
capazes de nutrir por ele seriam esses: ódio, aversão, asco, nojo, horror. E é
odiável odiar! O amor é tão melhor e tão mais gostoso! Fica tão mais fácil e tão
tranquilo simplesmente perceber que deus não existe e que somos livres para
amar as pessoas reais em lugar de uma invenção que só nos desperta sentimentos
negativos.

Ironicamente, apesar de ser sempre acusada de odiar deus porque não tenho
competência para viver bem, o fato é que o ateísmo é para mim uma maneira de
não odiar. Eu me sinto livre e leve sendo ateia! Meu ateísmo me permite aceitar
a vida como um acaso fortuito, raro e às vezes maravilhoso; graças ao fato de
não acreditar em deus posso aceitar a natureza comoparte de um todo
equilibrado sem consciência, sem culpa e sem propósito. Por causa do meu
ateísmo posso ver as coisas como são sem me revoltar, posso aceitar a vida e a
natureza como elas são sem me sentir injustiçada e aprisionada por um ente mau
e sádico. Eu não me sentiria livre se acreditasse.

É comum, quando exponho minha opinião sobre como o deus em que as pessoas
acreditam é terrível – o que significa apenas explicar como deus seria
abominável se existisse – receber como resposta, em tom piedoso e algumas
vezes carregado de ironia, frases desse tipo: “Você deve ser muito infeliz para
odiar deus tanto assim”, ou a piedade vem em forma da pergunta “Por que você
odeia deus? Provavelmente você passou ou está passando por algum sofrimento
muito grande e isso fez com que você brigasse com deus. Entregue seu coração a
ele que essa dor passará”.
A razão de falarem assim com os ateus pode ser que os teístas talvez não
consigam conceber, nesse caso, a lógica de que não se pode odiar o que não
existe; como para eles deus existe e apenas aventar a hipótese contrária é
impensável (um pecado mortal) eles simplesmente não conseguem perceber que
não podemos odiar deus. Mas pode ser também que estejam apenas tentando
desmoralizar o ateu
– principalmente se tiver ouvintes – e “ganhar” a discussão.

Em um e no outro caso o teísta está enganado porque ele pode até convencer
outros teístas que pensam como ele – se é que se pode chamar isso de convencer
– mas para nenhum ateu esse argumento pode fazer qualquer sentido.

Eu não odeio deus, eu o odiaria SE ele existisse, e muitas vezes odeio o que essa
ideia-deus faz com as pessoas, odeio o fanatismo que essa ideia-deus coloca nas
pessoas e que as leva a serem preconceituosas, a rejeitar o diferente a ponto de
querer destruí-lo, a cometer crimes terríveis que vão desde a segregação até o
genocídio; odeio essa capacidade que, em nome dessa ideia-deus, as pessoas têm
de pensar e, infelizmente, fazer as coisas mais absurdas e prejudiciais, de
cometer crimes até, sem sequer se darem conta disso e acreditando, porque a
ideia-deus incutiu essa crença nelas, que estão fazendo algo de bom. É isso que
odeio; não deus.

Além disso, muitos ateus não são infelizes, não passaram nem estão passando
por nenhuma “provação terrível” e não se tornaram ateus simplesmente como
uma brincadeirinha infantil de “Tô de mal” com deus. Não posso negar que
acontece, algumas vezes, de o crente estar certo sobre determinada pessoa que se
diz ateia, mas o que acontece em geral é que pouco tempo depois essa pessoa
acaba voltando para a igreja, em alguns casos apenas muda de uma igreja para
outra que agora define como “a verdadeira” e sente que se disse ateu apenas
porque estava na igreja “errada”.

Em muitos casos essa pessoa dá seu testemunho no púlpito, às vezes até se torna
um pastor, prega com convicção e ganhamuitosadeptossedefinindocomo“ex-
ateuconvertido”. Há casos inclusive de pessoas extremamente cultas que se
diziam ateias, mas que por alguma razão se converteram e se tornaram
verdadeiros ativistas da “fé-racional”, dois nomes que se enquadram nessa
definição são C. S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, e o doutor Francis
Collins, ex-diretor do Projeto Genoma Humano, duas pessoas que
transformaram suas conversões em livros e influenciaram muitas outras pela
inteligência com que manipularam seus argumentos em favor da crença.

Mas na maioria dos casos – e possivelmente em todos – o fato é que na verdade


essas pessoas nunca foram ateias. Acho que um ateu mesmo não deixa de ser
ateu, não sou especialista, não acho que possa provar; o livro Cérebro e Crença,
de Michael Shermer (SHERMER, 2012) me deu respaldos científicos para me
fazer ainda mais convicta de que minha tese não é nenhum absurdo.

Na minha opinião, simplesmente não existem ex-ateus


– e isso vale para a pessoa comum que “brigou com deus” porque teve uma
grande perda, um grande desgosto, um grande problema, rezou, pediu e não foi
atendido; vale para a pessoa comum que apenas “ainda não tinha encontrado a
igreja certa” e vale também para os grandes cérebros como C.S. Lewis e dr.
Francis Collins, que na minha opinião queriam crer mas ainda não tinham
encontrado maneiras de justificar “racionalmente” essa crença – acho que,
independente do “depoimento” que deem ou dos livros que escrevam, não há
essa possibilidade de um ateu se tornar teísta, menos ainda teísta convicto e
militante, isso porque para mim Albert Einstein estava certo: “A mente que se
abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original”.

Por favor, que não fiquem ofendidos os eventuais teístas que me lerem, se é que
algum o fará; não estou chamando teístas de ignorantes; não sou ignorante a
ponto de desconsiderar a existência de teístas muito inteligentes e racionais,
conheço e conheci pessoalmente vários deles, seria extremamente idiota da
minha parte negar isso. O que afirmo é que para se tornar ateu é preciso se
libertar de correntes muito fortes, é preciso se conscientizar de que havia
correntes, é preciso usar para com a religião a mesma lógica que usamos para
outros aspectos da vida, é preciso analisar os aspectos religiosos muito mais a
partir do não-eu do que a partir do eu. Não é fácil e a maioria das pessoas –
independente do seu grau de cultura ou da sua inteligência
– simplesmente não consegue. Mas quando alguém faz isso, não há como voltar
atrás. Por isso digo que não acredito em deus, nem em ex-ateus.

XX

Algumas pessoas deixam de crer em deus quando enfrentam problemas graves,


mas não é o caso de todas as pessoas, pelocontrário, achoque os que se tornam
descrentes por causa de acontecimentos ruins na própria vida estão em minoria,
mas existem. Algumas pessoas sequer podem dizer quando deixaram de crer,
apenas descobrem que não acreditavam, descobrem que já desde muito não
negavam deus simplesmente porque se negavam a pensar no assunto e, quando
pensaram, essas pessoas viram que a crença firme que costuma estar dentro dos
teístas nunca esteve dentro de si; ou só existiu na infância, juntamente com a
crença na infalibilidade do pai e na existência do papai Noel. Foi o que
aconteceu comigo.

Tem gente que deixa de crer por raiva, acontece uma desgraça ea pessoa
vêquedeus, embora tenha sidochamado, nãoestevelá para ajudareconclui
queelenãoexiste. Eupasso por isso praticamente toda a semana, não no sentido de
deixar de crer, pois quem já não acredita não pode passar a não acreditar, mas no
sentido de reforçar minha descrença. É até irônicoofatodequea mesma catástrofe,
a mesma desgraça, a mesma doença que faz com que muitas pessoas reforcem
sua fé porque, milagrosamente, escaparam dela, obtiveram ajuda de onde não
esperavam, foram curadas faz com que eu me sinta mais e mais convicta de que
esse deus de superpoder e extrema bondade não existe e não tem como existir.

Nunca deixo de me surpreender com aqueles que passam a crer em deus, e às


vezes se tornam fanáticos, quando enfrentam um problema grave e o superam. É
espantoso que alguém consiga fazer isso! A situação fica assim: Milhares de
pessoas têm câncer ou AIDS ou outra doença grave todo ano e milhares de
pessoas morrem dessas doenças todo ano, mas se a dona Maria tem um câncer e
consegue escapar, toma issocomo prova de que deus existe e a curou porque ela
rezou (ou orou) e pediu a ele que a curasse; e a dona Maria esquece os milhares
de pessoas que tiveram câncer, que rezaram (ou oraram) e que ele não curou. É
como se dona Maria estivesse afirmando que deus curou a ela porque ela é
melhor do que todo mundo e ela merece mais do que todo mundo. Para mim isso
é um exemplo de coisas ruins que as pessoas boas só conseguem pensar quando
o assunto envolve a tal fé.

Já ouvi diversas vezes pessoas de níveis culturais e financeiros diferentes


dizendo as mesmíssimas coisas. É sempre uma história comovente, como uma
doença grave, um acidente quase fatal, o nascimento prematuro de um filho, o
sofrimento de ter um filho ou um irmão perdido pelas drogas ou pelo crime; daí
essa pessoa, humilde ou não, semianalfabeta ou não, pobre e humilde ou não,
conta com todas as cores a sua história de sofrimento e suas orações, seus
pedidos a deus e sua fé; então ela conta o “milagre”; ela ou seu ente querido se
curou; ela e/ou seus entes queridos saíram ilesos do carro que deu perda total;
seu filho ou seu neto nascido prematuro e pelo qual os médicos não davam
esperanças é hoje uma criança esperta e saudável ou um adulto responsável que
dá orgulho à família; seu filho, seu irmão, ou até ele mesmo, trocou o “baseado”
pela bíblia e hoje prega a palavra de deus em algum lugar.

E todos eles estão sempre convictos, e muitas vezes acham que vão me
convencer também, de que a história deles prova, sem deixar sombra de dúvida,
que deus existe, que deus é bom e que deus “opera milagres”. Em geral eu nem
me atrevo a dizer o que penso, não tenho coragem de lembrar as muitas milhares
ou os muitos milhões de histórias parecidas com a dela e que, apesar de todas as
orações, apesar de todos os pedidos e apesar de toda a fé não tiveram o mesmo
final. Em geral não falo nada porque não quero ser desrespeitosa e mal educada
e também porque em muitos casos terei que ouvir essa pessoa tentar, das
maneiras mais tacanhas e absurdas possíveis, me explicar por que ela mereceu o
milagre e os outros não mereceram.

As explicações vão desde o fatídico “Os desígnios de deus são inescrutáveis para
os homens” até o absurdo e preconceituoso comentário de que provavelmente as
outras pessoas não eram de sua igreja ou não tinham a força de sua fé. Esse tipo
de tentativa de justificar o porquê de deus dar uma vida boa a alguns e um
caminho de desgraças para outros costuma mostrar, a mim que estou de fora e
que de fora ouço, o lado pior de muitas pessoas que eu julgava boas.

Ouvir alguém que eu considerava uma pessoa boa e íntegra dizer que o filho
daquela mulher morreu de câncer depois de anos de sofrimento porque a mãe é
uma fofoqueira, uma pessoa que só vai à igreja quando precisa de alguma coisa;
outra me disse que a mulher teve um filho com deficiência mental porque é “do
candomblé”; são perigos que corro se não me calar diante das histórias de
milagres que muitos vêm me contar. Então, em geral eu me calo.

Para mim parece ser muito convencimento, muita pretensão, muito egoísmo por
parte das pessoas agirem e pensarem no que diz respeito a esse deus de forma
agradecida e, no entanto, é exatamente como elas pensam e agem porque a fé
não permite que se deem conta disso.

Se um ônibus escolar sofreu um acidente e de trinta e cinco crianças só uma


escapou e é o filho da dona Maria, ela vai dizer que foi milagre e que deus é bom
e misericordioso porque salvou seu filho; e danem-se as outras trinta e quatro
crianças que morreram e os sessenta e oito pais que perderam seus filhos! Essa
visão tacanha provoca muita raiva em um ateu mais questionador e mais
consciente, e, possivelmente provoca raiva também em um teísta que não seja
tão cego a ponto de ter seu raciocínio assim tão embotado.

Na minha cabeça não cabe esse conceito religioso de agradecer a deus por algo
que se tem, que é básico e que milhões de pessoas no mundo não têm. Alguém
mentalmente saudável e eticamente decente não poderia, não saberia, não
conseguiria, a não ser que esteja totalmente cego pela fé, agradecer a deus por
ter, por exemplo, um teto sobre sua cabeça enquanto milhões de pessoas no
mundo todo, muitas delas ali mesmo na sua cidade, não têm onde morar e
dormem pelas calçadas.

Sei que muitas pessoas fazem isso, mas não entendo; ou entendo sim, entendo
que essas pessoas o fazem porque não pensaram a respeito a ponto de se darem
conta do absurdo do que estão fazendo, elas rezam e oram sem perceber o
terrível egoísmo contido nas palavras que pronunciam. Só assim eu consigo
entender.

Quando leio aquela frase que está pregada em muitos carros que passam por
mim: “Deus é fiel”, eu me pergunto: Fiel a quem? Fiel a quê? Um professor de
português ou um aluno mais ou menos aplicado sabe que falta um complemento
nominal aí, qual é ele? Afinal, quem é fiel é fiel a alguém ou a alguma coisa, a
quem ou ao que deus seria fiel? À humanidade diriam os teístas, “Deus nos
amou tanto que nos deu seu filho para morrer na cruz por nossos pecados”,
diriam certamente os cristãos; mas eu vejo os absurdos e os horrores que
acontecem todos os dias pelo mundo e que vêm acontecendo sempre e sempre ao
longo da história e não sinto essa fidelidade realmente patente do final das
contas.

Então, para mim, o caminho natural foi acreditar que não existe um ser tão
horrível a ponto de criar esse circo de horrores que é a vida, esse palco de morte
que é a natureza, esse poço escuro e tenebroso que é a alma humana; alma que o
homem acredita divina, que o faz capaz de se sentir bom, nobre e perfeito
enquanto discrimina, mata, prende, subjuga, devora.

Apesar de amar muitas pessoas e de saber que existem pessoas boas e decentes
no mundo, muitas vezes sinto raiva de saber que o ser humano como raça é esse
bicho nojento, e sinto vergonha de pertencer a essa raça e de ser também, em
última análise, um bicho nojento.
E por causa dessa raiva, para não me tornar ainda mais impotente estendendo
minha raiva ao deus que dizem ser o responsável, o criador dessa raça nojenta à
qual pertenço, preferi me permitir pensar sem as amarras da fé, e foi assim que
me vi incapaz de acreditar que deus existe e capaz de perceber que não somos
tão nojentos assim; somos apenas animais. É por isso que me sinto muito feliz
por ser ateia.

Mas, mesmo me definindo como ateia, preciso admitir que, pelo pouco que sei
de ciência e pelo pouco que sei sobre o quanto a ciência sabe a respeito do
universo, da matéria e da energia, parece impossível – pelo menos por enquanto
– negar com toda a certeza a possibilidade de que possa existir, ou ter existido,
uma força, um ente, um ser, uma espécie qualquer de “Designer”, “Criador”,
“Fonte”, “Projetista”, “Relojoeiro” ou como quer que o chamem, que seja, ou
tenha sido, responsável, consciente ou não, pela criação do universo como o
conhecemos.

Mas acho também – e acho mesmo, com um tipo de acho muito forte que está
quase mais pra certeza do que para “achômetro” – que essa impossibilidade de
negar total e definitivamente a hipótese de um tipo qualquer de agente
responsável pela nossa existência não serve absolutamente para sustentar o
argumento da existência de deus, embora seja o argumento mais usado por
muitos dos teístas mais inteligentes e mais cultos.

Por mais que me defina como ateia, por mais que afirme que deus não existe,
como não sei nada sobre se o universo foi criado ou se sempre existiu, sou
obrigada a aceitar a hipótese de um tipo de “criador” no mínimo no mesmo nível
que aceito a hipótese de que seres inteligentes de outro planeta um dia nos
visitarão. Ou seja; acho muito difícil, mas
nãotenhocomodescartarcompletamenteessapossibilidade. Porém, em minha
opinião, para que essa teoria seja coerente, essa entidade hipotética não poderia
ser chamada de deus e poderia menos ainda ser confundida ou associada de
qualquer forma com o deus cristão.

Daí que, independente de existir ou não uma “mente” responsável pela criação, o
que afirmo com toda a convicção é que não existe deus. Dizer que essa mente
responsável (possível enquanto não temos nenhuma outra explicação
inquestionável) é deus seria ainda mais falso do que dizer que um balde de água
é uma pessoa pensando no fato de que o corpo humano se constitui, em mais de
70%, de água. Acho que no segundo caso o paralelo é menos absurdo.
A hipótese de que o universo tenha algum tipo de responsável pela sua
existência, pelo que posso perceber, gera uma série bastante grande de outras
hipóteses e, pelo que posso perceber, nenhuma dessas hipóteses seria
suficientemente semelhante à definição que os teístas dão de deus para que
qualquer uma delas possa ser chamada por esse nome sem que pareça uma
apropriação indevida.

Até onde sei, as hipóteses aventadas para explicar um suposto início de um


universo, quando aventadas a partir de raciocínio e não de simples fé religiosa,
são hipóteses que, em sua construção, por mais “fantasiosas” que sejam, evitam
ser elaboradas sobre paradoxos evidentes, o que não é o caso de deus. Vou tentar
relacionar algumas das possibilidades em que posso pensar, ou me lembrar de ter
ouvido em conversas com outros ateus.

O responsável pelo início de tudo pode ser uma entidade inteligente, porém tão
diferente e tão maior e superior a nós que essa distância tornaria impossível que
esse ser sequer possa ter conhecimento de nossa existência. Numa comparação
um tanto tosca nossos sentimentos, pensamento, necessidades e nossa própria
existência podem ser, para esse ser, algo tão alheio e desconhecido como seriam
para nós os sentimentos, pensamentos, necessidades e existência de um parasita
que habitasse o interior do corpo de uma ameba – se esse parasita existisse e
tivesse sentimentos, pensamentos e necessidades.

Imagine: se para a maioria de nós é um “fato” desconhecido e totalmente


inalcançável – e sem muito interesse – a possibilidade de existirem sentimentos,
pensamentos e necessidades conscientes em uma ameba de cuja existência temos
conhecimento, porque podemos vê-la pelo microscópio, qual seria nossa empatia
e a importância que daríamos aos sentimentos, pensamentos e necessidades de
um parasita dessa ameba? Nós, nossa existência, nossos sentimentos,
pensamento e necessidades seriam, para esse ser, tão nada quanto é para nós a
existência, os sentimentos, os pensamentos e as necessidades desse parasita de
uma ameba. Talvez menos ainda porque pelo menos teríamos algo em comum
com o parasita da ameba que esse ser não teria conosco: pertenceríamos à
mesma realidade e ao mesmo universo.

Não estou sendo original ao dizer que outra possibilidade seria a de que somos
parte, mas uma parte muito ínfima, de um corpo do qual cada galáxia é algo não
semelhante exatamente, mas comparável a um átomo, ou então a uma célula.
Talvez esse corpo tenha sido criado por algum outro ser, mas de qualquer forma
pode ser um corpo em desenvolvimento e isso “explicaria” o fato, comprovado
pela ciência, de que o universo está se expandindo.

Sei que essa hipótese apenas transferiria a questão “quem criou” do universo que
conhecemos para o “corpo” de que falo, mas de qualquer forma nos leva ao
mesmo problema dahipóteseanterior:umserdiferentedemais,distantedemais e
com zero possibilidade de saber sobre nossa existência. Da mesma forma como
não poderíamos saber da existência – e menos ainda dos sentimentos,
pensamento, necessidades de seres vivos que habitassem um elétron de um dos
átomos do nosso corpo.

Há ainda a hipótese de que tenha existido uma mente responsável pela criação
do universo, mas que essa mente não era eterna nem imutável e que ela
simplesmente deixou de existir, talvez muitos milhões de anos antes do
surgimento do homem na Terra; ou do surgimento da própria Terra. Ou então o
criador foi simplesmente um tipo de força externa e sem consciência agindo por
um tipo de impulso inconsciente comparável a uma “inércia sem impulso”, um
tipo de energia sem mente que não conhecemos porque não podemos ter contato
com ela.

E, se forçarmos nossa imaginação com certeza poderemos pensar em mais um


bom número de hipóteses, algumas completamente absurdas na aparência, mas
tão difíceis, ou impossíveis, de falsificar que não há como negar a elas o status
de “hipóteses”, embora à imensa maioria delas, se não a todas, falte muito para
que possam atingir o status de hipótese científica.

Mas, tudo bem, o deus bíblico também é uma hipótese que não tem direito ao
status de hipótese científica. Pelo menos não para os cientistas que praticam a
ciência de maneira séria, responsável e imparcial no quesito pesquisar as origens
do universo. E isso é sim mais um “achômetro” meu.

E vale lembrar que em todas essas hipóteses e nas muitas mais em que alguém
consiga pensar, esse “criador” pode ser sempre algo cuja “mente” não tem
nenhuma relação com o conceito que usualmente temos de mente, cuja
“inteligência” não tem nenhuma relação com o que usualmente chamamos de
inteligência e até mesmo cuja “existência” não tem nenhuma relação com o que
usualmente chamamos de existência.

O que me parece muito claro é que, existindo qualquer “criador” de qualquer


tipo que seja, nunca será e nunca poderá ser qualquer coisa sequer parecida com
o que os teístas chamam de deus. E é por isso que, apesar de não me atrever a
negar a possibilidade de que o universo possa ter sido criado, eu me defino como
ateia; total e completamente ateia.

Além disso, é preciso que se diga que, quando raciocinamos mais


profundamente a respeito de todas essas coisas, surge ainda uma outra conclusão
bastante viável e, na minhaopinião,extremamentedefensávellogicamente.Vamos
pensar um pouco nisso: Universo, pela definição da palavra, é TUDO aquilo que
existe. Se tomarmos esse sentido na forma ampla que a definição sugere, temos
que, qualquer criador, consciente ou não, do universo na verdade não teria como
ser criador do universo porque, em existindo, esse criador seria parte do que se
define como universo. Daí que há uma impossibilidade lógica de o universo ter
sido criado por algo fora do universo porque há uma impossibilidade lógica para
a existência de algo fora do universo.

O universo não pode ter “fora”, o universo não pode ter limite, o universo não
pode ter sequer nada. Mesmo o nada seria parte do universo. Então, o eterno
aqui, o infinito, o “incriado”, seria o universo e, se existe ou existiu algo,
consciente ou não, que criou o universo que conhecemos, o que podemos
concluir logicamente é que existe algo, que é universo e que não conhecemos, e
que esse algo, que está no universo como um todo e cujo todo não conhecemos,
pode ter criado a parte do universo que conhecemos. Complicado, não? Mas, em
minha opinião, muito mais lógico do que a ideia de um deus que criou um
planetinha minúsculo como se fosse o centro de tudo e um ser insignificante
como se fosse o máximo de perfeição.

XXI

Tem gente que acredita em deus, estão em maioria, são felizes porque colocam
tudo “nas mãos de deus” e vivem suas vidas; alguns confundindo piedade com
egoísmo e fé com discriminação e outros realmente construindo vidas
iluminadas dia a dia pelo bem que estão sempre plantando à sua volta (Tudo
bem, eu sei que já disse isso antes, é só pra reforçar mesmo).

Uns e outros estão esperando pela eternidade no paraíso, uma felicidade eterna
prometida para depois da morte. Uma felicidade eterna que desfrutarão
“sentados à mão direita de deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra”,
mas dessa regalia não desfrutaremos todos porque, de acordo com a bíblia e com
a pregação e discurso de grande parte dos teístas, há os que não terão direito
sequer a vislumbrar esse paraíso de total e plena felicidade porque lá estarão
apenas aqueles que conseguem crer e obedecer.

O que eu não entendo é como esses teístas conseguem pensar na possibilidade de


um paraíso do qual estarão excluídas algumas das pessoas que eles amam,
principalmente se seguirem, como muitas vezes afirmam seguir, o mandamento
de Jesus: “Amai ao próximo como a ti mesmo”.

Dentro do meu entendimento leigo e limitado, dizer que ama o próximo como a
si mesmo deveria significar uma total incapacidade de imaginar ou aceitar que
um lugar possa merecer o nome de paraíso sem que todos esses que se ama
como a si mesmo estejam lá. E imaginar um paraíso dentro do qual esteja
presente o conhecimento e a certeza de que aquele que se ama como a si mesmo
está no inferno, sendo consumido sem ser consumido, pelas eternas chamas do
sofrimento perene me parece mais difícil ainda.

Minha própria mãe é uma dessas pessoas a quem a porta do paraíso estará
aberta, e eu sou, na concepção dos adeptos da religião da minha mãe, a pessoa
que não terá direito a sequer vislumbrar tal porta. Por mais que minha mãe
explique que ainda tem esperança de que eu um dia vou “enxergar” a verdade, e
por mais que ela tente se enganar dizendo que sou boa demais e por isso irei sim
para o paraíso – a coitada criou para mim uma espécie de “passe especial” – não
posso ver sentido nisso.

Caso estivéssemos em campos opostos, eu recusaria qualquer paraíso por não


existir, na minha visão, possibilidade de paraíso sem que meu marido, minha
mãe, meus irmãos, meus amigos e, principalmente, meu filho estejam nele. E
mais, eu recusaria qualquer paraíso se tivesse a certeza de que qualquer pessoa,
mesmo uma total desconhecida, estará queimando eternamente no inferno.

Para algumas pessoas pode parecer difícil compreender isso, mas, na hipótese de
o deus bíblico existir, eu recusaria qualquer paraíso até mesmo se tivesse a
certeza de que não encontraria lá as pessoas terrivelmente más, como Hitler,
Torquemada ou Átila porque essas sim, estariam no inferno.

Se existisse um paraíso, eu só aceitaria estar nele se TODOS os seres vivos que


existem, que já existiram e que existirão também pudessem estar nele; todos,
sem absolutamente nenhuma exceção. Isso porque, para mim, se o deus bíblico
existisse, ELE seria o único ser que deveria estar queimando no inferno, só ele e
apenas ele mereceria esse “privilégio”, afinal teria sido ele o criador de todas as
pessoas e o responsável primeiro por cada um dos atos de maldade que elas
cometeram.

Sei que alguém pode me acusar de estar mentindo porque


– dirá – tendo a certeza da existência de deus, do inferno e do paraíso,
logicamente o medo do inferno me levaria a aceitar o paraíso sem nenhuma
objeção; e quem disser isso estará certíssimo. Lembrando o maravilhoso livro
1984, de George Orwell48, pode-se dizer que em sua trama ficou mais do que
provado que pelo medo e pela tortura, e mais ainda pelo medo da tortura, se
pode fazer com que uma pessoa aceite qualquer coisa. E, conforme ficou
demonstrado no livro, se pode dizer também que pelo medo e pela tortura, e
mais ainda pelo medo da tortura, é possível fazer com que uma pessoa deseje,
sinceramente, que a tortura recaia sobre o outro em lugar de si.

Se o “trabalho de persuasão” for bem feito, um bom torturador pode fazer com
que uma pessoa peça e deseje, sinceramente, que a tortura que recairia sobre ele
seja transferida até mesmo para alguém a quem ama. Então eu diria que sim,
deus poderia me convencer a aceitar o paraíso com o conhecimento de que
existem muitas pessoas no inferno; e poderia também me convencer a aceitar o
paraíso mesmo com o conhecimento de que meus entes queridos estão no
inferno; mas para conseguir isso, deus teria que ser um torturador pelo menos tão
bom quanto O’Brien49. E onde
48 1984; livro escrito pelo jornalista, ensaísta e romancista britânico George Orwell, denunciou as mazelas
do totalitarismo e tornou-se um dos mais influentes romances do século 20. O livro conta a história de
Winston, um apagado funcionário do Ministério da Verdade da Oceania que da indiferença perante a
sociedade totalitária em que vive passa à revolta, mas acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada
pelo Partido no poder.

49 O’Brien; personagem do livro 1984, é um agente do governo que engana Winston fazendo-o acreditar
que ele é um membro da resistência e convencendo-o a aderir a esta; depois usa isso contra ele para torturá-
lo.

fica a bondade dele nesse caso? E como alguém poderá dizer que minha
aceitação foi voluntária?

Acho muito difícil que exista um teísta que não tenha entre as pessoas do seu
relacionamento e convívio – mesmo que seja um parente afastado, um vizinho
não muito próximo ou um ex-colega de escola – alguém que “se perdeu do
caminho do bem”, ou seja, alguém que ele, teísta, acredita não ter os requisitos
necessários para merecer o privilégio de “sentar à mão direita de Deus pai”.
Como conseguem acreditar num paraíso com essas exclusões? Eu não entendo.

E, para ser sincera, não consigo também imaginar de que maneira estar sentada
“à mão direita” de um ser que criou e permite a existência do mal possa me
parecer sequer levemente agradável, menos ainda um paraíso, e menos paraíso
ainda se essa companhia for eterna. Se esse deus existisse, eu preferiria – com
toda a certeza! – manter dele a maior distância possível. De preferência voltar
para o nada de onde vim, único “lugar” onde imagino que talvez pudesse estar a
salvo de sua presença maligna.

Em oposição aos teístas que às vezes até se imaginam


– não sei como – em um paraíso eterno post-mortem, eu simplesmente não
consigo, não sei fazer com que a minha parca inteligência alcance algo que
assim se possa chamar e que parta desse deus que os teístas adoram. Deus,
paraíso, salvação, evolução da alma até um nível de “perfeição” que não sei qual
possa ser, e tudo o mais que envolve a tal fé; não tenho nenhuma condição de
acreditar em nada disso.

Para ser sincera, e pedindo mil desculpas àqueles que acreditam; a verdade é que
sequer consigo ver algo de bom na possibilidade de essas coisas existirem. Digo
novamente que, pelo efeito positivo que essa crença traz aos que partilham dela,
posso até entender que nós, os ateus, não estamos fazendo a melhor escolha;
mas, como já tentei explicar antes, em geral não se é ateu por escolha.

Então, continuaremos no prejuízo por conta dessa nossa falta de crença. De


qualquer forma, não posso fazer nada porque, por mais que acreditar em um
deus criador faça bem e dê paz às pessoas, não faria bem e não daria paz a mim.

O único paralelo que consigo fazer a respeito disso é que eu me lembro muito
bem que, pelo menos uma vez por ano, eu era muito feliz no tempo em que
acreditava em Papai Noel. Sei que para os teístas essa comparação de deus com
Papai Noel chega a ser ofensiva, mas não é essa a minha intenção, é apenas o
que eu sinto. Eu acreditava em Papai Noel e para mim ele era tão real quanto
deus é real para os teístas; a diferença é que o Papai Noel se manifestava apenas
uma vez por ano, mas nesse dia eu era feliz.

Fico imaginando que para o teísta a sensação é a mesma, ele tem um Papai Noel
que está “presente” todos os dias do ano. Acho que dá pra dizer que para os
teístas mais convictos todo dia é como se fosse o natal da minha infância, aquele
que tem papai Noel. Pensando nisso e lembrando como me sentia, fico com a
certeza de que acreditar é sim muito confortável.

Peço aos teístas que reflitam sobre isso porque, se o fizerem, acho que não será
difícil entenderem que na maioria dos casos – se não em todos – o ateísmo não é
uma escolha. Não é por querer, não é de propósito que não acreditamos em deus;
é por incapacidade mesmo. Sentimos que não viveríamos nunca em paz com
esse deus criador caso acreditássemos na existência dele porque não
conseguimos ver nem bondade nem justiça nessa ideia que chamam deus.

Sei que muitos se espantam genuinamente com o que acabei de escrever (de
novo!) porque conseguem não só ver como “sentir” a bondade de deus; mas eu
não consigo. Pelo contrário, cada vez que me deparo com um tipo de sofrimento,
seja de pessoas, de animais ou, principalmente, de crianças, via jornal, conversas
ou encontrando os sofredores por onde vou, e alguém diz alguma frase clichê do
tipo “Que deus olhe por esse infeliz”, “Tomara que deus o cure”, “Vamos rezar
por ele”, “Deus sabe o que faz” ou “Graças a deus não foi pior” o que penso é
que deus, se existisse, seria culpado por aquilo; e seria culpado, inclusive, pelo
fato de as pessoas terem pensamentos tão pouco piedosos.

Às vezes, antes do ateísmo, temos uma fase em que sem querer sentimos e
pensamos essas coisas todas e ficamos chocados com o que vemos no mundo, à
nossa volta ou até mesmo dentro de nossas igrejas e por isso chegamos àquele
ponto em que inventamos um outro deus, diferente do deus violento e sádico da
bíblia. Inventamos aquela espécie de “deus cartão bancário” de que falei lá em
cima, e, nesse conforto, passamos a viver.

Em alguns casos demoramos muitos anos para nos permitir pensar realmente em
questionar a ideia de deus, mas quando o fazemos, quando conseguimos abrir
mão do conforto que a fé religiosa proporciona e/ou deixar o medo do pecado e
da danação eterna de lado – e talvez por isso – acabamos sendo racionais e
teimosos demais para continuar acreditando. Foi exatamente isso que aconteceu
comigo.

Comecei pensando que um deus bom não me puniria por usar o cérebro que ele
me deu para questionar o que me parecia estranho ou errado. E continuei
questionando; sem o medo do pecado, da heresia e da blasfêmia, sem conseguir
mais sentir conforto no que cada vez mais me parecia falso, acabei vendo com
muita clareza que os pontos negativos de deus – mesmo quando eu o separava do
terrível deus bíblico
– são muito maiores e estão em muito maior quantidade do que os pontos
positivos que os teístas de todas as fés tanto insistiam em apontar quando
queriam me convencer de sua existência ou quando simplesmente tentavam
explicar por que acreditam, respeitam e amam esse deus para o qual rezam, oram
ou com quem simplesmente “conversam”.

Muitas vezes me parecia – e mais tarde me convenci totalmente disso – que em


toda e qualquer religião ou fé, se existem pontos positivos, esses estão nas
pessoas que acreditam em deus, não no deus em que essas pessoas acreditam.

XXII

É muito comum as pessoas questionarem o ateu a respeito de em que o ateu


acredita; a pergunta vem normalmente em forma de pergunta-espanto: “Mas
você não acredita em nada?” meio que respondendo essa pergunta, eu afirmei
mais de uma vez lá atrás que creio que muitas pessoas são melhores do que a
religião que professam. Na verdade, tanto eu como qualquer ateu, cremos em
muitas coisas, já ouvi dizer que existem ateus que creem em duendes, mas não
creio que esses ateus existam.

O que posso afirmar é que eu creio em muitas coisas, mas normalmente não
costumo crer em coisas para as quais não existem evidências e que não fazem
sentido; como, em minha opinião, é o caso dos duendes, por exemplo, e de
outras coisas nas quais muitas pessoas acreditam, como vida depois da morte,
ETs e OVNIs que nos visitam frequentemente, espíritos que caminham entre nós,
anjos, premonições, horóscopo e coisas assim. Não creio em nada disso porque
nunca vi evidências confiáveis e porque quando penso nelas o que percebo é que
não fazem sentido.

Mas vou falar agora de uma coisa em que creio muito. Porém, antes de soltar
essa minha “frase de efeito”, tenho que fazer um pedido encarecido a todo teísta
que possa estar lendo o que escrevo, contrariando dessa forma todas as minhas
crenças a respeito do que venha a acontecer com esse livro que estou escrevendo
na certeza de que não será lido por mais do que três ou quatro pessoas, ateias; se
é que serão tantas assim.

Para não correr o risco de fazer algum inimigo, na eventualidade de eu estar


errada e pelo menos um teísta resolver se dar o trabalho de ler essas páginas,
peço a esse teísta que não se sinta ofendido, que entenda porque e de que forma
penso isso que vou dizer agora. E a todos os três ou quatro leitores peço que me
desculpem pela repetição não recomendada do verbo, mas achei que a frase fica
mais engraçadinha assim: Creio que crer em deus é prepotência. Repetindo:
Creio que crer em deus é prepotência. Creio mesmo.

E creio que foi essa prepotência que criou a religião e que criou deus; creio que é
essa prepotência que leva o aparentemente mais humilde dos teístas a ser um
supremo orgulhoso, um preconceituoso inconteste e um vaidoso sem medidas
sem que esse aparentemente humilde “servo de deus” sequer sedêconta do
quanto “peca” contra as próprias crenças.

E o pior é que essa prepotência leva muitos teístas ao fanatismo, esse fanatismo
que faz com que as pessoas matem, humilhem, subjuguem e escravizem aqueles
que pertencem a outra espécie, a outra raça, a outro grupo, a outro sexo ou a
outra família. Creio que essa prepotência, ao longo da história, tem feito com
que tudo isso que listei venha acontecendo sempre em nome de seres
quiméricos, alguns deles“ditadores”delivrosplenosdecontradiçõeseabsurdos,
desde sempre, até hoje e por muitos anos no futuro.

Creio que enquanto ainda existirem seres humanos no planeta, haverá essa
prepotência, e ela provavelmente fará com que se continue a matar, humilhar,
subjugar e escravizar o outro em nome de algum tipo de deus.

Tenho plena consciência de que a imensa maioria dos teístas, na relação com as
pessoas que os cercam, não são prepotentes no sentido que geralmente daríamos
a essa palavra; mas, com respeito à crença em deus, certamente sem sentir e sem
se dar conta disso, os teístas se guiam por uma atávica prepotência. Eu já disse
mais de uma vez em meus escritos nunca publicados a não ser na internet que
deus é onipotente e o homem é oniprepotente. E é essa minha certeza que vou
tentar justificar agora.

Uma das palavras mais curiosas que a maioria dos leigos já ouviu ou leu ligada a
essa desconhecida, incompreensível e fascinante física moderna foi a palavra
“multiverso”; a ela estão ligadas teorias como a dos universos paralelos tão
explorada pela ficção; a dos onze universos, a teoria da bolha, que os ignorantes
como eu imaginam meio parecido com uma panela de mingau de fubá fervendo
e soltando bolhas, e cada uma dessas bolhas seria um universo, e há outras
teorias mais.

Não sei se todas ou apenas algumas são chamadas teorias pelos cientistas, talvez
sejam mais adequadamente denominadas pela palavra hipótese, não sei bem. E,
além de não saber sequer nomeá-las, como leiga e ignorante que sou, admito não
entender praticamente nada sobre elas, mesmo quando leio as explicações “para
leigos” do Marcelo Gleiser ou do fabuloso Stephen Hawking.

Enfim, não sei até onde essas teorias ou hipóteses de multiverso teriam qualquer
respaldo científico que dê a alguém a autoridade para falar delas como falamos
da teoria da relatividade ou da teoria da evolução – quanto a essa última, sei que
ainda existem algumas “vozes discordantes”, mas sei também que ninguém que
leve ciência a sério, seja ateu ou teísta, dá a mínima atenção a essas vozes –
portanto, não vou fazer nenhuma afirmação a respeito a não ser a de que existem
pessoas para as quais não parece inviável a afirmação de que nosso universo não
é o único universo que existe.

Volto a dizer que não sei nada sobre isso, apenas acho fascinante a ideia, como
quase todo mundo acha. Mas vamos ficar com o que conhecemos com razoável
certeza: Existe um universo que embora possa não ser o único é o único de cuja
existência podemos fazer alguma afirmação; esse universo é o nosso e é nele que
estamos agora.

Qual é o tamanho do universo? Procurando pela resposta a essa pergunta você


encontra várias: que o universo é infinito e não pode ser medido; que o universo
tem um raio de 13,7 bilhões de anos-luz porque tem 13,7 bilhões de anos de
idade, que tem 78 bilhões deanos luz de ponta a ponta; epara esclarecer essas
medidas você encontra a informação de que um ano-luz equivale a 9,5 trilhões
de km, que é a distância que a luz percorre em um ano terrestre, não esquecer
que a luz é o que há de mais rápido dentre todas as coisas que conhecemos; se é
que podemos chamar luz de “coisa”.

Muitas respostas nos dão explicações de como e por que é difícil estipular a
dimensão exata do universo. De qualquer forma, o que todos dizem e todos
sabem é que o universo tem dimensões tão astronomicamente enormes que, para
os nossos sentidos tão limitados e para a nossa tão limitada capacidade de
locomoção e de imaginação, sendo ou não infinito, a verdade é que o universo
acaba por ser, ou parecer, infinito para nós.
No universo tem mais de 80 bilhões de galáxias, alguns falam em bem mais que
120 bilhões. A nossa Galáxia, que é apenas média, teria mais de 100 bilhões de
estrelas, outros falam que tem de 200 a 500 bilhões. Veja que os números são
BILHÕES, se falassem em milhões já seria suficientemente espantoso para mim,
mas falam sempre em bilhões. E pelo que vemos ao pesquisar o assunto, todos
os valores são aproximados, tudo tendendopara mais, em alguns casos para
muito mais; e em todos os casos, mesmo o “um pouquinho” mais é dado em
medidas e números tão grandes que para nós são quase impossíveis até de
imaginar.

O nosso sol está longe de ser a maior estrela da nossa galáxia e o nosso planeta,
todos sabem, não é o maior do nosso sistema solar. Nesse nosso planetinha azul
tem vida desde bem mais de três bilhões de anos, e o homem está aqui há
“apenas” dois milhões de anos. Atenção: Vida há mais de três BIlhões; gente há
dois MIlhões; BI, MI, percebeu? Você já pensou nisso? Durante mais de três
bilhões de anos existia vida aqui, mas nós não estávamos presentes para observá-
la, não éramos parte da “maravilha da criação”.

Esses números incrivelmente grandes, essas dimensões absurdamente


gigantescas me fazem pensar no total contrassenso que é o ser humano, esse
nada cósmico, acreditar que tudo isso foi criado por um deus que o ama e só para
que ele, o oniprepotente macaco pelado sem rabo, fizesse as suas orações. Diante
das dimensões de tempo e espaço do universo, o teísmo me parece de uma
prepotência tão grande que eu não consigo entender como os religiosos
conseguem falar em humildade. A humildade seria, olhando por esse prisma, o
sentimento e o comportamento mais distante possível do que pode significar ser
um cristão. Ou muçulmano, ou judeu, ou qualquer adepto de qualquer religião
cujo deus ao menos sabe que o crente existe.

Como os teístas mais cultos e mais inteligentes conseguem não perceber isso?
Como é que alguém pode pensar que um tipo de mente criadora desse absurdo
de imensidão pode nos dar qualquer importância ou sequer tomar conhecimento
real da nossa existência a ponto de se preocupar com nossas mazelas? Como é
que alguém pode pensar que um tipo de mente criadora desse absurdo de
imensidão pode nos dar qualquer importância ou sequer tomar conhecimento
real da nossa existência a ponto de se preocupar com a nossa vida sexual?

Qualquer que possa ser a origem do universo – ou dos universos, se existir mais
de um – não tem como ser algo sequer parecido com o deus que os teístas
descrevem porque, entre outras coisas, a característica de bondade suprema não
existiria; pelo menos não existiria no sentido de essa entidade criadora se
importar com o ser humano individualmente a ponto de abominar a
homossexualidade, condenar o aborto ou de mudar as leis da natureza em função
de um pedido balbuciado ou gritado a plenos pulmões; por mais que esse pedido
seja acompanhado dessa força incompreensível chamada fé.

Daí que, independente de existir ou não uma mente responsável pela criação, não
existe deus. No caso de existir uma mente tão superior a ponto de ser capaz de
criar o universo a partir do nada, essa mente não poderia sentir qualquer coisa
sequer levemente parecida com amor, ou mesmo com uma simples empatia, por
nossas insignificantes vidas. Expressões como “Deus ama você!”, “Grande é o
amor de deus por nós”, que são ditas pela maioria dos teístas com tanta
frequência e com tanta certeza de que isso seja uma verdade, me soam
simplesmente como risíveis.

“Quem é você para que o criador do universo te ame? Você não se enxerga
não?”. Isso é o que eu diria a mim mesma caso um dia me sentisse tentada a
acreditar no que os teístas dizem.

XXIII

Os teístas afirmam que deus criou o mundo, criou a natureza, criou a vida, nos
criou. Afirmam que a maravilha da vida, por ela mesma, é prova da existência,
do poder, da bondade e da perfeição de deus e que somos cegos se não
enxergarmos isso. Eles apontam as belezas e a harmonia da natureza como
provas da existência e da perfeição de deus.

Uma das coisas mais comuns para um ateu é ouvir de um crente a frase
carregada de espanto: “Você não acredita em deus? Então me diz quem foi que
criou o mundo, quem foi que criou as flores, o céu, a natureza?” e, se a conversa
avança, é comum que ele “desfile” uma sequência bem selecionada de belezas
naturais, de “maravilhas da criação” como prova, na visão dele incontestável, da
existência, da bondade e até mesmo da presença de deus. A natureza é grandiosa
e incrivelmente bela, a vida é um milagre fantasticamente maravilhoso e
incrivelmente bom; como ousa você, um ateuzinho de merda, duvidar da
existência do criador disso tudo?

Acontece que a natureza não é feita só de beleza. Entre todos os seres vivos
podemos observar periódicos e não tão raros acontecimentos de deformidades.
Algumas dessas deformidades conseguem apenas não ser muito apreciáveis
esteticamente, como um olho um tanto torto, por exemplo. Outras são bem mais
sérias, como a cegueira é para nós, humanos, nos dias atuais. Há outros casos tão
sérios que causam incapacidades adaptativas e de sobrevivência, como a própria
cegueira, para animais que vivam em ambiente selvagem. E há ainda outras
deformidades que sequer permitem que o ser viva mais do que alguns poucos
dias ou horas.

Se você quiser uma lista desses horrores procure no google, vai encontrar
imagens chocantes. Pessoas e animais nascem deformados, com membros
faltando ou em excesso, com crescimento ósseo inadequado e deformante. A
gama de possibilidades nunca parou de surpreender estudiosos e curiosos, tanto
que muitos casos de deformação séria acabam se tornando atração circense –
antigamente nos próprios circos, hoje em sites da internet e outros lugares mais
“discretos” – expondo, na minha humilde opinião, uma outra deformação muito
séria, embora não tão perceptível, que é a atração mórbida que as pessoas
costumam ter pela desgraça e pelo sofrimento do outro.

E ainda há que considerar – se estamos falando em beleza – aquelas coisas e


aqueles seres que, mesmo sem ter nenhuma deformidade, não podem ser
tachados de belos exceto com muito boa vontade. Quem acha uma barata, uma
lesma ou uma aranha bonita? Sei que muitos vão revidar afirmando, com toda a
razão, que isso que eu disse sobre a falta de beleza da lesma, da barata e da
aranha nem merece ser consideradocomo argumento porque o conceito de beleza
é muito subjetivo, pessoal e até mesmo de espécie, uma vez que, como espécie,
nós, humanos, tendemos a achar feio tudo aquilo que é muito diferente de nós e,
principalmente, aquilo que nos desperta medo ou nojo.

Mas, se o teísta usa o argumento da beleza presente na natureza, ele não está
fazendo exatamente isso? Não posso afirmar também que o conceito de beleza é
muito subjetivo, pessoal e até mesmo de espécie, uma vez que, como espécie,
nós, humanos, tendemos a achar belo tudo aquilo que é semelhante a nós e,
principalmente, aquilo que nos desperta amor ou prazer? Por que então o
argumento do teísta valeria mais do que o meu? Se é para falar de beleza,
desconsiderando a relatividade do próprio conceito, basta procurar que
encontraremos a falta dela em vários, se não em todos, os aspectos e seres da
natureza.
Um crente mais culto ou alguém que esteja consciente da fragilidade do
argumento da beleza como prova da existência de deus, se tiver lido ou ouvido
alguma coisa de ciência e lido algo sobre as leis da física, mesmo que muito
superficialmente, usará o argumento da harmonia do universo como prova, mais
uma vez inquestionável na opinião dele, de que deus é o criador e sua presença
pode ser percebida no próprio funcionamento do nosso mundo.

Mas acontece que o mundo tem bastante desarmonia facilmente detectável. Para
falar apenas do nosso planeta e da vida que nele habita, temos que as guerras são
consequências de desarmonias na convivência entre pessoas e grupos de pessoas;
muitas doenças são consequências de desarmonias no funcionamento do corpo
vivo, de pessoas, de animais e até mesmo de plantas; os defeitos congênitos são
consequências de desarmonias na concepção e na formação de novas vidas;
muitos dos acidentes naturais são consequências de desarmonias da Terra,
desarmonias climáticas por exemplo.

Como já disse antes, não sou especialista em nenhuma ciência que não seja a
língua portuguesa para a qual tenho um diploma, e mesmo nesse caso há muito
percebi que a linguagem e os mecanismos que a produzem formam um sistema
tão complexo que não parece possível que alguém possa se considerar assim tão
“especialista” como um diploma poderia sugerir. Sou leiga ou ignorante em
todas as ciências do espaço e da natureza, mas penso que há desarmonias que
certamente podem ser detectadas tanto no macro quanto no micro universo que
está vedado à visão comum do ser humano comum.

Em se tratando de universo, galáxias, sistemas, planetas e todos os corpos e


espaços grandes ou pequenos que estão “lá fora”, essa tal harmonia pode
perfeitamente ser questionada porque, pelomenos na minha visãohumana,
rasteira ecomum, imensas explosões por choques de planetas ou galáxias, que
são comuns no universo, não poderiam ser exatamente o que se chamaria de
“movimento harmonioso dos astros”.

Sei que essas “megagigantescas” explosões são responsáveis até mesmo pela
minha existência porque foi a incrível força de uma ou de várias delas que criou
os elementos químicos dos quais meu corpo é constituído, eacho isso
incrivelmente maravilhoso. Mas, mesmo assim, não há como dizer que astros se
movimentam em perfeita harmonia quando eles se chocam uns com os outros em
gigantescas explosões que destroem milhões de planetas e sois, há?
Quanto ao microuniverso sei ainda menos, mas; citando novamente Marcelo
Gleiser; ele relata em seu livro
possibilidadesdeimperfeiçãononívelsubatômicoquepodem ser responsáveis
inclusive pela nossa existência como seres vivos e pensantes. O livro Criação
(im)perfeita não tem esse nome por simples capricho semântico do seu autor, a
tese que ele defende, se é que entendi alguma coisa do que li, é justamente essa:
A criação NÃO é perfeita, a vida não surge a partir da perfeição, muito pelo
contrário, somos resultados de falhas e mais falhas que se acumularam chegando
até nós.

A perfeição seria estéril. A vida é um acidente cósmico dos mais intrigantes,


principalmente porque intriga justamente aqueles que foram os resultados desse
acidente.

É lindo!Essa visão de que somos tão raros, e talvez únicos, em um universo


potencialmente infinito e incrivelmente hostil; justamente porque somos o
resultado de uma sequência quase impossível de falhas é uma visão que supera
toda e qualquer explicação teológica que já tenha sido criada. E o legal disso é
que cientistas como Marcelo Gleiser estão descobrindo indícios e mais indícios
de que pode ter sido exatamente isso que aconteceu.

Voltando ao nosso “universo mediano” e à nossa vida concretizada, voltemos a


falar sobre nosso tema central: o mal. O bem e o mal são os opostos que
realmente colocam a nossa compreensão de mundo em cheque, e a relatividade
que o ser humano consegue colocar nesses dois conceitos muitas vezes nos deixa
sem ação e sem saber o que pensar.

Em nome da simples diversão, pessoas fazem coisas que em outras situações


elas mesmas considerariam como demonstrações claras do mal mais genuíno;
mas de alguma forma e por algum motivo, essas pessoas conseguem se abstrair
de tal maneira no “objetivo primeiro” – a diversão – que simplesmente não
percebem e não enxergam o paralelo.

Já dei os exemplos da caça e da pesca como esporte, já falei que pessoas que
consideram crime tirar uma vida por diversão muitas vezes definem a caça ou a
pesca “esportiva” como sendo um dos seus hobbies; e falei também de pessoas
que definiriam no mínimo como pecado o ato de trancafiar inocentes, mas que
criam pássaros em gaiolas e justificam isso dizendo que os ama. Outros
exemplos são os esportes violentos, muitas pessoas sequer conseguem me
compreender quando digo que não consigo ver possibilidade de chamar um
homem dando socos na cara de outro homem de esporte.

Essas mesmas pessoas que muitas vezes pregam a paz, a não agressão, o amor ao
próximo como máxima cristã de conduta, não perdem uma luta de boxe e vibram
cada vez que o lutador para o qual torcem acerta um soco bem dado no queixo
do adversário. Como digo sempre, minha parca inteligência não alcança esse
conceito de esporte.

Pessoas ficam estupidificadas por tantas vezes levarem os socos que fazem com
que seus cérebros se choquem com as paredes de crânio. Não sou neurologista,
mas duvido muito mesmo que o cérebro não seja afetado pela violência dos
socos. E, em lugar de se sentirem culpados pelos danos que sua sanha por
“diversão” causa, as pessoas incluem o“esporte” nas olimpíadas.

Mais recentemente aperfeiçoaram a arte da barbárie e criaram os tais MMA e


UFC que, confesso, nem sei direito o que são e qual seja – se é que tem – a
diferença entre um e outro. Alguém me explicou que um deles é a luta em si e o
outro éalgo como o nome da competição em que este esporte acontece, confesso
que não prestei muita atenção e não me sinto disposta a desperdiçar neurônios
me preocupando com isso.

O que sei é quefazem o maior sucesso e que os programas de televisão voltados


para os esportes; entre um e outro quadro que demonstra o quanto praticar
esportes é saudável e ajuda a desenvolver não só o corpo como até mesmo a
sociedade; eles colocam uma notícia, um anúncio ou uma luta “ao vivo” entre
dois importantes brutamontes trogloditas que já desfrutam status de ídolos.

Novamente afirmo: minha parca inteligência não alcança qual seja mesmo o
benefício social dessa aberração de retorno à barbárie das lutas de gladiadores e
qual é a justificativa minimamente compreensível que poderiam dar para o fato
de chamarem esse absurdo de esporte. Que me desculpem os apreciadores;
dizem que todos nós temos nossos preconceitos, acho que um dos meus é esse,
não consigo ver absolutamente nada de bom nessa coisa.

Além disso, como marca indelével que mancha toda a história da humanidade,
estão os absurdos cometidos em nome de deus, que quase invariavelmente têm
sido considerados, pelos que os praticam, como um grande bem, por mais
terrível e sanguinário que seja esse ato. Muitos pilares da igreja, muitos
paladinos da fé, foram e são pessoas que defenderam e defendem coisas como
discriminação, preconceito, segregação, assassinato e genocídio.

Não há como negar que a destruição em nome de deus é lugar comum na história
da humanidade, e não há como negar que toda essa destruição sempre foi
considerada como um bem pelos que as praticaram e por cada um dos indivíduos
das multidões que, muitas vezes em praça pública, apoiaram essas práticas. O
mal, quando praticado em nome de deus, se torna o bem, essa inversão de
conceito supera o argumento da relatividade do mal porque ele não é mais
relativo, é simplesmente transformado no seu oposto, é até mesmo divinizado. E,
talvez acima de todos os exemplos, há a relatividade do mal colocada no esforço
de inocentar deus contra todas as evidências. Quando uma coisa é definida como
“criação divina”, as pessoas a definirem como bem ou, no mínimo como “não
mal” mesmo que sejam realmente um mal ou um agente do mal. Um mesmo
crente que, quando atingido direta ou indiretamente por uma doença define essa
doença como um mal, se colocado diante do argumento de que o microrganismo
causador dessa doença é um ser vivo e, portanto, uma criação de deus, vai se
emaranhar em “explicações” confusas a fim de levar o interlocutor a concluir
que “não é bem assim”.

E aqueles que afirmam que a bíblia é a inquestionável palavra de deus, ao serem


colocados diante das várias narrativas de ações praticadas ou ordenadas por deus
que, em outras circunstâncias e em outro contexto, seriam certamente
condenadas como sendo exemplos do mal, apenas porque tais ações estão
descritas na bíblia e foram ações ou ordem de deus, essas pessoas deixam seu
senso de ética e seu conceito do que é o bem e o mal de lado, afirmam e
reafirmam que aquilo não é um mal, e, mais terrível ainda, dizem que aqueles
horrores todos são exemplos de bem. E novamente vêm os malabarismos
mentais para tentar, acima de toda e qualquer lógica, justificar o porquê de o mal
não ser o mal.

Mas estávamos falando de mundo e natureza e, embora o ser humano esteja no


mundo e faça parte da natureza, essa separação pode ser cobrada. Então,
voltando ao mundo e à natureza, podemos dizer que, embora não tenha como
negar que muitos aspectos da vida e da natureza parecem ter sido criados com o
único objetivo de nos maravilhar, deslumbrar e espantar; embora muito do que
vemos e sentimos, com respeito à vida, à natureza e até mesmo às pessoas, possa
fazer com que a gente sinta que a vida, apesar de suas limitações, ainda poderia
vir a ser realmente bela; o que acontece é que a existência do mal faz com que
toda a beleza apontada pelo teísta perca o brilho, a importância, o encanto.

Por causa da realidade do mal nenhuma beleza serve como prova nem mesmo da
possibilidade de um deus criador onipotente, perfeito e bom. E mais; a
possibilidade da existência de um deus torna o mal ainda mais capaz de apagar o
brilho de tudo que há de bom e de belo no mundo. Sem que deus exista não fica
difícil aceitar o mal como sendo parte constituinte de nossa realidade; sem que
deus exista podemos ver e aceitar até mesmo que, em alguns aspectos, o mal é
necessário para que exista a vida como a conhecemos.

Mas, pensando na existência de um deus que, por ser onipotente, poderia fazer
tudo diferente do que é, o mal perde qualquer possibilidade de justificativa. A
maior prova de que deus não existe e não tem como existir é que diante da
inquestionável realidade do mal qualquer mentalidade criadora possível só
poderia ser um ente abominável. Deus não existe porque é definido como bom, e
um ser que criasse o mal teria obrigatoriamente que ser a visão hiperbólica do
próprio mal.

XXIV

Diante da palavra de todos os filósofos que consegui consultar, diante de tudo o


que pude ler nos livros antigos e atuais, diante do que vejo nos jornais do dia de
todos os dias e ainda do que vejo à minha volta, ao meu lado e em mim mesma,
fica muito difícil aceitar a existência de um deus poderoso, bom e justo sem que
eu tenha que, apenas no que tange a esse assunto, desprezar qualquer vestígio de
razão, inclusive a razão mais básica e cotidiana que uso para viver e conviver
nesse mundo no qual estou inserida e do qual faço parte.

E eu teria que começar todo esse processo simplesmente fechando os olhos para
as imperfeições gritantes desse mundo que teria que ver como perfeito porque
teria que ser assim para ser a “perfeita criação do deus perfeito”. Desculpem, eu
não consigo fazer isso!

Conheço muitas e sei que existem muitas outras pessoas além das muitas que
conheço que são boas, que são generosas, que são maravilhosas e lindas em
todos os aspectos em que a beleza realmente importa e que são teístas. Muitas
dessas pessoas são religiosas ligadas a uma determinada fé, frequentam uma
determinada igreja, participam de atividades ligadas à igreja que escolheram
como a “verdadeira”.
Muitos são religiosos praticantes e crentes fervorosos; e são pessoas
maravilhosas. Eu as amo e admiro com todo o amor e a admiração de que sou
capaz, mas não consigo deixar de sentir que, para aceitar a crença nesse deus tão
incompreensível, essas pessoas deixam de lado a lógica que faz parte delas, a
lógica da piedade, do amor, da generosidade e da empatia que faz delas as
pessoas maravilhosas que são. E nem se dão conta disso.

Não consigo explicar de outra forma uma pessoa que é boa a ponto de ser
incapaz de cometer uma injustiça, mas que consegue acreditar realmente que seu
deus é justo por fazer que nasça maldito alguém que não tem consciência
nenhuma de ter cometido qualquer crime, alguém que muitas vezes morre pouco
tempo depois de nascer e nem sequer tem condições de chegar a saber o que é
cometer um crime.

Essas pessoas maravilhosas justificam isso dizendo que os seres assim nascidos
foram para o céu e estão agora “sentados à mão direita de deus pai”. Mas nunca
lhes ocorre perguntar por que esse ser teve que nascer e sofrer e, se alguém
pergunta, “desencavam” aqueles argumentos que envolvem a expressão
“vontade divina” ou a palavra “mistério”. A trama do cristianismo – e das outras
duas religiões – é perversa demais para que eu consiga pensar que as pessoas
maravilhosas que o abraçam usam mesmo de alguma lógica para fazê-lo.

Em nome da crença em deus os teístas insistem em “ver” o mundo que


habitamos como uma dádiva desse deus de amor e de bondade; a linda e perfeita
natureza é o palco maviosoeaprazívelcuidadosamentepreparadopordeuspara a
vida humana. Eles apontam as belezas naturais que nos cercam como prova da
existência de deus, e as possibilidades de mais beleza – se aceitarmos acreditar –
como provas da bondade de um deus que não desiste e que está sempre disposto
a acolher as “ovelhas desgarradas”. Tudo é visto como maravilhas que só podem
ter sido fruto da bondade, do amor, da perfeição e do poder de deus.

Esses teístas, porém não são cegos, eles conseguem enxergar também os
horrores, ainda mais visíveis, que existem no mundo. Muitas vezes,
infelizmente, os melhores deles chegam até mesmo a ser atingidos por alguns
desses horrores. E, apesar de tudo, o que simplesmente não conseguem é ver
esses horrores sob o mesmo ângulo e com os mesmos olhos com que veem as
maravilhas. O que não conseguem – e que eu não consigo evitar de fazer – é
olhar para esses horrores como prova da impossibilidade da existência desse
deus das maravilhas.
Há uma coisa sobre a qual os teístas estão certos: Aceitar a “teoria do puro
acaso” realmente exige muito esforço, talvez seja mesmo uma impossibilidade e
a gente tenha que deixar a pergunta em suspenso. Talvez, diante da razão desse
argumento, sejamos obrigados a aceitar que jamais seremos capazes de adquirir
o conhecimento necessário para ter um dia uma explicação plausível de como
tudo começou e de como chegamos aqui.

Mesmo não sendo na verdade uma “teoria do puro acaso” como alguns teístas
costumam ironicamente definir, e mesmo sendo aceita como fato científico,
como alguns teístas se negam a aceitar confundindo, muitas vezes parece que de
propósito, o significado científico da palavra teoria com seu significado popular,
a Teoria da Evolução não explica o começo de tudo e o surgimento da vida,
principalmente da nossa vida e da consciência que temos dela.

Mas, em minha opinião, seguir o conselho do Parthenon e olhar para si mesmo


exige muito mais esforço do que aceitar a possibilidade da “teoria do puro
acaso”. Somos todos um pouco santos a nossos próprios olhos. Ver-se a si
mesmo como o animal voraz, feroz, imperfeito, incompleto, egoísta e capaz de
todos os males é quase que uma impossibilidade.

Aceitar a hipótese de que somos finitos, efêmeros e que o que nos espera depois
da vida é apenas o mesmo nada de onde viemos; sobreviver à ideia de que não
somos importantes, valiosos ou amados por ninguém além de nós mesmos e das
pessoas para as quais temos alguma importância; imaginar como possibilidade
muito lógica que não há nenhuma entidade transcendente que sequer tenha
conhecimento da nossa insignificante existência; tudo isso é simplesmente
impossível para a imensa maioria de nós.

A sensação de abandono que essa ideia gera na maioria das pessoas é tão forte
que abrir mão da lógica em troca do agasalho fica sendo um preço até baixo a
pagar.

Essa éuma das razões por que muitos de nós conseguimos atribuir todos os
adjetivos negativos à raça humana mas, nem como possibilidade, podemos
atribuí-los a nós mesmos; é por isso que conseguimos pensar na efemeridade e
término completo da vida de um animal mas, nem como possibilidade, podemos
atribuir esse fim absoluto para as nossas próprias vidas.

Não épossível para nós pensar a vida humana sem nenhuma razão, sem nenhum
objetivo que não seja a própria vida humana; em lugar disso preferimos aceitar
qualquer outra hipótese, por mais ilógica que seja. Essa nossa incapacidade de
nos ver como somos faz com que seja muito fácil aceitar a hipótese fantasiosa e
incoerente de que somos o ápice da criação de um ente pleno de poder que nos
ama e precisa de nós.

É muito fácil ignorar o fato de que estamos sendo dirigidos pela própria
prepotência e atribuir a nós mesmos uma importância muito além de qualquer
coisa que pareça razoável.

É da nossa natureza nos sentirmos superiores aos outros seres com quem
dividimos o planeta e é da nossa natureza nos sentirmos diferentes da raça a que
pertencemos; por isso muitos de nós conseguem, mesmo e apesar de todos os
horrores que nossos semelhantes são capazes de imaginar e praticar, olhando
apenas pelo espelho da nossa vaidade, aceitar sem reservas que esse ser que
somos seja o ápice da criação de um deus todo poder e todo bondade.

Não é pela raça humana que esse deus se inflama de amor; é POR MIM. Essa
ideia, que certamente não nos chega de forma consciente, é a base emocional
mais sólida em que nos apoiamos para acreditar que “Deus nos amou tanto que
nos deu seu filho em sacrifício”. Inconscientemente sabemos que a raça a que
pertencemos não é digna de todo esse amor e sacrifício, mas, mesmo
inconscientemente, temos a tendência a acreditar que nós somos.

Reconhecer que, ao contrário do que nossa prepotência nos diz, somos a prova
da não existência de deus é um esforço que está acima da capacidade da maioria
de nós. Se pudéssemos fazê-lo, apesar de tudo o que não conseguimos
compreender, apesar de todas as maravilhas e de todos os “milagres”,
saberíamos que este mundo em que vivemos não tem como ser criação de um
deus perfeito e bom simplesmente porque nós estamos nele.

Saberíamos que se não existisse nenhum outro argumento, nenhuma outra


dúvida, nenhuma outra prova da impossibilidade de existência de um deus
criador todo poder e todo bondade, ainda assim esse deus não poderia existir
porque nós mesmos, como indivíduos e como raça, somos, sempre fomos e
sempre seremos imperfeitos e, portanto, não podemos ser criação de um deus
como esse, menos ainda o ápice dessa criação. Se pudéssemos nos ver como
somos, não poderíamos acreditar em deus.
XXV

O que muitos teístas fazem na ânsia de assumir a culpa – por si próprio e por
todos nós – a fim de defender seu deus é esquecer que para contrariar o
argumento tão comum de que nós somos responsáveis pelo mal basta estudar um
pouco de história. Fica fácil ver que o mal existe desde sempre, ou desde antes
da pré-história.

Vulcões, terremotos, tsunamis, enchentes, secas, tempestades; tudo isso existia


muito antes de sequer existir vida na terra, e tudo isso continuou existindo – e
matando muito – antes que o homo sapiens chegasse a caminhar pelas savanas. E
muitos dos micro-organismos que causam doenças; além dos casos de má
formação congênita; certamente já causavam sofrimentos diversos e mortes
terríveis aos animais que nunca chegaram a conviver com o ser humano.

E para os que têm a bíblia como verdade revelada, basta lê-la para ver que o mal
existe no mundo desde antes da expulsão de Adão e Eva do paraíso; afinal, a
serpente já era o mal e estava lá, não estava?

O bom humor de Millôr Fernandes já questionou essa bondade:

Mestre, respeito o senhor,


mas não à sua Obra:
Que Paraíso é esse, que tem cobra? 50

Eu, no caso deconsiderar como verdadeira esta mitologia, só discordaria do


Millôr no primeiro verso; como respeitar um “mestre” que é, ele mesmo, o mal
presente e anterior ao próprio mal? Quando plantou no meio do seu jardim
aquela árvore que – ele sabia muito bem – serviria para que suas criaturas
cometessem o primeiro pecado, deus preparou o cenário e deu a chance de tudo
começar. Se isso não é maldade então eu não sei o que seja.

Seaceitarmos que deus existe, somos obrigados a aceitar que ele quis que suas
criaturas pecassem e que em muitos casos sofressem sem sequer ter pecado. Sua
onipotência não permite aceitar que ele não possa acabar com o mal, sua
onisciência não permite aceitar que ele não saiba como fazê-lo e sua bondade
simplesmente desaparece, até como possibilidade, diante da existência do mal.

Os teístas dizem sempre que nada acontece sem que deus queira, com isso estão
dizendo que deus quer o mal, quis que ele existisse e quer que ele continue a
existir. Não sabem, não têm ideia de que estão dizendo isso, mas estão. Eles
estão dizendo que deus é mau, mas certamente não se dão conta disso e se algum
deles me ler, certamente vai conseguir dar mais um nó no cérebro,
provavelmente usando o argumento do mistério ou da inescrutabilidade dos
desígnios de deus, para ter a ilusão de que me convenceu e para convencer-se de
que não estão dizendo o que estão dizendo. A lógica não faz mesmo parte da fé.

Se tudo acontece quando e como deus quer, então ele


50 In: FERNANDES, M. Literatura comentada. p. 67

quis que existisse o mundo e que o mundo fosse como é. Se é onipotente então
poderia fazer diferente, mas não fez. Se é onisciente então sabia que o mal
surgiria, mas quis que assim fosse. Se deus existe, então ele quis que o mal
existisse e, se não o criou diretamente, preparou, consciente e cuidadosamente,
todo o “pano de fundo” e todos os ingredientes necessários para que o mal
acontecesse.

As perguntas que restam são: Como um deus todo bondade coloca o mal como
semente da sua criação? Que tipo de “livre” arbítrio é esse que serve apenas para
fazer com que os “robozinhos” ajam da forma que o “mestre” determina que
devem agir? E, novamente, como é que os teístas conseguem afirmar que um
criador desse seria todo bondade?

A história da criação descrita no Gênese parece muito com a história de um


tremendo crime cuidadosa e detalhadamente premeditado. Tanto considerando
muitas das possibilidades de metáfora quanto pensando a história como
verdadeira, se aceito como existente, o deus criador foi e é o primeiro e o maior
mal. A onisciência que lhe atribuem é comprovação de que ele conhece e sempre
conheceu o mal.

Dizer que deus não conhecia o mal, ou – apesar de todas as incoerências já


explicadas – aceitar que somos nós os responsáveis pelo mal; dizer que deus
“criou tudo perfeito, mas nós deterioramos essa perfeição” é como dizer que
deus não é onisciente porque não sabia, quando nos criou, que deterioraríamos
sua criação perfeita; e é dizer também que deus não é onipotente, pois além de
não saber que o faríamos, ele não pôde nos impedir de fazê-lo. Isso sugere,
contra toda a lógica, que nós somos mais poderosos do que deus.

Dizer que deus não é onisciente equivale a dizer que deus não existe; ou, no
mínimo, é dizer que ESSE deus ao qual rezam e oram não existe. Afinal, se
rezam e oram a um deus que é onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo,
um deus qualquer que não tenha alguma dessas características seria um outro
deus, não seria esse. Uma vez que definem deus como onisciente, então a
onisciência é parte de sua essência, é parte do que ele é, é uma parte sem a qual
ele deixa de ser quem é; isso seguindo o que de deus dizem os próprios teístas.

Não entendo como os teístas podem definir seu deus como onisciente e
onipotente e depois dizer que nós somos responsáveis pelo mal porque, sem que
deus soubesse que o faríamos e sem que deus tivesse conseguido nos impedir,
criamos o mal. Fica difícil entender mesmo coisas mais simples, como por
exemplo, que deus nos permite sofrer porque precisa testar a nossa fé. Fico
achando que essas pessoas não sabem o significado da palavra onisciente.

Da mesma forma, o fato de deus ter criado o mal; ou permitido que o mal
existisse, o que equivale a criá-lo mesmo que indiretamente; comprova que, de
alguma forma, deus desejou que o mal existisse, e não só o desejou e criou como
também aprecia a existência do mal já que, mesmo sendo onipotente, permite
que esse mal predomine no mundo.

Independentemente de quanto livre-arbítrio tenhamos ou deixemos de ter, não há


como escapar do fato de que deus, em existindo, em sendo o criador onipotente,
não tem como deixar de ser o responsável único pela existência do mal. Mesmo
e até, do mal que nós, seres humanos, praticamos.

Uma vez que deus criou tudo, essa criação plena tem que incluir o mal, só
mesmo com argumentos forçados e carentes de qualquer lógica racional os
teístas conseguem fazer parecer – apenas a eles mesmos – que explicam esse
paradoxo de um deus que criou tudo mas não criou tudo. Não seria como dizer
que o fogo queima mas não queima? O nome disso não é paradoxo? O nome
disso não é impossibilidade lógica?

De acordo com a nossa visão humana e falha, o natural é que se crie aquilo de
que se gosta ou, no mínimo, aquilo com o qual se tem alguma ligação. Em geral
aquilo que criamos, de alguma forma e em algum aspecto, está em nós, em
forma de vontade, de pensamento, de ideia. Não sei por que com deus isso seria
diferente.

Mas se, de novo num esforço homérico de abandono de toda lógica, a gente
aceitar que deus não criou o mal, temos então que ver o mal como uma espécie
de efeito colateral da criação; daí então, se deus é bom e cria um mundo perfeito
mas o mal surge sem que ele o crie, então esse deus, como bom e como todo
poderoso, só teria que eliminar o mal. Não parece uma tarefa impossível para um
ser onipotente, porém o fato de o mal existir prova que essa ação não foi tomada.
Por conta disso, voluntária ou involuntariamente, pela lógica, o deus bíblico,
“talmudiano” e “alcorânico”, se existisse, teria que ser, obrigatoriamente, a
primeira fonte do mal.

É comum, muito comum mesmo, que teístas tentem rebater argumentos


atrevidos e céticos sobre o paradoxo da existência do deus diante da presença
nefasta do mal dizendo que não podemos fazer tais observações porque estamos
julgando de um ponto de vista inadequado. Segundo eles, estamos analisando o
problema do mal do ponto de vista humano; o ponto de vista errado uma vez que
deus está acima do humano.

O mal é mal para nós segundo nosso conceito humano, falho, imperfeito.
Quando julgamos deus sob esse ponto de vista estamos cometendo um grande
erro porque deus está muito acima do que é humano e só ele teria como saber o
que é realmente o mal e só ele pode saber como julgar. Nós, nunca. Eu queria
que algum teísta me dissesse sob que ponto de vista ele julga seu deus bom e
justo.

Para Protágoras o indivíduo é a “medida de todas as coisas”; Marcelo Gleiser


diz; junto com Carl Sagan; que nós somos “como o Universo reflete sobre si
mesmo”51, somos “a consciência do cosmo”. Levando isso em consideração,
podemos concordar com os teístas quando eles dizem que o conceito do mal é o
conceito HUMANO do mal.

Mas essa realidade não serve bem aos propósitos que os teístas têm em mente
quando a afirmam porque, bem ao contrário do que dizem, isso não diminui em
nada nosso direito de elaborar esse conceito e de questionar a divindade com
base nele. Somos humanos e a essa única condição estamos reduzidos.

Não temos outro parâmetro que não seja o humano, não temos outra experiência
que não seja a humana, não temos outro pré-requisito que não seja nossa
humanidade, não temos outro conhecimento que não sejam os conhecimentos
humanos adquiridos a partir de nossa percepção humana, não temos outro
conceito que não sejam os conceitos criados a partir de nossa relação de seres
humanos com o que nos cerca e que percebemos através de nossa capacidade
humana de perceber.

Não temos como ter outro conceito que não seja o conceito humano. Todos os
conceitos a que temos acesso são conceitos humanos, inclusive o conceito de
deus do próprio teísta que está tentando desmentir nossa afirmação com o
argumento de que nosso conceito é APENAS humano.

Se, em nosso conceito humano de mal, levarmos em conta todos os seres


sencientes, ou seja, se esquecermos por um
51 GLEISER, M. Criação (im)perfeita 2010, p.25

momento a prepotência que nos leva a achar que somos os seres mais
importantes do universo e pensarmos que outros animais além de nós também
sofrem e sofreram e que outros animais além de nós também foram e também
são atingidos pelo mal. Se tirarmos por um momento os olhos de nosso próprio
umbigo, não podemos assumir a culpa pela existência do mal por mais que a
gente queira. E, se pensarmos o mal levando em conta todos os seres sencientes,
veremos ainda que para muitos seres sencientes nós somos o mal, e somos
inclusive, em alguns casos, um mal involuntário.

Quer um exemplo? Quando construímos nossas casas, nossas vilas e nossas


plantações, mesmo antes de aprendermos a poluir e a devastar o ambiente em
que vivemos, mesmo cuidando apenas da nossa sobrevivência, matamos,
desabrigamos e até extinguimos espécies animais, e fizemos isso apenas porque
somos o que somos. Se um deus nos tivesse criado, esse deus teria nos criado
para que matássemos, desabrigássemos e extinguíssemos espécies animais;
traduza-se: para que, para alguns seres sencientes, nós fôssemos o mal.

Mesmo hoje que poluímos, depredamos e aviltamos a natureza, mesmo hoje que
criamos e descobrimos novos males, novas doenças e novas formas de nos matar
e de matar os outros seres que dividem conosco esse planeta, ainda não
podemos, racional e logicamente, na possibilidade da existência de deus, tirar
dele a responsabilidade pela existência e permanência do mal.

Por mais que muitos teístas queiram tomar a si essa culpa para não colocá-la
sobre deus, não podemos assumi-la porque somos sim, muito capazes de agravar
o mal, mas, a despeito da nossa pretensão, não temos o poder de criá-lo.

Sendo conceito humano e não podendo ser outro, a existência do mal nos torna,
como seres sencientes que somos, e juntamente com todos os outros seres
sencientes com quem dividimos o planeta, nada mais do que vítimas. Nós só
temos a consciência do mal porque e da forma que somos atingidos por ele; e
deus, sendo criador do mal; como não poderia deixar de ser se admitido como
existente e criador de tudo o que existe; seria, sem nenhuma possibilidade de
dúvida, o nosso primeiro e maior algoz.

XXVI

Talvez se o mundo desse mais importância à filosofia do que à teologia; se os


homens ensinassem mais a ética do que os preceitos religiosos a seus filhos; se
todos lessem mais textos sobre ciência e história do que a bíblia – que aliás não
leem – se atentassem mais para as descobertas, as lições e os pensamentos dos
grandes homens do que para as fantasias mirabolantes de santos, profetas e
“salvadores” duvidosos; se mostrassem mais preocupação com a salvação do
corpo e da dignidade do seu igual do que com a salvação da própria alma; se
olhassem mais para os lados do que para dentro de seu próprio egoísmo; talvez
se fizessem isso o mundo poderia ser melhor.

Muitos religiosos rezam em silêncio, oram aos gritos e pedem, imploram e


rogam que as leis da natureza sejam quebradas ou alteradas em nome
unicamente da sua pessoa; e quando por alguma razão têm a impressão de que
isso aconteceu, eles tomam o fato como prova da existência e da bondade desse
mesmo deus que, se tivesse feito o “milagre” por eles, teria obrigatoriamente, ao
mesmo tempo, negado esse milagre a milhões de outras pessoas que também
creram, pediram e estavam prontas a agradecer. E pode ser até que, pelo que são
e pelo que têm, algumas dessas pessoas às quais o “milagre” foi negado o
merecessem mais do que o religioso agradecido que sequer pensou nessa
hipótese.

Talvez dando mais importância à ética do que à religião o ser humano pudesse
perceber o absurdo de não valorizar, de não olhar, de não se importar com o
próximo a não ser egoisticamente sentindo-se felizes pelo fato de existirem
infelizes para que os não infelizes pratiquem a caridade. Os teístas caridosos são,
se olhados bem de perto, pessoas muito más.

Eles não sabem disso, eles em geral não se dão conta disso, mas o fato é que
para aqueles que creem na existência de deus e na realidade do paraíso pós-
morte a que só terão direito aqueles que praticam o bem, o outro acaba sendo
apenas ou pouco mais do que um meio, um instrumento para que esses teístas,
bondosos, “escolhidos” e privilegiados por um deus todo (in)justiça, consigam
ganhar seu passaporte para o paraíso prometido.

Eu não consigo perceber a bondade de alguém que em lugar de questionar a


justiça de seu deus onipotente e impotente prefere a alegria de poder aceitar essa
chantagem; e, paradoxalmente, sei que muitas dessas pessoas são boas. A única
explicação que posso encontrar para isso é que os teístas que agem e sentem
dessa forma assim o fazem apenas porque não pensaram a respeito; e não
pensaram porque, de acordo com suas crenças, às vezes tão arraigadas que
sequer conseguem se dar conta disso, questionar “os desígnios de deus” é uma
maneira certa de perder o paraíso tão esperado e desejado.

Talvez se os teístas deixassem de pensar que todas as coincidências e acasos que


os favorecem são milagres; se deixassem de ver esses “milagres” como efeitos
ou provas dos privilégios que acreditam ter recebido de deus; se vissem que
esses acontecimentos, caso fossem causados por um deus onipotente, não seriam
“milagres” e sim injustiças; se conseguissem pensar o óbvio: “O que não é para
todos não pode ser justo mesmo que eu seja beneficiado” então, talvez, esses
teístas pudessem ver que esse seu deus todo-poder só pode ser injusto e,
portanto, inverossímil

Se pudessem olhar os fatos sob essa ótica, talvez todos eles pudessem usar o
próprio sentido de ética e pudessem recusar muitas das posturas preconceituosas,
elitistas e até criminosas que muitas vezes são levados a tomar em nome desse
deus que os leva a usar a bíblia para afirmar que amam ao próximo ao mesmo
tempo que a usam também para encontrar justificativas para o preconceito, o
ódio, o desprezo, o ato de humilhar.

Talvez, se vissem que o deus delas é na verdade injusto, essas pessoas pudessem
encontrar nelas mesmas o sentido da palavra justiça e parassem de ver o irmão
que sofre como meio de chegar aos céus e pudessem ver o irmão que sofre como
um igual que elas podem ajudar sem estar apenas fazendo caridade. Talvez essa
ajuda então pudesse ser mais efetiva, mais prática e mais real. Talvez se
parassem de tentar ser boas as pessoas conseguissem se tornar boas de verdade.

Tudo isso é na verdade um utópico sonho extremamente otimista e irreal, tudo


isso só se pode dizer com um “talvez” vago e meramente figurativo anteposto às
frases que descrevem uma impossível e irrealizável realidade; isso porque não é
possível que algo tão abstrato quanto um pensamento ético alheio ao “eu”
consiga fazer com que muitos teístas deixem de ser teístas; e mesmo que tal
raciocínio desvinculado da fé e de suas amarras fosse possível, provavelmente as
pessoas encontrariam algum substituto para a crença em um deus inverossímil,
talvez algo ainda mais nocivo.

Acordar para o absurdo da fé não conseguiria mudar o mundo tanto assim, isso
porque a própria natureza e constituição humana não permitem que o homem,
como raça, seja genuína e totalmente bom e consiga viver em paz. O ser humano
tem o mal como parte constituinte e inseparável da sua essência; o mal, em
forma de egoísmo, de ganância, de megalomania, de prepotência, é o sangue da
alma da espécie humana.

Talvez Platão esteja certo e o homem precise mesmo da religião para controlá-lo
como indivíduo, mesmo com o risco de a religião instigá-lo sempre e muitas
vezes a se tornar o genocida, o assassino impiedoso, o senhor da ganância e o
escravo do poder que a raça humana mostrou ser tantas vezes na história.

XXVII

Vamos revisar? Seguindo fielmente as coisas todas que os que creem em deus
dizem e atentando para o que todo mundo vê à sua volta, a linha de raciocínio é
essa: No começo nãohavia nada, e quando digo nada é nada mesmo! Nãohavia
as leis da natureza porque não havia natureza, não havia as leis da física porque
não havia física, não havia as regras da existência, o instinto de sobrevivência, a
possibilidade de superpopulação de insetos, não havia absolutamente NADA!
Exceto deus. Esse havia e ninguém diz como, nem onde, nem a partir de quando
ou de que forma surgiu. Apenas havia deus, mais nada!

Bem, seguindo a “verdade” que a religião ensina, temos que deus – o único que
havia – é onipotente. Se é onipotente significa que ele pode tudo. TUDO, o
contrário de nada! Tudo e tudo mesmo! Ou seja, ele não está preso às leis da
física, da natureza, da sobrevivência, ou a quaisquer outras leis, afinal, ele criou
a física, a natureza, a sobrevivência, etc, etc, etc, ad infinitum! Lembre-se: Estou
apenas raciocinando em cima e de acordo com o que dizem os teístas.

E assim, com todo esse poder, deus vai e cria algo, cria por decisão própria;
porque é preciso decidir fazer alguma coisa antes de fazê-la, certo? Para
justificar essa minha afirmação diante do teísta posso usar até mesmo seu
próprio livro sagrado: Está lá, na bíblia, deus, antes de mandar o dilúvio decidiu
mandar o dilúvio52, portanto, não vejo como ser mais clara e não vejo como esse
fato possa ser contestado por um teísta: se existe um deus que estava sozinho no
nada e que criou tudo o que existe, então esse deus certamente agiu nessa
sequência; primeiro decidiu criar o mundo, depois criou o mundo.

Seguindo à risca o que dizem os teístas, deus criou porque quis criar e, porque
era o único que existia, criou sem ninguém mandar, criou a partir do nada mais
absoluto, criou porque quis, o que quis e do jeito que quis; ou será que é possível
que seja diferente? E o que é que ele escolheu para criar mesmo podendo criar
QUALQUER outra coisa ou qualquer coisa diferente? Sim, não nos esqueçamos
nunca disso: Deus é onipotente e, portanto poderia criar absolutamente qualquer
coisa diferente do que criou, qualquer universo diferente do que criou, qualquer
mundo diferente do que criou, qualquer vida diferente da que criou.

Ele escolheu criar uma natureza exuberante, linda, colorida e perfumada sim,
mas escolheu que essa natureza fosse regida por diversas leis, leis que não
existiam antes dele e que ele também criou do nada, leis que muitas vezes fazem
seres como eu, sem poder e sem conhecimento nenhum, ter
52 “Então, disse Deus a Noé: Resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos
homens; eis que os farei perecer juntamente com a terra”. In Gênesis 6-13

engulhos. E esse é um deus todo bondade!

Deus criou a vida! Ah, que linda que é a vida! Peraí! É linda mesmo?
Comparada com o quê? Dá pra tentar fazer um exercício de imaginação e pensar
em outro tipo, ou outros tipos de vida que poderiam existir e que fossem
radicalmente diferentes das vidas que existem?

Todos, todos nós mesmo, certamente preferiríamos, se pudéssemos escolher,


uma vida que não tivesse doenças, que não tivesse velhice, que não tivesse
violência, que não tivesse assassinatos. Todos nós, seres humanos, se
pudéssemos escolher um outro tipo de vida, a não ser que sejamos sádicos ou
egoístas demais para isso, preferiríamos uma vida na qual as pessoas (no mínimo
as pessoas!) não sofressem tanto.

Mas, raciocinando a partir do que me dizem os teístas deus, esse deus que é tão
poderoso e tão bom como os teístas dizem e não se cansam de dizer, justamente
por ser tão poderoso poderia, antes de criar o mundo, escolher, e escolhendo
poderia ter criado uma vida sem tantos horrores, sem tantas dores, sem tantas
mortes; ele poderia fazer isso com toda a certeza porque é onipotente, mas não o
fez. Pensando nisso eu procuro a bondade secreta, seguramente muito bem
escondida dentro dessa escolha, mas não consigo encontrar.

Pensando e pensando muito podemos ver que embora muitos artistas,


principalmente na literatura e no cinema, tenham tentado criar mundos e vidas
diferentes, talvez não esteja ao nosso alcance imaginar tanto; afinal, as tentativas
desses artistas, se a gente for olhar bem de perto e com bastante atenção, não
ficaram tão diferentes assim da realidade; todos os outros mundos criados têm
conflitos, todos têm guerras, em todos acontecem assassinatos e desavenças; se
em um aparentemente melhorzinho não tem todas essas coisas, ao menos
algumas delas certamente tem.

Não há falta de sofrimento e de conflito, pelo menos eu não me lembro de


nenhum caso, nas histórias de ficção da literatura ou do cinema, não faltam dores
e desavenças em nenhuma daquelas histórias em que o autor usa a imaginação
no mais alto grau possível para fantasiar um mundo que seja outro e diferente do
mundo em que estamos.

Desde o País das Maravilhas de Alice até Avatar de James Cameron, não
podemos encontrar mundo ficcional que não tenha nenhuma das mazelas do
nosso mundo real. Parece que a imaginação do ser humano não é capaz de
alcançar esse objetivo, se é que é capaz de conceber esse objetivo. Mas deus é
onipotente, não é? Ele certamente poderia ter imaginado e criado algo completa
e totalmente diferente. Mas não criou.

Com base no que afirmam os teístas posso concluir que deus escolheu criar tudo
como é e como está, ele escolheu nos criar como somos e como estamos. Daí
que “A vida é linda comparada com o quê” não é uma pergunta absurda que se
poderia fazer a deus e a qualquer pessoa que defenda essa ideia.

Enfim, ele pôde escolher antes de criar, ele poderia ter imaginado e criado
qualquer outra coisa, inclusive coisas que certamente estão além da nossa
capacidade de imaginação; mas, mesmo podendo tudo e qualquer coisa, ele
imaginou isso e, o que é pior, escolheu criar o que imaginou, escolheu tornar real
e concreta toda a cadeia de horrores que imaginou. Como é que alguém
consegue enxergar bondade nisso?

Na minha visão, só o fato de ter conseguido imaginar os horrores que existem no


mundo antes de eles existirem tira completamente de deus sua característica de
bondade suprema. Veja bem, ainda seguindo o que os deístas pregam como
verdade, ele “pensa”, “imagina” e cria; e o que ele cria? Cria a vida que só vive à
custa da destruição de outras vidas. E, não se esqueça, ele é ONIPOTENTE!
Como é que alguém consegue amar e respeitar um deus desses?

O que tem de bonito na vida que deus criou? Ah, tem muita coisa! Tem árvores,
tem flores, tem gatinhos peludos, tem mar, tem pôr-do-sol, tem cores aos
montes, tem brilho, tem sorrisos, tem crianças! Tem música, tem perfume, tem
amor, tem luar, tem arte, tem sabor, tem brilho, tem o mar fazendo ondas, tem
nuvens brancas criando formas no azul, tem as estrelas caindo na noite,
faiscando, mudando de lugar, fazendo abrir e esquecer de fechar a boca da gente.
Tem gente!!

Mas, se olhar mais de perto, tem fome, tem frio, tem medo, tem dor, tem
doenças; tem um animal devorando as entranhas do outro que ainda tenta se
mover desesperado; tem bichinhos que só estão vivos quando devoram outros
bichinhos e que deixam de estar quando são por outros devorados; tem seres que
estão, durante toda a vida, entocados para matar e não serem mortos; tem
pequenos animais que para crescerem a partir de ovos e larvas, devoram durante
dias, semanas, meses, a partir das entranhas, o outro animal dentro do qual foram
por suas mães colocados; tem terremotos, avalanches, incêndios, enchentes,
erupções, furacões, tornados, maremotos, secas, alagamentos. E, além de tudo
isso, tem gente!!

Dizem que deus fez o homem à sua imagem e semelhança. E o que é o homem?
O que é esse animal que se diz soberano sobre todas as outras formas de vida? O
que é esse animal que se acha superior a qualquer outra forma de vida, inclusive
ao outro homem? Que animal deus escolheu para ser a sua imagem e
semelhança? O fato de ter feito essa escolha já não deporia contra ele? Olha só
para o homem, “a mais perfeita criação de deus”: isso parece mais uma suprema
ironia, ou uma brincadeira de mau gosto.

O homem, seguindo a “verdade” do teísta, é um ser criado do barro e no qual foi


assoprado o alento da vida. E, junto com essa vida, como parte integrante dela,
foi nesse animal chamado homem colocado também o egoísmo, a inveja, a
ganância, o medo, o preconceito, o orgulho, a vaidade, o prazer de destruir, o
fascínio pela morte, a vontade de submeter, de humilhar, de torturar, de fazer
sofrer.
Esse é o ser que se diz o mais perfeito. Deus é o onipotente, o homem é o
oniprepotente! E o teísta, entre tantas coisas que não percebe, não percebe o
quanto está sendo prepotente afirmando como verdade esse conto da carochinha
que contaram para ele.

Se o mundo todo fosse realmente perfeito, lindo, maravilhoso e bom, ainda


assim deus não poderia sê-lo e não o poderia justamente por ter criado o homem.
Tudo o que há de ruim, de terrível e de tenebroso no mundo, e que estaria sem
sombra de dúvida também nesse deus caso esse deus existisse, está presente e
patente na alma humana.

Por mais que a gente veja e conheça pessoas maravilhosas no mundo, essas
mesmas pessoas maravilhosas hão de reconhecer que cada ser humano, por
melhor que seja, pertence a uma raça muito ruim. O homem, analisado como
raça, tem de terrível o suficiente para negar, em sua própria essência, a
possibilidade de ter sido criado por um deus todo bondade.

Em última análise posso dizer, e acho que qualquer pessoa, se conseguisse se


libertar das amarras da fé, poderia dizer a mesma coisa: Porque eu existo esse
deus todo bondade não tem como existir; minha própria existência é, para mim,
prova suficiente da não existência de deus.

A presença do homem no planeta torna a veracidade da existência e da bondade


de deus algo logicamente absurdo. Um deus com todo o poder possível a um
deus e que fosse realmente bom, jamais criaria um ser tão terrivelmente mau
como é o ser humano.

A existência dohomem na terra, apesar dos seres humanos maravilhosos que nela
existiram, existem e existirão, é, por si só, prova mais do que válida de que o
deus que cultuam nas catedrais, mesquitas, templos e sinagogas não tem como
existir. O que fica realmente difícil de entender é a vaidade que impede o
homem, mesmo os melhores homens, de olhar para si mesmo e perceber esse
fato tão óbvio.

E a esse homem criado à sua imagem e semelhança, deus deu também, além da
suprema maldade, da suprema prepotência e da quase incapacidade de enxergar
a si próprio, o envelhecimento, as doenças, as deficiências físicas e mentais, a
capacidade de criar máquinas de matar e de criar a língua para, dentro dela, criar
o eufemismo; o eufemismo que salva a todos porque graças a ele o homem não
assassina peixes, ele pratica o esporte da pesca; não assassina animais, abate para
venda e consumo ou pratica o esporte da caça; não destrói a natureza, cria novas
tecnologias; não humilha o seu semelhante, coloca-o no seu lugar; não espanca
seus filhos, educa-os; não rouba, adquire bens; não explora, contrata
funcionários; não é ladrão, é político!

E aí está aquilo que, além e mais do que qualquer coisa, por mais que os teístas
tentem me explicar eu não consigo entender! A esse deus que, caso exista, criou
todo esse circo de horrores forrado de belezas feitas para atrair e destruir, o
homem chama de “Deus de Bondade”! Que bondade?

Euzinha, quando olho para essas coisas – e graças à insistência dos teístas tenho
olhado muito – embora consiga ver perfeitamente que há bondade em muitos
homens como indivíduos e consiga ver beleza na natureza como plástica, não
posso, por mais que tente, ver onde está essa bondade do deus criador cuja
existência os teístas afirmam.

Como argumento contrário às minhas conclusões sobre o homem e a natureza


serem essa mistura de bem e mal que não condiz com um criador bondoso,
muitos teístas poderiam dizer que vivemos num mundo de opostos e que é
necessário que seja assim; temos que ter o claro e o escuro, o bem e o mal, o
bonito e o feio, diriam eles; a existência dos opostos é natural e necessária. Esse
argumento é muito parecido com aquele que, para inocentar deus pela existência
do mal, usa as leis da natureza como se elas fossem anteriores a ele e não se dá
conta de que está fazendo isso.

Ele é onipotente, lembra? Podia fazer diferente e não há lei ou necessidade que
supere essa possibilidade, dizer que “a existência dos opostos é natural e
necessária” não faz nenhum sentido se você está falando de um ser onipotente, a
não ser que seu deus seja limitado, dependente e impotente. Se for o caso, por
que adorá-lo? Por que dizer dele que é bom? Por que louvá-lo e em seu nome
esquecer o outro, o outro que é real e que sofre como você? Por quê?

XXVIII

Por incrível que pareça as pessoas em geral, e até mesmo cientistas e filósofos
renomados, esquecem sempre que os argumentos contrários à ideia de deus não
podem ser rebatidos com leis físicas e leis da natureza em geral já que ele teria,
como criador de TUDO, que ter criado também essas leis e, principalmente, teria
que, como ser onipotente, que ter o poder de ter criado leis diferentes.

As pessoas costumam colocar em seus argumentos, muitas vezes sem se darem


conta disso, as leis da física, da química, da biologia, da natureza enfim, como se
elas fossem anteriores à existência de deus, na possibilidade de deus existir. Por
exemplo, dizem que o horror que causa a mim o fato de que um animal só pode
viver se para isso se alimentar de outro animal não pode ser usado como
argumento contra a perfeição, a beleza e a maravilha da natureza criada por esse
deus todo bondade porque isso – uma vida só viver se alimentando de outra vida
– é uma lei natural. E argumentam: “Se não fosse assim do que viveríamos?
Plantas também são vivas, sabia?” E me olham como se eu fosse uma criança
dizendo bobagem.

Mas as pessoas se esquecem de que se essas leis e essa necessidade de matar e


morrer forem assim tão imperativas, elas se tornam apenas mais um argumento –
e um dos mais fortes – em favor da tese de que deus não tem como existir.
Afinal, se ele é todo poderoso não pode estar sujeito às leis da natureza, tem que,
ao contrário, tê-las criado, o que o tornaria obrigatoriamente mau já que criou
assim quando, por ser onipotente, poderia ter criado diferente.

E se deus – como dizem sem se dar conta disso – criou tudo sem que fosse
possível afetar, por exemplo, a cadeia alimentar e a necessidade dos opostos
porque essas coisas são leis da natureza e não podem ser alteradas; então deus
está sujeito às leis da natureza, sejam elas quais forem. Isso só pode significar
que deus não é onipotente porque essas leis são mais poderosas do que ele. Se
for o caso então, vamos esquecer deus e cultuar as leis da natureza!

Sem crer em deus todos os fenômenos se explicam e se definem pura e


simplesmente como fenômenos, sem que caiba a eles qualquer tipo de
julgamento do que seja bom e mau. Sem crer em deus fica clara a necessidade de
que os pássaros devorem os insetos para manter o equilíbrio ecológico
necessário para a manutenção de todas as vidas que vivem, por necessidade,
devorando outras vidas nesse nosso planeta azul.

Sem crer em deus fica clara a necessidade da camada de ozônio que nos protege
dos raios nocivos do sol, mas que pode ser destruída a qualquer momento
deixando-nos à mercê desses raios. Sem crer em deus fica claro que não houve e
não há maldade nos acontecimentos catastróficos dos quais a vida na terra já foi
vítima, desde o grande meteoro que exterminou os dinossauros até o terremoto
no Japão. Sem crer em deus faz todo sentido precisarmos inventar a penicilina,
as vacinas, os analgésicos, a anestesia para que as pessoas não morram tanto e
não sintam tanta dor.

Mas, na possibilidade de deus existir, nenhuma dessas coisas faria qualquer


sentido a não ser como provas mais do que óbvias da incompetência de um
criador fraco e limitado ou da maldade de um criador que onipotente que,
podendo fazer de outra forma, optou por isso. Ou seja, cada um dos itens
relacionados acima seria uma prova de que o deus que os teístas cultuam não
existe.

As perguntas são muitas e não são novas: Como é que um ser Todo Bondade
pode permitir a existência do mal? Como é que um ser Onipotente não pode criar
nada melhor do que seres vivos que vivem de matar outros seres vivos? Como é
que um ser Onisciente precisa testar as pessoas porque não sabe se elas lhe são
fiéis ou não? Por que um ser que é Todo Perfeição, e portanto completo,
precisaria do amor, da fidelidade e da adoração do ser humano? Como é que um
ser Justo pode permitir o sofrimento de inocentes? Como é que um ser
Onipresente pode não se manifestar diante do mal? Como é que se pode dizer
que todo o mal que existe no mundo é culpa dos homens se há tantos males que
não têm nenhuma relação com o animal humano? Como podemos olhar para nós
mesmos sem ver que somos vetores e containers do mal e, portanto, imperfeitos
demais para que faça sentido esse conceito de que somos a dileta criação de um
deus perfeito e bom?

Entre todas as infinitas maneiras que, por ser todo poderoso, deus poderia ter
escolhido para criar esse mundo; entre todas as infinitas formas diferentes e
possíveis de mundo que ele poderia ter criado – porque para ele nada é
impossível – deus, se esse deus existir, forçosamente e obrigatoriamente, decidiu
criar justamente esse mundo e criálo sendo exatamente como é.

Ou seja, deus, sendo onipotente e por isso tendo o poder decriar qualquer outra
coisa, escolheu criar o mundo contendo o mal, e contendo seres como nós,
capazes de perceber e de sentir o mal. Ou então, no mínimo, teria criado o
mundo contendo a possibilidade do mal e contendo seres como nós, capazes de
perceber e de sentir o mal.

Afinal, poderíamos ter sido criados de tal forma que não pudéssemos sentir ou
perceber a existência do mal mesmo que ele existisse, não poderíamos? Dessa
forma não sofreríamos; dessa forma não estaria eu aqui, escrevendo páginas e
páginas sobre o mal. A criação do mundo e o modo como seria esse mundo foi
escolha de deus. Não há como, pela lógica, fugir desse argumento a não ser
negando a existência de deus.

E eu afirmo, sem ter qualquer sombra de dúvida, que um deus bom, se um deus
assim existisse, não criaria o mal e não permitiria que qualquer criatura sua,
racional ou irracional, por qualquer que fosse a razão, soubesse ou sentisse o que
é o mal; ou mesmo uma parte do mal. Um deus bom que fosse onipotente
certamente teria criado seres perfeitos como ele. Ou seja, um deus bom que fosse
onipotente certamente não teria nos criado como somos, seríamos perfeitos
como faz sentido ser toda e qualquer criação de um ser perfeito.

Os teístas diriam qualquer coisa do tipo “temos que aprender, temos que nos
aperfeiçoar, a perfeição já dada, sem que nada fizéssemos para atingi-la não teria
valor”; então eu perguntaria: Você quer dizer então que a perfeição de deus não
tem valor? Ou será que deus também teve que aprender a ser perfeito? Quem
ensinou isso a ele? Sei que não obteria nenhuma resposta razoável, então
voltemos à hipótese de que, por alguma razão, deus optou por criar seres em
processo, como somos nós; nesse caso, um deus bom que fosse onipotente
certamente teria maneiras de ensinar e de evoluir sua criação sem usar para isso
a arma do sofrimento imposto e inexplicável.

Deus, por ser onisciente saberia o que é o mal; por ser bom não criaria, a partir
do nada, esse mal ou qualquer outra coisa que pudesse gerar ou causar a
existência do mal; e, por ser onipotente, poderia criar um mundo sem o mal ou
sem a possibilidade do mal, ainda que conservando o tão valorizado livre-
arbítrio, que os céticos não conseguem ver mas que os teístas afirmam e
reafirmam com tanta ênfase.

A maior prova da impossibilidade da existência do deus dos teístas é a


impossibilidade de contestar o fato de que um deus tão bom como esses mesmos
teístas o definem jamais permitiria o mal, e menos ainda que esse mal perdurasse
tanto tempo. Esse “Deus Todo Bondade”, se existisse, teria usado seu infinito
poder para criar um mundo em que não houvesse possibilidade de existência do
mal. Ou não teria criado nada.

Divina de Jesus Scarpim


o

Sou uma professora, uma esposa, uma mãe. Uma mulher curiosa e questionadora
que já viveu mais de meio século. Enquanto vivi fui descobrindo que o amor
existe e não dói tanto assim quando você mantém orgulho; que amigos valem
mais do que tesouros; que filho vale mais do que a felicidade; que descobrir que
se está no mundo sozinha e de mãos vazias não é tão ruim assim se a gente puder
pensar; e que quando alguém diz que algo é a Verdade a melhor coisa que faço é
duvidar.
Pude constatar que a história de todos os povos é feia e sanguinolenta embora
todos os lugares sejam maravilhosos e todos os países sejam o melhor do mundo.
Vi que todas as línguas são pura poesia; todas as culturas são ricas; todos os
times são vitoriosos; todas as crianças são lindas; todos os jovens são fantásticos
e o preconceito é a maior de todas as burrices.

E sou teimosa, tem coisas que não aceito nunca. Por exemplo, eu me recuso a
aceitar que alguém, por mais “em nome de deus” que seja, tenha o direito de
proibir duas pessoas de se amarem. Eu me recuso a aceitar que estupro possa ser
justificável. Eu me recuso a aceitar que os animais existem apenas para uso dos
seres humanos. Eu me recuso a aceitar que sofrimento, estupro, tortura e morte
de crianças possam ser justificados por qualquer tipo de justiça, por mais
“divina” que seja. Eu me recuso a aceitar que uma pessoa espancando outra
pessoa possa ser uma definição de esporte.

Sou alguém que ainda está viva e atuante e que, portanto, aprende alguma coisa
todo dia. Mas sei que isso não durará muito tempo. Porque a vida é curta e o
melhor a fazer é sorrir e amar.

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ŽIŽEK, Slavoj. O Amor Impiedoso: (ou: Sobre a Crença). Trad. Lucas Mello
Carvalho Ribeiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2012

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