Sei sulla pagina 1di 169

ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E


CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA
(1960-2006)”

MESTRADO – HISTÓRIA SOCIAL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO
2006
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1

ANDRÉ AGUIAR NOGUEIRA

“FOGO, VENTO, TERRA E MAR: MIGRAÇÕES, NATUREZA E


CULTURA POPULAR NO BAIRRO SERVILUZ EM FORTALEZA
(1960-2006)”

Dissertação apresentada a Banca


Examinadora da pontifícia Universidade
católica de São Paulo, como exiegência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em História Social sob a orientação do Prof.
Dr. Maurício Broinizi.

PUC/SP

2006
2

BANCA EXAMINADORA

_________________________

_________________________

_________________________
3

Dedidado especialmente à
minha mãe Francisca,
ao meu pai Batista
e aos meus irmãos:
Adriana, Andréia e Alex.
4

Agradecimentos

Uma pesquisa é sempre uma elaboração realizada em conjunto. Gostaria de agradecer


inicialmente a todos aqueles, que por qualquer motivo, sentiram seus nomes ausentes nesta
lista.
Agradeço muito especialmente ao meu parceiro e orientador Maurício Broinizi
Pereira. Agradeço igualmente ao corpo docente da PUC-SP, principalmente as professoras:
Yvone Avelino, Denise Bernusi Sant’Ana, Olga Brites, Vera Lúcia e Antonieta Antonacci.
Agradeço de todo o coração a querida Márcia Barros Valdívia, pessoa maravilhosa e
que muito contribuiu para a execução do presente trabalho.
Ao professor Eduardo Bonzato e ao amigo Antônio Luiz Macêdo pela disponibilidade
e inteligência na leitura desse texto.
Agradeço ao professor Janes Jandes e novamente a professora Yvone Avelino pelas
preciosas sugestões oferecidas na banca de qualificação.
Obrigado a Ana Karine, Alan, Beth, Emília, Mayara, Fernanda, Alice e a todos os
companheiros da minha turma de mestrado com os quais compartilhei as primeiras alegrias e
as tensões na confecção dessa dissertação.
Agradeço a ternura, o respeito e o acolhimento de Marcelo Farias, pessoa que muito
estimo e que me ensinou também os caminhos noturnos de Sampa.
Muito obrigado a Leandro Paschoarelli, companheiro e amigo, sua forte personalidade
certamente ajudou a tonar a vida mais bela e cadenciada em meio às loucuras da paulicéia.
Agradeço a Antônio Gilberto e a Wellington Júnior, amigos de Fortaleza, São Paulo e
sempre.
Agradeço ao Josberto e a Clarissa. Obrigado Kiko, Fábio e Rafael Caxilé.
Aos amigos Abel e Armando e Eliomar, dispersos, mas sempre queridos.
Tudo começou no PET História da UFC e lá se vão alguns anos. Agradeço aos
companheiros do Programa, e hoje amigos, Edson, Gustavo, Juliana, Viviane, Felipe, Eudes e
Silviana. Agradeço a “turma dos sete”: Idalina, Henrique, Lucília, Marla, Márcio e Zé da
Rocha, com os quais partilhei as primeiras angústias da pesquisa histórica. Obrigado ainda ao
Raimundo, Guilherme, Hermano e Eduardo.
Agradeço a todos os professores do curso de História da UFC, especialmente aqueles
com os quais, de algum modo, compartilhei essa pesquisa: Frederico de Castro Neves,
5

orientador e incentivador durante a graduação, Kênia Rios, Edilene Toledo, Verônica Secreto,
Adelaide Gonçalves, Eurípedes Funes, Régis Lopes, Frank Ribard e Ivone Cordeiro.
Um agradecimento especial à professora Simone Simões, antropóloga e amiga
querida.
Obrigado a professora Helena do Imparh pela competente e sugestiva revisão desse
texto.
A toda a galera do curso de História da UFC: Thiago, Daniel, Kerson, P. A, Carol,
Renata, Anna Carmem, Laninha, Liana, Edgar, Yassuo, Neto, Pedro, Henrique, Naná, Alê,
João Paulo, Josi, Engels, Gesner, Adalberto, Pereira, Rquel, Vitão.
A todos os colegas do primeiro semestre do ano 2000, especialmente a Túlio Muniz e
Camila Pagliuca.
A rapaziada do bosque: Capacete, Calixto, Carlos Jorge, Manoel Carlos, Tyrone,
Paulinho, Chicão, Gerardo e aos colegas do curso de Comunicação Social.
Agradeço sinceramente a inesquecível Lorena Lyse Lima Rodrigues.
À querida Nicinha e família.
A Karla, pela felicidade nesses dias preocupantes.
Esse trabalho não seria possível sem a participação dos moradores da comunidade do
Serviluz. Agradeço a todos aqueles que em algum momento me ajudaram, dando dicas
preciosas ou simplemente emprestando-me um pedaço de papel e uma caneta.
Agradeço especialmente a todos os que gentilmente concederam-me entrevista.
Agradeço aos amigos Clécio, Cleilson, Gleison, Jorge, Cláudio, Fábio, Gleisinho, Hélio,
Ilamar e a toda a galera do Titanzinho. Aos meninos do Paz e do Peleja. Ao David, vizinho,
historiador e amigo.
A todos os meus familiares.
Aos funcionários dos arquivos em que passei e que gentilmente atenderam-me.
Agradeço a CAPES pelo auxílio financeiro.
Agradeço de modo muito especial à população do Serviluz, pelas lutas, conquistas,
ensinamentos e pela feitura de uma história, sem dúvidas, dignas de ser narrada. Espero
sinceramente que este trabalho esteja à altura da grandeza de vocês.
6

RESUMO

Essa dissertação tem por objetivo central compreender o processo histórico de


formação e urbanização do Bairro Serviluz em Fortaleza. Comunidade localizada entre o
oceano Atlântico, o Porto do Mucuripe e um complexo industrial especializado no ramo de
gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi ocupado por
um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Pescadores, meretrizes, surfistas,
portuários, trabalhadores da indústria, pequenos comerciantes e, sobretudo, trabalhadores
informais misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente
multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias. Procura-se perceber ainda
como a comunidade convive com uma paisagem natural modificada pelo progresso e de que
modo às pessoas vivenciam suas sociabilidades.

Palavras-chaves: bairro, comunidade, natureza e cultura popular.


7

ABSTRACT

This dissertation has for central objective to understand the historical process of
formation and urbanization of the Serviluz district, in Fortaleza. Community located between
the Atlantic Ocean, the Port of the Mucuripe and an industrial complex specialized in the
production of gas and fuel, this narrow beach piece was occupied by a sufficiently
heterogeneous contingent of workers. Fishers, prostitutes, surfers, dock workers, industry
workers, small traders and, over all diligent informal, are together, configuring particular
aspects of a community culturally multifaceted and marked by distinct migratory experiences.
It is looked to perceive how the community coexists with a natural landscape modified by the
progress and which way the people had lived its sociabilities.

Key-words: district, community, nature, popular culture.


8

Sumário
Introdução.................................................................................................................…...6
Capítulo I
1 O Mucuripe e o Serviluz - da aldeia de pescadores à moderna selva de
pedra...............................................................................................................................20
1.1 Os verdes mares bravios.........................................................................................20
1.2 Homens do mar, pés no chão..................................................................................30
1.3 A “tragédia” portuária............................................................................................41
1.4 A indústria de fogo..................................................................................................47
1.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária..........................................52
Capítulo II
2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma comunidade
multifacetada................................................................................................................57
2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”.....................................................................58
2.2 A Praia Mansa........................................................................................................69
2.4 A crise na pesca e o surgimento de novos trabalhadores...................................75
2.3 A seca e a cidade.....................................................................................................80
2.5 A marginalidade e a imagem do medo.................................................................88
2.6 A comunidade .......................................................................................................95
Capítulo III
3 O homem e a natureza: os elementos para as
transformações.........................................................................................................109
3.1 As areias que voam.............................................................................................109
3.2 Da taipa ao tijolo.................................................................................................120
3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local...........................................................131
Conclusão...................................................................................................................144
Relação de Siglas ......................................................................................................145
Relação de imagens anexas.......................................................................................146
Arquivos e Fontes......................................................................................................147
Bibliografia................................................................................................................150
Anexos .......................................................................................................................155
9

Introdução

O desejo de estudar a história do bairro Serviluz, litoral leste de Fortaleza, apesar de


um sonho antigo, somente começou a se concretizar quando ingressei na Universidade
Federal do Ceará, em 2001. Acredito que somente nesse momento foi possível conciliar os
instrumentos teóricos e metodológicos, gerados, sobretudo, a partir das reflexões da História
Social. Começava então a tomar corpo a idéia de produzir um trabalho historiográfico que
fundia a pesquisa acadêmica na minha vivência diária.
A presente pesquisa tem por objetivo central analisar o modo de vida dos sujeitos e as
relações sociais que estes estabeleceram na região industrial em torno do Cais do Porto do
Mucuripe, em Fortaleza. mais especificamente, esse estudo procura compreender o processo
histórico de formação e urbanização de uma faixa de praia que se convencionou chamar
popularmente de Bairro Serviluz.
Ocupação urbana recente, a formação desse núcleo habitacional está relacionada a
uma série de transformações ocorridas nos espaços da cidade no período contemporâneo,
sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Minhas indagações visam principalmente
compreender quais foram as condições de trabalho e moradia dos migrantes que
experimentaram a vida nessa parte da cidade que se tornava metrópole.
A análise das condições de vida e das sociabilidades geradas entre as pessoas que se
estabeleceram nessa região só foi possível a partir da reconstrução de parte do processo de
ocupação, formação e consolidação dos primeiros núcleos habitacionais dessa parte de
Fortaleza. O cotidiano dos homens e mulheres que vivem no bairro Serviluz está diretamente
relacionado ao modo de viver dos pobres na periferia urbana, principalmente os das áreas
litorâneas, e inscrito nas mediações e contradições estabelecidas com as políticas públicas e
com a iniciativa privada da cidade.
A percepção das múltiplas dimensões da vida social dos trabalhadores que ocuparam
esse lugar necessitou de um entendimento da cultura como sendo algo pessoal e subjetivo e ao
mesmo tempo um processo de convívio coletivo. Resultado de ações concretas, os aspectos
culturais das classes trabalhadoras comportam a simplicidade do viver em família como
também refinados mecanismos de estratégias políticas, dentro dos quais se vivem tanto as
relações pessoais mais íntimas quanto as coletivas.
Situado entre o oceano Atlântico, o novo porto é um complexo industrial especializado
no ramo de gás e combustível, esse estreito pedaço de praia no extremo leste de Fortaleza foi
10

ocupado por um contingente bastante heterogêneo de trabalhadores. Ali, ainda hoje,


pescadores, meretrizes, surfistas, portuários, trabalhadores da indústria, pequenos
comerciantes e, sobretudo, trabalhadores do mercado informal, os ditos “biscateiros”,
misturam-se, configurando aspectos particulares de uma comunidade culturalmente
multifacetada e marcada por distintas experiências migratórias.
No Serviluz, milhares de famílias vivem em casas muito apertadas. Amontoadas, as
pequenas habitações formam ruas estreitas e labirínticas constantemente ameaçadas pela
invasão da areia, soprada pelos fortes ventos dessa parte do litoral. Geograficamente, o espaço
já foi apenas uma praia afastada, constituída por dunas de areias móveis e assolada pela ação
corrosiva da maresia. Quando as primeiras construções foram edificadas, o local, inóspito, era
praticamente inabitável. No lugar, não são raros os relatos de pessoas que tiveram suas casas
repetidas vezes derrubadas pelo vento ou pela água da chuva.
O avanço das marés, as cortinas de areia, a feroz ventania, e, posteriormente, o fogo da
indústria petroquímica foram elementos que se integraram à composição da paisagem social.
Essa mistura fazia sugerir a existência de uma relação orgânica, intensa e imediata entre
homem e natureza, entre natureza e cultura.
SERVILUZ era o nome do antigo Serviço de Luz e Força de Fortaleza, empresa
geradora de energia elétrica extinta no início dos anos 1960. Após a desativação da usina, esse
se tornou também o nome popular da favela que a circundava, sendo nessa denominação que
seus moradores passaram a se reconhecer. “Aqui é o Serviluz: de dia falta água e de noite
falta luz”, essa antiga anedota local parece indicar um dos primeiros elos de unidade entre os
moradores do bairro: a inexistência de energia elétrica, por longo tempo, nos domicílios que
se localizavam ao lado da usina.
Os números demográficos e a delimitação urbanística do bairro são bastante
imprecisos, mas segundo pesquisas populares, atualmente a população do bairro conta com
cerca de vinte mil habitantes1. Na distribuição administrativa municipal, o bairro e uma série
de outros núcleos populacionais aparecem sob a designação de Bairro Vicente Pinzón2. O fato
é que o bairro simplesmente não existe na configuração urbana oficial da cidade.

1
Pesquisa realizada por membros locais do Partido dos Trabalhadores (PT).
2
O Vicente Pinzón integra-se administrativamente a Secretaria Executiva Regional II (SER II) da Prefeitura
Municipal de Fortaleza e engloba basicamente os bairros Serviluz, Castelo Encantado, Conjunto Santa
Teresinha, Lagoa do Coração, Morro das Placas, parte da Praia do Futuro, entre outros. A dimensão geográfica,
confusa, certamente não corresponde à totalidade da população que ali habita. Nas estatísticas oficiais, por
exemplo, a região possui uma população de apenas 39.551 habitantes. Por sua vez, o Bairro Cais do Porto,
comumente confundido também com o Serviluz, apresenta um quadro demográfico de 21.529 habitantes (Censo
IBGE-2000). Para se ter uma idéia desse desacordo, enquanto o Mucuripe tem 11.990 moradores, o Grande
Mucuripe, uma nomenclatura vaga, registra 203.220 habitantes (Censo IBGE-2000).
11

As primeiras ocupações do Serviluz e de boa da área leste da cidade foram efetivadas a


partir da construção do novo porto de Fortaleza e da transferência e instalação de um novo
ponto de meretrício na cidade em 1961, a zona do Farol do Mucuripe.
No fim dos anos 1970, com a intensificação do processo migratório para a capital
cearense em período de forte estiagem (1978-1982), e com o remanejamento para o local (ver
mapa) de uma comunidade de pescadores, antes fixada nas margens do cais portuário, a beira
de praia sobre a qual se ergueu o bairro já estava completamente tomada por tipos variados de
trabalhadores.
O crescimento demográfico e a diversidade de ocupantes refletiu-se nas subdivisões
internas que o bairro passou a comportar após o processo de ocupação3 (ver mapa). Além do
recorte espacial, uma dificuldade inicial da presente pesquisa foi ainda o estabelecimento de
um recorte temporal que abarcasse a ocupação inicial do bairro, nos anos 1960, e as
transformações desencadeadas no período atual. A chegada de grande leva de prostitutas,
trabalhadores do cais, pescadores e outras famílias fugidas das secas, sobretudo nos anos
1970/80, consolidaram uma população hoje com aspectos muticulturais.
Na tentativa de reconstituição desses eventos, a coleta, a sistematização e os
questionamentos lançados sobre as fontes, e principalmente a produção de entrevistas com
moradores do bairro, fizeram-me acreditar que seria imprescindível partir do momento atual,
do tempo da fala. Além disso, algumas vezes foi preciso recuar no tempo, mesclando uma
gama de temas diferentes que se mostravam essenciais ao entendimento do Serviluz como
resultado de um processo histórico complexo e ainda em andamento. Desse modo, procura-se
articular os diferentes momentos de ocupação do lugar, a produção de lutas pela organização
comunitária, as interações e as sociabilidades em constituição.
A escrita de uma história do tempo presente evidencia, entre outras especificidades, a
singularidade de estabelecer uma proximidade mais imediata com o objeto de estudo, o que
inevitavelmente acaba agregando pontos de vista, experiência pessoal, e ensejando
posicionamento e compromisso social do historiador.
Como pesquisador, foi de suma importância reconhecer o meu profundo envolvimento
com esse objeto de estudo com o qual mantenho estreitas relações de afinidade pessoal. No
trabalho, além do que foi encontrado nas fontes escritas e registrado nas fitas cassetes,
considerei igualmente importantes as incontáveis conversas informais, as frases de domínio

3
As divisões internas foram se estabelecendo no decurso do tempo e, geralmente, em função das migrações de
grupos de trabalhadores para o local. A Estiva, o Farol, a Fronteira, a Favela, o Titanzinho, o Rastro, o Final da
Linha, a Pracinha, e o Chespierre são partes localizadas, mas integrantes do mesmo bairro.
12

geral (citadas entre aspas), as observações de campo, as anotações das pequenas impressões e
a experiência de alguém que também migrou para aquela praia e nela reside há mais de quinze
anos. Sobretudo, deve-se creditar qualquer possível rigor científico deste estudo ao modo
transparente com o qual os documentos foram trabalhados.
No que concerne mais diretamente à metodologia com História Oral, Portelli4
observou que a relação social e pessoal entre os dois interloucutores também tem um papel
importante na produção das fontes de pesquisa. Trata-se de uma troca pessoal que se torna
uma declaração pública, uma performance que vira texto. A forma da entrevista depende
também do grau de familiaridade do entrevistador em relação à realidade sob investigação:
“os narradores pressuporiam que um historiador ‘nativo’ já conhece os fatos e fornecem em
substituição explicaçõoes, teorias e julgamentos”5.
Richard Hoggart foi taxativo ao enfatizar que um escritor tem obrigação de resolver
estes problemas como lhe for possível e durante o próprio processo de escrever, enquanto luta
por descobrir o que tem verdadeiramente para dizer: “Não me eparece possível que ele
consiga alguma vez atingir uma objetividade absoluta”6.
Sabendo de antemão dos perigos e das armadilhas decorrentes da proximidade com as
entrevistas, que exigiram um necessário “afastamento” metodológico, a singularidade de
conhecer mais de perto a realidade diária dessas pessoas me forneceu muitos elementos de
análise, capazes talvez, de apreender com maior riqueza de detalhes as dimensões mais
íntimas do cotidiano, da cultura e das identidades locais.
A praia do Mucuripe foi um conhecido reduto de jangadeiros e prostitutas que
recebiam, esporadicamente, visitantes de outras regiões encantados com aquela bela
paisagem. Com a construção do cais e o advento da indústria, alguns estivadores e indivíduos
de outras categorias somaram-se timidamente a esse contingente. Durante a estiagem de
quatro anos, no fim de 1970, novas favelas se espraiaram sobre as dunas dessa parte da
cidade.
Fortaleza é uma cidade cuja história é profundamente marcada pelo êxodo rural; ilhas
de prosperidade e bairros elegantes se constituíram em meio a periferias. De modo geral, os
núcleos habitacionais, ou favelas, que circundaram o complexo portuário, foram sendo
ocupados sobre as areias da praia de jangadeiros do Mucuripe desde a década de 1940, época

4
PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos
Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº.
22. São Paulo: EDUC, junho de 2001.
5
Op. Cit. PORTELLI, p. 21.
13

do término da construção da primeira etapa do porto e do início da montagem do parque


industrial na região.
É a partir do novo porto - elemento central no processo de expansão e reordenação
espacial da tradicional enseada de pescadores do Mucuripe - que a região vai experimentar
uma série de mudanças: nas suas reservas geográficas, no tipo de ocupação territorial e uso do
solo, na funcionalidade econômica, na expansão demográfica e na vivência social do seu
espaço.
Em Fortaleza, o projeto de industrialização correu, em determinado momento, em
paralelo à invenção de uma cidade turística diferenciada. No Mucuripe, as remoções iniciais
da população pobre, realizadas para o porto, foram continuadas com a construção da primeira
etapa da luxuosa Avenida Beira-Mar (1963), tornando esse espaço alvo privilegiado da
especulação imobiliária. A cidade das areias foi sendo cortada por asfalto. Em todas as
direções, bairros longínquos se integraram num curto espaço de tempo.
Essa é uma época caracterizada historicamente por grandes transformações, tanto na
paisagem quanto nos usos sociais dos espaços litorâneos brasileiros. Na Região Nordeste, a
velha imagem do semi-árido sofrido foi se intercalando com a idéia de um paraíso tropical,
belo e atrativo. Devido à “limpeza” urbana, algumas cidades nordestinas, como Fortaleza,
ganharam condições de disputar a atração de turistas nacionais e estrangeiros com os outros
lugares de visitação do país. O turismo tornou-se uma febre.
Assim, as modificações e intervenções do homem na natureza não alteraram apenas a
paisagem natural, mas também o convívio e a cultura. No Serviluz, após a ampliação de mais
um espigão de pedras e o aterramento de parte da orla, para que os pescadores da Praia Mansa
(ver mapa) fossem remanejados da área portuária, possibilitou-se a prática do surfe pela
garotada local. Inicialmente realizado sobre tábuas, o surfe na praia do Titanzinho (ver mapa)
emergiu como um tipo de trabalho e uma forma de promoção social. Os meninos da
comunidade logo ganhariam títulos e notoriedade, colocando a comunidade na mídia
esportiva nacional.
Nesta pesquisa procuro argumentar que, na pequena praia do Serviluz, um espaço
configurado historicamente por múltiplos territórios e personagens, em meio às adversidades,
proporcionadas tanto pela complicada relação estabelecida com a natureza quanto pelas
mediações mantidas com as políticas públicas excludentes da cidade, homens e mulheres

6
HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais
referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões). P. 22.
14

aprenderam a compartilhar projetos e angústias, a redefinir valores, tornando-se agentes mais


ativos na construção de suas histórias de vida.
De modo geral, são escassos as pesquisas e os documentos sobre as regiões portuárias
cearenses. Apesar do rico patrimônio cultural dos habitantes das áreas praianas, também não
são muitos os trabalhos sobre a história dos moradores de seus bairros, principalmente os
formados em decorrência das migrações recentes para a capital. Em Fortaleza, algumas
regiões mais antigas incorporadas à malha urbana da cidade ainda na primeira metade do XX,
como Messejana e Parangaba, ou bairros mais antigos como Centro e Pirambu, foram temas
estudados e sobre esses lugares há uma documentação já catalogada.
Sobre o histórico vilarejo do Mucuripe, um dos berços habitacionais da cidade, existe
numerosa e variada documentação. Passagens sobre a história do lugar são encontradas em
antigos livros de História do Ceará, na literatura, em vários jornais e em reminiscências de
memorialistas. A praia foi ainda inspiração de músicas e poemas e recentemente passou a
contar com um acervo do bairro7.
No caso do Serviluz, encontrado muitas vezes nas fontes de pesquisa como sendo
apenas mais uma ramificação marginal do velho Mucuripe, minha primeira preocupação foi
realizar um levantamento de fontes sobre sua história. Aos poucos, reunindo informações
dispersas e cruzando diferentes tipos de documentos, acreditei se tratar de um processo
histórico instigante, em que um emaranhado de conflitos e resistências, intrigas e partilhas
podiam ser reconstruídos.
Na documentação do Estado, cujo principal arquivo consultado foi o Acervo Virgílio
Távora8, obtive numerosas informações sobre a seca e os municípios com ameaça de invasão
de trabalhadores no interior; o problema habitacional e a política social na periferia da capital;
os projetos de eletrificação e o processo de industrialização; a racionalização da agropecuária
no campo e o problema da falta de empregos na cidade. Mesmo sendo uma documentação de
cunho oficial, esse material foi imprescindível, pois nele foi preciso reconhecer como os
trabalhadores, citados sob a forma de estatísticas, participavam de ações políticas e da disputa
pelo poder local.

7
Arquivo criado na década de 1990. Reúne uma variada documentação, escrita e iconográfica, sobre a história
do bairo. O acervo foi criado e é coordenado por uma antiga moradora do Mucuripe Vera Lúcia Miranda, a
Verinha.
8
O acervo do ex-governador Virgílio Távora, organizado em 2003, está disponível no Arquivo Intermediário do
Arquivo Público do Estado do Ceará. O acervo reúne documentos particulares e administrativos, mapas,
fotografias, comendas, troféus, diplomas e objetos pessoais do político cearense. Cf. CEARÁ, Inventário do
Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo Público. Fortaleza: SECULT, 2005.
15

Nas páginas dos jornais da época, os destaques primeiros foram dados para o tímido
crescimento do mercado imobiliário, a emergência elegante dos bairros ilustres e dos clubes
de veraneio, o debate sobre as obras no porto, a abertura de novas estradas, as empresas que
resolveram migrar do Sul para o Nordeste e as disputas pela terra no sertão. Noutro momento,
a partir de meados dos anos 1970, as notícias davam conta do inchaço desordenado da cidade,
do saneamento urbano nas novas áreas de risco, das sucessivas crises econômicas e do tímido
anúncio da globalização. Num médio prazo, realizando uma leitura mais panorâmica dos
jornais, parece que o país foi do sonho eufórico da modernização operada nos anos 1950 ao
tenebroso pesadelo das sucessivas crises econômicas desencadeadas a partir da década de
1970.
Mas, nos cadernos dos diversos periódicos, não era difícil observar que a praticidade e
as benesses da vida moderna sempre se intercalavam ao cotidiano violento, criminoso e
desajustado das favelas que não paravam de crescer. Tratava-se de notícia dispersa que,
analisada em conjunto, indicava e atribuía formas e definições, emitindo juízos sobre
determinados assuntos.
Interessante observar como grande parte dos registros sobre a vida na periferia estava
escrita nas páginas policiais. De modo geral, essas fontes veiculam informações e produzem
representações que não correspondem à realidade vivida nesses espaços. Nas reportagens
divulgam-se, sobretudo, os dramas, as catástrofes e a política assistencialista do Estado, cada
vez mais disfarçada sob o lema da ampliação da cidadania.
A imprensa do Ceará no período contava com os seguintes jornais: O Povo, Correio do
Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará e O Estado, além do jornal Diário do Nordeste, criado em
1982, e do jornal alternativo Mutirão (1977-1982). Na imprensa, guardadas as devidas
especificidades, a pesquisa sobre determinados espaços da cidade, como o Serviluz, foi
revelando que as informações vinham sistematicamente acompanhadas de adjetivos como
“perigoso” e “assustador”, e as coisas que dali provinham tinham quase sempre uma “origem
duvidosa”.
Por isso, ao utilizar esse material como fonte historiográfica, foi necessário considerar
o caráter do processo de produção da informação e a imprensa como constituinte de um certo
tipo de memória, que atende prioritariamente ao interesse de grupos sociais específicos.
Apesar da relevância das fontes de imprensa para os investigadores do período
contemporâneo, sabe-se que a grande maioria da população do bairro não tem acesso a esse
tipo de leitura.
16

Foi então preciso estabelecer uma metodologia de pesquisa na qual os critérios de


escolha e análise das fontes documentais possibilitassem a percepção da comunidade sob o
ponto de vista de seus moradores e não somente sob o epíteto de favelados. A meu ver,
analisá-los simplesmente, sob o prisma econômico, seria injusto e limitado em demasia.
Nesse contexto, foi importante considerar não apenas o que era dito sobre a
comunidade, mas principalmente o que fora produzido dentro da comunidade. Dessa
produção, os registros das associações de moradores mereceram reconhecido destaque. Nos
arquivos encontrei indícios mais concretos de experiências associativas e do aprendizado
político ali desenvolvido.
Nos arquivos das associações do bairro, porém, encontra-se uma documentação quase
sempre incompleta, cheia de lacunas e às vezes faltam elementos básicos como a data ou o
local da realização do encontro. As atas, por exemplo, são do tipo falada, algumas palavras
são anotadas com erros gramaticais, escritas às pressas em letras garrafais. O texto era escrito,
mas carregado de características da oralidade.
Esse discurso, embora elaborado numa linguagem própria e eivada de sentidos,
obviamente não corresponde à prática. E, por mais pormenorizada que seja uma ata, através
dela não seria possível identificar, por exemplo, o clima tenso ou alegre de uma reunião.
Outra consideração importante sobre tais registros é que, apesar de essa ser uma
produção realizada pelos próprios moradores da comunidade, muitas vezes somente os
membros da diretoria, os “sócios”, tinham direitos a voz e voto. Apesar de a finalidade social
dessa fonte estar relacionada basicamente à prestação interna de contas entre os associados,
possuindo efeito simplesmente comprobatório das ações do movimento, a documentação é
sempre permeada por relações de poder e se fundamenta em grande parte na hierarquia que
rege a instituição.
No Serviluz, assim como nos modelos organizacionais dos bairros adjacentes, é muito
relevante a opinião das lideranças comunitárias como formadoras de uma certa versão da
memória local. Se, por um lado, foi preciso reconhecer a importância dessas lideranças para o
desenvolvimento político da comunidade, por outro, não se podia esquecer que a altivez
dessas vozes ocultava a fala dos participantes anônimos do mesmo processo.
Disso resultou que, além das fontes escritas, a contribuição oferecida pela oralidade se
mostrou riquíssima, sobretudo porque muitos dos participantes ativos dessa trama ainda estão
vivos. Ademais, ainda teima em prevalecer ali a tradição viva da fala, da experiência verbal e
dos ensinamentos proverbiais dos mais velhos, gente que quase sempre consegue sobreviver
dispensando o mundo da escrita. Por isso, o diálogo com esses sujeitos é fruto não apenas da
17

necessidade de “dar voz” a essas pessoas, mas também porque esse é um universo em que a
oralidade sobrepõe-se à escrita nas construções e reconstruções da memória.
O trabalho com História Oral foi uma experiência rica e bastante singular. Um longo e
sinuoso trajeto foi percorrido das primeiras histórias de vida - timidamente colhidas diante do
gravador, objeto muitas vezes assustador - à convicção de que em cada depoimento havia uma
mensagem a ser transmitida e uma “verdade” a ser considerada; o contínuo retorno à infância
e a constante ressignificação das experiências passadas em função do tempo presente.
Basicamente, o processo de produção das entrevistas pode ser dividido, do ponto de
vista metodológico, em dois momentos distintos. No primeiro, os depoimentos orais foram
obtidos através de um prévio roteiro de perguntas e respostas mais diretas e que funcionaram
em essência como fonte de informação para a elaboração de subitens temáticos. Essa foi uma
fase relativamente simples, pois os próprios moradores da comunidade indicaram as pessoas
mais “sabidas” sobre a história do bairro. Com facilidade, estabeleci uma relação a meu ver
coerente.
Elaborei assim uma espécie de rede de entrevistas, estabelecendo, como critério
primordial de escolha dos depoentes, a tentativa de dialogar com diferentes membros da
comunidade. Líderes comunitários, pescadores, estivadores, trabalhadores da indústria, ex-
prostitutas, surfistas, donas de casa e trabalhadores informais foram ouvidos, perfazendo um
total de 11 (onze) entrevistas com durações de tempo variado.
Logo aflorou a deficiente formação profissional e a inexperiência acadêmica para
realização dessa atividade. A fragilidade metodológica inicial incluía desde o manejo com o
equipamento técnico até a falta de uma certa sensibilidade para lidar com a sutileza de
situações simples ocorridas no decurso do diálogo.
Já na primeira entrevista, depois de uns quinze minutos de conversa, o entrevistado,
bruscamente, interrompeu a gravação, desligando ele próprio o aparelho e pedindo-me para
que pulasse aquela pergunta. Eu o havia interrogado sobre uma possível participação sua nas
associações comunitárias do bairro. Ao fim da conversa, o entrevistado me contou que não
falara sobre aquele assunto porque “comunidade dava muita encrenca”.
Paradoxalmente, o gravador parecia ajudar tanto quanto atrapalhar. Eu mesmo não
gostava daquele objeto estranho entre duas pessoas no ato da entrevista. Aquele aparelhinho
tinha a incrível capacidade de inibir as pessoas que, ao saberem que tudo seria registrado,
tinham demasiada cautela no ato da fala. Por outro lado, muitos o aproveitavam e o utilizavam
como meio de soltar a falar e denunciar.
18

Optei então pelo uso de um rádiogravador portátil. Um pouco maior e com microfone
embutido no próprio aparelho, permitia captar o som numa distância mais longa, o que
possibilitou a eliminação física imediata do gravador. Além disso, para eliminar a tensão dos
primeiros instantes, comecei a ter também o hábito de ligar o rádio e ouvir música enquanto
preparava a gravação, o som poderia facilitar um possível relaxamento do depoente.
Num segundo momento da confecção das entrevistas, a dinâmica e a maleabilidade da
fonte oral exigiram uma redefinição dos critérios de escolha das pessoas e das questões a
serem feitas. Foi preciso, por exemplo, redimensionar a filtragem em função da profissão
exercida e a separação dos indivíduos em grupos, na medida em que essa divisão não
satisfazia a certos problemas e indagações da pesquisa em fase mais avançada.
Permanecia ainda a tentativa de dialogar com os múltiplos sujeitos do bairro, figuras
“representativas” de seus grupos e espaços, possibilitando assim a abertura de canais de
interação entre a diversidade ali existente. Segundo Ecléa Bosi “a memória oral é fecunda
quando exerce a função de intermediária cultural entre gerações”9.
Numa nova triagem, bem como no possível retorno a entrevistas anteriores, procurei
levar em conta não apenas o grau de conhecimento, a participação e o envolvimento político
do depoente, mas principalmente a forma e a capacidade de relembrar suas memórias. A idéia
não era mais saber apenas sobre a história do bairro em si, mas perceber como, no desenrolar
de cada narrativa individual, as pessoas reelaboravam suas experiências de coletividade. Não
interessava simplesmente constatar as participações mais efetivas, mas entender o sentido que
cada participação ou ausência teve na vida das pessoas.
Ao se trabalhar com História Oral, foi preciso aprender que o silêncio pode dizer
muito. Ao mesmo tempo, o fato de se saber da existência de certos constrangimentos sobre
determinados assuntos revelou a necessidade de se ter grande delicadeza para tratar certas
questões, ainda mais quando se mora na comunidade pesquisada.
Nos registros das associações do bairro, já apareciam denúncias de brigas e corrupção
entre os membros das entidades. O fato é que supostas fraudes, apropriações indébitas dos
equipamentos comunitários e os casos de brigas e ameaças passaram também a fazer parte da
luta por melhorias. Indicavam tanto os perigos decorrentes do exercício e manipulação do
poder no local, como a existência de uma tênue diferença entre o que é o espaço público e
aquilo que se torna particular. Existe um fluxo permanente e intenso de informações entre a
rua e o lar, a partir do qual ambos são constantemente modificados.

9
BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória: Patrimônio Histórico e
Cidadania. São Paulo: DPH, 1991. p. 146.
19

Se foi preciso respeitar a individualidade de cada entrevistado, foi possível observar


que no Serviluz muitos dramas e tragédias particulares se tornaram histórias de domínio
público. Há na verdade uma continuidade, entre as gerações, da transmissão dos casos mais
célebres que permeiam o imaginário e a memória social do bairro. Numa perspectiva
diferenciada das dos jornais, essas narrativas trazem geralmente situações dramáticas ao
extremo, crimes, mortes ou histórias de vidas que findaram tragicamente. A desgraça alheia,
nesse caso, vem sempre acompanhada de uma mensagem moralizante e exemplar.
Foi preciso ter em conta ainda que, apesar de o tema lidar com eventos históricos
contemporâneos, havia algumas distinções que se referiam à historicidade e à cultura dos
diversos grupos sociais, as quais precisavam ser consideradas.
No meretrício, por exemplo, era bastante difícil encontrar os personagens que viveram
nesse ambiente à época da inauguração dos prostíbulos do Farol, em 196110. No bairro, nessa
profissão o tempo de vida das mulheres é geralmente bem curto, quase todas faleceram ou
mudaram de endereço com a crise da “zona” nos anos 90. Muitas mulheres assumiram a nova
condição de dona de casa ao se casarem com pescadores ou estivadores mais prósperos que as
tiraram dos bordéis. Nesses casos, mesmo quando a mulher assumia desinibida o seu passado,
além da questão ética11 que perpassa todo o tema, restava ainda uma forte questão de gênero,
pois ela estava sendo entrevistada e falaria da sua vida íntima para um homem.
Já entre os surfistas, uma peculiaridade importante a ser considerada foi a pouca idade
dos praticantes desse esporte. Na localidade, mesmo os adeptos da primeira geração
dificilmente ultrapassam os 40 anos de idade. Nesse caso, não dialogava com os mais velhos,
fundamento básico no trato com história oral, mas com pessoas essencialmente jovens e que,
além disso, se expressam numa linguagem própria.
Outro fator relevante é que, apesar da pouca idade, esses adolescentes vão adquirindo,
ao longo de campeonatos, o hábito de aparecer na mídia esportiva promovendo seus
patrocinadores. Esse fato acaba propiciando a cristalização de certas falas e jargões entre os
competidores. Por outro lado, não foram raros os surfistas que preferiam não gravar o
depoimento, mas se mostrav Por isso foram utilizados alguns trechos das entrevistas

10
Cf.: ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre a prostituição de
baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983. Foram utilizados alguns trechos das entrevistas realizadas por
este autor.
11
Cf.: PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética na História
Oral. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 15. São Paulo: EDUC, abril 1997.
20

realizadas por am totalmente disponíveis a cair n’água e pousar para lentes fotográficas. São
jovens que falam através do corpo e da gestualidade, expressam-se em movimentos
acrobáticos captados pelos holofotes da mídia.
Fonte construída através de um processo dialógico, recíproco e dinâmico, esse
material ajudou a desvelar a percepção do sentimento de pertencimento ao grupo, a
identificação das redes internas de solidariedade, a ajuda mútua, as discórdias, o
reconhecimento dos valores afetivos e a melhor compreensão dos mecanismos internos de
regulação da comunidade.
Através dos depoimentos orais, fui descobrindo que, além das associações de
moradores, que compuseram um quadro geral de organização popular nos bairros da cidade,
outros grupos também tiveram efetiva participação no coletivo local. Segundo o entrevistado
José Osmir Monteiro da Souza, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), uma pesquisa do
seu partido no bairro identificou que o Serviluz “atualmente conta com aproximadamente
trinta tipos diferentes de associações populares”12.
Foi importante considerar que, durante grande parte do período de abrangência dessa
pesquisa, o país estava mergulhado numa ditadura militar. Apesar disso, os movimentos
sociais ganharam destacada notoriedade. Já havia algum tempo, comunidades e bairros se
organizavam. As manifestações artísticas e culturais que clamavam por liberdade de
expressão se intensificaram e, de modo geral, as camadas populares passaram a exercer maior
pressão sobre o Estado.
Os indícios apontam que os tipos de ação política praticada no bairro não estão
diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam
conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se
constituíram. Afinal o bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas moravam,
para ser o lugar onde elas também viviam, encontravam-se, desenvolviam relações de união e
solidariedade, e onde acumulavam experiências de vivência comunitária e de resistência
coletiva.
Após os anos 1990, os movimentos associativos se multiplicaram no bairro. Ligas
esportivas mobilizavam centenas de jogadores de futebol em competições realizadas nos fins
de semana. Surfistas promoviam campeonatos e realizavam projetos sociais voltados à
preservação ecológica. Manifestações e festas católicas, como as tradicionais caminhadas em
procissões, eram realizadas pelas ruas escuras e violentas do bairro, as atividades nas pastorais

12
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.
21

do pescador e da mulher eram igualmente freqüentes. Na Igreja Presbiteriana, missionários


ensinavam a ler e a escrever, enquanto na Pentecostal pastores socializavam jovens contra a
perdição das drogas. Nos muitos terreiros de macumba, mandingas e festas animadas eram
feitas para saudar a Rainha do Mar, Iemanjá. Nos cultos religiosos, emerge a diversidade e a
constituição de distintas memórias. Trata-se de uma comunidade marcada por uma enorme
efervescência política e cultural que faz surgir lampejos de autonomia entre seus moradores .
No primeiro capítulo desta pesquisa, procuro observar as transformações operadas na
tradicional enseada de jangadeiros do Mucuripe, percebendo como esse antigo reduto de
pescadores foi radicalmente modificado a partir da construção de um porto e das instalações
industriais. Paradoxalmente, o espaço foi se constituindo numa área de moradia e lazer das
elites e ao mesmo tempo se tornou um aglutinador de trabalhadores que chegaram à capital.
No segundo capítulo, abordo os vários deslocamentos que possibilitaram essas
mudanças e a ocupação do Serviluz por diferentes grupos populares em períodos distintos.
Analiso o bairro como sendo um espaço de múltiplos territórios: prostitutas, madames,
marinheiros; pescadores e empresários da pesca; surfistas, capoeiristas e jogadores de futebol
suburbano; estivadores e trabalhadores do gás; homens e mulheres convivendo numa
ambiência específica onde o trabalho tende a perder a forte interação que mantinha com o
meio.
No terceiro capítulo, descrevo um pouco da arquitetura do lugar, ruas de areia, becos
estreitos e pequenos quintais, um cenário onde se opera uma estranha lógica em que as casas
mais próximas da praia são as mais pobres e as mais ameaçadas pelas condições naturais.
Realizo uma breve discussão sobre a relação entre natureza e cultura, percebendo como estes
aspectos se cruzam no cotidiano da população e como nesse cruzamento os homens também
se transformam.
22

Capítulo I

1 O Mucuripe e o Serviluz: da aldeia de pescadores à moderna selva de


pedra

“As velas do Mucuripe vão sair para pescar


vou levar as minhas mágoas pras águas fundas do mar”
(Fagner e Belchior)

“O pescador que antes pisava descalço o chão de sua intimidade, já passeia sobre chinelos de plástico. Não
mais olha e vê as horas que são, pela posição das estrelas, mas pelos sinais digitais do relógio japonês de
pulso (...) a cabaça de ontem é a marmita de alumínio de hoje”
(Eduardo Campos)

“A gente mora numa bomba!”.


(Boi, morador do Serviluz)

1.1 Os “verdes mares bravios”

Os homens já não mais acordam ao cantar do galo, mas o hábito de cedo levantar
ainda permanece. Diferentemente do horário de trabalho na indústria, no qual os operários
devem estar à porta da fábrica ao toque da estridente sirene, os trabalhadores do mar não
batem o cartão de ponto. Na pequena pesca, o momento do trabalho depende quase sempre da
sazonalidade da maré.
Se o mar “tá pra peixe”, o mestre reúne os pescadores. A força de trabalho quase
sempre se compõe no momento exato de iniciar a pescaria, mas muitos homens se engajam no
decurso do processo de captura. Entre oito e dez homens, no mínimo, são necessários para a
realização da pesca com a rede de “três malhos” 13. Esse é um tipo de equipamento de pesca
destinado basicamente a pesca de sardinhas.

13
“O tresmalho, de origem portuguesa, era uma rede de emalhar composta pela superposição de três malhas de
tamanhos diferentes. A rede de tresmalho era fabricada com fios de algodão pelos próprios pescadores, que
passavam boa parte do tempo em contínuo conserto”. Cf.: DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores,
camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo, Ática, 1983. P. 37.
23

O barco, ancorado na beira da praia, é arrastado pelos pescadores para a beira d’água,
sendo carregado sobre um eixo de ferro e sustentado por duas rodas de automóvel. Alguns
poucos barcos ainda fazem porto e ficam abrigados sob deterioradas cabanas na praia do
Serviluz. Ali, ainda é possível visualizar desgastados rolos de madeira enterrados na areia.
Dependendo do tipo de pesca a ser empreendido, no entanto, o barco, geralmente do tipo bote,
não parte da areia, mas precisa estar na água, à espera, já no escuro da madrugada.
Na tradicional pesca com a rede de “três malhos”, a pequena embarcação compõe-se
de uma superfície de madeira que mede geralmente quatro metros de comprimento por dois
de largura, essas dimensões, entretanto, são bastante variáveis. Sobre o barco, preparado
desde a pescaria anterior, é possível o equipamento básico a ser utilizado: uma rede14, dois
montes de corda, dois remos e uma longa vara de madeira.
Quando a embarcação e todo o equipamento já estão na superfície da água, a equipe
impulsiona, “faz força”, e o casco do barco desliza contra as ondas. Nesse instante, três ou
quatro homens sobem no barco enquanto os outros sustentam a corda em terra. A força de
trabalho se forma e se divide de acordo com as habilidades e a experiência profissional de
cada pescador15.
A maré nem sempre facilita o ingresso dos homens mar adentro, e vencer a
arrebentação das ondas, em algumas épocas do ano, consiste na etapa mais difícil e penosa de
todo o processo de captura. O risco da embarcação virar é imenso. Além disso, essa operação
pode levar horas ou pode simplesmente ser abortada devido à fúria indomável das águas.
Quando os chamados “homens de terra” já não conseguem mais avançar no mar, recuam com
a ponta da corda e começam a puxá-la lentamente; começa uma verdadeira batalha contra as
ondas. Na “voga”, o pescador mais experiente vai à frente do barco utilizando os dois remos
de que dispõe simultaneamente. As ondas quebram às suas costas e, como é ininterrupto o
balanço da maré, seu corpo é constantemente jogado para o centro do bote. À medida que o

14
A rede também apresenta uma grande variação de tamanho, em média, são confeccionados entre 80 e 120 metros
de rede para cada embarcação. Basicamente, a rede compõe-se do “saco”, parte onde a malha é maior, e do “copo”, a
parte mais estreita, o fundo da rede. Extremamente pesada, uma boa rede é tecida com uma média de: 80 quiilos de
náilon, alguns pescadores utilizam linha de seda para baratear os custos; 500 quilos de chumbo, responsáveis pelo
afundamento do material; 70 peças de isopor ou “abóias”, necessárias à flutuação da parte que fica sobre a superfície.
O náilon, o chumbo e o isopor são distribuídos ao longo de uma imensa corda; esta, além da parte “entranhada” na
rede, apresenta ainda mais uns 200 metros de corda solta, que delimita a distância que o barco se distanciará para
lançar a rede.
15
Esse é um tipo de pesca que emprega pescadores “de terra” e “de mar”. O “vogador”, o “vareiro” e os “cordeiros”
são os profissionais mais especializados, são eles que partem no barco para o lançamento da rede. Costumeiramente,
o dono da embarcação não pesca, mas é possível que um arrendatário participe de modo direto de todo processo de
trabalho.
24

barco se inclina, os homens tentam controlá-lo. Na “vara”, o pescador, em pé, impulsiona a


longa tira de madeira contra o chão, arremessando a embarcação para dentro d’água. Os
“cordeiros” vão aos poucos soltando a corda. Vale ressaltar que todas as tarefas são realizadas
em conjunto e calorosos gritos de orientação são pronunciados a todo instante. A fala é um
componente importante do processo de trabalho.
Vencida a arrebentação, o barco faz uma espécie de círculo, distribuindo a rede
cuidadosamente, realizando um tipo de cerco. No momento da distribuição da rede, aumentam
as precauções; “o mais perigoso é a rede cair em cima da gente”, afirmam muitos pescadores.
Por ser a rede grande e pesada, em caso de naufrágio, dificilmente o homem debaixo do
equipamento poderá subir de novo à superfície, já que estará com centenas de quilos sobre seu
corpo.
Quando o bote retorna à areia trazendo a outra ponta da corda, recomeça o trabalho
pesado em terra. Na areia, a embarcação é colocada em um lugar estratégico a fim de ser
imediatamente arrumada para uma nova pescaria. É chegada a hora de puxar as duas pontas
da corda de maneira coordenada e essa é quase sempre a etapa mais demorada do trabalho
(um lance completo demora em média duas horas). A eficácia dessa empreitada depende da
quantidade de homens disponíveis na ocasião. A corda é tão pesada que dificilmente poucos
homens conseguem arrastá-la; por esse motivo, é comum que alguns curiosos sejam aceitos
como complemento circunstancial da mão-de-obra. Assim, a composição da força de trabalho,
apesar de previamente definida, aumenta de acordo com o fluxo de pessoas na praia. Alguns
jovens, por exemplo, alternam a atividade de pesca com as partidas de futebol que acontecem
ao lado da pescaria.
Os primeiros metros da corda são arrastados para a terra e um pescador desata o nó,
destacando-a do resto da rede. O bote está numa posição privilegiada e todo o material vai
sendo gradativamente recolhido e disposto de modo a facilitar a organização da próxima
viagem. Puxados mais alguns metros de corda, dos dois lados da rede aparecem estacas de
madeiras, com cerca de dois metros cada, que demarcam o início da rede de náilon
propriamente dita. Trata-se de uma técnica de pesca de arrasto, por isso a madeira ou “calão”
precisa ser arrastada na posição vertical, a fim de facilitar a abertura e impedir a fuga do peixe
por baixo ou por cima da rede.
Os homens aceleram, empregam mais força, intensificam-se os gritos. Em meio à
gritaria, o esforço consiste em aproximar a rede o máximo possível das pedras do espigão,
onde a fertilidade natural e as pedras despejadas por tratores fazem concentrar um maior
volume de peixes.
25

No instante em que a rede se aproxima, uma pequena aglomeração de pessoas faz-se


nos arredores. Enquanto alguns se integram no arrasto da corda, outros, pequenos
atravessadores, comerciantes ou simples curiosos, esperam a certa distância o resultado da
pescaria. À medida que a rede se estreita, dois pescadores, certamente os mais habilidosos,
encarregam-se do desembaraço e coordenação da aproximação de cordas. A atenção e a
falação são redobradas. Quando a “abóia” sinaliza na rede a ponta do saco, já é considerável a
quantidade de pessoas em torno do pescado.
No momento da chegada da rede à areia, uma porção razoável de pequenos peixes
salta da armadilha, sendo imediatamente agarrados por mulheres e crianças. À medida que as
sardinhas menores escapam, pessoas de todas as idades vão agarrando-as e guardando-as em
sacolas plásticas ou mesmo nos bolsos da roupa. A quantidade de aproveitadores dessa sobra
de pesca oscila de acordo com o horário e o dia em que se dá a realização da pescaria; boa
parte dos moradores conhece os períodos de maior abundância, sabe-se que na fartura
dificilmente se nega uma sardinha a um vizinho.
A ida à praia depende, em boa medida, dos imperativos do tempo, das águas, dos
ventos, das condições apresentadas pela natureza. Dessa forma, algumas interações entre as
pessoas do lugar, os pescadores há tempos já não constituem a maioria da população,
condiciona-se, de certo modo, a forma como o meio ambiente se apresenta
circunstancialmente.
O fato é que, na atividade pesqueira, o passar do tempo não apagou antigas formas de
relação com um mundo natural, alguns modos de organização social e laços de solidariedade e
afeição que têm atravessado gerações.
Outro fato é que, apesar do cerco que os curiosos fazem nos “três malhos”,
dificilmente as pessoas que não participaram de forma direta da coleta do peixe ousam atacar
o saco com o pescado; os pescadores estão suados, ofegantes e inquietos. A aproximação tem
limites.
Entre os observadores, comerciantes locais ou possíveis atravessadores negociam a
produção que vai sendo rapidamente resgatada da rede. Realizada a transação, o produto é
transportado em bicicletas, em carrinhos-de-mão ou mesmo nos ombros, sendo de imediato
escoado para pequenas peixarias locais ou vendido de porta em porta nas ruas do bairro e de
regiões adjacentes.
Como a produção e a comercialização são realizadas na beira da praia, logo os
comerciantes desaparecem, correm imediatamente para a revenda, pois o peixe fresco tem
26

mais aceitação no mercado. O pescador permanece na praia, o próximo lance precisa ser
organizado. O aglomerado humano se desfaz.
A divisão do lucro desse tipo de pescaria obedece a parâmetros mais ou menos
regulares. O dono dos meios de produção abocanha geralmente 40% do resultado total, o
restante é dividido “meio a meio” entre a tripulação. Apesar do cálculo relativamente fácil, o
sistema de partilha nesse tipo de pesca é por vezes irregular e envolve fatores subjetivos
externos à ação de captura16.
A imprecisão na distribuição do pescado se dá pelo caráter de familiaridade e
vizinhança com que se desenvolve o processo produtivo. Não sendo essa uma modalidade
formal de trabalho, a mão-de-obra é por vezes dispersa, atividade é encarada como uma
espécie de “bico”17. Muitos homens se engajam nesse labor ocasionalmente, para garantir a
refeição do dia dos filhos, ganhando uma pequena parte da produção e não uma remuneração
em dinheiro. O resultado da produção, apesar do esforço organizado e coletivo empregado na
captura, é também distribuído por outros critérios de solidariedade ou como forma de
pagamento de pequenos favores prestados entre os moradores no cotidiano do bairro.
Na rede de pesca atual, muitos dos novos trabalhadores do mar não procuram mais os
grandes peixes. Os pescadores da pequena pesca no bairro preferem percorrer o náilon com os
olhos à procura de relógios, óculos, jóias, dinheiro, perfumes e outros objetos que passaram a
ser arrastados no fundo das redes. Artefatos da cultura material urbana, vestígios do turismo,
das oferendas a Iemanjá e dos excrementos residenciais, são artigos que passaram a compor o
cenário litorâneo contemporâneo da cidade.
“Aqui no Serviluz, meu filho, era tudo mar!”, comoveu-se dona Maria Zuleide, 56
anos, uma antiga moradora do bairro Serviluz18. Dona Zuleide relembrava emocionada,
durante a primeira entrevista, a enorme dificuldade que os moradores tiveram para levantar as
primeiras habitações naquele canto de praia vazio e assombrado, e seus olhos brilhavam como
se tivesse acontecido há poucos instantes. “Casas não, casebres no meio dos morros!”19.
No antigo cenário, hoje renovado pelas inúmeras habitações feitas de tijolo, as paredes
durante muito tempo foram edificadas à base de varas, entrelaçadas e enchidas a mão com
barro, eram as conhecidas casas de taipa, herança que remonta ao período colonial. Ali se

16
Entre a tripulação, é consenso que os pescadores “de mar”, pela especialização advinda da experiência,
percebam uma remuneração maior que a dos pescadores “de terra”, que utilizam simplesmente a força braçal. Já
o dono do equipamento, habitualmente, dispensa sua parte na produção quando essa é insuficiente, inclusive para
ser repartida entre os trabalhadores.
17
Biscate, trabalho informal ou temporário.
18
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
19
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
27

morava em barracos improvisados; muitos deles eram erguidos com estruturas de lona
plástica, madeira e até mesmo papelão. Tempos difíceis eram aqueles em que o vento e a
areia, quando não derrubavam as casas, entravam nos olhos e nas panelas dos moradores
abrigados em casebres ainda esparsos.
A pobreza das habitações, no entanto, contrastava com a abundância encontrada nas
panelas suspensas sobre o fogo a lenha, quase sempre abarrotadas de peixe, alimento básico
na mesa das famílias praianas. Apesar das intensas transformações ocorridas na praia e na
economia pesqueira nas últimas décadas, boa parte da população que habitava o local ainda
conseguia sobreviver exclusivamente da atividade de pesca.
“A gente chegava a comer peixe até seis vezes por semana”20, afirmou, nostálgico, seu
Francisco Herton, nascido no início dos anos 1960, na praia do Serviluz. Para ele, o alimento
era fácil porque, além de ser reduzida a população que residia na praia à época, o acúmulo de
substâncias alimentícias atraía vários cardumes para as colunas de concreto e ferro,
construídas como base de sustentação para a edificação do porto.
Nos depoimentos orais, é fácil perceber como as crianças nascidas naquela época
cresciam na beira da praia e brincavam em torno do porto recém construído. Pulando sobre as
pedras dos espigões, nadando entre os barcos ancorados ou correndo na areia frouxa, a
garotada passava o dia todo se divertindo na orla. A lamparina ainda não havia sido
substituída pela lâmpada e, devido à ausência de uma vida noturna para os mais jovens, cedo
se dormia. A praia era praticamente o único espaço de moradia, trabalho e lazer daquela gente
e os jovens costumavam aprender, na beira da praia mesmo, algum tipo de ofício, as
habilidades surgiam quase sempre em meio à execução de pequenas tarefas necessárias às
viagens rumo ao mar; trabalho e lazer facilmente se confundiam.
A pescaria farta e as humildes choupanas dos pescadores, porém, deixaram de ser
características essenciais da conhecida praia de jangadeiros do Mucuripe. Da segunda metade
do século XX em diante, a praia estendeu-se por outros domínios e modalidades distintas de
trabalho e habitação passaram a coexistir no local.
Um breve olhar sobre a história da ocupação da praia do Mucuripe revela que esse foi
um lugar onde se desencadearam muitos fatos importantes para a História do Ceará. Durante
muito tempo, a memória desse antigo vilarejo de pescadores, núcleo populacional antigo, se
constituiu um lugar de natureza exótica, berço dos povos nativos cearenses que viviam
rusticamente.

20
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
28

Resgatando uma polêmica histórica, Raimundo Girão afirmou categórico que foi no
Ceará, e mais especificamente na enseada do velho “Mocoripe”, onde “(...) o homem europeu
sentiu, a primeira vez, a terra e o céu brasileiros” 21. Ali, segundo Girão, fora o “Rostro
Hermoso”, ponta de mar em que as caravelas do navegador espanhol Vicente Pinzón
supostamente aportaram, antes mesmo do desembarque de Cabral em Porto Seguro, na
Bahia22.
Foi também nas praias do Mucuripe que ocorreram os primeiros contatos entre os
aborígines locais e o homem branco europeu. Na literatura cearense, na obra indianista
Iracema, o romancista José de Alencar descreveu fragmentos daqueles “verdes mares
bravios”, espécie de lugar mitológico onde o “bom selvagem” e o branco “civilizado”
viveram suas aventuras. O Mocoripe era um alto e belo morro de areia que tinha a alvura da
espuma do mar ou simplesmente o “morro da alegria”23, praia privilegiada para o descanso de
marujos aventureiros. Navegantes antigos, quando no Ceará aportavam, ancoravam nessa
parte da orla em busca de comida e água fresca, à sombra do arvoredo que outrora margeava o
riacho Maceió, agora soterrado.
A beleza e a exuberância da natureza selvagem naquelas terras, cantada em verso e
prosa, resistiram durante centenas de anos no Ceará, mas, desde meados do século XIX,
intensifica-se a idéia do “progresso” urbano. Nessa trajetória, a praia e os imensos areais da
virgem Iracema foram sendo gradativamente sufocados pelas pedras imponentes da
modernização.
A primeira edificação de maior envergadura nessa área foi a construção de um
pequeno forte onde se instalou um farol, por volta de 1840, quando a ponta de mar do
Mucuripe tratava-se ainda de um ponto estratégico de proteção da cidade24.

21
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p.
19-27.
22
Segundo o Historiador Raimundo Girão, amparado nos estudos de Francisco Adolfo Varnhagen, o navegador
espanhol Vicente Yañez Pinzón desembarcou na ponta do Mucuripe em janeiro ou fevereiro de 1500, antes,
portanto, de Cabral ter chegado a Porto Seguro. In: GIRÃO, Raimundo Geografia Estética de Fortaleza.
Também recentemente em Fortaleza, o jornalista Rodolfo Espíndola publicou o livro “Vicente Pinzón e a
descoberta do Brasil”, onde chega a afirmar que “não se tem mais dúvida que o primeiro ponto do Brasil
avistado e aportado por Pinzón foi a aponta do Mucuripe”, defendendo a construção de um monumento histórico
no local. Cf.: Jornal O Povo 02/02/2004, p. 03.
23
No romance Iracema, de 1865, José de Alencar explica que o nome Mocoripe vem de corib (alegrar) e mo
(partícula ou abreviatura do verbo fazer). In: ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26ª ed. São
Paulo: Ática, 1992. p. 56. Raimundo Girão, entretanto, sugere que essa explicação seja por demais romantizada.
24
O farol era um antigo fortim construído para evitar as invasões estrangeiras. “O plano para a construção do
farol do Mucuripe foi apresentado a D. Pedro I pelo presidente da província do Ceará, no dia 17 de agosto de
1826”. A construção só terminou em 1846, sendo reformada em julho de 1872, em comemoração do aniversário
da Princesa Isabel. Cf.: Jornal O Povo, 12/07/1982, p. 29. O farol foi desativado nos anos 1950 e mais
recentemente transformado em Museu do Jangadeiro. No museu, no entanto, não há qualquer referência aos
29

Em tempos mais recentes, moradores do Serviluz lembram-se das balas de canhão


encontradas nas areias da praia.

“Na época eu menino com idade de doze anos eu carreteava (escorregava) de taubinha naquele morro,
aqui acolá a gente fazendo escavação achava aquelas balas de canhão, bola assim com peso de um quilo
dois quilo, coisa antiga mesmo! Se fosse o caso de a gente vender hoje em dia, vendia como relíquia. A
gente menino lá se lembrava disso...” 25.

A memória do Mucuripe como lugar de duelos e batalhas não se reduz aos vestígios
materiais e aos objetos esporadicamente encontrados na praia, há uma lembrança herdada e
compartilhada através das gerações, a vivência desse espaço é por vezes concebida como
sendo esse um lugar das partidas e das dispersões. Ali foram embarcados retirantes famintos
em diversas estiagens, foi lançada a sorte dos chamados “soldados da borracha”26 rumo aos
seringais da Amazônia e aconteceu o desembarque dos pracinhas cearenses que lutaram na
Segunda Guerra Mundial.
Como o Mucuripe foi um dos primeiros ancoradouros da Capitania, embarques e
desembarques de toda ordem se sucediam, havia tempos que lá desciam numerosas
embarcações abastecidas de mercadorias, alvo constante da pilhagem dos flibusteiros. Nessa
parte da província, funcionava um porto bem arcaico e diariamente circulavam gêneros
comerciais destinados à Capitania do Siará Grande, ainda subordinada administrativamente à
de Pernambuco. Com o Ceará independente, em 179927, a vila de Fortaleza assumiu a
hegemonia política e econômica da capitania, e suas riquezas, sobretudo a partir do rico
comércio do algodão, em detrimento da criação de gado, começaram a descer pelo litoral e
não mais pelos rios.
Nesse momento, principalmente em decorrência da distância de cerca de cinco
quilômetros que separava esse povoado da então sede do município, não foi no ancoradouro
do Mucuripe, mas na área da atual Praia de Iracema, que se iniciaram as obras do porto.
Rodolfo Teófilo, durante uma das maiores estiagens da história do Ceará, 1877,
afirmou:

jangadeiros, grande parte do antigo prédio é ocupada com informações do projeto de energia eólica, de
tecnologia alemã, instalado na Praia Mansa, em1996.
25
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
26
Sobre a migração dos “Soldados da Borracha” para a Amazônia cf., entre outros, BARBOSA, Edson Holanda
Lima. Ida ao inferno verde: Experiências dos trabalhadores cearenses imigrados para a Amazônia
(1942/1945). Dissertação de Mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

27
Fortaleza somente ganharia ascensão administrativa de vila à cidade em 1823.
30

O presidente, acreditando ser devida à aglomeração de retirantes a alteração do estado


sanitário da capital, resolve crear mais dous abarracamentos: um em Mocuripe e outro em
Pajussara, a fim distribuir melhor a população adventícia. Os indigentes do Mocuripe se
empregariam em quebrar pedras e os da Pajussara no fabrico de tijolos, destinados às obras
que se estavam fazendo28.

Nas obras do governo, entre as quais a do porto de Fortaleza, os retirantes famintos e


cansados que chegavam à velha pedreira do “Mocuripe” trocavam o penoso trabalho de
carregar pedras de aproximadamente 15 (quinze) quilos às costas, sobre terrenos arenosos, por
um punhado de farinha e carne seca, ração distribuída pelos socorros públicos em épocas de
calamidade.
Rodolfo Teófilo, escritor e farmacêutico famoso por empreender campanhas de
vacinação contra epidemias entre a população mais pobre da capital, geralmente os moradores
dos areais, se opunha diretamente ao então governo provincial. Através de suas obras, não foi
possível perceber referências mais diretas sobre a possível fixação dos retirantes no local, o
que muito provavelmente aconteceu já que, à época da estiagem, era possível que “dois terços
do eleitorado da província estivessem deslocados, tivessem emigrado e carregassem pedras da
pedreira do Mucuripe”29. Em sua literatura naturalista, porém, o pacato vilarejo do Mucuripe
já começava a receber novos contingentes de trabalhadores e a ser palco de outros conflitos:
“A soldadesca açulada pela certeza da impunidade dos crimes, na mais infernal algazarra, na
mais estúpida zombaria, corria a galope em direção ao Mucuripe, enquanto mais de cem
infelizes gemiam deitados na areia da praia”30.
Desde o final do século XIX, configurou-se uma prática de isolamento em relação ao
trânsito dos flagelados, criaturas indesejáveis ao progresso que se fazia, pelas alamedas de
Fortaleza:

Os comboios despejavam os flagelados na parte da cidade que ficava mais próxima do mar,
onde se localizavam as últimas estações férreas de Fortaleza. Muitos retirantes erguiam seus
casebres na proximidades da praia. Esse aspecto ajuda a entender o processo de constituição
das primeiras favelas de Fortaleza 31.

A população sertaneja que chegava a cidade representava também um numeroso


contingente de mão–de-obra gratuita utilizada na construção de obras públicas e no
melhoramento urbano, empreendimentos essenciais ao desenvolvimento comercial e

28
TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 194.
29
Op. Cit. p. 84.
30
Op. Cit. TEÓFILO, p. 181.
31
Cf.: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932.
Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. p. 18.
31

industrial do Ceará. “O grande flagelo de 1932 possuía, assim, um claro objetivo: mostrar a
urgência de um novo porto em Fortaleza” 32.
O antigo porto de Fortaleza foi construído ainda no final do período imperial,
momento em que a cidade já tinha assumido a hegemonia econômica e administrativa da
província do Ceará. Com o advento da República e a emergência de novas forças sociais, a
capital centralizou ainda mais as decisões políticas do Estado; e as elites locais, além da
construção de equipamentos modernizadores como o Porto, a Estrada de Ferro e o Passeio
Público, também empreenderam um verdadeiro processo de remodelação, saneamento e
controle do espaço urbano33.
No Porto do Mucuripe, no entanto, as primeiras pedras só começaram a ser assentadas
por volta de 1940. Obra demasiadamente demorada, levou cerca de 25 anos para ser
concluída, período em que seus arredores foram sendo rapidamente ocupados por levas de
retirantes e por imponentes clubes de veraneio que se erguiam na cidade. Após o porto, a bela
praia do Mucuripe nunca mais seria a mesma.
O memorialista Blanchard Girão observou que nessa época:

O romântico e íntimo esconderijo de velhos homens do mar, fez-se caótica albergaria de gente
doutras origens e de outros costumes. Em meio a essa desordem urbanística, implantou-se ali
também a prostituição. Não se distinguia casa séria de casa ‘suspeita’. A pobreza e a
promiscuidade nivelavam todos34.

Antiga aldeia indígena, a praia do Mucuripe se transformou num pequeno povoado de


pescadores e mulheres fazedoras de renda. Atualmente, com o avanço da especulação
imobiliária e do turismo, as alvas dunas da virgem Iracema constituem um dos metros
quadrados mais caros da cidade, lazer de estrangeiros e habitação preferida dos ricos da terra.
Antes do porto, os primeiros ocupantes dessa parte da cidade foram em boa parte
pescadores, migrantes de outras regiões praianas da longa costa cearense que, em distintas
épocas de calamidade, fugiram para a capital. Na cidade, optaram pela vida numa tradicional
região de pesca, dirigindo-se para as areias do Mucuripe e erguendo ali suas choupanas.
Até a primeira metade do século XX, aquela era ainda uma população cuja
organização era talvez mais tribal que urbana, com as jangadas, as choupanas e os botequins
barulhentos. Uma imensa floresta de cajueiros deu lugar a uma paisagem mais moderna e

32
Op. Cit. p. 26.
33
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3°
ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
34
GIRÃO, Blanchard Mucuripe: De Pinzón ao Padre Nilson. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1998. p.
32-33.
32

cosmopolita quando começou o tempo da indústria, da agitação imobiliária e dos arranha-


céus. “O Mucuripe tornou-se uma espécie de Copacabanazinha onde um palmo de terra, que
nada valia no tempo da aldeia de pescadores, custa agora um dinheirão”35.

2.2 Homens do mar, pés no chão

“A pouco e pouco, o tempo apaga hábitos e costumes, mas não os extingue completamente. Visíveis as choupanas
de palha de coqueiro, onde a indigência geme. Na frente, a sala da visita. Entre esta e a cozinha, de fogão
improvisado, a camarinha de amor discreto. E nos quatro cantos, na intimidade pouco ambiciosa, a rede e os
sonhos dos filhos que não param de nascer”
(Eduardo Campos)

Migrantes de praias distantes, os primeiros moradores do Bairro Serviluz viveram


durante muito tempo da atividade pesqueira. São tributários de costumes e modos de vida
com características seculares. Trata-se de uma cultura em que o sustento das famílias não
depende simplesmente da venda da força de trabalho, mas da interação direta entre o homem
e o seu meio natural. Diferentemente do tempo de trabalho industrial que se instalou
posteriormente, no mar o relógio é a lua, são os ventos, as tempestades e o tamanho das
marés.
Vida singela, desapego material, vestuário modesto caracterizam o modo de vida dos
pescadores, tidos costumeiramente como um povo simples, portadores de um estilo de vida
reproduzido à semelhança das antigas culturas indígenas. Algumas das comunidades de
pescadores fixadas na costa cearense ainda hoje apresentam hábitos e costumes desprovidos
do sentido acumulativo, característico da lógica capitalista dos centros urbanos. Nessas
comunidades, grande parte da população pesca exclusivamente para alimentar a numerosa
prole.
A simplicidade e a solidariedade entre esses trabalhadores, entretanto, se tornaram
hábitos que alimentaram a falaciosa idéia de ser esta uma gente preguiçosa, apolítica e
culturalmente atrasada. A idealização exacerbada dos pescadores produziu uma imagem

35
Op. cit., p. 127.
33

bastante distorcida, que enxerga grupos de trabalhadores estáticos no tempo e vê os homens


como uma espécie de prolongamento da paisagem natural.
Na célebre obra Os Trabalhadores do Mar, escrita por Victor Hugo em 1886, o
escritor francês já nos apresentava um quadro bem preciso das condições gerais dos homens
que ganhavam a vida na beira da praia:

Em todas as cidades, especialmente nos portos de mar, há abaixo da população, um resíduo


(...) os vencidos do duelo social. Ali é bestial a inteligência humana. É o montão de imundícies
das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura
policial36.

De modo geral, acredita-se que esses homens enraizam-se na miséria porque vivem
sempre para o dia de hoje, preocupando-se somente com as oscilações da maré do momento.
Raramente olham para o dia de amanhã; consomem logo o que pescam. Do resultado da
pescaria, separam um bocado do apurado para casa e o resto se esvai em farras e bebedeiras.
E nesse vaivém, não é de se admirar que a pobreza seja uma situação constante ao longo de
suas vidas, já que a própria existência de uma certa cultura do esbanjamento não lhes permite
fazer reservas nem mesmo em tempos de fartura no mar.
De fato, é fácil argumentar que essa sempre foi uma categoria profissional de homens
essencialmente pobres e desprovidos. A maioria não goza os benefícios da legislação
trabalhista; esses trabalhadores vivem essencialmente da pequena pesca e não possuem
carteira de trabalho assinada. Na cidade, os pescadores urbanos geralmente moram em
habitações consideradas precárias e insalubres, os mais velhos são precocemente acometidos
por várias doenças.
O esforço da lida diária nessa profissão produz corpos esculpidos, vigorosos e
bronzeados e que são, ao mesmo tempo, profundamente marcados pelo desgaste imperioso do
tempo.
Pode-se afirmar também que, além de fatigante, a pesca é uma atividade
extremamente perigosa. Tanto na chamada pesca embarcada como na pesca de caráter
artesanal, os perigos são consideráveis, ir ao mar é rumar para o desconhecido. Em sua
composição, o mar carrega energias incomensuráveis que tornam possíveis todo tipo de
cataclismo.

“A gente casou e com cinco dias ele foi pro mar, aí com cinco dias que ele tava no mar (...) ele tinha
sumido, o barco tinha virado. A família dos outros pescadores tava tudo aí na beira da praia pedindo,

36
HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro. p. 94.
34

esperando só o corpo né? Que a notícia tava aí (...). Aí com onze dias eles chegaram, a lancha que eles
tavam tinha naufragado, perderam tudo. E ele foi um dos tais que chegou bastante doente, sem falar que
ele não falava, todo ruído das baratas brancas que tem né? Todo ruído, eu tive que ir em casa pegar um
lençol (...)”37.

Episódios semelhantes a este não são raros. As embarcações que saem pela manhã
para voltar à tarde, ou que vão num dia para voltar no outro, podem não retornar nunca mais.
Esse é um universo permeado de numerosas histórias de desaparecimentos e naufrágios
misteriosos, casos verdadeiros que se misturam às populares e desacreditadas histórias de
pescador. A pesca torna órfãos vários filhos do bairro.
Por outro lado, concebendo o mar como uma dádiva, esses trabalhadores contemplam
a natureza de modo singular, suas riquezas, detalhes e grandiosidade, o oceano parece
confirmar a magnitude do cosmo e a relativa impotência humana diante do universo. A pesca
apresenta assim uma certa aura mística, trata-se de uma atividade econômica marcada pela
influência decisiva do fator sorte. Cada partida faz-se repleta de superstições. O bom pescador
há de saber que o “mar não tem pé nem cabelo” e que numa tempestade, muitas vezes, “só
apega aos milagres de Deus”. Esse imaginário, que se alimenta continuamente de desastres e
narrativas épicas das façanhas dos povos do mar, nutre igualmente um arraigado sentimento
de religiosidade. As populações marítimas não desacreditam do diabo, tomam suas
precauções contra suas artes; faz-se preciso conhecer a dualidade que ronda as águas
oceânicas.
De modo geral, a idéia de uma vida religiosa, pacata e sem ambição pode por vezes
simplificar e tornar folclórica a existência de um modo de vida culturalmente rico e carregado
de especificidades que lhes confere identidade própria. Convém, então, não reforçar os
estereótipos que apresentam os pescadores e suas famílias como sendo um povo ignorante e
sem atuação política.
Tampouco cabe ratificar a doce e ilusória sensação de que a vida dos jangadeiros virou
canção romantizada. Mesmo com tendência generalizada de expulsão dos pescadores para
longe da praia, a jangada no Ceará não é apenas uma atração turística. Na propaganda
turística, aliás, as versões exóticas encobrem a dura realidade dos trabalhadores do mar e sua
penosa luta pela sobrevivência. Nos dias atuais, enquanto a agradável imagem do pescador
figura na mídia como elemento símbolo do estado do Ceará, marca registrada da cultura e do
povo cearense, na vida real o náilon continua a cortar suas mãos, o sal permanece a queimar
suas costas, o vento ainda lhe fustiga o rosto e o sol teima em cegar seus olhos.

37
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
35

As versões românticas negligenciam o aprendizado político de gerações, a busca por


melhores condições de trabalho e inserção social, a obtenção de conquistas trabalhistas
importantes e a produção de significativas experiências associativas num ramo de atividade
que sofria intensas transformações.
A pesca é uma atividade tão antiga quanto o homem. Já durante a Idade Média, a
atividade pesqueira foi amplamente incentivada, o peixe era um alimento especial para os
cristãos, havendo um singelo aperfeiçoamento dos anzóis, das redes e dos equipamentos
rudimentares inventados na antiguidade.
À medida que a pesca se intensificou, foi preciso alcançar mares mais distantes e
implementar inovações da engenharia naval, o que gerou a necessidade de investimentos de
maiores volumes de capital. Da pesca rudimentar, passou-se ao barco a vapor.

O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de máquinas. As


forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas. Entre os dois organismos, um
inesgotável, outro inteligente, trava-se o combate que se chama navegação (...) Enquanto não
se descobre a lei, prossegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma espécie de vitória
perpétua que o gênio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar.
A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui a obediência ao vento e
aumenta a obediência ao homem38.

Mas a embarcação a vapor apresentava ainda a inconveniente necessidade de retornar


a terra para repor os estoques de carvão. Foi somente com o barco de motor a combustão que
se resolveu o grave problema dos longos deslocamentos e o homem se lançou aos desafios
dos grandes oceanos. Redes mais pulsantes, gelo para conservação e toda uma parafernália
técnica (máquinas, radiotransmissores e até ecossondas para detecção dos cardumes)
passaram a oferecer mais segurança e conforto a bordo das embarcações que podiam realizar
longas viagens e abrigar grandes tripulações.
Em extensa pesquisa, Diegues39 ressaltou que a introdução do barco motorizado na
Inglaterra aconteceu em meados do século XIX, dando início à fase inicial da Revolução
Industrial na pesca. Naquele país, a crescente divisão do trabalho nas embarcações e o
aumento da produção de caráter mercantil se deram com relativo atraso em relação aos outros
setores da produção, como a indústria têxtil. A exploração da força de trabalho dos
pescadores ingleses em pouco tempo não se diferenciava da dos trabalhadores das fábricas e
os pescadores tinham se transformado em verdadeiros proletários de convés.

38
Op. Cit. HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar, p. 116.
39
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Ática,
1983.
36

A mecanização na pesca atingiu não somente o barco, mas também as tarefas nele
executadas. Incitou o surgimento de novos profissionais a bordo, maquinistas, foguistas,
cozinheiros e operadores de rádio. A crescente especialização alterou inclusive a tradicional
hierarquia que existia no barco, na medida em que introduz, por exemplo, o assalariamento e
sistema de remunerações diferenciadas entre os tripulantes40.
As alterações no mundo do trabalho, além disso, fizeram desaparecer muitas vilas de
pescadores pelo mundo, colocando a mão de obra à mercê das grandes unidades de produção.
Em muitos países, o declínio da pesca local ocasionou tanto a mudança no modo de vida
quanto o próprio deslocamento das famílias pesqueiras para os grandes centros urbanos, onde
passam a se engajar em atividades alternativas.
No Brasil o avanço da pesca em larga escala se fez concomitantemente à permanência
da pequena pesca41. Em certos ambientes, os pescadores locais possuem imensa capacidade de
adaptação à situação ecológica específica. Explorando nichos próximos à costa, onde não é
possível lançar grandes redes, desenvolvem técnicas precisas de recolhimento das redes
dependendo do fundo, ora rochoso, ora arenoso. Nesse caso a força de trabalho empregada é
eminentemente familiar e o pescador define seu ritmo de trabalho em função da safra da
época. Isso é o que acontece, por exemplo, no Nordeste, onde os cardumes de peixe de alto
valor no mercado, pargos e cavalas, apesar da abundância, são de difícil captura, dados os
fundos rochosos que dificultam a técnica do arrasto. Os jangadeiros localizam e guardam na
memória o bom ponto de pesca, sendo esse um dos principais segredos da profissão. Usam
um sistema de marcação através de uma triangulação visual em objetos fixos na praia,
operando uma espécie de divisão imaginária do mar. Muitos criam seus próprios bancos de
pesca, carregando para dentro d’água grandes objetos, como carcaças de automóveis, que
passam a servir de abrigo aos peixes.

40
Segundo Diegues, essas transformações alteram a condição natural do mestre: “É preciso se levar em
consideração que a maestria é uma capacidade pessoal, um conhecimento raro que exige o conhecimento do mar
e dos cardumes, padrões de migração dos peixes e localização dos melhores locais de pesca, além de certa
capacidade em tratar com a tripulação em condições quase sempre difíceis e extenuantes. Além disso, a maestria
só se consegue através de anos de experiência e é dificilmente adquirível através de cursos formais”. Op. cit.
DIEGUES, p. 37.
41
“Daí serem a propriedade dos meios de produção, o controle do processo de trabalho, a dispersão dos meios de
produção, a reduzida divisão do trabalho levando a um fraco desenvolvimento das forças produtivas, as
principais características da pequena produção mercantil. Esta pode ser mais bem analisada se comparada com a
produção capitalista. Nesta existe uma separação completa entre os trabalhadores e os meios de produção, que se
instalaria com a presença de um não-trabalhador que impõe as condições de produção e reprodução pela extração
da mais valia (...) Os mecanismos de extração da mais valia permitem ao não-trabalhador acumular novos
capitais e se reproduzir enquanto classe dominante, e, ao mesmo tempo, levam a classe operária a vender sua
força de trabalho e a se reproduzir como classe dominada”. Op. Cit. DIEGUES, p. 206.
37

Essa é uma situação diferente das encontradas nas regiões Sul e Sudeste, onde a
retirada de grandes cardumes, sardinhas, pescadas e camarões, foi favorecida pelo ambiente
físico, o que possibilitou a concentração das grandes empresas de pesca nessa região42.
A concentração das grandes empresas de pesca43 no litoral do Sul e do Sudeste foi
amplamente reforçada pelo Decreto-Lei 221, da Superintendência do Desenvolvimento da
Pesca, a Sudepe, criado em 1967. Com esse decreto, o governo brasileiro criou um programa
de incentivos fiscais que visava ampliar os investimentos privados e romper o ciclo de baixa
produtividade que ainda caracterizava o setor. Como ressaltou Diegues, a iniciativa do Estado
praticamente abandonava à própria sorte a pequena pesca. Enquanto os empresários
construíam barcos e fábricas com o fácil dinheiro do governo, os trabalhadores eram
pressionados pelo capital. A pesca tornava ainda mais precárias as condições do homem; as
intermináveis jornadas de trabalho e a permanência por meses no mar quase sempre se
traduziam em perdas de vidas humanas.
Curiosamente, apesar da centralização dos investimentos, cerca de 97% dos recursos
foram captados pelas regiões Sul e Sudeste; os próprios dados da Sudepe indicam que os
pescadores nordestinos aumentaram efetivamente sua participação na produção nacional entre
1950 e 1970. Recebendo algo em torno de 0,3% dos incentivos, o Nordeste elevou sua
produção para 24% da produção total brasileira. Assim, como se disse, pelas peculiaridades
físicas do litoral nordestino, fazia-se necessária a aplicação de um tipo de pesca particular.
Esse foi um dos fatores de as empresas recém-criadas na região terem sido instaladas próximo
às áreas de maior fertilidade, como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará, onde eram
abundantes produtos valiosos como a lagosta, antes pescada em pequenos botes a remo e em
jangadas. Assim podiam também comprar a baixo preço a produção dos pequenos pescadores.
No Ceará, nesse período, talvez pela condição de miséria oferecida em terra, foi
consideravelmente crescente o número de homens que se lançaram ao mar. Em 1940 havia
4.801 pescadores registrados pela federação. Em 1970 já eram 14.215 os que pescavam de
forma legalizada. O estado praticamente dobrou sua participação no mercado brasileiro.
Esses números evidenciam como a descoberta da lagosta no Ceará atraiu vários
empresários para o estado; em 1961, pelo menos dez empresas do Sul do país solicitavam à

42
Até meados dos anos 80, cerca de 80% das indústrias pesqueiras estavam localizadas nessas regiões, mesmo as
empresas criadas no Norte e Nordeste pertenciam a esses grupos econômicos. Nas regiões Sul e Sudeste, 68% da
mão de obra era embarcada enquanto no Nordeste a pesca artesanal arregimentava cerca de 76% dos
trabalhadores do setor. Cf.: DIEGUES, p. 111-134.
43
Esse é um tipo de indústria caracterizado pela completa integração do setor. O lucro dessas empresas é
garantido não somente pela exploração da força de trabalho, mas também pelo beneficiamento e comercialização
do produto.
38

Divisão de Caça e Pesca do Ceará permissão para instalação de suas usinas em Fortaleza44. A
“economia natural” da pesca artesanal começava a sofrer severos danos. A introdução da
pesca comercial inseria os pescadores num novo mercado e numa nova atividade,
eminentemente capitalista. Na pesca da lagosta, o “ouro do mar”, o período pós-1950 foi
caracterizado por um considerável ingresso de enormes embarcações motorizadas, pela
melhoria das técnicas de captura e por um elevado investimento em empresas de pesca.
Havia tempos, a tradicional jangada de piúba, amarração de troncos feita da típica e
resistente árvore do Pará, vinda de navio, tinha sido substituída pelas embarcações de
madeira, menores, mais frágeis e transportadas por carretas. Pouco a pouco, o pescado ficou
escasso e crescia assustadoramente o número de atravessadores. A corrida desenfreada por
esses produtos de alto valor no mercado de exportação parecia conter em si o germe de sua
própria destruição.
A atração de empresas e trabalhadores acabou resvalando na dinâmica ocupacional da
cidade de Fortaleza e na própria forma de organização das famílias pesqueiras. Como
ressaltou dona Maria da Conceição, “eram mais de duzentas mulheres, todas trabalhando de
carteira assinada”45. Como oferecem uma atividade verticalmente integrada, as “empresas
ricas” do setor pesqueiro passaram a empregar também numerosa quantidade de mão-de-obra
feminina no processo produtivo, na limpeza, na embalagem e no armazenamento do produto
destinado ao mercado externo. Os homens, ao se afastarem por tempo mais longo, acabaram
modificando a rotina familiar, transformando o papel desempenhado pela mulher no espaço
doméstico. Esse fator refletiu-se não apenas na mudança de comportamento e nas atribuições
que os membros da família passaram a ter, mas caracterizou o próprio padrão migratório
familiar dos que partiam de outras localidades rumo à capital.
Por outro lado, o pescador embarcado mantém pouquíssimo contato com seus
familiares; no mar, sua sobrevivência é garantida pela empresa que o contratou; sua família,
porém, dependerá do resultado da produção:

“Eles levavam de cinco, seis sacos de farinha, cinco, seis sacos de arroz, eles levavam muito, muito,
então tinha uma dificuldade muito grande pra quem fica né! (...) Eu tenho certeza que se eu num corro
eu tinha sido uma vítima dessas que ele foi, encontrou outra e num voltou mais sabe? (...)” 46.

44
Jornal Unitário, 24/09/1961, p. 07.
45
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
46
Idibem.
39

Como o pagamento pode ser mensal ou quinzenal, as mulheres em terra, encarregadas


da organização do novo orçamento familiar, são obrigadas a comprar os gêneros alimentícios
a prazo, fiado, endividando-se gradativamente no comércio local. Além disso, estão sujeitas a
humilhações e constrangimentos por parte das empresas.

“(...) é uma coisa difícil sabe (...) quando eles vão pro mar fica aquela situação, se é pela empresa você
fica recebendo aquele dinheiro né? E tem que aceitar aquela humilhação ‘Ah! Seu marido num tá
produzindo, o seu dinheiro vai atrasar e num sei o que’ sabe como é que é (...)”47.

As conseqüências da instalação da indústria pesqueira foram sentidas também na


mudança do cotidiano familiar. Introduziu-se um sistema de regulação da remuneração, em
função da produção, que podia incomodar sobremaneira os membros de um domicílio e que
facilitava ainda o abandono do lar por parte dos homens que passaram a pescar em portos
distantes.
Notadamente, em meio a essa desestruturação que sofreu a secular atividade
pesqueira, o pescador tornou-se também uma categoria muito ativa e não faltam na história
desse povo momentos de reconhecida participação política48.
Em 1941 a saga da jangada São Pedro virou notícia na imprensa nacional. Guiada por
quatro pescadores cearenses, a pequena embarcação de madeira demorou 61 dias para ir de
Fortaleza à cidade do Rio de Janeiro, então sede política da República. Ao falar pessoalmente
com o presidente Getúlio Vargas, os jangadeiros lutavam pela inclusão da categoria nos
direitos sociais da nova legislação trabalhista, protestando também contra a exploração dos
atravessadores que dominavam o mercado de peixe no Ceará.
Apesar de esse ter sido o episódio mais famoso, o Raid (denominação que a imprensa
da época passou a atribuir às tradicionais “corridas” das jangadas) de 1941, não foi a primeira
e nem tampouco a derradeira travessia marítima dos jangadeiros cearenses.
Os pescadores tinham como referência simbólica a figura de Francisco José do
Nascimento, o Dragão do Mar, jangadeiro cearense que simbolizou a primazia da abolição
dos escravos cearenses. Em 1881, durante um movimento grevista, o Dragão do Mar
pronunciou a célebre frase “no porto do Ceará, não se embarcam mais escravos”, da qual
surgiu a imagem do Ceará como sendo a Terra da Luz.

47
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
48
As entidades associativas dos pescadores são bem antigas. Em 1922, o próprio Estado já havia criado as
Colônias de Pesca, instituições obrigatórias às quais deviam pertencer, muitas vezes de modo compulsório, todos
os pescadores formais. Entretanto, em sua trajetória, essas organizações se atrelaram aos industriais e passaram a
exercer um certo controle sobre os pescadores. Na prática, não defendiam os interesses dos trabalhadores, mas
funcionavam como distribuidores de pequenos benefícios sociais.
40

A prática de raids transformou-se numa forma recorrente de protesto e, com certa


freqüência, grupos de pescadores do Ceará, inclusive os da praia do Mucuripe em 1972, se
aventuraram nos mares turbulentos, em busca de melhores condições de vida e trabalho para
suas famílias. A prática dessas viagens consolidou-se como forma de tornar públicos as
necessidades e interesses dessa categoria. Em 1942, o Raid se tornou filme do cineasta norte-
americano Orson Welles, durante sua passagem pelo Brasil, suscitando grande debate na
imprensa local49.
No caso das filmagens de Welles, a questão central que pairava era o motivo de o
filme ter sido realizado no Mucuripe e não na Praia de Iracema, já que apenas um dos quatros
tripulantes da São Pedro, o mestre Jerônimo, era da colônia de pescadores (Z-2) do Mucuripe.
Ao que tudo indica, não era do interesse de Orson Welles focalizar outros equipamentos da
cidade, pois, para cumprir as intenções do filme em mostrar uma cidade natural e arcaica,
Fortaleza se resumia naquele momento à pacata comunidade do Mucuripe. Era uma imagem
de natureza apartada da realidade social e da cultura.
A idéia foi privilegiar o cenário natural do Mucuripe em contraposição à ostentação da
Praia de Iracema, então reduto da elite local. Em nome da Política da Boa Vizinhança, o filme
focalizou o mar, as dunas e o trabalho dos pescadores numa relação idealizada entre homem e
natureza, fundamentada numa relação harmônica e solidária que visava desconstruir a
imagem negativa do “nativo perigoso”50. Eram cenas que ocultavam os conflitos e
contradições que permeavam essa trama e que contrastavam, inclusive, com o sentido que os
jangadeiros atribuíram ao Raid como instrumento de luta contra a desigualdade e exploração
no ambiente da pesca.
A tendência à destruição da pesca costeira, no entanto, não foi fruto apenas da pesca
empresarial. Em Fortaleza, houve uma conjugação de outros fatores como o aparecimento de
serviços alternativos, por exemplo, a indústria e o turismo.
Apesar de ser uma tradicional região de pesca, a praia do Mucuripe foi sendo, na
mesma esteira desenvolvimentista que projetou o ambicioso projeto portuário e industrial,
descaracterizada como lugar de trabalhadores pobres. Os pescadores remanescentes nessa
região foram sendo cada vez mais encurralados para fora da praia, até serem desalojados

49
Sobre a viagem dos pescadores cearenses em 1941 e sobre as repercussões do filme de Orson Welles, cf.
respectivamente: NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro.
Fortaleza: Museu do Ceará, 2001; e SANTOS, Márcia Juliana. It’s all true e a construção das imagens do
Brasil (1942-93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2004.
30
Op. cit. SANTOS, p. 113.
41

quase definitivamente das areias do Mucuripe, transferindo-se para bairros longínquos ou se


espraiando por morros mais afastados.
Em âmbito histórico, os pescadores retirados compulsoriamente do Mucuripe
realizaram os primeiros deslocamentos humanos para a região, bastante erma, onde se formou
depois o Bairro Serviluz. Aos poucos, aos primeiros casebres, somar-se-iam numerosos outros
barracos. Iniciadas as operações no porto, começou uma corrente de sucessivas migrações que
marcou sobremaneira a história dos povos dessa região e que caracterizou esse espaço por sua
diversidade humana.

3 - A “tragédia” portuária

“Aqui, a natureza recuou ante o trabalho do homem, que modelou a pedra e redesenhou os
limites impostos por Deus ao oceano (...) o porto se apresenta como um lugar ambíguo,
inquietante e reconfortante. Espaço aberto para as riquezas e as ameaças do mundo evoca ao
mesmo tempo o abrigo, o refúgio e a fragilidade; combina as imagens da invasão e da evasão”.
(Alain Corbin)

“Porque o ‘progresso’ é um conceito sem significado ou pior, quando imputado como um


atributo ao passado”.
(E.P. Thompson)

O Cais do Porto do Mucuripe, somente depois de muito tempo, teve sua construção
efetivada no início da década de 1940, sendo sua primeira etapa concluída em 1946.
Construído gradativamente, o novo cais substituía o velho porto de Fortaleza, localizado na
Praia de Iracema.
Mesmo não sendo estático, o ritmo de vida dessa parte da cidade se alterou
profundamente após a vinda do complexo portuário. É possível afirmar que a região do
Mucuripe ainda não havia passado por transformações tão intensas e tão radicais quanto as
efetivadas a partir da execução dessa obra.
42

No Ceará, a intensificação do fluxo de pessoas, idéias e mercadorias, transportadas por


um número cada vez maior de embarcações, já há algum tempo exigia reformas capazes de
atender à crescente demanda comercial do estado. O novo porto, aliás, surgiu como uma
conjugação de esforços para solucionar o antigo problema portuário de Fortaleza, que, mesmo
já sendo havia tempos, o centro econômico do estado, não dispunha de um sistema portuário
de grande porte.
Um longo debate sobre uma solução para o problema do porto de Fortaleza ganhou
força ao longo dos anos 1930. Onde construí-lo? Distante do centro urbano da cidade, o
pequeno arrabalde do Mucuripe ficava a quilômetros do então centro comercial de Fortaleza e
eram bastante precárias as condições de transporte, a construção exigia a aplicação de
recursos financeiros bem mais elevados. Apesar do custo, a “solução Mucuripe” , como foi
divulgada na imprensa local, surgiu como alternativa definitiva, contrapondo-se, assim, ao
simples melhoramento das instalações do antigo porto de Fortaleza.
Finalmente em 1938, os jornais da capital noticiavam, num certo tom de empolgação,
a assinatura do contrato para o início das obras. Nas palavras do então interventor Francisco
Menezes Pimentel, não restava dúvida de que naquela hora estava “(...) se levantando um
clamor, no seio da população, em favor da construção em Mucuripe”51. Afinal vencia a
concorrência o projeto portuário do engenheiro Augusto Hor Meyill, “um técnico abalizado”,
cujo moderno projeto “tinha a vantagem de aproveitar um trabalho já realizado pela
natureza”.
Após o início do porto, o projeto econômico industrial se expandiu a passos mais
largos, era o prelúdio de um processo que resultou na remodelação da paisagem de toda a
região. Ataques cada vez mais sistemáticos e danosos foram sendo empreendidos contra o
ecossistema e a natureza local. Praticamente desfigurada após o início das obras portuárias, a
bela enseada, onde um recôncavo natural tornara o mar aprofundado, sofreu profundo impacto
ambiental.
Na orla de Fortaleza, pela magnitude dos espigões de pedra ali erguidos, mudaria boa
parte da paisagem litorânea. As transformações urbanísticas não afetaram somente a
população pobre da cidade que se deslocava constantemente em função das obras. A vistosa
Praia de Iracema, por exemplo, antigo cartão-postal da cidade, onde a beleza natural atraía

51
Jornal O Povo, em 28/05/1938, p. 08.
43

banhistas e curiosos, foi praticamente destruída com o avanço do mar, em virtude das obras
do Porto do Mucuripe52.

Apesar do inflamado desejo da elite local que começava a se firmar no ramo


industrial, a história do Porto do Mucuripe, assim como a própria história portuária da cidade
de Fortaleza, parece apresentar episódios repletos de inconstâncias e contradições. Não por
acaso, Raimundo Girão referiu-se ironicamente ao episódio da construção do porto de
Fortaleza no Mucuripe como sendo uma “tragédia portuária”. Apesar das críticas, parecia
notório o que o novo porto representava:

Não estaria mais a Capital cearense a revelar aquele bisonho retrato de Koster (viajante inglês)
e ater à sua frente as humilhantes e dolorosas perspectivas de portos tentados e fracassados
diante da fúria dos verdes mares tão decantados, mas por outro lado tão destruidores 53.

As contradições do porto, obviamente, não se reservam apenas à disseminação de


problemas ambientais. Afetou bastante as condições socioeconômicas de todo o lugar que o
circunda. O cais e a indústria estão diretamente relacionado não apenas à geração de novas
formas e oportunidades de trabalho, mas à própria ocupação dessa parte da cidade pelas
classes trabalhadoras.
Assim, o porto e todo o complexo industrial passaram a estabelecer uma relação de
intensa ambigüidade aos olhos da população, que passou a se estabelecer nos seus arredores.
Na comunidade do Serviluz, boa parte das pessoas enxerga essa obra como fundamental para
o crescimento do bairro.

“O cais do porto, ele ter sido construído ali, nossa comunidade só teve a ganhar. Toda mão de obra, todo
serviço prestado ali dentro (...) na faixa de 60% de toda mão de obra ali dentro é daqui do bairro. É do
Bairro Serviluz e de áreas circunvizinhas”54.

Na memória dos trabalhadores locais, o porto representa muitas vezes não somente
emprego direto dentro das docas, mas sobretudo a possibilidade de obtenção de pequenos
afazeres entre os homens que para lá rumam diariamente.

52
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Fortaleza: Cultura e Lazer (1945 – 1960). In: Uma nova história do Ceará.
SOUZA, Simone de (org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.193.
53
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1959. p.
29.
54
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
44

Com os investimentos realizados na construção e ampliação do porto, a região do


Mucuripe se configurou como locus privilegiado de oportunidades e como possibilidade
concreta de inserção no mundo urbano do trabalho. Esse processo de atração se acentuou a
partir de 1965, com o encerramento das obras do porto e a chegada da energia elétrica
proveniente da Hidrelétrica de Paulo Afonso. Nesse instante, intensificava-se ainda mais a
montagem das indústrias que constituiriam o pólo industrial do Mucuripe, forte impulsionador
da mão-de-obra para o local.
De modo geral, a criação de órgãos como Dnocs, Sudene, Banco do Nordeste e da
Universidade Federal do Ceará acabou gerando um investimento mais sistemático no
desenvolvimento industrial da região nordestina55.
Para Roncayolo “dos lâmpiões a óleo às tochas, das candeias e das velas à pirotecnia,
a cidade sempre procurou dominar a luz, sinal de originalidade técnica do mundo urbano,
primeiro elemento, talvez, de sua ‘artificialidade’”56.
As transfigurações noturnas em Fortaleza ganham fôlego quando uma lei municipal de
1954 criou a autarquia municipal Serviço de Luz e Força de Fortaleza, o Serviluz, cuja
finalidade era produzir, transformar e distribuir energia elétrica no município de Fortaleza que
se expandia57.

A adoção da eletricidade no espaço público da capital pontificava mais um fundamental


empreendimento com vistas à obtenção da modernização urbana. Ofilamento elétrico
começava a prjetar uma luz esfuziante sobre o ar embaciado da noite (...) Nem a lua cheia nem
a luz mortiça dos lampiões acompanhariam o esplendor da cidade moderna58.

No decurso do tempo, a inovação técnica permitiu, entre outras coisas, a substituição


dos velhos lampiões a gás, instalados no último quartel do século XIX e removidos em
meados da década de 1930, pela eletricidade, “ato inaugural de uma epopéia vertiginosa, que
paulatinamente daria ao homem urbano uma sensação de segurança e refúgio na luz
artificial”59.

55
Segundo Celso Furtado, não há dúvidas de que os anos 1950 foram a fase decisiva da industrialização
brasileira. Cf.: FURTADO Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Coleção Estudos
Brasileiros, v.54, 1983. p. 31.
56
RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes artificiais. In: Op. cit.
Projeto História, nº. 18. p.97.
57
Sobre a eletrificação no Ceará Cf.: LEITE, Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. Fortaleza:
Fundação Demócrito Rocha, 1996. p. 170.
58
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo da Segunda grande
Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002.
59
Op. cit. p. 39.
45

A usina termelétrica do Mucuripe, além de suprir a demanda das indústrias da região,


também se apresentou como uma solução, ainda que paliativa, para o grave problema de
abastecimento de energia, que, durante muito tempo, assolou a capital cearense60. Na
perspectiva do Governo do Estado, depois de grande demora, o problema da energia elétrica
na capital caminhava para uma solução completa, que abriria as portas de Fortaleza para uma
industrialização até então impossível de ser realizada61.
Apesar disso, o problema de energia elétrica em Fortaleza não ficou resolvido apenas
com a instalação da usina. A exemplo da tragédia portuária, a história da eletricidade em
Fortaleza apresenta capítulos que denotam ambigüidades e a relativa incapacidade do sonhado
progresso.

O projeto do Mucuripe fora desenhado para utilizar a água do mar (...), mas quando ocorria a
maré baixa, entravam nos referidos tubos areia, peixinhos, crustáceos, águas marinhas (...)
ocasionando sua obstrução, prejudicando o resfriamento do condensador e o funcionamento
normal da turbina, o que acarretava freqüentes interrupções do fornecimento de energia
elétrica. O SERVILUZ teve que manter equipes de mergulhadores, que cumpriam o penoso
serviço de limpeza e deslocamento das bombas de dragagem62.

Os problemas técnicos que freqüentemente paralisavam as turbinas e os altos preços


das tarifas foram alvos constantes de denúncias por parte da imprensa: “SERVILUZ ilumina
meia cidade e deve dinheiro a meio mundo”63. O artefato tecnológico carecia de uma certa
garantia na regularidade do serviço e, mesmo do ponto de vista econômico, a usina causava
prejuízos consideráveis ao comércio e à indústria.
Durante muito tempo, apesar dos rotineiros apagões, a energia elétrica ali produzida
iluminava quase toda a cidade, alimentava as indústrias, clareava a zona de meretrício ao lado,
mas não brilhava na comunidade do Serviluz. De modo geral, as luzes da modernidade e do
progresso clareavam apenas espaços pontuais da cidade.
Desde os anos 1950, haviam sido efetivados os primeiros esforços de consolidação de
uma política industrial de base e geração de energia no Mucuripe. No ramo de gás, um dos

60
Caberia, contudo, somente à Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza (CONEFOR) a recepção da
energia elétrica da CHESF, instalada apenas em 1965. Em 1971 foi inaugurada a Companhia de Eletricidade do
Ceará (COELCE).
61
IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo Afonso a Fortaleza. IOC -
Imprensa Oficial do Ceará, 1965. P. 88.
62
Op. cit. LEITE. Ary Bezerra História da Energia Elétrica no Ceará. p. 172.
63
Jornal O Povo, em 07/01/1960, p. 06.
46

segmentos mais fortes, a empresa Gás Butano instalou sua fábrica na região em 1951 e logo
iniciou suas operações. Depois vieram as multinacionais64.
Curiosamente, as grandes empresas eram as que ameaçavam de forma mais direta a
natureza e as que menos empregavam os homens da região. Priorizam pessoas alfabetizadas e
requerem um quadro de funcionários altamente especializados.

“Essas empresas davam prioridade mais às pessoas que tinha alto grau de estudo. Porque as pessoas
daqui a maior parte era pipoqueiro, pescadores. Área pobre mesmo! Acostumado ir pra Beira Mar
vender sua bebidazinha no seu carrinho, pipoquinha, etc. Se essas indústrias dessem valor às pessoas
que morassem aqui na favela, na área aqui seria muito bom”65.

Na fala dos moradores, percebe-se o abismo que por vezes parece existir entre o bairro
e a indústria ao lado. Os trabalhadores recrutados nas imediações desempenhavam serviços
essencialmente braçais, eram o pessoal do “baixo escalão”, enquanto a mão-de-obra mais
especializada provinha toda de fora da região.
É lógico que, numa região portuária, havia trabalhadores especializados como
operadores de guindastes e do maquinário moderno. E mais, pouco a pouco, disseminou-se a
cultura da especialização profissional e a do letramento escolar. A necessidade de
escolarização, sobretudo, advinha do premente desejo de uma capacitação técnica da mão-de-
obra. Nesse sentido, configurou-se tanto um quadro social de organização comunitária em
função do mercado de trabalho, até então restrito, quanto se operou intenso processo de
treinamento profissional dos jovens fora do bairro.
Prevalecia, porém, a admissão nos serviços de capatazia, de carregadores,
empilhadores e conferentes, bem como nas tarefas de vigilância, portaria, limpeza e
manutenção. Havia inclusive aqueles que eram empregados na venda e distribuição de
botijões de gás e latas de querosene nas poucas habitações onde o morador dispunha de fogão
ou podia comprar querosene em quantidade maior. Nesse caso, a mercadoria tinha de ser
transportada às costas, já que não era possível o tráfego de veículos sobre as areias ainda não
pavimentadas.
Além disso, as oportunidades traziam consigo os riscos inerentes à própria atividade
industrial. Isso significava na prática a ocorrência de inúmeros acidentes com o manuseio de

64
Segundo o Informativo da Companhia Docas do Ceará, as seguintes empresas são atendidas pelo Plano de
Emergência no Mucuripe: Esso Brasileira de Petróleo, Petrobras (Lubnor), Petrobras (BR Distribuidora S.A.),
Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, Shell Brasil S.A., Texaco Brasil S.A., Companhia Ferroviária
Nordeste (CFN), Agip Liquigás, Nacional Gás Butano, Locaequipe Serviços e Transportes (aeronaves), Grande
Moinho Cearense, Moinho Fortaleza J. Macedo Alimentos S.A., além de outras empresas, como as de pesca,
menores.
65
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
47

produtos e equipamentos de trabalho não habituais. Ali se instalara uma indústria moderna,
movimentada por uma tecnologia considerada de ponta e, no entanto, os acidentes se tornaram
rotina entre a classe trabalhadora, não acostumada ao maqunário moderno.

“Trabalho na plataforma, eu trabalho no grau máximo de ‘risco quatro’ né, eles chamam de ‘risco
quatro’, quer dizer, que é uma área totalmente perigosa, inflamável e sem condições de expectativa de
vida, a qualquer momento pode estar envolvido num acidente”66.

Também é perceptível a alteração na rotina diária de trabalho. José Osmir trabalha


como pintor industrial numa plataforma de petróleo. Ingressou num emprego em que era
necessária a realização de uma gama de cursos para obtenção de uma especialização formal:
“É preciso muita coragem, muita técnica, muita força e acima de tudo ser profissional!”67. O
entrevistado trabalha em um tempo específico; para receber um mês de salário, precisa passar
quinze dias no mar, podendo permanecer o restante do tempo em casa, e precisa estabelecer
um ritmo de trabalho diferenciado. Além das indispensáveis preocupações, há a exigência de
uma adaptação física singular, que possibilite a organização de uma vida à base de feituras
mecânicas sobre uma plataforma no meio do oceano..
Pelo ramo de atividade industrial do Mucuripe, altamente inflamável, os perigos se
acumulam no trabalho e no lar, o potencial de risco do bairro é certamente dos mais elevados
da cidade.

“Morreram três indivíduos (...) os caras foram tirar gasolina, olha como era fácil um acidente, uma
tragédia. Porque o nosso bairro é cheio de gasoduto, sabe, nosso bairro é uma bomba mesmo (...) pra
azar deles faltou energia na hora (...) os três rapazes morreram porque faltou energia na hora, e foi na
hora que o navio mandou a carga de gasolina pelo gasoduto”68.

Nas narrativas, fica evidente que o imaginário do bairro está carregado de episódios
trágicos; em várias circunstâncias, vidas foram ceifadas, os incrementos do progresso e a
riqueza econômica se fizeram, muitas vezes, banhados no sangue dos trabalhadores locais.

“(...) o guincho, o guindaste, aquilo ali ele tava desativado há muito tempo, estava enferrujado então
resolveram explodi-lo pra num ter risco de perigo, mas acabou tendo perigo porque no dia da explosão
morreram quatro pessoas. Num sei se foi negligência ou sei lá, só sei que botaram dinamite lá e
explodiram, foi pedaço de ferro pra todo lado. Nesse mesmo dia morreram quatro trabalhador”69.

66
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Souza ao autor em 28/01/2003.
67
Ibidem.
68
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
69
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
48

A indústria passa a sangrar os trabalhadores, a mutilar seus corpos. Muitos jovens


apresentam deformações físicas visíveis provocadas pela má utilização dos equipamentos
industriais; outros, após pouco tempo de serviço, são precocemente aposentados por
invalidez. O progresso tem na morte uma espécie de cara-metade70. As mortes no mar, os
naufrágios, os afogamentos somam-se às mortes em terra. A morte no mundo do trabalho,
aliás, é uma realidade que se somou ainda às mortes à bala, nitidamente sentidas nas
estatísticas da violência local. Nesse lugar pairava agora a idéia de que não se pode vacilar.

“(...) pescador que morreu afogado, teve pescador que morreu afogado. Aqui na construção do
Titanzinho teve motorista que morreu também (...) que a caçamba ia jogar as pedras e vacilou, num saiu
de dentro do carro e caiu com pedra e tudo. Eu num tô lembrado bem dos outros tipos de acidentes, mas
tem. Morte de violência também existe, à bala. Eu já vi muita gente morrer também aqui, bala, faca e
assim vai”71.

Com o advento de uma rede de eletricidade mais estável, novas empresas se


instalaram. Três grandes moinhos de beneficiamento de trigo passaram a funcionar a todo
vapor e novos armazéns para estocagem da farinha de trigo foram construídos no local.
Também na década de 60, durante o período áureo de captura da lagosta destinada à
exportação, foram construídas várias empresas de pesca de grande porte.
No desenrolar de toda a segunda metade do século XX, grupos de trabalhadores se
instalaram na região concomitantemente às empresas. Na comunidade do Serviluz, os
moradores mais antigos viram a tecnologia industrial se instalar no quintal de casa, com
máquinas e motores, tubulações e tanques. Os trens, os navios e os caminhões continuamente
carregados indicavam uma alteração importante no ritmo de vida local. Ainda que esses
elementos, característicos do progresso que se fazia concreto, apareçam nas narrativas
vinculados apenas à geração de emprego e renda na região, eles certamente assinalam novas
formas de vivência do tempo e novas modalidades de organização das culturas.

2.4 A indústria de fogo

No que concerne ainda ao processo de industrialização, é impossível esquecer que a


comunidade do Serviluz nasceu espremida entre as marés do litoral leste da cidade e um

70
“(...) é legítimo inferir que o desenvolvimento técnico tem no acidente mais que um simples desvio ou exceção
à regra; este é parte constitutiva do próprio aparato técnico”. Cf.: SILVA FILHO, Op. cit. p. 22.
49

amontoado de empresas que lidam com materiais altamente inflamáveis. Os primeiros


casebres, de pobreza e fragilidade gritantes, foram erguidos sobre os morros de areia frouxa e
sobre as tubulações de gás, o que faz sugerir o perigo constante em que essas pessoas
viveram, e ainda hoje vivem. As terras do velho Mucuripe em pouco tempo se tornaram tão
belas quanto assustadoras.
A interação permanente com a natureza não constituía a única especificidade do lugar.
Algumas pessoas do bairro têm a clara convicção de que os principais motivos de a
especulação imobiliária não terem se apossado da praia são: o constante deslocamento da
areia, capaz de soterrar construções; e as empresas de gás e combustível, cujo fogo se tornou
uma ameaça. O homem moderno já tinha posto ali suas indústrias. O barulho das ondas do
mar se intercalava agora com a sirene das usinas; a intensa maresia da praia se misturava ao
forte cheiro de gás; bebia-se água com gosto de querosene. O fogo, a areia, o vento e a água
constituem elementos que denotam a especificidade do bairro na cidade e apontam também
para a construção de estratégias de sobrevivência e desenvolvimento de culturas intimamente
relacionadas às condições da natureza.
Mas, de modo geral, a natureza do litoral do Mucuripe não era mais apenas encanto e
poesia. A praia fora praticamente tomada de seus primitivos habitantes. Seus arredores
abrigavam os perigos dos terminais das distribuidoras de combustível e os riscos das
tubulações aéreas e subterrâneas de uma área pontilhada de contrastes. Notadamente o
Mucuripe se tornara belo e assustador.
De forma curiosa, as classes trabalhadoras conseguiram significativas infiltrações
urbanas no espaço almejado pela burguesia local. Pela quantidade de recursos aplicados, a
área leste da cidade, diferentemente da concentração operária da zona oeste, estava destinada
tanto à indústria petroquímica quanto à verticalização imobiliária. De modo geral, Fortaleza
caracterizou-se pela ausência de planejamentos urbanos mais amplos por parte da
municipalidade. Apresentando-se como uma cidade cujo crescimento econômico fez-se em
meio à formação de numerosas áreas de risco, abrigos compulsórios da população de baixa
renda, a cidade consolidou-se pontilhada de visíveis contradições sociais.
Mas o que significa exatamente morar nos arredores de um terminal de gás? No
primeiro grande incêndio, ocorrido em julho de 1980, as chamas chegaram a mais de 50
metros de altura, consumindo milhares de litros de combustíveis da empresa Shell. Todos os
esforços possíveis e imagináveis foram empregados no combate ao incêndio, que irrompeu

71
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
50

em pelo menos sete tanques no terminal da Shell, localizado na Esplanada do Mucuripe, onde
estavam acumulados mais 10 milhões de litros de gasolina72.
Os jornais anunciavam com afinco o maior incêndio já ocorrido no Ceará. Uma
maratona de guerra se passava na região. Recrutas foram chamados às pressas, técnicos e
contingentes de apoio foram convocados do interior e de outros estados. Um avião Hércules
da Força Área Brasileira foi deslocado de Recife para combater o fogo que ameaçou também
as demais companhias petrolíferas. Durante os trabalhos, cinco soldados do Corpo de
Bombeiros foram internados no hospital da corporação, vítimas de intoxicação e queimaduras
causadas pelo enorme calor no local73.
Na Assistência Municipal, deu entrada uma criança, vítima de atropelamento ocorrido
quando o menor, em companhia da mãe, tentou atravessar uma rua nas imediações do
desastre. Havia sido justamente no momento em que muita gente correu ao ouvir a explosão
do segundo tanque de gasolina74.
A polícia militar isolou a área e o tráfego de transportes foi desviado. Caminhões-
tanques não conseguiram abastecer e a falta de gasolina afetou gravemente diversos setores da
cidade.
Pelo noticiário, a cidade de longe acompanhou que o retorno das famílias afastadas
não estava previsto, porque não se sabia quanto tempo se gastaria para debelar totalmente o
fogo que tomou as imediações75. Nos casebres localizados na área mais próxima à indústria, a
situação foi muito pior. Casas ficaram fechadas; algumas abandonadas às pressas e deixadas
abertas, foram alvo da pilhagem de aproveitadores. A polícia de plantão registrou pelo menos
cinco prisões76.

“O caso foi tão sério que após o primeiro dia de fogo aí a polícia montou um esquema de segurança,
ficou fazendo ronda no bairro e alguns moradores ficaram tomando conta de suas casas (...) porque a
população abandonou o bairro, porque foi um incêndio que assustava, a gente sentia a temperatura do
fogo, uma quintura (...) assustava mesmo (...) muita gente foi robada levaram televisão, levaram som
porque os ladrões aproveitaram (...) foi um dia mesmo de terror (grifo nosso) para a população do
Serviluz”77.

72
Jornal O Povo, em 29/07/1980. p. 08.
73
Jornal Tribuna do Ceará, em 29/07/1980, capa.
74
Jornal O Povo, em 29/07/1980, capa.
75
Durante a pesquisa, foi comum ouvir referências de moradores de outros bairros da cidade sobre esse incêndio.
Muitos citadinos tiveram como divertimento a contemplação do “espetáculo” de cores das labaredas de fogo que
podiam ser focadas de longe.
76
Jornal Tribuna do Ceará, em 29/071980, p. 04.
77
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
51

Causador de pânico generalizado, o fogo aterrorizou milhares de moradores das zonas


adjacentes, que, apavorados, evacuaram suas casas por vários dias. Pela localização do Bairro
Serviluz, entre o fogo e o mar, tudo se tornou mais desesperador ainda. Experiência
traumática, esse episódio indicava o quanto custava aportar nesse lugar de oportunidades que
surgiu em Fortaleza.
O bairro não era mais o mesmo. Os perigos concretizaram-se, tornaram-se uma
realidade trágica. Em 1993, dessa vez na empresa Gás Butano, um segundo incêndio
irrompeu. Os moradores afirmaram que se viam botijões de gás voarem e os estilhaços
perderem-se de vista. As explosões provocavam barulhos ensurdecedores novamente, “você
jurava que o Serviluz ia todo pelos ares”78. No segundo sinistro, no entanto, não apenas a
força do fogo, mas também o susto dos moradores parecem ter sido menores. Dessa vez muita
gente optou por ficar em casa e utilizar a estratégia de somente abandonar o domicílio caso o
fogo passasse de uma empresa para outra. Treze anos após a primeira tragédia, os moradores
possuíam tanto a experiência anterior de abandono quanto, aparentemente, um pouco mais de
confiança no sistema de antifogo das empresas e do Corpo de Bombeiros.
Mas era impossível esquecer o local em que estavam instalados. Constantemente,
ainda hoje, ocorrem pequenos sustos, focos isolados, falsos alarmes que disparam e
simulações que se repetem. Devido ao fogo, muitas pessoas do bairro foram embora, o
incêndio na verdade aparece como ponto limite de uma contradição: aqueles que
conseguissem com o fogo conviver teriam um sono relativamente tranqüilo, pelo menos em
relação à ameaçadora especulação imobiliária.
O fato é que o conjunto industrial atraiu imenso contingente de migrantes a toda essa
região. Mesmo tendo a indústria uma demanda por mão-de-obra relativamente reduzida, a
possibilidade de conseguir emprego de carteira assinada ou mesmo um mero biscate em uma
grande empresa atraía muitas pessoas. Esses trabalhadores se instalavam de forma precária,
quase sempre nos muros das indústrias ou na beira da ferrovia.
Nessa atmosfera de projetos e relações sociais conflitantes, para certa elite política e
econômica de Fortaleza, devido, principalmente, ao investimento maciço de capital e recursos
externos, o espaço onde se operava a ação desses trabalhadores adquiriu grande importância.
Isso nos possibilita indagar sobre a existência de uma possível relação de “reciprocidade”,
ainda que bastante desigual, entre Estado, iniciativa privada e os imigrantes, na formação dos
núcleos habitacionais nos arredores do Porto do Mucuripe. Caso contrário, parece bastante

78
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
52

óbvia a expulsão dos pobres das chamadas áreas de risco, como ocorreu em muitos dos
grandes centros urbanos brasileiros.
Na cidade de São Paulo, Raquel Rolnik sugeriu que diante da desigualdade social e da
mutiplicidade cultural, urbana se constitui

(...) um pacto territorial paralelo à propria legislação, que admite que existam coisas
irregulares, ilegais, e até destina determinados espaços da cidade – normalmente os espaços
mais desqualificados, distantes, desurbanizados, longíncuos – para essas coisas ilegais
acontecerem. E que esse é um pacto que, ao mesmo tempo, permite que a maior parte das
pessoas resolva seu problema da moradia por sua própria conta e, ao assim fazer, não tensiona
todo o esquema político de denominação79.

Ora, desde a concepção, a existência de um conglomerado habitacional, numa região


mais afastada daquelas áreas escolhidas pelas elites da capital e que, ao mesmo tempo, se
situava próxima às novas fábricas, parece uma evidência clara de que os empreendimentos
nesse espaço visavam tanto solucionar problemas urbanos decorrentes de nova espacialização
que se pretendia para Fortaleza quanto disponibilizar mão-de-obra fácil e barata.
O que o Estado e o capital privado não planejaram foi que, para essa parte da cidade,
sem um equacionamento urbano definido e num ambiente ecologicamente condenável,
convergissem pessoas com identidades e culturas tão diferenciadas. Por outro lado, devido ao
inchaço gerneralizado da cidade, o Bairro Serviluz acabou aproximando-se das áreas nobres
da cidade. Além disso, as zonas de praia de Fortaleza não mais eram vistas como espaços
desqualificados, mas como pontos revigorados pelo turismo em ascensão.
Envoltos nesse ambiente socialmente transformado, os moradores de beira de praia de
Fortaleza desenvolveram também a noção da mutabilidade sistemática da paisagem. Se o
homem remodela a seu bel-prazer a natureza, a certeza de que as coisas na cidade não são
estáticas torna-se muitas vezes uma condição, fazendo aflorar um homem capaz de mudar e se
transformar juntamente com a natureza.

2.5 A Fortaleza do turismo e da especulação imobiliária

79
ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit. Projeto História, nº. 18.
p. 140.
53

Durante um longo tempo, ignorou-se o encanto das praias e o prazer do banho de mar
em Fortaleza e somente muito tardiamente, de modo mais preciso no despontar do século XX,
a cidade abriu-se para o seu litoral.
Segundo o historiador francês Alain Corbin80, um conjunto de imagens repulsivas
associadas às águas oceânicas, construídas desde a gênese bíblica, impediu a emergência do
desejo da beira-mar no mundo ocidental. Não faltam episódios na mitologia e na literatura
clássica que reforçam a visão negativa do litoral como receptáculo dos excrementos do mar e
esconderijo dos monstros.
No entanto, é na própria teologia cristã que se inscreve uma nova noção apaziguadora
do litoral como espaço que tranqüiliza o homem, lugar onde Deus, em sua infinita bondade,
dispôs o oceano para o bem-estar das criaturas.
Assim, a partir do século XVII, operou-se uma mudança que veio possibilitar um novo
olhar sobre esse território, fazendo emergirem as figuras iniciais da admiração do mar que
motivarão, entre outras coisas, a prática da viagem turística.

Doravante as elites sociais buscam aí a ocasião de experimentar essa relação nova com a
natureza; encontram aí o prazer até então desconhecido de usufruir um ambiente convertido
em espetáculo (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a
relação harmoniosa do corpo e da alma (...) que corrija os males da civilização urbana, os
efeitos perversos do conforto, embora respeitando os imperativos da privacidade81.

Corbin observou com maestria como, desde o século XVIII, se operou uma espécie de
“invenção” da praia, que despertou o interesse pelo mar como um verdadeiro fenômeno
social. A partir desse momento, na Europa Ocidental, liberou-se uma paixão pelos panoramas
marítimos e os turistas passaram a experimentar a emoção de ver o mar.
Surgiu então uma íntima vinculação entre o estado de alma e a paisagem, a partir do
qual o espectador passa a viver a emoção provocada pelo sublime espetáculo da natureza.
Ocorre assim o alargamento dos modos de apreciação cenestésica do litoral que constitui um
acontecimento fundamental na história da sensibilidade. O equipamento turístico multiplica e
vulgariza uma experiência antes reservada às populações litorâneas, dando novas feições às
tradições mantidas secularmente nesses lugares.
No Ceará, o crescimento ganancioso do mercado da especulação imobiliária e o
inchaço demográfico desordenado propiciaram nas últimas décadas o acirramento dos

80
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
81
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 74.
54

enfrentamentos entre pobres e ricos pelas áreas litorâneas. Nesse sentido, as zonas de praia se
tornaram espaços conflituosos, marcados por duas lógicas distintas: uma representada pelos
usos tradicionais (o porto, a pesca e a habitação dos pobres); outra, pelas novas práticas
marítimas, notadamente os tratamentos terapêuticos da brisa, os banhos de mar e o veraneio82.
No mesmo período, a utilização do litoral para fins terapêuticos também induziu a
ordenação do banho de mar, bem como a regulamentação dos usos da praia. Em Fortaleza as
novas práticas marítimas, representativas dos hábitos europeus apropriados pelas elites locais,
suscitam um tímido movimento de urbanização das zonas de praia83. Na Praia de Iracema, a
partir dos anos 1920, ampliou-se a frequência de pessoas da elite que se deleitavam sob o sol
escaldante e que edificaram ali suas casas de veraneio.
Na cidade, por muito tempo, a praia foi um lugar desaconselhável para as pessoas de
bem. O mar era o lugar do porto e do transporte de mercadorias, suas praias serviam
basicamente de depósito de lixos e excrementos. O litoral, por isso, esperou longo tempo para
que suas areias fossem em definitivo incorporadas à realidade da vida urbana.
A partir dos anos 1970, com a intensificação do turismo, além das já referidas
transformações no mundo do trabalho pesqueiro, a especulação imobiliária também avançou
sobre o litoral de Fortaleza. Aquela primitiva aldeia de pescadores da enseada do Mucuripe
logo se transformou numa espécie de “selva de pedra” luxuosa onde jangadeiro pobre já não
podia mais morar.
A segregação espacial e a maquiagem no espaço urbano tornaram Fortaleza uma
cidade para inglês ver. À medida que foi chegando o turista, o pescador foi sendo obrigado a
sair. O resultado desse processo é a concretização de uma cidade que construiu espaços de
lazer e equipamentos de luxo para os turistas e as elites locais, mediante a destruição de
valores e tradições culturais há tempos sedimentadas, aumentando ainda mais a desigualdade,
a exclusão social e o avanço da degradação do meio ambiente já iniciado pela indústria.
O turismo tornou-se a nova vedete econômica do estado e os investimentos no setor
crescem ano após ano. Através do antigo Centro de Turismo, criado em 1975, e do atual
Programa de Desenvolvimento do Turismo do Ceará (PRODETUR-CE), em parceria com o
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com o Banco do Nordeste do Brasil
(BNB), o Governo do Estado tem gastado milhões em obras vultuosas e numa política de
marketing que visa divulgar uma suposta vocação turística do Ceará.

82
DANTAS, Eustógio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de Fortaleza. Fortaleza:
Museu do Ceará, 2002. p. 57.
83
Op. cit. p. 46.
55

Dessa forma, a orla configura-se como locus privilegiado de visitações. O discurso


oficial fala de um turismo diversificado, visando garantir o desenvolvimento integrado e
sustentável da zona costeira cearense. A propaganda, no entanto, não consegue esconder a
fragilidade em que se encontram os atores locais diante do avanço desenfreado do turismo de
proporções globais, pois, ao invés de promover o crescimento econômico das localidades,
resulta em degradação ambiental, favelização, desemprego, decadência da pesca artesanal e o
desaparecimento das manifestações populares.
Nesse novo contexto de Fortaleza, não é preciso muito esforço para perceber que as
praias passaram a ter novas funções e novos freqüentadores. Na ponta do Serviluz, muitos dos
personagens que não interessavam no novo cenário, criado para as elites, logo foram
confinados aos casebres mais afastados da luxuosa Avenida Beira–Mar. Interessa aqui
registrar as conexões entre turismo e prostituição no bairro.
O investimento industrial, a energia elétrica de Paulo Afonso e a construção da nova
Avenida Beira-Mar não foram as únicas obras de grande porte em Fortaleza; o período foi de
grandes intervenções, tanto do Estado quanto da iniciativa privada, no processo de
reordenação espacial de uma cidade que aspirava a ares de grande metrópole urbana moderna.
A atividade turística ao que parece vem reforçar a idéia de uma cidade cosmopolita ,
ensejando mudanças na ordenação urbana que lhe permitisse a recepção do crescente fluxo de
visitantes. A partir da incorporação da faixa litorânea à dinâmica urbana, por exemplo,
salientou-se a transposição das funções hoteleiras do perímetro central da cidade rumo à
Avenida Beira-Mar84. No decorrer dos anos 70, iniciou-se o processo de verticalização fora da
região central de Fortaleza e pequenos edifícios de apartamentos foram construídos no Bairro
Aldeota.
O primeiro registro de ocupação em grande escala para o entorno do velho farol
ocorreu no início dos anos 1960, quando aproximadamente 1300 mulheres85 que “ganhavam”
a vida na antiga Rua da Frente, hoje Avenida Beira-Mar, foram remanejadas do seu local de
moradia e trabalho para as proximidades do antigo Farol do Mucuripe. O conflito dessas
mulheres na região era bem antigo:

84
O primeiro grande estabelecimento destinado a fins de hospedagem, o Excelsior Hotel, um suntuoso prédio de
sete andares, foi inaugurado em 31 de dezembro de 1931 e situava-se ao lado da Praça do Ferreira no centro da
cidade. Já no princípio da década de 1970, o prefeito Evandro Aires de Moura baixou um decreto estabelecendo
a distância de 20 metros entre um edifício e outro, a fim de amenizar os efeitos da corrida imobiliária na Avenida
Beira-Mar e preservar a circulação dos ventos marinhos em direção à cidade. O decreto foi revogado na
administração posterior.
85
Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 206.
56

Na zona portuária, no Mucuripe, começava a surgir a prostituição, e, por isso, em 1952, 600
mulheres foram ameaçadas de despejo pela Secretaria de Polícia, pois algumas famílias
exigiram a transferência dos prostíbulos para outros lugares86.

A idéia era encurralar a prostituição de vários pontos da cidade, concentrada


principalmente na área central e nas proximidades do porto antigo, para as imediações do
farol abandonado “(...) onde não residiam famílias de classe média que pudessem ser
perturbadas com a vida noturna dos cabarés”87.
As prostitutas, grupo socialmente marginalizado, que faziam da orla o espaço para a
garantia da sobrevivência, naquele momento representavam, aos olhares obcecados pelo
progresso e pela moralidade, atraso e promiscuidade. A Avenida Beira-Mar (a primeira etapa
foi construída em 1963) tornou-se o novo cartão-postal da cidade, que construía espaços de
lazer e sociabilidade para as elites e se consolidava como pólo do turismo e da especulação
imobiliária por excelência.
Já na década de 1930, os prostíbulos davam um tom boêmio e violento às noites da
cidade, constituindo múltiplos conflitos entre seus personagens. Os prostíbulos faziam parte
de um cenário urbano específico, marcado por um tom boêmio, festivo e transgressor88.
De certa forma, a vinda de personagens que animam a vida numa zona de meretrício
para o Mucuripe passou a estigmatizar essa parte da cidade. Dentre esses personagens, foi
sobre as “raparigas do Farol” que recaíram os mais pesados fardos da vigilância moral e dos
abusos da violência policial. Na dinâmica do espaço urbano, as prostitutas foram obrigadas a
criar diversas estratégias de sobrevivência.
Na transferência para o Farol, apesar das pequenas indenizações, as mulheres não
receberam recursos suficientes que lhes permitissem melhorar suas precárias condições de
vida. O novo local era certamente bastante desprivilegiado. As condições encontradas pelas
“madames” no deslocamento inicial, em 1961, não foram as melhores:

(...) tal remoção não foi fácil, pois as ‘madames’ alegavam não ter um local disponível e
adequado para seu tipo de negócio, sendo o Farol um local quase desértico e em péssimas
condições. Não havia luz elétrica, água potável e calçamento, tornando bastante difícil o acesso
ao local (...) A energia elétrica foi o único serviço prontamente instalado 89.

Mas foi com o meretrício que aconteceram os primeiros melhoramentos urbanos na


área. Água, luz e telefone chegaram a uma região até então praticamente inabitada. Surgiu ali,

86
Op. cit. JUCÁ, p. 205.
87
Op. cit. p. 206.
88
GUEDES, Mardônio. Pelas ruas e pensões: o meretrício em Fortaleza (1930-1940). In: Fortaleza: História
e Cotidiano – Gênero. SOUZA, Simone e NEVES, Frederico de Castro (orgs.). Fortaleza: Ed. Demócrito
Rocha, 2002. p. 53.
57

ampliando os limites do velho Mucuripe, a zona do Farol, o primeiro conglomerado humano


do Serviluz. Esse núcleo permaneceu aparentemente isolado por muito tempo, cerca de 300
metros formados de um lado e outro apenas por cabarés. Praticamente ilhado das áreas nobres
da cidade, o Farol, quando não havia clientes, era somente observado pelos parcos casebres de
pescadores.
Aos poucos, seguindo a expansão da cidade para suas áreas periféricas, as pessoas
foram se estabelecendo em direção ao antigo Farol do Mucuripe. Antes do porto, o farol era a
única edificação localizada no extremo leste da cidade. Foi exatamente nas proximidades do
farol que se formou o Bairro Serviluz.

89
Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 25.
58

Capítulo II

2 Migração, trabalho e a transformação do Serviluz em uma


comunidade multifacetada

Bem antes do fim da construção do porto, Fortaleza já se caracterizava pela


intensificação do crescimento urbano acelerado, concretizado sobretudo pelo processo de
inchaço e favelização. Na área leste, mais especificamente na região de dunas compreendida
entre o atual Bairro Mucuripe e a Praia do Futuro, iniciou-se uma acentuada aglomeração de
pessoas oriundas de outros pontos da cidade e, principalmente, do interior do Ceará.
Após a ocupação de parte do litoral pelo porto e pelas fábricas, uma quantidade
maciça de trabalhadores começou a chegar. Empregando dinâmicas sociais múltiplas, pessoas
com distintas experiências de vida desenraizam-se, encontram-se, constroem projetos e
requalificam seus espaços. Naquilo que foi possível, tentou-se seguir os caminhos que esses
sujeitos trilharam para chegar ao local, bem como analisar as condições encontradas para a
construção da sociabilidade nesse espaço. A partir da origem e da trajetória de vida migrantes,
será possível dar sentido às diversas estratégias políticas para fixação na cidade, percebendo
como as pessoas foram construindo a luta pela sobrevivência e o modo como vivenciaram as
contínuas transformações urbanas.
No lugar onde se constituiu a comunidade do Serviluz, a natureza era um elemento
forte da vida urbana e, até o início dos anos 1960, a paisagem era praticamente formada de
morro e mar, quase não havia presença humana. Ao lado do cais recém-construído, era bem
reduzido o número de famílias que se alojavam além desses limites. Nos areais ao redor da
outrora Esplanada do Mucuripe, mesmo após o aterramento iniciado pelo porto, as dunas de
areia e as altas marés que antes revelavam a natureza exótica tornavam ainda o local
inadequado à moradia.
De modo um tanto grosseiro, é possível afirmar que a corrida humana, em larga
escala, para o Serviluz pode ser dividida em dois momentos distintos: o princípio da década
de 1960 e o início dos anos 80. No início dos anos 60, uma pequena área da praia já havia
sido tomada sorrateiramente por pescadores retirados da área do porto. Nessa época, iniciou-
se também o período áureo da pesca da lagosta, atividade econômica que arregimentou muitos
trabalhadores que chegavam à cidade para a região do Mucuripe. Aos que estavam em busca
59

de empregos na capital, o mar oferecia ganhos numa atividade tradicionalmente já exercida


por muitos desses migrantes. Além disso, a ocupação dessa área era facilitada devido à
interseção da Colônia de Pescadores junto à Capitania dos Portos, a fim de se conceder parte
do terreno de marinha para habitação dos pescadores; esta, aliás, tornou-se uma estratégia
eficaz de ocupação.
Ainda nesse período, as atividades portuárias criaram a necessidade de moradia para
os trabalhadores do cais. Na região do Serviluz, foi então disponibilizada uma pequena vila,
localizada bem próxima ao porto e que cresceu em paralelo à linha férrea desativada, a Estiva.
Apesar do volume de operários do cais residentes no bairro, a quantidade de trabalhadores do
porto que habitavam essa área é bastante imprecisa. Tudo indica que, pela precariedade das
habitações e pela ausência de serviços urbanos mínimos no período, os estivadores, com
razoável padrão aquisitivo, preferiram residir em áreas mais urbanizadas da cidade; muitos
continuaram morando nas proximidades do porto antigo.
Diferentemente das migrações ocorridas para o bairro em fins de 1970 e princípios de
1980, quando houve uma variedade bem maior de trabalhadores dedicados a profissões
urbanas, na década de 60, o Serviluz foi tomado sobretudo por pescadores e prostitutas. Essa
característica fundante do bairro foi tanto uma conseqüência da segregação espacial imposta
às camadas pobres da cidade quanto uma clara demonstração de que os pobres não foram
totalmente expulsos da praia, quando essa passou a ser economicamente valorizada.

2.1 Farol, os “de dentro” e os “de fora”

“Farol, designação inadequada para abrigar quem vive sem uma luz a indicar-lhe o futuro”.
(Blanchar Girão)

A tendência das elites urbanas de Fortaleza de escolherem determinadas áreas para se


resguardar das massas urbanas criou cidades diferenciadas dentro da mesma cidade. Esse não
era um processo novo. Desde os anos quarenta, novos bairros foram sendo criados com a
finalidade de abrigar as classes mais abastadas. No processo de divisão espacial da cidade, foi
significativo que a população de baixa renda também construiu seus abrigos em vários pontos.
A zona de meretrício do Farol foi um deles.
60

Diferente do Serviluz, o cenário do Mucuripe, apesar de abrigar um complexo


portuário e industrial, foi um franco alvo da especulação imobiliária, que cresceu
vertiginosamente à época. A praia não comportava mais somente as funções de carga e
descarga e o fluxo marítimo. A natureza foi apropriada pela sociedade de consumo sob a
forma de moradia de luxo. Naquela paisagem bucólica, a luz da Avenida Beira Mar indicava
que por ali havia passado o progresso. Mais que isso, as luzes vinham dar visibilidade a novos
tipos de sociabilidade que floresciam com a energia elétrica. As cenas arcaicas que o cineasta
norte-americano Orson Welles captara na enseada do Mucuripe não tinham mais sentido.
Nesse meio século de história, as jangadas e os homens do mar praticamente desapareceram
da praia e os coqueirais foram substituídos por imensos arranha-céus.
O cenário não comportava, sobretudo, a prostituição que, desde o início das obras
portuárias, havia se alojado nos arredores. A transferência da zona de meretrício para os
confins da esquina leste da cidade, escondida atrás do porto, indicava que nessa área
estigmatizada, devia-se isolar a pobreza e a prostituição. A prostituição exercida em bordéis,
nesse caso, configura-se como um tipo especifico de trabalho, diferente, por exemplo, do
meretrício praticado na rua.
São poucos os estudos que sistematizam a problemática do surgimento da prostituição
em Fortaleza. As cores da noite quase sempre são cobertas pelas imagens sombrias da
“podridão”, do mundo profano e da degradação moral dos “corpos sem lei”. A igreja, por
exemplo, condena essa prática porque fere a tradição familiar cristã. O sexo, assim, é
concebido exclusivamente como meio de reprodução humana, entre a esposa e o marido, e
não como um modo de trabalho90.
Espaços localizados, os bordéis foram, ao longo do tempo, alvos de campanhas
públicas por parte da vizinhança que exigia, desde a época do Mucuripe, o distanciamento

90
No pensamento moralizador ocidental, temas como a não virgindade, condição da prostituta, são condenados,
fato que se reflete, inevitavelmente, no trabalho. “Nas leituras da Igreja Católica sobre a prostituição, o que se
observa é a ênfase em um paradigma de prostituta como ‘tipo ideal’ para desenvolver o raciocínio baseado no
pecado, na impureza, na devassidão, na podridão”. No entanto, “historicamente na nossa sociedade, o cabaré
tinha como uma de suas principais funções a iniciação sexual do homem, preservando as ‘moças de família’, que
deviam permanecer virgens até o casamento”. Cf.: SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da
prostituição. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998. p.114 e 41.
91
ANJOS JÚNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A Serpente domada: um estudo sobre a prostituição de
baixo meretrício. Fortaleza: Ed. UFC, 1983, p. 24. Trata-se de um dos poucos trabalhos acadêmicos que
enfocam o bairro. A pesquisa, no entanto, não é específica sobre a zona do Farol em Fortaleza, mas um estudo
comparativo das características dessa com as zonas de baixo meretrício do “Posto Fiscal” em Brasília. O autor
realizou a pesquisa de campo entre março e julho de 1980, privilegiando os dias de sexta a domingo devido à
maior concentração de mulheres. Utilizou ainda a estratégia de entrevistar as prostitutas em outros dias da
semana, sobretudo à tarde, nos quais, devido ao descontraimento das mulheres, era possível investigar melhor o
cotidiano dos cabarés.
61

entre as casas de prostituição e as “famílias de bem”. As preocupações com a regulação da


conduta sexual e a discriminação social aumentam quando o trabalho prostituinte é
desempenhado numa zona especifica, onde o estigma pode ser geograficamente exercido.
A prostituição, contudo, nem sempre se opõe aos aspectos familiares vigentes; ao
contrário, pode inclusive reforçar a estrutura familiar tipo nuclear. Trata-se de uma atividade
que agrega, tanto quanto não dispersa, seus agentes. No bairro, as prostitutas eram mulheres
que cumpriam muitas vezes um duplo papel, materno e paterno, indo ao cabaré para preservar
(leia-se sustentar) boa parte da sua família. Nesse universo, acordos silenciosos podem ser
estabelecidos; “há prostitutas e prostitutas”.
Em pesquisa sobre a então nova zona de prostituição do Farol do Mucuripe, Versiani91
colheu 12 (doze) entrevistas, das aproximadamente 400 (quatrocentas) existentes à época,
com mulheres do Farol. Segundo o autor, uma das dificuldades da pesquisa de campo era a
predisposição negativa das mulheres em narrar suas histórias de vida, pois as prostitutas
estavam geralmente saturadas de enquetes do Serviço Social e de entidades filantrópicas.
Nesse sentido, além da cautela do pesquisador, o respeito para com as informantes mostrou-se
essencial no processo de aproximação das depoentes. O conhecimento do mundo da
prostituta, no entanto, dependia não apenas das informações extraídas diretamente das
prostitutas, mas envolvia uma gama de informações pertinentes a outros “atores coadjuvantes
no drama” que, apesar de pertencentes ao mundo “de fora”, partilhavam o espaço físico do
Farol. Isso se deu porque a população do Farol constituiu um “caleidoscópio” de
marginalidade urbana, mostrando profunda mistura entre casas de família e casas de
prostituição.
De acordo com Anjos Júnior, cerca de 90% das mulheres do Farol eram oriundas do
interior do estado ou de estados nordestinos vizinhos. Pelo tipo de profissão que exerciam,
muitas mulheres preferiam “ganhar a vida” fora do local de origem. Grande parte ingressava
nessa atividade após a experiência da perda da virgindade, antes do casamento, em lugares
onde essa prática é mais severamente condenada.
A atração de jovens migrantes e a freqüente renovação do contigente de prostitutas
ampliavam-se de acordo com o movimento na zona portuária. A permanência de
“estrangeiros” no cais aumentava significativamente o volume de dinheiro na zona e o ganho
das prostitutas. Comparando-se a outros serviços braçais, nos quais a remuneração é sempre
62

irrisória, os ganhos no Farol eram incomparavelmente maiores, sobretudo quando ocorria a


ancorada de navios no porto de Fortaleza.
Na instalação dos cabarés do Farol, foi grande a importância das madames
(proprietárias ou gerentes dos estabelecimentos) que negociaram diretamente com o prefeito a
transferência dos prostíbulos, tornando-se, durante o histórico de fixação, proprietárias das
casas. Mantendo importantes vínculos com a prostituta, em geral é a madame que viaja pelo
interior recrutando as mulheres para os bordéis; preferem jovens interioranas, consideradas
comportadas e fáceis de manipular pela pouca experiência. Além da mão-de-obra feminina, as
madames tinham o hábito de empregar homens no bar onde serviam, eventualmente, como
seguranças do estabelecimento92. À medida que a área foi ficando violenta, esses homens
passaram cada vez a ser contratados na própria localidade.
Em termos de equipamentos urbanos, o Farol era composto de cerca de 70 (setenta)
cabarés, que geralmente abrigavam entre quatro e seis mulheres cada. Ali eram oferecidos
serviços de bar, espaço dançante e aluguel de quartos93. Além das casas noturnas, nas
adjacências, era possível encontrar botecos que vendiam produtos para o consumo interno. No
entanto, era ainda mais comum a venda de produtos de casa em casa, onde eram oferecidos
alimentos, perfumes, cosméticos e roupas. Como os marítimos pagavam os serviços em dólar,
comerciantes e cambistas do local compravam o dinheiro estrangeiro e, aos poucos, o
comércio local começou a florescer.
O isolamento do Farol pretendido tanto pelas administrações municipais quanto pelos
ricos locais, entretanto, contrastava com a efervecência e a quantidade de visitantes que
freqüentavam regularmente o lugar.

“Nessa época os cabarés eram freqüentados só por estrangeiros, americanos, franceses. Tinha boate que
só freqüentava americano, brasileiro não tinha vez (...) o Farol era um local que as mulheres tinham
status, as mulheres viviam bem, vestidas, bonitas (...) quer dizer, ganhavam dinheiro, muitas
aproveitaram, algumas fizeram pé-de-meia, casaram, umas foram morar na Alemanha, algumas ficaram
aqui, sabe. Mas o Serviluz os cabarés eram freqüentados exclusivamente por gringos”94.

As cenas descritas pelos moradores escapam aos desígnios almejados pela segregação
espacial. Uma variedade de sons, cores e luzes nutria ali múltiplas relações. Tudo indica que
as visitações ao Farol não se davam apenas pelo movimento dos cabarés e toda sua boemia, a

92
Anjos Júnior afirma que os “gigolôs” no Farol, podiam ser contados cerca de 50 (cinqüenta) na década de 80,
serviam como “leões de chácara” ou como protetores e/ou exploradores das meretrizes.
93
Ainda segundo Anjos Júnior, os cabarés principais recebiam denominações como Moulin Rouge, Estrela do
Mar, Morning Light, A Deusa do Mar, Rastro, Corujão, Sumaré, Brisa Mar, Mocambo da Fafá, Discotec, Boite
da Eunice etc. Op. cit. p.26.
94
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
63

praia pouco habitada apresentava ainda uma paisagem bastante convidativa. “A sociedade de
Fortaleza se divertia aqui”, enfatizou um entrevistado. Recebiam-se muitos turistas,
praticantes de esportes náuticos e pescadores de fim de semana, a praia foi um excelente
espaço de lazer.
No Serviluz, as lembranças do mundo da prostituição não se limita ao universo da
pobreza e da promiscuidade; ao contrário, apresenta sinuosas relações sociais que agregam
valores e criam territórios. A partir do Farol, no então reduzido povoado do Serviluz, deram-
se intensas negociações e disputas entre os de “dentro” e os de “fora” desse circuito.
A zona de prostituição levava o nome do farol desativado que foi transformado em
museu, e, mesmo sendo alvo de preconceito devido à sua localização, o Farol do Mucuripe foi
durante certo tempo um importante ponto de visitação turística da cidade. Nos depoimentos,
percebe-se que várias personalidades de Fortaleza e estrangeiros endinheirados se misturavam
alegremente às mulheres e aos pescadores que residiam nos arredores. O “acolhimento”
tornou-se uma prática econômica e cultural importante para a comunidade.
Altos funcionários das multinacionais em estadia na cidade, muitos dos quais também
estrangeiros, tinham nessa localidade a possibilidade de diversão e entretenimento ao lado da
empresa em que trabalhavam. Com toda essa movimentação, não apenas as casas noturnas
lucravam, o pequeno comércio local cresceu consideravelmente, “minha mãe comprava
dólares”95, e as pequenas mercearias foram se transformando para atender um público
exigente e diversificado.
De modo curioso, são igualmente comuns as lembranças dos episódios em que os
pescadores disputavam, em pé de igualdade, o direito de usufruir o comércio no Farol com
pessoas de elevado poder aquisitivo.

“Por incrível que pareça no passado o pescador tinha moral, porque ganhavam bem. A lagosta dava
dinheiro. O pescador chegava no cabaré, a zona como nós falávamos na época, ele disputava pau a pau
com os gringos, com o pessoal que vinha de fora que gastava em dólares, porque o dinheiro era fácil
(...) o pescador, o pescador artesanal, também tinha muita aceitação porque naquela época o pescador
ganhava muito dinheiro, a lagosta né? Tinha abundância”96.

Nesses depoimentos, ainda que essa tenha sido uma situação relativamente efêmera, a
condição do pescador figura bem diferenciada daquela tradicional imagem de pobreza, quase
indigência, a que já se referiu. A imagem do pescador podia, inclusive, emergir como a de um

95
Ibidem.
96
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
97
Depoimento de Lúcia, do Brisa Mar. Cf.: ANJOS JÚNIOR, p. 88-89.
64

“príncipe encantado”. Muitos homens do mar podiam proporcionar uma vida mais segura às
mulheres da zona e essa era, via de regra, a condição mais palusível para a fuga do meretrício.

“Se o cara é bom pra mim e me dá conforto e eu gosto dele, eu largo mão disto e vou ficá com
ele. Mas eu prefiro se for pra casar, casá mesmo, de papel e juiz, porque aí a responsabilidade
da coisa é bem maior. Aí eu posso cuidá dele, dos filhos, tudo que a mulher faz ... quando o
homem gosta mesmo, ele casa” 97.

Nesse contexto, os pescadores ainda em boa situação financeira podiam usufruir os


serviços sexuais prestados na zona. Os “lagosteiros”, por exemplo, eram capazes de pagar o
alto preço das bebidas, das mulheres mais bonitas e dos quartos mais luxuosos, um conjunto
inacessível para a maior parte dos moradores do bairro. Apesar disso, notavelmente as
mulheres do Farol preferiam os marinheiros, considerados menos grosseiros e mais generosos
no pagamento dos serviços oferecidos.
Mas se o universo do bairro era, em certas circunstâncias, permeável ao cotidiano do
meretrício, também era forte o desejo de se resguardar do convívio de sua agitação.

“Daquela área pra lá depois das nove horas em diante não tinha mais possibilidade de pessoas de menor
ir pra lá, entendeu? Não tinha. Oito horas, nove horas já não ia mais (...) e as mulheres casadas iam, mas
o pessoal comentava muito. Eu nunca tive isso não, eu sempre ia porque onde meu marido tava, eu
nunca tive medo de ir (...), mas era um negócio muito quente, muito quente, quente mesmo. Homens
despidos, mulheres também, era uma... como é que se diz, uma... um lugar mesmo reservado, muito
quente tá entendendo? (...) praticamente isolado (...), mas pra cá também eles num passavam, nem elas
nem eles, eles num passavam né, era como assim um muro de Berlim (...)”98.

Há, de certo modo, nas entrevistas colhidas entre os moradores, uma tendência geral
ao apagamento da memória da prostituição no bairro. Isso implica reconhecer o Farol como
um espaço reiteradamente rejeitado e compreendido por alguns como uma espécie de mancha
negra na história do lugar. Em termos práticos diários, durante o dia era até comum que os
moradores andassem entre os cabarés, afinal foi em função do meretrício que energia elétrica,
telefone, farmácia, chafariz e outros serviços foram prontamente instalados no local. À noite,
no entanto, o espaço ganhava sons e agito, sendo quase sempre malvisto no seio da
comunidade.
Escolas, associações e outros núcleos comunitários que foram se formando no bairro
aconselhavam os pais a não permitirem que os filhos freqüentassem a zona de prostituição. Os
mais velhos lembram quando a Kombi do Juizado de Menores começou a vigiar de modo
mais acintoso a entrada de crianças na zona de prostituição. A violência desencadeada no

98
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
65

Farol e a marginalidade crescente no seu entorno provocaram uma preocupação exacerbada


dos pais no que se refere à criação dos filhos. Quando o bairro foi crescendo em termos
populacionais, adolescentes começaram a quebrar a tradicional rotina familiar e a criar novas
formas e espaços de sociabilidade; o poder da juventude aumenta ao mesmo tempo em que
sobre ela recaem com mais força os discursos da Igreja e a ideologia do trabalho. A
prostituição, nesse contexto, constituía um péssimo exemplo.
O isolamento na zona de prostituição tornou-se também uma espécie de elemento de
identidade. Instaurou-se no bairro a possibilidade de ser “confundido” com o outro, com o
diferente, com o comportamento considerado imoral e por isso anormal.

“Naquela época existia um tabu. Por exemplo, uma moça, uma senhora casada não podia andar naquela
área, porque se andasse naquela área era confundida (grifo nosso) com prostituta. Existia essa divisão.
Aí foi justamente por causa disso que dividiram o Farol do Serviluz. Mas só que o Farol está contido no
Serviluz e o Serviluz contém o Farol (...) pensavam que todas mulheres eram iguais. As mulheres
casadas, as moças num podiam andar naquela área, principalmente à noite”99.
.
O forte isolamento mantido por alguns moradores locais e registrado na cidade como
um todo em relação a esse espaço não consegue silenciar as permutas e os intercâmbios
existentes. Havia um reconhecimento tácito de que, apesar das opções de vida das meretrizes,
estas tinham procedências semelhantes à maioria da população local e o ganho com a
prostituição, supostamente fácil, era uma condição necessária à sobrevivência.

“A maioria delas eram garotas que vinham do interior, chegava aqui não tinha trabalho e entrava nesse
ramo de vida. É como diz o ditado a vida é fácil né? Na época tinha mulher que fazia quatro, cinco
programas. Amanhecia o dia com muito dinheiro, muito dinheiro mesmo. E quando pegava um gringo
ou marinheiro ganhava até em dólar ganhava”100.

O reconhecimento dessa atividade como um meio de sobrevivência cruel e doloroso


aparece como motivação central para uma eventual união entre mulheres dos bordéis e
pescadores nativos. Diferentes das mulheres que viajaram para lugares distantes, as mulheres
resgatadas por homens locais, ao serem levadas para o lar, acabam engendrando
transformações comportamentais importantes na própria comunidade. Passando a morar
muitas vezes na própria vizinhança, essas pessoas assumem quase sempre o papel de dona de
casa; criar filhos e cuidar do domicílio eram suas novas atribuições. Essa mistura

99
Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.

100
Entrevista realizada concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
66

contingencial tende a transformar inclusive a vigente concepção de família, já que é a mulher


que passa a administrar a estabilidade do lar.
Para os moradores, inevitavelmente, o encontro nesse universo estava diariamente
colocado. Várias mulheres da noite, por exemplo, alugavam casas ou quartos no bairro para
descansar durante o dia, acontecia que muitas farras saíam dos prostíbulos e terminavam nos
botecos e até mesmo nas habitações locais. Esse intercâmbio possibilitou que turistas de
várias nacionalidades se casassem ou simplesmente fizessem laços de amizade com os
moradores. O desejo de conhecer o mundo claramente processou-se em função dessa
interação. Nesse caso, as oportunidades criadas no meretrício, obviamente, não eram visadas
somente pelas mulheres vistas na comunidade como mundanas.
Não sendo esse um estudo mais específico sobre as relações sociais estabelecidas no
meretrício, coube enfatizar a importância da constituição inicial de fronteiras invisíveis,
condições limites, a demarcar onde e que tipo de pessoas podiam circular, indicando assim os
usos sociais de determinados espaços. Existiam tanto barreiras quanto interações. Os termos
“de dentro” e “de fora”, por isso, são muitas vezes incapazes de comportar as mesclas
ocorridas no improviso cotidiano local.
O esforço de definição do “de fora” tomou ainda mais impulso com o aumento
demográfico e o surto de criminalidade no bairro. O tempo da caminhada tranqüila e do
dinheiro correndo fácil expirou. Até princípios dos anos 1980, a violência não era deliberada
e, apesar da generalizada discriminação, sobre esse lugar prevalecia ainda a fama da
hospitalidade, do acolhimento, da diversão. Estrangeiros que desciam do porto aproximavam-
se e misturavam-se às mulheres sob as luzes dos bordéis, a “Las Vegas” do Ceará. O bairro
cresceu, em parte, devido à renda proveniente dos freqüentadores.
Mas aos poucos se esvaiu aquela atrativa imagem de paraíso. Além dos clientes e
meretrizes, a entrada da polícia, antes somente acionada para solucionar pequenos conflitos e
desentendimentos no local, passou a ser rotineira. A Secretaria de Segurança Pública do
Estado expedia os alvarás de funcionamento dos prostíbulos, encarregando-se também da
manutenção da ordem.

Na zona do Farol, o destacamento policial age sobre as prostitutas de maneira


indiscriminada, procurando em seus mínimos deslizes um motivo para espancá-las e
confiná-las às grades (...) Não é raro que uma prostituta tenha que prestar, sob coação,
serviços sexuais gratuitos para um policial a fim de obter determinados favores em
situações criticas101.
67

O bairro cresceu desordenadamente e aquele reduto de pescadores passou a ser visto


como uma perigosa favela. As mudanças no perfil do bairro e o preconceito que este passou a
inspirar na cidade envergonhavam sobremaneira os moradores.

“(...) E pra lá a gente nem sabia quando acontecia uma morte, uma coisa, porque também era difícil,
agora é muito mais fácil (...), mas brincavam por lá a vontade principalmente quando chegava navio,
marinha né?, esses navios eram muito chegados aqui e... às vezes acontecia fato de matarem marinheiro,
marinheiro desaparecia, isso pra gente aqui, a população ainda era pouca, isso pra gente era como se
fosse uma coisa muito grande (...) teve uma época que mataram dois marinheiros, amanheceram mortos
naquelas pedrinhas né? , dois corpos ali, vixe Maria! foi uma coisa quase que o bairro acaba, quase que
aqui acaba, mas de violência não, de tristeza entendeu? (...)” 102.

O Farol passou a ter uma rotina de assaltos e mortes que o levaram ao declínio quando
chegou à “época da marginalidade”. Sintomaticamente, a percepção dessa transformação
repentina no ritmo de vida local é com freqüência atribuída à zona, fazendo emergir daí uma
espécie de memória ressentida desse espaço.
A decadência do Farol está ainda relacionada ao surgimento de novas e sofisticadas
áreas de prostituição na cidade. À medida que os clientes preferenciais ausentaram-se, os
donos dos bordéis passaram a investir cada vez menos na contratação de garotas jovens e
formosas. Essas, por sua vez, procuraram novos lugares próprios à prostituição. O
aparecimento avassalador do vírus da aids também contribuiu para a diminuição generalizada
no mercado do sexo, pois a crescente preocupação com doenças e epidemias esvaziou
gradativamente os bares e quartos de aluguel.
Fatores externos à atividade da prostituição favoreceram o declínio do fluxo de
visitantes, como o surgimento de novas atrações turísticas na cidade e a diminuição dos
marinheiros descidos no porto. O sistema portuário moderno, de estivagem em contêineres,
por exemplo, passou a permitir um trabalho de carga e descarga mais veloz, diminuindo o
tempo de permanência do marítimo em terra. À medida que este trabalhador não mais
precisava permanecer quinze enfadonhos dias na cidade, alterou-se também a rotina dos que
lhes prestavam serviços, inclusive de prostituição. Por outro lado, se o volume de marítimos
da marinha mercante diminuiu, os transatlânticos de luxo carregados de passageiros
aumentaram, mas esses turistas não mais incluem o bairro como ponto a ser visitado. Ao
contrário, ao passo que o bairro foi tornando-se perigoso, as próprias autoridades portuárias
encarregaram-se de criar mecanismos a fim de evitar a ida dos turistas à praia do Serviluz.

101
Op. cit. ANJOS JÚNIOR. p. 35.
102
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
68

Em meio à crise, tornar-se uma madame ainda era uma expectativa para muitas
mulheres, pois significava a diminuição do trabalho e o aumento do prestígio que extrapolava
os domínios da zona. A pressão no cabaré se manifestava, por exemplo, na chegada de navios,
quando os clientes eram esperados na entrada do cais, uma verdadeira batalha: “Aí, eu parti
pra cima dela. Ela tava com uma gilete no dedo e tão aqui os cortes (mostrando o pescoço e o
braço). A sorte dela é que ela já saiu daqui, senão eu tinha matado ela”103.
Na prostituição, conhecer as regras de convivência do meio, como a não delação, por
exemplo, é código fundamental para conseguir viver sem afrontas com as companheiras.
Também é comum que no ato do trabalho as mulheres utilizem “nomes de guerra” ou que não
se metam na briga entre duas pessoas do local, ao mesmo tempo; numa possível richa entre
um “de dentro” e um “de fora”, rapidamente se toma partido.
A concorrência deixa marcas no corpo, as agressões físicas com navalhas, giletes ou
garrafas quebradas visam principalmente partes do corpo como face ou seio, deixando
cicatrizes que marcam profundamente uma mulher, depreciando-a no trabalho devido à
dilaceração física visível.
Numa atividade cujo ganho advém do aluguel do corpo, os ganhos podem aumentar de
modo substancial segundo os jogos sexuais, propostos, quase sempre, pelo próprio cliente. A
prostituta precisa desenvolver a consciência de que o bom estado físico é fundamental, um
“cartão de visita” para fechar bom negócio; seu ganho diminui substancialmente à medida que
envelhece ou que aparenta desgaste físico.
De modo geral, o tempo hábil para o trabalho é bem curto. Nem sempre é possível
aplicar os necessários cuidados corporais e as preocupações com a saúde e com a estética são
comprometidos pelos desgastes contínuos e acelerados dos corpos. A alimentação deficiente,
a ingestão contínua de álcool e as noites em claro deixam marcas, claramente perceptíveis à
luz do dia.
Apesar das ambigüidades emanadas da prostituição, para alguns moradores foi uma
pena que o bairro não tenha tido estrutura suficiente para firmar-se como destino turístico,
nem mesmo no ramo de prostituição. Lamentam não ter aproveitado a grande movimentação,
o rico passado histórico, a bela natureza e a vocação hospitaleira do povo, não ter se
antecipado ao futuro que apontava para o turismo como grande projeto de Estado. Apesar da
desigualdade em que se encontravam socialmente o nativo e o visitante, boa parte da
população de baixa renda entende essa mistura com o pessoal “de fora” como um fator

103
Depoimento de Cleonice. Cf.: Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 68.
69

positivo. Nos depoimentos, é significativo que os estrangeiros, bem mais que os ricos da terra,
eram vistos como alavancas, capazes de ajudar a superar as necessidades primárias do bairro.
Os turistas podiam ser vistos como promovedores de apadrinhamentos, amizades e outros
laços afetivos, práticas que parecem se perder quanto o tradicional hábito de visitação tornou-
se uma mercadoria.

2.2 A Praia Mansa

Como foi dito anteriormente, até os anos 60 e 70, o Serviluz era um pequeno
conglomerado de pescadores e prostitutas. Existia ainda uma pequena vila, a Estiva, sendo
esse espaço geograficamente integrado. Na primeira rua do bairro, a Zezé Diogo, onde
haviam sido instalados os cabarés, ficava também o Campo do Paulista, espaço de futebol e
lazer freqüentemente assolado por inundações. Como bem lembrou um morador, “o Serviluz
parecia uma cidadezinha” onde os morros de areias e uma fina grama verde, a salsa,
completavam o espaço. Pouca gente, pouca luz e pouco lixo.
Nas imediações do porto, a construção de novos espigões de pedra e o aterramento de
parte da orla, necessários à ampliação do complexo portuário, fizeram recuar o mar e
acalmaram o avanço das marés. Tornou-se habitável uma pequena faixa de praia, a chamada
Praia Mansa (ver mapa), que passou a abrigar casebres de pescadores e biscateiros
remanescentes da pesca. A partir da segunda metade da década de 1970, essa região foi sendo
lentamente tomada por várias famílias, muitas das quais já estabelecidas na capital e que viam
na praia a possibilidade de trabalho e ocupação de um terreno da Marinha.
Na ilha, criada artificialmente, as casas eram de madeira e cobertas de palha de
coqueiro, pois a Companhia Docas não permitia a edificação de alvenaria. Localizada ao lado
da antiga usina do Serviluz, a Praia Mansa pouco apresentava vestígios de ocupação, o local
era bastante preservado, pouco aparentando que, ao lado dos barracos, vultuosos
investimentos industriais tinham transformado a paisagem. Não havia água encanada e
tampouco energia elétrica. Sitiadas, as pessoas mais antigas lembram-se de uma única
televisão, alimentada por bateria, uma novidade do mundo urbano, ainda bem estranho àquela
realidade. A televisão, em preto e branco, fora uma aquisição de um morador da praia, um
mecânico de lanchas, e passou a servir de entretenimento à população. Nas casas, cheias e
70

apertadas, os novos espectadores eram obrigados a assistir à programação em pé, na frente da


janela.
No Serviluz, já existiam alguns poucos aparelhos de televisão, mas ao sair da Praia
Mansa, os moradores enfrentavam o incômodo percurso de ida e volta para casa, sobretudo à
noite, no escuro, tendo que atravessar o paredão de pedra que cercava o lugar. Nessa jornada,
o mar se jogava sobre as pedras e a maré banhava os transeuntes; em alguns horários, o banho
de mar era certo e o indivíduo corria o risco de ser arrastado pelas águas na escuridão.
Na praia funcionava um porto de barcos de pesca onde, segundo depoimentos,
chegavam a ancorar até 200 pequenas embarcações. Os moradores da praia, entretanto, já não
eram os proprietários das embarcações, mas mesmo os que não eram pescadores formais eram
constantemente recrutados para a realização de pequenos reparos. Empregava-se ali uma mão-
de-obra genuinamente familiar, “todos se conheciam”, “praticamente a mesma família”, pois
a maioria dos habitantes foi trazida pelos pescadores mais velhos em tempos de boa pescaria.
Mantinha-se ainda na Praia Mansa, quando tudo indicava o fim da atividade de pesca na
região, a tradição comunitária pesqueira. De modo bastante claro, configurou-se naquele
espaço a convivência de uma mutiplicidade de temporalidades históricas.
Vale novamente resssaltar que a idéia da fartura no mar, entre essa gente, contrastava
com a lembrança da calamidade sofrida em terra. O abrigo naquela praia foi para muitos uma
questão de sobrevivência, “a maioria dos que vieram do interior, vieram pra cá porque tavam
passando necessidade devido a uma seca que teve há uns tempos atrás”104. Calamidade e
prosperidade, entretanto, comumente intercalam-se: “Saíram de lá à procura de algo melhor
aqui e encontraram um canto tranqüilo lá na ilha”105.
A tranqüilidade da Praia Mansa, contudo, não era exatamente absoluta. Os moradores
estavam vivendo sobre uma natureza modificada e que por vezes se revoltava. Quando a maré
crescia muito, transbordava até as pedras de proteção e inundava os casebres, sem segurança;
as casinhas ficavam sempre na iminência de desabar, inclusive com a água da chuva.
Em 1977, mais um deslocamento maciço começou a ser executado nessa região. Dessa
vez, a comunidade de pescadores e pessoas incorporadas às atividades pesqueiras da Praia
Mansa foi retirada compulsoriamente dos seus casebres. As pessoas desocuparam aquele
canto de praia e foram, ao lado das prostitutas expulsas da antiga Rua da Frente, reinstaladas
no entorno do Farol abandonado.

104
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
105
Ibidem.
71

A comunidade da Praia Mansa, ou Titan, estava localizada praticamente dentro do


Porto do Mucuripe, em uma área de segurança da Companhia Docas do Ceará. Os casebres,
apesar de instalados ali havia já alguns anos, foram desalojados. Tudo indica que a
transferência foi devida a um suposto aumento das instalações portuárias. A Capitania dos
Portos, que já vinha há cerca de três anos ameaçando a derrubada das habitações, sem nenhum
tipo de indenização, concretizou as ameaças.
Esse foi um primeiro momento de intensa mobilização dessa comunidade. Através de
alguns vereadores, os moradores apresentaram seguidos requerimentos para que fossem feitos
apelos ao Governador do Estado, Adauto Bezerra, a fim de que este conseguisse, além de uma
ajuda financeira, um local onde aquelas pessoas pudessem fixar suas novas residências.
É importante salientar como, nas famílias desse nível social, era possível que cerca de
três mil pessoas conseguissem residir em aproximadamente 300 barracos, uma média de dez
indivíduos vivendo sob cada teto. É bem difícil precisar essa população em números, como no
caso das mulheres do Farol, porque as estatísticas quase sempre deixam escapar a realidade
fugidia de quem migra. O surto populacional foi um fenômeno que se repetiria no Serviluz
quando, mesmo com a área toda ocupada, a população não parava de crescer.

“Agora se desenvolveu por quê? Porque esses familiares a maioria são do Acaraú (município criado em
1849 e distante 238 km de Fortaleza), então começaram a construir suas casas, depois das casas
construídas, aí vem um sobrinho, vem primo, vem irmão, vem cunhado e assim a população foi
aumentando (...)”106.

O “resgate” silencioso dos familiares tornou-se uma prática recorrente. Na Praia


Mansa, na casa de alguns pescadores, habitavam até três famílias. Em alguns casos, era maior
que quinze o número de moradores em um mesmo domicílio, tudo isso se dava numa pequena
localização onde não existia nenhuma escola e nem energia elétrica. No limiar de 1980, esta
era uma população que ainda vivia a luz do candeeiro brabo.
Na transferência para o Serviluz, a Companhia Docas cedeu pequenas indenizações:

“A Docas planeou o terreno, loteou para cada família 12 (doze) metros de comprimento por 6 (seis) de
frente. Esses 6 (seis) metros de frente nós fazia as casas de 5 (cinco) metros de casa e ficava meio metro
de cada casa, pra num ficarem conjugadas (...) eles doaram vara, que não era de tijolo, barro, as
madeiras e as telhas para cada morador”107.

106
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
107
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.
72

Os moradores construíram a mão suas próprias residências. Prevaleceram, portanto, as


habitações com o padrão de construção de taipa, um modelo arquitetônico usualmente
conhecido pelos sertanejos desde o período colonial, mas bastante rudimentar. Com o terreno
plano e limpo, enfiavam-se as varas no chão, entrelaçando-as e enrolando-as com náilon ou
arame até atingir a altura desejada, em geral as casas são baixas. Montado o esqueleto, as
paredes são cheias com o barro molhado, arremessado e modelado com as mãos. Prontas as
paredes, algumas casas recebem telhas; noutras o teto será de palha e o chão feito de terra
batida.
Tiveram que matar as dunas para construir as casas e os moradores perceberam de
imediato que a apropriação dessa área, cujas condições ambientais específicas eram
inadequadas, colocava-os em risco constante de morte. O perigo dos ventos, da areia, do mar
e do fogo tornou-se uma realidade ameaçadora. Nesse ambiente, uma simples queda de chuva
causava perigo porque levava o barro das paredes; os reparos nessas construções demoravam
somente até o próximo temporal. Nessas circunstâncias, aconteceu que muitos moradores da
praia foram morar em bairros mais afastados do grande Mucuripe.
A migração de caráter familiar da Praia Mansa refletiu-se diretamente no tipo de
sociabilidade que se instaurou no bairro. Nesse lugar portuário, aparentemente marcado pela
idéia da dispersão, o apego ao espaço e o convívio diário com a vizinhança se tornaram um
grande valor social.

“Pra ser sincero eu num troco esse bairro aqui por nenhum outro bairro da nossa capital não (...)
essa rua que eu moro é só praticamente o pessoal que veio da Praia Mansa, praticamente a mesma
família (grifo nosso)”108.

Nesse processo de ocupação, mantiveram-se solidariedades que conformaram uma


base identitária da comunidade sustentada pela noção de familiaridade. Tradições renovadas e
adaptadas aos novos sentidos que os aspectos de trabalho, domicílio e família passaram a
significar.
O episódio da transferência da Praia Mansa apresenta uma lacuna importante, mais
precisamente o porquê de a Capitania dos Portos naquele instante ter se comprometido a
proteger somente a categoria dos pescadores cadastrados e suas famílias. Isso indica tanto que
muitos moradores viviam praticamente de outros subempregos quanto a idéia da identificação
com a pesca como uma opção circunstancial. Esse detalhe da transferência suscita uma

108
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2003.
73

questão, talvez reveladora, quando se pensa a utilização da falsa identidade de pescador como
meio de inserção nas áreas praianas de Fortaleza. Afinal, como foi que cerca de três mil
pessoas, pobres e subempregadas, dentre as quais nem todas eram trabalhadores da pesca,
conseguiram se infiltrar numa área tão restrita?
Transferida da ilha para o Serviluz, a comunidade continuou a viver num lugar cuja
localização geográfica provocava um grande e estranho incômodo. Ali os elementos da
natureza pareciam confluir, fazendo operar uma lógica de moradia, às avessas; quanto mais
próximo da água do mar se habitava, mais se estava sujeito à ameaça das areias e dos ventos;
na beira da praia, percebia-se mais nitidamente como as intempéries naturais podiam impor
sérias dificuldades à existência do homem. No Serviluz, principalmente nos meses de vento
forte, era na beira do mar que mais se sofria “com a chuva de areia que invade nossas casas e
tempera nossa comida”109.
No decorrer do processo histórico de ocupação do Serviluz, a praia do Titanzinho
correspondeu exatamente à faixa de praia que recebeu os pescadores oriundos da “barra
mansa”, ou Praia Mansa. Ocupou-se a borda de terra que margeia o mar, a esquina leste de
Fortaleza, onde as fileiras de casas foram estendidas sobre uma área de dunas aplainadas, a
praia do Titanzinho110, terreno conseguido junto à Marinha por ocasião da retirada daquela
população. Os pescadores, em condições de trabalho e moradia agora bastante diferenciadas
daquelas em que viviam nos tempos áureos da lagosta, permaneceram na orla, mas tiveram de
conviver mais diretamente com outras categorias de trabalhadores. Nessa região, instalou-se
assim uma variedade de modos de vida que possibilitava a hibridez de múltiplas culturas.
A migração em torno da pesca não se procedeu somente relacionada a laços familiares.
Inúmeras experiências individuais marcaram também a experiência retirante de homens e
mulheres fugidos para a cidade. Os deslocamentos a partir de estratégias familiares não
devem ocultar a vivência migratória solitária dos jovens que cedo partem rumo à capital e em
busca dos benefícios que esta supostamente oferece.
Deve-se ressaltar que para alguns a mudança para a metrópole significou exatamente o
rompimento, o desligamento familiar. Nesse meio, a quantidade desenfreada de filhos do
casal restringe sobremaneira as oportunidades de melhoria social, e mesmo a garantia da
sobrevivência no local de origem. Os mais moços, ao tentarem a sorte na cidade, acabam

109
Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho
110
O nome Titanzinho é uma alusão a um grande guindaste de fabricação alemão usado na construção do
primeiro espigão, o Titan. A máquina descarregava as pedras, transportadas por maria-fumaça, e as alinhava no
paredão. Conta-se que, após a desativação, o Titan foi destruído e que, durante sua explosão, quatro
trabalhadores morreram vitimados pelos estilhaços.
74

dando início a um processo dispersivo que pode consolidar exatamente o esfacelamento da


família tipo nuclear.
Dona Conceição conta que chegou à cidade de Fortaleza em 1967, com quatorze anos
de idade.

“Então quando eu cheguei aqui eu encontrei uma dificuldade muito grande, porque ninguém dava
apoio a gente ‘de menor’, crianças menores né? (...) não tinha condições, ninguém dava condições
a ninguém, não tinha esse negócio. Hoje em dia tem! Você tem quatorze anos tem... um grupo tem
uma coisa, você ganha uma coisa, ganha outra, hoje tem, mas nessa época não tinha” 111.

A certeza é a de que os tempos realmente mudaram. Como muitos jovens do bairro,


dona Conceição praticamente “descobriu a vida” na cidade. Dos dezoito filhos que sua mãe
teve, apenas dois permanecem vivos; foi criada pela avó e não se relaciona muito bem com a
única irmã.
Na experiência migratória, a aquisição da maioridade foi um momento especial. Há,
sobretudo na fala dos mais velhos, o entendimento da redefinição das condições de uma
criança em relação ao modo de vida deles. A criação diferenciada na contemporaneidade,
nesse caso, é via de regra percebida com lamentação: “Infelizmente hoje, não podemos criar
nossos filhos desse jeito, nem na educação, nem na fartura, nem no respeito dentro da casa da
gente”112. Nos lugares onde reina a miséria, a memória da infância, como o instante do brincar
e da diversão, alterna-se à do sofrimento; eram vivências precoces da rotina adulta,
experiências da migração e do trabalho como situações antagônicas e depreciativas do
homem.

2.3 A crise da pesca e o surgimento de novos trabalhadores

“Todo pescador tinha uma casa boa, tinha luxo, tinha carro, hoje não é mais assim. Pescador passa
fome, passa necessidade (...) como a pesca praticamente acabou, ou seja, a pesca da lagosta, só tem o
peixe. E hoje em dia se você for ver os pescadores do bairro sofrem. Hoje o que não saiu do ramo, hoje

111
Entrevista realizada concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
112
Depoimento de Maria Ferreira Dias, dona Mariazinha, líder comunitário do Serviluz. Cf.: CEARAH,
Periferia. Vivências, lutas e memórias: História de vida de lideranças comunitárias em Fortaleza. Fortaleza:
Ed. Demócrito Rocha, 2002. p. 98.
75

passa uma necessidade enorme teve que mudar de profissão (...) porque a pesca em si hoje no nosso
bairro não é mais... é um meio de sobrevivência para aqueles que não conseguiram nada” 113.

Em meio ao surgimento de uma miríade de ocupações, atividade pesqueira


permaneceu um dos principais meios de sobrevivência da população do Serviluz. A produção
reduzida, no entanto, impossibilita que atualmente os trabalhadores tenham um padrão de vida
compatível com o período anterior em que predominava a abundância na captura da lagosta.
Um indício da queda dos rendimentos na pesca pode ser observado no fato de somente os
mestres de barco, hoje, conseguirem patamares salariais equivalentes ao de outros
trabalhadores de terra, como os estivadores e os operários da indústria.
Apesar dos ganhos reduzidos, a pesca continuou tendo adesão entre os homens locais,
principalmente porque a execução dessa atividade depende da prestação de numerosos
serviços auxiliares. Emprega muitas pessoas, inclusive entre os que não possuem as
habilidades de um exímio pescador. Tomando como exemplo a já referida pesca da lagosta,
pode-se perceber que nesta empreitada se pode empregar praticamente toda a família.
Enquanto o pescador vai para o mar, sua esposa pode trabalhar na empresa de beneficiamento
do crustáceo. Os filhos em casa tecem o manzuá114. Com um ímã, o caçula recolhe as pontas
de arame que são arremessadas ao chão ao corte do alicate. Com certa quantidade apanhada,
busca-se vendê-las a peso na sucata que pagar o melhor preço. O filho mais velho pode ainda
trabalhar no corte e na amarra da madeira a ser envolvida pelo arame tecido. Todas essas
tarefas podem ser realizadas em casa, vigora um tipo de trabalho familiar coletivo. O dono da
lancha passa semanalmente entregando rodas de arame, recolhendo o trabalho realizado e
pagando pelo resultado da produção. Muitas vezes a soma da família gerada no lar é superior
à do homem no mar.
Esse é, no entanto, geralmente um tipo de trabalho que gera baixíssimos pagamentos.
Além disso, a produção das telas de manzuá exige um esforço físico considerado pesado, as
mãos e os dedos calejam-se do vaivém do arame deslizando sobre uma superfície de pregos
fincados em uma lâmina de zinco, o alicate e as pontas de arame constantemente machucam
as mãos. Diante de um pequeno cavalete, pouco acima da cintura, trabalha-se em pé,
permanecendo horas nessa labuta. Uma das principais conseqüências desse tipo de serviço
para o trabalhador é o desgaste violento.

113
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
114
O manzuá, geralmente construído nas comunidades de pesca, é uma espécie de gaiola feita de madeira e
arame. Essas armadilhas são lançadas pelas embarcações no ato da captura.
76

A pesca intensiva, como se viu, foi responsável pela depredação marinha em escala
planetária, levando à prática extinção de algumas espécies, como a lagosta115. O “mar não é
mina”, o mar não é um bem inesgotável. A captura em larga escala fez com que, durante todo
o século XX, vários países adotassem tratados de proteção e preservação dos cardumes,
limitando a pesca de certas espécies em determinadas épocas do ano. É sabido ainda que o
sistema de assalariamento por produção desenvolveu o espírito competitivo entre os
pescadores; cada vez mais ávidos por ganhos maiores, embarcam em viagens que duram
vários dias.
No Serviluz o ecossistema possibilitou uma certa continuidade da pesca local. Mas
apresentou como resultado do declínio econômico desse ramo o surgimento dos chamados
pescadores-biscateiros116. Não conseguindo sobreviver apenas da renda proveniente do mar,
esses homens foram sendo obrigados a complementar o ganho familiar com trabalhos
auxiliares. Pescadores de praia e não de alto-mar utilizam linhas e pequenas redes, costumam
reunir parentes, vizinhos e amigos da própria comunidade. A produção nem sempre é
destinada ao mercado, servindo basicamente de alimentação aos familiares dos que pescam. A
partilha, como foi dito, nem sempre é exata e obedece a laços de solidariedade externos à ação
de captura. Trata-se de homens que se tornam “pescadores quando tem peixe”, porque, na
maior parte das vezes, o sustento vem da feitura de pequenas tarefas, já que a pesca tornou-se
um tipo de “bico”.
A conciliação entre pesca e atividades secundárias, como a agricultura, consiste numa
prática comum em muitas pequenas localidades pesqueiras do Ceará. De certa forma, essa foi
uma tradição que se manteve entre os pescadores que migraram para a cidade, sobretudo nos
lugares onde a pequena lavoura e o criatório de animais para consumo puderam ser
mantidas117.
Se a pesca continua arregimentando certa força de trabalho local, principalmente entre
aqueles que não se escolarizaram, sua prática foi aos poucos reduzida. A crescente pesca

115
De acordo com a Lei 9.605-98, o Instituto do Meio Ambiente (IBAMA) considera crime a pesca da lagosta
com tamanho inferior a 13 centímetros, o tipo vermelho, e 11 centímetros para as espécies verdes. Além disso,
no “período de defeso”, durante os meses de janeiro a abril, a pesca do crustáceo é proibida.
116
Pescadores ocasionais que conciliam a pesca à execução de outras atividades.
117
No Serviluz, apesar da reduzida fertilidade do solo arenoso, os quintais foram amplamente aproveitados com
essas práticas. Nas residências, no fundo dos pequenos terrenos, frontais ao mar, porcos, galinhas e outros
animais destinados ao consumo doméstico dividiam espaço com o plantio de algumas fruteiras e hortaliças.
118
Arquivo do Sindicato dos Portuários do Mucuripe.
119
Criada em 1965, com o fim da construção do porto, a Companhia Docas do Ceará foi a primeira sociedade de
economia mista a administrar um porto no país.
77

industrial impunha novas exigências de mercado nesse ramo de trabalho; aos olhos dos jovens
do bairro, parecia não fazer sentido estudar para continuar pescando quando havia inúmeras
outras possibilidades profissionais nos arredores. Acrescenta-se ainda que os meninos da
comunidade, inseridos nos programas assistenciais criados pelo governo, ingressavam
automaticamente em novas áreas de trabalho, compatíveis com uma demanda por mão-de-
obra em setores da economia moderna, como a indústria, o comércio e o turismo.
No caso do operariado do porto e da indústria, a constatação inicial da ausência de
uma certa tradição sindical atuante no bairro não ocultava que a estiva e as fábricas
empregavam muitas pessoas. Esses sindicatos em Fortaleza dificilmente podem ser tidos
como instrumentos de emancipação dos trabalhadores. O Sindicato dos Portuários do Ceará,
porém, dentre várias categorias, é uma entidade que ainda presta “assistência” a mais de mil
trabalhadores em portos no estado do Ceará118.
Em 1996, data da última greve dos estivadores do porto do Mucuripe, a Companhia
Docas do Ceará praticamente impôs aos trabalhadores do porto um novo sistema de
contratação de mão-de-obra. Com a criação do Órgão Gestor de Mão-de-obra (OGMO), e sob
o discurso da racionalização do trabalho na estiva, os sindicatos cederam a administração da
contratação do trabalho no porto, de suma importância para a categoria, entregando essa tarefa
a um organismo sob a tutela direta da Companhia Docas119.
Em última análise, a movimentação portuária moderna subordina-se às oscilações
econômicas em escala mundial; ainda que os trabalhadores da estiva alcancem uma
estabilidade maior que os da pesca, seus ganhos são sempre relativos e dependentes do
número de navios que passam pelo porto. Fernando Silva120 observou que atualmente, em
meio a embates sobre questões como a “modernização” (leia-se privatização) e a eliminação
do chamado Closed Shop System121, os portuários continuam levando não só a carga, mas
também boa parte da culpa pelas mazelas da política implantada e pelos principais problemas
que concorrem para a ineficiência dos portos.

120
SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995. p. 07.
121
No Closed Shop System ou simplesmente “monopólio de estiva”, a contratação da mão-de-obra nas operações
de estivagem e desestivagem de cargas do porto fica a encargo do sindicato. De acordo com Gitahy, “não é de
surpreender que os estivadores fossem um terreno fértil para a solidariedade em quase todos os portos do mundo
e que tivessem criado sindicatos na base do Closed Shop para neutralizar a insuportável ameaça do mercado de
trabalho no sistema ocasional de contratação”. Cf.: GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar:
Trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992. p.114.
78

No caso do Mucuripe, o próprio porto hoje está em declínio. A partir da construção do


novo terminal portuário na praia do Pecém, novamente uma das “mais modernas instalações
portuárias do país”122, o estado do Ceará tem promovido esforços no sentido de retirar as
funções portuárias de carga e descarga da praia do Mucuripe. Sob a ótica do novo projeto
econômico, a enseada é muito mais interessante ao projeto turístico em andamento.
Os estivadores, apesar da reduzida expressividade em termos de organização sindical,
continuam uma categoria de reconhecido prestígio no bairro. Mesmo com as transformações
modernizadoras nos portos, um portuário regularmente escalado para o trabalho percebe
rendimentos consideráveis; em alguns casos, a realização de algumas poucas horas de
trabalho pode lhe valer uma remuneração que, em outras profissões, lhe custaria pelo menos
uma semana de trabalho. Mas há também no porto, sobretudo nos dias atuais, uma certa
inconstância. Além disso, essa é uma área cuja força de trabalho se renova muito lentamente.
Com a privatizaçãodo do recrutamento da força de trabalho, foi ainda revogada uma antiga
tradição portuária na qual o filho mais velho de um estivador tinha garantida a vaga do pai
aposentado.
Na verdade, não somente o trabalho no mar e na indústria tornaram-se escassos, mas
também o bairro foi invadido de tal maneira que dificilmente essas atividades seriam capazes
de garantir emprego para tantas pessoas. Por isso, forçosamente, adere-se a novas formas de
trabalho:

“(...) Eu já fiz tanta coisa já! Já trabalhei in hotel, trabalhei in banca de revista, trabalhei in restaurante,
já trabalhei como vendedor ambulante, mas o que eu gostei mais foi de trabalhá in hotel. Eu trabalhava
na recepção do hotel e eu tinha contato direto com os turistas e os hóspedes que vinham se hospedar no
hotel. Um pessoal muito interessante de várias partes do Brasil, de várias partes do mundo (...) era
muito interessante, você aprendia várias coisas novas, o costume das pessoa de outro estado, o jeito de
ser das pessoas de outro estado (...) e ainda tinha as gorjeta que a gente ganhava dos hóspedes. Eu
levava as bagagens e às vezes eles davam presente (...) eu consegui comprar alguma coisa pra mim
quando eu trabalhava no hotel”123.

Se antes eram principalmente a pesca e a indústria que atraíam a mão-de-obra, aos


poucos os trabalhadores locais foram adentrando noutros setores da economia e exercendo
novas profissões. Com o crescimento do turismo no estado, o ramo de hotelaria, por exemplo,
passou a absorver uma fatia significativa da população, sobretudo entre os moradores de
praia. Garçom, barman, cozinheiro, recepcionista, camareira, seguranças e muitos outros
profissionais passaram a trabalhar em hotéis, bares e restaurantes cada vez mais entupidos.

122
Informativo Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. de 2003.
123
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
79

Para os entrevistados, entre outras diferenças, esses novos postos de trabalho tinham a
vantagem da carteira de trabalho assinada. Esta oferecia garantias tanto quando se está
empregado quanto no momento do desemprego, já que o registro da experiência profissional
qualifica e facilita a aquisição de um novo emprego. À medida que aumentou a escolarização
e que melhoraram as condições de transporte, os jovens do bairro puderam ainda trabalhar no
comércio e noutros lugares que requeriam uma capacitação profissional razoável, acirrando
ainda mais a dispersão no universo do trabalho.
O próprio crescimento do bairro, motivado pela enxurrada migratória dos anos 80 em
diante, possibilitou também o aparecimento de novos trabalhadores, voltados para as
necessidades internas da comunidade que crescia. É o caso, por exemplo, dos padeiros, que
surgiram concomitantes ao surto demográfico, e dos pedreiros, que despontaram juntamente
com a ascensão da construção civil. Homens desempregados passaram a se profissionalizar
na edificação de casas de alvenaria, uma febre que assolou recentemente o bairro. Serviços
temporários para alguns, já que os “bicos” nem sempre aparecem; para outros, mais
especializados, os novos ramos de trabalho significavam emprego o ano inteiro. Além disso,
esse mercado informal também agrega uma série de tarefas para as quais não se exige quase
nenhuma qualificação profissional. No referido setor de construção, por exemplo, os
chamados “serventes” são pessoas sem escolaridade alguma e que desempenham, como
auxiliar de pedreiro, um trabalho inteiramente braçal.
Vale salientar que muitas vezes a sobrevivência da população pode ser garantida a
partir da inventividade criativa gerada com os recursos disponíveis na própria localidade,
como no caso da captura da sardinha, que, apesar de empregar uma força de trabalho
eminentemente masculina, pode despertar uma extensa cadeia produtiva (pesca, compra e
venda), capaz de envolver toda a família. Enquanto o homem pesca, em casa as mulheres
secam, espetam e fritam as sardinhas ou “piabas”. Por sua vez, os jovens conduzem os
espetinhos, consumidos como petiscos pelos turistas nas praias mais badaladas da cidade.
Assim, se as circunstâncias históricas gerais possibilitaram o advento do turismo, coube à
população praiana a capacidade inventiva de integrar a pesca ao turismo.
Esse potencial criativo pôde ainda ser canalizado para o esporte que também se tornou
um meio de sobrevivência para muitos jovens locais. O surfe, por exemplo, de esporte
marginalizado, emergiu à categoria de profissão de destaque, conquistando uma fatia
significativa de adeptos na comunidade. Na contramão das possíveis afirmações
profissionais, foi recorrente a noção da efemeridade no mundo do trabalho, das “profissões
curtas”. Mesmo em atividades como o surfe, que se caracterizam pela excelência no vigor
80

físico, a dedicação total ao esporte por parte dos competidores não possibilita que se tirem os
olhos de outros ramos de trabalho, nos quais eventualmente poderiam ingressar quando
findarem os patrocínios. É consenso: “tem uma época que a idade pesa”.
A mistura e as possibilidades postas no trabalho, de certo modo, impediam a análise
desses trabalhadores pela via exclusiva de uma suposta divisão de classes. A circularidade
permanente e a vastidão de tarefas que eclodiram nessa região configuravam uma realidade
mais abrangente, a força operária entendida como a “classe que vive do trabalho”.

2.4 A seca e a cidade

De modo geral, o deslocamento das classes proletárias para as “areias” e a


conseqüente construção da vida social da classe operária nesses espaços julgados “marginais”
perpassam vários momentos da história da cidade de Fortaleza. No fim da década de setenta,
porém, as migrações cresceram ainda assustadoramente; nesse período, as areias começavam
a desaparecer e uma pequena parte da cidade começou a experimentar o asfalto.
A ocupação do Serviluz, como observado antes, foi fruto tanto do deslocamento
compulsório de grupos sociais há tempos estabelecidos, em função das novas funções
econômicas da orla e do encarecimento da terra, quanto da chegada de muitos trabalhadores
numa época de grande estiagem no Ceará.
Em períodos de seca, a população do interior acredita mais veementemente que é na
capital que poderá melhorar de vida. Fortaleza nesse caso se apresenta não somente como o
delírio da mudança substancial das condições de vida, ela também seduz concretamente
através da sua relativa magnitude e soberba, comparando-se, bem entendido, com as
minimizadas perspectivas de vida dos vilarejos do interior do estado124.
No início de 1980, os ofícios do governo deixavam clara a certeza de nova estiagem e
de mais migração cearense em larga escala125. Segundo relatórios da secretaria do poder
executivo, o Governo Federal pretendia aproveitar pequena parte dessa corrente, orientando-a

124
SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de Inserção na Cultura
Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade
Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p. 120.
125
Fundo Governador Virgílio Távora. Subsérie: Secretaria de Obras e Serviços públicos. Data: 1979/1982.
Fortaleza-CE. Caixa 04.
81

para a construção da Transamazônica, em que supostamente os pioneiros teriam apoio para


que pudessem se fixar e progredir no Norte. Mas era preciso ainda dar confiança no futuro aos
outros milhares de trabalhadores que permaneceram em seu “torrão natal”126.
A situação de calamidade no estado se agravou nos anos seguintes. Em 1981, 123
escritórios de emergência foram criados nos municípios atingidos pela estiagem. Do total da
população economicamente ativa do Ceará, pouco mais de um milhão de pessoas, pelo menos
255 mil trabalhadores já haviam sido alistados nas frentes de serviço do governo127.
Sobre essa seca no estado, o historiador Frederico de Castro Neves ressaltou:

Em 1982, pela primeira vez, as denúncias de ‘genocídio’ alcançaram todo o país. (...) As cenas
terríveis da luta pela vida no sertão seco foram mostradas pela televisão em campanhas de
solidariedade que se organizaram para ajudar as vítimas do ‘flagelo’. A ‘seca’ novamente
aparece com toda a sua força real e simbólica no cenário político nacional e mobiliza
campanhas e projetos128.

Em tempos recentes, apesar do descaso e das antigas práticas assistencialistas


provisórias do Ceará, os retirantes que vinham para os bairros da capital chegavam em
circunstâncias bem diferentes. Ao longo dessa trajetória, aqueles núcleos de pobres da cidade,
a exemplo de ocupações mais antigas como a da favela do Pirambu, aprenderam a participar
de uma imensa luta pelo reconhecimento, pela integração espacial e pela inserção social de
seus moradores129.
O migrante confrontava-se com autoridades, ocupava espaços e remodelava
constantemente os traços da cidade. O espaço urbano configura-se também a partir do
pontilhado de pequenas lutas, dos embates sorrateiros, das tentativas fugazes de fixação e da
luta pela permanência definitiva.
Nesse processo, a construção de uma cidade diferenciada passa muitas vezes pelo
reconhecimento positivo da origem de quem migra: “A minha origem de um povo do sertão,
basicamente agricultores, na minha origem se plantava milho, feijão, essas coisas (...)”130. Para
muitos entrevistados, a gênese do entendimento da necessidade da luta pela moradia
conforma-se exatamente quando se reconhece orgulhosamente a origem comum da
vizinhança.

126
Idem.
127
Idem.
128
NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. In: Op. cit. Uma Nova História do Ceará. p.
100.
129
Op. cit. SANTIAGO, Pádua. p. 127.
130
Entrevista concedida por José Osmir Monteiro de Sousa ao autor em 28/01/2003.
82

Mas a cidade comporta diversas imagens e representações. O ato migratório, assim,


estabelece distintas relações com a terra natal. Para alguns, a cidade é entendida como lugar
de passagem efêmera no qual se busca apenas acumular para o necessário retorno. Para
outros, vigora a idéia do “nunca mais voltei”, da criação de novos laços afetivos definitivos
que ressignificam o local de origem como uma não referência, como um passado a ser
esquecido. Porém, de modo geral, essa população desloca-se para os centros urbanos,
trazendo como característica desse deslocamento o retorno, ainda que ocasional, para visitar a
família deixada para trás131.
Entre os que migraram para o Serviluz, após quatro décadas de luta pela fixação,
opera-se atualmente uma espécie de contrafluxo, indicando exatamente o retorno definitivo
das pessoas mais idosas ao seu lugar de origem, encerrando assim a trajetória na cidade.
Geralmente esses migrantes já conseguiram acumular dinheiro suficiente para estabelecer
pequenos negócios longe da metrópole; vendem ou deixam aos filhos os seus bens e partem
para o interior à procura de uma velhice mais tranqüila.
Esse contra fluxo é engrossado também pelos casos em que os pais enviam filhos
problemáticos, considerados “envolvidos com quem não presta”, para lugares mais afastados,
longe, portanto, das más companhias do mundo urbano. Ali tentam preservá-los das
travessuras da cidade. Pouco a pouco, esses deslocamentos fazem reproduzir pequenos
hábitos metropolitanos em lugarejos rurais, tornando comum o fluxo de idéias e de tendências
entre esses espaços.
As experiências díspares indicam que a própria condição do homem que migra deve
ser repensada nos tempos atuais. Aquela cruel imagem cristalizada da família flagelada se
deslocando em conjunto e peregrinando durante dias por longos percursos de chão rachado
pouco apareceu nas entrevistas. No imaginário dos habitantes do bairro, a migração é
majoritariamente compreendida como uma estratégia de aquisição de melhorias econômicas e
sociais, sendo muito pouco usual a lembrança do flagelo. As condições dos retirantes não
eram mais as mesmas das retratadas por Rodolfo Teófilo no passado. Havia novas rotas,
novos meios de transporte e os caminhos tinham melhorado bastante. Em veículos
motorizados correndo sobre estradas, levavam-se agora poucas horas para a locomoção de um

131
Sintomático desse retorno é a já tradicional prática de piqueniques com destino às localidades interioranas em
festa. Anualmente, no carnaval, por exemplo, partem cerca de cinco ônibus lotados de passageiros que moram no
Serviluz rumo ao município de Acaraú, no bairro é grande a quantidade de pessoas provenientes desse lugar.
83

ponto a outro, a possibilidade da partida e do retorno rápido tornaram-se uma realidade cada
vez mais plausível.
A facilidade de vir para “dá uma olhadinha” figura como um dos motivos da
recorrente feitura de breves reconhecimentos na cidade antes da mudança definitiva. Desse
modo, as redes sociais baseadas na família e nos laços comunitários de amizade constituíam-
se como fundamentais para os migrantes. O entrevistado José Osmir contou que o pai chegou
a Fortaleza em 1976, antecipando-se, portanto, em pelo menos dois anos em relação ao início
da estiagem. Enquanto o chefe do lar procura trabalho, os demais membros da família
permanecem no interior. Na cidade, o pai abrigava-se precariamente na casa de parentes ou
amigos ou arriscava-se em moradias provisórias nos lugares onde pareciam ser maiores as
oportunidades. Somente quando o pai arranja emprego, a família é chamada. Essa na verdade
foi a continuidade de uma antiga prática, o migrante vem e logo retorna ao lugar de origem,
prepara-se como pode e volta novamente para a cidade com o intuito de fixação definitiva.
Foi o que se percebeu também no depoimento de dona Zuleide: “Eu vim porque o
interior tava pouco chovido e a calamidade tava um pouco grande”132. Como já tinha o marido
residindo e trabalhando na cidade, vendeu tudo que tinha e comprou as passagens para
Fortaleza, onde esperava “formar meus filhos”. Observa-se nesse depoimento que a migração
pode ser vista tanto como um ato de desespero, de quem na estiagem espera garantir na capital
a sobrevivência, quanto uma atitude mais ou menos planejada, programada em família ou de
quem pretende na cidade grande constituí-la. Na maior parte dos casos, o deslocamento
significa o fracionamento provisório da família, pois a estratégia utilizada é migração
parcelar. Nesse sentido, os espaços dos bairros acabam assumindo contornos de pontos de
reencontro a partir da inserção no trabalho.
Na cidade o emprego quase sempre não é fácil. “Eu arrumei esse emprego com uma
dificuldade e até mesmo com uma briga com um juiz aqui de Fortaleza né?”133. Dona
Conceição falou que foi barrada em várias empresas; não conseguindo emprego, resolveu
procurar um juiz, pois sabia que precisava dialogar com uma “autoridade da cidade”. Nesse
depoimento, ficou evidente a importância do reconhecimento mínimo do funcionamento e
normas do mundo urbano. Mesmo sabendo que não tinha qualificação profissional para
exercer qualquer tipo de trabalho, dona Conceição foi veemente: “Tenho dois pés, duas mãos
e uma cabeça boa e uma grande vontade de aprender”. Sabia que naquele momento precisava
também recorrer à pessoa exata.

132
Entrevista concedida por Maria Zuleide do Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
133
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
84

“Leve essa carta, seu registro vai ser essa carta”134. Com a recomendação concedida
pelo juiz, dona Conceição conseguiu emprego, trabalhou durante sete anos na empresa de
pesca Ipecea, fazia o beneficiamento de vários tipos de pescado destinado à exportação. No
emprego ganhava, além do salário, uma gratificação pela quantidade de lagosta exportada:
“Nessa época eu tinha vinte anos, eu já tinha casa construída, já tinha minha casa com terreno
próprio, já tava bem”. Hoje, dona Conceição diz arrepender-se de ter deixado aquele emprego
de lado para casar e cuidar da casa, nostálgica, acredita que se “tivesse uma família
estruturada quem sabe hoje teria um negocinho”.
O conhecimento sobre a situação de moradia, a sabedoria prévia do potencial do
mercado de trabalho para as mulheres na área e o reconhecimento da importância da cultura
letradas nessa etapa da vida foram atributos essenciais. No espaço suburbano dos bairros,
ampliam-se as preocupações com as questões que permeiam a noção de cidadania. A
necessidade de ter um registro é quase sempre a primeira obrigação nessa empreitada, afinal
ser registrado é ser alguém que existe perante a lei. O registro é o pontapé inicial para a
retirada de toda documentação, em caso de engajamento no trabalho, ler e assinar contratos
são atividades básicas que servem como meio de proteção contra eventual exploração na
empresa.
No Serviluz, nos anos 80, as crianças do bairro passaram a ter seus registros expedidos
também pelas associações comunitárias locais. Aos poucos, disseminou-se a necessidade do
aprendizado da escrita e dos registros formais das relações associativas. Como a maior parte
dos pais da comunidade têm sua naturalidade em municípios fora da capital, lugares onde
pouco se necessitava desses papéis, documentos e letras podiam ser considerados
necessidades secundárias. Na cidade grande, porém, juízes, cartórios e outros mecanismos que
regulam a vida urbana tendem a assumir maior importância e a experiência do estudo na
escola passa a ser sistematicamente valorizada. Para os pais, incentivar esse aprendizado
tornou-se um elemento básico de inserção nas “regras” do jogo, condição da cultura urbana e
de quem nele pretende “vencer”.
No geral, o balanço da experiência migratória é visto como sinônimo de vitória.
Nessas memórias, no entanto, a trajetória vitoriosa parece fazer-se sempre em meio a soluços
de arrependimento e choro pela inexperiência no passado, a frustração de não ter sabido
aproveitar as oportunidades oferecidas na juventude; tratam-se de pessoas para as quais
assumir a família “saiu muito caro”.

134
Ibidem.
85

A vida na cidade certamente não diminui o prestígio pela vida familiar. Para muitos
depoentes, a idéia do “fui resgatando a minha família” aparece como um desejo realizado e
um motivo de profundo orgulho. O viver na cidade alimentou a necessidade de trazer os
parentes para perto. Quando isso não acontece, o mundo urbano da favela servirá de palco
para a construção de novos vínculos afetivos e para a formação de movimentos associativos
de toda ordem. Na periferia, a construção dos laços de união e a solidariedade acontecem em
meio à necessidade objetiva da ajuda mútua: “a gente foi construindo, eu trabalhei com eles as
noites, né? Botava meus filhos pra durmi e ia pra lá, ajudar a carregar tijolo e tal, a gente
construiu e eles vieram pra cá”135.
Na cidade a população pobre quase sempre mora em bairros afastados, lugares onde a
precariedade das habitações se confunde com as antigas moradias:

“Naquela época era muito bom a gente brincava de tudo, brincadeira natural, de pião, de pipa, de bila,
carrinho de lata e assim passava o dia (...) a minha casa a gente abria o quintal lá o portão de casa e via
o mar. Depois o bairro foi aumentando, aumentando e as casas aumentando também e hoje em dia o
Serviluz tá do jeito que tá” 136.

Desprovidos das melhorias oferecidas noutros cantos da cidade, os habitantes dos


bairros suburbanos encontram características físicas que denotam carências de toda ordem.
Por isso o momento da constituição das grandes periferias urbanas e da formação de
movimentos de luta pela moradia foi também o da elevação da questão habitacional à
categoria de política pública emergencial, a partir principalmente da participação mais ativa
dos movimentos populares na cidade.
Quem migra quer casa. A problemática habitacional foi sem dúvida um dos grandes
problemas do governo brasileiro nesse período. O Banco Nacional de Habitação (BNH),
criado em 1964 e posteriormente transformado em Companhia de Habitação (COHAB), não
atendia à grande demanda por construção de casas populares decorrente da urbanização
acelerada137.

135
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
136
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2003.
137
“O Estado, criando o BNH, enseja amplos benefícios ao capital financeiro e ao capital imobiliário (...) a
política habitacional implantada beneficia também outros setores do capital industrial, na medida em que a
mercadoria ‘casa’, principalmente os conjuntos habitacionais, convertem-se em grandes consumidores de
produtos industriais das mais variadas linhas”. Cf.: SILVA, José B. da. Quando os incomodados não se
retiram: uma análise dos movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992. p. 79.
86

No Ceará, o Governador do Estado Virgílio Távora criou em 1979 o Programa de


Assistência às Favelas da Região Metropolitana de Fortaleza (PROAFA), coordenado pela
então primeira-dama Luiza Távora. O programa procurava, sem muita eficácia, amenizar o
problema do crescimento desenfreado da cidade. Em Fortaleza as favelas ganhavam espaço e
já ocupavam os entornos de obras públicas, as faixas de beira de praia, as areias das dunas e
as regiões de manguezal.

População do estado e do município de Fortaleza:


Ano Ceará Fortaleza
1970 4.491.590 857.980
1980 5.380.432 1.308.919
1990 6.401.245 1.763.546
2000 8.138.484 2.332.657
Fonte: Censo Demográfico IBGE.

População favelada do município de Fortaleza em 1980:


Nº de favelas 216
Nº de casas 62.660
Nº de famílias 68.456
População 342.280
Total 24%
Fonte: Proafa.

Censo demográfico de bairros da zona leste:


Mucuripe 11.900
Cais do Porto 21.529
Vicente Pinzón 39.551
Grande Mucuripe 203.220
Fortaleza 2.332.657
Fonte: Censo Demográfico IBGE (2000).
87

Os números evidenciam o surto populacional pelo qual passou a cidade, que desde
1975 passou a ter mais da metade da população vivendo na sua área urbana. Para se ter uma
idéia mais precisa, das primeiras 26.820 unidades habitacionais construídas pelo Proafa,
25.000 foram distribuídas na área metropolitana de Fortaleza e apenas 1.800 no interior do
estado.
Como efeito decorrente da migração, operou-se a proliferação contínua e crescente das
chamadas áreas marginais, depois chamadas áreas de risco, onde a qualidade de vida era
extremamente comprometida. Nesses lugares, eram bem pouco perceptíveis os benefícios
oriundos da cidade grande.
O cenário marginal configura-se sobretudo por meio das estatísticas criminais, nas
quais esses espaços emergem como pontos de violência e marginalidade, suscitando a luta
política pela construção de novas imagens eivadas da própria comunidade.

2.5 A marginalidade e a imagem do medo

“Se alguém falar que é do Serviluz as pessoas se benzem, algumas pessoas não querem dá emprego.
Se a pessoa é preto, pobre e mora no Serviluz é marginalizado total”.

“Uns foram pro cemitério e outros foram pra cadeia e quem ficou vivo serviu de exemplo”.

“Eu já cheguei a ver o seguinte: um colega nosso na época tava cursando a faculdade e o cobrador
do ônibus queria tomar a carteirinha dele, porque não acreditava que aqui no nosso bairro tinha
gente fazendo faculdade (...) uma amiga minha também ela sofria muito assim porque ela era classe
média e vinha pra cá, a mãe dela só faltava... batia nela, ela saía escondida pra vim surfar, porque a
mãe dela dizia que ela vinha pra cá e ia se envolver com drogas e ia se envolver com mil e uma
loucuras, aqui só tinha o que não prestava (...)” 138.

Por todas as transformações econômicas e sociais pelas quais passou historicamente o


Serviluz, o bairro passou a ser tido na cidade como espaço de miséria, medo e violência. A
delinqüência juvenil urbana no Serviluz e suas múltiplas facetas constituem importante
capítulo nesta pesquisa.

138
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
88

Com o passar dos anos, a marginalidade se transformou numa dura realidade que
afetou a convivência entre os moradores. O medo expulsou muitos dos antigos vizinhos e
passou a provocar acirrados isolamentos na comunidade. Tinha acabado a época em que se
podia dormir com a porta aberta, findara o tempo dos meninos que faziam as coisas
“direitinhas” e dos garotos “bem confiantes”.
A marginalidade que passa a caracterizar o lugar também suscitou a necessidade de
encontrar pequenas estratégias para enfrentar a rejeição, o descaso e, sobretudo, o perigo
iminente da morte. A população sentia na pele os vários efeitos da situação violenta do bairro.

“Muita gente quando vai procurar emprego não bota nem Serviluz no bairro que mora, bota Vicente
Pinzón (...) Era muito triste a gente ir atrás de um emprego pra trabalhar, por a gente morar nesse bairro
aqui as pessoas já de antemão já diziam que num tinha vaga pra gente”139.

O reconhecimento da “origem violenta” dos habitantes impedia o ingresso deles


inclusive nas empresas localizadas nas proximidades e as pessoas passaram a sentir vergonha
do bairro em que moravam. Em entrevistas de emprego, os jovens eram instruídos a mentir
sobre sua origem, impulsionados a dizer que moravam em regiões adjacentes, como Praia do
Futuro, ou a utilizar outros nomes pelos quais o bairro é conhecido, como Vicente Pinzón e
Cais do Porto, para não correrem o risco de ser eliminado antecipadamente.
A construção dessa memória negativa do bairro se reforçava em grande medida nos
programas policiais da mídia, onde passaram a ser freqüentes a presença de garotos locais, e
não foi uma criação realizada somente in loco. Na imprensa havia, de modo geral, um
conjunto de imagens depreciativas em que esse espaço aparecia marcado pelo preconceito e
pelo estigma.
Não somente os departamentos pessoais das empresas insistiam em renegar a
população. A rejeição por vezes beirava a totalidade. Um entrevistado afirmou revoltado que
bancos como a Caixa Econômica Federal e outros órgãos de crédito passaram a não mais
conceder empréstimos para reformas domiciliares a moradores da área. Uma das alegações
era a de que o bairro tinha a fama de fraudulento, pois era grande a quantidade de moradores
inadimplentes. O pior era que as pessoas não se importavam em ter o nome “sujo” no sistema
de crédito, por isso “morador do Serviluz não tinha mais empréstimo!”140.

139
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
140
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
141
Ibidem
89

“O pessoal já sabe que aqui aconteceu muita coisa”141. Há, na maior parte dos
depoimentos, a certeza de que os moradores do lugar precisam provar em dobro a sua
capacidade. No espaço do trabalho, por exemplo, foi necessária uma versátil mudança de
postura com vistas à adaptação ao sistema de competição industrial; foi preciso forçar as
empresas a valorizarem a experiência e a seriedade de pessoas simples e que, infelizmente,
estavam envoltas num universo considerado degradado do ponto de vista.

“Essa violência destruiu bastante o ramo de turismo, a rede de turismo aqui foi bastante destruída. Por
quê? Por causa da violência! Nós temos aqui uma praia bastante bonita, temos um lindo pôr-do-sol, uma
praia linda. Cadê turismo? Aqui não existe turismo. Por quê? Por causa da violência. Os vagabundos
botaram os turista pra correr, queriam robar os turista (...)”142.

Entre os lamentos decorrentes da criminalidade, estava a perda do poder de atração


que o bairro tinha. Numa região a ser destinada ao turismo, o Serviluz se tornou um espaço
muito pouco visitado. Sendo uma praia contígua à badalada Praia do Futuro, a preferida pelos
visitantes, a praia dessa favela, no entanto, tornou-se um lugar desaconselhável, os que nela se
aventurassem possivelmente seriam assaltados. No porto, o viajante que antes tinha o Farol
como destino certo agora era avisado, pela própria Capitania dos Portos, dos perigos
existentes na vizinhança. Os turistas foram desviados para outros pontos da cidade, afastados
da convivência junto à população pobre da periferia.
Para grande parte dos moradores, porém, a violência é, antes de tudo, um fato real e
mortal, que incomoda e assusta. Nesse meio, onde a importância da família para os indivíduos
é algo basilar e onde os filhos são quase sempre a coisas mais importantes da vida, os
“tesouros” que o pobre tem, famílias inteiras estavam sendo drasticamente reduzidas.

“(...) Uma coisa que me deixa bastante angustiada é eu ver essa juventude, porque eu já tôu com vinte
anos aqui, quer dizer é uma vida né? Tem pessoas aqui que eu vi crescer, que eu acompanhei e hoje eu
vejo se acabando ai no crack, e eu sem puder fazer nada, isso me dá uma angústia tão grande (...) uma
boa parte da juventude não tem uma perspectiva de futuro, é uma juventude que não sonha, que não tem
vontade própria de crescer, de ser alguém na vida, mas eu acho que isso depende muito dos pais, da
família”143.

A marginalidade entre os jovens de repente se entranhou com força e aquele núcleo


populacional, onde os meninos cresciam voltados para o trabalho e o lar, virou “lugar de
bandido”. Garotos começaram a partir cada vez mais cedo rumo à marginalidade, cresciam
praticando pequenos furtos e gerando o “terror” no bairro. Muitos morriam antes mesmo da

142
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
143
Entrevista concedida por Maria da Luz Oliveira Ribeiro ao autor em 18/05/2005.
90

maioridade e nas ruas as imagens da morte se tornaram cenas cotidianas. Rotineiramente


crianças amanheciam e anoiteciam junto a corpos ensangüentados ou escutando notícias de
assassinatos.

“(...) Ele era um garotinho e tal, um menino simples e tudo, gente fina, surfava conosco. Esse garoto ele
partiu pra marginalidade, né? O cara ficou assim o ‘terror’ (grifo nosso) do bairro (...) ficou, coitado,
ficou sem cara porque atiraram por trás da cabeça dele e fizeram uns rombos na cara (...)”144.

A violência no bairro na verdade não é uma regularidade, mas tem seus períodos de
recrudescimento. Funciona como uma espécie de onda; em alguns momentos, aumenta
assustadoramente. Em certas épocas, a situação se torna mais inflamada e os nervos ficam à
flor da pele. Quando uma gangue rival invade o bairro ou quando morre algum criminoso
renomado, por exemplo, provavelmente revides sistemáticos acontecerão. Esses são
momentos de tensão que incomodam a todos, exigem certos cuidados especiais para circular
na área e produzem um prolongado estado de alerta. Nessas circunstâncias, tanto a polícia
quanto os que por ela são procurados passaram a impor constantes “toques de recolher” à
comunidade.
Nessa esteira, nas ruas e nos becos, aumentou a venda e o consumo de drogas;
adolescentes pediam ou tomavam dinheiro de quem passava, roubando e intimidando a
população. Em meio a esse clima, atravessar espaços pouco visíveis, como os becos estreitos
ou a beira da praia à noite, podia significar o fim trágico da vida. “Eu entrei no beco, se eu
fosse um rival, se tivessem me confundido, eu tinha morrido”145.
No bairro, corria-se agora o sério de risco de ser “confundido” e morto por uma
gangue. Em alguns lugares, era nítido o domínio de jovens encapuzados, desmascarando uma
triste realidade que amedrontava e envergonhava os moradores.
Ao som da música funk, bailes e festas agrupavam nuvens de jovens armados que
tomavam conta das ruas, promovendo “arrastões” por onde passavam. Nas noites de sábado,
os jovens do Serviluz se destacava facilmente entre as gangues de adolescentes da periferia de
Fortaleza, levando o nome do bairro ao topo desse circuito.
Para se ter uma idéia da situação, em alguns pontos de encontro ou passagem das
gangues, contavam-se inúmeros furtos, agressões e assassinatos, acontecidos em poucas
horas. No Serviluz não há, por exemplo, quem não se lembre do antigo Forró da Bala. Em
menos de quatro anos de funcionamento, o pequeno bar acumulava a incrível estatística de

144
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
145
Ibidem.
91

dezoito mortes ocorridas nele ou no seu entorno146. Um detalhe importante: localizava-se ao


lado da Delegacia de Polícia do Farol. A delegacia havia sido instalada no Farol a pedido dos
próprios moradores, quando o meretrício se deslocou para o bairro. Como observado, foi
precisamente na zona de prostituição que os jovens, juntamente com as mulheres, começaram
a realizar os primeiros furtos; o roubo, em princípio crime, de certa forma, tornou-se uma
prática local e passou a ser desenvolvida nos mais variados espaços da localidade.
A polícia assume nesse contexto um caráter bastante dúbio no seio da comunidade.
Tanto se solicita a sua intervenção nas contendas internas, quanto a sua presença pode indicar
a entrada de um corpo estranho, alheio aos membros desse organismo. O crescimento da
marginalidade, no entanto, ao mesmo tempo em que produziu a contradição e polarizou as
opiniões sobre a autoridade policial, fez emergirem múltiplas relações de negociação entre
essas partes.
Há, de modo geral, um temor das pessoas em relação ao uso da forca policial, do
poder da violência usado de forma legal: “Eu tenho mais medo dos policiais do que dos
vagabundos que moram aqui”, é uma afirmação recorrente entre os moradores. Para muitos, é
preferível encontrar numa madrugada um criminoso conhecido do que a proteção oferecida
pela polícia, já que são muitos os casos de policiais corruptos que extorquem e agridem
indiscriminadamente. Quando ninguém vê, são eles que mandam e desmandam, classificam
todos de bandido e agem indistintamente sobre os moradores.
Vale ressaltar que, nessa briga de mocinhos e bandidos, muitos policiais também
perderam a vida. Os membros da comunidade conhecem aqueles casos mais célebres, os
relatos das façanhas grandiosas do mundo do crime ecoam por gerações. É o caso do finado
Cabo Sérgio, temido policial do bairro, que foi misteriosamente assassinado e que ainda hoje
tem sua história passada de boca em boca. Após colecionar vários inimigos, o cabo foi
brutalmente atropelado por um veículo, o automóvel passou sobre seu corpo várias vezes
quando o policial saía de uma churrascaria da rua principal do bairro.
O mundo do crime se tornou um elemento tanto real quanto simbólico de exercício de
poder. Nas falas, esse universo assusta, mas também fascina. Se parecia complicado seguir
sem se perder nas drogas e no submundo do tráfico ou não acompanhar a tendência dos pais

146
A pesar da violência, os bares e os clubes dançantes do Serviluz são bastante freqüentados. Além dos antigos
cabarés do Farol e das barracas de praia, alguns comerciantes locais também promoviam festas. O Bar do Surfe,
o Forró do Joãozinho, O Som do Seu Pedro, o Pagode do Luiz, o Flórida Drinks, o Clube Jamaica e outros, de
duração mais efêmera, se destacaram.
92

alcoólatras e das mães prostituídas, a adesão a esse mundo parece seduzir. Se difícil era evitar
o amargar da vida nos presídios da cidade ou afastar a morte que ronda diariamente os
habitantes da periferia, a participação nesses espaços ditos violentos produz uma espécie de
reconhecimento às avessas que encoraja e dá poder. Depois de alguns malefícios, deixa-se de
ser apenas mais um anônimo na multidão para ser um conhecido bandido da favela.
Parece existir aí, a exemplo do Farol, tanto uma triagem quanto uma mistura complexa
entre esses universos e a comunidade, de modo que a divisão simplória dentro e fora não
consegue abarcar. No dia-a-dia surgem pequenas interações, desenvolvidas em nível
microssocial, que precisam ser consideradas, pois estão na base da conformação das relações
de poder e solidariedade.
Quando se pensa, por exemplo, no turismo destruído pela marginalidade, percebe-se
que a visitação ao bairro não acabou. A não inclusão do bairro nos roteiros oficiais da cidade
turística indica não o fim, mas a criação de novos fluxos de visitação. A eliminação da
presença de pessoas endinheiradas não acabou com essa prática, mas renovou a permanência
da antiga tradição da boa acolhida voltada para “os iguais”. As territorialidades147 que o bairro
passou a abrigar criam novas formas de pensar a hospitalidade. Assumir ser do Serviluz com
orgulho é uma opção ainda hoje dúbia mesmo internamente, a imagem do medo ecoa e a
produção de uma postura valorativa desse espaço guarda sempre suas ressalvas. Mesmo
declarando o amor pelo lugar, um entrevistado lamentou que “pra vergonha nossa... assim
umas cinco a dez laranjas podres aqui do bairro tentam, insiste, em sujar a imagem do nosso
bairro”148.
Para muitas pessoas, o fim do circuito de visitação podia indicar o fim do sonho de
sobreviver dessa atividade no próprio bairro e o início de um processo de mudança que
revertesse a situação marginalizada.

“Porque chega! A gente tá fazendo o máximo pra que a área seja bem... sabe... bem vista por aí, pra que
as pessoas possam vir pra comer um pouco pouquinho de areia conosco, fazer o surfe conosco, aí tem
algumas pessoas que querem estragar (...)”149.

147
A noção de território pode ser compartilhada com Raquel Rolnik: “(...) território como uma idéia de espaço
vivido; não só um espaço geográfico delimitado, mas um espaço apropriado e constituído por relações sociais,
por relações culturais”. Cf.: ROLNIK, Raquel. Lei e política: a construção dos territórios urbanos. In: Op. cit.
Projeto História, nº. 18. p. 137.
148
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
149
Ibidem.
93

No contexto de criminalidade, os presídios e as penitenciárias da cidade acabaram


tornando-se lugares cujos meandros são conhecidos pelos moradores do Serviluz. Suas
informações circulam entre as ruas, os parentes fazem visitas aos domingos e recebem cartas;
sabe-se quando um preso do local vai ser solto e quem está marcado com vingança neste
retorno. Em algumas rodas de conversa, reproduzem-se as gírias, os jargões e mesmo alguns
valores típicos da cadeia. O mundo do crime e o cotidiano das celas, de certa forma, também
são revividos dentro da comunidade. Entre os jovens, as penitenciárias nem sempre
significam a má sorte do sujeito; em alguns casos, estar preso indica exatamente o contrário,
significa estar guardado, ter alimentação gratuita e satisfatória paga pelo Estado. Diferentes
inclusive de muitos dos jovens que gozam a liberdade, os presidiários retornam por vezes
mais nutridos e fortes, mas, sobretudo, muito mais temidos e valentes devido a essa
experiência.
Em meio a essa atmosfera, a morte tende a se tornar um fato cotidiano, um
acontecimento que pode ocorrer várias vezes em um só dia. Se a morte é fato, o enterro dos
mortos passa a ser um ritual comum, uma cerimônia relativamente corriqueira. Nos funerais
mais célebres, geralmente bem freqüentados, esse se torna também um momento de revolta e
indignação com a pouca valorização da vida humana dentro da comunidade. Há a certeza de
que a morte precoce pode acontecer a qualquer pessoa, de que é preciso estar atento.
Sintomaticamente a morte guarda traços com a origem interiorana da população, a morte não
é exatamente uma estrangeira, mas uma parte ativa da vida. Anjinhos, finados, defuntos, bem
cedo se habitua a esses termos, porque a sabedoria popular indica que termos como estes
podem fazer compreender melhor a importância da vida.
É preciso pensar como a comunidade convive com esse cotidiano violento. Como em
certos momentos os próprios moradores do bairro utilizam-se dessa imagem amedrontadora
que paira sobre o lugar, para evitar que ele seja ainda mais invadido ou tomado pela
especulação imobiliária. Os moradores desenvolvem também mecanismos de autoproteção,
por vezes alheia à ação da polícia, regulação sem a qual seria impensável a vida social no
bairro. É o que se observa quando se impõe ou se cultiva a prática de não agressão dentro da
área.
Nesse contexto, a construção de novas imagens e a emergência de novas práticas
sociais no bairro se tornaram uma necessidade, passaram a fazer parte dos componentes da
identidade e da cultura local. Há nas entrevistas a certeza de que não é possível somente
admitir as definições da comunidade feitas do alheio. Do ponto de vista do pesquisador, seria
demasiado injusto perceber como se dá a vivência nesse espaço apenas do ponto de vista
94

socioeconômico. A cultura popular tem uma riqueza e uma racionalidade próprias, que não
podem ser alcançadas quando se olha para o bairro com a mesma lupa da cidade que o
recrimina.

2.6 A comunidade

“Aqui tinha muita areia nessa praia do Titan


ninguém podia comer com tanta poluição
a comunidade unida acabou com a situação” 150.

“Qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice na direção de
seu futuro” 151.

Ao assumir a paróquia do Mucuripe no distante dia 05 de maio de 1950, o padre José


Nilson afirmou que tinha encontrado ali uma comunidade miserável, que o encorajou à ação
missionária:

Sempre sonhei em trabalhar com os pobres. Era uma espécie de chamamento íntimo, muito
forte, a me convocar para essa missão. E o Mucuripe, certamente era um lugar muito indicado
para isso, pois aqui, naquele tempo e ainda agora, vive uma comunidade carente de tudo: de
alimento, de moradia, de educação, de assistência médica, até mesmo de uma esperança
melhor no dia de amanhã152.

A esplendorosa paisagem natural contrastava com a escuridão encontrada nas


condições humanas. O padre José Nilson, que já contava com a experiência adquirida noutra
comunidade de pesca, organizada sob a forma de colônia de pescadores, liderou no Mucuripe
um trabalho de cunho religioso e assistencial que ainda hoje permance .
Nas comunidades de pesca, é geralmente bem acentuada a tradição católica. Nas
paróquias e pastorais de localidades praianas, as festividades religiosas católicas, como a festa

150
“Trabalhos, lutas e conquistas de uma comunidade sofrida”. Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira
Moura. Disponível na Associação de Moradores do Titanzinho no Serviluz.
151
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros; uma crítica ao pensamento de
Althusser. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1981. p. 58.
152
Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO, Blanchard. p. 193.
95

do padroeiro São Pedro e o culto a Virgem dos Navegantes, são sempre celebrações
importantes tanto do ponto de vista religioso quanto do convívio social. Sempre lotados, os
festejos são momentos de devoção e sociabilidade comunitária, sendo os padres figuras de
reconhecido destaque entre essa população. Essa experiência religiosa constituiu uma
importante matriz dos movimentos de caráter associativo no bairro.
O trabalho religioso no Serviluz teve início já na zona de prostituição. O Farol tornou-
se um excelente espaço para o desenvolvimento de ações filantrópicas; para muitos, a região
era vista como sinônimo de carência tanto material quanto espiritual. O Ninho Fortaleza,
grupo pioneiro com características de voluntariado no bairro153, procurou concentrar suas
atividades assistenciais basicamente sobre as prostitutas. Mas como no Farol era praticamente
impossível desvencilhar as mulheres do restante do espaço, o trabalho da Igreja Católica,
reforçado depois com a criação das pastorais da mulher e do pescador, ampliava-se a toda a
comunidade.
Os moradores da comunidade, por exemplo, freqüentavam os cursos
profissionalizantes oferecidos pelo Ninho. Mas como foi afirmado, a relação entre o bairro e a
prostituição é ambígua. Se o trabalho paroquial muitas vezes não atraía a prostituta, os
moradores atraídos a esse universo compartilhavam ao mesmo tempo em que promoviam
abaixo-assinados para a remoção da zona para longe do bairro154.
A capacidade de estabelecer entendimentos entre as diferenças cuturais que coabitam
o mesmo espaço constitui um aspecto basilar para a compreensão da gestação de experiências
e movimentos comunitários do bairro. Nas memórias sobre os primórdios da constituição das
ações de grupo, está também a necessidade primeira de acreditar no potencial dos sujeitos
envolvidos, “porque tem morador que quando vê uma instituição, uma pequena instituição
crescendo um pouco, pensa que é brincadeira, pensa que é brincadeira, más que funcionar
funciona”155.

153
O Ninho é uma entidade internacional que presta serviços de auxílio às prostitutas em vários países. “No
Farol, (O Ninho) está sob condenação de uma equipe voluntária formada por dez mulheres, não importando, por
principio, se exercem ou não a prostituição, mas que moram na área da zona, no bairro do Mucuripe e também
em outros bairros da cidade”. Op. cit. ANJOS JÚNIOR, p. 54.
154
“No próprio Farol, um bairro totalmente pobre, residentes, que co-habitam o mesmo espaço estigmatizado
pela sociedade envolvente, exerçam a discriminação e solicitem ao mesmo poder que também os domina, o
confinamento das prostitutas para algum lugar ainda mais isolado”. Op. cit. p. 60.

155
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
156
Ibidem.
157
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
158
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982.
96

A rejeição, por exemplo, quase sempre dificultava a integração das prostitutas aos
outros moradores do bairro; o prestígio e a capacidade de liderança das proprietárias dos
cabarés, apesar de reconhecidos na comunidade, na maioria das vezes, restringiam-se aos
domínios dos prostíbulos. Entretanto, no processo de aprendizado político, as necessidades
comuns tendiam a criar permeabilidades e a impulsionar possíveis entendimentos, ainda que
significasse a total aceitação do outro.

“(...) eu só frequentava essa área aí quando era pra ajudar fazer algum enterro de alguma pessoa que
morria, ou então ajudar a tocar em algumas celebrações, missas pra elas (...) não é porque fosse zona de
pessoas errantes não, é porque num gosto de me misturar com essa classe não. Mas na hora que
necessitava de um trabalho, eu sou comunidade (grifo nosso), eu tinha que agir, eu sou igreja”156

É com base nesse processo de flexibiliação e aceitação, negação e conflito, que


surgem as bases associativas do bairro e o sentimento comunitário. O socorro mútuo, nesse
caso, muitas vezes emerge como uma condição fundamental à própria existência dos
habitantes. A precariedade generalizada tornava necessária uma espécie de atitude de
salvação recíproca, quase initerrupta, entre essa população.
Problemas de toda ordem irrompiam a todo instante : “aí eu digo não. Num vai atolar
não: a gente vai deixar a criatura acolar na pista. Aí, peguei arranjei uma rede, botaram a
criatura pra dentro e levaram pra lá. Eu cansei dessas coisas assim né”157. A luta pela
sobrevivência dentro da comunidade, desse modo, produz tanto ações coletivamente
organizadas quanto é fruto da manifestação individual de solidariedade “(...) se todos nós
pegarmos mais gente, é melhor. Se o problema é igual, então vamos lutar com todo mundo.
Nós queremos solucionar o problema ou diminuir?”158.
A construção da identiadde cultural comunitária não emana apenas dos movimentos
com propósitos de reforma social. Hoggart159 diz que é preciso tê-la como algo mais
elementar, mais antigo que nasce talvez da própria convicção de que a união se torna
necessária caso se pretenda melhorar as condições de vida; essa convicção está na origem dos

159
HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais
referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editora Presença, 1973. (Coleção Questões).
160
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
161
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O reverso das vitrines: conflitos urbanos e cultura política em
construção. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992. p. 93
97

movimentos cooperativos. É antes fruto do saber feito de experiência, que ensina que o
indivíduo se encontra inevitavelmente integrado no grupo.
Entre os moradores, foi recorrente a conecção entre o princípio do processo de
organização política e a ação da Igreja no bairro. O trabalho comunitário, de acordo com os
entrevistados, começou com a união das mães em torno da distribuição de alimentos, roupas e
soro caseiro para as crianças.

“De lá pra cá a gente começou nessa luta né, a gente começou a se reunir nas ruas como um grupo de
mães que já existia e começamos a lutar com os pescadores, pedindo esmola a um, pedindo esmola nas
firmas e construímos a escola do Titanzinho, a São Pedro (...) e a gente botou o nome da escola de São
Pedro porque São Pedro era pescador”160

Na observação da história das formações dos movimentos sociais urbanos, deve-se


ressaltar que tanto as práticas mobilizadoras de maior visibilidade quanto as isoladas em um
cotidiano de organização interna dos bairros tiveram a presença da Igreja como um de seus
principais mediadores. Como observou Irlys Bareira:

Nesses termos, pensar a Igreja como a força social significa atentar para sua ação, não só na
formulação restrita de uma diretriz política, mas na veiculação de idéias ou discursos que
implicam a formação de uma visão de mundo 161.

Na decada de 1970, contraposta a um certo egoísmo e comodismo, a Igreja passa a


incentivar a promoção de núcleos de ação comunitária, visando também libertar o homem das
injustiças sociais. O catolicismo, centrado na salvação individual e no conformismo político,
rumava em direção a um outro tipo de engajamento. Os discursos paroquiais passaram a
tentar conciliar fé, experiência cotidiana e luta pela justiça social.
Em Fortaleza, não era a primeira vez que os católicos se engajavam na
conscientização dos trabalhadores a partir da precariedade de suas condições de existência. Já
na década de 1950, um ex-viigário do Mucuripe deu início a um trabalho de caráter religioso
e social que se tornou um referencial. Na comunidade do Pirambu, o Padre Hélio despertou
um processo de mobilização política que culminou com a realização, a 1º de janeiro de 1962,
da Grande Marcha do Pirambu, cujas fileiras eram engrossadas por mais de vinte mil
moradores162.

162
“A Marcha representa para o Pirambú, no âmbito de sua identidade social, o principal evento que assinala a
construção da memória coletiva da comunidade, fazendo nascer um sentimento, a partir da tentativa de torná-lo
heróico, ou seja que represenasse um fenômeno coletivo e social dentro do movimento polular de Fortaleza, que
pode ser considerado como um marco para a ação politica transformadora e histórica dos bairros pobres da
98

Eder Saber destacou que os novos personagens que emergiram na cena política
brasileira na década de 70 caracterizavam-se principalmente pela diversidade de matizes que
lhes serviam de referência. Movimentos de caráter fragmentado, de onde e quando ninguém
esperava, emergiam novas ações sujeitos coletivos, que criavam seus próprios espaços e
requeriam novas categorias para sua inteligibilidade: “não se trata de alguma suposta
identidade essencial, inerente ao grupo e preexistente às suas práticas, mas sim da identidade
derivada da posição que assume”163. A pretensão de captar a dinâmica dos movimentos sociais
e da cultura comunitária, somente através das condições materiais objetivas, evitando assim
uma análise mais específica de suas práticas, pode significar a perda do aprendizado diário
que os singulariza.
No Serviluz, o reconhecimento da diversidade de referências e matrizes se configurou
como uma realidade cada vez mais concreta e diferentes canais passaram a ser acionados em
benefício da coletividade.
Nesses cantos de praia, pratica-se não apenas o dito catolicismo oficial, não
desacreditando os jangadeiros do poder místico da natureza; a beira da praia serve também à
prática de ritos de bênçãos e manifestações de devoção à rainha e protetora do mar, Iemanjá.
Em algumas praias como a do bairro, manteve-se considerável a quantidade de terreiros de
macumba e candomblé.
Povo de origem sertaneja, essa população estabelece cotidianamente as mais distintas
relações com as forças do sagrado e o sobrenatural. Pairam crenças, por exemplo, nas quais a
realização de determinados rituais religiosos podem, também, acabar com os dramas da
vida164. Na condição urbana, o migrante não abandona sua fé e a experiência religiosa
configura-se como um instrumento na resolucão dos problemas do dia-a-dia.
No Serviluz a diversidade religiosa simboliza bem a multiplicidade de culturas que se
cruzaram no lugar. Em termos religiosos, nessa praia se adere atualmente a diferentes cultos,
sobretudo após a eclosão das igrejas protestantes e pentecostais na área. A Igreja, como

cidade”. Cf.: CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e identidade
social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
p. 116.
163
SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 44.
164
“Realizar pocissões, promessas ou roubar a imagem do santo da Igreja e só devolvê-la com as chegadas das
chuvas eram práticas de fudamental importância nas estratégias de combate à seca”. Cf.: Op. cit. RIOS, Kênia
Sousa. p.76.
165
A Assembléia de Deus foi a primeira Igreja Evangélica instalada no bairro, em 1966. Aos poucos, tornou-se
comum um conjunto de celebrações que se estendia as ruas e aos domicilios, principiando a conquista gradual de
novos adeptos. O Serviluz conta atualmente com pelo menos 12 pequenas igrejas evangélicas.
99

fomentadora de organizações associativas no bairro, atualmente atravessa um processo no


qual as igrejas evangélicas vêm ganhando considerável terreno165. A idéia de comunidade no
bairro tem sua origem e força maior de expressão na religiosidade do povo.
Vale ressaltar que durante a pesquisa, ao utilizar os termos bairro e comunidade quase
indistintamente, foi preciso tecer algumas reflexões sobre este último conceito. Isso
aconteceu porque não era possível ocultar que no Serviluz a extensão das redes internas de
articulação, a distribuição de solidariedades, o crescimento demográfico repentino e a
diversidade cultural daí resultante atingiram tal dimensão que a ampliação do entendimento
da idéia de uma comunidade impunha-se.
Isso se deu uma vez que parecia preciso deslocar um certo caráter oficial e um certo
esvaziamento que ronda o conceito comunidade, com vistas a entendê-lo como experiência
concreta, como experiência histórica.
Identificado popularmente como Bairro Serviluz, ainda que as fontes administrativas e
os jornais prefiram o termo favela, esse conjunto, a meu ver, só se apresentava como uma
comunidade na medida em que se fundamenta na relação entre a diversidade que o compõe.
Somente sob circunstâncias específicas, os diferentes moradores desse bairro se sentem
partilhando de uma experiência comunitária e isso pode não significar a eliminação das
diferenças.
Em estudos sobre bairros operários e identidade cultural em São Paulo, Duarte166
observou que, numa sociedade do tipo capitalista, uma comunidade ou bairro só podem ser
entendidos como artefatos culturais, resultado do esforço humano coletivo e historicamente
construído, de tal modo que a unidade e a solidariedade, tanto quanto o discenso que
porventura eles expressem, resultam da ação humana dos seus membros. No intuito de
compreender e analisar o processo de formação de uma comunidade específica, ainda que
uma ampla região nos arredores do Mucuripe apresente características geográficas e históricas
convergentes, impõe-se a necessidadede da não homogeneização de um conjunto
culturalmente múltiplo. As interações culturais e a produção de experiências coletivas só se
dão através da ação social concreta desses sujeitos.

166
DUARTE, Adriano Luiz. Os sentidos da comunidade: notas para um estudo sobre bairros operários e
identidade cultural. In: TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em Historia Social e do
Departamento de Historia da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza, junho de 2002. p.106.
100

No clássico estudo sobre costume e cultura na Inglaterra do século XVIII,


Thompson167 já nos alertava sobre a impossibilidade da utilizaçao desses conceitos de forma
generalizada ou ultraconsensual. Afinal, seria errôneo esquecer que o termo cultura é um
termo emaranhado e complexo, que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe,
pode na verdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas.
A comum experiência de migração, trabalho e moradia certa cria vínculos e elos
fundamentais de união, mas não é possível pensar esses aspectos como formadores de uma
solidariedade “natural”. A comunidade, nesse caso, deve ser concebida não apenas baseada na
idéia da harmonia geral, mas principalmente a partir dos múltiplos conflitos que nela são
engendrados: “a identificação automática entre bairro e comunidade pode ser enganosa (...)
não é o bairro que por si só torna-se comunidade, são as redes sociais construídas e articuladas
por seus moradores que podem construí-la”168.
No que se refere mais especificamente à moderna noção do termo comunidade,
também foi preciso reconhecer que, sobretudo no periodo posterior aos anos 1980, os
próprios programas oficiais assistencialistas do Estado brasileiro se apropriaram de uma
espécie de “poder mágico” que o termo comuniade passou a adquirir entre as classes
populares, como agregador de interesses comuns169.
Entramos numa nova era e em novos modos de fazer a política. Nesse novo contexto,
a sociedade organizada em associações e movimentos populares de todo tipo deixou de ser
algo marginal ou alternativo. Os poderes constituídos mudaram seus discursos sobre essas
práticas. Os grupos organizados deixam de ser vistos como opositores, passam a ser
conclamados como parceiros. Parceria com a comunidade será a nova técnica de órgãos
públicos até então assistencialistas, clientelistas ou diretamente repressores170.
Assim o Estado transfere sua responsabilidade para as comunidades organizadas, sob o
argumento de políticas participativas, deturpando desse modo o significado de comunidade
atribuída pelos sujeitos que a constroem.

Os movimentos populares criados a partir de ações da sociedade civil utilizaram o conteúdo


político do termo comunidade para conferir sentido a uma nova cultura política que se
esboçava, fundada no aprendizado de uma nova cidadania, em que a reveidicação em torno da
noção dos direitos ocupava um lugar central171.

167
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988. p.22.
168
GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições Loyola, 1991. p.14.
169
Op. cit. GOHN. p. 12.
170
Op. cit. p. 14.
171
Op. cit.
101

Dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz, de modo simples e prático, assim


expressou sua concepção de comunidade:

“(...) A comunidade é nós, todo mundo junto. A comunidade que eu entendo, e é, a gente tem que
trabalhar todo mundo junto, mãos dadas (...) você sabe que uma vara quebra, duas vara, três vara
quebra, más quatro, cinco, seis ela já não quebra mais (...) isso é meu entendimento, a comunidade é nós
tudo reunido, tudo unido, isso é é que é a comunidade”172.

A idéia de bloco, da reciprocidade e do trabalho conjunto está no seio do entendimento


local da noção de comunidade. Por outro lado, as culturas urbanas, pricipalmente a partir da
intesificaçao do fenômenos migratórios, desencadeados em escala mundial, têm exigido dos
pesquisadores contemporâneos a elaboração de novos instrumentos conceituais, sensíveis às
novas modalidades de organização das culturas.
Canclini173 observou que o termo “cultura urbana” se mostra inadequado para analisar
os cruzamentos culturais da atualidade. À medida que a vida na cidade tem impulsionado a
procura por formas mais seletivas de sociabilidade, nos bairros, por exemplo, as relações entre
seus moradores tendem a se firmar em estruturas microssociais, a partir das quais estes
elaboram suas identidades. Com a rápida hibridação de culturas, as fragmentações culturais
das metrópoles se tornam cada vez mais dificeis de precisar, pois estas já não se organizam
em grupos fixos ou em núcleos estáveis. A comunidade certamente faz-se e é feita com base
nessa maleabilidade cultural entre seus membros.
Esse racíocinio põe em dúvida a relação entre certas populações e um território capaz
de conferir comportamentos comuns ao grupo. Opera-se assim a insustentabilidade da velha
noção de comunidade, que apontava para a formação de vínculos mais intensos entre
membros de um mesmo grupo quando ajustados dentro do mesmo território. Uma
comunidade abriga múltiplos territórios.
No Serviluz, o estudo de uma comunidade fixada às margens de uma zona portuária,
lugar de trocas e passagens por excelência, e cuja composição social foi resultado do
acirramento de distintas migrações operadas na contemporaneidade, a proposta do
entendimento da cultura comunitária a partir das ideias de “circuitos” e “fronteiras” foi muita
sugestiva.

172
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
173
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Edusp, 2000.
102

No bairro, os indícios mostram que os tipos de ação política praticada não estão
diretamente associados a instâncias tradicionais de luta do trabalhador, ainda que existam
conexões, mas espalhadas nos diversos núcleos de sociabilidades e culturas que se
constituíram. Afinal o mundo do bairro havia deixado de ser apenas o lugar onde as pessoas
moravam, passou a ser também o lugar onde desenvolviam-se relações de união e
solidariedade, onde acumulavam-se experiências de negociação, vivência comunitária e de
resistência coletiva.
Ainda no que concerne as matrizes dos movimento associativos, os trabalhadores dos
portos são geralmente enfatizados pela presença da categoria nas greves, pela organização
sindical e pela mobilização política dos estivadores. Todo padrão sindical parece possível na
região do porto e a mão-de-obra do cais é poderosa porque sua capacidade de fazer greve
também é poderosa, em geral, os sindicatos portuários têm uma forte tradição de militância174.
A presença dos portuários como categoria de um setor estratégico na vida do país
transformava-os, portanto, em freqüentes destinatários de uma vasta produção de discursos, o
que os tirava do anonimato do cais175.
Assim, esses sindicatos tendem a produzir uma ampla documentação que serve de
base à compreensão dos seus embates que, em grande medida, tem origem no próprio local de
trabalho. Mas no Serviluz, como foi observado anteriormente, o sindicato não constituiu foco
privilegiado de politização do trabalhador, sendo mais comum a referência à pesca e ao
trabalho da Colônia de Pescadores.
“O sindicato dos estivadores já está quase estinto (...) porque com a privatização dos
portos os sindicatos perderam a autonomia”, explica seu Natalee176. Para muitos moradores,
além da desestruturação sindical, a fadiga do trabalho constitui um grande empecílio, já que a
necessidade prática da profissionalização quase sempre limita a participação masculina nas
entidades do bairro:

“(...) O que falta meu amigo é o seguinte, o cara já chega cansado do trabalho, o trabalhador passa o dia
no trabalho, chega cansado, o pescador passa três, quatro dia pescando, chega enfadado (...) então existe
as reuniões lá no centro comunitário, mas o cara chega numa situação tão cansada que não tem ânimo
para ir a reunião. Então existem muitos trabalhos a ser feito, más a pessoa nem toma conhecimento, os
moradores, devido a tarefa do dia-a-dia”177

174
“De Santos a São Francisco, de Sidney a Liverpool, a ameaça de greve dos estivadores é ainda considerada
extremamente séria”. Cf.: HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São
Paulo: Paz e Terra, 1981. p. 209-210.
175
Op. cit. SILVA, Fernando Teixeira, p. 05.
176
Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2005.
177
Ibidem.
103

Ao contrário do Seviluz, a concentração operária no Bairro do Pirambu, por exemplo,


permitiu uma certa articulação entre o bairro e os sindicatos da região. Por ser um bairro com
adensamento de indústrias, seus moradores participaram das mobilizações sindicais, criando
objetivamente uma ponta de ligação entre a luta pela moradia e a luta na fábrica, embora o
bairro não fosse totalmente constituído de operários.
Como observou o padre José Nilson, apesar da existência dos sindicatos, estes eram
pouco visíveis na comunidade e pouco se sabia sobre suas atividades.

Descia eu, certa tarde, do Morro do Farol Velho, onde distribuíra uma porção de remédios com
as famílias mais carentes. Ao passar de fronte ao Pavilhão da Estiva, sede do Sindicato dos
Estivadores, recebi a mais estrondosa vaia que um homem já tenha recebido. Havia, na época,
um grupo radical de extremistas, de comunistas intolerantes, que resolveram me hostilizar
gratuitamente. Afinal, eu não os agredia, não os combatia, nem se quer tomava conhecimento
das atividades deles178.

O fato é que, à proporção que a questão da moradia se agravou, as favelas passam a se


constituir em focos permanentes de tensão. Entre os interlocutores dos movimentos
comunitários no bairro, os sindicatos têm aparecido geralmente com pouca expressividade.
Na atual redefinição do operariado e na consolidação dos movimetos sociais
contemporâneos, a empresa nem sempre é o lugar da formação política. O trabalho na verdade
não pode ser isolado dos outros espaços de reprodução do proletariado, como o espaço da
residência.
Em 1975, foi criada a Associação de Moradores da Comunidade do Titanzinho.
Pioneira, essa entidade inaugurou um novo tipo de organização social que marcaria
profundamente a luta comunitária daquelas pessoas. Nos arquivos, estatutos, livro de atas,
relatórios, projetos, recibos, certificados etc., encontram-se registros de uma gama de ações
produzidas coletivamente e que visavam a princípio solucionar as carências mais imediatas da
população. Nas pautas das reuniões, realizadas em salas durante muito tempo improvisadas,
passou-se a discutir questões relacionadas ao dia-a-dia: o problema do excesso de ratos, da
falta d’água, de como arranjar o trator para retirada da areia, se ia sair do leilão ou do bingo o
dinheiro para comprar as vasilhas da merenda na escola.
De acordo com os artigos do estatuto dessa associação, registrado em cartório somente
em 28 de fevereiro de 1986, essa entidade tinha entre outras finalidades: dar cobertura ao
movimento comunitário para o qual todos colaboram espontaneamente, com vistas à
organização e autonomia da comunidade; e unir os moradores através da afirmação de seus

178
Palavras do Padre José Nilson, vigário da paróquia do Mucuripe. Cf.: Op. cit. GIRÃO. p. 197
104

interesses de trabalhadores e cidadãos, visando o fortalecimento de suas lutas pela superação


de seus problemas e necessidades179. Segundo o mesmo estatuto, a associação, “sem fins
lucrativos”, funcionaria “desvinculada de qualquer atrelamento político-partidário”. Mas o
que podia significar a produção de um documento escrito e registrado num universo onde
tradicionalmente predominou a oralidade?
“Então o pastor Bill180, o (padre) José Nilson, as assistentes sociais e a Colônia de
Pescadores foram muito importantes para minha vida comunitária181. A organização dos
moradores do Serviluz em associações comunitárias difundiu-se amplamente. No Serviluz,
dona Mariazinha é um grande exemplo de liderança comunitária, constituída da diversidade
de matrizes que tomaram o bairro:

“Eu como liderança eu tenho contato com todo mundo. Eu tenho meu partido, mas eu não tenho que me
atrelar em partido algum, eu tenho que trabalhar em benefício da comunidade (...) a minha
reivindicação, eu tenho que pedir benefício pra comunidade (...) por isso eu tenho amizades com todos,
o meu trabalho é comunitário, é pela associação, é pelo povo (...) aqui é aberto pra todo mundo” 182.

Dona Mariazinha acumula mais de quarenta anos de prática comunitária onde adquiriu
contato com diversos políticos, trabalha como responsável não apenas pelo Serviluz, mas
participa de diversos conselhos populares na cidade. Participou da fundação da Federação de
Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), em 1980, e se tornou uma referência no movimento
popular no estado183.
De modo geral, a participação dos moradores na luta pela melhoria social é entendida
como uma forma de valorização do espaço comunitário. Para os participantes, o engajamento
correspondia a um momento-chave de participação pública em prol do bem comum:

“(...) Foi preciso fazer uma passeata, um evento assim, a gente tudo mal trajado, com roupa pior do que
a gente já tinha né? E saimo numa caminhada (...) pegando mais gente. E nós saimo e a gente conseguiu
fazer aquele posto ali né? Primeiro era uma salinha ... chegava um médico por semana, mas já era muito
que ninguém tinha nada”184

179
Estatuto disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
180
Pastor norte-americano que liderou a construção da Igreja Presbiteriana e tornou-se um dos pioneiros no
trabalho assistencial e educativo no bairro.
181
Depoimento de Maria Ferreira Dias, a dona Mariazinha, líder comunitária do Serviluz. Op. cit. CEARAH,
Periferia, p. 102.
182
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
183
Entre inúmeras viagens à Brasília e a participação em diversos conselhos comunitários de Fortaleza, dona
Mariazinha é a atual presidente do Conselho das Entidades do Grande Vicente Pinzón, que congrega 36
associações de bairros da área. A reivindicação conjunta foi uma estratégia para o aumento da representatividade
das comunidades que possibilitou a formação de parcerias importantes, como às desenvolvidas com a Petrobrás.
184
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
105

O movimento pela aquisição da cidadania, num bairro repetidamente visto como


marginal, não se restringe a modelos formais de reivindicação, como as associações de
moradores, mas desenvolve-se quase sempre no improviso diante de situações contingentes.
A encenação da própria miséria como uma estratégia política carece de uma definição mais
abrangente de política. Nesse sentido, o campo da política ultrapassa o âmbito estritamente
institucional e os limites da presença e da ação do Estado, para colacar-se na multiplicidade
de formas de poder e nos canais de autonomia comunitária.
Se os eventos comunitários assumem grande importância, já que era através deles que
uma grande leva de despossuídos procurava amenizar suas carências básicas, a vivência
comunitária também enseja a mudança de comportamento e a construção de novos valores:

“(...) eu tenho essas coisas tudinho notado, tenho o dia que foi aberto a programação do posto (de
saúde), tenho o dia que veio esses posto (de eletrecidade), tenho o dia da inauguração do chafariz ali na
rua da frente”185.

Entre esses novos valores, está o reconhecimento da necessidade de registrar as


conquistas, de comemorar cada vitória e fazer da memória comunitária um referencial para as
futuras gerações. O processo de aprendizagem coletivo e a noção de cidade como uma
comunidade desenvolvem-se de modos variados, corroborando a diversidade de estratégias
criadas no meio.

“(...) Nós da comunidade do Serviluz vinhemos solicitar soluções para a retirada da areia que está nos
atingindo bastante, já caiu casas, outras estão enterradas. A areia está causando doença, ninguém não
consegue dormir, nem comer, diante das condições que estamos. Cada vez mais piorando ainda mais
devido à época do vento” 186.

Entre os grupos comunitários do bairro, as associações de moradores constituíram


talvez o modelo mais acabado e mais estruturado de organização, mas não o único. A
visibilidade das associações ocorre porque, além do potencial de reivindicação, os seus
membros conseguiam assimilar a compreensão da cultura escrita, o que possibilitou a abertura
de novos canais de inserção.
“Devemos falar sem vergonha e sem querer falar bonito, mas sim falar o que sentimos
da maneira que sabemos”187. Surge vinculada à necessidade das letras, a idéia da participação
política como uma espécie de desempenho, já que todo documento grafado precisa também

185
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
186
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 10/11/1982.
187
Ibidem.
106

ser apresentado verbalmente e a forma da apresentação é as vezes tão importante quanto


aquilo que se apresenta.
Outra importante mudança comportamental observada nas associações refere-se à
participação efetiva das mulheres locais188. Nas atas de reuniões, as letras trêmulas das
assinaturas indicam a nítida supremacia da presença feminina. Ainda que nem todos
soubessem assinar, as mulheres superam freqüentam, como grande maioria, todas as reuniões.
Para se ter uma idéia, na ata de reunião em 11/07/82, entre as 17 pessoas que assinaram, havia
o nome de apenas um homem. Curiosamente, 12 das participantes chamavam-se Maria189.
Os estudos recentes têm como perspectiva procurar a história da mulher no âmbito
privado, nas relações cotidianas e nas redes de poderes informais190. No Serviluz, foi a partir
da investigação das práticas cotidianas das associações que se percebeu a quebra de
preconceitos, a superação de desafios, a elaboração de novos valores e a criação de novos
tempos e espaços.

188
Apesar disso, nos depoimentos, foram constantemente lembrados nomes importantes para as associações,
como o do seu Manoel de Paula, mais conhecido como “galo velho”, e o do seu Francisco de Assis,
recentemente falecido. Esses homens foram presidentes da Colônia de Pescadores do mucuripe e principiaram a
gestão de parcerias entre a comunidade e as entidades de pesca.
189
Ata de reunião da Associação de Moradores do Titanzinho em 11/07/1982.
190
Cf.: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
107

Capítulo III

3 O homem e a natureza: os elementos para as transformações

3.1: As areias que voam

“Cumpre saber que o vento é compósito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é
somente dinâmica, é química; não é somente química, é magnética. Tem alguma coisa que é
inexplicável (...) o vento é cheio de mistério. Do mesmo modo que o mar. Também ele é complicado;
debaixo de suas vagas de águas, que se vêem, há outras vagas de força, que se não vêem. Compõe-se
de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisível e a mais profunda. Tentais conhecer
esse caos que vai ter ao nada. É o recipiente universal, reservatório para as fecundações, cadinho
para as transformações (...)”.
(Trabalhadores do Mar, Victor Hugo)

No presente capítulo, procura-se analisar as relações estabelecidas entre homem e


natureza, a fim de argumentar que os habitantes desse lugar não viveram a atmosfera que os
circundavam impunemente. Residindo sobre uma localização geográfica atípica, rica e
selvagem, desenvolveram a partir daí suas estratégias de sobrevivência, constituíram traços
culturais e organizaram o cotidiano. Dentro das possibilidades históricas, dadas pelo meio e
pela intervenção do homem na natureza, procuraram, quase sempre de maneira coletiva,
inventar formas dignas e agradáveis de sobreviver na ambiência na qual se relacionavam. O
espaço, desconsiderando possíveis determinismos geográficos, torna-se um elemento básico
da cultura.
De certa forma, os moradores do bairro fizeram operar uma lógica de vida
diferenciada, que, muitas vezes, contrastava com a racionalidade que se pretendia para o
espaço urbano do progresso. No trabalho, nas habitações e nos relacionamentos pessoais,
emerge a criatividade de sujeitos históricos entrelaçados ao meio. Em determinadas
circunstâncias, os habitantes do Serviluz e regiões adjacentes se apropriaram culturalmente
das condições naturais estabelecidas, preservando-as, modificando-as e utilizando-as em
benefício próprio. O homem é um animal social.
108

A carta abaixo apresentada foi remetida à cidade de São Paulo e endereçada ao


programa de televisão “Porta da Esperança” no dia 05 de março de 1990. Com ela, os
membros da Associação de Moradores do Titanzinho esperançavam obter reformas na Escola
Comunitária São Pedro, construída em 1978 e constituída durante anos de apenas três
pequenas salas de aula. Na luta comunitária do Serviluz, natureza e cultura se entrelaçavam.

Prezado Sr. Silvio Santos


E com grande satisfação que estamos escrevendo a V. Sa.
Em primeiro lugar, desejamos contar um pouco da história da nossa comunidade: Somos,
aproximadamente, oito mil pessoas constituídas basicamente de pescadores e artesãos. Nós
morávamos na praia da barra mansa no mucuripe de onde fomos retirados pela marinha e
colocados aqui na praia do Titanzinho que é outra faixa de terreno, mais além, na beira do mar
que fica no bairro Serviluz. Sofremos muito com a chuva de areia que invade nossas casas e
tempera nossa comida.
Há onze anos nos mudamos para esse local. Com grande sacrifício fixemos nossas
casinhas. São muitas famílias e a terra e o dinheiro curtos, por isto fomos obrigados a fazer
casinhas muito pequenas, na maioria com dois a três cômodos, muitas delas sem banheiro,
onde vivem mais ou menos oito pessoas.
Há dez anos estamos tentando organizar nossa comunidade com o propósito de
enfrentarmos juntos a luta pela sobrevivência (...)”191.

A Associação do Titanzinho foi formada basicamente por mulheres de pescadores


expulsos da Praia Mansa. A comunidade tinha se fixado no Serviluz havia mais de dez anos e
as mobilizações políticas eram extremamente necessárias porque as dificuldades de habitação
continuavam enormes. Acompanhando uma tendência geral na cidade, a carência de escolas
havia se configurado como um sério problema para o bairro desde os anos 80. Segundo dados
da associação, em 1990, aproximadamente sessenta por cento da população era constituída de
crianças menores de quinze anos que, na maioria, não conseguiam ingressar nas escolas
públicas fora do bairro e ficavam “sujeitas à marginalização e ao jargão de menor
abandonado”192.
Apesar da não contemplação no programa de Sílvio Santos, os moradores do lugar, que
já haviam iniciado pequenas reformas no espaço, foram se engajando: “Eu fui olhar como era
o movimento! Um quartin!”193. A partir do envolvimento de novas pessoas, “olha começou a
andar, e hoje se encontra uma casa grande, dando capacidade a mais de trezentos alunos”194.

191
Carta disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
192
Em 16 de agosto de 1990, foi celebrado um acordo entre o Fundo das Nações Unidas e a Associação de
Moradores do Titanzinho, no qual se aprovava um pedido de ajuda financeira para a comunidade e seus projetos
sociais. Via representação do Unicef no Brasil, passavam a fazer parte das “Entidades e Projetos Apoiados pelo
Criança Esperança”.
193
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
194
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
109

O trabalho comunitário, sob a forma de associações, alcançava quinze anos de


experiência de luta quando a referida carta foi escrita, seus associados acumulavam e
partilhavam projetos. Parcerias e aprendizados foram se desenvolvendo com entidades de
outros bairros da periferia da cidade. A procura pela cidadania a partir da organização em
associações comunitárias tornou-se uma prática comum no Serviluz e marcou presença forte
em melhorias sociais.
Acontece que um dos pontos marcantes dos diferentes movimentos associativos que
foram se formando no bairro era a sabedoria em elaborar suas estratégias e reivindicações por
moradia e trabalho em função do tipo específico de paisagem no qual estavam inseridos.
É também em cima dessa sigularidade, que os moradores passam a cantar a história do
bairro:

A areia fazia funil, era uma assombração


O feijão quando cozinhava, niguém podia comer não.
Nesse tempo as criancinhas, viviam pra morrer
e nós sempre cobrávamos, a força do Poder.
Vinha gente dos órgãos, estudar a solução
Mas só os que sofriam, trabalhavam feito uns cão,
Retirando areia pesada que tirava tudo então.195

No Serviluz, por exemplo, na ampliação do pequeno espaço da escola, os moradores


daquela praia precisavam superar, além da falta de recursos para tocar a obra, um
enfrentamento desgastante com o tipo de solo sobre o qual estava a obra. As condições
adversas do meio ambiente se faziam presentes em muitos aspectos da vida, interferindo
diretamente no cotidiano. Os homens e mulheres situavam-se num ecossistema próprio, ativo,
e em dados momentos pareciam travar duelos contra gigantes, as forças da natureza.
Uma breve leitura dos projetos desenvolvidos na comunidade nos revelou que os
esforços dos grupos de moradores e outros núcleos sociais eram em boa medida canalizadas
na superação de problemas referentes às condições ambientais ou a elas relacionados. As
reuniões campais eram pautadas em temas como: o excesso de ratos; a poluição advinda do
lixo; a retirada de entulho dos becos e ruas; a constante falta de água encanada e energia
elétrica nas casas; o plantio de vegetação e a vinda do trator para amenizar o vôo das areias.
A carência material era generalizada nos bairros pobres da cidade; bairros da zona de
praia leste, como Pirambu e Barra do Ceará, apresentavam semelhanças geográficas às do
Serviluz, mas os prejuízos de moradia deste bairro, advindos da natureza, são severos. Os
110

ventos fortes varrem finas nuvens de areia que podem facilmente soterrar casas. Em alguns
meses do ano, principalmente de agosto a novembro, a areia deteriora bastante os prédios. É
senso comum na comunidade que a área do Serviluz tem a “segunda maior maresia do
mundo”, que a concentração dessa substância é voraz, devora eletrodoméstico, porque
rapidamente “a maresia penetra pra dentro dos móveis, enferruja geladeira, fogão e estraga
televisão e assim vai... ”196. Ali, objetos e corpos desgastam-se na contínua combinação dos
elementos da natureza.
No caso da reforma da Escola São Pedro, localizada à beira mar, o solo arenoso fazia
ceder as paredes, o vento quebrava as telhas e a movimentação das dunas progressivamente
soterrava a estrutura física da escola.
A luta contra as intempéries se amplia de modo sazonal, notadamente durante o
período das ressacas da maré, nas enchentes trazidas pelos meses de inverno e na época dos
ventos intensos, entre agosto e outubro. Se as manifestações da natureza são sazonais, os
dramas dos moradores contra seus efeitos podem ser vividos diariamente. Uma entrevistada,
cuja casa já havia desabado uma vez, observou que nas reuniões de ruas se lutava quase
ininterruptamente, a fim de se evitar a areia que caía nas casas. A preocupação novamente
recaía sobre as crianças, devido aos altos índices de mortalidade e doenças entre os meninos
do bairro; a areia podia anunciar a morte.

“Dava diarréia, pneumonia, vômito e chegaram a morrer. Vários caixõezinhos eu fiz devido essa crise
de diarréia que aparecia nas crianças, uma calamidade muito grande! (...), olhe, era muito crítico, muito
sofrido. Eu via calamidade das mães chorando, limpando os olhos dos filho direto, chei de areia tudo.
Quando botava o feijão no fogo aqui, metade era areia. Às vezes minhas filhas:
- Não, como isso não mãe que meus dente é tudo ringindo...
Mastigando areia pura... Eu chorava. Às vezes botava um lençol por cima das cadeira e botava elas pra
comer debaixo pra na hora do almoço não comer só areia” 197.

Dona Zuleide comprou sua casa, um pequeno “localzinho”, de um morador que não
mais agüentara o peso da areia e a poeira das pedras. A ameaça de desabamento deixava todos
em constante atenção. Além disso, a areia nos alimentos, o acúmulo de lixo na praia e os
poços artesanais cavados próximos às fossas propiciavam afecções de toda ordem. Entre os
moradores mais próximos do mar, fazia-se necessária a realização de pequenos improvisos
diários. “Aí o pessoal faz o quê? Descarrega areia com carrinho de mão, outros agoam, outros

195
Cordel produzido por Maria Zuleide de Oliveira Moura, disponível na Associação de Moradores do
Titanzinho.
196
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
197
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
111

bota planta, bota palha pra ver se diminui, mas todo ano a mesma coisa”198. A experiência
concreta com um meio natural que pode mostrar-se hostil torna também esse um espaço
marcado pela inventividade popular, capaz de amenizar os transtornos e reverter situações
adversas.
Diferentemente da ameaça proporcionada pelo fogo, o enfrentamento diário das águas,
dos ventos e das areias já existiam antes da chegada desse povo à região. A questão é que
estes elementos se transformaram em problemas comprometedores com a intervenção e
ocupação humana. A construção dos espigões e a edificação de novas habitações,
ecologicamente irregulares, evidenciaram também a força da natureza local. Para se ter uma
idéia da potência da ventania, vale lembrar que em 1996, na área da Praia Mansa, foi instalado
o equipamento para obtenção de energia através da força dos ventos199.
As dificuldades e aventuras envolvendo a natureza também emergem com certa
facilidade e entusiasmo nas narrativas dos moradores. Grande parte dessa população veio dos
longos 573 quilômetros de litoral cearense para “tentar a vida” em Fortaleza. Na cidade,
morar nos morros e na beira de praia para muitos não era exatamente uma novidade. Na nova
habitação urbana, exercia-se a permanência de práticas antigas, como o hábito de caminhar
longos trajetos ou cavalgar. Para subir a parte mais baixa de um morro, era preciso andar; em
alguns locais, a duna era tão alta e tão íngreme que praticamente impossibilitava a chegada à
porta de casa sem uma caminhada enfadonha.
Dona Conceição200 contou que, apesar de ter nascido em Camocim, onde a praia era
“bela” e a areia “bem grossa”, e não “fina” e “voadora” como a do Serviluz, nunca gostou de
morar no litoral. A entrevistada acredita que, somente por ironia do destino, ela agüentou não
apenas morar a vida inteira na praia como também, chegando à cidade, trabalhar em um
frigorífico com produtos marinhos durante sete anos, casando-se ainda com um pescador com
o qual teve três filhos.

“Sempre o destino me castigou com isso aí (...) olhe eu vou dizer: pra mim foi a necessidade, tá
entendendo! pra mim foi muita necessidade que me deu muito a importância de eu resistir essa coisa
que eu não queria (...)”201.

198
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
.
189
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
199
Instalado pela Companhia Energética do Ceará (COELCE) em 1996, o Parque Eólico é composto de quatro
geradores de 40m de altura e 300kw de potência cada. Cf.: Museu do Jangadeiro no Farol do Mucuripe
200
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
201
Ibidem.
112

Há, nesse caso, o entendimento da condição praiana como uma experiência de suma
importância. Há também o desenvolvimento de certas sensibilidades que tornam os moradores
capazes de distinguir detalhes, aparentemente secundários, por exemplo, na composição do
solo. Se para alguém de fora a areia da praia pode aparentar ser tudo igual, para os que
convivem diariamente com seus efeitos, essa é uma observação no mínimo importante.
A questão é como as pessoas foram constituindo diferentes modos de apreciação da
natureza que as envolvem. Prazer ou obrigação, a condição de se relacionar de forma mais
direta com o meio na verdade é uma experiência já adquirida por boa parte dos migrantes que
chegaram ao Serviluz. Além dos antigos habitantes da Praia Mansa, muitos moradores do
bairro eram provenientes de morros ocupados nas proximidades202 e enfrentavam situações
como os riscos de erosão e o perigo decorrente da enchente das marés.

“Então essa área aqui começou porque o Titan Velho (Praia Mansa) foi invadido pelas águas, e o
governo com medo, a Capitania com medo de o pessoal anoitecerem vivo e num amanhecerem que o
mar tava crescendo muito, tomando os paredão (...) pra gente atravessar nas marés grandes era um
sufoco. A gente ia enxuto e voltava molhado porque o banho era certo. Maior perigo! Então, aí eles
mudaram o pessoal pra essa área, e foi se localizando, aumentando e duma família trazendo outra e
assim sucessivamente (...)”203.

Quem chega a Fortaleza e se desloca para essa região precisa considerar como fatores
cruciais de moradia a situação ambiental, a localização, a natureza do espaço.
Tradicionalmente essa região foi de pesca e outras atividades, profissões que apresentavam
uma forte interação com o meio em que se trabalha. No Serviluz a prática do surfe deu uma
continuidade renovada a essa tradição em que natureza, trabalho e cultura se fundem.
A natureza transformada em selvagem, talvez pela maneira grosseira como foi
modificada, dificultou inclusive a montagem do porto e da indústria. No decurso das obras,
bem como no processo constante de manutenção, a natureza avaria sem tréguas os prédios e
equipamentos das fábricas, os elementos naturais impõem também os seus impasses à
modernização; muitas vezes, é o próprio ambiente alterado que expõe as contradições e furos
do processo modernizador.
Mas, contrariando as revoltas da natureza, o desejo industrial burguês se projeta sobre
os recursos naturais, transformando-os a serviço do sistema capitalista de exploração. A
enseada foi desastrosamente aproveitada por ocasião do porto. Nos anos cinqüenta, a

202
Castelo Encantado, Morro Santa Teresinha, Morro do Teixeira, Morro das Placas, Lagoa do Coração, Favela
da Sardinha, Favela do Marrocos, Favela do Luxou, parte do Papicu e da Praia do Futuro, entre outras, são
regiões de dunas ocupadas trabalhadores migrantes na parte leste de Fortaleza.
203
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
113

termelétrica SERVILUZ teve seu prédio construído à beira-mar do Mucuripe, exatamente


porque a usina se beneficiava da água mansa represada pelo quebra-mar.
O projeto de energia da época, aliás, fora desenhado para utilizar a água do mar, o que
só era possível com a manutenção permanente de equipes de mergulhadores. Eram os homens
das classes trabalhadoras que cumpriam o penoso serviço de limpeza e deslocamento das
bombas de dragagem da usina; eram eles, e não os donos das fábricas, que teriam seus corpos
mutilados pelo capital. Muitas vidas se perderam na disputa pela domesticação dos elementos,
a tentativa de submissão da natureza ao progresso foi por vezes bastante perversa.
Em tempos recentes, na construção do Porto do Pecém, diferentemente do
ancoradouro Mucuripe, anunciou-se a preocupação em reduzir os possíveis impactos
ambientais na orla: “Para a sua implantação, diversas variáveis ambientais, como ventos,
marés correntes e ondas foram monitoradas, de modo a reduzir possível impacto no local e na
sua área de influência”204.
Apesar do discurso de aproximação com a comunidade e da proteção ambiental, tanto
a preservação dos ecossistemas quanto a qualidade de vida da população dessa parte do litoral
do Ceará foram comprometidas com o deslocamento das pessoas que habitavam o local.
Escolha ou necessidade, o fato é que quem chegava ao Serviluz sabia que habitava um pedaço
de chão que até bem pouco tempo era água do mar. Antes do surto ocupacional em massa,
ocorrido no final dos anos 70, as marés beiravam os portões das indústrias, raras eram as
edificações. Parecia impensável a criação de um conglomerado humano que atualmente
apresenta um contingente de pelo menos vinte mil pessoas, um bairro inteiro erguido naquele
terreno irregular e arenoso, um lugarejo afastado onde o domínio visível da natureza parecia
representar a própria ausência da já anunciada civilização urbana.
Nas entrevistas os moradores comumente se remetiam “àquele tempo”, referindo-se ao
restrito povoado de pesca e ao meretrício estabelecido desde os anos sessenta. Relembram
claramente que nesse tempo nem todos os espaços podiam ser ocupados por casa, era preciso
muita coragem, pois na área prevalecia ainda uma intensa sensação de isolamento, sem
energia elétrica, entre dunas e matagais. Essa lembrança do lugar paradisíaco é quase sempre
uma referência especial do passado, mas não um passado nostálgico e idealizado, e sim uma
memória viva que denota com clareza como nos dias atuais a população mudou e para
melhor.

204
Informativos Cearáportos, ano III, nº. 15, out./nov. 2003.
114

O fato é que as condições naturais foram fundamentais no início da ocupação, e, pela


fragilidade da estrutura habitacional, muitos casebres da praia desabaram várias vezes,
soterrando o sonho da vida estável na cidade. Acrescente-se aos problemas de infra-estrutura
e à ausência de saneamento básico a incômoda sensação de não ser o dono da terra em que se
vive, já que oficialmente o terreno é pertencente ao Patrimônio da União. Sendo uma
concessão da Marinha, as casas não podiam ser compradas ou vendidas e a ocupação somente
era possível na condição de moradia de pescador, o que na prática não aconteceu.
Na cabeça de alguns moradores, a qualquer hora o espaço pode sofrer intervenção da
Capitania dos Portos, já que o terreno está sob sua jurisdição, e tornou-se ainda um dos alvos
favoritos da especulação e da indústria turística. “Esse boato corre há muito tempo: um dia o
Serviluz vai sair daqui”, são expressões que apontam a luta pela permanência como questão a
ser enfrentada de forma contínua.
“Essa área da praia eu sou contra dizer que vai sair alguém (...) porque existe a lei. Se
existe a lei pra gente não sair daqui, ela tem que ser cumprida”205. Os projetos de retirada da
população atravessam as gerações, há, porém, o consenso local de que “a praia do Serviluz é
uma praia dos pobres”206.
A luta inicial pela ocupação “naquele tempo” deu lugar aos embates pela continuidade
no hoje. Esse conflito ganha importância à medida que a comunidade se conscientiza da
importância da manutenção de homens e mulheres no espaço onde operam suas ações, onde
constroem suas culturas.
Um fato importante é que as pequenas casas do Serviluz só foram erguidas após a
construção de um grande espigão de pedras, capaz de fazer recuar e barrar as águas. Com o
mar “dominado”, os tratores e caçambas derrubaram morros e limparam o terreno. As pedras
foram alinhadas por locomotivas e então construídas as primeiras palhoças de taipa.
Rapidamente, protegido pelas rochas, aquele pedaço de terra até então ocupado por uma ou
duas ruas transformou-se num formigueiro humano impressionante.
As pedras há muito tempo tinham como destino o Mucuripe. Ali funcionou uma antiga
pedreira. Retirantes de outros tempos, desnutridos e famintos devido ao flagelo, somente
recebiam a ração distribuída nos socorros públicos do governo após arrastarem pedras de mais
de quinze quilos por quilômetros de distância, num percurso sobre areias. As pedras, antes
destinadas às obras do porto, passaram a ser empregadas na construção de imensas paredes de
proteção contra o mar e posteriormente nos alicerces das pequenas casas dos trabalhadores.

205
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 30/06/2006.
206
Entrevista concedida por Natalee Ferreira de Sousa ao autor em 20/05/2006
115

É importante observar como, mesmo após a construção de milhares de casas, as pedras


ainda guardam a sensação do isolamento. A exemplo dos areais antigos, pontos ermos em que
parecia impossível o advento da civilização, as pedras no Serviluz são hoje espaços
estigmatizados. Na literatura cearense, figurou a imagem das areias como lugar inóspito,
incômodo, desprovido do conforto da vida urbana; no bairro, porém, as pedras e as areias não
são lugares vazios, mas abrigam sociabilidades diferentes.
Apesar da vista belíssima, ali permanece a sensação de se viver sobre um espaço
pouco freqüentado, solitário e pouco visto no litoral de Fortaleza; é um espaço móvel, já que
mesmo as pedras sucumbem às pancadas do mar e à movimentação do solo. Quem ali sobe,
ainda que esporadicamente, vê que se tornou cada vez mais fácil escalar as pedras; a natureza
muda seus caminhos, as pessoas reaprendem a caminhar.
Imaginar que a longa pilha de pedras serve apenas como mecanismo de proteção
contra o avanço do mar é uma grande desatenção. Esse espaço soma-se a outros do bairro
onde a natureza e o tipo de arquitetura sobre ela empreendida foram definidos socialmente
pelos moradores como espaços proibidos. Lugares escuros à noite e de difícil acesso possuem
fronteiras sociais em que os espaços são transformados em territórios, considerados proibidos,
perigosos e não aconselháveis para muitos moradores da mesma comunidade. Os homens de
várias formas se apoderam e demarcam pedras, batizam mares e nomeiam ruas de areia.
Nas praias acontecem namoros proibidos; sobre as pedras, muitos jovens iniciam a
sexualidade, experimentam drogas, enlouquecem. Mortes, acidentes, traições matrimoniais e
toda uma gama de ações e atos escusos se desenvolvem sobre poeiras e paralelepípedos, mas,
entre os moradores, pode haver divergências gritantes sobre o gostar ou não da vida à beira-
mar. A praia quase sempre é tomada como ponto de encontro, da diversão e da amizade, pode
ser assim o melhor lugar para curtir uma boa “basquetada”207. A praia conserva a idéia da
dádiva, da fortuna, da fecundidade e do privilégio, mas também o pensamento do sufoco, da
maldição, da desgraça e da falta de sorte de ali habitar.
É preciso também considerar que ali se desenrolam variadas formas de sociabilidade,
afeto e lazer. Apesar do estigma, são espaços concebidos e utilizados por muitos moradores
como uma extensão da própria casa, ainda que para fazer coisas que não se faria na intimidade
do lar, porque é exatamente a condição, culturalmente criada, da pouca aceitação e
visibilidade noturna que faz do lugar atrativo ou repulsivo.

207
Brincadeira, lazer entre amigos geralmente regado a bebidas e comidas angariadas no coletivo.
116

Desse modo, da relação dos homens do local com a natureza emerge também a
desarmonia. Nas memórias surgem tanto as imagens do paraíso quanto as do inferno. A
ambiência perigosa tem como marca os constantes riscos e acidentes banais. Ao longo do
tempo, as histórias de garotos distraídos, vitimados em acidentes fatais, se espalharam. Bater a
cabeça ou escorregar numa ponta de pedra ao tomar banho não é fato raro. Sabe-se que é
preciso conhecer em pormenores os locais propícios para mergulhar, ter noção dos acessos
mais práticos, saber reconhecer as melhores “locas”208.
Se há controvérsias sobre os desígnios da natureza e as relações do homem com o
meio, há igualmente uma contradição sobre o valor econômico atribuído às casas da beira
mar. Nessa parte do litoral, operou-se uma lógica de ocupação em que as residências mais
próximas da praia são as mais vulneráveis às intempéries naturais e por isso menos
valorizadas comercialmente. Como não interessa aos trabalhadores de maior poder aquisitivo
morar diante do mar, as residências à beira da praia continuam sendo as mais rudimentares em
matéria de arquitetura e segurança domiciliar.
Mesmo nas casas das ruas principais, é comum que, para amenizar o cair da areia nos
cômodos, as telhas sejam forradas com um tipo de lona plástica. Mas nem o plástico elimina a
estranha sensação do cair da terra sobre o corpo, que sente facilmente a idéia de habitar um
lugar cuja natureza se revela ímpar.
Seja como local de moradia, seja como meio de trabalho, seja para fins de lazer, as
nuanças geográficas interferem diretamente no dia-a-dia da população, aguçando
sobremaneira as sensibilidades.
Do teto emplastificado sob o qual se dormia ao chão movediço sobre o qual se pisava,
os elementos naturais deixam suas marcas no cotidiano do lugar. Até há pouco tempo, as
areias das dunas infestavam de pulgas os pés das pessoas; quando se olhava para os dedos de
uma criança, notava-se que estes estavam repletos de buracos deixados por bichos-de-pé. As
pulgas migravam da areia, alojavam-se no corpo e penetravam na carne.
Em algumas falas, a deficiência socioeconômica devia ser superada pela própria
utilização racional do ecossistema, a mediação entre consciência dos valores humanos e a
natureza, o mutualismo com o ambiente, o aprendizado do espaço como impulsionador das
transformações sociais necessárias.
Nesse contexto, parte da juventude passa a expressar os problemas e a cultura local em
sua mutiplicidads, o entendimento de cultura pode não mais se restringir ao microcosmo do

208
Cavernas esculpidas entre as pedras, algumas conseguem abrigar cerca de oito pessoas.
117

bairro, ainda que o espaço contenha os elementos essenciais de sua formação, mas se baseia
na integração da comunidade ao planeta:

As folhas dos livros não dizem tudo que querem dizer.


O fogo não queima tudo que tem para queimar.
A água do mar não chegou onde quis.
O homem impediu a natureza de se revelar e onde ele está? Vai ficar.
A terra é fértil, é vida que brota de todo lugar.
O homem parece que não entendeu a lição?
(...) supérfluo, vil metais, estrato de uma conta gorda no Banco Cental.
As coisas da vida ainda me dão prazer de viver, na beleza de ser.
A vida quão longa é tão bela, que ainda dá para fazer o que dá para fazer.
A terra e as coisas da vida é tudo um só e tudo gira em torno de você.
E tudo isso é parte de você.
Tudo, tudo.209

3.2 Arquitetura local: da taipa ao tijolo

“(...) Se propunham como objectivos não uma mera melhoria das condições materiais de vida dos
trabalhadores, mas sim a procura de satisfações mais elevadas, satisfações essas que se tornariam mais
acessíveis após a obtenção de um mínimo de condições materiais”.
(Richard Hoggart)
“O bairro tem sua infãncia , juventude e velhice. Esta, como a das árvores é a quadra mais bela, uma
vez que sua memória se constituiu”.
(Ecléia Bosi)

Como observado anteriormente, as fortes agitações marítimas, os ventos, as dunas e


posteriormente os incêndios não facilitavam a fixação do homem na região do Mucuripe, e o
Serviluz permaneceu um local pouco habitado até o fim dos anos 70. As migrações para
Fortaleza, no entanto, provocaram uma acirrada disputa pelos espaços urbanos e as camadas
pobres da população procuravam se fixar mesmo em locais considerados inadequados e
insalubres para a habitação. Não sendo possível eliminar a imensa massa de trabalhadores que
no período tomava conta da cidade, os movimentos sociais pressionavam o governo a
participar mais ativamente da melhoria habitacional nas favelas, urbanizando-as.

209
Letra da música “Tudo” do cantor local Eduardo Lenda.
118

Nos anos 80, os levantamentos topográficos e os projetos de terraplanagem das dunas


empreendidos pelo Estado reafirmavam a dificuldade, há muito sentida na prática pelos
moradores da praia, de garantir condições mínimas de moradia sobre as areias. Esse trabalho
era extremamente problemático devido aos constantes escorregamentos e erosões da terra. O
trabalho exigia elevados recursos financeiros. Cuidados especiais precisavam ser aplicados na
execução de tarefas como o tráfego de equipamentos sobre pneus ou a fixação de cobertura
vegetal num terreno deslocado ininterruptamente pelo vento. Mesmo com o uso de uma terra
mais grossa e com a irrigação permanente, os desmoronamentos por vezes aconteciam. Além
disso, não era possível urbanizar as dunas sem destruir seus elementos naturais.
Já na edificação portuária, solicitava-se constantemente a intensificação do plantio de
maiores extensões de grama verde sobre os morros do Mucuripe, para que a areia não
soterrasse as construções. A necessidade de se resguardar contra os efeitos perversos dessa
paisagem natural alterada e o receio das conseqüências assustadoras do crescimento
demográfico que assolou a região provocaram uma verdadeira revolução, em termos de
moradia, no Serviluz.
“(...) quando chegou o primeiro ônibus pra passar nessa linha aí, foi uma animação muito grande né (...)
aí todo mundo foi lá pra pista pra comemorar. Aí o motorista sentiu-se muito feliz, um motorista mais
feliz do que aquele ... Porque tiraram ele de dentro do ônibus nos braços sabe? Era os homens,
pescadores, sabe pescador como é que é né? Eles se sentiam muito ruim quando chegavam do mar né,
do porto do Mucuripe pra cá, de pés, no escuro. Quando chegava aqui num dava nem pra saber direito
qual era a sua casa de tão escuro que era, só a zuada do mar. Aí quando veio o ônibus aqui foi uma festa
uma coisa.... uma festa” 210.

Durante esta pesquisa, constatou-se que o Bairro Serviluz foi constituído em meio à
uma série de transformações urbanas. Esse espaço deixou de ser somente um povoado onde o
fogo significava luz. De modo curioso, a denominação do bairro popularmente quase não é
atribuída a usina de energia elétrica, usualmente, atribuí-se o nome do bairro ao letreiro do
ônibus. Se no plano industrial o Serviluz foi um projeto fracassado em termos de geração de
eletricidade, no plano cultural, essa comunidade fomentou experiências sociais bastante
iluminadas.
Ao tempo dos cadeeiros e velas, sobreveio à época dos refletores. A lua e as estrelas já
não iluminavam a contento os caminhos em terra, e a chama do fogo se tornou uma severa
ameaça. Com o passar dos anos, os postes de eletricidade já não eram suficientes somente nas
ruas e estabeleceu-se a necessidade da iluminação noturna na praia. Ali, se havia adquirido
uma certa sensibilidade para a luz elètrica e desenvolvido o gosto do uso noturno do espaço.

210
Entrevista concedida por Maria da Conceição Alves dos Santos ao autor em 27/02/2003.
119

O desejo do asfalto também se concretizou e as memórias das areias atualmente


misturam-se as lembranças da poeira da cidade asfaltada. Nos depoimentos, a imagem do
paraiso podia ser enganosa, e a agradável sensação dos pés afundando docemente na areia
macia da praia, ilusória. A caminhada daqueles tempos não mais fazia sentido e o transporte,
a pé e no escuro, agora oferecia riscos diante da quantidade de prédios e objetos postos sobre
as dunas. No dia-a-dia do trabalhador, o ônibus, e por consequência o asfalto, significavam
facilidades no trabalho e na sonhada educação dos filhos.
Por outro lado, a luta e a adesão dos moradores as melhorias urbanas, como o sistema
de transporte, possibilitou a difusão de trabalho, educação e novas amizades fora dos limites
do bairro, anunciando o multicuturalismo. Ao mesmo tempo, a aquisição de equipamentos
urbanos possibilitou que a comunidade ensaiasse lâmpejos de autonomia em relação à cidade.
O crescimento do comércio local, por exemplo, consolidou um sistema de compra e venda de
produtos que permitiu a fixação dos moradores, pois estes passaram a dispôr de serviços
básicos nos arredores da casa. “Quem conheceu o que era Serviluz e o que ele está agora, o
Serviluz virou uma cidade”211.
Sobre a transformação operada nas condições de habitação no bairro, há, de modo
geral, certo espírito de vitória na concepção da maioria dos moradores. A convicção era a de
que nos dias de hoje era indigno estabelecer a convivência dentro de frágeis choupanas de
madeira. Nas falas, o avanço do tempo e as mudanças materiais acarretadas nesse processo
trazem a sensação do sucesso, da permanência, da fixação de quem acompanhou a sistemática
melhoria das frágeis habitações de barro, madeira e plástico.

“Mas graças a Deus que quase todo mundo já tem o seu emprego digno, as condições de moradia tão
melhor, ninguém mora mais em casa de tábua, todas são de tijolo. Vinte anos de conquista eu tô vendo
o resultado”212.

Nas construções, aos poucos, os moradores passaram a não mais utilizar as mãos para
modelar o barro da taipa; entrou em cena o tijolo. Este passa a ser assentado com os braços e
os utensílios de trabalho do pedreiro, instrumentos de um profissional cada vez mais
requisitado na comunidade. No decorrer dos anos, substitui-se a madeira pelo tijolo e a pedra,
o barro pelo cimento e a cal, a palha pela telha, o chão de terra batida pelo cimento, frio e
úmido.

211
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/06/2006.
212
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/01/2003.
120

Não tardou muito e logo se começou a pisar em azulejos e cerâmicas, começaram a


aparecer casas com o teto forrado a ferro e concreto, ergueram-se as primeiras lajes, o duplex,
e as pessoas passaram a viver umas sobre as outras.
Sintomático do crescimento do ramo da construção civil no Serviluz passou a ser o
grande número de obras espalhadas pelas ruas. Em épocas como as de final de ano, e ainda
hoje, é notadamente difícil encontrar, entre as vielas estreitas, uma em que não se esteja
empreendendo qualquer tipo de construção ou reforma. Ruas e becos ficam interrompidos em
vários pontos, obstruindo o trânsito de carros e pedestres devido à exposição dos materiais de
construção à entrada das portas. Disso resultou ainda o crescimento da quantidade de furtos a
sobras de material deixado nas ruas. Ora, de certo tempo para cá, foram diminuindo os vazios
característicos dos quintais em função da necessidade de improvisar novos cômodos. À
medida que o terreno passou a ser todo construído, tornou-se difícil depositar objetos no
interior do espaço domiciliar bastante reduzido. O material a ser usado na obra do dia
seguinte, guardado fora da casa, passou a carecer de acirrada vigilância.
Mesmo com o bairro já tendo praticamente todo seu plano físico ocupado, a
reprodução das habitações não cessou. Novos barracos, outros “puxados”, e muros passaram a
separar terrenos cada vez menores. A terra foi se dividindo entre os membros mais jovens da
família, à medida que esta se multiplicava. As moradias se amontoavam. Novas frentes de
casas, onde antes “tudo era mar”, foram aparecendo e o bairro mudou significativamente suas
feições. Mas tal mudança não foi assim tão repentina.
Nas circunstâncias sociais e ambientais que o bairro apresentava, durante algum
tempo, pareceu pouco animador aos trabalhadores que alcançassem alguma sobra em seus
orçamentos e investissem seus parcos salários nesse espaço. Além disso, rondava o temor
permanente do desalojamento compulsório, não compensando melhorar o imóvel, já que, no
caso de uma possível indenização, o valor do barraco seria o mesmo.
Os problemas sanitários eram cruéis e os detritos das residências corriam a céu aberto.
Em épocas chuvosas, a areia acumulada à entrada da comunidade se tornava mais consistente,
formando uma barragem natural, impedindo o escoamento das águas da chuva, que ficavam
acumuladas, provocando o alagamento da área, o que aumentava ainda mais os riscos de
desabamento e o conseqüente agravamento do estado de saúde da população.
Com a chuva, o perigo vinha do céu e a calamidade se manifestava através das
enchentes. Em 1984, logo no primeiro grande inverno que sucedeu o longo período de
estiagem, entre 1978 e 1982, ocorreram vários desabamentos dos casebres de taipa. Muitas
famílias ficaram desabrigadas. Pouco tempo depois da chegada ao bairro, os moradores mais
121

uma vez empreenderam uma enorme batalha pela retirada da areia e reconstrução das casas.
Travou-se naquele momento uma longa peregrinação nos órgãos públicos: passeatas,
documentos, abaixo-assinados, denúncias nos jornais e na televisão.
Os documentos arquivados na Associação de Moradores do Titanzinho indicam que,
depois de acirrada luta, um projeto da Prefeitura de Fortaleza previa a reconstrução de 585
casas, a ser realizada progressivamente em quatro etapas, atendendo de imediato os casos de
maior urgência213. Apesar do projeto e do início das reconstruções, as obras emperravam
constantemente; em1985, um novo documento foi remetido à prefeita da cidade, solicitando o
recomeço imediato das obras. Novamente o inverno se aproximava e algumas famílias, a
serem contempladas nas últimas etapas do projeto, ainda permaneciam abrigadas em barracas
de lona, fustigadas pelo calor excessivo do sol durante o dia e pelo frio intenso à noite.
À exceção dos prédios destinados aos cabarés do Farol, essa foi certamente a primeira
grande invasão das casas de alvenaria sobre as areias do bairro. Inserindo-se nos projetos
habitacionais públicos, organizada em associações de moradores ou construindo sob o regime
do mutirão, a população angariava recursos de toda ordem; resistia, reedificava e procurava
viabilizar condições mínimas de segurança e salubridade no meio do areal, exigindo
habitações mais resistentes.
Visualizando o bairro através da conformação arquitetônica urbana, observa-se que,
até o início dos anos 90, mais precisamente em 1994, ano em que começaram as obras do
Projeto Sanear do Governo do Estado, ainda não havia calçamento nem esgoto214. Somente
nesse período as pedras, há tempos transportadas pelos retirantes, e o asfalto, há anos
produzido na fábrica localizada ao lado, começavam enfim a solidificar as ruas. Com as vielas
pavimentadas, muitos becos foram fechados, as residências receberam ligação domiciliar de
esgoto, a iluminação foi reforçada e um calçadão que ligava a orla do Serviluz à da Praia do
Futuro foi construído. No discurso do governo, a favela tornava-se bairro. Nos depoimentos, a
urbanização se fazia eivada de contradições:

“(...) tem rua asfaltada já hoje, quer dizer, é bom é não é né? Por um lado é bom, é bonito e tudo, mas ai
já há o sofrimento da galera com o calor e aquele negócio todo, quintura, outros tipo de doença na
pivetada (...) tem o Sanear também, muito bom o Sanear, mas só que os cara mete na goela, tu gasta
quinze reais de água, gasta mais quinze de esgoto numa coisa que já tá ali, que não precisa fazer nada. A

213
Documento disponível no arquivo da Associação de Moradores do Titanzinho.
214
O Projeto Sanear foi iniciado na gestão de Ciro Gomes, com um discurso ‘mudancista’ seu governo
introduziu consideráveis melhorias sanitárias em Fortaleza. A idéia do Sanear era a implantação de 1.025 km de
rede de esgoto, cerca de 148 mil ligações domiciliares, que beneficiariam mais de 700 mil pessoas. Sobre
atuação dos “Governos das Mudanças”, cf.: GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas
políticas públicas – Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998.
122

coisa mais difícil é fazer a manutenção aqui, uma galera todinha pagando Sanear e mal vem o Sanear
aqui desentupir um esgoto ”215.

Após a urbanização, não demorou muito e a areia tomou conta de tudo novamente, a
calçada sumiu e o tráfego de veículos nas ruas da praia já não era mais possível. Chegar à
beira da praia motorizado só acontecia se fosse sobre as rodas de um trator, a máquina
derrubava sistematicamente os morros, mas não adiantava, a “areia vem do mar”, acreditam
alguns moradores.
Nas ruas principais do bairro, algumas paredes haviam sido feitas de tijolo e, em
detrimento das ruas da praia, prevalecia a construção de alvenaria. No decorrer do tempo, a
população do bairro foi progressivamente melhorando seu poder aquisitivo e, mesmo nas ruas
consideradas secundárias, a casa ganhou reforço arquitetônico. Nos nomes das ruas (ver
mapas), misturam-se termos relacionados à natureza, homenagem a políticos importantes para
o bairro e a forte religiosidade do povo; nomes parecem revelar a própria diversidade que
compõe a história dessa ocupação.
A distribuição das casas entre essas ruas se deu de forma desordenada, becos estreitos
e vielas tortuosas eram a condição geral. A partir das obras do Sanear, correções foram feitas
e as transformações se espraiaram, mudando a fisionomia espacial do lugar.
Antes dessas intervenções, os becos dominavam como forma mais prática de acesso.
Era quase impossível não utilizá-los. Por eles se chegava mais rapidamente, cortava-se o
caminho para qualquer destino nos arredores; os que não os conheciam se perdiam facilmente
entre suas entradas e saídas. Pelos becos, ia-se da rua principal, que margeia os terminais de
gás do complexo industrial, em direção à beira da praia, atravessando e furando praticamente
todas as ruas do bairro. Seguindo através dessas pequenas passagens, secretas para os que não
dominavam a paisagem irregular, passava-se sem ser visto. O próprio delineamento físico do
beco transformou seus contornos em espaços singulares, conferindo-lhes múltiplos usos
sociais e ao mesmo tempo acentuando seu caráter de perigo e isolamento. Nesses lugares,
processavam-se nascimentos e óbitos.
Quando o projeto de urbanização foi implantado, porém, boa parte dos becos não
podia ser eliminada. O desenho original do projeto não previa que um só beco podia
comportar inúmeras famílias e que não era possível isolá-las completamente. Alguns
abrigavam dezenas de casas e o pequeno corredor continuava sendo o único caminho possível
para a rua.

215
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
123

No Serviluz, não havendo exatamente uma regra geral em termos de arquitetura e


padrão habitacional, a não ser a da fragilidade comum, o bairro foi acontecendo e tomou
forma própria em períodos distintos. No tempo em que era reduzida a quantidade de
moradores, era normal que os casebres, exprimidos de ambos os lados por outros casebres,
tivessem entrada e saída para duas ruas diferentes. Era igualmente comum que as casas
fossem maiores em comprimento do que em largura, daí a infinidade de pequenas frentes.
Como o bairro cresceu de forma assustadora, a pressão demográfica se fez sentir mais
intensamente. A partir da década de 80, mesmo nos barracos já apertados ao extremo, foi se
tornando necessário aglomerar um número cada vez maior de pessoas convivendo sob um
mesmo teto.
Segundo Steven Johnson “a potencialidade dessa progressão geométrica não é
somente uma singularidade matemática – ela é essencial para a própria origem da vida”216.
Assim, o autor enfatiza como as favelas de uma cidade são fenômenos emergentes e
produtores de autonomia. “O espaço metropolitano habitualmente aparece como uma linha de
arranha-céus, mas a verdadeira magia da cidade vem de baixo”217.
Antes do inchaço que assolou o lugar, ocorria que, em apenas um dos lados do terreno,
se concentrava a área construída, dois ou três cômodos, e nesse lado da casa se fazia a frente
que dava para a rua. O outro lado do terreno estava geralmente destinado ao quintal. Nos
espaços dos quintais, prevalecia ainda o resquício da verde e abundante mata, outrora
encontrada na aldeia do Mucuripe; na areia frouxa dos morros, continuava a florescer uma
cobertura vegetal típica da região, árvores que cresceram em terras vazias nos anos em que as
dunas ainda não haviam sido ocupadas sequer por choupanas de palha. Mesmo sendo um
pressuposto básico da construção, a limpeza do terreno para fins de ocupação pelo homem
não eliminou, de imediato, a variedade vegetal praiana.
Como era muito importante nas condições de moradia da época, cabe detalhar um
pouco melhor essa vegetação, pois é sabida a sua utilidade diária. Da variedade de espécies,
destacava-se a permanência do coqueiro, planta que sempre teve uso variado entre a
população pobre que vive na costa, sobretudo entre as comunidades pesqueiras. Do coqueiro
tudo se aproveitava: com o coco raspado, faziam-se as tapiocas, os doces e o preparo do peixe
cozido com pirão; a água extraída era doce, tanto podia ser vendida gelada quanto utilizada na
hidratação de crianças doentes; com a casca seca, mantinha-se aceso o fogo das pequenas

216
JOHNSON, Steven. Emergência: a dinâmica de rede em formigas, célebros, cidades e softwares. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 62.
217
Op. cit. p. 68.
124

embarcações e os fogareiros caseiros; das palhas vinha a proteção e a cobertura de casas,


fazia-se espeto para assar sardinhas, pipas e outros brinquedos populares; com o tronco,
erguiam-se alpendres e produziam-se rolos de madeira sobre os quais deslizavam as
embarcações mar adentro.
Permaneceram também algumas mudas de cana-de-açúcar e as conhecidas
castanholeiras218. Muitos quintais tinham ainda suas plantações de pião, utilizados nos rituais
de cura das benzedeiras. De algumas poucas árvores, esperavam-se os frutos; outras tinham
apenas função de produzir uma boa sombra. De modo geral, naquele tempo, via-se ali a
presença de uma grama rasteira e esverdeada onde não faltavam crianças a brincar; outrora,
era possível, entre o mato e a cerca caída, circular pelas várias propriedades vizinhas sem
precisar pôr os pés na rua.
O quintal também foi se tornando um espaço destinado ao trabalho. Pequenas tarefas
ou atividades complementares de renda podiam ser ali realizadas; em alguns casos, o fundo da
casa se transformou numa espécie de oficina caseira. Na época majestosa da pesca da lagosta,
por exemplo, famílias inteiras se reuniam à sombra de uma árvore ou sob um pequeno
alpendre de palha para tecer redes de arame ou náilon, destinadas à captura do marisco. Não
raramente, após o serviço, logo se acendia uma pequena fogueira com a madeira armazenada
no quintal e preparava-se ali a comida, talvez peixe assado. Mas esses hábitos remanescentes
foram aos poucos diminuindo. Cresceu o número de fogões alimentados a gás de cozinha, o
fogo se tornou menos uma necessidade e mais uma diversão esporádica entre amigos.
Nas ruas e quintais do bairro, era bastante comum a presença de animais. Cavalos e
burros faziam transporte humano ou carregavam mercadorias a serem vendidas de porta em
porta nas imediações. Aliás, não faltam narrativas afirmando que o aterramento das águas do
Mucuripe foi feito sobre o lombo de burros. No Serviluz, quando cresceu o comércio local,
esses animais foram largamente empregados. Ainda hoje pequenas carroças continuam
rodando sobre o asfalto recém-chegado.
A criação de galinhas, patos, porcos e outros bichos nas cercanias era prática comum.
Era um tipo de complemento da alimentação familiar, herança dos povos nativos que
pescavam, mas sabiam igualmente cultivar pequenas hortas e costumavam criar animais. Com
o passar do tempo, não apenas os hábitos alimentares e as noções de higiene modificaram-se,
mudou, inclusive, as referências que os mais velhos atribuíam aos bichos como parte
importante do cotidiano familiar.

218
Árvores típicas de praia que produzem pequenos frutos comestíveis, mas que são pouco apreciados. A sombra
é sua maior utilização.
125

À medida que vai se diversificando o tipo de alimentação consumida entre a


população local, comerciantes começaram a lucrar com o abate e venda desses animais e a
criação de bichos no bairro se tornou um problema. “Porco comendo caroço de manga em
cima da minha casa”219, as reclamações aumentavam e a presença de animais solto nas ruas
deixava de ser fato corriqueiro diário. Em certo momento, a própria comunidade passou a
boicotar as carnes provenientes desses criatórios caseiros. Foram se tornando cada vez mais
constantes as denúncias e as reclamações vindas da vizinhança e listas de assinaturas coletivas
passaram a exigir o fechamento de chiqueiros e pocilgas nas imediações. O quintal já não
mais podia ser aceito como depósito de lixo ou como pequenos currais; sobre esses lugares a
vigilância sanitária começava a impor padrões de limpeza e higiene urbana. De modo que o
asseio pessoal impulsiona transformações também na satisfação das necessidades fisiológicas,
antes realizadas nos fundos da casa sob árvores e folhagens.
“Se o Serviluz hoje em dia tá sujo, eu sou ciente, não é por culpa da prefeitura, é
porque tem muito morador seboso”220. Na cidade, intensifica-se a necessidade com os
cuidados sanitários mínimos, porque “pobre porco sempre num falta nas favelas”221. De modo
geral, higiene e salubridade foram termos que passaram a acompanhar o crescimento
demográfico dos grandes centros urbanos. Curiosamente, é sempre na periferia que estão os
lugares mais propícios a se desenvolverem focos de epidemias e infecções de toda ordem.
A regulação das práticas de higiene se configura como uma mudança de postura, mas
os novos modos assépticos também encontram resistências. Diariamente as pessoas, ainda
hoje, correm para a beira da praia para jogar lixo ou mesmo despejos fecais. A luta pela
limpeza da praia, nesse sentido, passou a ser um embate fundamental na mudança de imagem
que os moradores procuraram empreender no lugar. Os habitantes passaram a encarar a
degradação do patrimônio ambiental como fator prejudicial a qualidade de vida e como um
modo de desvalorização do espaço.
Deve-se admitir que o inchaço e a mudança da fisionomia do bairro foram, em boa
medida, resultados da pressão habitacional imposta pelo crescimento desordenado da cidade.
As mudanças na melhoria das condições das habitações populares, no entanto, não devem ser
creditadam somente à política assistencialista do Estado. Antes, essa transformação deve ser
percebida através das necessidades, estratégias e possibilidades criativas que os moradores
desenvolveram nos espaços em que vivem. Estando os espaços da periferia submetidos a

219
Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003.
220
Entrevista concedida por Francisco Herton Lima Rodrigues ao autor em 30/02/2002.
221
Entrevista concedida por Maria Zuleide Moura de Oliveira ao autor em 01/01/2003.
126

planejamentos urbanos excludentes, seus moradores forjam nesses espaços a participação


política prática; a seu modo, inventam e constroem uma cidade diferenciada dentro da
metrópole supostamente harmônica e racionalizada.
É preciso considerar que a transformação física pode incitar também uma mudança
cultural, novos materiais, novas conformações espaciais, novos valores domésticos. A
mudança material por vezes aguça e produz novos hábitos, comportamentos e sensibilidades.
Nesse sentido, a percepção da organização das vivências nesses pequenos espaços constitui
um aspecto fundamental da cultura. Afinal, a história humana não acontece somente entre
decretos administrativos e gabinetes, ela manifesta-se também entre becos e quintais, entre
plantas e animais.
Isso significa reconhecer a mão e o controle do Estado no desenho urbanístico dos
bairros e ao mesmo tempo problematizar sua ausência, reconhecendo aí à tendência à
autonomia das comunidades. Os próprios incrementos habitacionais induzem a transformação
das relações sociais internas, a tendência à generalização das relações de caráter
individualistas, entretanto não elimina por completo hábitos e costumes arraigados.
Cada contexto histórico parece guardar suas singularidades e, apesar da convivência
de múltiplas temporalidades, as paredes de tijolo podem fazer adormecer certas formas de
socialização, acesas à época da madeira.
No Serviluz, ao tempo das frágeis varas, sobreveio a época das pequenas fortificações.
Não foi apenas a resistência das casas que se acentuou; de certa forma, cresceu também a
resistência das pessoas que as habitam em relação às outras. Observa-se a esse respeito o
aumento do número de rixas e contendas entre vizinhos, à medida que os muros passaram a
substituir as cercas. Quando acabou, ou pelo menos se tornou menos comum, o contato visual
direto entre a vizinhança, curiosamente aumentou a intervenção da polícia para conter ânimos
e evitar agressões mútuas, porque ali se instaurou a noção da propriedade privada, tornou-se
preciso disputar por cada palmo de chão e a brigar por cada centímetro de terra.
Por outro lado, as brigas acontecem exatamente devido à permanência da preocupação
e da curiosidade para com o outro. Nas casas reformadas, ainda existia a possibilidade de
ouvir os mínimos movimentos dos vizinhos, o barulho dos móveis sendo arrastados, o quebra-
quebra entre irmãos e as brigas de casal. Quando o som de alguém está ligado, é possível
saber de onde ele ecoa quem o está escutando, se é alguém da casa ou se há o recebimento de
alguma visita naquele ambiente. Sabe-se pelo faro a hora do almoço e pelo cheiro se descobre
127

o cardápio e a mistura do dia. O cotidiano alheio pode ser inalado pelas frestas. Os vizinhos
acabam se responsabilizando mutuamente pelas moradias. Se não há ninguém em casa, é
preciso que um dos moradores mais imediatos esteja sabendo, deixá-lo atento e vigilante é um
ato de prudência.
Em alguns momentos, parece existir a necessidade de tornar público o conteúdo de
acontecimentos que se passam entre as quatro paredes de um domicílio. A alvenaria não
impediu exatamente a transmissão de informações entre a rua e o lar, entre aquilo que é
público e aquilo que deve ser privado.
O fato é que melhorar a condição de moradia passou a significar muito nesse contexto.
O próprio mercado imobiliário descobriu a necessidade que os operários tinham de realizar o
famigerado sonho da casa própria e a sofrida realidade encontrada nos lares de palha e barro
se tornou um prato cheio para determinados setores da construção civil. Ao mesmo tempo,
como foi dito, o dinamismo e as demandas desse mercado acabaram abrindo espaços para
novas profissões e ocupações entre as classes sociais de baixa renda. É um ciclo que não
parou de crescer.
As construções de alvenaria, no entanto, demoraram algum tempo para se impor como
a arquitetura principal do bairro. A não ser em situações em que se conseguiram doações,
como nos calamitosos episódios de enchentes e desabamentos, a renovação das habitações foi
um trabalho basicamente lento e familiar. Pequenos reparos, uma arrumadinha, de uma
população que passou a assimilar melhor as noções de acúmulo e criou a necessidade de
economizar, de guardar um pouquinho para mudar o lugar em que se vive.
Alguns fatores concorreram sobremaneira para tal mudança: a necessidade de se
firmar numa terra de propriedade da União Federal, afastando o fantasma do despejo pelas
ações do Estado ou da iniciativa privada; a diminuição dos transtornos ocasionados pela
natureza e a possibilidade de aumentar a fruição desta; a precisão de se resguardar do próprio
crescimento assustador do lugar que assumiu a rotina da criminalidade das ruas; e o desejo de
não apenas sobreviver, mas viver dignamente após anos de trabalho no mundo urbano.
A mudança material é somente uma aponta do ice berg, pois nesse espaço operou-se
também uma mudança cultural tão ou mais significativa. Uma mudança certamente lenta e em
permanente exeução. As atitudes básicas da população trabalhadora aparentemente se mantêm
sem grandes alterações. A diferença reside principalmente naquilo que Hoggarth classificou
como “mudanças de atitudes-para-com-as-atitudes”222. No Serviluz, as novas tendências e os

222
Op. cit. HOGGART, p. 81.
128

novos rumos da juventude denotam alterações significativas nos padrões local de


comportamento, o bairro passou a contar com uma diversidade práticas que marcou a
trajetória da comunidade.

O tempo foi passando agora pude entender,


O que décadas passadas, deixou para você.
A luz do farol, já não brilha mais,
A luz que vem agora vem de lá dentro do cais.
A luz que nos dá força, e a que conduz,
Por isso, não é toa, que nos chamamos Serviluz.
Tenho minha vida toda pra viver,
Pois em décadas futuras, vou tá junto com você.
Falando e expressando no meu vocabulário,
Isso e pros cabeças, no Serviluz não tem otário223.

3.3 Surfe: o surgimento de uma escola local

Nesta parte da pesquisa, procura-se, através dos depoimentos orais de jovens da


comunidade e de publicações especializadas em surfe, enveredar pelos caminhos das águas,
deslizando nas histórias de adolescentes que descobriram novas formas de trabalho no mar,
inventando novos modos de ganhar a vida na arrebentação. Analisa-se o surgimento de uma
espécie de escola local de surfe entre os meninos da comunidade. Procura-se interrogar sobre
a possível constituição de um estilo de vida, próprio, a partir da introdução do surfe no bairro,
aumentando mais ainda o mosaico de misturas e a multiplicidade de influências na
conformação das culturas locais. Em meio às múltiplas culturas urbanas que convergiram
historicamente para o bairro, talvez entre os surfistas se perceba com maior ênfase a recente
hibridez cultural operada nesse espaço.

“Eu nasci aqui em Fortaleza e a maior parte da minha vida foi na beira da praia (...) Eu tenho um
interesse muito grande por esse bairro porque é um bairro que ao chegar com onze anos de idade eu me
apaixonei por esse bairro”224.

Uma primeira observação é importante: dentre os entrevistados na presente pesquisa, o


grupo envolvido com a prática do surfe mostrou-se especialmente preocupado em destacar a

223
Letra da música “Décadas Passadas” do grupo Farol RAP, do Serviluz. Autores: Gean Carlos Serafim,
Tanqredo Alves Morais, Paulo Maurício de Oliveira e Jorge Rafael.
129

importância do mar para a sua vida. O fato de morar perto da praia entre os surfistas,
contrariando o senso comum do bairro, constituía um imenso privilégio. Os praticantes desse
esporte facilmente expressavam o amor pelo lar e a satisfação de ter à porta de casa um
espaço excelente para a prática do surfe.
Fala-se de uma geração que nasceu e cresceu num bairro litorâneo, mas, morando na
beira da praia, não desejou seguir a tradicional profissão dos pais. Diferentemente daqueles
que aderiram aos novos postos de trabalho que surgiam na região, continuaram optando pela
vida no mar. Não mais se arriscavam nas temerosas pescarias, mas desenvolveram o gosto
pela “adrenalina de estar dentro d’água competindo”225.
O gosto pelo mar no surfe se configura como uma condição fundamental. Na praia do
Titanzinho, no Serviluz, há entre aqueles que surfam o reconhecimento de que, ao chegar ao
bairro, se estabelece um contato muito intenso com a natureza, a natureza é concebida como
provedora de numerosos benefícios.

“Se o menino tá dentro d’água o que ele tá vendo dentro d’água! Tá vendo uma gaivota que tá
passando, tá vendo um peixe que tá passando, uma tartaruga... ele já começa a ter assim noções de
oceanografia, começa a observar mais os astros, sabe que na lua cheia e na lua nova a maré é mais cheia
ou mais vazante e pode dá onda, qual a época do ano que tem a melhor onda, já começa a se preocupar
com a onda assim... vai esperar o dia que o mar tá mais perfeito e tal pra surfar. Enfim, o moleque já
começa a pensar mais na natureza, começa a ver o lado mais bonito do negócio se ele tiver dentro
d’água”226.

Se alguns moradores destacavam as imposições da natureza e as deficiências sanitárias


do bairro, nutrindo o desejo de abandoná-lo, outros, apontavam que a realidade oferecida pela
natureza não constituía exatamente um problema. Ao contrário, faltava exatamente uma
relação mais equilibrada com o meio ambiente, a fim de se aproveitarem os benefícios que a
natureza podia proporcionar.
No surfe a fruição da natureza é uma prática contemplativa. Nesse recipiente,
experimentam-se os elementos e concebe-se a vida como um espetáculo ininterrupto de
metamorfoses. Se, isoladamente, cada elemento já impressiona, combinados eles produzem
efeitos ainda mais surpreendentes. Entre esses elementos, as ondas, fusões das forças das
águas e dos ventos, são os mais especialmente encantadores. As ondas são manifestações de
energia do vento que tomam formas nas águas do mar. Mas a complexidade da ondulação, se
deixa clara a onipotência da natureza, também possibilita enxergar a intromissão da mão

224
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
225
Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.
226
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
130

humana nesse espetáculo. Na praia do Titanzinho, a modificação da paisagem, acarretada pela


introdução da pedra, alterou também o desempenho dos jovens locais que sobre as ondas
passaram a imprimir também suas marcas.
É bem verdade que, mesmo entre aqueles que não praticam o surfe, vislumbravam-se
as águas marinhas como uma dádiva e o mar como uma benção, como sendo capaz de
fornecer a alimentação básica e garantir a sobrevivência.

“(...) ainda existe o pescado dos três malhos (próprio para capturar sardinhas) na área do Titanzinho
porque é um meio de sobrevivência, do pobre procurar uma sardinha pra comer com seus filhos”227.

Antes dos surfistas, os pescadores constituíam costumeiramente o grupo de


trabalhadores que dependem de modo mais direto do mar como fonte de sobrevivência. A
pesca é influenciada, mais que qualquer outra atividade econômica, pelas forças da natureza.
Essa é a última e única atividade humana de caça de grandes proporções e a própria
mobilidade dos recursos pesqueiros no ecossistema marinho é marcada pela complexidade
dos fenômenos naturais, de modo que o conjunto de processos e condições naturais influencia
também nas relações entre os grupos sociais, tanto em termos de trabalho quanto de moradia.
A paisagem cultural gira em torno da disponibilidade dos recursos naturais.
Vale ressaltar então que, na pesca e no surfe, as relações entre homem e natureza se
apresentam de fundamental importância. A natureza nessas atividades não pode ser
considerada uma entidade estática, mas como uma série de processos maiores, alheios à ação
humana, sobre os quais o homem pode interferir. Natural e social se articulam.
Na região do Mucuripe, quando prevaleceram as comunidades de pescadores, eram
visíveis as imbricações entre a vida social e a produção do pescado228. Mas com a crise da
atividade pesqueira, os homens já não mais conseguiam manter a contento suas numerosas
proles. Como já foi dito a pesca de alto calado acarretou mudanças nas relações de trabalho e
a tendência à proletarização do pescador. A mudança nas condições de vida dos pescadores e
a alteração introduzida no meio ambiente diminuíram bastante a disponibilidade do peixe nas
proximidades da costa, assim os trabalhadores do mar foram sendo forçados a ingressar
noutros ramos de atividade.

227
Entrevista concedida por Maria Zuleide de Oliveira Moura ao autor em 01/012003.
228
Em sociedades que vivem diretamente da exploração natural, é mais perceptível a correlação entre reprodução
social e reprodução natural.
131

No bairro boa parte dos jovens que surfam são filhos de pescadores. Cresceram na
beira d’água, ajudando os pais na lida diária da praia, geralmente limpando as embarcações,
consertando redes ou executando pequenos serviços de transporte, mas vários fatores
contribuíram para a decisão dos filhos de largar a profissão do pai.
Já foi analisado como a formação de um parque industrial nos arredores, em certo
momento passou a recrutar boa parte da mão-de-obra na vizinhança. Ao chegar à idade de
trabalhar, os jovens tinham que optar entre os trabalhos disponíveis, praticamente todos
braçais; a indústria podia oferecer uma razoável estabilidade e carteira de trabalho assinada,
garantias difíceis de serem obtidas na pesca.
O fato é que a industrialização promoveu ocupações e serviços cujo ritmo de trabalho
diferia muito do emprego nos ofícios tradicionais. O surfe, no entanto, apresentava ainda
muitas semelhanças com o modo de vida dos antigos jangadeiros, sobretudo no que concerne
à interação e ao apego do homem pelo seu espaço de trabalho.
Entre pesca e surfe, porém, afloram também distinções importantes. Uma diferença
considerável está na preocupação do surfista com a manutenção dos recursos naturais. A
idéia da criação de uma consciência ecológica de preservação da natureza produziu
interferências práticas no local onde se realizava o esporte. Ao que parece, a idéia da
preservação não foi enfaticamente posta no mundo da pesca, enquanto no surfe preservar
assume formas bastante contundente. Obviamente isso não significa que o velho homem do
mar não se sentiu incomodado com as mudanças físicas no meio ambiente, basta observar a
escassez do pescado no litoral, mas pouco procurou remediá-las. Se os sindicatos e demais
formas de associações dos pescadores não enfocaram a preservação ambiental como uma
bandeira de luta propriamente dita, isso aconteceu porque essa é uma questão relativamente
recente. A idéia de uma política ecológica, por sua vez, é contemporânea da explosão do surfe
no planeta.
Como o bairro serviluz é muito populoso, o uso da força transformadora da natureza
passou a preceder de um trabalho de limpeza da praia, de conscientização ecológica no
espaço. A idéia ativa de que a praia não é uma lixeira, mas um point para o surfe, surge como
pressuposto ao desenvolvimento das habilidades corporais no mar. É o que se observa no
manifesto do grupo S.O.S Titanzinho:

A praia do Titanzinho, situada na esquina leste de Fortaleza, é o berço dos melhores surfistas
do Brasil, o melhor e mais constante point da cidade. Tema de música e famosa no mundo do
surfe pela força de suas ondas e por seus famosos surfistas. Porém, esse paraíso está sofrendo
com a poluição há muitos anos, resultado da falta de educação da maioria dos moradores e da
falta de leis que punam verdadeiramente os poluidores, os quais jogam lixo na praia causando
132

sujeira, doenças e deformação do coral. O quadro é alarmante, basta olhar a praia e mergulhar
para perceber o grande estrago causado ao meio ambiente. A água é suja e transmite micose,
isso não pode continuar assim, pois é crime ambiental e prejudica a todos que têm no mar sua
fonte de sobrevivência e lazer229.

No surfe, se é forte a preocupação ambiental, é pouco visível a organização social.


Enquanto existem fartas experiências históricas de organização e luta coletiva entre os
pescadores em torno da aquisição de melhores condições materiais de trabalho, parecem não
existir formas associativas que batalhem pelo surfe como uma modalidade de trabalho. Aqui,
diferentemente da pesca, tende a prevalecer o desempenho individual do atleta.

“Você não pode depender só de uma profissão que é curta, né? Se você tivé no auge, no topo você
ganha (...) do salário mesmo você não faz um pé de meia, geralmente dos prêmios né? Se for
profissional então o surfe é bom, mas é bom que os jovens que almejam ganhar tudo na vida com o
surfe pense melhor né? Que só o surfe ele não vai ter uma vida estável não”230.

Nos depoimentos, nitidamente o esporte foi transformado numa modalidade de


trabalho. Apesar da possível instabilidade, o surfe se tornou uma realidade econômica
palpável na comunidade. Em recente edição, a Revista Veja exibiu o auto-retrato do jovem
surfista Pablo Paulino. Garoto pobre, Pablo foi criado no Titanzinho, em Fortaleza, e cedo se
consagrou um fenômeno no mundo do surfe ao ganhar o campeonato mundial na categoria
júnior. Aos dezessete anos de idade, desbancou australianos, havaianos e americanos,
melhores do mundo no esporte, faturando um prêmio de seis mil dólares. O jovem assinou
ainda um ótimo contrato com a grife Billabong, uma das maiores marcas de surfe do mundo,
que lhe garantia, além de um excelente salário, uma ampla estrutura que incluía técnico,
preparador físico, nutricionista e professora de inglês231.
A necessidade do idioma inglês acontece porque nesse esporte, além das viagens pelo
mundo, os praticantes precisam assimilar termos técnicos, muitos dos quais, têm origem em
outros países. Nas grifes, nas manobras e na comunicação diária entre os surfistas, variadas
expressões possuem uma matriz importada.
A cultura do surfe se integra ao mercado industrial de proporções globais. As marcas
se multiplicam e ganham tecnologia de ponta. Vende-se indumentária, lugares e toda a
parafernália que compõe um estilo de vida diferenciado. É um espaço privilegiado para o
lançamento de novidades e modismos entre o público jovem. As velhas vestes dos homens do

229
O grupo S.O.S Titanzinho foi criado por surfistas locais e procura despertar um censo de preservação
ambiental no bairro. Documento disponível na Escolinha de Surfe do Titanzinho.
230
Entrevista concedida por José Carlos da Silva ao autor em 08/03/2005.
133

mar ganharam tecidos sintéticos. Nas águas, a manutenção do estilo de vida, entrelaçado ao
meio, ganhou nova roupagem, renovando uma tradição capaz de adaptar-se, ou recriar-se, em
função dos novos tempos.
O universo do surfe constitui-se a partir de palavras como estilo, ousadia,
originalidade e determinação. A própria história do surfe é narrada nas publicações
especializadas, através das grandes façanhas, dos recordes e das narrativas heróicas dos
grandes vultos enfrentando grandes ondas. A fama é um componente importante no “esporte
dos reis”232. De fato, descer em ondas com vários metros de altura faz desse esporte uma
prática bastante arriscada, há o perigo real dos corais de pedra ou mesmo o risco de acidentes
com o próprio equipamento. As marcas nos corpos novamente servem de testemunho.
Nas revistas especializadas nesse esporte, a radicalidade do surfe se concretiza no forte
apelo às imagens dos competidores. As páginas se compõem basicamente de fotografias, que
ocupam a quase totalidade (ou mais) de uma página. Destacam-se os movimentos bruscos e
velozes dos homens desafiando a natureza; o próprio espaço geográfico é uma peça
fundamental na composição da imagem. No surfe, o cenário pode, inclusive, definir o
desempenho dos atletas.
No Serviluz, esse esporte constituiu-se como propulsor de cultura e redes de
sociabilidades; o surfe também se caracteriza pelas territorialidades que o definem. É
justamente o que ocorre em certos espaços urbanos, como a praia do Titanzinho, os quais são
tomados por indivíduos, pelas relações específicas entre eles estabelecidas. Sendo essas
relações de disputa, conquista, poder e dominação, está criado o contexto em que o espaço se
torna um território a ser criado e disputado233.
Apesar da imagem, aparentemente equilibrada e saudável, o esporte ainda aparece
carregado de pesados preconceitos.

“(...)chegaram uns cara de fora aí, uns caras ai de São Paulo e disseram: - rapaz tem que tirar a galera do
Titanzinho que a equipe tá muito favela. Vamo tirar a galera todinha do Titanzinho que a marca tá
muito favela. E olhe que nessa época a gente tinha os melhores daqui e a gente tava levantando a
marca”234.

Mas a prática desse esporte na periferia urbana de Fortaleza emergiu como mais uma
possibilidade concreta de inserção social. E, à medida que se formou uma espécie de escola

231
Cf.: Revista Veja, 23 de fevereiro de 2005. p. 89.
232
Remete a origem mitológica do esporte, na qual o surfe teria nascido entre os reis das Ilhas da Polinésia,
dando ao surfe um aspecto de ritual sagrado.
233
AZEVEDO, Diego Paula Pesssoa. Fora ‘haole’: um estudo sobre cultura e terrrtorialidade no surfe.
Monografia do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2003. P. 25.
234
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
134

local, muitos surfistas se profissionalizaram e ganharam dinheiro. No entanto, fora dessa praia
de sucesso, procurei também os depoimentos dos jovens da mesma comunidade que não
lograram êxito no esporte; na verdade, a maioria.
A partir do êxito de alguns competidores locais, os jovens do Titanzinho tornaram-se
figurinhas carimbadas em revistas e demais publicações especializadas no esporte. Uma
questão sempre recorrente nessas reportagens era o amargo reconhecimento do percurso
vitorioso desses atletas; na mídia ficava sempre a interrogação: como era possível um menino
chegar tão longe, vindo do lugar tão pobre e violento no qual ele nasceu? Na concorrida
disputa por títulos, parecia impossível que de um lugar tão precário pudessem sair tantos
talentos e estrelas.

“(...)tinha um cara que sempre fazia umas matérias e sempre colocava o Titanzinho lá em baixo. Só
falando de porco, de praia suja e não sei o quê... Até camisa o cara fez pra vender com o nome do
Titanzinho, ai tinha um porco e uma fese desenhada na camisa(...) ai por causa disso eu discutir com
ele, bota um cara surfando, uma coisa melhor. Toda vida que você abria o jornal tava lá o cara falando
mal do Titanzinho. A sociedade não vai ler isso aqui não, a sociedade vai vê se você botar uma
manobra, um tubo”235.

A superação do preconceito e da desigualdade econômica exigia, porém, tanto um


severo treinamento quanto uma série de mudanças no estilo de vida da juventude, mescla de
velhos hábitos e novos comportamentos. Emergiu a necessidade e o desejo de elaborar novas
opções de vida, de vibrar com outras sensibilidades:

No futebol, se o cara não está jogando bem eles tiram e colocam outro. No surfe não, quem for
mais bonitinho está com patrocínio. O cara dá um aéreo e fica com a prancha cheia de logotipo
(...) Foi de repente, já competia enquanto meus amigos jogavam futebol. Sabia surfar e jogar
bola, mas tive que escolher. Hoje vejo que através do surfe conheci outros países e estados, já
meus colegas do futebol ainda não saíram do Titanzinho236.

A trajetória árdua é regra geral. No Serviluz, o surfe não teve um começo tão rico e tão
nobre. O surfe no início era marginalizado, hoje é uma profissão; muitos atletas sobrevivem,
outros somente sonham. Esse esporte também era extremamente caro, inacessível, para as
condições financeiras da população local.
Ao que tudo indica, o surfe explodiu do Havaí para o mundo no início do século XX,
chegando ao Brasil nos anos 1940, quando as pranchas eram ainda fabricadas de madeira oca.
Com a intensificação da sociedade de consumo e a adesão aos esportes de massa, o surfe se

235
Ibidem.
236
Entrevista com Lucinho Lima, In: Revista Hard Core, ano 15, edição, 182, outubro de 2004.
135

estabelece no Ceará nos anos 1970. Na década de 80, contudo, era restrito o acesso às novas
pranchas feitas de fibra.

“Aqui no Titanzinho então, meu, na década de oitenta não tinha prancha de fibra, tinham pranchas de
fibra as pessoas ricas que tinham sua prancha e que de forma nenhuma emprestava, né?, não
emprestava” 237

O acesso restrito e o elevado preço do equipamento constituíam um sério problema


para os meninos ingressarem nos “tubos”238. Como não tinha dinheiro, o campeão mundial
Pablo começou a surfar com um pedaço de prancha quebrada; somente aos oito anos de idade,
ganhou uma prancha da já consagrada surfista local Tita Tavares239. Essa foi a realidade inicial
para quase todos os atletas.

“Eu aprendi a surfar em cima de um pedaço de madeira como quase todos os garotos daqui. Aos trancos
e barrancos eu pegava uma tábua, serrava e fazia uma prancha (...) a gente conseguia uma carteira de
cigarro e ia prum prédio desses na Praia do Futuro ou lá no Náutico ali, e trocava por um pedacinho de
tábua e aí fazia a gente fazia nossa pranchinha. Quando eles não dava a pranchinha pelo cigarro aí o
jeito era a gente tirar essa tábua e sair correndo, ou então serrar a porta da casa da nossa mãe”240.

A prancha de madeira foi uma solução elaborada com um material fartamente


empregado no cotidiano e assim se iniciou a popularização do surfe no bairro.

“O começo com o surfe foi desde lá do Mucuripe (...) veio naquelas taubinhas que a gente chamava de
sonrisal né? Na praia, jogava a tauba na beira da praia e pulava em cima. Naquela época no Mucuripe
ninguém surfava de tauba na onda não. Na época, jogava no chão e pá... pulava em cima, saia
deslizando na areia. Aí quando cheguei aqui no Titanzinho vi a galera surfando de tauba em cima da
onda, aqui era mais desenvolvido, a galera do Titanzinho já surfava na onda mesmo”241.

Observa-se que deslizar sobre a madeira era inclusive o aprimoramento de uma antiga
prática da pesca, das embarcações que, para atingir a terra firme, precisam cruzar a
arrebentação das ondas. Nesse processo histórico, a habilidade em reutilizar os elementos do
dia-a-dia, constituiu um aprendizado fundamental, capaz de produzir emergências essenciais à
população.

237
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
238
Manobra em que o surfista fica dentro da onda. Cf.: Surfinário em anexo.
239
Surfista local ganhadora de vários títulos nacionais e uma das poucas atletas do país a participar do circuito
internacional, o Word Championship Tour (WCT). Tita Tavares e Fábio Silva, detentor de vários títulos
nacionais, são os mais renomados surfistas do bairro.

240
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
241
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
136

No Titanzinho, antes mesmo do inchaço populacional, adeptos desse e de outros


esportes náuticos chegavam em seus carros àquela praia. Vindos de várias partes da cidade,
traziam consigo um mundo de novidades para a comunidade. A partir do relacionamento com
as pessoas de fora, os meninos do lugar começaram a conhecer pranchas, roupas,
equipamentos e acessórios que permeiam o universo do surfe. O surfe reforçou a idéia do
acolhimento, do bairro como espaço do lazer e da interação.
Durante certo tempo, os surfistas que chegavam ao bairro entravam na água muito
tranqüilamente. O lugar ainda guardava as características de um paraíso. Mas, no decorrer dos
anos 80, alguns fatores proporcionaram mudanças repentinas naquele lugar, até então
paradisíaco. As pessoas que chegavam viram nascer ali um bairro popular, uma favela, cujas
águas e areias a população passou a dominar. Era preciso, a partir de determinado momento,
negociar, entre outras coisas, o próprio direito de entrar e sair ileso do local. Constroem-se
também territórios sobre as águas.
Como conseqüência da crescente onda de violência, os grandes campeonatos
realizados na praia se afastaram do bairro a partir da década de oitenta. Em 1982, o Setembro
Surfe, importante competição estadual, anunciava entre as inovações daquele ano a
transferência do local da realização do evento: “O certame será deslocado da praia do
Titanzinho para o Icaraí, que oferece melhores condições técnicas para a promoção”242. O
crescimento do esporte acarretou o surgimento de novos adeptos e de novos espaços para sua
prática. No Serviluz, no entanto, a retirada das competições do Titanzinho está relacionada a
acontecimentos desencadeados no próprio lugar, pois tanto a marginalidade se acirrou como a
quantidade de esgotos e outros poluentes despejados na água da praia aumentaram
consideravelmente, à medida que novas casas foram sendo instaladas.
Os embates, dos quais podem vir o entendimento, entre homem com a natureza são a
tônica. A própria historicidade do lugar, tido como um reduto de esgoto e de pessoas
perigosas, tornava-o extremamente discriminado na cidade. As ondas nem sempre cobriam a
prostituição, a violência e a poluição perante os olhos da cidade. O próprio surfe era um
esporte discriminado por ser praticado nessa área.
A superação do preconceito social que recaía sobre a comunidade, para alguns
entrevistados, podia contar com o apoio quase incondiciona, da natureza. A prática do surfe se
projetou como uma possibilidade concreta de renda e inserção social. A prática do esporte
deve, no entanto, estar associada à imagem de uma juventude saudável, cristalizada nos

242
Jornal O Povo, em 22/08/82. p.07.
137

corpos torneados dos atletas locais, para se reverter a imagem denegrida do Serviluz,
sinônimo de mazela urbana, e faze-la flutuar em novas memórias.
O surfe, a exemplo de muitos outros projetos sociais ali desenvolvidos, era uma forma
de provar que o bairro não era somente feito de grandes problemas, de mostrar o nosso
potencial e deixar claro para os de fora do bairro que “aqui tem pessoas que prestam”243.
Essa reversão, no entanto, é entendida como um processo lento. Os garotos tinham
dificuldades em desenvolver essa prática, antes de tudo porque os pais não aceitavam a idéia.
Surfar, com efeito, era sinônimo de não estudar, da ociosidade e do vício. Durante muito
tempo, dentro da própria comunidade, esse era nitidamente um esporte carregado de
preconceitos sociais, coisa de bandido e vagabundo. Mas, aos poucos, a prática do surfe fez a
garotada alcançar sucesso, ir além daquilo que aparentemente estava colocado como limite da
vida na favela. E, desse modo, o surfe também surgia como válvula de escape à delinqüência
que assolava as ruas do bairro, “ele agarrou com unhas e dentes como sendo assim aquilo que
vai salvar a vida dele, que vai colocar ele num patamar mais elevado”244.
Para o entrevistado João Carlos, o “Fera”, “o Titanzinho é o celeiro do surfe
cearense”, principalmente “porque aqui é esquina leste de Fortaleza, aqui é onde o vento faz a
curva”, “aqui é um lugar maravilhoso”. Por isso a falta de preservação da praia era debilidade
do bairro. Para ele, sobretudo o combate à marginalidade juvenil exorbitante precisava se
intensificar, pois esta acarretava um dos grandes problemas do bairro: a falta de visitantes.
“Fera”, instrutor e técnico de surfe, entende que a discriminação do local perante a
cidade, ocasiona, entre outras coisas, a falta de emprego para os nativos. “Nós temos aqui a
água que pode trazer grandes benefícios para a molecada (...) tem bandidos, mas tem
ondas”245. Para superar tais problemas, colocava-se a necessidade premente de melhorar a
imagem do lugar, bastante temerosa na cidade. Em 1995, quando começou o projeto S.O. S
Titanzinho, entrevista afirma que o bairro Serviluz passava por uma situação difícil. O lugar
estava novamente abandonado e gangues rivais disputavam à bala a sua hegemonia, a
criminalidade produzia dados alarmantes e as mortes acabavam com famílias inteiras. O surfe
passou a ser entendido como uma força mutante, capaz de tirar as crianças da ociosidade e das
drogas, transformar corpos e mentes.
A vida dentro d’água como propulsora de outros aprendizados e criadora de novas
habilidades se tornou uma prática local. O desenvolvimento de movimentos rápidos, de

243
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
244
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003
245
Ibidem.
138

manobras radicais, a fluência na onda, tudo aquilo a ser captado numa plasticidade
fotográfica. No surfe, há a possibilidade de se estabelecerem boas relações com pessoas
vindas de outras partes da cidade, uma forma de ganhar a vida fora do pesado trabalho
industrial. São incontáveis os benefícios advindos do mar: saúde, harmonia com a natureza e a
paz espiritual de quem protagoniza um estilo de vida saudável e feliz. Existe, entre os
praticantes desse esporte, a concepção da natureza como uma espécie de força mutante, que
transforma mentes e corpos e que é capaz, por exemplo, de transformar crianças magricelas
em verdadeiros campeões mundiais de surfe.
Mas o surfe é também um ato de lazer na comunidade: “num surfo pra competir, só
pra brincar, tomar banho, pra relaxar a cabeça”. “Porque eu num sei viver longe do mar
não”246. O surfe é muitas vezes um ato de diversão que engloba homens e mulheres nas horas
de folga do trabalho. Cair na água é procurar esquecer os problemas do dia-a-dia, é reavaliar o
passado, o presente e o futuro: “Eu tenho trinta e seis anos, mas eu sou um irado, eu volto a
ser criança todas as vezes que eu surfo”247.
Entre os sufirtas, é mais nítida a idéia de cultura concebida como uma experiência
mutante.

“Cultura da pessoa é o jeito que você vive, o seu hábito de viver, de falar (...) a cultura ela muda de uma
hora pra outra (...) você tá aqui e querendo outra coisa, fazer outra coisa, uma coisa diferente né? Você
tá fazendo uma coisa que nem é do seu país, da cultura de outro país. Você tá fazendo aquilo ali e você
gosta e vai desenvolver aquilo ali, as vezes até mesmo naturalmente (...) você troca porque alguma coisa
te agradou né?”248.

A través de atividades como o esporte, novos grupos culturais tornaram-se uma


realidade para boa parte da juventude249. Como estratégia de inserção social, esses núcleos
vinheram somar-se aos outros centros comunitários já constituídos, como associações de
moradores, escolinhas de surfe, igrejas e terreiros de macumba. Observando essa
efervescência, dona Mariazinha foi enfática: “Nós estamos de parabéns, o Serviluz realmente
tem muita história pra contar”250.
Nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2006, o bairro Serviluz esteve em festa. O projeto
Cultura em Movimento, da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), armou sua tenda na

246
Entrevista concedida por Mauro Sérgio Domingues ao autor em 18/05/2005.
247
Entrevista concedida por João Carlos Sobrinho ao autor em 27/02/2003.
248
Entrevista concedida por Raimundo Cavalcante Ferreira ao autor em 12/05/2006.
249
Entre os novos grupos culturias destacam-se o Projeto de Artes do Serviluz (PAS) e o grupo Peleja. Formado
por estudantes secundaristas, e alguns universitários, procuram conscientizar a juventude local através de
intervenções artísticas e ambientais, em diferentes espaços do bairro.
250
Entrevista concedida por Maria Ferreira Dias ao autor em 31/006/2006.
139

comunidade251. No palco, dezenas de artístas locais revezavam-se em exibições que deixaram


o público atento e curioso. Filmes de curta metragem enfatizaram aspectos do cotidiano
violento do bairro; peças teatrais encenaram episódios dramáticos da dura vida na favela;
bandas de músicas cantaram, em ritmos variados, a história do bairro; poesias; espetáculos de
dança e balé; apresentações esportivas de capoeira e Kung Fu, expressaram corpos saudáveis
e alegres da comunidade.
Nessa pesquisa, tentou-se focalizar como as articulações das diferenças culturais, a
vivência das experiências intersubjetivas, o interesse comunitário e os valores culturais
coletivos são negociados e renegociados a nível local.
As transformações culturais, no entanto, não acontecem de modo espontâneo, como
colocou Homi Bhabha:

Os termos do embate cultural, seja através de antagonismos ou afiliações, são produzidos


performaticamente (...) a articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento252.

Essa perspectiva de cultura, forjadas no interior das contingências da vida, põe em


dúvida a questão econômica, a herança cultural e a tradição como fatores essenciais de
identificação entre os homens. Desse modo não há uma identidade original, uma forma
genuína ou uma tradição naturalmente recebida. Não havendo uma tradição cultural altêntica,
os projetos de comunidade e a formação das sociabilidades devem ser concebidos como
emergências e como hibridismos culturais que brotam no tempo do agora, e não como suave
transição em direção a um futuro melhor. Em meio a desenraizamentos contínuos, conflitos e
atos inssurgentes que marcam o tempo transitivo dos corpos em perfomance, as experiências
criativas redefinem o devir, supostamente dado pela racionalidade econômica e cutural
dominante.
A precária definição arquitetônica das ruas e as frentes pobres das habitações
escondem uma ampla rede de articulação entre universos distintos. A grande potência
comunitária reside na sua capacidade de produzir territórios menores, invisíveis, mas
conformadores de padrões de relacionamento e respeito.
Um bom observador notaria, sem surpresas, que numa ponta de rua pode-se abrigar
uma igreja católica, dois terreiros de macumba, vários moradores evangélicos, dois ou três
rezadores e possivelmente alguns ateus convictos. Ora, o que faz dessa mistura uma riqueza

251
Cultura em Movimento – Secult nos Bairros é um projeto do Governo do Estado do Ceará que patrocina
apresentações cuturais intinerantes nos bairros da periferia de Fortaleza.
140

não é apenas a diversidade em si, mas principalmente a capacidade de articulação dessas


diferenças.

252
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 20-21.
141

Conclusão

A tradicional ocupação da enseada do Mucuripe por jangadeiros pobres começou a ser


ameaçada quando empreendimentos capitalistas desenvolveram-se sobre essas areias. Da
segunda metade do século XX em diante, o porto e a indústria modificaram a paisagem
natural, deslocando homens e culturas, à medida em que a natureza da praia passou a ser
considerada habitação privilegiada.
Nesse processo, pescadores, prostitutas e outros trabalhadores pobres, vivendo em
condições insalubres, passam a construir lutas e solidariedades pela sobrevivência e pela
permanência. Em condições ambientais específicas, os moradores do bairro articulam
habilmente natureza e cultura.
Novas experiências no trabalho, mudanças de hábitos e a tomada de conciência para a
organização coletiva em âmbito local, marcaram a trajetória histórica dessa comunidade. A
trasformação na cultura material e nos padrões de comportamento da população se
disseminaram, e encontraram resistência, a partir da convivência dos múltiplos sujeitos,
conformando múltiplos territórios dentro do mesmo bairro.
Cabe ressaltar que a tentativa de captura dessas vivências, sobretudo a partir da técnica
metodológica que envolvia a oralidade, apontou a provisoriedade e a fugacidade das
interações culturais contemporâneas. Emergiu daí a necessidade de construção de um texto de
história, não restrito aos possíveis limites da disciplina, mas um texto tão vasto e fluído
quanto a própria experiência humana em construção.
142

Relação de Siglas

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNB – Banco do Nordeste do Brasil

BNH – Banco Nacional de Habitação

CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco

COHAB – Companhia de Habitação

CONEFOR – Companhia Nordeste de Eletrificação de Fortaleza

DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

FBFF – Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente

PAS – Projeto de Artes do Serviluz

PROAFA – Programa de Assistência as Favelas de Fortaleza

SECULT – Secretaria da Cultura do Estado

SUDEPE – Superintendência de Desenvolvimento da Pesca

SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

SER – Secretaria Executiva Regional

SERVILUZ – Serviço de Luz e Força de Fortaleza


143

Relação de imagens anexas

1. Ruas do bairro.

2. Imagem aérea da Praia do Mucuripe

3. Praia de Iracema em 1938.

4. Pescadores da Praia do Mucuripe em 1952.

5. Jangada do Mucuripe em 1952.

6. Vista do Porto do Mucuripe.

7. Pesca com a rede de “três malho”.

8. Praia do Titanzinho.

9. Praia do Serviluz.

10. Surfista do Serviluz.

11. Crianças do Serviluz.


144

Fontes e arquivos:

a) Fontes Escritas

1 - Jornais: O Povo, Correio do Ceará, Unitário, Tribuna do Ceará, O Estado (Setor de

Microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. Jornal alternativo Mutirão

(Instituto da Memória do Povo Cearense -- IMOPEC).

2 - Revistas:Veja, Fluir e Hard Core (Ano e edições variados).

3 - Arquivos da Associação de Moradores do Titanzinho, da Associação de Moradores

do Serviluz e da Escolinha de Surfe do Titanzinho.

4 - Inventário do Acervo Virgílio Távora (Arquivo Público do Ceará - APEC).

5 – Arquivo e boletins informativos da Companhia Docas do Ceará, do Sindicato dos

Portuários e do Sindicato dos Pescadores do Ceará.

6 – Letras de músicas e cordéis de artistas locais.

b) Fontes Orais

1 Francisco Herton Lima Rodrigues. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado,
em 30/02/2002. “Agente comia peixe até seis veszes por semana”, relembrou, nostálgico,
Francisco Herton, mais conhecido como “moço”. O depoente conta que já passou por
várias profissões, afirma que todo trabalho é digno desde que garanta a sobrevivência dos
filhos. Entre idas e vindas, lembra com saudades da irmã que há tempos foi para a Itália e
que somente nas férias pode rever.
2 Maria Zuleide de Oliveira Moura. “Pau pra toda obra”, foi assim que se autodefiniu
dona Zuleide, a entrevista realizada na sala de sua casa em 01/01/2003. Dona Zuleide
participou da primeira gestão da Associação de Moradores do Titanzinho. Através do seu
depoimento, tomamos conhecimento das dificuldades iniciais de construção de um espaço
de participação coletiva, dos projetos realizados, da morosidade burocrática e das fissuras
internas que permeiam o dia-a-dia das entidades.
145

3 José Osmir de Monteiro de Sousa. Jovem e disposto, Osmir sugeriu que a entrevista
fosse realizada, em 28/01/2003, sobre as pedras do paredão onde não “tinha
interferência”. A exemplo do pai, José Osmir é filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT),
segundo o entrevistado: “atualmente nosso bairro conta com aproximadamente trinta
tipois diferentes de associações”. No Serviluz, são poucas as pessoas engajadas a política-
partidária, sobretudo aos partidos de sequerda.
4 João Carlos Sobrinho. Essa entrevista foi realizada na casa do depoente, em 27/02/2003,
com um grupo de quatro amigos (Camila, Idalina, Thiago e Pereira), durante uma
disciplina acadêmica. Mais conhecido como “Fera”, João Carlos é uma referência local
em termos de conscientização ecológica. Técnico e instrutor de surfe, afirma que é na
natureza que está o maior patrimônio cultural do bairro. Acredita que cabe principalmente
aos moradores criarem estratégias que viabilizem a visitação turística no bairro, e,
sobretudo, que essa interação com o pessoal de fora pode ser benéfica e produtiva.
5 Maria da Conceição Alves dos Santos. Contamos também com a participação dos quatro
colegas da Disciplina de Seminário de Leitura, ministrada pela professora Kênia Rios, na
realização dessa entrevista, em 27/02/2003. Na sala de sua casa, dona Conceição contou
que veio do Camocim, interior do Ceará, à procura do pai, já estabelecido na capital. Na
cidade, trabalhou como “classificadeira” numa empresa de pesca e exportação de lagosta:
“nós éramos 280 mulheres, todas trabalhando de carteira assinada”, relata, referindo-se
ao tempo em que era grande a quantidade de mulheres trabalhando na indústria.
6 José Carlos da Silva. Descontraído, o entrevistado concedeu seu depoimento na casa de
um amigo em 08/03/2005. José Carlos fala com muita naturalidade das transformações
ocorridas no bairro, então com “duas ruazinhas”, à época em que nasceu. “Minha mãe
comprava dólares”, afirma, relembrando os tempoa áureos da zona de prostituição do
Farol do Mucuripe.
7 Mauro Sérgio Domingues. “Serginho” , como é mais conhecido, falou sobre sua
experiência como morador do bairro em 18/05/2005, na sala de sua residência. O
entrevistado contou sobre as transformações fisicas do bairro desde a época da Praia
Mansa, tempo em que seu pai foi o primeiro morador da ilha a adquirir aparelho de
televisão. Mauro Sérgio, não seguindo no ramo de pesca, passou a trabalhar no setor
hoteleiro onde pensa ter descobertos novos aprendizados importantes para sua vida.
8 Maria da Luz Oliveira Ribeiro. Muito atenciosa, dona Daluz, como é mais conhecida,
falou ao gravador em sua casa em 18/05/2005. A entrevistada diz que começou a se
146

envolver no trabalho comunitário apartir do convívio e do incentivo do marido, seu


Francisco, que durante anos colaborou com a Colônia de Pescadores. Entre outras coisas,
dona Daluz lamenta o estado de abandono de muitos jovens do bairro e o crescimento
vertiginoso do consumo de drogas entre os adolescentes locais.
9 Raimundo Cavalcante Ferreira. Entrevista realizada na casa do depoente em
12/05/2006. “Raimundinho”, como é mais conhecido, ex-competidor, foi campeão
cearense de surfe amador em 1987. Apesar de apaixonado pelo esporte e um dos primeiros
do bairro a receber patrocínio, não conseguiu se firmar como profissional. Trabalha
ocasionalmente como instrutor e organizador de campeonatos de surfe, mas exerce outras
profissões.
10 Natalee Ferreira de Sousa. Essa entrevista foi realizada na casa do entrevistado em
20/05/2006. Estivador aposentado após trinta anos de serviço, seu Natalee demonstra uma
imensa compreensão do processo de trabalho portuário e entende o porto do Mucuripe
como ponto-chave da ocupação dessa parte da cidade. Leitor compulsivo procura sempre
o entendimento mais amplo dos fenômenos que envolvem a história do bairro. É enfático
ao firmar a necessidade premente de educar os mais jovens para otrabalho.
11 Maria Ferreira Dias. Dona “Mariazinha”, como é mais conhecida concedeu sua
entrevista na sede da Associação de Mortadores do Serviluz em 31/06/2006. A
entrevistada fala com entusiasmo da melhoria operada na comunidade e dos projetos que
ajudou a desenvolver com os moradores. Conta como começou a formação da primeira
associação de moradores no bairro, as viagens à Brasília e orgulha-se de ser reconhecida
como uma referência na luta comunitária inclusive fora Fortaleza: “me sinto
homenageda”, resume.
147

Bibliografia:

ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará, 26° ed. São Paulo: Ática, 1992.
ANDRADE, Manuel Correia de. 1964 e o Nordeste: golpe, revolução ou contra-
revolução? São Paulo: Ed. Contexto, 1989.
ANJOS JUNIOR, Carlos Silveira Versiani dos. A serpente domada: um estudo sobre
a prostituição de baixo meretrício. Fortaleza: Edições UFC, 1983.
AZEVEDO, Kátia. Mutirão: jornal alternativo do Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará,
2002.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed. 1992
BARROS, Edgar de. O Brasil de 1945 a 1964.São Paulo: Ed. Contexto, 1999.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: lembranças paulistanas. In: O Direito a Memória:
Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1991.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Edusp, 2000.
CEARÁ, Inventário do Acervo Virgílio Távora. Ceará. Secretaria da Cultura. Arquivo
Público. Fortaleza: SECULT, 2005.
CEARAH, Periferia. Vivências, lutas e memórias: Historia de vida de lideranças
comunitárias em Fortaleza. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2002.
CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
DANTAS, Eustogio Wanderley Correia. Mar à Vista: estudo sobre a maritimidade de
Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceara, 2002.
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. Pescadores, camponeses e trabalhadores do
mar. São Paulo: Ática, 1983.
FURTADO, Celso. O Brasil pós-milagre. Rio de Janeiro: Ed. Terra e Paz, 1983.
(Coleção Estudos Brasileiros).
GIRÃO, Blanchard. Mucuripe: De Pinzón ao Pe Nilson. Fortaleza: Ed. Demócrito
Rocha, 1998.
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará., 1959.
148

GITAHY, Maria Lucia Caira. Ventos do Mar: Trabalhadores do porto, movimento


operário e cultura urbana. São Paulo: Unesp, 1992.
GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e luta pela moradia. São Paulo: Edições
Loyola, 1991.
GONDIM, Linda Maria Pontes. Clientelismo e modernidade nas políticas públicas –
Os “governos das mudanças” no Ceará (1987-1994). Fortaleza: Ed. UNIJUÍ, 1998.
HABERT, Nadini. A década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São
Paulo: Ed. Ática, 1996.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
__________________ Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
HOBSBAWM, Eric J. Trabalhadores. Estudos sobre a história do operariado. São
Paulo: Paz e Terra, 1981.
HOGGART, Richard. As utilizações da cultura. Aspectos da vida da classe
trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa:
Editora Presença, 1973. (Coleção Questões).
HUGO, Victor. Os Trabalhadores do Mar. Rio de Janeiro, Ediouro.
IOC. A Eletrificação no Ceará: Pequeno histórico da vinda da energia de Paulo
Afonso a Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1965.
JOHNSON, Esteven. Emergência: A dinâmica de rede em formigas, célebros,
cidades e softwares. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003.
LEITE, Ary Bezerra. História da energia elétrica no Ceará. Fortaleza: Fundação
Demócrito Rocha, 1996.
NEVES, Berenice Abreu de Castro. Do mar ao museu: A saga da jangada São Pedro.
Fortaleza: Museu do Ceara, 2001.
NEVES, Frederico de Castro. A seca na história do Ceará. Uma nova historia do
Ceara. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha, 2000.
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: Reformas urbanas e controle
social (1860-1930). 3° ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. In: Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nº. 22. São Paulo: EDUC, junho de
2001.
149

RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca


de 1932. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
RONCAYOLO, Marcel. Transfigurações noturnas da cidade: o império das luzes
artificiais. In: Projeto História, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, nº. 18. São Paulo: EDUC, maio de 1999.
SADER, Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e
lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra,
1988.
SANTIAGO, Pádua. A Cidade como Utopia e a Favela como Espaço Estratégico de
Inserção na Cultura Urbana (1856-1930). In: Trajetos. Revista do Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. V.1, n° 2. Fortaleza,
junho de 2002.
SILVA, Fernando Teixeira. A carga e a culpa. São Paulo: HUCITEC, 1995.
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Paisagens do consumo: Fortaleza no tempo
da Segunda grande Guerra. Fortaleza: Museu do ceará; Secretaria da Cultura e
Desporto do Ceará, 2002.
SILVA, José B. da. Nas trilhas da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001.
_______________ Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos
movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.
SOUSA, Francisca Ilnar de. O Cliente: o outro lado da prostituição. São Paulo:
Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.
SOUZA, João Carlos de Souza. Na luta por habitação a construção de novos valores.
São Paulo: Educ, 1995.
SOUZA, Simone de (org.). Uma nova historia do Ceara. Fortaleza: Ed. Demócrito
Rocha, 2000.
TEÓFILO, Rodolfo Historia da seca no Ceará (1878-1880). Rio de Janeiro:
Imprensa Inglesa, 1922.
THOMPSON, Paul. A voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
Terra, 1992.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,1988.
__________________ A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crític ao
pensamenbto dse Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
150

Teses e Dissertações:

BARBOSA, Edson Holanda Lima. A ida ao inferno verde. Experiências de


trabalhadores cearenses emigrados para a Amazônia: 1942-1945. Dissertação de
Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
CAVALCANTE, Lídia Eugenia. Para onde os ventos sopram Pirambu: Memória e
identidade social. Dissertação de Mestrado Interinstitucional em História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade Operária, migração nordestina e lutas
sociais: São Miguel Paulista (1945-1966). Tese de Doutorado do Departamento de
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas, 2002.
PASCHOARELLI, Leandro. Quebra–quebra e imprensa, zona leste de São Paulo,
1980-1981. Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2000.
SANTOS, Márcia Juliana It’s all true e a construção das imagens do Brasil (1942-
93). Dissertação de Mestrado em História Social da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, 2004.
VIEIRA JUNIOR, Antonio Otaviano. A Família na Seara dos sentidos: domicílio e
violência no Ceará (1780-1850). Tese de Doutorado em História Social do
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 2002.

Revistas

DHP. O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. Secretaria


Municipal de Cultura. São Paulo: DPH, 1992.
Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Nº. 10,
15, 18, 22 e 23.
TRAJETOS, Revista do Programa de Pós-graduação em História Social e do
Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. v.1, n° 2. Fortaleza,
junho de 2002.
151

Anexos

1- Ruas do bairro (Fonte: Listel 2006).


152

2- Imagem aérea da Praia do Mucuripe (Fonte Geogle)


153

3- Praia de Iracema em 1938. (Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS).


154

4- Pescadores do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”,fotos de Chico Albuquerque).


155

5- Jangada do Mucuripe em 1952 (Fonte: “Mucuripe”, fotos de Chico Albuquerque)

6- Vista do Porto do Mucuripe (Fonte: do autor)


156

7- Pesca com a rede de “três malho” (Fonte: do autor)


157

8- Praia do Titanzinho (Fonte: do autor)

9- Praia do Serviluz (Fonte: do autor).


158

10- Surfista do Serviluz (Fonte: do autor).


159

11- Crianças do Serviluz (Fonte; do autor)


160
161
162
163
164
165
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download:

Baixar livros de Administração


Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo

Potrebbero piacerti anche