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Modernismo Português

1915-1939

Charles Borges Casemiro

Editora Casemiro
@
São Paulo
2014
MODERNISMO PORTUGUÊS
1915-1939

Copyright @ 2014:
Charles Borges Casemiro

Editoração eletrônica:
Editora Casemiro

Capa:
Marcel Duchamp. Nu descendo a escada, 1913.

Preparação de Texto:
Charles Borges Casemiro
Ieda Ferreira Banqueri Casemiro

Revisão:
Charles Borges Casemiro
Ieda Ferreira Banqueri Casemiro

Dados Catalográficos na Fonte:


CASEMIRO, Charles Borges. MODERNISMO PORTUGUÊS: 1915-1939. São Paulo:
Casemiro, 2014.

Literatura Portuguesa 869.07.


Literatura Portuguesa: Crítica 869.07
14 páginas.

Editora Casemiro
@
2014

MODERNISMO PORTUGUÊS
1. A crise portuguesa no início do século XX (1915/1939)

O Modernismo Português nasceu associado à profunda crise política e social por que
passou a República Portuguesa entre 1910 e 1927. Constituiu-se como resposta nacionalista-
artística dos setores progressistas e cosmopolitas da classe média urbana ao conturbado
momento histórico vivido por Portugal, nas duas primeiras décadas do século XX.

No entanto, o Partido Republicano, principal representante dos setores progressistas, após


ter derrubado a Monarquia Portuguesa em 1910, assentou seu projeto de governo sobre
contradições e sobre dissidências ideológicas, titubeando entre posturas mais conservadoras e
neoliberais, de acordo com a situação de forças em que se encontravam as diferentes tendências
abrigadas pelo Partido.

Da falta de coesão e da instabilidade de ações dos republicanos resultou a impossibilidade


de se realizar um projeto consistente contra a crise. Assim, floresceram as insatisfações
populares, que denunciavam a incompetência da República e a falência da nação lusa.

Ao passo dos descontentamentos gerais foram se popularizando também projetos


autoritários e fascistas, guiados pelos setores mais conservadores e burgueses da sociedade,
manifestando-se em nome da ordem e da salvação do país.

O Modernismo português apareceu nessa época, ideologicamente fiel à democracia e ao


progresso, como opção republicana e nacionalista, buscando reagir contra o espírito político
retrógrado, conservador e militarista que ganhava valor entre o povo; surgiu, ao mesmo tempo,
como contraponto da cultura da crise que se alastrava em Portugal; buscou resgatar e valorizar o
espírito nostálgico e saudosista da cultura portuguesa; pretendeu reavivar, no século XX, o
passado glorioso das descobertas e das conquistas marítimas do século XVI, no sentido de
revigorar a disposição e o orgulho da alma portuguesa no tempo da República.

Depois da Primeira Guerra Mundial, no entanto, a crise intensificou-se e as tensões


políticas entre a burguesia (associada ao capitalismo estrangeiro, ao clero e à monarquia) e os
setores médios urbanos de Lisboa e do Porto (de pensamento republicano) tornaram-se mais
agudas: os manifestos públicos, as greves, o desemprego crescente e insolúvel, os atentados à
bomba, a radicalização de ação das esquerdas e dos sindicatos, contrapostos à repressão do
estado e às represálias burguesas atestavam uma situação de caos social absoluto.

Para pôr um fim a este estado crescente de desordem e para conter a corrupção, que tomara
conta das instituições, um movimento militar de caráter conservador e autoritário derrubou a
República em 1926.

No entanto, os objetivos propugnados pelo golpe não foram concretizados, obrigando a


cúpula militar golpista a encontrar um administrador que a representasse na busca de soluções
mais rápidas para a situação de crise. Esse administrador foi o Professor de Finanças da
Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que recebeu total poder para realizar as
mudanças necessárias a fim de restabelecer a ordem e recolocar Portugal no caminho do
desenvolvimento.

Salazar assumiu assim, gradativamente, o controle de todos os setores do governo, até


finalmente assumir o controle sobre os próprios militares golpistas. Fez aprovar uma nova
Constituição em 1933, por meio de um plebiscito, instaurando uma ditadura civil – O Estado
Novo, que durou até 1974.
O início da ditadura (1927) coincidiu com o declínio do primeiro momento modernista
português, pois o golpe inibiu todas as manifestações da classe média, inclusive as
manifestações culturais. O Modernismo entra então num período de afastamento da realidade e
alienação política, que só fez aprofundar os ideais esteticistas do primeiro momento em prejuízo
dos compromissos com a crítica social.

Já durante o Estado Novo, sobretudo a partir de 1939, o Modernismo fragmentou sua


plataforma em diversos caminhos: surgiram autores neorrealistas e realistas-fantásticos, que
apregoavam uma arte de participação social, que fosse um testemunho da época, ora do ponto
de vista sociológico, ora do ponto de vista filosófico, neste caso, aproximando-se do
existencialismo e do esteticismo; surgiram autores surrealistas, que adotaram o freudismo, o
marxismo e o esteticismo, divididos entre o Futurismo e o Dadaísmo; reapareceram autores
dados ao experimentalismo poético, que reviveram as técnicas vanguardistas do início do
século; por fim, despontaram autores de um chamado “novo romance”, que diluía as técnicas
poéticas na prosa, além de encarnar novas fórmulas estruturais.

Grandemente combatida pela Literatura Pós-modernista, a ditadura salazarista só chegou


ao fim com a Revolução dos Cravos (1974), que derrubou o Estado Novo e colocou no poder o
Partido Socialista.

2. Modernismo em Portugal

2.1. O Orphismo (1915/1927)

O Modernismo português surgiu assim conformado ao período de mudança por que passou
Portugal nas primeiras duas décadas do século XX: uma fala artística, filosófica e social diante
do período de decadência da Monarquia, de construção e falência da República.

Num primeiro momento, o Modernismo português foi caudatário do pensamento de


reconstrução e renovação nacional republicano; depois, entretanto, entregou-se ao universalismo
em lugar do provincianismo e ao vanguardismo estético em lugar do simbolismo-decadentista.

Para ilustrar esta passagem, sem dúvida, podemos nos remeter à Revista A Águia, fundada
em 1910, por Teixeira Pascoaes. Como periódico mensal de literatura, arte, filosofia e crítica
sociológica, A Águia logo foi tomada como expressão máxima da Renascença Portuguesa –
rótulo que os republicanos atribuíram ao seu programa político de fundamentação e
revigoramento da cultura. Dizia Pascoaes: “O fim desta Revista como órgão da Renascença
Portuguesa é dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, colocá-las
em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que, neste momento
histórico, abrasa todas as almas sinceramente portuguesas: criar um Portugal novo, ou melhor,
ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de
escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram”.

O visionarismo de Pascoaes levou-o ao vasculhamento incansável da alma portuguesa.


Nela encontrou a Saudade que, para ele, constitui “o próprio sangue espiritual da raça; o seu
estigma divino, essencial, o seu perfil eterno. Claro que é a saudade no seu sentido profundo,
verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-idéia, a emoção refletida, onde tudo que existe –
corpo, alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu – atinge a sua unidade divina… é na
saudade revelada que está o sentido da Renascença Portuguesa.”

No entanto, justamente por causa da visão místico-saudosista, Pascoaes foi abandonado


pelos republicanos, e teve de pôr fim à Revista A Águia. Não antes, porém, de conseguir atrair a
atenção de dois brilhantes jovens de Lisboa: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.
Estes é que cuidaram de aproximar o místico saudosismo de Teixeira Pascoaes do
Vanguardismo Estético do restante da Europa. Fundaram, sob a direção de Luís de Montalvor, a
Revista Orpheu, que no primeiro trimestre de 1915 inaugurou o Modernismo português.

De acordo com o ideário das Vanguardas – o mito da técnica e do progresso, a


desfiguração da realidade, a fragmentação, a colagem, o artificialismo, o individualismo, a
agressividade, a velocidade, a inadaptação, o experimentalismo etc. – conformado à condição
mística do saudosismo, nasceu em Portugal um primeiro Modernismo: o Orphismo, que se
definiu como movimento de agressão ao burguês, signo da estagnação política, econômica e
cultural; que elegeu a poesia como principal forma de expressão: poesia alucinada, chocante,
irritante, irreverente, símbolo da vida estética, que reagia abertamente contra a insanidade da
vida institucional e pessoal, presa aos artifícios da politicagem e do mercantilismo usurário e
selvagem.

Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros estabeleceram-se como os


grandes mentores intelectuais e artísticos do Orphismo: Pessoa, por causa do fenômeno da
heteronímia (um dos pontos culminantes do Modernismo Europeu); Mário de Sá, por causa de
sua obra de estranheza, de inadaptação, arte anticonvencional e insólita diante de um mundo
falido; e Almada Negreiros, por estabelecer a ponte de ligação entre o Orphismo e as tendências
contemporâneas que se seguiram.

As idéias estéticas mais marcantes do Orphismo foram a supremacia da vida estética, a


heteronímia, o sensacionismo, a imaginação livre, o interseccionismo entre sensações que se
tem do mundo ou entre as tendências de Vanguarda (Futurismo, Cubismo, Surrealismo,
Impressionismo, Expressionismo, Dadaísmo), e a herança decadentista-simbolista, que
reapareceu intensificada sob o rótulo de paulismo (de paul = pântano): irracionalismo,
intuicionismo, registro de realidades decadentes.

Apesar de representar, naquele momento, as transformações culturais de Portugal, a


Revista Orpheu não conseguiu ver sequer seu terceiro volume lançado. Mário de Sá-Carneiro,
que financiava a publicação dos volumes, suicidou-se, deixando os outros integrantes da Revista
sem condições de continuar custeando sua produção. No entanto, já nos dois volumes de
Orpheu, ficaram estabelecidas claramente as tendências gerais do Modernismo Português.

2.2. O Presencismo (1927/1940)

Em 1927, ano da instauração da ditadura militar, com o lançamento da Revista Presença, o


Presencismo deu seguimento ao uso das técnicas vanguardistas defendidas pelo Orphismo.

No plano ideológico, entretanto, os presencistas afastaram-se da postura crítica do


Orphismo e entregaram-se a uma arte neutra, comprometida apenas com o esteticismo, distante
dos compromissos políticos ou sociais.

José Régio, um dos principais escritores da Revista Presença, definiu o Presencismo da


seguinte maneira:

“Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo que provém da parte mais virgem,
mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição duma obra
viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe.(...) Literatura viva é aquela em que o artista
insuflou a sua própria vida, e por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista
um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que
ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço.(…)”
Noutros termos, os presencistas defenderam a superioridade da Literatura viva em relação
à Literatura livresca. Para isso, contrapuseram em plano superior o indivíduo ao social, a
intuição à verdade racional, o mistério ao realismo fotográfico, associando-se às tendências
metafísicas e mais abstratas das vanguardas (Surrealismo, Dadaísmo, Expressionismo) e às
tendências romântico-psicológicas e decadentistas.

O ponto central do programa presencista era atingir profunda consciência da criação


estética. José Régio, João Gaspar Simões, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Branquinho
da Fonseca, Antônio Botto e Edmundo de Bettencourt fizeram-se os principais representantes
desta corrente.

2.3. O Neo-realismo e as Tendências Contemporâneas (1940…)

No decorrer da ditadura, mais precisamente a partir do final da década de trinta, o


Modernismo Português modificou seu centro de preocupações: passou a encaminhar-se para
uma espécie de neo-realismo encarnado, contrapondo-se radicalmente ao esteticismo
presencista. Passou a seguir exemplos da Literatura Nordestina Brasileira e da Literatura Norte-
americana, pretendendo uma literatura engajada nas lutas sociais, de análise e de crítica dos
problemas contemporâneos, em lugar da arte esteticista, alienada e pessoal. Essa reorientação
significou o fim do chamado Modernismo e o início do Pós-modernismo.

De modo complementar ao percurso pós-modernista português, além da tendência neo-


realista, apareceram outras tendências literárias, como a surrealista e a experimentalista que, no
campo poético e narrativo, tentavam, de certo modo, reavivar experiências formais das
vanguardas, além de propor novas formas, a partir de novas técnicas de construção e
organização, tanto da poesia quanto da narrativa. Vale dizer que, neste momento, a retomada do
esteticismo não significou desviar do caminho crítico conquistado pelo Neo-realismo.

Fernando Pessoa (1888/1935)

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 1888. Com 5 anos ficou órfão
de pai; dois anos depois sua mãe casou-se com um militar que atuava como cônsul na África do
Sul, para onde a nova família se mudou.

Fernando Pessoa viveu por dez anos em Durban, frequentando o primeiro e o segundo
graus, recebendo, portanto, toda a sua formação escolar de acordo com os padrões britânicos e
em Língua Inglesa.

O poeta só retornou definitivamente a Portugal em 1905; um ano depois, matriculou-se no


curso superior de Letras em Lisboa, que logo abandonou.

Na década de 10, participou de algumas discussões sobre ciência, sociedade, filosofia e


estética, colaborando com algumas revistas de caráter nacionalista. Ao mesmo tempo, entrou em
contato com as Correntes Vanguardistas do restante da Europa.

Em 1915 tomado pelas discussões locais e pelas discussões das Vanguardas, ajudou fundar
a Revista Orpheu.

Ao morrer, com apenas 47 anos, vítima de cirrose hepática, Fernando Pessoa era
praticamente desconhecido do grande público, apesar de ter sido o principal mentor intelectual e
artístico do Modernismo Português.
Seu único prêmio em vida foi ganho pela publicação de sua obra Mensagem, obra de
caráter místico, mítico e nacionalista.

Cultivou tanto a poesia quanto a prosa (contos e ensaios sobre arte e crítica literária), além
de escrever ainda alguns textos de estrutura híbrida – sobretudo, poemas dramáticos e prosa
poética.

A poesia compõe a melhor parte de sua obra, pela singular criatividade que atingiu,
incomparável em toda a história da literatura em língua portuguesa. Pessoa é considerado o
substituto de Camões, um Super-Camões, sobretudo, por conta de seu intrigante processo
criativo: a Heteronímia.

Sua genialidade deve-se, sem dúvida, à intensa procura em si mesmo ou nos outros, no
presente ou no passado, de novas fórmulas poéticas. A Heteronímia é o resultado dessa procura.

Pessoa não foi apenas um criador de obras literárias, mas também um criador de escritores.
Por meio da imaginação, concebeu vários poetas com biografias, traços físicos, profissão,
ideologias e estilos próprios. Foram criados dezenas de heterômimos – desenvolvidos,
semidesenvolvidos ou apenas esboçados. Entre eles, os mais importantes foram Alberto Caeiro,
Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Coelho Pacheco etc, todos, extensões
imaginárias do Ortônimo, Fernando Pessoa.

A respeito da Heteronímia, assim se manifestou o heterônimo Álvaro de Campos:

Multipliquei-me, para me sentir,


Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me.
E há em cada canto de minha alma um altar a um deus diferente.

O próprio Fernando Pessoa, a respeito de seu processo disse certa feita:

“Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho


meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a
sonhá-lo, e eu não.”

A Heteronímia foi o resultado das instabilidades subjetivas e das instabilidades sociais


pelas quais passavam Portugal e o mundo no início do século XX e que se refletiram sobre a
consciência criativa do poeta. O sentimento de solidão e de fragmentação da realidade, imposto
pelo mundo moderno em crise, ficou registrado em Pessoa na diversidade de respostas poéticas,
na multiplicação de personalidades, temas, fórmulas, estilos de produção. Fernando Pessoa
viveu como um teatro vivo, que trazia dentro de sua imaginação poética diversos poetas que,
como ele mesmo, buscavam encontrar uma forma de expressão para sua individualidade e seu
mundo.

Como uma estética experimental, a Heteronímia aproximou-se das Vanguardas Europeias,


conduzindo o Modernismo Português pelo saudosismo místico e mítico, pelo paulismo, pelo
interseccionismo, pelo sensacionismo, pelo lirismo mais popular, pelas fórmulas clássicas
consagradas e ainda pelas experiências mais renovadoras das vanguardas (verso livre, branco,
livre associação de idéias e palavras, variedade rítmica, fragmentação e colagem de imagens
etc.).
Fernando Pessoa, Ele Mesmo

 Poeta nacionalista e universalista;


 Poeta místico e mítico;
 Poeta apreciador da história, um saudosista;
 Valorizador da tradição lírica popular portuguesa: conteúdo e forma;
 Apreciador e criador do interseccionismo;
 Poeta da consciência e da metalinguagem;
 Criador dos heterônimos.

Texto I

O Infante

Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.


Deus quiz que aterra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te e fôste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou creou-te portuguez.


Do mar e nós em ti nos deu signal.
Cumpriu-se o Mar, e o Imperio se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, p. 78)

Observar no texto:

a) O decassílabo sáfico rimado marcando o ritmo e a sonoridade da fala portuguesa;


b) A vontade mística e a vontade histórica se cruzam às vezes: vontade de Deus + o sonho
do Homem = obra;
c) Referência ao processo de navegações e conquistas do século XVI e a lembrança do
sonho do V Império;
d) A grafia arcaica como fórmula estética de nostalgia.

Texto II

Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.


Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para deante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.


Este padrão signala ao vento e ao céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano


Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é portuguez.

E a cruz ao alto diz que o que me ha na alma


E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, p. 79)

Observar no texto:

a) A oscilação entre os decassílabos e os octossílabos imprimindo ritmo diverso aos versos


dos quartetos;

b) Reparar na intersecção de conteúdo entre os versos octossílabos: “E para deante naveguei


/ O por-fazer é só com Deus / O mar sem fim é portuguez / O porto sempre por achar”,
que coloca a dimensão mística e ao mesmo tempo mítico-histórica da navegação do
século XVI;
c) O nacionalismo místico e mítico;
d) A referência direta a Os Lusíadas, de Camões;
e) O conteúdo épico diluído pelo lirismo saudosista.

Texto III

Mar Portuguez

Ó Mar Salgado, quando do teu sal


São lagrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, p. 82)

Observar no texto:

a) O conteúdo épico de Os Lusíadas diluído pelo lirismo saudosista popular do poeta;


b) O verso que condiciona a validade da vida à grandeza da alma é o menor de todos; único
hexassílabo do texto; se pensarmos que alma é a poesia, a beleza, o verso então não terá
valido a pena;
c) Reaparece a intersecção entre o tema místico e o tema histórico;
d) Novamente aparece o místico cobrando o preço para a realização do histórico.

Texto IV

Terceiro Aviso

’Screvo meu livro à beira-magua.


Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Christo


De a quem morreu o falso Deus,
E a dispertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,


Sonho das eras portuguez,
Tornar-me mais que um sopro incerto
De um grande anceio que Deus fez?

Ah, quando quererás, voltando,


Fazer minha esperança amor?
Da nevoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 86 e 87)
Observar no texto:

a) O tema épico ganha uma dimensão plenamente lírica na forma dos octossílabos sonoros e
no lirismo e na subjetividade acentuada da fala;

b) As angústias pessoais tomam dimensão mística, mítica e histórica: o cristianismo dialoga


com o sebastianismo;

c) O clamor pela volta do D. Sebastião para aplacar a mágoa dos dias, o vazio do coração, as
lágrimas dos olhos, a falta de vida, o mal da existência, a condição de instabilidades e
incertezas.

(Extraído de Gombrich, E. H. Ob. cit., p. 434)


Texto V

Chuva Oblíqua

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito


E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…

O porto que sonho é sombrio e pálido


E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…


O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…

Não sei quem me sonho…


Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma… (…)

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 113 e 114)

Observar no texto:

a) A polimetria ou verso livre, que diversifica o ritmo e aparece como verso experimental;
b) O interseccionismo cubista, que permite a colagem de duas cenas: o sonho do porto
(realidade interior) e a paisagem (realidade exterior);
c) A fragmentação e colagem, ou sobreposição de imagens como recurso das vanguardas
européias;
d) A livre associação de idéias e palavras;
e) Sintaxe experimental.

Texto VI

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 164 e 165)

Observar no texto:

a) A metalinguagem: a definição da heteronímia;


b) O verso curto e suavemente sonoro, aproximado da tradição lírica popular.

Alberto Caeiro: o poeta do olhar

 Filósofo antifilosófico;
 Adepto do paganismo, do panteísmo e da tranqüilidade existencial;
 Criador e adepto do sensacionismo: o mundo captado de modo natural pelas sensações do
corpo;
 Seu abstracionismo resulta da própria concretude das imagens;
 Seu existencialismo resulta do estar no mundo como única forma de aprendizado;
 Sua poesia adota uma linguagem prosaica: na simplicidade e na concretude das imagens e
na elementaridade das construções sintáticas e vocabulares;
 O espontaneísmo e a naturalidade de seus versos garantem um ritmo suave e tranqüilo.

Texto I

O Guardador de Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,


Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos


Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva


Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos


Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos


Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,


Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

II

O meu olhar é nítido como um girassol.


Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,


Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…


Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,


E a única inocência é não pensar…
(…)

IX

Sou um guardador de rebanhos.


O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la


E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor


Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
(…)
XVI

Quem me dera que a minha vida fosse como um carro de bois


Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas…
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
(…)
XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Por que o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha


E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.


Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.


Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
(…)

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 203 a 228)

Observar no texto:

a) O paradoxo criado pelo eu-lírico durante todo o texto: ter uma filosofia antifilosófica, que
nega o “pensar” intelectual, afirmando a simplicidade de um “pensar” com os sentidos
(olhar, ouvir, ver, saborear, tocar);
b) O paganismo e o panteísmo que aproxima o homem, o deus e a natureza como partes de
uma unidade natural que os coloca no mesmo plano de importância e complexidade: o
universo concreto;
c) O sensacionismo e o abstracionismo, conseguidos a partir da percepção das coisas, a
partir das sensações causadas pelas coisas, do sentir com a imaginação, da reflexão
simples, que se dá, sobretudo, pelo olhar;
d) O existencialismo, que leva o eu-lírico à percepção da existência das coisas, que têm,
como único significado, a própria existência;
e) A valorização do conhecimento como resultado da experiência pessoal, concreta e
intransferível (o ver, o ouvir, o tocar, o saborear, o cheirar);
f) A estilo prosaico, construído pela simplicidade das imagens e das construções sintáticas,
que, às vezes, esbarram até mesmo em licenciosidades lingüísticas.

Ricardo Reis: um Horácio à portuguesa

 Poeta de tendência clássica: recupera o paganismo, o epicurismo ou hedonismo, o


estoicismo, a mitologia greco-latina, além de aceitar influências do mestre Caeiro;
 Poeta bucólico: em sua poesia, o amor à natureza e à vida natural se constroem a exemplo
do pastoralismo árcade;
 Temas comuns ao Classicismo como a brevidade da vida e a necessidade de gozar os
prazeres presentes (carpe diem) associam, ainda, sua poesia à de Horácio (poeta latino);
 Linguagem classicizante: vocabulário rebuscado, sintaxe cultíssima, repleta de inversões
e regências conservadoras e arcaicas;
 Persegue algumas vezes, como mecanismo de superação do formalismo clássico, o verso
livre e branco;
 Seu lirismo esbarra num tom argumentativo e descritivo, impassivo e racionalista.

Texto I

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.


Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida


Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.


Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,


Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranqüilamente, pensando que podíamos,


Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois


Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,


Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1986, pp. 256 e 257)

Observar no texto:

a) Poeta classicizante: recupera o paganismo (o humanismo, o culto à beleza e aos prazeres


do corpo), o epicurismo (filosofia do prazer, hedonismo), o estoicismo (comedimento,
equilíbrio da razão), a mitologia greco-latina (presença dos deuses e interpretações do
mundo pertencentes ao pensamento mitológico);
b) Influências do poeta-mestre Alberto Caeiro, sobretudo, no que diz respeito ao bucolismo,
ao amor à natureza e à vida natural e harmoniosa;
c) Temas comuns ao Classicismo, como a brevidade da vida e a necessidade de gozar os
prazeres presentes (carpe diem) atestam as influências do poeta latino Horácio: o prazer
do amor, na juventude, na beleza e na força do corpo (carpe diem) é colocado como
exercício equilibrado, moderado, estóico de vida;
d) A Linguagem muito clássica apresenta vocabulário rebuscado, uma sintaxe cultíssima,
repleta de apostos, inversões e regências antiquadas; os versos, no entanto, são longos,
livres e brancos indicando uma simplificação do formalismo clássico aos moldes
modernos;
e) O lirismo contido pela razão, pelo tom argumentativo e descritivo.

Texto II

Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, p. 289)

Observar no texto:
a) A metáfora e a analogia que indicam o aproveitar da vida terrena com equilíbrio (carpe
diem): a lua refletida no lago não exagera nem exclui sua imagem, projeta-se inteira, na
medida exata;
b) A inteireza da vida é obtida da relação “honesta” que se mantém com ela;
c) O verso livre e branco aparece como indicador de simplificação dos recursos poéticos em
direção ao Modernismo;
d) O tom argumentativo do texto.

Texto III

As rosas amo dos jardins de Adônis,


Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida “um dia”,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, p. 259)

Observar no texto:

a) As construções sintáticas rebuscadas e arcaicas;


b) O vocabulário rico;
c) As referências à mitologia e a visão clássica pagã;
d) A contemplação da vida e dos prazeres em sua brevidade e em sua naturalidade;
e) A visão pagã e racionalizada da existência, que se resume ao tempo presente, sem
passado ou futuro.

Álvaro de Campos

 Decadentista: apresenta uma visão entediada e pessimista em relação à existência no


mundo moderno;
 Futurista: é agressivo, cultua a urbanidade, a máquina, a velocidade, a agitação, a
simultaneidade dos fatos, sons, imagens, sentimentos, falas, sensações;
 Cultua o interseccionismo, a fragmentação da percepção e a colagem de impressões sobre
a existência, que redundam muitas vezes em longas enumerações, livres associações de
idéias e palavras;
 Excessivamente lírico: sua agressividade, sua violência, seu ódio, seu desespero, seu
cansaço, sua inadaptação seguem intercalando-se com momentos de entusiasmo e de
celebração do mundo da máquina;
 A evocação do passado perdido, passado mítico, infância do ser humano: tempo e espaço
de uma felicidade, de uma pureza e de uma paz irrecuperáveis, que aparecem como
argumentos favoráveis ao desengano, ao decadentismo de sua visão de mundo instável;
 A intensidade rítmica, conseguida a partir da oscilação entre o uso de versos rimados e
medidos e os versos livres e brancos, a partir de inversões e longos apostos e
enumerações intermináveis, casa-se com os excessos líricos, com os estados emotivos
instáveis, inconscientes, irracionais, espontâneos.

Texto I

Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(…)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!


Outra vez a obsessão movimentada dos ônibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!


Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isso, mas que importa tudo isto


Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,


Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!


Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro, Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!

Eia! e os “rails” e as casas de máquinas e a Europa!


Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!


Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 306 a 311)
Observar no texto:

a) O Decadentismo: a visão entediada e pessimista em relação à existência no mundo


moderno; o cotidiano é ambíguo – grandioso e funesto ao mesmo tempo;

b) O Futurismo: é agressivo, cultua a urbanidade, a máquina, a velocidade, a agitação, a


simultaneidade dos fatos, sons, imagens, sentimentos, falas, sensações;

c) O Culto ao intersecionismo, a fragmentação da percepção e a colagem de impressões


sobre a existência, que redundam muitas vezes em longas enumerações, livres
associações de idéias e palavras e na sobreposição de imagens, cenas e estruturas;

d) O excesso lírico: a agressividade, a violência, o ódio, o desespero, o cansaço, a


inadaptação que seguem intercalando-se com momentos de entusiasmo e de celebração
do mundo da máquina;

e) A intensidade rítmica, conseguida a partir dos versos livres e brancos, a partir de


inversões, longos apostos, enumerações intermináveis, interjeições, onomatopéias, casa-
se com os excessos líricos, com os estados emotivos instáveis, inconscientes, irracionais,
espontâneos.

Texto II

Dobrada à Moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,


Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,


Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,


Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1986, p. 418)

Observar no texto:

a) A evocação do passado perdido, passado mítico, infância do ser humano: tempo e espaço
de uma felicidade, de uma pureza e de uma paz irrecuperáveis, que aparecem como
argumentos favoráveis ao desengano, ao decadentismo de sua visão de mundo instável.

Texto III

Lisbon Revisited

Não: não quero nada.


Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!


A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!


Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!


Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!


Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido com todo o direito de sê-lo.
Com todo o direito de sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!


Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?

Não me peguem no braço!


Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância –


Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixe-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…


E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
(…)

(Pessoa, Fernando. Obra Poética, Rio de Janeiro,


Nova Aguilar, 1986, pp. 356 e 357)

Observar no texto:

a) A recusa contra todos as circunstâncias castradoras da modernidade.


b) O tom agressivo característico dos futuristas.
c) O sentimento de solidão e o desejo de isolamento como resultado da civilização.

Mário de Sá-Carneiro (1890/1916)

Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa em 1890, filho único de um engenheiro,


descendente de militares. A morte prematura da mãe e as constantes viagens do pai, o
mantiveram sob os cuidados dos avós e exerceram grandes influências em sua vida posterior.
Sua infância e o início da adolescência passou na Quinta da Vitória, em Camarate, longe da
escolaridade formal, longe da religiosidade católica e longe das concepções tradicionais de
família.

Em 1904, ingressou no Liceu do Carmo para cursar Secundário. Revelou-se então em sua
face de menino burguês, mimado, inadaptado física e moralmente ao mundo exterior da Quinta
de sua família.

Levou uma vida tímida, até descobrir o gosto pelo teatro. Escreveu, em 1912, a peça
Amizade – que marcou o início de sua carreira. Seguiu-se, no mesmo ano, a publicação de
alguns contos sob o título de Princípios. “Sexto Sentido”, “Incesto”, “Página de um Suicida”,
“Felicidade Perdida” e “Loucura”, principais contos dessa publicação, anunciavam de modo
tácito a temática que se desenvolveria no restante de sua obra novelística e poética.

Ao terminar o Colégio, o escritor seguiu para Paris a fim de estudar Direito, mas os
problemas financeiros que enfrentou por causa do abandono do pai forçaram-no a voltar para
Lisboa, em 1914.

Publicou, no mesmo ano, Dispersão (poesias) e Céu em Fogo (uma coleção de novelas
curtas); em 1915, saiu do prelo A Confissão de Lúcio (uma narrativa de difícil classificação);
postumamente, em 1937, Indícios de Oiro (poesias) e, em 1958/59, As Cartas a Fernando
Pessoa.

Uma carreira meteórica – rápida, mas de brilho estupendo – que foi interrompida pelo
suicídio, em Paris, em 26 de abril de 1916, aos vinte e cinco anos de idade, como denunciou
diversas vezes em sua própria obra, quase sempre manchada pela autobiografia.

O centro de suas atenções foi sempre a questão da identidade do eu, lançado num mundo
de contradições, erguido pela inteligência. Sua auto-análise foi sempre trágica, caminhando
pelas trilhas do derrotismo, da depressão, da desintegração da personalidade e do auto-flagelo;
em sua obra não se podem harmonizar o eu-psicológico (indivíduo) e o eu-social (coletivo). Os
campos da desintegração da personalidade, da loucura e da morte tornaram-se, tanto na vida
quanto na obra de Sá-Carneiro, obsessões, que encontraram materialização nas personagens
anormais, na sexualidade ambígua e na tragédia do suicídio.

Sá-Carneiro foi, sem dúvida, o precursor, em Portugal, da literatura surrealista e realista-


fantástica. Sem dúvida o caso mais curioso e denso de aproximação entre vida e arte, entre real
e fantástico, entre universo consciente e subconsciente.

A Confissão de Lúcio

Depois de passar dez anos na prisão, condenado pela morte do poeta Ricardo Loureiro, o
escritor Lúcio inicia uma narrativa memorialista e poética que pretende revelar a verdadeira
história que cercou a morte do poeta Ricardo.

Desse modo, esclarece que lançaria mão dos fatos; que seria sempre documental, a fim de
preservar a integridade da história, que, segundo ele, apesar de parecer inverossímil,
comprovava sua inocência.

Lúcio passa então a rememorar como aos dezoito anos saíra de Lisboa para Paris a fim de
estudar Direito, mas acabou abandonando o curso, envolvido pela fantástica realidade
intelectual e artística parisiense.

Freqüentava festas, teatros, noitadas, encontros, enfim, todos os ambientes que pudessem
colocá-lo em contato com a arte cosmopolita e o mundo moderno. Apesar disso, mostrava-se
descontente ao deparar-se com artistas que marcavam sua importância muito mais pelo
comportamento extravagante que pelo valor de suas obras. Esse sentimento aparecia-lhe como
uma espécie de inveja por não conseguir consolidar sua própria imagem de dramaturgo.

Justamente por isso, Lúcio relutou em ir a uma festa oferecida na casa de uma americana
lésbica que morava em Paris. Uma festa fora dos padrões comuns, cheia de imagens e
alucinações que materializavam a sensualidade, a volúpia e o prazer, que seriam, na visão da
anfitriã, as mais fortes manifestações artísticas possíveis a um grande artista.

Nesta festa, marcada pelo clima alucinatório, vibrante e dionisíaco, Gervásio Vila Nova
apresentou a Lúcio o poeta Ricardo Loureiro. Após a festa, apenas um mês foi o suficiente para
torná-los bastante íntimos.

Ricardo e Lúcio principiaram um processo de busca de identidade própria um no outro;


buscavam um duplo que os completasse em suas individualidades. Buscavam intimidade,
liberdade, amizade, amor.

Ricardo concebia que a verdadeira amizade inclui o contato físico, mas se sentia impedido
de seguir adiante com Lúcio por serem do mesmo sexo e por perceber os preconceitos de Lúcio
contra a homossexualidade.

No entanto, essa trama que aproximava amizade à intimidade, a imagem de Ricardo à


imagem Lúcio, começou a confundir os sentimentos e as próprias personalidades dos dois
amigos.

Por isso, Ricardo mudou-se para Lisboa, de onde buscou resolver o problema da
homossexualidade colocado em seu anseio amoroso por Lúcio. Inventou para isso Marta, uma
personagem feminina para viver um relacionamento amoroso com Lúcio. Casou-se com Marta,
que se fixou como uma projeção da feminilidade do poeta Ricardo, uma concretização de sua
sensualidade, de seu prazer e de sua arte, que podia ser dividida com o amigo Lúcio.
Tão logo soube do casamento de Ricardo, Lúcio rumou para Lisboa atraído pela idéia de
conhecer a mulher do amigo poeta. Em seus primeiros contatos, Lúcio incomodou-se com as
sensações estranhas, repugnantes que Marta lhe causava. Passado, porém, pouco tempo, Marta e
Lúcio tornaram-se próximos e íntimos, consumando um caso amoroso.

Os encontros entre Lúcio e Marta tornaram-se assim freqüentes; sempre na casa dele, à
mesma hora.

Marta, porém, depois de alguns encontros, começou a atrasar-se e, até mesmo, a faltar aos
encontros. As esperas de Lúcio, que antes constituíam momentos de pré-prazer, pré-volúpia,
pré-fantasia, ganham agora ares de angústia e preocupação, reavivando suas sensações estranhas
em relação à Marta.

Teria ela um amante? Imaginava ele. Sim, era a resposta. Lúcio logo descobriu as visitas
amorosas de Marta à casa de Sérgio Warginsky, outro amigo de Ricardo.

A descoberta representou para ele grande sofrimento e delírio: significou o momento de


abandonar Marta – a ela e ao seu criador, Ricardo.

Buscou então novamente Paris, onde estaria protegido, anônimo e na multidão


cosmopolita.

Muito relutantemente aceita a proposta de voltar a Lisboa a fim de acompanhar os ensaios


e de fazer ainda acertos na cena final de um drama que acabara de publicar. Por conta destes
acertos a peça acabou não sendo encenada e mais algumas de suas amizades acabaram
rompidas.

Lúcio caminhava por uma alameda, próxima ao teatro, em Lisboa, quando avistou Ricardo
Loureiro. Ambos procuraram motivos para terem se afastado tão inexplicavelmente e seguem
para a casa de Ricardo. Dirigem-se ao quarto de Marta, que, bela e enigmática, contempla-se no
espelho.

Segundo Lúcio, ao entrarem no quarto, Ricardo sacou uma arma e atirou contra a mulher, e
esta caiu, já morta. Entretanto, misteriosamente, diante de seus olhos, Marta desaparece ou
transfigurou-se em Ricardo e Ricardo é que acabou aparecendo morto ao chão. Lúcio foi preso,
julgado e condenado pelo crime. Não se defendeu da acusação, porque não achava ser possível
qualquer defesa, baseada nessa narrativa de desfecho tão inverossímil. Assim, cumpriu dez anos
de reclusão, após o que vem apresentar a sua confissão de inocência.

Sem dúvida, esse é ponto central para entendermos a obra: A Confissão de Lúcio: a
proposta do narrador em primeira pessoa contando a sua história. Lúcio – é aquele que detém o
jogo entre a verdade e a não-verdade, entre o real e o irreal, entre o verossímil e o inverossímil,
na tentativa de provar “sua verdade” , de afirmar alguma verdade, já que sua vida bem como a
do seu duplo – Ricardo – transcorreu no campo do fantástico e do miraculoso, do artístico se
sobrepondo à realidade propriamente, além de já se encontrar no passado desconhecido do
leitor.

O próprio nome do narrador-personagem (Lúcio = o que tem a luz, a clareza, a lucidez)


somado à constante insistência dele em dizer que está apenas enunciando os fatos, a realidade,
já nos leva, pelas vias do contrário, a desconfiar de suas “verdades” absolutas. A verdade o
tempo todo reafirmada corre o risco de perder a sua força, sobretudo, se vem apresentada em
primeira pessoa, manchada pela subjetividade. Junta-se a isso o fato de Lúcio ser um escritor:
inventor de realidades literárias.
Como se não bastasse, esse jogo estende-se aos personagens: todos possuem o estigma da
arte; todas as suas falas estão submetidas à vida artística, à construção estética, ao belo artístico,
desenhando uma relação apenas fictícia e poética com realidade factual.

Ricardo Loureiro, por exemplo, é um duplo complemento de Lúcio, figura angustiada, cheia de
medos e incertezas quanto aos limites de sua própria personalidade, daí Ricardo ser ao mesmo
tempo Marta – uma figura fantasmática, uma criação literária e poética do artista que pôde
materializar sentimentos e prazeres carnais femininos com Lúcio. Apesar da repugnância
primeira e dos contrastes morais que isso significava à época, Lúcio aceitou esse jogo de dupla
sexualidade e cumpriu o seu papel naquela “realidade” inventada pelo amigo.

Esse jogo de duplicidade, que se estende por toda a obra, quebra o realismo do texto e sua
verdade.

Primeiro, na afirmação da ficção sobre a realidade: Lúcio diz estar morto para a vida e para os
sonhos, entretanto, revela-se vivo e pronto para construir uma realidade literária.

Segundo, na dupla posição assumida por Lúcio diante do leitor, pedindo que se dê crédito à sua
verdade, mas ao mesmo tempo dizendo que não se importa com isso.

Terceiro, na dupla realidade apresentada no enredo – que caminha entre dois planos que se
interpenetram, o plano da realidade factual, do verossímil e o plano do fantástico, do
inverossímil.

Poesia
Texto I

Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,


Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído


Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,


Quase o princípio e o fim – quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…


– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

(Mário de Sá-Carneiro. In: Nicola, José de. Literatura Portuguesa: da Idade Média a
Fernando Pessoa, São Paulo, Scipione, 1994, p. 206)
Observar no texto:

a) A descrença em relação à vida;

b) O drama resultante do choque entre a realidade e o sonho;

c) As desilusões e o pessimismo;

d) As quadras em versos decassílabos rimados.

Texto II

Dispersão

Perdi-me dentro de mim


Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida


Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
(…)

Não sinto o espaço que encerro


Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim


Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
(…)

Tristes mãos longas e lindas


Que eram feitas p’ra se dar…
Ninguém mais quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…

Eu tenho pena de mim,


Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…
(…)

Perdi a morte e a vida,


E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço…

(Mário de Sá-Carneiro. In: Nicola, José de. Literatura Portuguesa: da Idade Média a
Fernando Pessoa, São Paulo, Scipione, 1994, p. 207)
Observar no texto:

a) A temática da busca do próprio eu perdido;

b) A introspecção e a tensão repassadas de egocentrismo, narcisismo e sentimentos auto-


destrutivos;

c) Os vínculos da poesia com a prosa registrada em A Confissão de Lúcio;

d) As quadras em versos redondilhos que perpassam a poesia popular portuguesa.

e) A pontuação como referência estética da dispersão.

Leitura Complementar

José Régio (1901/1969)

Cântigo Negro

“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,


Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…

A minha glória é esta:


Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,


Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós


Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…

Ide! tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.


Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!


Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!

(Régio, José. Antologia - Poesia de todos os tempos,


Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, pp. 50 a 51)

Florbela Espanca (1894/1930)

Texto I

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,


Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa tênue e esvaecida,


E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê…


Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,


Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
(Espanca, Florbela. In: Furtado, Carlos. Treze Poemas,
São Paulo, Roswitha Kempf, 1988)

Texto II

Fanatismo

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida


Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…


Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”


Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:


“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…”

(Espanca, Florbela. In: Furtado, Carlos. Treze Poemas,


São Paulo, Roswitha Kempf, 1988)

Exercícios

(VUNESP) Texto para as questões 1, 2 e 3:

Leia com atenção:

(…)
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!


Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrêmuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
(…)
O texto transcrito pertence ao poema de Álvaro de Campos Ode triunfal. Álvaro de
Campos, como se sabe, é um heterônimo de Fernando Pessoa, e a Ode triunfal constitui
um dos poucos textos do efêmero Futurismo na literatura portuguesa. No entanto, a Ode
triunfal torna-se muito importante, na medida em que nela se reflete o Manifesto do
Futurismo, de Marinetti. Assim sendo, responda às seguintes questões:

1. (VUNESP) Quais os segmentos do trecho transcrito da Ode triunfal que justificam


chamarmos-lhe um poema futurista?

2. (VUNESP) O que significa ser um heterônimo de Fernando Pessoa?

3. (VUNESP) Que outros heterônimos de Fernando Pessoa você conhece?

4. (FUVEST)

a) Situe Fernando Pessoa no tempo e no espaço.

b) O que, fundamentalmente, lhe caracteriza o processo criativo?

(FUVEST) Texto para as questões 5 e 6:

Aquela senhora tem um piano


Que é agradável, mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem…
Por que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos.
E amar a Natureza.

5. (FUVEST)

a) Qual a opinião do poeta em relação ao piano?

b) O que simboliza o piano no poema?

6. (FUVEST) Verifique se há no poema:

a) alguma característica que permita situá-lo em determinada estética literária;


b) algum elemento que evidencie ser o autor português ou brasileiro.

Em caso afirmativo, justifique sua resposta.

7. (FUVEST)

O poeta é um fingidor.
(Fernando Pessoa)

Qual a relação entre o verso acima e Poesia de Álvaro de Campos, Poemas de Alberto
Caeiro e Odes de Ricardo Reis?

8. (UNICAMP) Leia com atenção os fragmentos de poemas transcritos abaixo:

Fragmento 1:

Trova à maneira antiga

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

(…)

Que meio espero ou que fim


do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?
(Francisco de Sá Miranda, 1595)

Fragmento 2:

Dispersão

Perdi-me dentro de mim


Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
(…)
E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital…
(Mário de Sá-Carneiro, 1913)

Ambos os poemas tratam do tema das relações do “eu” consigo mesmo, mas o desenvolvem de
maneira diferente. Exponha em que consiste esse desenvolvimento diferenciado do tema, em
cada poema.

Tarefa

(UMC/SP) Texto para as Tarefas 1 e 2:

(…)
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostra-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas


É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:


As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas. (…)

T1. (UMC/SP) O texto, extraído de O guardador de rebanhos, mostra a forma simples e


natural de sentir e dizer do seu autor, voltado para a natureza e para as coisas puras. A
leitura do texto mais as informações acima permitem que se conheça o poeta a quem tais
versos são creditados.

Assinale a alternativa em que se encontra seu nome.

a) Fernando Pessoa ele-mesmo.


b) Álvaro de Campos.
c) Ricardo Reis.
d) Alberto Caeiro.
e) Camilo Pessanha.

T2. (UMC/SP) O autor do texto é considerado um dos maiores fenômenos da literatura


portuguesa, tendo sido representante e porta-voz de um grande movimento literário.
Assinale a alternativa em que se encontre o nome de tal movimento.

a) Modernismo.
b) Arcadismo.
c) Simbolismo.
d) Romantismo.
e) Humanismo.

T3. (UMC/SP) Assinale a alternativa correta a respeito das três afirmações abaixo:

I. Os heterônimos de Fernando Pessoa nascem de um múltiplo desdobramento de sua


personalidade.

II. Alberto Caeiro é o poeta que se volta para o campo, procurando viver em simplicidade.

III. Ricardo Reis é um poeta moderno, que do desespero extrai a própria razão de ser.

a) Apenas a I e a II estão corretas.


b) Todas estão corretas.
c) Apenas I e a III estão corretas.
d) Nenhuma está correta.
e) Apenas a II e a III estão corretas.

T4. (UMC/SP) A respeito de Fernando Pessoa, é incorreto afirmar que

a) não só assimilou o passado lírico de seu povo, como refletiu em si as grandes


inquietações humanas do começo do século.
b) os heterônimos são meios de conhecer a complexidade cósmica impossível para uma só
pessoa.
c) Ricardo Reis simboliza uma forma humanística de ver o mundo através do espírito da
Antigüidade Clássica.
d) junto com Mário de Sá-Carneiro, dirige a publicação do segundo número do Orpheu, em
1916.
e) a Tabacaria, de Alberto Caeiro, mostra seu desejo de deixar o grande centro em busca da
simplicidade do campo.

T5. (FUVEST)

I.
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.(...)

II.
Sonho que sou um cavaleiro andante
Por desertos, pois sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

As estrofes acima são, respectivamente, dos poetas:

a) Fernando Pessoa e Barbosa du Bocage.


b) Cesário Verde e Luís de Camões.
c) Guerra Junqueiro e Antero de Quental.
d) Sá-Carneiro e Luís de Camões.
e) Fernando Pessoa e Antero de Quental.

T6. (VUNESP) O texto a seguir pode ser tomado como exemplo ilustrativo do estilo de um
dos heterônimos de Fernando Pessoa:

Negue-se tudo a sorte, menos vê-la,


Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
Quero gozar as letras.

O heterônimo em questão é

a) Alberto Caeiro.
b) Ricardo Reis.
c) Bernardo Soares.
d) Álvaro de Campos.
e) Antônio Mora.

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