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03021
Introdução
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As respostas às perguntas motivadoras encontram-se atrás de costumes, crenças
populares, conhecimentos científicos da época, normas de etiquetas e valores religiosos.
Como tudo o que é medieval.
Hora do banho!
Uma perspectiva preconceituosa e mal (in)formada leva a crer que a Idade Média
foi um longo milênio de falta de asseio pessoal. Uma afirmação de D’HAUCOURT (1994,
p. 49) parece reforçar a ideia: “Como até recentemente em vários locais do interior francês,
as pessoas só se lavavam depois de vestidas e então limitavam-se a limpar as partes do
corpo que ainda permaneciam visíveis, ou seja, o rosto e as mãos”. Havia um motivo:
muitas pessoas dividiam o mesmo quarto e não havia toaletes ou espaços privativos.
Mas é preciso continuar a leitura: “O que não quer dizer que os homens da época
eram incapazes de uma toalete mais completa, que se fazia com o tronco nu, diante de um
balde d’água”. D’HAUCOURT informa ainda que nas cidades e nos castelos os habitantes
tomavam banho. Nos mosteiros, contudo, o banho era reservado aos doentes e
convalescentes – estes, porém, abstinham-se nos três dias seguintes a uma sangria.
A autora anota que, em 1292, havia mais de 26 banhos públicos em Paris,
destinados aos pobres, na volta de alguma atividade na qual se sujavam, como uma
viagem, uma caça ou um torneio. Eram abertos todos os dias, exceto domingos e feriados.
Assim que a água era aquecida, mensageiros saíam para chamar os “clientes”. Mas nunca
antes da aurora, quando ladrões poderiam atacá-los.
Além do banho, era praticada a depilação, tintura de cabelos e aplicação de
perfumes e ungüentos, especialmente a partir do século XIII.
ASHENBURG (2008, p. 59) afirma que “a cultura do banho romano desapareceu
lentamente, esmoreceu em várias épocas e locais do Império, que esfacelava-se”. Mas isso
não significou uma rejeição ao hábito, pois a autora logo acresce: “Ironicamente, à medida
que problemas políticos e econômicos tornavam difícil a manutenção de grandes termas,
bispos, papas e imperadores continuaram a construir e ampliar luxuosos aposentos de
banho nos palácios”. Informa ainda que, no século VI, o Bispo de Ravena (Vitor),
reformou as casas de banho junto ao palácio episcopal, decorando-o com mosaicos e
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mármore. No século IX, foi a vez do Papa Gregório IV redecorar as termas do Palácio
Laterano.
O banho, segundo a autora, tornou-se hábito aristocrático na Alta Idade Média. As
termas prejudicadas pela destruição dos aquedutos, em 537, pelos godos, nunca se
recuperaram. A diferente cultura germânica dos invasores, somada a uma mentalidade
cristã, teria sido a razão do declínio do banho, na Antiguidade Tardia e nos primeiros
séculos da Idade Média.
Mas é claro que um hábito não desaparece simplesmente. No Oriente romano, as
termas permaneceram:
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Os hammans, porém, contribuíram para a volta dos banhos públicos na Europa
Ocidental, de acordo com ASHENBURG (2008, p. 71-72). E ironicamente – na opinião da
autora – o Cristianismo, que havia atuado como força para fechar os banhos, séculos antes,
agora agia a favor, numa mudança de mentalidade: “o banho tinha mudado de caráter,
passando de novidade exótica a parte integrante da vida urbana ocidental”.
TOSSERI (2009), igualmente, desmente a ideia de que não havia o hábito do banho
no medievo:
A higiene não é uma descoberta dos tempos modernos, mas “uma arte
que o século de Luiz XIV menosprezou e que a Idade Média cultuou com
amor”, escreveu a historiadora Monique Closson, autora de numerosos
livros sobre a criança, a mulher e a saúde no período medieval.No estudo
de referência “Limpo como na Idade Media”, a historiadora mostra com
luxo de fontes que desde o século XII são incontáveis os documentos
como tratados de medicina, ervolários, romances, fábulas, inventários,
contabilidades, que nos mostram a paixão dos medievais pela higiene.
Higiene pessoal, da cozinha, dos talheres, etc.As iluminuras dos
manuscritos são documentos insubstituíveis onde os gestos refletem o
“clima psicológico ou moral da época (IDADE MÉDIA, 2009).
A historiadora parece defender que a prática do banho foi muito bem documentada,
e com riqueza de detalhes:
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todos os pormenores do banho do bebê: três vezes ao dia, as horas,
temperatura da água, perto da lareira para não pegar resfriado, etc.. As
famosas Chroniques de Froissart, em 1382, descrevem a bacia no
mobiliário do conde de Flandes, de ouro e prata. As dos burgueses eram
de metais menos nobres e as camponesas em madeira. A Idade Média
atribuía valor curativo ao banho, como ensinava Bartolomeu o Inglês no
Livro sobre as propriedades das coisas.
[...] Dentifrícios, desodorantes, xampus, sabonetes, etc., tirados de
essências naturais, são elencados nos tratados conhecidos como
ervolários feitos nas abadias. Historiadores como J. Garnier descreveram
com luxo de detalhes os altamente higienizados costumes medievais.
(idem).
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consumidos com as mãos, sem talheres. Documentos atestam isso: “Pinturas medievais
normalmente retratam uma jarra, uma bacia e uma toalha para secar as mãos em um canto
dos quartos. O encontro com uma pessoa que não lavava as mãos era algo digno de
observação”. De fato, no século X, Bruno (irmão do imperador Oto, o Grande), foi
criticado pelos seus hábitos:
DUBY (1990, p. 205) lembra que a toalete podia ser uma boa ocasião – a primeira
do dia – para a família se reunir: “toalete das crianças, vigiada pela mãe como o quer
Giovanni Dominici, toalete também dos adultos, nem sempre solitária nem reservada, ao
amanhecer”.
Não se descuidava dos bebês: “os manuais medievais de cuidados com o bebê
recomendavam banhá-los em água morna pelo menos uma vez, e às vezes três vezes ao
dia”. Tantos banhos se justificavam porque os bebês não se limpam sozinhos da urina e
fezes e, além disso, era bem mais fácil buscar água só para um bebê. Mas, obviamente,
camponeses não liam manuais de higiene, portanto seus hábitos eram diferentes.
Igualmente óbvio é que, na Idade Média, o mundo era menos odorizado. Tanto
assim que – anota ASHENBURG (idem, p. 70) - São Tomás de Aquino defendia o uso de
incenso para disfarçar o odor dos fieis nas lotadas igrejas.
De outro lado, Duby afirma que, entre os cuidados corporais, o banho era o mais
recorrente nas narrativas de Sone de Nansay, um herói de um romance do século XIII –
também citado em ASHENBURG (2008, p. 69). Ali, a prática adquiriu uma importante
função simbólica: “Na representação do privado, o banho assinala o espaço e o tempo da
intimidade, uma área espacial e um tempo reservados ao íntimo” (DUBY, 1990, p. 363). É
um ato solitário. Mas, por ser privado, levava à curiosidade e podia ser espionado, o que
provocou, com freqüência, o erotismo.
No romance occitano Flamenca (século XIII), os banhos públicos eram o foco da
narrativa. Descreve Duby (idem, p. 364): “Trata-se de banhos terapêuticos, dos quais um
letreiro, colocado em cada banho, esclarece as virtudes. Para ali afluem doentes, coxos e
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aleijados de todas as regiões [...]. Cada banho é fechado e isolado. [...] Ali as pessoas se
banham segundo a época da lua”. ASHENBURG (2008, p. 69-70) menciona o mesmo
romance.
O banho figurava ainda como parte de um rito de acolhida, signo de conforto
corporal. Duby cita: “a filha do conde de Anjou é recolhida com seu filho pela mulher do
‘prefeito’, que manda imediatamente lhe preparar um banho em uma tina, e já no Chevalier
à La charrette, banhos e massagens são habilmente dispensados a Lancelot pela donzela
que o libertou” (idem).
Conforme o autor, as pessoas se lavavam de duas maneiras: na água do banho ou no
vapor da sauna, sozinhas ou em grupo. Em casa, era preparado no quarto, numa tina, perto
do fogo que aquecia a água. Era um signo – e dever – de hospitalidade, como mencionado.
Neste espírito, alguns anfitriões colocavam pétalas de rosas ou outras plantas odoríferas na
água.
Duby (idem, p. 593) fala de um poema épico do final do século XIII, atribuído ao
austríaco Siegfrid Helbling, que descreve “com grande luxo de detalhes” todas as fases do
banho de vapor que um cavaleiro e seu criado tomam. Era a versão medieval do que hoje
se denomina spa, com roupões, pedras aquecidas, massagens, estímulo à sudorese,
relaxamento e repouso, entre outros requintes.
“Quanto aos banhos das casas privadas, são muito chiques”, registrou Baldassore
Cossa, em 1416 (idem, p. 594). Mais uma vez, uma função socializante foi anotada, pois os
banhos tinham áreas comuns para homens e mulheres, mas com telas para separá-los.
Entretanto, pequenas janelas garantiam que pudessem conversar, beber juntos e até se tocar
– como era hábito.
Em alguns casos, horas eram perdidas na água: “a cada dia, [homens e mulheres]
entram no banho três ou quatro vezes, passando assim a maior parte do dia, cantando,
bebendo ou dançando” (idem, p. 596).
Na Idade Média, o banho era espiritualizado, quando terapêutico:
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Hildegard de Bingen (1098-1179) - mística, compositora, conselheira de reis e
papas, e também médica - incluía o banho em suas prescrições: “Hildegard receita ainda a
barba-de-júpiter contra a esterilidade masculina e a escarola para “acalmar o desejo
amoroso do homem”. A escarola deve ser administrada na água do banho. Para as
mulheres menstruadas, infusão de camomila” (CUSTÓDIO, 2009).
Em sua Summa Teologica, São Tomás de Aquino também recomenda o banho, ao
lado de outras medidas terapêuticas. Convicto das relações entre matéria e espírito, o
doutor escolástico o prescreveu no combate à acídia, conforme relata LAUAND (2004):
Sabe-se também que, poucas horas antes de sua consagração, um futuro cavaleiro
tomava um banho, como parte da ritualística de ordenação. Como SANTOS (2008, p. 15)
comenta:
No século XI, o ritual punha em evidência a influência da igreja: o
sacerdote benzia a espada e lembrava que devia servir à igreja, às viúvas,
aos órfãos e a todos os servidores de Deus contra a crueldade dos pagãos.
Ainda se incluía no ritual incluía a purificação com um banho e o
cavaleiro recebia uma camisa de linho, símbolo da pureza e uma túnica
vermelha, símbolo do sangue que deveria verter em defesa do ideal
cristão, elevando-o a um plano de dignidade espiritual.
De acordo com ASHENBURG (2008, p. 79), por volta de 1430, John Russel –
administrador sob as ordens do Duque de Gloucester – escreveu um Livro de Educação e
Formação, para servir como manual de etiqueta e instrução para pajens e servos. Os temas
vão desde o manuseio dos alimentos (só com a mão esquerda) até cutucar o nariz
(definitivamente proibido).
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As instruções, naturalmente, também falavam do banho. Usava-se uma banheira,
forrada com lençóis, ervas, esponjas, flores, água de rosas. “Embora não haja menção a
nenhum sabão ou sabonete (o primeiro era usado para lavar roupas, mas raramente o corpo,
na Inglaterra do século XV), este é um banho quente, diferente dos medicinais” (idem, p.
80). O referido banho medicinal previa o uso de ervas como malva, confrei e várias outras,
todas juntas. “Deixe que ele [o mestre cavaleiro] permaneça na água mais quente que
conseguir suportar, e seja qual for a doença que tiver, será curado” (idem, p. 81).
Com o passar o tempo, os cuidados higiênicos, incluindo o banho, começaram a
fazer parte de um conjunto sistematizado de saberes sobre o assunto. Assim registra Duby
(1990, p. 584): “É a idéia central do grande tratado de Konrad Von Megenberg, Das Buch
der Natur, datado de 1349, que recomenda um estilo de vida corporal perfeitamente
compatível com a interioridade. Dieta, movimento, ar livre, banhos freqüentes, mens sana
in corpore sano”.
ASHENBURG (2008, p. 75) menciona outros documentos:
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Considerações Finais
Mais uma vez, uma pesquisa responsável, em fontes confiáveis, é capaz de afastar
as “trevas” injustamente atribuídas à Idade Média. Apesar de reconhecer que o banho,
como hábito de higiene, sofreu seus períodos de rejeição e foi até objeto de superstições,
por outro lado ele chegou uma prática quase cotidiana, e de considerável complexidade, do
ponto de vista social e antropológico.
Perfeitamente digno de um estudo histórico – seja História dos costumes, das
mentalidades ou da saúde pública – o banho pode revelar surpresas. O que não é
surpreendente é que ele tenha sido tão complexo, culturalmente falando, a ponto de servir
de hábito de higiene, momento de ócio e lazer, reunião familiar, diálogos e
relacionamentos sociais, terapia medicinal, ritual de acolhimento, prática de sexo,
ostentação, desenhos ilustrativos, e mote para enredos narrativos.
Um longo parágrafo de Duby (1990, p. 598) serve de fechamento para este estudo.
Ele inicia dizendo que “o corpo no banho desperta outras ressonâncias no final da Idade
Média. A Renascença não é apenas uma visão espacial da felicidade, é também visão
profunda de uma caminhada interior”. E cita a obra Badenfahrt (1514), do poeta de
Estrasburgo Thomas Murner, que é uma alegoria da conversão ao apelo de Cristo, através
da figura do mestre do banho e sua trombeta:
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Que o batismo ressuscita.
Pois Deus nos concede em Sua graça
Que nenhum pecado original nos esmague mais.
Isso foi realizado por Deus tão abertamente
Que o mundo inteiro o viu:
Foi o próprio Deus quem nos chamou
para o banho ao som da trombeta.
REFERÊNCIAS
ASHENBURG, Katherine. Passando a limpo – o banho: da Roma antiga até hoje. São
Paulo: Larousse, 2008.
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portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
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Internacional de Estudos Antigos e Medievais: O Conhecimento do Homem e da Natureza
nos Clássicos. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 16 a 18/ 09/ 2009.
D’HAUCOURT, Geneviève. A vida na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
DUBY, George (org.). História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua
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http://idademedia.wordpress.com/2009/01/09/limpo-como-na-idade-media-epoca-que-
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LAUAND, Jean. O Pecado Capital da Acídia na
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- Univ. Fed. do Rio Grande do Sul, setembro de 2004). In
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LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de
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REGRA do glorioso patriarca São Bento. Disponível em http://www.osb.org.br/regra.html
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SANTOS, Josinete Pereira dos. Da “Comédia Novelesca” Barroca ao cavaleiro Don
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Acesso em 20.08.2011.
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