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Este texto foi escrito com o objetivo de refletir sobre alguns aspectos do papel da
imprensa e sua relação com a democracia em momentos de crise no Brasil dos anos de
1960. Para isso, buscamos primeiro identificar a posição do jornal Folha de São Paulo
no mês de março de 1964, diante dos acontecimentos que produziram o golpe civil-
militar. Para isso, fizemos referência aos temas enfatizados pelos editoriais do periódico
naquele contexto, que tradicionalmente são o espaço no qual seus editores/proprietários
apresentam a sua visão sobre acontecimentos eleitos como os principais do momento e
que afetam as relações políticas e sociais de alguma forma, afetando interesses de
diferentes setores sociais.
Através da análise dos editoriais buscamos, também, refletir sobre como parte da
imprensa se comportou naquele contexto, verificando se o jornal posicionou-se de
forma legalista ou se ele se integrou aos demais grupos civis e militares golpistas
(JEANNENEY, 2003) com a construção de um ambiente favorável à ruptura
institucional (BECKER, 2003).
Derivando do objetivo anterior, buscamos identificar a cultura política que o
periódico Folha de São Paulo representava, defendia e dava eco. Cultura política
entendida como
(...) uma leitura do passado histórico — com a qualificação positiva ou
negativa de fatos, momentos e personagens — compõe-se com
elementos de base ideológica e ou filosófica; com definições
institucionais traduzidas no plano da organização política do Estado;
com idealizações de concepções acerca da ―boa sociedade‖; com
utilizações de uma linguagem política e de um vocabulário de
símbolos, ritos, gestos e representações visuais que confluem para
uma mesma visão de mundo a ser partilhada. As culturas políticas,
assim, constituem, em determinados momentos históricos, um
conjunto homogêneo, no qual os componentes são estritamente
solidários entre eles, devendo, por isso, ser considerados um todo
coerente, não obstante o fato dos trabalhos dos historiadores
constatarem todo o tempo a existência de vários sistemas de
representação coerentes, rivais entre si, que impregnam a visão que os
homens têm da sociedade e do lugar que nela ocupam e de suas
condutas políticas. Esses sistemas de representação seriam enraizados
na cultura geral da sociedade considerada e lhe seriam solidários
(DUTRA, 2002, p. 24-25).
2
Conforme afirmou o ex-ministro da Justiça Armando Falcão, no conhecido documentário Muito além do
Cidadão Kane (1993), O Globo foi até mais fiel do que o esperado.
Primeiras semanas
Março de 1964 foi o mês derradeiro do governo Jango e a exacerbação da crítica
feita pela oposição política acompanhou esta trajetória. A Folha de São Paulo assumiu
esta posição, quando em diversas oportunidades o jornal fez observações sobre a
presença de comunistas/subversivos no governo, relacionando-a com a incapacidade de
governar e com a impossibilidade da realização das reformas de base. No dia 1º de
março o editorial da Folha de São Paulo teceu a seguinte análise:
(...) O governo que aí se acha instalado no poder, fazendo por vezes,
mediante alguns de seus porta-vozes, propaganda nitidamente
subversiva, é um governo eminentemente trabalhista. Ou assim se
diz. (...) O que ressaltamos é, pura e simplesmente, a demonstração
que mais uma vez se dá ao público de que, em verdade, toda essa
máquina, tão cara e tão ineficiente, está muito longe de atender aos
elevados fins para que foi criada, presa que se acha da mais miúda
política partidária.
Enquanto assim for, enquanto o governo ―trabalhista‖ não conseguir
endireitar sequer esse setor básico do trabalhismo, como poderá
esperar que o povo acredite no que ele fala a respeito da reforma
agrária, de reforma urbana, de reforma de tudo, inclusive a
Constituição? (FSP, 01 março de 1964, p.4). 3
3
Os grifos nos editoriais são meus.
Novamente o periódico deu ênfase à presença comunista no governo.
Paradoxalmente o jornal sinalizou para a possibilidade da ausência de Jango no
Comício, torcendo para que o presidente da República se afastasse, mesmo que
temporariamente, das ―forças vermelhas‖. Outra possibilidade para a compreensão do
editorial talvez seja a de uma hipotética intenção do periódico em enviar um recado ao
presidente para que, se não participasse no comício, a vinculação constante entre eles
seria arrefecida.
Também é importante notar, neste editorial de março, o aparecimento dos
militares na cena política. Conforme o jornal, o comício seria promovido pelos
comunistas, cabendo às Forças Armadas garantir a segurança. Em uma leitura mais
ampla, temos as Forças Armadas, defensoras da Constituição, dando cobertura a um
grupo político ilegal, corroborando a ilegalidade constitucional.
No editorial de 6 de março, mais menções à presença comunista nas fileiras do
governo, à consequente impossibilidade de reformas e à radicalização das manifestações
políticas em diversos estados do Brasil. No caso, o estado de Pernambuco, na época
governado por Miguel Arrais,4 era lembrado com alguma frequência como exemplo de
governo com a infiltração subversiva e desordem.
Radicalização: A radicalização das posições políticas no Brasil está
se aproximando de limites sumamente perigosos, como os recentes
acontecimentos em Pernambuco acabaram de demonstrar. (...) Aí
estão o desvirtuamento dos sindicatos, as falsas organizações sindicais
que montaram uma fábrica nacional de greves, a infiltração comunista
na administração federal. Aí está o abuso que essas correntes fazem de
certos conceitos, dos quais pretendem dispor segundo conveniências:
só eles são povo, só eles são nacionalistas – ou só é povo e
nacionalista quem os aplaude e apoia. Aí está a luta pelas chamadas
reformas de base totalmente descaracterizada e transformada em
pretexto para agitação e subversão.
Toda a ênfase, todavia, que precisa ser empregada na condenação ao
extremismo de esquerda, não deve nem de longe ser transformada em
condescendência com o extremismo de direita. Não se confunda a
luta contra o desvirtuamento das reformas de base, com a luta
contra as reformas de base. Este jornal, por exemplo, orgulha-se de
ter patrocinado a realização em São Paulo, há um ano, do Congresso
Brasileiro Para a Definição das Reformas de Base, justamente com o
objetivo de dar conteúdo prático à pregação reformista. (...) Mais
vezes merecem críticas os radicalismos de esquerda que os de direita.
É que eles são mais agressivos, mais provocadores, mais danosos ao
país. Recebem hoje, é inegável, o beneplácito do governo federal e por
isso são mais perigosos. A cada dia se tornam mais ousados nos
4
Alguns personagens eram identificados pelo jornal como comunistas e consequentemente representantes
da desordem, e continuamente eram ―homenageados‖ pela Folha De São Paulo, dentre eles: Miguel
Arrais, Leonel Brizola e Darci Ribeiro.
ataques à iniciativa privada, por exemplo, cuja destruição significaria
a ruína do regime democrático. Os próprios excessos que nos últimos
dias podem ser apontados em setores de opinião tidos como
moderados (vide os acontecimentos de Minas Gerais) são em grande
parte devidos ao recrudescimento da provocação das esquerdas. E se o
país olha com intranquilidade para Pernambuco, neste momento, por
ter ali a radicalização atingido níveis porventura ainda não vistos entre
nós, deve-se ter em conta que é aquele Estado o preferencialmente
usado pelos extremistas de esquerda para incentivar a luta de classes,
explorar ressentimentos e jogar brasileiros contra brasileiros (FSP, 06
março de 1964, p.4; grifos meus).
O Comício
Visto que as pressões da Folha para a não realização do comício não
funcionaram, só restou ao jornal tecer análises da forma com que lhe era peculiar:
Comício-provocação: Resultaram vãos todos os apelos dirigidos ao
presidente da República para que usasse de sua influência sobre os
promotores do comício marcada para esta tarde na Guanabara, no
sentido de cancelar a reunião ou ao pelo menos atenuar-lhe os
inquietantes aspectos que a revestiram.
(...) É com dolorosa sensação de perplexidade que se observa, por
assim dizer, uma ação conjunta do Partido Comunista e do Exército,
de organismos sindicais comunizados e das nossas Forças Armadas.
Aos primeiros CGT, UNE, o próprio PC, etc. coube a organização da
concentração; às Forças Armadas de terra, mar e ar, cabe garantir-lhe
a realização. Vinculados aos primeiros estarão quase todos os oradores
e por isso não é temerário prever insistentes ataques às instituições
que às Forças Armadas cumpre defender. A que vexatória situação
foram elas conduzidas!
(...) O radicalismo de esquerda, cuja fina flor deve comparecer ao
palanque, parece empenhado em atiçar o radicalismo de direita para a
prática de atos insensatos. A provocação vai além, e atinge os setores
descomprometidos com os extremismos, e interessados apenas na
preservação da ordem e das instituições.
(...) Este deverá reunir bastante gente, entre a pelegada de vários
Estados, cuidadosamente arrebanhada para esse fim, a claque
industriada para gritar Jango-65, e os milhares de soldados
mobilizados para ―garantir‖ o comício. É duvidoso que compareçam
aqueles que honesta e seriamente se preocupam com os verdadeiros
problemas nacionais. Estes (e entre eles se incluem muitos que estão
de acordo com as próprias teses do governo) preferirão assistir de
longe o espetáculo, que lembra as maciças concentrações populares
organizadas e dirigidas para sustentar ditadores ou aspirantes a tal.
(FSP, 13 de março de 1964, p.4; grifo meu).
Diversas observações podem ser feitas sobre a publicação: ao que nos pareceu, a
Folha havia estabelecido como evento-limite o Comício da Central do Brasil, a partir do
qual se intensificou o tom das acusações ao governo, a Jango, à situação econômica e
política ou a qualquer indivíduo ou organização favorável ao governo.
Neste texto, em especial, se articularam os diversos temas de crítica ao governo.
Primeiramente - o ponto central do programa golpista - a crítica às reformas de base.
De acordo com o jornal, o governo não as apresentava com a clareza devida, sendo
tratadas por ele de modo leviano, desonesto e demagógico. O jornal continuava
afirmando seu apoio à necessidade de reformas, desde que propostas legitimamente pelo
Congresso Nacional e não às reformas capitaneadas por Jango.
No mesmo editorial, Jango foi acusado de utilizar o dinheiro público para a
realização do comício, financiando desde o pagamento do transporte até a presença da
multidão. Com isso, o presidente também teria demonstrado, de acordo com o jornal,
outra de suas intenções: sua perpetuação no poder.
O jornal também lançava mão de outro argumento que seria importante na
articulação das oposições para a deposição de Jango: as reformas anunciadas pelo
presidente da República desmoralizavam a Constituição e o Congresso Nacional.
De acordo com a Folha, havia na Constituição mecanismos através dos quais
uma reforma poderia ser proposta. E o Congresso Nacional poderia encaminhá-la. Mas
da forma como Jango o fazia significava que a casa legislativa perderia suas
prerrogativas essenciais de proposição de leis. O presidente, portanto, ameaçava o
legislativo.
A alternativa para a proteção da Constituição e das instituições, conforme a
Folha, seria a presença e a intervenção das Forças Armadas, que assumiriam o papel
protagonista em 31 de março de 1964. Havia, como já dito, outros jornais que
clamavam há mais tempo por uma interferência deste tipo, mas pareceu que nesta data,
14 de março, o jornal e o grupo paulista que ela representava,5 deu o sinal verde para
5
Quando falamos em grupos com os quais o jornal se identificava, pensamos em camadas da população
que compartilham uma cultura política comum e que eram representadas pelo periódico como modelos a
serem seguidos. Dentre esses modelos sociais localizamos o empresário que deseja produzir; o
esta possibilidade. Se isso foi determinante ou não para o golpe não é possível afirmar,
mas é concebível inferir que este grupo, a partir de então, sinalizava para o apoio à
intervenção dos militares.
Em 17 de março foi publicado novo editorial, referindo-se às reformas e ao
Congresso e, em especial, à proposta de adoção do mecanismo do plebiscito para a
aceleração de medidas de interesse popular.
Reformas e Congresso: Entre as medidas que o presidente da
República solicita ao Congresso Nacional, na mensagem que lhe
encaminhou no ensejo da abertura dos trabalhos da presente
legislatura, há algumas dignas de acatamento, outras discutíveis,
terceiras merecedoras de pronta e decidida repulsa. Entre as
primeiras: providências legislativas destinadas a facilitar a
reforma agrária, dentro, por exemplo, do princípio de que “a
ninguém é lícito manter a terra improdutiva, por força do direito
de propriedade”, definido pelo sr. João Goulart. Entre as segundas:
as emendas constitucionais sugeridas para outorgar o direito de
voto ao analfabeto e tornar elegíveis os alistáveis, no caso
sargentos e praças. Entre as terceiras: a revogação do princípio da
indelegabilidade dos poderes e o recurso da consulta ao povo, isto
é, plebiscito, “caso se deixe abrir uma brecha entre as aspirações
populares e as instituições responsáveis pela ordenação da vida
nacional”.
Em outras palavras, estas últimas providências o Congresso não as
pode sequer tomar como objeto de deliberação, a não ser que deseje
proclamar a própria falência e assinar seu atestado de óbito. (...) O que
desejamos são reformas dentro da lei e da ordem. A atuação do
presidente da República não parece conduzir a isso; a do Congresso
parece conduzir a nada, isto é, à manutenção da situação atual, sem as
modificações que se impõem. Em face do desafio que lhe é lançado,
deve o Legislativo atentar para os seus deveres reformistas – usemos o
termo da época – contrabalançando, com o exame sereno dos
problemas, o tratamento tumultuado e até subversivo que o Executivo
lhes tem dispensado. Este jornal, que há mais de um ano promoveu
um Congresso Brasileiro para a Definição das Reformas de Base,
sente-se à vontade para reclamar a execução delas, sem traumatismos
para a nação, como é perfeitamente possível.
(...) Que o Congresso, em face da mensagem governamental, se
lembre de que é um poder soberano, do qual se esperam decisões
livres e dignas. Se o problema é dialogar com o Executivo, não se
recuse a isso; recuse-se apenas a permitir que o diálogo se transforme
num monólogo (FSP, 17 de março de 1964, p.4; grifos meus).
trabalhador que deseja trabalhar ordeiramente; a camada média urbana paulistana que saiu às ruas em
defesa das ―tradições nacionais‖ - o catolicismo e o espírito pacífico do povo -, e da Constituição,
defendendo, na análise da Folha, o país da ameaça comunista.
Neste texto, ficou clara uma artimanha jornalística6 recorrentemente usada pela
Folha. O jornal sempre se colocava como defensor das reformas de base, nominalmente
da reforma agrária, assinalando, contudo, a sua discordância ―apenas‖ em relação à
forma como seria encaminhada. Em especial, se ela fosse por meio do plebiscito, isso
descaracterizaria o papel do Legislativo, concentrando poderes excessivos nas mãos do
Executivo. Além disso, o perigo apontado estaria na postura do presidente da República,
em muitos casos, ―subversiva‖ e ―demagógica‖, e no uso que ele faria do povo, que na
visão do jornal não estava pronto para intensificar sua participação ainda mais através
da forma plebiscitária.
Aliás, sobre o tipo de democracia imaginada pela Folha, o jornal defendia-a de
maneira formal, política, característica do liberalismo do século XIX que, conforme
José Murilo de Carvalho, seria uma democracia marcada fundamentalmente pela
participação popular tradicional, essencialmente no momento do voto, sem direito a
contestações posteriores, como se o sistema representativo e partidário funcionasse
perfeitamente (CARVALHO, 2002).
Na publicação do dia 17 de março de 1964, um segundo texto colocava em
posições opostas o presidente da República e as Forças Armadas 7, e assinalava a
dificuldade de entendimento entre eles:
Soberania: Na abertura dos cursos da Escola Superior de Guerra, ao
falar da “noção nacional” pretendeu o sr. João Goulart ensinar aos
brasileiros de hoje, e especialmente aos que seguem o curso da
Escola Superior de Guerra, assim como aos oficiais que por dever
de ofício lá se encontravam a ouvi-lo, que a soberania não é apenas
territorial e que a função das Forças Armadas não é defender apenas o
território do país.
Ora, quem lê a Constituição Federal – e tanta gente importante
deveria fazê-lo, neste Brasil – aprende que a função das Forças
Armadas é a defesa da Pátria. E Pátria, sabem até mesmo as
crianças de colégio, não é apenas o território, mas o seu povo, as
suas tradições, as suas riquezas naturais ou produzidas pelo
homem.
(...) A soberania só existe verdadeiramente se dão ao povo os
elementos essenciais para que ele possa realmente trabalhar; quando o
país, mercê de sua capacidade técnica e da qualidade de seu trabalho,
pode dialogar com os outros países em pé de igualdade, a igualdade
6
Dois editoriais, um sobre os aluguéis (FSP, Primeiro Caderno, 27 de março de 1964, p.4) e outro sobre a
autonomia universitária (FSP, Primeiro Caderno, 30 de março de 1964, p.4) demonstram ainda mais
como as reformas de base incomodavam o jornal.
7
A página dedicada ao editorial era um pouco diferente do espaço dedicado a ele hoje. Ela estava
dividida em alguns textos de tamanhos distintos e algumas pequenas notas. O texto principal era o maior
e o primeiro texto, localizado no centro e no alto da página, mas, como disse, toda a página do editorial,
como se espera, era povoada de textos de caráter opinativo.
que resulta, no plano político, da qualidade e da capacidade do povo
como trabalhador.
A soberania não se constrói com palavreado, mas com trabalho. E
trabalho de qualidade, resultante do cultivo de boa ciência nas
universidades, da técnica nas escolas adequadas de vários níveis e,
também, do ensino sincero dos padrões de vida democrática, feito nas
escolas e também construído pelo exemplo dos bons administradores.
Mas isto é muito sabido. Sabem-no muito especialmente os oficiais
de nossas Forças Armadas, tão atentos aos problemas essenciais
do Brasil (FSP, 17 de março de 1964, p.4; grifos meus).
A Folha, neste editorial, pareceu buscar tensionar ainda mais as relações entre
Jango e as Forças Armadas, assinalando a clara divergência entre elas e o presidente.
Divergência principal relacionada à emergência da participação e discussão política
dentro das Forças Armadas, algo para a visão de democracia do jornal, inaceitável. Para
o periódico, Jango e os comunistas eram os evidentes responsáveis por incitar
movimentos desta natureza.
Além disso, foi possível identificar a reiterada apresentação de um projeto de
governo, coincidente em diversos pontos com o que viria a ser a ditadura: a ênfase dada
a um pretenso papel apolítico das Forças Armadas que, segundo a Folha, era a
defensora das instituições, ideia que como se comprovou mais tarde, pavimentou o
caminho para o golpe de 31 de março. Também cabia aos militares a defesa da
soberania, o que significava dar ao povo as condições adequadas para o trabalho e
ponto, sem qualquer forma ou possibilidade de participação política além daquela
oferecida pela democracia política, o que seria a tônica nos anos posteriores da ditadura
civil-militar.
8
―Movimento organizado no início de 1964 com a finalidade de sensibilizar a opinião pública contra as
medidas que vinham sendo adotadas pelo governo João Goulart. Congregou setores da classe média
temorosos do ‗perigo comunista‘ e favoráveis à deposição do presidente da República. [...] O movimento
consistiu numa série de manifestações ou ‗marchas‘, organizadas principalmente por setores do clero e
por entidades femininas. A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março‖ de 1964.
(DHBB, 2001, p.3551-2).
insurretos, que se afirmam integrados nos movimentos reformistas
comandados pelo Executivo federal.
E a solução encontrada foi um ―acordo‖, que recebeu o beneplácito da
Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais e do todo-poderoso
CGT. É difícil entender o que tem essa entidade sindical espúria com
problemas militares. No Brasil de nossos dias, entretanto, está-se
vendo que ela tem mais força ainda do que se poderia imaginar...
O fim aparente da crise está sendo apresentado, por fontes palacianas,
como vitória pessoal do sr. João Goulart. Oferecendo ao CGT e
anexos a cabeça do ministro da Marinha que se empenhava em
preservar tradições disciplinares dessa arma, e reconduzido ao
comando dos Fuzileiros Navais o conhecido alm. Aragão, ―enfant
gaté” das esquerdas, o presidente teria atalhado o desdobramento da
crise. Uma vitória sim, mas conseguida ao preço de compactuar com a
insubordinação e de promover rebeldes à condição de quase-heróis.
Uma vitória que deixa abertas portas para que rebeldias semelhantes
se repitam.
A nação não tem direito de iludir-se mais. A vaga insurrecional que
engolfa o país já atingiu também as Forças Armadas. O princípio da
autoridade, cuja deterioração se processa de cima para baixo, dando os
maiores responsáveis pelos destinos nacionais reiterados exemplos de
menosprezo a ele, está seriamente abalado nas corporações mesmas
que se destinam a assegurar a lei e a ordem. Outro dia foi rebelião dos
sargentos em Brasília, aos quais se cuidou de conceder anistia antes
mesmo de apurar a inteira extensão de seus atos; agora os marinheiros
e fuzileiros navais. Amanhã, o quê?
A falta de pulso na repressão a esses movimentos conduz a sua
repetição: a indisfarçável simpatia do governo federal pelos rebeldes
significa-lhes precioso estímulo. Em relação à área militar, a ação das
autoridades da República tem contribuído poderosamente para jogar
subalternos contra comandantes. Só faltava, talvez, erigir o CGT em
árbitro de problemas estritamente afetos às Forças Armadas.
Nem isso, infelizmente, falta mais (FSP, 29 de março de 1964, p.4).
O momento era, sem dúvida, delicado, e mais uma vez era explorado pela Folha
numa direção em que pouco importava a normalidade institucional e a continuidade da
democracia no país. O jornal parecia estar convencido de que chegara a hora de preparar
a população para que ela compreendesse a necessidade da tomada de determinadas
atitudes que freassem os chamados desmandos e o descontrole do governo. A
penetração comunista e sindicalista havia chegado ao último lugar protegido pelo ―bom
senso‖ e pela ―tradição‖; havia chegado às Forças Armadas, que agora haviam tido um
dos pilares de seu funcionamento abalado, a quebra da hierarquia. Coincidentemente,
este seria o argumento usado pelos militares na justificativa do golpe (CASTRO;
D‘ARAÚJO, 1998).
Em 1º de abril o jornal fez menção ao discurso de Jango para os sargentos no
Automóvel Clube, realizado no dia 30:
Discurso infeliz: (...) mais infeliz ainda foi a manifestação
presidencial de anteontem, em que o sr. João Goulart parece haver
desejado lançar um desafio a toda oficialidade das corporações
militares.
(...) No momento em que o país atravessa uma das mais sérias crises
de sua história, decorrente da quebra de disciplina da Armada; no
momento em que se tornou patente a interferência das mais espúrias
forças de pressão até mesmo na escolha dos mais altos chefes
militares; no momento em que se acham acirrados ao máximo os
ânimos dos integrantes dos escalões menos graduados das Forças
Armadas em consequência de manobras cuja intenção é fácil perceber,
qualquer governante ponderado trataria de transferir ou adiar
manifestações que pudessem reacender ou entreter a chama da
indisciplina, ou ainda atribuir, pelo menos aparentemente, a um
determinado escalão das Forças Armadas mais valor e mais foros de
confiança do que os escalões superiores.
Como é comum nos pronunciamentos do presidente da República, não
faltaram desabaladas promessas, especialmente de natureza salarial
[discutia-se aumento de 100% para o funcionalismo federal] sem a
menor indicação, porém, de sincero empenho em combater a inflação,
que é a arrasadora dos salários.
Mais forte, porém, do que esse anúncio de benefícios salariais foi a
insistência nas reformas de base, as reformas a que nem o
presidente nem os seus assessores até agora deram conteúdo. Usou
delas, como tem repetidamente feito, pura e simplesmente como aríete
contra a Constituição, que ele deseja reformar a qualquer preço, como
se a ele coubesse, dentro da ordem constituída, alterar a Constituição.
Não poderia faltar, é óbvio, o condimento do ataque aos privilegiados.
Não aos privilegiados reais, que não hão de faltar neste país, em todos
os setores, sem excluir vários líderes que engordam à custa dos
trabalhadores. Mas contra todos aqueles brasileiros que lutam por
situações democráticas e legais, pois estes é que são hoje os
―privilegiados‖, termo não à toa criado pelos filósofos comunistas que
orientam as falas presidenciais.
O mais lamentável, porém, no discurso presidencial foi o tom em que
falou aquele que, por sua posição mesma no cenário político, deveria
representar a ponderação e o espírito de concórdia e apaziguamento.
Era o tom de quem deseja, inflamando sargentos e suboficiais, cindir
de maneira irreparável as Forças Armadas. Era o tom de quem, tendo
por máximo dever preservar as instituições, jogava, numa última e
decisiva cartada, o destino delas (FSP, 1 de abril de 1964, p.4).
Considerações finais
O jornal Folha de São Paulo apresentou, por meio de seus editoriais, uma visão
peculiar, limitada e restritiva da democracia, segunda a qual eram os militares os
guardiães da Constituição e da postura política conservadora, na qual cabia ao
Congresso legislar – produzir leis, e quem sabe reformas -, ao Executivo administrar e
ao povo trabalhar de forma ordeira. Assim, quando Jango propôs a realização de um
plebiscito sobre as reformas, o periódico alertava que a participação mais direta era um
risco à democracia, numa lógica muito própria ao conservadorismo e ao pensamento
reacionário, para a qual o ―povo‖, a ―arraia miúda‖, nunca estaria suficientemente
preparado, em que mais democracia corresponderia, na verdade, a menos democracia.
O mês de março de 1964 foi explosivo, como visto. O jornal construiu uma
leitura própria do contexto e da tentativa de implantação das reformas de base, tendo
como método a constante denúncia de ameaça à Constituição, o perigo à ordem que
representava o movimento dos sargentos, marinheiros e fuzileiros navais e a constante
influência dos comunistas e do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o que serviu
para articular a justificativa para a entrada definitiva dos militares na cena política, num
primeiro momento considerados protetores da Constituição e da democracia, e, às portas
do golpe, tal qual o Poder Moderador do Império, como fiadores da ordem e da paz para
os ―brasileiros‖.
A Folha de São Paulo, via de regra, não apresentou claramente suas posições e a
de seu grupo político, nem sua relação com as Forças Armadas. Para estes era
inaceitável o ponto das reformas que permitiria aos militares de baixa patente (soldados,
cabos e sargentos) tornarem-se candidatos às eleições e votarem. Mas atacar estes
pontos diretamente, assim como outros aspectos mais populares da reforma, como a
reforma agrária e urbana, talvez cobrasse um preço excessivamente alto em relação a
possíveis apoios de setores sociais ao jornal. Em outras palavras, seria menos custoso
para o periódico, e seu grupo político e mais palatável para os seus leitores atacar e
derrubar Jango por um pretenso desrespeito à Constituição e incentivo à quebra da
disciplina do que pela proposição das reformas. Por outro lado, a resistência a elas
unificou civis e militares na direção do golpe civil-militar de 1964.
A Folha de São Paulo se utilizou da demonização dos comunistas para marcar
sua posição anti-Jango e para aglutinar as diversas forças conservadoras que, no período
(MOTTA, 2002), agiam aberta e claramente para barrar uma pretensa ameaça vermelha,
independente se isso representasse o enfraquecimento da democracia e a barreira para a
discussão de certos projetos de desenvolvimento para o país, debate com o qual,
definitivamente naquele momento, o jornal não estava preocupado.
Além disso, pode-se notar que os grandes jornais da época construíram uma
pauta política homogênea e única (REIS, 2014, p.68). As imagens de um governo em
crise, povoado de comunistas e incapaz de exercer a sua função pautaram repetidas
vezes o noticiário e os editoriais, na forma de informação isenta, mergulhando-se num
ambiente de crise constante e com a sensação de que o país marchava para o caos.
Nesse sentido, a chance de que se percebesse a informação como tendenciosa,
eleitoreira e no caso, golpista, ficaria limitada. Tudo parecia notícia e informação
confiável.
No contexto de 1964, a Folha de São Paulo corroborou a criação de um clima
negativo em relação ao governo Jango. O tema que mais incomodava o jornal era o das
reformas de base, apesar de afirmar o tempo todo que era favorável a elas; o tempo todo
e a todo o momento levantava objeções que apontavam para uma pretensa ilegalidade
do governo que, segundo os editores, teria passado por cima do Congresso Nacional,
demonstrando suas claras tendências antidemocráticas. Esta era a questão de fundo.
Uma visão reacionária sobre as reformas de base.
A democracia surgia aí como um apanágio para as críticas do jornal. Ele
defendia a democracia formal. Tentativas de mudança, como a convocação de um
plebiscito para as reformas de base, eram vistas como ameaça ao poder do Congresso
Nacional.
Os militares, na visão da Folha, eram os guardiões das instituições, apresentados
como estando acima das discussões e interesses políticos, os fiadores da democracia.
Como vimos, os movimentos de militares de patentes inferiores precipitaram e deram
força ao argumento da necessidade de uma intervenção, uma vez que Jango teria
colaborado com a quebra da hierarquia nas Forças Armadas e ameaçado a democracia.
Argumento moralmente muito mais aceitável do que a oposição às reformas e que será
utilizado para justificar o golpe civil-militar em 1964, sendo utilizado, inclusive,
posteriormente no depoimento de Ernesto Geisel dado ao CPDOC e publicado após sua
morte em 1996.
Desta forma, pode-se afirmar que os grupos conservadores, tanto civis quanto
militares, temiam as reformas – em especial qualquer ideia de relativização do direito à
propriedade, que no Brasil se encontra ainda na esfera do sagrado, sem a aceitação de
qualquer menção à sua função social. Da mesma forma, temia-se qualquer possibilidade
de transformarem-se em homens políticos os membros das Forças Armadas, o que,
dentre outras coisas, significaria o enfraquecimento do poder de generais e
comandantes, que perderiam a possibilidade de intervirem a qualquer hora na política
nacional e o que unificava mais ou menos seus passos e suas leituras sobre o governo.
Fonte: DANIELI Neto, Mário; STEFFENS, Marcelo H.; ROVAI, Marta G.O.
Narrativas sobre tempos sombrios. São Paulo: Letra e Voz, 2017.