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Capítulo 2 - Ascetismo ou exercício da santidade: o cuidado de si nas práticas ascéticas

na Antiguidade Tardia.
[Deixar claro que o “cuidado de si” é mais antigo que a prática ascética cristã]
Este capítulo tem por objetivo discutir acerca das práticas ascéticas e os escritos
direcionados a conduta feminina na Antiguidade Tardia no contexto cristão. Para isso, faz-se
necessário uma discussão sobre ascetismo e santidade para entender esses conceitos que se
modificam dentro de contextos específicos, além das práticas que caracterizam os indivíduos
que almejam este estilo de vida. Logo em seguida, trataremos especificamente sobre a prática
da virgindade como uma forma de exercício da alma, percebendo as virtudes esperadas sobre
as praticantes. Sempre se utilizando da fonte para perceber como estas práticas foram
apresentadas

3.1. “Atletas de Cristo”: ascetismo e castidade no contexto cristão.

O que significam ideais ascéticos? – [...] para os fisiologicamente


deformados e desgraçados (a maioria dos mortais) uma tentativa de ver-se
como “bons demais” para esse mundo, uma forma abençoada de
libertinagem, sua grande arma no combate à longa dor e ao tédio; para os
sacerdotes, a característica fé sacerdotal, seu melhor instrumento de poder, e
“suprema” licença de poder; para os santos, enfim, um pretexto para a
hibernação, sua novissima gloriae cupido [novíssima cupidez de glória], seu
descanso no nada (Deus), sua forma de demência. (NIETZSCHE, 2009, p.
80).

Nietzsche, estabelece no trecho acima sua visão um tanto sarcástica, mas bastante
razoável, sobre os ideais ascéticos. Em sua análise, ele diferencia os usos desses ideais por
determinados grupos de indivíduos: para nós “desgraçados”, seria uma tentativa de elevação
em relação a esse mundo, como uma forma de combate a dor e o tédio; Já os sacerdotes (ou
líderes religiosos) os utilizariam como um instrumento de poder, e que seria para eles uma
característica da fé sacerdotal; Para os santos seria uma forma de hibernação, seu descanso no
“nada”, ou seja no divino. Os usos sociais dos ideais ascéticos em Nietzsche, nós é
relativamente importante, pois nos faz encarar essas práticas com suas funções dentro da
sociedade, e para nós é evidente que a distinção social é um dos seus principais alvos.
Para a análise do texto VSM, assim como muitos textos cristãos, discutirmos sobre o
conceito de ascetismo é primordial, pois ao entendê-lo é possível aperfeiçoar o nosso olhar
sobre o objeto que são as representações do feminino em um contexto onde as noções de
santidade e sagrado estão sofrendo alterações em suas percepções pelos grupos cristãos, que
dessa forma influenciam na produção da representação de mulheres modelos, ditas santas, e
assim podemos entender o uso e necessidade de muitas das representações, femininas e
masculinas, propostas nesta obra dentro de seu contexto e intencionalidades.
O ascetismo nada mais é do que uma forma do cuidado do corpo e da alma,
especificamente “o cuidado de si”, nas palavras de Foucault, ou melhor, a “prática de si”, que
era utilizada como um dos caminhos para alcançar uma elevação espiritual, por cristãos ou
não. Nesse sentido Wanzeler aponta:

A noção do cuidado de si era fundamentada no grego pela ideia de epimeleia


heautou. Era considerada uma atitude geral, uma forma de atenção ou de
algumas ações pelas quais nós, como seres humanos, nos assumimos, nos
modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos.
Tratava-se de um conjunto de preceitos e práticas que funcionavam como
exercícios, definindo os destinos na história da cultura, da filosofia, da moral
e da espiritualidade ocidentais. (WANZELER, 2011, p. 10-11).

O cuidado de si (epimeleia heautou), foi uma prática muito difundida na


Antiguidade, principalmente por meio de filósofos1, por exemplo Sócrates em sua famosa
expressão “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) que tinha por intenção expressar que
deve-se conhecer-se a si próprio primeiro para então cuidar-se de si. Sua difusão influenciou
até mesmo os escritores cristãos, principalmente por conta do constante contato destes com os
textos filosóficos, inclusive Gregório de Nissa2. Essa aproximação cristã a essa noção de
cuidado de si, se deu mais como uma apropriação. Com essa apropriação os cristão puderam
produzir novas práticas e filosofias que tinham como o foco o cuidado de si, não com intuito
de uma elevação filosófica, mas espiritual.
O cuidado de si visto como um exercício individual em busca do aperfeiçoamento do
corpo, mente e alma está intimamente ligado às práticas ascéticas, basta observamos a origem
da palavra ascese. O verbo grego ασκειν (askesis) está associado à ideia de treinamento, de
exercício de um atleta ou soldado. Portanto o uso da palavra estava ligado às práticas de
preparação, de aperfeiçoamento de indivíduos para as competições e lutas. Porém a sua
utilização foi mudando de sentido, mesmo antes do Cristianismo. A partir de Heródoto e
Xenofonte esse termo veio a ser aplicado também a uma ideia de “virtude”. Posteriormente os
filósofos do movimento estoico relacionaram o termo à sua aspiração pela eliminação das
1 O tema do “cuidado de si” foi uma formulação filosófica precoce que aparece desde o século V a.C. e até os
séculos IV-V d.C. percorreu toda a filosofia grega, helenística e romana, assim como a espiritualidade cristã.
2 De acordo com Foucault (2006) Gregório deixa evidente o uso dessa noção em “A vida de Moisés”, no texto
sobre “O cântico dos cânticos", no “Tratado das beatitudes". E, principalmente no “Tratado da virgindade", que
inclui um capítulo (XIII) cujo título é: “A renúncia ao matrimônio é o começo do cuidado de si” (Greg.N., De
Virginitate, 13.1).
paixões e junto com os pitagóricos e os cínicos passaram a aplicar a prática da ascese à vida
moral, já que para esses, a realização da virtude implicaria na limitação de desejos e renúncias
(DI BERARDINO, 2002, p. 174).
Assim é possível verificar que o uso do termo já era muito antigo quando foi
utilizado no mundo romano pelos discursos ascéticos cristãos inclusive a sua conexão com a
virtude. Musonius Rufus (25-95 d.C.) dizia que a aquisição da virtude implica duas coisas: um
saber teórico (epistéme theoretike) e um saber prático (epistéme praktiké), este saber prático
era exatamente adquirido pelo exercício (askesis) (FOUCAULT, 2006, p.382). Ao ser
apropriado pelos cristãos a ideia da virtude remeter a esses dois saberes permanece, pois a
leitura da bíblia, exigência contínua para aqueles que aspiravam por uma vida mais sacra,
estava associado ao exercício prático e cotidiano de uma vida elevada, os trabalhos manuais,
jejuns, orações, renúncias e outras atividades práticas eram formas de exercer os
ensinamentos bíblicos e aperfeiçoar o próprio corpo, a partir do controle próprio. Exercício
seria a palavra-chave para o entendimento do conceito aqui pretendido. Por mais que os usos
do termo tenham se modificado um pouco, a ideia de exercícios de aperfeiçoamento, para um
fim específico, não ficou para trás.
Ascese, para Foucault, é uma “forma de prática cujos elementos, fases, progressos
sucessivos devem ser renúncias cada vez mais severas, tendo como alvo e no limite a renúncia
de si”, em poucas palavras, “Progressos nas renúncias para chegar à renúncia essencial que é
[a] renúncia a si” (FOUCAULT, 2006, p.386).
Desde os estóicos e os cínicos a figura do atleta (representação muito comum para o
uso do termo ascese), era comumente associada à figura do sábio/filósofo, esteve muito
presente no entendimento do “exercício para si”, para fins filosóficos, no mundo grego,
helenístico e romano. Dessa forma, o filósofo, assim como o atleta, era também responsável
pelos exercícios de renúncia própria para sua elevação. Variadas formas de ascetismo
filosófico surgiram com a finalidade do aperfeiçoamento individual pela filosofia.
Posteriormente, com a apropriação do termo e da ideia, os cristãos tomaram por base
as práticas dos filósofos e atletas antigos, juntando com os ensinamentos das Escrituras,
puderam produzir novas práticas e exercícios que tinha intenção de aperfeiçoar a
espiritualidade dos fiéis. Surge, então, a figura do “atleta cristão” que buscará o progresso em
direção à santidade, o que requer superar-se a si mesmo, até o ponto de renunciar a si por
inteiro. Para tal o seu principal inimigo, aquele cujo deve enfrentar como um lutador-
guerreiro, é ele mesmo (FOUCAULT, 2006, p.389), e os seus problemas internos.
Dentro dos discursos e representações dos cristãos a figura do atleta vai se tornando
muito comum, inclusive em textos bíblicos. Em muitos casos biográficos os autores
compararam seus personagens a atletas ou lutadores que se exercitavam, controlando a si e
seus impulsos, se tornando ao fim vitoriosos.
Assim como tantos outros, Gregório de Nissa apresenta em seus textos personagens
que ele compara com a figura do atleta. É o caso de Macrina, a Velha, avó paterna dele, de
Emélia e Macrina, a Jovem, na biografia e em todas as situações elas estão enfrentando algum
infortúnio. No caso específico de Macrina, ela tinha acabado de enfrentar, na narrativa, a
perda do irmão Basílio, e é então que o autor escreve: “ela permaneceu, como uma invencível
atleta sem a sabedoria alquebrada pelo assalto dos infortúnios” (Greg., Vit. Macr., 14.2, grifo
nosso). Aparentemente suportar a dor seria a qualidade de um atleta, uma virtude louvável,
mas ser vencido por ela, não desqualifica o atleta, pelo menos não desqualificou sua mãe
quando esta perdeu o filho, Naucrácio:
Embora ela fosse perfeita na virtude, a natureza dominou-a como faz com os
outros. Pois ela desmaiou. E, em um momento, perdeu a fala e a respiração,
já que a razão lhe falhou sob o desastre, e ela foi jogada ao solo pelo assalto
das marés do mal, como alguns nobres atletas batidos por uma inesperada
desgraça. (Greg., Vit. Macr., 10.1).

A fraqueza do atleta nesse caso foi a natureza, e por natureza, Gregório fala do
comportamento mulherio que logo a frente ele menciona (gritar, rasgar as vestes, queixar-se
das desgraças, gemer, etc.). Mas a intenção do autor é de exaltação das personagens de sua
família, assim como o modelo biográfico filosófico exigia, portanto ele não afirma
diretamente que sua mãe assim se comportou, mas fica perceptível nas entrelinhas, pois é
constante, em sua biografia, a conotação de natureza à condição sexual, ou genérica, das
personagens. Daí está presente o controle de si, ou seja, o controle da natureza feminina. O
autor em um outro momento, ainda sobre sua avó, Macrina, a Velha, compara com a figura do
atleta, reafirmando a conexão desta figura com os ascetas cristãos, principalmente com sua
família:

O nome da virgem era Macrina; ela foi assim chamada por seus pais depois
de uma famosa Macrina algum tempo antes na família do pai da nossa mãe
que tinha confessado a Cristo [962A] como um bom atleta no tempo das
perseguições (Greg., Vit. Macr., 2.1, grifo nosso).
Na versão espanhola, o tradutor prefere traduzir as últimas palavras do trecho com
“lutou bravamente, confessando a Cristo muitas vezes” 3. É perceptível a associação de uma
mártir a imagem de uma guerreira (como alguém que luta por uma causa) ou, no caso citado
acima, em que um atleta é mencionado, lembrando ao uso original do termo ascese. Contudo
é um tanto problemático pensarmos em uma mulher guerreira, atleta no século IV, pois a
principal representação do feminino estava atrelado ao perímetro do lar. Contudo é notório a
intenção dos biógrafos de mulheres ascetas a representação destas como “além de seu sexo”,
como Gregório chegou a expressar sobre Macrina uma vez. Eis manifesto aí a problemática
genérica das representações do feminino nas biografias cristãs: mulheres, menos femininas,
no que se trata às virtudes.
O controle de si, para as mulheres, estava no controle de sua natureza feminina, tida
por escandalosa e inapropriada. Subjetivamente e simultaneamente a isso surgem conexões
nítidas entre essas mulheres e as virtudes masculinas. A confusão é muitas vezes manifesta em
conjugações genéricas4, em comparações com figuras masculinas5, em atribuições de ações e
habilidades tipicamente masculinas, como no caso da figura do atleta e guerreiro.
Contudo, essa virilização do feminino, não é completa, pois muitos dos atributos e
condições do femininos, são mantidos. Isso, acredito eu, numa tentativa de manutenção da
ordem hierárquica dos sexos, ou seja, essas manutenção de atributos e condições femininas
nas representações de mulheres está no intuito de negar poderes masculinos às mulheres.
Mas sobre as intenções do autor na utilização da figura do atleta cristão sobre sua
família, entendemos que Gregório mantém presente a conexão da vida de seus familiares e a
figura do atleta, assim como daqueles que se exercitam em prol de um aperfeiçoamento, para
reforçar a ideia da prática do ascetismo em sua família. Essa associação de seus parentes e os
atletas cristãos, pode ter sido uma das artimanhas do autor de angariar uma legitimidade
dentro do mundo das discussões teológicas, por pertencer a uma família tão ilustre, ele se
legitimaria no meio cristão. Também mas a ênfase está na diatribe da filosofia cínica e
estoica especialmente quando trata da ética que no caso de Gregório ele coloca o
significado religioso.
Por muito tempo nos escritos cristãos está presente a relação entre ascese e renúncia,
tema que foi a principal associação elaborada pelos teólogos e bispos. A imagem do Cristo
seria crucial para o desenvolvimento desse discurso. Pois, ao anunciar que seus seguidores

3 “luchó valerosamente confesando muchas veces a Cristo” (Greg., Vit. Macr., 2.1)
4 Como no caso de alguns adjetivos no masculino que Gregório lança sobre sua irmã, quando descreve suas
qualidades.
5 Quando o autor a compara a Jó, um personagem bíblico.
deveriam “negar-se a si mesmo”6 e em outro momento dizer “sê perfeito” 7, são passagens que
podem significar as bases de inspiração para o movimento ascético e da busca pela renúncia.
Posteriormente, os apóstolos e os padres continuariam a reproduzir essa ideia de “renúncia de
si”, baseados na vida de Cristo, tomando este como o modelo perfeito de conduta a ser
imitada pelos cristãos.
A crítica nietzschiana sobre o ideal ascético abriu a mente de muitos estudiosos para
perceber as relações de poder estabelecidas no meio das práticas ascéticas. Este autor aponta
a figura do Sacerdote Ascético que teria um papel importante no desenvolvimento de uma
mentalidade de submissão nos fiéis, a partir do discurso de que o bem estar social só pode
existir se houver uma dominação de si e de prazeres individuais, afora que eles afirmavam
que a origem dos males e das dores do mundo é o pecado.(na época de Macrina existe a
ideia de bem estar social? Como assim?) Portanto, foram esses sacerdotes, o qual tanto o
Nisseno, como Macrina, em seu contexto específico do mosteiro feminino, se encaixam como
tais, que exerceram o papel de dominadores do rebanho que ansiavam por aproximarem de
Deus, mas que não conseguiam praticar essa negação de si. Isso pelo fato de esses sacerdotes
afirmarem praticar esse ascetismo (não casavam, ajudavam os pobres, negavam os seus
prazeres), assim sendo aqueles que podiam se aproximar de Deus, se estabelecendo como
intermediários entre Deus e os homens. Esta passagem está muito confusa, como era o
contexto específico do mosteiro? Além disso o irmão enaltece a irmã porque ela
renunciou a sua vida então como ela não pratica a negação de si? Existe um si para as
mulheres?
A partir de tudo que foi exposto, pode se entender ascetismo como a prática da
ascese, que por sua vez seria o exercício, o treinamento, da espiritualidade de um indivíduo
que objetiva a aproximação com o divino. Assim como um atleta, o asceta teria que fazer
muitas renúncias, que juntando com a prática de leituras, estudos bíblicos e orações, tinham o
intuito de serem mais “santos” e que na verdade, muitos foram oficializados pelas igrejas
cristãs, de fato, como santos. E a forma mais antiga do culto dos santos é o culto aos mártires,
que foram venerados por sua completa renúncia de si.
Acho que é preciso focar no IV século, entretanto a filosofia de Musonio Rufo e
de Suetônio já debatiam a necessidade da mulher dedicar-se a filosofia para suporar a
fraquela moral típica do seu sexo e a aquisição de um caráter forte. Ao lado do tema
“atleta de Cristo” aparece também a questão da mulier virilis, que é quando a mulher
6 “E dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me.”
(Lucas 9, 23).
7 “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (Mateus, 5, 48).
que recusa o comportar-se como as outras mulheres e superar as características típicas
do seu sexo. Sêneca quando descreve as virtudes de sua mãe releva os comportamentos
que fazem dela diferente das outras mulheres. Gregório de Nissa faz isso em sua obra
mistura temática moral, particularmente nos argumentos relativos a filosofia e a medida
da dor. Seja no De virginitate, seja na Vita di Macrina. Assim sendo, este autor usando o
método de Sêneca fraz uma transposição de filosofia para a biografia filosófica
reinterpretando assim a vida cristã que algumas vezes se adapta aquela que é
considerada a realização perfeita do ideal religioso, seja a vida ascética, ou como, a
escolha monástica.

3.2. Os mártires e a renúncia de si


As mudanças sociais ocorridas no século III e IV d.C., foram o pano de fundo para o
surgimento do movimento ascético cristão (SIQUEIRA, 2004). Com a proibição da
perseguição aos cristãos no Império Romano, acordada entre seus os imperadores Constantino
e Licínio, vencedores de importantes batalhas que garantiu-lhes o poder, o mundo não seria o
mesmo (VEYNE, 2010). Nosso intuito não é se ater aos fatores políticos e individuais do
acordo8, mas sim compreender o impacto dessa decisão na fé cristã, suas práticas,
representações e imaginário. Antes do século IV há um contexto completamente distinto que
produziu certo imaginário sobre as figuras dos homens e mulheres que sofreram perseguições
por conta de sua fé que foram denominados mártires:

O termo martyr, cujo significado é testemunho, passou a designar a partir de


meados do segundo século, sobretudo para as comunidades cristãs aqueles
indivíduos, tanto homens quanto mulheres, que morriam e sofriam em nome
de sua opção religiosa. Eusébio de Cesaréia (Hist.Ecles.,V,2,3-4) denominou
confessores os indivíduos que não aceitavam sacrificar-se às deidades da
religião romana, conforme exigido pela lei e que defendiam a fé em um
único Deus passível de adoração, assim como uma única religião; devido a
isto, estiveram submetidos a sanções e castigos previstos pelo poder romano,
principalmente a morte. As pessoas que “confessavam” sua fé eram
condenadas a morrer de maneira exemplar para aplacar a cólera dos deuses.
(SIQUEIRA, 2004, p, 110-111).

No mundo romano existiu eventuais ataques aos membros da religião cristã, por
vezes até mesmo incentivados pelos imperadores, que ficaram conhecidos na literatura
apologética como perseguições. Até os primeiros anos do século IV, os cristãos não eram bem
aceitos pelo mundo pagão, algumas vezes por conta de suas ideias, discursos e condutas, mas
8 Sobre esse assunto existem tantos outros trabalhos que discutem sobre a figura do Imperador Constantino. Cf.
VEYNE, 2010. Verificar ABNT para indicações dessa natureza
sobretudo pelo modo de funcionamento do ambiente religioso e filosófico. O início do século
foi bastante sangrento para os seguidores da mensagem de Cristo, apenas com Constantino e
Licínio, que assinaram o edito concedendo liberdade de culto para os cristãos, mudando
radicalmente a posição da religião cristã perante o poder imperial daí por diante.
No contexto da intolerância religiosa em finais do segundo e decorrer do terceiro
século surgiu a figura dos mártires, homens e mulheres que foram condenados à morte por
confessarem a sua fé no Cristo. Pelo fato de serem pessoas que admitiram professar uma
crença ilícita no contexto religioso e morreram por isso, criou-se um imaginário de que esses
crentes estavam mais próximos de Deus, e acabaram por se tornarem também modelos de
vida. Esse imaginário foi gestado e difundido por meio de um gênero de composição singular
que ficou conhecido como Atos dos mártires (Acta martyrium). As pessoas condenadas, assim
como autores cristãos diversos, registraram as suas memórias com o objetivo de perpetuar o
heroísmo daqueles que foram condenados ao martírio. Não apenas na morte que era
apresentado o sacrifício desses indivíduos, mas o fato de não negarem a Cristo era primordial,
preferindo sofrer as punições impostas, em tempos de alta perseguição. Os fugitivos, os
presos, os queimados, os crucificados, os apedrejados, os que perderam posses, etc., também
poderiam ser tidos por mártires. Criou-se assim um gênero literário específico com a narração
das últimas horas de vida e a descrição das execuções. São obras curtas que se destacam pela
sua capacidade de atingir e emocionar o leitor, uma das figuras retóricas muito comuns da
época eram os heróis e atletas da literatura clássica que nos Atos dos mártires sofreram uma
pequena alteração para o uso do exemplo de “atleta de Cristo”.
Gregório de Nissa herdou em grande parte o seu estilo de sua época isso é evidente
quando ele demonstra que foi esse o contexto de vida dos avós de Macrina, que haviam
perdido suas propriedades por professarem o Cristianismo no período da perseguição de
Diocleciano (284-305). Os pais dela, Basílio, o Idoso e Emélia, também sofreram
perseguições religiosas, durante o governo do imperador Galério Máximo (ZIERER, 2013). O
entendimento da morte como um processo de passagem, ou mesmo de um prêmio, garantia a
esses homens e mulheres uma posição de admiração, por sua coragem, sendo capazes de
suportar por meio da fé as dores e o sofrimento, até mesmo a morte (SIQUEIRA, 2004).
Acreditava-se então que esses mártires eram capazes de fazer milagres, mesmo depois de suas
mortes.
No movimento cristão, o martírio ganhou relativa valorização, pois alguns desses
indivíduos eram capazes de produzir milagres; serem portadores de visões, às vezes por meio
de sonhos; serem capazes de expulsar demônios de pessoas possessas; e até mesmo foi dado
ao martírio um valor propiciatório, ou seja, o sacrifício deles seria capaz de purificar outros.
Por conta disso, se desenvolve no meio do cristianismo um culto específico que venerava os
mártires9 (SIQUEIRA, 2004).
Já na segunda metade do século III, a veneração pelos santos mártires começava a
ser organizada, mas é apenas no século seguinte, com o fim das perseguições, que o culto dos
mártires passa a fazer parte da fé cristã e até mesmo direcioná-la, levando ao desenvolvimento
de verdadeiras festas nos seus aniversários e à posterior translação de suas relíquias
(MAGALHÃES DE OLIVEIRA, 2010). O martírio, de acordo com Siqueira (2004),
funcionou como um “reforço do referencial simbólico dos cristãos, evidenciado por essa ser
uma forma de “reviver a morte de Cristo”, por isso passariam a ter muitos atributos sagrados
(SIQUEIRA, 2004, p. 127).
Ainda de acordo com Bastos (2013), o fenômeno do culto dos santos, foi marcado
por uma relativa tendência de convergência a essas figuras, seja vivo ou morto. Tendência
essa que foi muito importante para a formação dos mosteiros, onde os indivíduos se reuniam
em torno de pessoas que pudesse ajudar a eles a conseguirem se aperfeiçoar. Essa tendência
de convergência aos santos, mesmo mortos, foi importante para a noção dos loca sacra, a
sepultura ad martyres ou ad sanctus (BASTOS, 2013). É então que a valorização dos túmulos
dos mártires e santos como um local sagrado, levava a muitos a procurarem enterrar seus
mortos próximo dos túmulos deles. É o caso, mencionado por Gregório, do sepultamento de
Macrina e seus pais, onde o bispo afirma ser o local do repouso destes:

Sete ou oito domicílios interpunham-se entre o retiro e a residência dos


Mártires Sagrados, onde os corpos de nossos pais também repousavam. [...]
Quando chegamos dentro da igreja, colocamos o esquife e viramos
primeiramente para rezar. Mas nossa oração foi o sinal para que as
lamentações das pessoas se reiniciasse. Pois no momento em que a voz da
salmodia silenciou, e as virgens fitavam fixamente aquela santa face, e o
túmulo dos nossos pais já sendo aberto, (onde fora decidido que Macrina
seria colocada), [994D] uma mulher gritou impulsivamente que depois desta
hora não veríamos aquela santa face outra vez. Então o resto das virgens
gritou o mesmo, e uma desordenada confusão perturbou o ordeiro e solene
canto dos salmos, e todos ficaram entristecidos com as lamentações das
virgens. Conseguimos com dificuldade encontrar o silêncio pelo nosso gesto
e graças a fala do precentor, (que) tomando a liderança e entoando as
costumeiras orações da Igreja, (levou) as pessoas a se controlarem
finalmente para rezar. (Greg., Vit. Macr., 34.3-4).

9 Este culto aos santos mártires seria então também, de acordo com Bastos (2013), um reflexo das mudanças
ocorridas na sociedade romana. A troca de um modelo de relações sociais horizontais, característico do Alto
Império, refletido nas relações religiosas do paganismo romano, por um modelo vertical, que caracterizaria o
cristianismo. Nesse modelo vertical a relação com o divino seria intercedida por certos indivíduos, que por sua
vida e renúncias, estaria mais próximo de Deus.
Por ser entendida como uma forma de aproximação do homem com Deus,
multiplicaram o surgimento de basílicas e igrejas sobre esses túmulos, daí o fato de muitos
desses santos serem titulares desses templos (BASTOS, 2013).
Mas como dito anteriormente, com o fim das perseguições no mundo romano
surgiram novas formas de aproximação com o divino. O grande acervo de práticas de
purificação e exercício da santidade, produziu aquilo que ficou conhecido por movimento
ascético que é manifesto de várias formas e cheio de variantes, dependendo de cada grupo a
qual pertence, o local em que se originou, os líderes e bispos envolvidos, etc. Compete-nos
falar sobre alguns poucos modelos de ascetismo presente naquele momento.

3.3. Os Padres do Deserto: eremitismo e o movimento ascético cristão

Com os acordos e éditos de tolerância, mencionados acima, o martírio deixou de


existir, pois já não havia mais perseguições aos cristãos de forma efetiva como anteriormente.
E sem a perseguição e o martírio, homens e mulheres tentaram desenvolver formas de
encontrar a perfeição exigida por seus antecessores e encontrar novas formas de renúncia de
si. “O ascetismo buscava no heroísmo do autocontrole a mesma vitória vivida pelos antigos
mártires, agora inexistentes no cenário cristão” (SIQUEIRA, 2004, p. 187).

Entre os cristãos, os mártires representaram, seguramente, a primeira


categoria de homens divinos após os apóstolos, exercendo por séculos um
notável fascínio sobre a ecclesia. Com o fim da Grande Perseguição e a
conversão de Constantino, no entanto, não havia mais lugar no mundo
romano para indivíduos dispostos à imolação pública em nome da fé que
professavam. Diante da acomodação que logo se estabelece entre a elite
eclesiástica e o poder imperial, [...] um contingente cada vez maior de
indivíduos, certamente motivados por um desejo de viver do modo mais
literal possível os ensinamentos de Jesus contidos nos Evangelhos, decide
romper com os laços rotineiros de sociabilidade e adentrar o deserto,
passando então a praticar toda sorte de penitências e mortificações na ânsia
de elevação espiritual. (SILVA, 2007, p. 83-84)

Os homens conhecidos como Padres do Deserto, ou mesmo eremitas, se


converteram, então passaram a ter a qualidade de homens santos, “os legítimos sucessores dos
mártires e, como estes, candidatos à santificação após a morte” (SILVA, 2007, p. 84).
O termo “eremita” tem origem no grego eremos que significa solidão, deserto, e
muitas vezes é substituído por “anacoreta”, que também do grego anakhorésis significa retiro,
retração (CASTANHO, 2007). De acordo com Gabriel Castanho (2007), Du Cange definiu,
no século XVII, em latim pós-medieval, eremitae como: “monges que levam uma vida
solitária no ermo, dos quais a vida é evitar o tumulto do século e permanecer em suas células,
a fim de se dedicar à oração e ao silêncio”. Apesar do autor brasileiro afirmar que exista uma
sutil diferença entre os termos (Cf. CASTANHO, 2007, p. 18-23), de forma geral, essas são
definições que caracterizam homens que se afastavam ou se retiravam das práticas comuns a
uma vida mundana das cidades.
O eremitismo é uma prática baseada em alguns personagens bíblicos que se
lançavam em direção à regiões desérticas10, pois buscava-se o aperfeiçoamento espiritual,
resistindo a vários tipos de privações (SIQUEIRA, 2004). Essa prática atestava um
estranhamento ao mundo, um caminho de introspecção através da solidão e que forçava maior
dependência do divino por conta dos perigos do deserto 11 (DAL PRA DE DEUS, 2010??). Era
a partir dessas características do deserto que os indivíduos se aproximavam de Deus e se
afastavam dos prazeres da carne.

O mito do deserto foi uma das criações mais duradouras da antiguidade


recente. Foi, acima de tudo, um mito de precisão libertária. Delimitou a
presença impotente do “mundo” do qual os cristãos deveriam libertar-se,
enfatizando uma clara fronteira ecológica. Identificou o processo de
desengajamento do mundo com uma mudança de uma zona ecológica para
outra, das terras habitadas do Egito, para o deserto. Essa era uma fronteira
brutalmente clara, já sobrecarregada de associações imemoriais. (BROWN,
1990, p. 184).

Fugir para o deserto consistia numa libertação das obrigações civis e sociais, e
permitia aos indivíduos, momentos de contemplação, para que estes pudessem cuidar de si,
voltando a ideia do epimeleia heautou. Apesar de também, bastante ansiada pelos padres do
deserto, a libertação das tentações sexuais, não eram a única privação evocada por eles, o
alimento e a interminável batalha com a dor do jejum tinham muito mais importância para
eles (BROWN, 1990). Existia, na mentalidade cristã daquele período, principalmente no

10 As regiões para onde esses eremitas iam não necessariamente eram apenas desertos de areia, tal como logo
imaginamos, mas qualquer região onde não houvesse populações humanas que interrompessem a contemplação
do divino e da criação deste.
11 Existia a crença de que os desertos eram habitados por demônios, e ao se lançarem nessa “aventura” os
monges estariam exercitando tudo aquilo que aprenderam dos ensinamentos cristãos para “batalhar” contra esses
seres malignos. E era ao testemunhar os sacrifícios que esses monges faziam ao irem ao deserto que parte da
população rural acabava a se converter e até a imitar as práticas desses indivíduos.
Egito, que o primeiro pecado de Adão e Eva fora a gula, por isso, esses desejos alimentares
deveriam ser controlados.
A prática do eremitismo foi bastante comum no período tardo-antigo, porém
continuou a ser praticado durante a Idade Média principalmente pelos monges, e ainda hoje
existem casos parecidos. Gregório, inserido nesse imaginário bastante difundido de
valorização do deserto como local de purificação, nos apresenta um exemplo de homem que
viveu “afastado dos barulhos da cidade e das desordens que cercavam as vidas” (Greg., Vit.
Macr., 8.2), seu próprio irmão, Naucrácio. Na obra VSM dedica um trecho para elogiar a vida
de seu irmão:
Segundo de quatro irmãos, de nome Naucratius, que veio logo depois do
grande Basílio, superava o resto em dons naturais, em beleza física, força,
rapidez e habilidade para aprimorar sua mão para qualquer coisa. Quando
[968A] ele atingiu seu vigésimo primeiro ano e havia dado tal demonstração
de seus estudos ao falar em público que toda a audiência no teatro estava
emocionada, ele foi guiado pela Divina Providência para desprezar tudo que
já estava ao seu alcance e, levado por um irresistível impulso, retirou-se para
uma vida de solidão e pobreza. Ele não levou nada consigo, somente si
mesmo, salvo aquele de seus servos chamado Chrysapius, que o seguiu por
causa da afeição que ele tinha para com o seu patrão e a intenção que havia
formado de levar a mesma vida. (Greg., Vit. Macr., 8.2)

Ao se retirar para o deserto, Naucrácio acabou por dedicar-se aos trabalhos manuais 12
e ajudou a alguns idosos, por meio de seu trabalho e os alimentou por sua habilidade com a
caça e a pesca, sobre isso Gregório aponta:

Então, o generoso jovem ia em expedições de pesca, e como ele era um


perito em todo tipo de esporte, ele fornecia comida por todos os meios para
os seus gratos clientes. E, ao mesmo tempo, por tais exercícios, estava
domesticando sua própria humanidade13 (Greg., Vit. Macr., 8.2, grifo
nosso).

Com isso, o autor reafirma a importância do trabalho/exercício para a domesticação


de si, ou seja, do controle de si, da renúncia de sua própria natureza. Essa seria o objetivo de
uma vida lançada ao deserto, ou mesmo qualquer outra forma de ascetismo, inclusive a
castidade e a continência, com suas virtudes a elas associadas.

12 O que parece ser uma constante, nos discursos de Gregório, ligada à vida ascética já que este menciona
constante, sempre ligada à elevação espiritual dos indivíduos, como no caso de Macrina e Pedro. Discutiremos
sobre esse aspecto no próximo capítulo.
13 Tanto nas traduções espanhola, italiana e latina, a expressão utilizada é juventude, respectivamente
“juventud”, “giovanili” e “adolescentiam”. O que pode remeter aos calores da juventude, a sexualidade. Já a
versão inglesa traz a ideia de masculinidade (manhood), o que pode também se associar a sexualidade.
3.4. A castidade, continência e as virtudes ascéticas

Outras formas de ascetismo mais conhecidas são a castidade (hagneia), a continência


(enkrateia) ou a virgindade (parthenías), que fora enfoque de muitos teólogos como
Tertuliano, Cipriano (o Africano), Metódio, João Crisóstomo, assim como Gregório de Nissa
(VAINFAS, 1986). Essas práticas consistiam na purificação da alma a partir da negação do
prazer sexual, que para a maioria desses padres era a maior virtude humana.
A renúncia, aconselhada pelos padres, através principalmente de cartas, englobava
não apenas os prazeres físicos do casamento, que de acordo com a literatura ascética não era
tão prazeroso assim, mas envolvia atos como os jejuns prolongados, a renúncia das riquezas,
do luxo, etc. que perpassam, de um modo geral, todas as formas de ascetismo. Esses atos
seriam os exercícios que aperfeiçoavam a alma e ajudariam a controlar o corpo, ou a ‘carne’.
O deserto seria um lugar para se afastarem em definitivo das tentações.
O abandono das riquezas materiais seria uma das qualidades de uma vida
consagrada. Uma das grandes paixões do mundo, de acordo com muitos teólogos cristãos, são
as riquezas materiais ou mesmo o orgulho de pertencer a algum estrato social mais elevado.
Portanto, o abandono dessas paixões (Por que uma paixão aliás no IV século o que é uma
paixão???) seria uma libertação das coisas mundanas, que estaria muito ligado à noção de
caridade e de humildade, essas duas características são necessárias para indivíduos que
almejavam a ascese. E, por sua vez, Macrina era apresentada como um modelo nesse ponto,
de acordo com seu irmão, algo que trataremos com maior atenção no próximo capítulo.
A prática da caridade era também uma clara demonstração do cuidado ao próximo,
em cumprimento aos ideais de conduta cristã. Bruno Zetola (2009) relaciona essa ideia de
caridade cristã com a noção de Poder. Ele elabora um estudo sobre as relações entre a elite e
os pobres entre dois momentos da sociedade romana, um período anterior a Constantino e
outro posterior, comparando a noção de caridade cristã e o evergetismo romano 14. Dessa
forma, ele entende que a partir do momento em que o Cristianismo é adotado como religião
do império e a Igreja assume o papel de executar a caridade aos pobres de forma
institucionalizada, ela tenta, dessa forma, substituir os aristocratas romanos que exerciam uma
forma de poder sobre as comunidades “municipais”. Ou seja, não é apenas uma questão de
ascese por si própria, mas uma questão de estabelecimento de poder sobre as comunidades
recém convertidas.
14 O evergetismo é um termo técnico que pretende definir um modelo de assistencialismo no mundo greco-
romano. Era praticado pelos grupos dominantes que faziam doações a comunidades com intuitos de manter um
status de poder.
Desde os textos judaicos, assim como nos escritos cristãos primitivos e ascéticos, o
ideal religioso do “coração reto” esteve muito presente, para eles “o verdadeiro fiel teria que
aprender a andar com sinceridade no coração” (BROWN, 1990, p. 40). Essa era a noção de
que todos as escolhas e atos dos fiéis deveriam estar pautadas em uma sinceridade de
propósito, ou seja, deveria ser algo genuíno e verdadeiro, sem interesses outros.
Havendo ou não essa “sinceridade de propósito”, o que nos importa é perceber que
todas essas características e representações, significaram, de alguma forma, intencional ou
não, novas disposições de poder, mesmo que os indivíduos sejam os mesmos. Macrina e
Emélia, mesmo antes das escolhas delas por uma “vida mais elevada”, se posicionavam, no
jogo das relações de poder, em uma situação favorável a elas, e mesmo com todas as
mudanças proclamadas por Gregório, a posição delas continuou favorável, mesmo que de
alguma forma tenham mudado. Mesmo indo morar com as servas, vivendo de igual para
igual, elas ainda exerciam autoridade sobre aquelas mulheres, não mais como senhoras, e
matronas, mas agora como abadessas, mestres e guias15.
A continência (enkrateia), não é uma prática recente do círculo dos cristãos, os
grupos encratitas16, nos primeiros séculos da Era Cristã já tratavam a ideia da continência
sexual com certa primordialidade, ideias que foram criticadas, reformuladas e corrigidas pelos
clérigos e que de alguma forma afetou a literatura de Gregório de Nissa 17. A noção de
continência se desenvolveu ao longo tempo e muitos discursos acerca do tema se espalharam.
A noção continência ou castidade (hagneia) não estava restrita a apenas às virgens, pessoas
que se consagraram antes do casamento, ou mesmo quando criança, mas a também aos
casados, que deveriam viver sem relações sexuais, mesmo casados. Não poucos são os relatos
de casais que viviam juntos, mas que não mantinham relações sexuais, ou de casais que se
separavam para viver continentes.
Contudo a forma de prática do ascetismo da continência era diferenciada entre os
sexos: enquanto os homens, predominantemente, se retiravam no deserto em busca de uma
vida santa, as mulheres restringiam a sua busca pela santidade em suas casas e nas igrejas que

15 Em um trecho da obra, durante o ritual fúnebre de Macrina, Gregório apresenta um cântico, prece, clamor
das virgens que viviam com ela no retiro de anesi???, onde fica evidente a atuação de liderança de Macrina.
Sobre esse tema retomaremos adiante.
16 O termo encratita origina da palavra grega enkrateia que significava continência. Os encratitas acreditavam
que na igreja cristã, todos deveriam ser continentes, eles acreditavam na coexistência entre homens e mulheres
que renunciavam a seus anseios sexuais e assim viveriam de forma mais santa (BROWN, 1990). Não apenas os
clérigos, mas toda a comunidade, inclusive aqueles que a igreja mais tarde intitulará de “leigos”.
17 Pode ser influência de alguns autores que tiveram contato direto com os ideais encratitas, seja em
concordância ou não.
participavam (SIQUEIRA, 2004). Elas teriam que desenvolver um deserto em si, para buscar
o seu aperfeiçoamento, mesmo depois do surgimento do agrupamento dessas virgens.

3.5. Ascetismo feminino e virgindade: o deserto em si


A aspiração de pureza religiosa entre os cristãos é constante desde os primórdios
dessa religião, e para isso os indivíduos acreditavam que as renúncias dos prazeres deste
mundo seria uma forma de alcançar essa pureza. Para Gregório, por exemplo, a vida virtuosa
é o caminho para participar do verdadeiro e perfeito Bem que é o próprio Deus (GRAY, 2016,
p. 27). Dentre as renúncias praticadas era constante a prática da renúncia sexual permanente,
ou seja, a continência, o celibato e a virgindade permanente (BROWN, 1990).
No início do Cristianismo, baseado nas ideias de Paulo, a primeira literatura de
cunho moral que surgiu, não priorizou o casamento ou a família, mas sim o ascetismo, em que
os valores principais eram a virgindade e a continência (VAINFAS, 1986). Essa literatura,
tinha muito valor sobre a sociedade cristã, e tinha por intuito principal ensinar aos fiéis as
verdades da mensagem de Cristo e formas de conduta que norteassem a vida deles.
No século IV, os ascetas ou os “renunciadores cristãos”, se afastaram das cidades em
direção ao deserto, como já dito, imaginavam que as suas habitações fossem túmulos, onde o
fiel estaria “morto” para o mundo e um dos principais objetivos desses ascetas era fugir das
tentações sexuais e da presença das mulheres (ZIERER, 2013). Para literatura ascética dos
séculos IV e V, o deserto egípcio, por exemplo, tornava diminuta as realidades do sexo
(BROWN, 1990). Eles enfrentavam uma série de privações nesses desertos, inclusive a
ingestão de comida, pois eles acreditavam que o jejum purificava seus corpos das paixões e
purificava sua mente, a ponto de nem em sonhos eles cederem à tentação sexual, “pois o
cristão perfeito era aquele que podia estar totalmente exposto à toda a comunidade, não tendo
vergonha de seus pensamentos ou sonhos” (ZIERER, 2013, p. 306).
Essa era uma prática associada geralmente ao gênero masculino, a maioria dos
ascetas do deserto eram homens. Apesar da reprovação constante do clero sobre as mulheres
que vivenciavam a “animadora liberdade do deserto” (BROWN, 1990), havia exceções,
algumas mulheres experimentaram a religiosidade do deserto, como Alexandra, Maria, a
Egípcia, Thaís, Sinclética, e as irmãs Menodora e Metrodona, porém, uma peculiar
característica dessas “mães do deserto” era a adoção de trajes masculinos (ZIERER, 2013).
Reside aí, uma questão de gênero, talvez uma geografia do gênero, onde existem espaços
‘determinados’ ao feminino e ao masculino, e mesmo que algumas mulheres tentem violar
essa divisão espacial das práticas e espaços, elas deveriam se enquadrar, se travestir de
masculino, talvez como uma forma de legitimação. Há uma literatura abundante sobre esta
temática, mas não está em português.
O loci da busca feminina por santidade seria então o lar cristão e a igreja local
(BROWN, 1990). A forma de ascetismo praticado por Macrina, por exemplo, é distinta da dos
ascetas masculinos e femininos do deserto, e mais condizente com a sua condição de mulher
da alta aristocracia. À ela está associada o processo de formação do monasticismo primitivo
no Oriente e à prática da virgindade (ZIERER, 2013). Surge então na literatura cristã, uma
série de textos que indicassem as mulheres a essa prática.
O ascetismo feminino surge primeiramente no lar cristão. Para muitos, ter uma
virgem em casa beneficiaria o dono do lar, achava-se isso necessário, pois a salvação de todos
dependia dela, como dizia Eusébio de Emesa (BROWN, 1990). Em algumas situações as
comunidades onde essa virgem vivia se preocupavam com a presença e os cuidados delas,
pois acreditavam que poderiam evitar algum mal por meio das suas intercessões, inclusive
poderiam evitar desastres naturais. É vasto o número de escritos cristãos antigos que cotejam
com esse imaginário sobre as virgens.
Contudo, a necessidade de apoio a algumas virgens que não podiam se manter nessa
condição, por problemas financeiros ou por não pertencer a uma família de posses, as virgens
mais ricas, ou mesmo algumas viúvas, formaram comunidades de virgens, pequenos grupos
de maneira mais orgânica. Algumas se juntavam entre amigas e formavam uma parceria
espiritual. Mas, efetivamente, as mulheres mais ricas, ou parentes de membros do clero, foram
cruciais para a formação de grupos maiores, reunindo ao redor delas (BROWN, 1990). Daí
surge algumas comunidades que serão conhecidas por mosteiros, retiros e monastério, lugares
decisivos para a construção e manutenção das práticas e representações do cristianismo.
E era nesses espaços, os retiros e os monastérios, onde “as freiras reclusas, as
‘noivas de Cristo’, e não os heróis barbudos do deserto se transformariam nos representantes
estereotipados da noção de virgindade entre os leitores ocidentais” (BROWN, 1990, p. 221).
A importância das virgens era notória entre os cristãos antigos, elas demonstravam, de certa
forma, o poder dos bispos, qualquer ataque a essas virgens seria um ataque a própria posição
do Patriarca (BROWN, 1990), o que vez por outra ocorria ataques e tentativas de violação das
virgens. Estava no imaginário dos cristãos que “este claustro deveria ser um espaço
inviolável, longe do espaço profano público, associado ao paganismo” (ZIERER, 2013, p.
308), em outras palavra os mosteiros eram lugares sagrados.
O séquito das virgens era composto na maioria por moças jovens em idade para
casar: Pierre Grimal (2009) afirma que os rapazes eram considerados aptos para o casamento
aos 14 anos e as moças aos 12 anos. Macrina por exemplo, depois de completar 12 anos, um
“enxame de pretendentes”, por conta de sua beleza, começaram a procurar os pais dela a fim
de se casarem com ela e seu pai então escolhe um entre tantos para ser seu noivo (Greg., Vit.
Macr., 4.1). Mas, de acordo com Brown, idealmente as moças não se comprometiam com o
estado virginal, com autorização ou ordem dos pais, através de juramento, antes de chegarem
aos dezesseis ou dezessete anos. Em alguns casos muitas delas chegavam a se consagrarem
muito mais tarde, somente após ultrapassarem a idade de casamento, até mesmo a idade de ter
filhos (BROWN, 1990).
As jovens moças não tinham muita escolha sobre o seu futuro, seus pais é que
decidiam se acaso casariam ou não, por isso a literatura ascética era muitas vezes direcionadas
aos pais, principalmente as mães, para que “fizessem ver às filhas a virtude da vida
continente” (VAINFAS, 1986, p. 9). Essa vulnerabilidade das jovens às decisões dos pais,
permitiu que muitas delas, mesmo depois de consagradas a igreja, fossem arbitrariamente
retiradas dos retiros, “quando se encontrava melhor utilização para elas” (BROWN, 1990, p.
219). Essa atitude dos pais foi extensamente reprovada pelos clérigos, através de escritos,
cartas, homilias, etc., inclusive Basílio criticava tal atitude.
Contudo a escolha dessas mulheres pela vida ascética, poderia ser uma forma de
libertação das obrigações do lar, seja o paternal ou conjugal. É importante lembrar que o
próprio Gregório acreditava que a castidade era uma forma de se libertar para poder se
concentrar no cuidado de sua própria vida. Para ele, a liberação do matrimônio (o celibato) é a
forma primeira, a flexão inicial da vida ascética (FOUCAULT, 2006), evidenciado no título de
um dos capítulos do seu tratado sobre a virgindade, em que ele propõe que “A renúncia ao
matrimônio é o começo do cuidado de si”. Para Foucault (2006), isso mostra-nos a maneira
como o cuidado de si tornou-se uma espécie de matriz do ascetismo cristão.
As mulheres de vocação ascética vinham dos grupos sociais das classes mais altas,
onde já tinham riqueza e o prestígio necessários para causar impacto permanente sobre a
igreja cristã (BROWN, 1990). Contudo, existiam outras mulheres, com menos condições
financeiras, que entravam para a vida ascética, por isso a importância de se juntar algumas das
matronas ricas, muitas delas viúvas, que financiaram o desenvolvimentos do monasticismo.
No monasticismo, as viúvas, foram muito importantes para o patrocínio desse
movimento. Algumas viúvas como Melânia, a antiga, Marcela e Paula, essas duas últimas
ligadas a figura de São Jerônimo, entre tantas outras (ALEXANDRE, 1990), foram
financiadoras da construção de vários mosteiros ao longo de todo império, pois, em sua
maioria, eram herdeiras de grandes posses. Contudo, devemos apontar que a viuvez
consagrada, ou seja, aquelas que se conservaram sem se casar, era considerada “uma forma
secundária de castidade” (SIQUEIRA, 2004, p. 167), sendo a principal a virgindade, mas
ambas, virgens e viúvas, eram consideradas esposas de Cristo (SIQUEIRA, 2004).
No contexto do século IV, as virgens eram representadas como um dos poucos seres
humanos capazes de manterem a originalidade da sua criação, verdadeiros “esteios do
cristianismo” (ZIERER, 2013, p. 308), como dizia Metódio, a virgindade era a garantia de
ascese, o retorno à origem e a imortalidade (VAINFAS, 1986). Elas eram apresentadas como
tendo um “deserto em si” (BROWN, 1990, p. 226). Diferentemente dos homens, inclusive
seus irmão, que constantemente se encontravam em disputas pelo poder e controle da religião
das cidades, as virgens para os bispos do período, “mantinham a pureza original do
pensamento cristão”(ZIERER, 2013, p.308).
Uma das representações mais aplicadas as virgens era a comparação do estilo de vida
delas com a “metáfora do espelho”. Por se tratar de uma das formas de contemplação interior,
de “olhar para dentro”, ou até mesmo o “conhece-te a ti mesmo”. Pois esse seria uma forma
de mirar o seu reflexo, contemplar o seu interior, a materialização de sua alma. Em seu tratado
Da Virgindade, Gregório de Nissa expõe que “...como um espelho, quando é bem feito recebe
em sua superfície polida os traços daquele que lhe é apresentado, assim também a alma,
purificada de todas as manchas terrestres, recebe em sua pureza a imagem da beleza
incorruptível” (CHEVALIER, 1995, p. 393 apud ZIERER, 2013, p. 308).
Gregório acreditava que para qualquer método ser eficaz deveria ser como um
espelho, como uma virgem, espécie de corpo-espelho onde as pessoas poderiam ter um
vislumbre da pureza, da pureza, da imagem de Deus. Segundo ele, uma virgem era um
espelho da alma e uma imagem física do Jardim do Éden, também era uma terra virgem
(ZIERER, 2013). E essa relação entre a representação do espelho e as virgens também se faz
presente na obra VSM, nela o autor descreve um sonho que tivera enquanto viajava em
direção ao retiro de sua irmã:

Agora, quando eu havia cumprido a maior parte da viagem e estava a um dia


de distância, uma visão apareceu-me num sonho e encheu-me com ansiosas
antecipações do futuro. Parecia-me que carregava relíquias de mártires em
minhas mãos: um luz veio delas, tal como [976 B] vinda de um espelho claro
quando é colocado voltado para o sol, de forma que meus olhos foram
cegados pelo brilho dos raios. A mesma visão voltou-me ao espírito
vividamente três vezes aquela noite. Eu não podia entender claramente o
enigma do sonho, mas vi infortúnio para minha alma e observei
cuidadosamente a fim de julgar a visão pelos acontecimentos (Greg., Vit.
Macr., 15.2).
De acordo com Brown, Gregório entendeu esse sonho como um sinal, que a morte de
Macrina estava próxima: ele entendeu que o corpo de sua irmã era um espelho imaculado de
uma alma que enfim refletia a luz ofuscante da katharotés, a pureza radiante de Deus. Mais
tarde, quando este estava preparando o corpo de sua irmã para o ritual fúnebre, o brilho de sua
pele pálida, em contraste com o tosco manto negro em que ela estava em seu caixão,
confirmou o sonho dele, para ele, o corpo de Macrina se transformou numa coisa sagrada
sobre a qual passou a repousar a graça de Deus (BROWN, 1990, p. 249). Interessante é que,
de acordo com a biografia de Macrina, assim como a sua morte, o seu nascimento foi previsto
por um sonho18.
Pouco a pouco o cristianismo do século IV, principalmente depois do fim das
perseguições, vão produzindo uma institucionalização da fluidez múltipla de suas
experiências, dessa forma a “ascese dos renunciantes ou das virgens, doméstica ou vivida em
coabitação de homens e mulheres ascetas, na errância ou na reclusão, cede passo às
comunidade monásticas, frequentemente duplas, redigidas por regras, submentida a uma
autoridade, fechadas em clausura, mas estrita para as mulheres” (ALEXANDRE, 1990, p.
515).
A biografia VSM é um dos principais documentos para a análise da vida monástica na
região da Ásia Menor, pois o autor traz vários detalhes sobre o comportamento dos
enclausurados, principalmente das mulheres. Por tanto é importante que analisemos a
biografia, a fim de extrair algumas informações sobre o modo de viver e as práticas comuns a
esses espaços, principalmente o de Anesi. Será esse um dos assuntos do nosso próximo
capítulo, assim como também analisaremos o papel exercido por Macrina em suas
representações nesse mosteiro, percebendo as intencionalidades de Gregório de Nissa.

O texto está encaminhado, mas precisa de revisão urgente. Você usa com abundância
pronomes onde não há necessidade, uso não indicado dos verbos no futuro do pretérito.
E na maioria dos casos começa uma discussão, por exemplo ascese e sem terminar passa
para outra questão. É preciso fazer a proposição e não perdê-la de vista.

18 No seu primeiro parto ela se tornou mãe de Macrina. Quando veio a hora devida, as dores agudas do parto
terminaram, ela adormeceu e parecia estar carregando em suas mãos aquilo que ainda estava em seu útero. E
alguém com forma e brilho mais esplêndido que um ser humano apareceu e dirigiu-se à criança que ela estava
carregando pelo nome de Thecla, que Thecla, eu quero dizer, que é tão famosa entre as virgens. Depois de fazer
isto e testemunhar isso três vezes, ele partiu da sua vista e deu a ela um parto fácil, de maneira que, naquele
momento, ela acordou do sono e viu seu sonho realizado. (Greg., Vit. Macr., 2.3)
BIBLIOGRAFIA

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