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COLEÇÃO10

© 2007, Editora Sundermann Josef Weil (org.)


A editora autoriza a reprodução de partes desse livro para fins acadêmi­
cos e/ou de divulgação eletrônica, desde que mencionada a fonte.

Supervisão editorial: João Ricardo Soares e Luiz Gustavo Soares


Produção editorial: Fernando Ferrone
Revisão: Luiz Gustavo Soares e Diego Siqueira
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica: Kit Gaion

Dados internacionais de catalogação (CIP) elaborados na fonte


por Iraci Borges - CRB 8 2263

Weil, Josef, org.


O Oriente Médio na perspectiva marxista. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.
O Oriente Médio na
248p. (Coleção 10, 5)

ISBN: 978-85-99156-19-3
perspectiva marxista
1. Sionismo. 2. Imperialismo. 3. Povos árabes – libertação. 4. Povos muçulmanos – liberta­
ção. I.Título. II. Parras, Angel Luis. III.Toledo, Cecília. IV. Welmovicki, José, colabs.

CDD 322

Índice para catálago sistemático

Sionismo. Imperialismo. Oriente Médio. Marxismo.

Com exceção do último artigo, escrito especialmente para esta coletânea por A. L. Parras
e traduzido por Diego Siqueira, todos os textos foram inicialmente publicados na revista
Marxismo Vivo em seus números 3, 9 e 14.

Editora Sundermann
Rua Matias Aires, 78 • 01309-020 • Consolação • São Paulo • Brasil
+55 -11 3253 5801 (tel) • +55 -11 3289 8097 (fax)
vendas@editorasundermann.com.br • www.editorasundermann.com.br São Paulo, 2007
SUMÁRIO

Parte 2
07 Introdução
José Welmovicki
129 Islã: da Porta sublime à porta do Inferno
Cecília Toledo e José Welmovicki
Parte 1
139 Os novos cruzados
19 O que é Israel? Cecília Toledo e José Welmovicki
Alejandro Iturbe e Josef Weil

39 Cinco décadas de pilhagem e limpeza étnica Parte 3


Cecília Toledo
167 Islamismo, expressão distorcida do nacionalismo
75 A encruzilhada palestina Angel Luis Parras
Angel Luis Parras e Josef Weil

109 A derrota de Israel no Líbano


Alejandro Iturbe e Josef Weil
INTRODUÇÃO

José Welmovicki

Há uma região que não sai do noticiário em nossos


telejornais, dos jornais diários e nas revistas semanais,
desde pelo menos 2001. Os atentados de 11 de setem­
bro, a invasão do Afeganistão e depois do Iraque, a guer­
ra permanente de Israel contra palestinos e o Líbano e
demais povos árabes colocam sempre na tela e nas man­
chetes internacionais o Oriente Médio ou as questões
derivadas das lutas desta região. Nossos meios de co­
municação, ecoando a mídia dos países ocidentais mais
poderosos, costumam explicar esses fatos com uma
simples acusação preconceituosa e racista: identificam
os milhões de trabalhadores e jovens muçulmanos com
o “fanatismo religioso”.
Nas livrarias e revistas, os artigos e livros “sérios” de


Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

figuras acadêmicas como Samuel Huntington falam em Nosso objetivo com essa coletânea tampouco é resumir-
“choque de civilizações”. Portanto, tudo se resumiria se a ser simpático à causa palestina ou dos povos contra
às “disputas religiosas” ou a um suposto atraso cultural o imperialismo. Teremos alcançado o objetivo se formos
que os impediria de aceitar a “democracia ocidental”. além de posições superficiais e ajudarmos a embasar o
Diga-se de passagem que esse é o sustentáculo da dou­ posicionamento de quem nos ler. Por isso, selecionamos
trina Bush. Na Europa não é diferente: racistas como as questões centrais em discussão no Oriente Médio
Le Pen (que teve seus lemas incorporados por Sarkozy para estudar mais de perto e reunir análises fundamen­
na última eleição na França) e Haider na Áustria, ocor­ tadas que dêem um outro olhar sobre cada uma.
rendo casos similares com políticos da Holanda, não são Um olhar comprometido com a luta contra o impe­
apenas fenômenos excêntricos. rialismo, contra o racismo e de apoio à libertação nacio­
Claro, posições como essas só podem causar repug­ nal. Neste livro reunimos ensaios e textos que buscam
nância aos lutadores do movimento sindical, popular e à jogar luz nos reais motivos dos conflitos do Oriente
juventude. Há também aqueles que entendem não ser Médio, na sua importância mundial e no papel que os
somente uma luta religiosa, que admitem que existe um povos dessa região heroicamente vão assumindo na luta
conflito de interesses, mas que agregam que nenhum e que podem inspirar a nossa América Latina também
lado tem razão e que “nós devemos condenar todos os em confronto com a mesma dominação imperial.
que fazem a guerra” e lutar “pela paz”, “nem Bush nem
Jihad”, “nem Israel nem palestinos”. Nada mais equivo­ Os reais motivos do acirramento da situação no
cado do que tentar aparecer como o “justo meio-termo”, Oriente Médio
o “equilibrado” num conflito tão decisivo: quem tenta
ficar em cima do muro acaba por apoiar um dos lados, Embora pareça uma questão óbvia, há que se res­
nesse caso, o dos poderosos. ponder aos argumentos da mídia de que tudo não passa
Nós temos uma posição e não a escondemos: é ao de disputas religiosas. Para os que como nós vemos que
lado dos povos oprimidos. É essa posição que vai se o dominante no mundo é o imperialismo e seus interes­
refletir nos materiais que publicamos nesta coletânea. ses econômicos, o acirramento da situação que ocorre é

 
Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

reflexo dos ataques que o imperialismo desfere contra situação cada vez mais pantanosa para o imperialismo
os trabalhadores e os povos de todo o mundo. O Oriente no conjunto do Oriente Médio. Nessa ocupação, está
Médio é a região-chave para o controle do petróleo e sendo decidida boa parte do destino da atual política
das fontes de energia. Frente ao apetite voraz dos impe­ do imperialismo estadunidense. Uma derrota de Bush
rialismos estadunidense e europeu, vários povos dessa e dos Estados Unidos abrirá condições muito mais favo­
região lutam por sua independência. ráveis para o avanço da liberdade dos povos do mundo
A peculiaridade da situação atual é que ao contrário inteiro.
do esperado pelo governo Bush, no Iraque e no Afega­
nistão desenvolvem-se guerras de libertação nacional As verdadeiras questões em jogo
que atacam as ocupações militares, colocando como no Oriente Médio
possibilidade real a derrota e a expulsão dos invasores.
Em particular, o elemento mais avançado é a luta dos As verdadeiras questões-chave no Oriente Médio
iraquianos contra as tropas de ocupação dos Estados envolvem o sionismo e Israel, a definição do islamismo
Unidos e seus aliados. Embora haja enfrentamentos e dos movimentos fundamentalistas. A primeira delas
entre setores da comunidade e esta seja a intenção dos em que a confusão é grande (e interessada) é o caráter
ocupantes estadunidenses e de seus títeres no gover­ de Israel. Em geral, associa-se Israel a um país qual­
no de Bagdá, o fato central é a luta do povo iraquiano, quer como o Brasil, ou com os Estados criados após a II
a resistência contra a ocupação, que já infligiu mais de Guerra Mundial (1939-1945), como Índia ou Indonésia,
3.300 mortos às tropas dos Estados Unidos. Esse curso após se libertarem dos respectivos imperialismos. Ou
desfavorável da guerra no Oriente Médio atingiu o país seja, um Estado nacional a mais, com a peculiaridade
como um bumerangue, incidindo sobre as eleições legis­ de que se trataria do Estado criado pelos judeus perse­
lativas e se expressando como uma maré de votos con­ guidos sobreviventes da fúria anti-semita do nazismo. E
tra Bush. A derrota do governo, a divisão na cúpula dos que agora estariam novamente submetidos a novos ad­
partidos estadunidenses, a votação do Congresso para versários que os querem liquidar, os árabes. Daí, Israel,­
marcar uma data para volta dos soldados refletem essa a “única democracia do Oriente Médio” (como disse

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

alegremente o correspondente da rede Globo M. Lo­ tugueses e espanhóis. Já no século 19 e 20, os europeus
sekan durante a cobertura da segunda invasão ao Líba­ que ocuparam a Ásia e África justificavam sua coloniza­
no) seria­ merecedor de toda a “solidariedade” dos povos ção dizendo que se tratava de povos atrasados, aos quais
de todo o mundo. se devia levar a “civilização ocidental”.
Convidamos vocês a ler o artigo dessa coletânea Na verdade, sempre houve resistência contra os in­
sobre origem e atual política do sionismo e Israel para vasores desde a época de Lawrence da Arábia logo de­
conhecer informações ocultas cuidadosamente pela im­ pois da I Guerra Mundial (1914-1918). Vários dirigentes
prensa e mídias como a Globo. Nem Israel é uma de­ árabes e persas surgiram nessas lutas como Nasser do
mocracia, mas sim um Estado racista, nem é um pobre Egito, o partido Baath do Iraque e Síria ou Mossadegh
Estado isolado, mas sim um “Estado policial” armado do Irã. Esses partidos e líderes tinham um limite muito
até os dentes a serviço dos Estados Unidos e sua po­ grande por serem defensores de um capitalismo nacio­
lítica. Pronto para esmagar os palestinos ou invadir os nal independente numa época em que o imperialismo
vizinhos para impor sua força e servir a seu amo. Mas não deixava espaço para uma autonomia relativa. Im­
a crise também atingiu esse outro baluarte dos Estados punham regimes bonapartistas e tratavam de controlar
Unidos na região. Ocorre que o povo libanês em 2006 as massas, reprimindo sua organização independente, e
derrotou a invasão do até então “todo-poderoso” exér­ foram todos derrotados pela ação do imperialismo, por
cito sionista de Israel e isso agravou ainda mais a crise Israel e por suas próprias vacilações ao enfrentar o im­
política do governo Bush. perialismo, refletindo mais cedo ou mais tarde a sub­
Por último a questão em que mais se joga confusão: missão de suas respectivas burguesias aos ditames do
o nacionalismo árabe e o fundamentalismo islâmico. Se império.
fossemos acreditar no que sai nas TVs e imprensa, es­ Frente a essas derrotas, novas forças surgiram tentan­
taríamos diante de povos bárbaros, com uma cultura e do acaudilhar as massas em rebelião, e a partir da Revo­
religiões primitivas, adequadas à violência e ao fanatis­ lução iraniana de 1979 dirigentes burgueses religiosos,
mo. Também se falava isso dos indígenas e lutadores da como os aiatolás iranianos ganharam peso e passaram
América Latina que combatiam os colonizadores por­ a cumprir um papel semelhante, agregando aos limites

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

dos antigos nacionalistas árabes a ideologia religiosa re­ rialismo. Estes diziam que defendemos a derrota do
acionária na sua pregação. Propõem Estados islâmicos: imperialismo e, portanto, a vitória do país agredido, in­
regimes bonapartistas e ditaduras com manto religioso, dependentemente de quão reacionária seja sua direção­
que buscam desmontar e enfrentar todo processo revo­ e seu regime.
lucionário, perseguem os ativistas operários e juvenis “O fundamentalismo é um fenômeno similar ao na­
e toda corrente que não aceite seus planos políticos e cionalismo burguês. Por isso, preservando a indepen­
suas doutrinas reacionárias. Como explica o artigo de dência política e de classe e sem dar apoio político a
Angel Luis Parras “Em todos os casos, por sua natureza essas direções, chamamos a unidade de ação com as
burguesa e teocrática, nunca são conseqüentes na luta correntes­ islâmicas que enfrentam o imperialismo”.
contra o imperialismo”. Como se pode ver, nesta coletânea estão colocados
Aqui a confusão é forte também na esquerda mun­ pontos de vista bem diferentes do que se lê e se escuta
dial: a posição mais comum é compará-los ao fascismo em nossa mídia e esperamos que possam ajudar a en­
e, portanto, até justificar os golpes militares contra eles. tender um tema tão importante hoje para a ação transfor­
Muitas organizações dizem que, ao contrário das cor­ madora na realidade. Mais ainda quando a causa dos po­
rentes burguesas e pequeno-burguesas anteriores e de vos do Oriente Médio é a mesma dos povos da América
outros países coloniais e semicoloniais, com as correntes Latina e de nosso país. Esperamos que os materiais aqui
islâmicas não se pode fazer nenhum acordo de unidade reunidos ajudem nessa compreensão.
de ação e de luta no campo militar contra o imperialis­
mo. Alguns dizem que entre o imperialismo e os funda­
mentalistas se trata de dois setores igualmente reacio­
nários e que a política deve ser chamar à “paz”.
Reproduzimos o texto de A. L. Parras nesta coletâ­
nea que parte de outros critérios e tira outras conclusões.
Parte dos ensinamentos de Lenin e Trotsky diante do
enfrentamento de um país mais débil contra o impe­

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Parte 1

O Estado de Israel
O QUE É ISRAEL?

Alejandro Iturbe
Josef Weil

A lenda sionista conta que a criação de Israel foi


como uma a mais das nações que conseguiram sua inde­
pendência política no pós-II Guerra, com rebeliões ou
guerras de libertação nacional contra seus colonizadores
imperialistas. Índia, Indonésia, Argélia, Vietnã são al­
guns dos exemplos mais marcantes desse processo.
Em primeiro lugar, a implantação de Israel difere
totalmente destes exemplos, pois ele é um enclave ins­
talado na Palestina para defender o imperialismo em
terras estratégicas e com base a uma transplantação de
uma população externa à região, os judeus. Apoiada na
perseguição anti-semita, uma imigração, em especial da
Europa oriental, é estruturada pela organização mundial

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

sionista, financiada por milionários como Rothschild­ e salvaguarda para a Inglaterra, em particular no que diz
estimulada pelas metrópoles como a Inglaterra, para respeito ao canal de Suez”. Apoiado nessa população de
garantir a fidelidade desses novos ocupantes a seus pa­ colonos que se deslocaram para a Palestina atraídos pela
trocinadores imperialistas. A comparação correta é com pregação sionista, Israel sempre se comportou de acordo
os colonos ocidentais implantados no século 19 e 20, a esse projeto e a essa finalidade.
nas colônias, a exemplo dos ingleses na Rodésia (hoje
Zimbábue)­ e nas Malvinas. Ou dos franceses na Argélia,­ Um Estado racista
afrikaners no sul da África etc.
Não por acaso as potências imperialistas os promove­ Israel desde sua fundação se constitui como Esta­
ram e os líderes de todas essas empresas colonizadoras do racista, ideológica e legislativamente. Israel é ofi-
como Cecil Rhodes se respeitavam e tiveram relações cialmente um Estado judeu, ou seja, não de qualquer
políticas. Não são uma nacionalidade local que é opri­ habitante que ali resida, mas somente daqueles que se
mida pelos impérios, mas uma população estrangeira consideram da fé ou de descendência judaica. Para ficar
que se instala nas terras dos nativos e exerce um pa- mais claro este caráter, 90% das terras reserva-se exclu­
pel opressor e a serviço de seu imperialismo nessa área. sivamente para os judeus via Fundo Nacional Judaico,
Como são transplantes de uma minoria colonizadora, que por estatutos não pode nem vender, nem arrendar,
para manter-se tem um caráter racista e militarista. nem sequer permitir que essa terra seja trabalhada por
Como eram o governo branco da Rodésia, os colonos um “não judeu”. Mais ainda, proíbe-se aos palestinos
franceses na Argélia e a África do Sul do Apartheid. qualquer compra ou mesmo arrendamento das terras
O Estado de Israel serviu para as grandes potên­ anexadas pelo Estado desde 1948.
cias imperialistas disporem de um cão de guarda numa Ao mesmo tempo, os judeus do mundo inteiro po­
região estratégica, o Oriente Médio. O líder sionis­ dem legalmente emigrar e obter, com a nacionalidade is­
ta Chaim Weizmann, posteriormente presidente de raelense, um sem número de privilégios sobre os nativos
Israel,­ chegou a garantir ao imperialismo inglês no fim não judeus. Desde sua fundação existe um sistema de
da I Guerra Mundial: “uma Palestina judaica seria uma discriminação racial que domina absolutamente todos os

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

destinos das vidas palestinas; o que se diria hoje de um foram expropriadas de refugiados palestinos no exílio,
país que tivesse como política oficial a expropriação de assim como de palestinos cidadãos de Israel e todo pa­
terras de judeus, ou que simplesmente proibisse que um lestino que residindo na Margem Ocidental tenha terras
cidadão de seu país pudesse assentar-se nele se se casas­ na área ampliada de Jerusalém.
se com uma mulher judia? Obviamente dir-se-ia tratar- Estas leis – apenas uma parte do total utilizado ex­
se de um flagrante caso de discriminação, de anti-semi­ clusivamente contra a população árabe em Israel – não
tismo e seguramente, seria comparado com o nazismo ou só tem um elemento econômico importante (pela perda
com o Apartheid sul-africano. No entanto, isso em Israel de numerosas extensões de terras), mas principalmente
é legal através de uma série de instituições e leis que possuem um componente social: a divisão de famílias,
restringem somente aos cidadãos não judeus de Israel. forçando-as a emigrar. Começou a ser denunciado o fato
Dentre essas leis, destacam-se algumas. A Lei de de impedir até mesmo a realização de casamentos entre
Nacionalidade estabelece claras diferenças na obtenção pessoas não judias que habitem áreas distintas dos ter­
da cidadania para judeus e não judeus. Pela Lei de Ci­ ritórios ocupados, ou até mesmo a reunificação de famí­
dadania, nenhum cidadão israelense pode casar-se com lias, marido e mulher, pais e filhos:
um residente dos Territórios Ocupados da Palestina; Em 2000, similarmente eles ‘reavivaram’ regras que
em caso de realizar-se a união, os direitos de cidadania foram tomadas com respeito aos palestinos cujos côn-
em Israel se perdem e a família se não é separada, deve juges eram cidadãos de países árabes, ou seja, não
emigrar. Pela Lei de Retorno, qualquer judeu do mun­ ocidentais. Eles não tiveram permissão para retornar
do pode ser cidadão israelense. No caso dos cidadãos a suas casas. Entre 1994 e 2000, durante os anos de
palestinos do Estado de Israel que tem familiares no es­ Oslo foram dadas instruções para atrasar o processo
trangeiro, estes não podem obter o mesmo beneficio so- de ‘unificação familiar’ pelo qual dezenas de milhares
mente pelo fato de não serem judeus. A Lei do Ausente de famílias nos territórios ocupados estão esperando,
permite a expropriação de terras que não hajam sido a um mínimo. Estas famílias não estão morando em
trabalhadas durante um tempo. Paradoxalmente, nunca Haifa ou Ashkelon, mas na Margem Ocidental e na
foi expropriada a terra de um judeu e a maioria delas Faixa de Gaza.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Os postos de controle “só para palestinos”, com as Para manter seu caráter colonial e racista, ele não pode
esperas propositais e irritantes nas suas entradas im­ tolerar resistência interna, nem desafios em suas fron­
postas pelo exército de ocupação, contrastando com teiras. Tem que ser expansionista e reprimir qualquer
as modernas e livres estradas “só para judeus” são um mínima contestação à sua natureza.
outro elemento de exasperação para fazer com que os Desde sua fundação, a fim de impor a ferro e fogo
palestinos desistam de ali ficar, mas ao mesmo tempo sua natureza racista, Israel praticou uma permanente
de revolta profunda. limpeza étnica dos palestinos arrancando-os de suas
A construção do Muro ao largo e dentro dos limites terras ancestrais. Por isso, sempre teve como política
municipais de Jerusalém impedirá definitivamente consciente agredir os vizinhos árabes tanto para arran­
a volta dos palestinos expulsos de Jerusalém pelo car terra e fontes de água, quanto para impor a vontade
confisco de suas terras, a demolição de suas casas ou imperialista na região, impedindo o desenvolvimento
pressões de grupos de colonos extremistas. Perderão de qualquer nacionalismo que o ameaçasse, como fi­
seus direitos de residência permanente em Jerusa- zeram com Nasser, e perseguindo implacavelmente os
lém segundo a política do “centro de vida” e nunca lutadores palestinos.
mais poderão entrar na cidade sem permissões espe- Dos mais de dez mil presos políticos que apodrecem
ciais. As propriedades que tiverem abandonado em nos cárceres sionistas, centenas são menores. A tortu­
Jerusalém podem ser desapropriadas segundo a lei ra praticada sob autorização da justiça, os “assassinatos
israelense de Proprietários Ausentes. seletivos” nos territórios são a rotina que este monstro
racista tem a apresentar como expressão de sua essência
nazista. Isto pois quando um Estado persegue um povo
Uma sociedade cada vez mais inteiro com objetivos de eliminar sua identidade, de tor­
violenta e racista ná-lo escravo ou expulsá-lo, não há outro nome a dar ao
regime desse Estado.
Um Estado como o israelense necessita permanente­ Para defender tal caráter do Estado, a população is­
mente exercer a violência contra a população dominada. raelense vive sempre em pé de guerra. Uma população

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

que foi educada a estar sempre ao serviço do Exército, A situação econômica é desastrosa. Israel só sobrevi­
pois só a força das armas pode garantir uma situação ve graças ao sustento estadunidense. Sua economia gira
como essa. Por isso, são as Forças Armadas sua mais im­ totalmente em torno da guerra em detrimento de todos
portante instituição. E o papel desse Exército é impor os demais setores. O que se vê é uma cultura militarista
aos palestinos e povos vizinhos a submissão, o saque de e sanguinária. Os mercenários israelenses são conhecidos
suas terras, com o uso extremo da violência. no mundo inteiro, recrutados em guerras coloniais ou por
Essas exigências permanentes em nome da “segu­ ditaduras, caso semelhante aos mercenários sul-africanos.
rança de Israel” criam uma realidade de permanente As divisões e desigualdades entre diferentes grupos
chamado às armas. Todos os homens e mulheres ser­ da população e setores de imigrantes judaicos são pa­
vem respectivamente três e dois anos ao completar 18 tentes. Os judeus orientais ou sefaradis recebem melhor
anos e são reservistas por quase toda a vida, fazendo trato que os árabes israelenses, mas são discriminados
treinamentos anuais de um mês. Mesmo assim, não em relação aos ashkenazis originais da Europa. A imigra­
conseguem a tão ansiada “segurança”. Até a primeira ção de um milhão de russos (judeus ou supostos judeus)
derrota em 2000, ainda eram anestesiados pelo mito do originou um clã pouco apreciado pelos outros grupos
exército invencível. sociais, por sua fama de aproveitadores e permanentes
A violência em Gaza ou na Cisjordânia não é noticia­ negociadores de subsídios do Estado. Os partidos que
da em Israel. Afinal, os palestinos não são considerados os representam são de extrema direita e estão sempre
seres humanos, que fossem mortos ou torturados pelas a exigir suculentos cargos e negociatas para manter seu
Forças Armadas para o establishment era uma decorrên­ apoio ao governo de turno.
cia do “direito a se defender”. Antes a questão nem en­ Outro setor que cumpre um papel de parasita e é
trava na pauta dos jornais israelenses, aparecia como um sustentação direta da extrema direita religiosa e de seus
problema de polícia exclusivo dos territórios. Havia ape­ políticos racistas e corruptos são os colonos que vivem
nas que impedir os atentados suicidas com mais repres­ nos territórios ocupados em 1967. Como se viu na “de­
são ainda e isolá-los totalmente, daí o projeto do “Muro socupação” de Gaza, seus interesses são exigir mais e
da Vergonha”. O resto, o Tsahal (Exército) garantiria. mais regalias do Estado para ser a ponta de lança da

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

colonização e da expulsão dos palestinos. Geralmente neira ou outra vivem do saque a outro povo e do apoio
quem cumpre esse papel são os judeus das últimas levas que têm do imperialismo para cumprir o papel de cão
de imigrantes a chegar a Israel, os russos ou orientais, de guarda na região. Sabem que os povos árabes e
aos quais o Estado sionista destina terras financiadas, muçulma­nos são suas vítimas e temem que essa massa
subsídios, com a condição de que aceitem viver em se una e os expulse. Por isso, a única coisa que susten­
bunkers ao lado da população árabe e ser ponta de lança ta hoje a coesão dessa sociedade racista e violenta é o
em agredi-los, atacar seus olivais, fazer com que saiam medo ao “inimigo comum”, o que é permanentemente
das poucas terras que lhes restam. lembrado com força pelos dirigentes israelenses de to­
Por último, nos últimos anos tem havido uma popu­ das as cores. “Ou eles ou nós” é a mentalidade primitiva
lação flutuante de imigrantes temporários ilegais trazidos usada para manter a união, é o único nexo possível de
dos lugares mais distantes e sem conexão com a região, união, ou “nosso direito à existência” enquanto Estado
como Filipinas e outros pontos da Ásia. Eles são trazidos racista, enquanto privilegiados saqueando os nativos e
para substituir a mão de obra palestina, à medida que os explorando seus escravos.
fechamentos de fronteiras impedem que estes trabalhem Devido a isso, a maioria dos israelenses está a favor da
nas empresas dentro do território de 1948. Esses duzentos “separação” e da limpeza étnica de palestinos e da des­
e cinqüenta mil semi-escravos não judeus são fundamen­ truição do Hezbollah; apoiou a guerra contra o Líbano,
tais em áreas como construção, mas não tem nenhum di­ inclusive seu caráter genocida. Por isso, a cada guerra,
reito, são párias que deixam ainda mais precários os laços mesmo com as derrotas, os políticos que se fortalecem­
da sociedade em Israel, vivendo à sua margem. são os mais fascistas do espectro político sionista.

Apesar das crises e diferenças, Um exército em processo de corrupção


os colonos defendem seu Estado
Mas se é assim, porque a derrota abriu uma profunda
Claro que há um laço comum que liga todos os ci­ crise? Porque mostrou que Israel é “um país vulnerá­
dadãos judeus israelenses: eles sabem que de uma ma­ vel”. Que o Exército e a superioridade militar não lhes

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

dão uma garantia eterna, e os refugiados de Haifa e do seus alvos sem ter de se preocupar com a resposta, como
norte do país provaram na carne essa situação. E de­ os pilotos da força aérea que bombardearam e assassi­
pois de anos sem batalhas contra os exércitos árabes, já naram à vontade sem correr riscos. Mas agora têm que
percebem que não conseguem enfrentar uma guerrilha. enfrentar uma verdadeira guerrilha, e aí não têm moral
Uri Avnery, pacifista israelense da organização Gush nem treinamento necessários:
Shalom escreveu um artigo em que faz um diagnóstico Durante trinta e nove anos foram obrigados a realizar
avassalador: o trabalho de uma força policial colonial: correr atrás
a ocupação está corrompendo nosso Exército [...] A de meninos que atiram pedras e coquetéis molotov,
última guerra séria de nosso Exército foi a Guerra arrastar mulheres que tratam de impedir que pren-
do Yom Kippur (1973). Depois de vários importantes dessem seus filhos, capturar pessoas que dormem
reveses, obteve uma vitória impressionante. Porém, em suas casas.
quando isso ocorreu a ocupação só tinha seis anos.
Agora, trinta e três anos depois, vemos o dano feito O problema é que isso vale não somente para os que
pelo câncer chamado ocupação, que já se espalhou a perseguem palestinos nos territórios ocupados, é a ca­
todos os órgãos do corpo militar. racterística intrínseca de um Estado policial colonial. E
para um enclave, ter um problema desta gravidade em
Generais como Dan Halutz, comandante supremo suas Forças Armadas é aterrador, gera uma insegurança
que se preocupou em lucrar na Bolsa no mesmo dia em em todos os níveis da sociedade. À medida que a reali­
que se decidia a invasão, são um sintoma do grau de de­ dade vai mostrando-se cada vez mais perigosa como ten­
terioração da moral e das relações nas antes incensadas dência, muitos israelenses se cansam deste ambiente,
cúpulas das Forças Armadas israelenses. fato que se traduz num número não desprezível de fu­
Avnery refere-se ao fato de que a descomunal desi­ gas. Essas cifras escondem cuidadosamente, mas já são
gualdade entre as Forças Armadas sionistas e os resis­ um fato: um número considerável de israelenses, muitos
tentes palestinos levou a que os oficiais e soldados is­ deles da elite intelectual e profissional, busca uma so­
raelenses se acostumassem durante vários anos a atacar lução individual para sair do inferno da guerra perma­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

nente migrando. Esses emigrantes saem discretamente crônica de uma militante espanhola que passou várias
alegando ir estudar ou trabalhar no estrangeiro (princi­ semanas com os palestinos e depois em Israel e nas co­
palmente Estados Unidos e Europa), mas muitos ficam lônias sionistas da Cisjordânia:
fora e só visitam o país brevemente para ver as famílias. …o sentimento de prepotência e superioridade dos
Na propaganda sionista, nem se menciona esse fato; israelenses e sua concepção dos palestinos e árabes
só se mostram os novos imigrantes judeus que chegam em geral como seres inferiores, incivilizados, violen-
para fixar-se em Israel, chegando ao aeroporto mesmo tos e os quais temem de uma forma totalmente irra-
durante a guerra, tentando demonstrar uma ardente fé cional. Este sentimento se aguça durante o serviço
sionista. Outra cifra que vai aumentando é a deserção militar e podes percebê-lo com toda sua crueza em
não explícita, saída de jovens em idade militar, que tra­ cada um dos checkpoints que tens que atravessar. É
tam de evitar as frentes e o serviço em territórios pales­ habitual ver como os soldados tratam os palestinos
tinos ou libaneses. como animais.

Podem o povo israelense e seus operários Visitando uma colônia na Cisjordânia, ela relata:
voltar-se contra o sionismo? O que se vê e se sente quando passeia por ali é que
são lugares sem alma. São lugares tão artificiais, tão
As crises em Israel e em especial no Exército são alheios ao entorno que os rodeia, que indubitavel-
muito importantes porque debilitam o Estado, abrem mente a maneira mais acertada de qualificá-los é de
brechas para que a resistência possa golpear, e preparam “câncer”. Câncer, como tecido que cresce totalmen-
sua derrota. Contudo não pensemos que se trata de um te diferente ao tecido sobre o qual se localiza e que,
país normal, inclusive se o comparamos com um país além disso, é daninho e pode ser letal. Outra coinci-
imperialista. Aqui a população é formada por colonos, dência entre as colônias e o câncer é seu tratamento.
dependem da manutenção do Estado racista para man­ Seu tratamento não pode ser outro que a destruição
ter seu nível de vida e sua proteção contra as reivindi­ desse novo, alheio e daninho tecido, sua destruição
cações dos povos espoliados. Vejamos o que conta uma ou sua extirpação radical. E não há outra saída.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

A chantagem do anti-semitismo O estudo do nazismo e do ascenso do fascismo mos­


traria que ele foi tolerado e estimulado pelos regimes
Desde que Israel surgiu, seus dirigentes e o sionismo “democráticos” dos países imperialistas pois esperavam
utilizaram a chantagem do Holocausto nazista para im­ que eles pudessem reprimir os seus movimentos ope­
por sua política. Frente ao massacre nazista, a comoção rários e invadir a URSS. E que o sionismo da época foi
mundial foi utilizada pelo sionismo para vender a idéia cúmplice e nada fez para salvar os judeus da Europa
de que única saída para a perseguição era a criação de ocidental das câmaras de gás.
um Estado judeu na Palestina. Esse Estado seria um re­ Agora em nome de evitar o anti-semitismo querem
fúgio e única garantia de paz e segurança para todos os que se avalize os métodos genocidas de Israel, se calem
judeus do mundo. Essa gigantesca falácia agora se mos­ ante os crimes de Israel e sobre o local onde está o ver­
tra em toda sua crua realidade. Ao se basear na espo­ dadeiro fascismo de hoje.
liação de outro povo, o palestino, ao se converter neste
monstro colonial, racista e opressor, converteu-se hoje A polêmica sobre a natureza e
na “maior fábrica de vírus do anti-semitismo”, segundo a solução para a Palestina
a expressão de Uri Avnery.
Mas os sionistas não desistiram de usar o fantasma do Podemos dizer que é cada vez maior o número dos
anti-semitismo, agora para impedir a divulgação e tirar que se horrorizam com a ação genocida de Israel, re­
a atenção de sua crueldade com os palestinos, ou pelo pudiam os assassinatos e buscam uma saída para essa
menos inibir as críticas, e incitar mais judeus a que se ins­ situação permanente de guerra na região. Entre esses
talem em Israel “para defender seu único refúgio”. Mas a há três posições sobre qual deve ser a saída.
chantagem do anti-semitismo, esse terrorismo intelectual A mais difundida era a solução dos “dois Estados”,
e moral, essas constantes mentiras fomentadas pelos po­ um judeu e outro palestino, no mesmo sentido da pro­
líticos imperialistas e pela mídia servem para tentar calar posta da ONU de 1948. Desde os acordos de Oslo,
os críticos. A manipulação permanente do genocídio dos havia uma pressão muito forte para que os palestinos
judeus pelos sionistas também acaba por se desgastar. aceitassem essa solução e a traição da OLP sob a direção

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

de Arafat permitiu a implantação deste “engendro”, a como o que se passou no fim do Apartheid na África
ANP, que legitimava Israel e se colocava a tarefa impos­ do Sul.
sível de articular um “Estado” de bantustões totalmen­ Voltamos a ter a grande questão colocada na ordem
te dominados econômica e militarmente pelo opressor do dia: é necessário destruir o Estado de Israel e qual­
racista. Como bem classificou Edward Said na época, quer outra solução só fará perpetuar a opressão e expan­
algo como o governo colaboracionista de Vichy sob a são do câncer. E essa destruição só pode ser feita pela
dominação nazista na França. Essa alternativa seria a luta unificada política e militar não somente das mas­
coexistência lado a lado de um Estado racista e outro sas palestinas como das massas árabes e muçulmanas.
das populações excluídas, ou seja, do câncer ao lado do Nessa luta, são positivos cada golpe infligido ao Esta­
tecido vivo. do a seu Exército e a aparição de uma insegurança que
Porém depois de quase 15 anos de Oslo, alguns de leva cada vez mais gente a pôr em dúvida sua estada
seus partidários na esquerda começaram a ver que ela é lá. Só depois de anos de rebelião, ações guerrilheiras,
cada vez mais inviável, pela própria ação de Israel, cada e uma campanha mundial a favor da independência da
vez se apropriando de mais terras e expulsando mais Argélia,­ os grupos fascistas como a OAS foram derrota­
palestinos. O “Muro da Vergonha”, o roubo de mais da dos, os colo­nos da França foram obrigados pela insurrei­
metade das terras da Cisjordânia, das fontes de água ção argelina­ a abandonar seus enclaves e a Argélia pôde
etc. inviabilizaram sequer o mini-Estado destinado aos enfim comemorar sua independência.
palestinos em Oslo. O enclave sionista não aceita reti­ Aqui entra outro problema: em Israel por sua natu­
rar-se de territórios ocupados em 1967, nem dar nenhu­ reza de Estado policial, todas as estruturas são parte do
ma autonomia real aos palestinos nem muito menos sistema militar, por isso todos os judeus lá são soldados
anexar os territórios dando direitos aos palestinos, pois na ativa ou na reserva até os cinqüenta anos de idade.
temem o “perigo demográfico” de anexar três milhões Um kibutz é uma fortaleza armada dos colonos; uma
de “não judeus”. Não se pode pôr um fim à política cidade israelense, o mesmo. O quartel-general está em
de apartheid­ imposta na Palestina por uma sucessão de Tel Aviv. Assim, qualquer estrutura do Estado é alvo
leis e reformas pressionadas pela revolta palestina, algo necessário da guerra de libertação nacional. Os fogue­

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Josef Weil (org.)

tes que caíram sobre as cidades do norte são uma arma


legítima da resistência e, ao abater o moral dos colonos,
ajudam o objetivo de destruir o Estado genocida. Ade­
mais, esse foi o efeito dos que atingiram Haifa ou outras
cidades. Nada mais injusto que o “meio justo” da Anis­
tia Internacional que condena os dois lados por igual,
por “crimes de guerra”.
Essa destruição do Estado de Israel permitiria a re­ CINCO DÉCADAS DE PILHAGEM
cuperação do território histórico da Palestina e a cons­ E LIMPEZA ÉTNICA
trução de uma Palestina laica, democrática e não racista,
antiga reivindicação da OLP dos anos 1970. Nessa Pa­ Cecília Toledo
lestina sem muros nem campos de concentração, os mi­
lhões de refugiados poderiam retornar e todos os judeus “Foi para uma terra sem povo que lentamente, no
que quisessem viver em paz poderiam permanecer da final do século passado, começou a se encaminhar um
mesma forma em que durante muitos séculos viveram povo sem terra”. Essa história, que desde a fundação
no mundo árabe. de Israel em 1948 vem sendo martelada na cabeça dos
povos do mundo inteiro, começa a ruir. E já não mais
apenas por obra dos marxistas revolucionários, mas dos
próprios israelenses. Tom Segev, um dos mais destaca­
dos historiadores de Israel da atualidade, entrevistado
recentemente pelo jornal Folha de S.Paulo, demonstra
essa falácia. Autor do livro 1949, Os Primeiros Israelen-
ses, Segev baseia-se no diário do pai-fundador de Israel,
David Ben Gurion, no qual ele descreve sua política para
forçar a saída dos árabes do recém-criado país. O livro,

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

antes repudiado por mostrar que a versão oficial – em Judeus: um povo-classe nas
voga até então – era fantasiosa e que os árabes não dei­ sociedades pré-capitalistas
xaram Israel por vontade própria – mas foram expulsos­
com requintes de crueldade – já está inclusive sendo Abraham Léon parte da proposta de Marx para de­
adotado nas escolas. monstrar que a suposta originalidade do povo judeu
Esse “reconhecimento” por parte da História ofi­ tem causas materiais e históricas, sem qualquer relação
cial é um tanto quanto tardio se levarmos em conta que com Jeová ou uma pseudo “essência” racial imutável,
outros autores, em especial os marxistas, já haviam, como supõem tanto os anti-semitas quanto os sionistas.
exaustivamente, contado a história real do sionismo e Segundo Marx, para entender a questão judaica, “não
desmascarado uma das mais monumentais falsifica­ devemos buscar o segredo do judeu em sua religião,
ções históricas já feitas até hoje. Entre esses historia­ mas o segredo da religião no judeu real”. Partir da reli­
dores marxistas destacam-se o militante revolucionário gião, como normalmente se costuma fazer, não resolve
Abraham Léon, morto nas câmaras de gás de Auschwitz a questão judaica; para entendê-la é preciso entender o
aos 26 anos, e autor do importante livro A Questão Ju- judeu em seu papel econômico e social.
daica, e Ralph Schoenman, que escreveu a História Léon vai em busca das origens do povo judeu e che­
Oculta do Sionismo, um relato detalhado e que não dei­ ga à importante e rica noção de povo-classe. Nas so­
xa dúvidas sobre a ocupação sionista da Palestina. No ciedades pré-capitalistas, os judeus foram uma classe
entanto, esse reconhecimento é mais uma demonstra­ social, um povo-classe, como são, entre outros povos, os
ção de que a situação é tão grave e o avanço da Intifada ciganos. Os judeus representavam as formas “pré-histó­
tão forte que até importantes historiadores israelenses já ricas” do capital, tanto no mundo antigo como no mun­
estão admitindo que a ideologia “da terra sem povo” é do feudal. No feudalismo, as transações com dinheiro
pura invencionice, e negam a torrente de mentiras que ocorriam relativamente à margem do modo de produ­
os sionistas vêm pregando há décadas e que serviram ção, já que essas sociedades eram produtoras de valores
para iludir muita gente. de uso e não de troca. Por ser uma atividade marginal,
era exercida por “estrangeiros”, por povos-comercian­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

tes, como os fenícios, os judeus e os lombardos. Esses as bases materiais de sua existência como povo-classe.
eram povos-classe que, como dizia Marx, existiam nos Na Europa ocidental, especialmente na Inglaterra, os
poros da sociedade produtora de valores de uso. Assim, judeus começam a assimilar-se de forma natural. Porém
os judeus são a sobrevivência de uma velha classe mer­ antes que esse processo atingisse a Europa oriental, de
cantil e financeira pré-capitalista. capitalismo mais atrasado, entramos na etapa imperia­
Sobre essas relações materiais dos judeus se assenta­ lista do capitalismo, em decomposição no mundo todo.
va uma superestrutura institucional e ideológica: auto­ Os judeus, tanto na Europa ocidental quanto na
ridades comunitárias, uma religião “especial” e o mito oriental, passaram a enfrentar uma situação dramática.
de considerarem-se descendentes do primitivo povo Ao colocar a solução do problema judaico nos termos
hebreu que habitava a Palestina no início de nossa era. da luta pelo socialismo, o marxismo começou a exer­
Essa superestrutura ajudava a manter a coesão do povo- cer uma grande atração sobre as massas judaicas. Seu
classe mas, ao mesmo tempo, falsificava a verdadeira caminho era fundir-se com a classe trabalhadora em
natureza de sua existência. É o fenômeno da falsa cons­ suas lutas contra o capitalismo, pois para as massas ju­
ciência, comum a todas as ideologias. E explica porque daicas miseráveis de Varsóvia ou de Kiev, o caminho
não há unidade racial entre os judeus. Oculto sob esse seguido por seus correligionários mais afortunados da
manto ideológico-religioso, ocorria o fenômeno da in­ Inglaterra ou da França, da assimilação como burgueses
corporação de indivíduos ou grupos inteiros ao povo- nos marcos do capitalismo, já lhes estava fechado. Na
classe. Isso explica que tenha existido judeus de “raça” Rússia, enquanto o império czarista alentava os choques
mongólica no Daguestão, judeus negros (os falasha) na entre russos e polacos ou ucranianos, ou destes contra
Etiópia, judeus árabes no Islã e judeus de origem eslava os judeus, e enquanto o Império Austro-Húngaro fazia
na Europa oriental. Isso prova que a descendência co­ o mesmo no mosaico de povos que dominava, os mar­
mum de Abraão ou dos habitantes da Palestina no início xistas revolucionários chamavam a unidade de todos
de nossa era é puro mito. os trabalhadores (de qualquer língua, nacionalidade ou
Com o desenvolvimento do capitalismo, a velha “raça”) para lutar contra esses regimes e contra toda a
classe comercial pré-capitalista judaica foi perdendo burguesia imperialista européia.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Por isso, muitos operários, estudantes e intelectuais proletariado industrial moderno. Isto se refletia na ideo­
de origem judia ingressaram nas fileiras socialistas e se logia do Bund, que por um lado se reivindicava marxista
assimilaram aos trabalhadores de seus países. Mas o ve­ e revolucionário, e de outro, negava o internacionalis­
lho povo-classe, nas condições do capitalismo moderno, mo ao levantar barreiras entre os operários de distintas
era cada vez menos homogêneo. E assim também fa­ nacionalidades. Com a bandeira de defender a cultura
mílias ricas, como os Rothschild e outros milionários, nacional, pregava que os operários judeus deveriam or­
se ligaram à burguesia imperialista dos diversos países ganizar-se de forma separada dos operários russo, polo­
europeus. E, entre as saídas burguesas para o problema neses etc. Assim, acabava por fazer o jogo da burguesia,
judaico apontadas por esses setores, a mais importan­ ao dividir os trabalhadores de cada fábrica ou cidade se­
te é o sionismo. Outra saída reformista foi proposta por gundo sua origem nacional ou “racial”.
aqueles que ficaram conhecidos como bundistas. Esse caráter contraditório – reflexo de uma contra­
dição real de sua base social – determinava que, apesar
O que foi o bundismo de sua capitulação ao nacionalismo burguês, o Bund não
propunha que os trabalhadores judeus se separassem da
Os bundistas eram membros do Bund, a União Ge­ luta de classe e se unissem à burguesia judia para ir co­
ral de Operários Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, lonizar a Palestina ou algum outro território. Quem fez
fundada em 1897. Surgiram na Rússia como um setor isso foram os sionistas.
da social-democracia, tanto que, no início, fez parte do
Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), O surgimento do sionismo
mas quando este se dividiu, o Bund colocou-se contra
os bolcheviques. Também em 1897, quando surgiu o Bund, realizou-se
A base social do Bund era constituída por setores em Basiléia, Suíça, o Congresso de Fundação da Orga­
de artesãos, semiproletários ou operários de pequenas nização Sionista. O pano de fundo da irrupção do movi­
oficinas, especialmente da indústria de vestuário. Era mento sionista foi a rápida capitalização da economia rus­
um vasto setor com um pé no velho gueto e outro no sa depois da reforma de 1863, o que tornou insustentável

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

a situação das massas judaicas das pequenas cidades. No No princípio, o sionismo apareceu como uma reação
Ocidente, as classes médias, trituradas pela concentra­ da pequena burguesia judaica, duramente golpeada pela
ção capitalista, começavam a se voltar contra o elemento crescente onda de anti-semitismo, tendo que se bandear
judaico, cuja competição agravava sua situação.­ de um país a outro, que queria atingir a terra prometida
Em meio a esse clima, surgiu na Rússia a Associa­ a todo custo para livrar-se dessa situação. No entanto, o
ção dos Amantes de Sion e é publicado o livro de Leon sionismo procura assentar-se em uma explicação religio­
Pinsker, A Auto-emancipação, preconizando o retorno sa para justificar sua existência. No ano 70 da era cristã,
à Palestina como única solução possível para os judeus. os judeus teriam sido expulsos de Jerusalém, ocupada
Logo depois, um jornalista judeu de Budapeste, Te­ pelos invasores romanos. Como na Bíblia, Jerusalém era
odoro Herzl, escreve O Estado Judeu, que até hoje é considerada a pátria dos judeus, eles teriam sido expa­
considerado o evangelho do movimento sionista, segun­ triados; foi a famosa diáspora, que espalhou os judeus
do Abraham Léon. Na França, o barão de Rothschild, pelos quatro cantos do mundo.
junto com outros magnatas judeus, opõe-se à chegada Voltando a Marx, para entender a questão judaica é
em massa de imigrantes judeus nos países ocidentais e preciso partir das condições materiais de vida do judeu
começa a apoiar a obra de colonização judaica da Pales­ e não da religião, das fantasias e ideologias criadas ao
tina. “A seus ‘irmãos desafortunados’ a volta ao país de longo da História. “Enquanto o sionismo é, realmente,
seus ‘antepassados’, ou seja, a ir o mais longe possível, produto da última fase do capitalismo, ou seja, do capi­
nada tinha de desagradável para a burguesia judaica do talismo que começa a se decompor, vangloria-se de ter
Ocidente, que temia, com razão, o crescimento do anti- sua origem em um passado mais que bimilenário. Em­
semitismo”, diz Léon. Assim, ainda que a Organização bora o sionismo seja essencialmente uma reação contra
Sionista passasse a disputar a mesma clientela que o a crise do judaísmo gerada pela combinação do desmo­
Bund e inclusive o socialismo revolucionário, seu caráter ronamento do feudalismo com a decadência do capita­
de classe era marcadamente distinto: aparecia como o lismo, afirma ser uma reação contra a situação existente
programa de um setor da grande burguesia judaica, que desde a queda de Jerusalém, no ano 70 da era cristã”,
terminaria sendo dominante dentro dela. diz A. Léon.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Mas o próprio surgimento do movimento sionista re­ locado essa questão de forma séria. Por que, pergun­
futa essas pretensões. “Como crer que o remédio a um ta, durante esses dois mil anos jamais tentaram voltar
mal existente há dois mil anos só tenha sido encontrado realmente a essa pátria? Por que foi necessário esperar
no final do século 19? O sionismo vê a queda de Jerusa­ até o fim do século 19 para que Herzl os convencesse
lém como causa da dispersão e por conseguinte, a origem dessa necessidade? Por que todos os seus predecessores
de todos os males dos judeus no passado, no presente e eram tratados como falsos messias? Para responder a es­
no futuro”. “A fonte de todas as desgraças do povo ju­ sas incômodas perguntas, o sionismo recorre aos mitos.
deu está na perda de sua pátria histórica e sua dispersão “Enquanto as massas acreditaram que deviam esperar
em todos os países”, declarou a delegação “marxista” do na Diáspora até a chegada do Messias, foi preciso sofrer
Poale Zion no Comitê holando-escandinavo.­ em silêncio”, diz Zitlovski. No entanto, como diz Léon,
Essa história dos judeus, como é contada pelos sio­ essa explicação não explica nada. Trata-se precisamen­
nistas, trata de criar o pano de fundo para justificar a te de saber porquê as massas judaicas acreditavam que
ocupação da Palestina. Assim, depois da violenta dis­ deviam esperar o Messias para poder “regressar à sua
persão dos judeus por obra dos romanos, os judeus não pátria”. Como a religião é um reflexo ideológico dos in­
quiseram assimilar-se. Imbuídos de sua “coesão nacio­ teresses sociais, a partir do final do século 19, ela come­
nal”, “de um sentimento ético superior” e de “uma in­ çou a deixar de ser um obstáculo para o avanço do sio­
destrutível crença em um Deus único”, teriam resistido nismo e a se transformar numa cortina de fumaça para
a todas as tentativas de assimilação..O que não é verda­ seu expansionismo, servindo para encobrir e justificar
de, já que, como vimos anteriormente, houve ao longo todas as suas mazelas.
desses dois mil anos inúmeros casos de assimilação. En­ Essas concepções idealistas do sionismo são insepa­
tretanto, de acordo com a história construída pelos sio­ ráveis do dogma do anti-semitismo eterno, ou seja, de
nistas, isso jamais teria ocorrido; a única esperança dos que aconteça o que acontecer, os judeus serão sempre
judeus durante esses dias sombrios que duraram dois perseguidos. Dessa forma, o sionismo transpõe o anti-
mil anos era retornar à antiga pátria. semitismo moderno para toda a História, economizando
Segundo A. Léon, nunca o sionismo havia se co­ o trabalho de investigar as diversas formas de anti-se­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

mitismo e suas causas, e inclusive omitindo o fato de processo econômico que fez surgir as nações modernas
que em diversas épocas históricas os judeus não foram lançava as bases para a integração da burguesia judaica
oprimidos, mas opressores, como membros da classe na nação burguesa. Só quando o processo de formação
dominante.­ das nações chega ao fim, quando as forças produtivas
“Na verdade, a ideologia sionista, como toda ideolo­ deixam de crescer, premidas pelas fronteiras nacionais,
gia, não é senão o reflexo desfigurado dos interesses de surge o processo de expulsão dos judeus da sociedade
uma classe. É a ideologia da pequena-burguesia judaica, capitalista e o moderno anti-semitismo. A eliminação
oprimida entre o feudalismo em ruínas e o capitalismo do judaísmo acompanha a decadência do capitalismo.
em decadência”, sintetiza A. Léon. Ele ressalta um fato Longe de ser um produto do desenvolvimento das for­
justo, ou seja, que a refutação das fantasias ideológicas ças produtivas, o sionismo é justamente a conseqüência
do sionismo não refuta, naturalmente, as necessidades da total paralisia desse desenvolvimento, da petrifica­
reais que o fizeram nascer. É o moderno anti-semitismo ção do capitalismo, nas palavras de A. Léon. Assim,
e não o mítico anti-semitismo “eterno” o melhor agita­ enquanto o movimento nacional é um produto do pe­
dor em favor do sionismo. Assim a questão fundamental ríodo ascendente do capitalismo, o sionismo é fruto da
é saber em que medida o sionismo é capaz de resolver era imperialista. A tragédia judaica do século 20 é uma
não “o eterno problema judaico” mas a questão judaica conseqüência direta da decadência do capitalismo.
na época da decadência capitalista. Com toda razão, A. Léon lembra que justamente
Os defensores do sionismo comparam-no com os está aí o principal obstáculo para a realização do sionis­
demais movimentos nacionais. Porém o movimento mo, e esta é a chave para se compreender a crise atual
nacional da burguesia européia é conseqüência do de­ que vive a Palestina desde a fundação do Estado de Is­
senvolvimento capitalista; reflete a vontade da burgue­ rael (1948). A decadência capitalista, base do crescimen­
sia de criar as bases nacionais da produção, de abolir os to do sionismo, é também a causa da impossibilidade
resquícios feudais. Mas no século 19 – época do flores­ de sua realização. A burguesia judaica vê-se obrigada a
cimento dos nacionalismos – a burguesia judaica, longe criar um Estado nacional e assegurar as condições para
de ser sionista, era profundamente assimilacionista. O o desenvolvimento de suas forças produtivas justamente

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

na época em que as condições para isso desapareceram e dos partidos de esquerda, e, por outro lado, livrarem-
há muito tempo. A decadência do capitalismo, se por se – eles em primeiro lugar – da fúria anti-semita que
um lado colocou de forma tão aguda a questão judaica, crescia a olhos vistos. Outro objetivo desse movimento
por outro, torna impossível sua solução pela via sionista. impulsionado pela burguesia judaica era transferir essas
E não há nada de assombroso nisso, diz Léon. Não se massas para fora da Europa para constituir um Estado
pode suprimir um mal sem destruir suas causas. “O sio­ judaico num ponto estratégico, em meio às maiores re­
nismo quer resolver a questão judaica sem destruir o ca­ servas de petróleo do mundo, ameaçadas pelo ascenso
pitalismo, principal fonte dos sofrimentos dos judeus”. das massas árabes. Por isso, o Estado de Israel se tor­
Isso marca, como ferro em brasa, o caráter de clas­ nou um enclave do imperialismo na região, o policial do
se do movimento sionista. É certo que os pioneiros da mundo árabe.
colonização da Palestina eram artesãos, pequenos co­
merciantes pobres, pessoas sem grandes posses. Dessa Uma região “vazia”
forma, tratou-se de criar uma imagem “plebéia” e até
“operária” e “socialista” ao sionismo. Seus defensores, Segundo os sionistas, a Palestina era uma região pra­
principalmente os que se dizem de esquerda, aceitam a ticamente vazia. “Vastas regiões do país permaneciam
idéia de que o movimento sionista não era um fator pro­ inexploradas e pertenciam a senhores feudais ausen­
gressivo na política européia, mas argumentam que isso tes. Estavam infestadas de malária e, além de algumas
era secundário frente a um fato essencial: o sionismo se­ barracas de beduínos dispersas, estavam desabitadas e,
ria o movimento de libertação nacional do povo judeu. por isso, disponíveis”. Nas vizinhanças da Terra Santa
E do “povo mais pobre”, daí ser uma “causa justa”. havia apenas alguns núcleos heterogêneos, muçulma­
É claro que não estava nos planos de Rothschild e da nos, chequizes, maronitas, cristãos e gregos ortodoxos.
grande burguesia judaica irem pessoalmente à Palestina “Foi para uma terra sem povo que lentamente, no final
cultivar a terra. O que fizeram foi impulsionar um mo­ do século passado, se começou a encaminhar um povo
vimento para confinar os judeus mais pobres na Terra sem terra”.
Santa e, com isso, afastá-los da luta de classes na Europa Vivia-se a época da expansão colonial da Europa na

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Ásia e África. É nesse marco histórico que se inicia o Declaração Balfour: a segunda
sionismo. E a Palestina, longe de ser uma terra vazia e etapa do sionismo
sem dono, estava ocupada por outro povo, o povo árabe.
Isso era um problema para a burguesia judaica européia, A política de Teodoro Herzl, o pai do sionismo, e
tanto que Herzl nem menciona a palavra “árabe” em seus sucessores foi a de se aproveitar do processo de
seu livro, apesar de saber, obviamente, da existência dos expansão colonial imperialista para ocupar a Palestina.
árabes. Essa falsificação, escondida durante tantos anos, Para isso, precisava que alguma potência imperialista
não resiste mais à evidência dos fatos e, principalmen­ abraçasse a causa sionista. Assim, sua atividade prin­
te, ao recrudescimento da luta palestina, obrigando até cipal foi as gestões perante as diversas potências euro­
mesmo os historiadores oficiais de Israel a reconhecer péias, buscando inserir o sionismo como parte de sua
que aquela não era “uma terra sem povo”. política colonial. Esse apoio veio, em primeiro lugar, da
Esse foi o papel reservado aos desesperados judeus Inglaterra, um império que, desde meados do século,
da Europa oriental: servir de ponta de lança dos planos expandia-se a todo vapor.
colonizadores da burguesia imperialista, em especial os As gestões de Herzl em Londres foram bem acolhi­
Estados Unidos, interessados em criar um enclave no das, mas havia um problema objetivo: a Palestina es­
Oriente Médio. Com um discurso filantrópico, a expan­ tava nas mãos da Turquia. A Inglaterra então ofereceu
são colonial usava as massas miseráveis de judeus para a Herzl colonizar Uganda ou o Sinai egípcio, mas essa
seus fins nada louváveis. Quem poderia se opor a que possibilidade não se concretizou. Havia um segundo
os pobres judeus saíssem da escuridão dos guetos para problema objetivo: o sionismo não era muito forte entre
o sol da Palestina? Infelizmente, essa troca, por mais as massas judaicas. Os que queriam emigrar, o faziam
benéfica que tivesse sido para eles, foi feita às custas maciçamente para a América; tanto que uma das op­
dos árabes, massacrados e, estes sim, expulsos da terra ções discutidas foi a constituição do Estado sionista na
que possuíam de fato, e não por obra e graça de uma Argentina. Pouquíssimos judeus iam para a Palestina. E
história bíblica. uma boa parte dos que ficavam eram anti-sionistas, ou
estavam sob a influência dos partidos de esquerda.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Com a I Guerra Mundial, chegara a hora da repar­ “lar nacional judaico”, ou seja, tratados como estrangei­
tição da Turquia. Para apressá-la, a Inglaterra utiliza o ros em sua própria terra.
movimento nacional dos árabes que havia começado
a despertar. E, por outro lado, firma um acordo com a O mandato britânico (1918-1948)
França, de repartição da zona, além de assinar a cha­
mada Declaração Balfour (2 de novembro de 1917), que No final da I Guerra Mundial, os Aliados (Inglaterra,­
ficou conhecida como a “aliança de casamento” entre o França, Itália e Estados Unidos) criaram a Sociedade
sionismo e o imperialismo inglês. das Nações, antecessora da atual ONU, que “outorgou”
Assim começava a segunda etapa do sionismo, que à Inglaterra o mandato sobre a Palestina. Porém naque­
culminaria com a criação do Estado de Israel. Além de les tempos as coisas não corriam muito tranqüilamente
dar aos ingleses um valioso auxiliar para estabelecer um para o imperialismo. Havia surgido, pela primeira vez
futuro protetorado na Palestina, a Declaração Balfour na História, um Estado operário, a URSS que se opu­
colocava em mãos inglesas uma poderosa arma para li­ nha à expansão colonialista e em todo o mundo colonial
quidar o movimento nacional árabe, fortalecer a política começava uma grande onda de lutas antiimperialistas.
de guerra do imperialismo britânico e sua luta contra a Dentro do mundo árabe, o Oriente Médio concen­
Revolução russa (1917). trou as lutas mais importantes contra os imperialismos
O caminho em direção a Israel estava sendo traçado inglês e francês. A Palestina foi o eixo dessa luta, es­
com as seguintes características: 1) por uma declaração pecialmente durante a insurreição de 1936-1939, que
unilateral de uma grande potência imperialista; 2) essa começou com uma greve geral que durou seis meses
declaração impunha o destino de uma região da Ásia e, para ser sufocada, exigiu a metade dos efetivos de
que jamais havia pertencido à Inglaterra, que dava de todo o Exército britânico, um dos mais poderosos do
presente a lorde Rothschild o território de uma nação mundo nesse momento. Centenas e centenas de pa­
alheia; 3) não levava em conta os desejos do povo pa­ lestinos foram mortos, detidos e condenados à forca ou
lestino, que era 93% árabe em 1917. Esses 93% eram a longas penas de prisão. Em 1939, o povo palestino
reduzidos à condição de não judeus, confinados em um estava derrotado. Essa é a chave para entender a rela­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

tiva facilidade com que em 1947-1948 foi instalado aí o muito), os sionistas tinham um poder econômico mui­
Estado de Israel. to maior que os árabes, além de contar com o apoio do
A ocupação, explica Jon Rothschild, deu-se em base imperialismo. Isso lhes deu força para espoliar o povo
a três pilares do movimento sionista: kibush hakarka árabe da Palestina, que ficou reduzido a trabalhadores
(conquista da terra), kibush haavoda (conquista do tra­ sem trabalho e camponeses sem terra. Muito estranho
balho) e t’ozteret haaretz (produto da terra). “Detrás esse tipo de socialismo, que ataca os trabalhadores. “Os
dessas sonoras palavras havia uma dura realidade. Con­ árabes eram expulsos ou boicotados nas empresas de
quista da terra significava que toda a terra possível fosse propriedade sionista ou de capital estrangeiro (conces­
adquirida (legalmente ou não) dos árabes, e que nenhu­ sões), que geralmente eram administradas por gerentes
ma terra de judeus fosse vendida ou de alguma maneira sionistas. Cerca de 53% das empresas eram concessões
retornasse aos árabes. Conquista do trabalho significava e 40% de propriedade sionista, sendo que apenas 6%
que nas fábricas e terras de judeus dava-se preferência eram de propriedade de árabes (dados de 1939)”. Assim,
aos trabalhadores judeus. O trabalhador árabe era boi­ ficava um mercado de trabalho super-reduzido para os
cotado. De fato, a Histadrut, que hoje se diz a central trabalhadores árabes.
operária em Israel, foi criada para impor o boicote aos Outro tanto ocorria com o t’ozteret haaretz (produto
trabalhadores árabes. Produto da terra significava prati­ da terra), uma política que significava o boicote à força
car o boicote à produção árabe por parte dos colonizado­ de todo produto árabe, praticado por bandos armados da
res judeus, e manter somente a compra de produtos das Histadrut, uma repressão que não poupava nem mesmo
terras ou negócios judeus”. os judeus que ousassem adquirir algum alimento produ­
Essa política de ocupação – da qual os sionistas fa­ zido por mãos árabes.
ziam propaganda dizendo que era uma política “so­ Alijados da terra, do trabalho e da possibilidade de
cialista”, que visava ajudar os trabalhadores e pobres comercializar seus produtos, os palestinos se tornaram
judeus – significou a desgraça para o povo palestino, uma massa marginalizada e pronta para ser expulsa de
porque foi imposta sobre a terra que eles ocupavam. suas terras. A resistência palestina, em forma de guerri­
Apesar de serem minoria no início (depois cresceram lha, foi praticamente esmagada em 1939 pelo Exército

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

britânico e a Haganá – o exército extra-oficial forma­ Sob a órbita estadunidense, o sionismo começou a
do pelo sionismo – num ataque conjunto para mostrar dar passos largos em direção à criação do Estado de Is­
“quem manda na Palestina”. Nessa época, tinha início a rael. Ao final da guerra, as grandes potências, através da
II Guerra Mundial e os sionistas estavam preocupados ONU, não só fizeram vistas grossas à ocupação e mas­
com o destino da Inglaterra, seu imperialismo protetor, sacre do povo palestino, como deram o estatuto legal à
diante de uma nova repartição do mundo em zonas de situação colonial criada durante a dominação britânica.
influência. Queriam garantir para a Palestina a prote­ Em base a uma proposta de partilha da Palestina feita
ção imperialista, já que tudo indicava que os Estados durante o Mandato inglês – e que incendiou a revolta
Unidos e não mais a Inglaterra seriam daí por diante em todo o mundo árabe –, em 29 de novembro de 1947
o grande senhor do mundo. A suposta luta antiimpe­ votou-se a divisão do país em dois Estados: um sionis­
rialista alardeada pelo sionismo era, simplesmente, o ta e outro árabe. Novamente, sem qualquer consulta ao
desejo de passar de um sócio menos forte para outro povo palestino e com o aval da burocracia soviética, que
mais poderoso. Isso foi expresso com clareza por Ben enviou armas e aviões para ajudar o imperialismo a mas­
Gurion: sacrar os árabes. Afogada a resistência palestina em um
Nossa maior preocupação era a sorte que seria reser- banho de sangue, o Estado de Israel foi proclamado em
vada à Palestina depois da guerra. Já estava claro que maio de 1948.
os ingleses não conservariam seu Mandato. Se tinha
todas as razões para crer que Hitler seria vencido, era Israel: a tragédia palestina
evidente que a Grã-Bretanha, mesmo vitoriosa, sairia
muito debilitada do conflito. Por isso, eu não tinha Em 1947, havia seiscentos e trinta mil judeus e um
dúvidas de que o centro de gravidade de nossas for- milhão e trezentos mil árabes palestinos. Assim, no mo­
ças deveria passar do Reino Unido para a América mento em que a ONU dividiu a Palestina, os judeus
do Norte, que estava em vias de assumir o primeiro eram minoria (31% da população). Essa divisão, promo­
lugar no mundo. vida pelas principais potências imperialista com o apoio
de Stalin, deu 54% da terra fértil ao movimento sionista.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Contudo, antes que se formasse o Estado de Israel, o preparar o terreno para nossa expansão. O Estado
Irgun e as Haganá já haviam se apoderado de três quar­ terá que preservar a ordem, não com palavras, mas
tos da terra e expulsado seus habitantes. Assim, dos 475 com metralhadoras.
povoados palestinos que existiam em 1948, 385 foram
completamente arrasados, reduzidos a cinzas e os noven­ E, de fato, assim foi feito. Entre 29 de novembro de
ta restantes tiveram suas terras confiscadas. Esse proces­ 1947, data da divisão da Palestina pela ONU e 15 de
so ficou conhecido como a “judaização” da Palestina. maio de 1948, quando foi formalmente proclamado o
Raphael Eitan, então chefe do estado-maior das For­ Estado de Israel, o Exército sionista e as milícias pa­
ças Armadas israelenses, não podia ser mais claro quan­ ramilitares apoderaram-se de 75% da Palestina, expul­
do disse que sando do país setecentos e oitenta mil árabes. Os que
Declaramos abertamente que os árabes não têm qual- ficaram foram vítimas de perseguições selvagens e uma
quer direito a um só centímetro de Eretz Israel. Os carnificina só comparada ao holocausto nazista.
de bom coração, os moderados, devem saber que as Assim começou a tragédia palestina que dura até
câmaras de gás de Adolf Hitler serão como brincadei- hoje.
ra de criança. O único que entendem e entenderão é
a força. Utilizaremos a força mais decisiva, até que os Roubo, puro e simples, das terras
palestinos se aproximem de nós de joelhos. e dos negócios dos árabes

David Ben Gurion, em um discurso pronunciado É preciso entender o alcance e as conseqüências


em 13 de outubro de 1936, formulava assim a estratégia dessa política assassina por parte do sionismo. No terri­
sionista: tório ocupado por Israel depois da partilha havia 950 mil
Quando nos tornemos uma força com peso depois árabes palestinos, vivendo em cerca de 500 povoados
da criação do Estado, aboliremos a partição e nos ex- e em todas as grandes cidades, entre elas Tiberíades,
pandiremos a toda Palestina. O Estado será somente Safed, Nazaré, Shafa Amr, Acre, Haifa, Yaffa, Lidda,
uma etapa na realização do sionismo, e sua tarefa é Ramle, Jerusalém, Majdal (Ashquelon), Isdud (Ashdod)

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

e Beersheba.­ Em menos de seis meses sobraram apenas ditada em 1950 em Israel. Até 1947, os judeus possuíam
138 mil pessoas. A grande maioria dos palestinos havia 6% da terra da Palestina. Quando surgiu formalmente o
sido assassinada, expulsa pela força ou fugido, aterro­ Estado de Israel, o Fundo Nacional Judaico calcula que
rizada diante dos bandos assassinos das unidades do tenha se apoderado de 90% da terra. O valor das pro­
exérci­to israelense. priedades roubadas aos árabes era superior a US$ 300
Em discurso pronunciado para uma platéia de es­ milhões, em cálculos da época. Se multiplicarmos essa
tudantes do Instituto de Tecnologia de Israel, Moshe cifra pelo valor atual do dólar, cai a máscara: Israel tem
Dayan, herói da Guerra dos Seis Dias (1967), não se pre­ pouco a ver com Jeová ou a terra santa, e muito a ver
ocupou em esconder o fato de que Israel fora fundada com a pirataria e a pilhagem.
sobre uma tenebrosa falsificação histórica: A ocupação das propriedades palestinas era indis­
Viemos aqui, a um país que estava povoado por ára- pensável para que o Estado de Israel fosse viável. En­
bes, e estamos construindo aqui um Estado hebreu, tre 1948 e 1953, foram criados 370 povoados e assenta­
judaico. No lugar dos povoados árabes levantamos mentos judaicos, sendo 350 deles em propriedades de
povoados judeus. Vocês nem sequer sabem os nomes “ausen­tes”. Em 1954, calculava-se que 35% dos judeus
desses povoados, e não os reprovo por isso, porque de Israel viviam em propriedades confiscadas de “au­
esses livros de geografia já não existem. Nem os li- sentes” e 250 mil novos imigrantes se haviam estabe­
vros, nem os povos existem mais. Nahalal surgiu no lecido em áreas urbanas das quais os palestinos haviam
lugar ocupado antes por Mahalul, Gevat no lugar de sido expulsos.
Jibta, Sarid no lugar de Hanifas e Kafr Yehoushu’a no Dez mil empresas e comércios foram entregues a co­
lugar de Tel Shamam. Não há um só assentamento lonos judeus. Se na zona urbana, o saque foi generalizado,
que não tenha sido construído no lugar de um antigo no campo a usurpação corria solta. Todas as plantações
povoado árabe. de limão dos palestinos foram confiscadas; cobriam mais
de 240 mil dunums (correspondentes a 21.200 hectares).
Com isso, grandes extensões de terra foram confis­ Até 1951, um milhão de caixas de limões colhidos de pro­
cadas amparadas pela Lei de Propriedades de Ausentes, priedades arrebatadas dos árabes – o que correspondia­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

a 10% de todas as divisas de exportação – estavam em espoliação nunca encontrou um porto seguro. Essa
mãos israelenses. Nesse mesmo ano, 95% das planta­ viagem macabra continuou em frente, espoliando tam­
ções de oliveiras de Israel eram feitas em terra palestina bém o mercado de trabalho dos árabes, tanto no cam­
ocupada. As azeitonas que produziam representavam o po quanto nas cidades. Esse processo de judaização do
terceiro produto mais exportado por Israel, depois dos trabalho assentou-se numa ideologia racista contra o
limões e dos diamantes. Um terço da produção de pedra trabalhador árabe.
provinha de 52 pedreiras palestinas usurpadas. As terras No campo, qualquer relação do Homem com a terra
confiscadas dos árabes iam parar num Fundo Nacional era regida por uma lei racista: “O arrendatário deve ser
Judaico, criado em 1954 pelo governo israelense. judeu e tem de aceitar realizar todas as atividades rela­
Como lembra Schoenman, a mitologia sionista pre­ cionadas com o cultivo da terra somente com mão-de-
tende passar a idéia de que o espírito de sacrifício, de obra judaica”. Portanto, a terra não pode ser arrendada
abnegação no trabalho e de perícia dos judeus transfor­ por um não judeu, nem subarrendada, vendida, hipo­
maram a terra desértica, descuidada por seus anteriores tecada, dada ou cedida a um não judeu. Os não judeus
guardiões árabes – nômades e primitivos –, fazendo flo­ não podem ser empregados na terra e nem em qualquer
rescer o deserto. As plantações palestinas, a indústria, a trabalho relacionado com o cultivo.
madeira, as fábricas, casas e fazendas foram espoliadas e Em Israel, as terras estatais, que estão nas mãos do
saqueadas depois de uma conquista sangrenta: “o barco Fundo Nacional Judaico, são consideradas “terra na­
do Estado é um barco pirata, a bandeira que carrega é a cional”, o que significa terra judaica. A contratação de
caveira com dois ossos cruzados”. trabalhadores não judeus é ilegal. Devido à escassez de
operários agrícolas judeus, e dado que os palestinos ga­
Racismo contra o trabalhador árabe nham um salário menor que os trabalhadores judeus, al­
guns agricultores judeus (como Ariel Sharon) contratam
Mas Israel não é só isso. A sua história é uma his­ mão-de-obra árabe, violando explicitamente a lei.
tória que começou com uma grande espoliação e isso Schoenman ressalta que Israel emprega todas as ex­
obrigou o país a continuá-la, mais e mais. O barco da pressões normais em um sentido racista. O “povo” sig­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

nifica somente os judeus. Um “imigrante” ou um “colo­ Trata-se da relação do sionismo com os próprios judeus
no” só pode ser um judeu. Um assentamento significa e com o nazi-fascismo.
um assentamento só para judeus. A terra nacional signi­ O caráter racista do movimento sionista tem sua face
fica terra judaica, não terra israelense. Dessa maneira, mais abominável na relação que sempre manteve com
a lei e os direitos, as garantias e o direito ao trabalho os próprios judeus. Ralph Schoenman lembra que
ou à propriedade correspondem somente aos judeus. A os fundadores do sionismo estavam desesperados
cidadania ou nacionalidade israelense corresponde es­ por combater o anti-semitismo e, paradoxalmente,
tritamente aos judeus em todas as aplicações específi­ consideravam os próprios anti-semitas como aliados,
cas de seu significado e jurisdição. Como a definição porque compartilhavam o desejo de arrancar os ju-
de judeu baseia-se inteiramente num preceito religioso deus dos países em que viviam. Passo a passo, assi-
ortodoxo, ter gerações de ascendência materna judaica milaram os valores do ódio aos judeus e do anti-se-
é o pré-requisito para gozar do direito de propriedade, mitismo, chegando, o movimento sionista, a olhar os
de emprego e de proteção legal. Atualmente, 93% da próprios anti-semitas como seus mais fiéis padrinhos
terra do chamado Estado de Israel é administrada pelo e protetores.
Fundo Nacional Judaico, sendo que para ter o direito
a viver na terra, arrendá-la ou trabalhar nela, a pessoa Ele cita inclusive uma carta que Theodor Herzl en­
tem de demonstrar que tem pelo menos três gerações viou ao conde Von Plehve, autor dos piores pogroms
de ascendência materna judaica. na Rússia – os pogroms de Kishinev – com a seguinte
proposta: “Ajude-me a conseguir o quanto antes a terra
O sionismo, o fascismo e os judeus [da Palestina] e a revolta [contra a dominação tzarista]
acabará”. Von Plehve concordou e começou a financiar
Se é importante que a história oficial comece a re­ o movimento sionista.
conhecer que a Palestina não era uma terra sem povo, Trata-se, na verdade, de um pedido de colaboração
é preciso também esclarecer outro aspecto tão sórdido entre a burguesia sionista e as classes dominantes de ou­
quanto esse que envolve a criação do Estado de Israel. tros países para combater os judeus de esquerda, que se

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

incorporavam aos partidos revolucionários. Nesse senti­ ra a nós designada, possa desenvolver uma atividade
do, o sionismo, em sua colaboração com o fascismo, cum­ frutífera pela Pátria. [...]
priu um papel sórdido, pois jogava com os sentimentos
religiosos dos judeus para massacrar os que fossem de Longe de repudiar essa política, o Congresso da Or­
esquerda. O movimento juvenil sionista Betar serviu de ganização Sionista Mundial, de 1933, derrotou por 240
bucha de canhão para Mussolini, formando esquadrões votos contra 43 uma resolução que chamava a atuar con­
com os Camisas negras. Quando Menajem Beguin tor­ tra Hitler. Durante esse mesmo congresso, Hitler anun­
nou-se chefe do Betar, trocou suas camisas negras pelas ciou um acordo comercial com o Banco Anglo-palestino
beges – como as que os bandos de Hitler usavam. Era da Organização Sionista Mundial (OSM), que significa­
o uniforme que Beguin e os membros do Betar usavam va o rompimento do boicote judaico ao regime nazista
em todas as assembléias e concentrações. em um momento em que a economia alemã era extre­
A estratégia do sionismo foi recrutar os europeus que mamente crítica. A OSM rompeu o boicote judaico e se
odiavam os judeus e alinhar-se com os movimentos e tornou a principal distribuidora de produtos nazistas em
regimes mais perversos, para que apoiassem a criação todo o Oriente Médio e norte da Europa. Fundaram, na
de uma colônia sionista na Palestina. E essa estratégia Palestina, o Ha’avara, banco destinado a receber dinhei­
incluiu o nazismo. A Federação Sionista da Alemanha ro da burguesia judaico-alemã, com o qual se adquiriu
enviou um memorando de apoio ao partido nazista em grande quantidade de produtos nazistas.
21 de junho de 1933. Dizia:
Traindo a Resistência
um renascimento da vida nacional como o que ocor-
re na vida alemã [...] deve ocorrer também no grupo Um dos reflexos mais sórdidos desta política foi a
nacional judaico. Sobre as bases de um novo Estado ação do sionismo em relação à resistência judaica con­
(nazista) que estabeleceu o princípio da raça, dese- tra os massacres de judeus na Europa. Em julho de
jamos enquadrar nossa comunidade na estrutura de 1944, o dirigente judeu eslovaco, rabino Dov Michael
conjunto de maneira que também para nós, na esfe- ­Weissmandel, escreveu aos funcionários sionistas encar­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

regados das “organizações de resgate”, propondo uma culpados, irmãos judeus, que têm a maior sorte do
série de medidas para salvar os judeus do campo de ex­ mundo, a liberdade? Enviamos a vocês esta mensa-
termínio de Auschwitz. Ofereceu mapas exatos das fer­ gem especial: informamos que ontem os alemães ini-
rovias e planejou o bombardeio das linhas que levavam ciaram a deportação de judeus da Hungria. Os que fo-
aos crematórios. Pediu que bombardeassem os fornos ram para Auschwitz serão mortos com gás cianídrico.
de Auschwitz, que lançassem de pára-quedas munição Essa é a ordem-do-dia de Auschwitz desde ontem: a
para oitenta mil presos e bombas para explodir o campo cada dia serão asfixiados doze mil judeus – homens,
e pôr fim à cremação de 13 mil judeus por dia. mulheres e crianças, anciãos, crianças de peito, doen-
Caso os aliados se recusassem a colaborar, Weiss­ tes ou não.
mandel propunha que os sionistas, que dispunham de E vocês, nossos irmãos aí na Palestina, e de todos os
fundos e organização, comprassem aviões, recrutassem países livres, e vocês, ministros de todos os reinos,
voluntários e fizessem a operação. por que mantêm silêncio diante desse grande assas-
Weissmandel não era o único a pedir isso. No final sinato? Silenciam enquanto assassinam milhares, já
dos anos 1930 e durante os anos 1940, porta-vozes ju­ são seis milhões de judeus? Silenciam agora, quando
deus da Europa pediram socorro, campanhas públicas, dezenas de milhares estão sendo assassinados ou es-
resistência organizada, manifestações para obrigar os peram na fila da morte? Seus corações destroçados
governos aliados a colaborar. Entrentanto, sempre se pedem socorro, choram por vossa crueldade.
deparavam com o silêncio sionista ou mesmo com sua São brutais, vocês também são assassinos, pelo san-
sabotagem ativa. gue frio do silêncio com que olham, porque estão
O rabino Weissmandel, em julho de 1944 – um ano sentados com os braços cruzados sem fazer nada,
antes de terminar a guerra – enviou aos sionistas uma apesar de que nesse mesmo instante poderiam deter
carta de protesto, publicada em parte na História oculta ou postergar o assassinato de judeus.
do sionismo, de Schoenman: Vocês, nossos irmãos, filhos de Israel, estão loucos?
Por que não fizeram nada até agora? Quem é o cul- Não sabem o inferno que nos rodeia? Para quem
pado por esta terrível negligência? Não são vocês os guardam seu dinheiro? Assassinos! Loucos! Quem

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Josef Weil (org.)

faz caridade aqui, vocês, que soltam uns centavos


daí, de suas casas seguras, ou nós, que entregamos
nosso sangue neste inferno?

Nenhum dirigente sionista apoiou esta petição, nem


os governos ocidentais bombardearam um único campo
de concentração.
A colaboração entre o sionismo e o fascismo fez com A ENCRUZILHADA PALESTINA
que o primeiro traísse a resistência e voltasse as costas
para o operativo que resultou na morte de pelo menos Angel Luis Parras
seis milhões de judeus. Hoje, quando se lembra mais Josef Weil
um aniversário do Holocausto, é preciso dizer com toda
clareza que o sionismo não lutou de fato para impedi-lo. Quando escrevíamos este artigo a situação na Pa­
E, mesmo assim, o utiliza como álibi para massacrar os lestina já estava evoluindo para uma guerra aberta
palestinos. Algo tão indignante que a jornalista israe­ entre Israel e o povo palestino, segundo Robert Fisk,
lense Amira Hass, do jornal Haaretz, chegou a exortar repórter inglês presente em Ramallah, na Cisjordânia.
os sobreviventes do Holocausto e seus descendentes a Qual a saída para um aparente impasse “sem solução”?
não interpretarem o assassinato de seu povo e o de suas Como toda situação aguda, a nova Intifada e a guerra
famílias na Europa como um eterno aval para suprimir civil colocam questões programáticas profundas. Den­
e expropriar o povo palestino e para apresentá-lo como tro da esquerda a discussão sobre a Intifada e o futuro
o inimigo que substituiu os alemães. da região e de Israel têm caído no beco sem saída em
De fato, está na hora de Israel deixar de usar o Ho­ torno à armadilha dos planos de paz. Parafraseando
locausto como justificativa para oprimir e perseguir os Clausewitz, poder-se-ia dizer que estudam com afinco
palestinos, fazendo com eles o mesmo que os alemães a tática, porém raras vezes a estratégia e praticamente
fizeram com os judeus. nunca a guerra.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Discute-se apenas se os planos de paz deveriam ser Baseado nas idéias sionistas, Israel tem como defi­
mudados, se deveria ou não haver uma intervenção ex­ nição ser o Estado de uma raça, um Estado teocrático,
terna da ONU, para impor a paz, mas não a natureza em constituído em base a um critério religioso. Israel foi
si desses planos, de sua íntima ligação com a aceitação fundado e se expandiu baseado na dupla ideologia do
do status quo de Israel como colonizador e opressor dos povo eleito que ocupa uma terra “sem povo”. Mais ain­
povos da região, em particular dos palestinos. É possí­ da, seus dirigentes têm, desde sua fundação, insistido
vel haver paz entre o colonizador e os colonizados? É em que os outros povos da região não teriam identidade
possível apontar uma solução, a partir de dois Estados, própria. É impossível haver paz com um Estado que se
um judaico e outro palestino? Do nosso ponto de vista, apóia na colonização e na exclusão do povo que vivia no
é necessário voltar às questões de fundo para indicar local em que se instalou.
uma saída para a revolução palestina. Os fundadores do sionismo eram claros nisso. Herzl,­
em seu livro O Estado judeu, dizia: “Será um bastião
A chave do problema está na natureza avançado da civilização ocidental frente à barbárie
do Estado de Israel oriental”. Nenhuma das correntes presentes no movi­
mento sionistas e que governaram o Estado fogem des­
A Intifada de Al-Aqsa colocou na ordem do dia uma sas definições básicas: que o Estado judaico é excluden­
realidade que vinha sendo encoberta enquanto durou o te dos demais povos, que uma política de exclusão deve
intervalo dado pela implementação inicial dos planos de ser aplicada aos árabes que habitavam a terra prometi­
paz de Oslo: que é impossível uma paz entre palestinos da antes. Por isso, até a central sindical Histadrut, se­
e judeus mantendo-se o caráter sionista do Estado de guindo os ditames do Poale Zion – que daria origem ao
Israel. O problema está na natureza mesma e na origem Mapai, antecessor e um dos componentes do Partido
desse Estado. Israel é um Estado artificial, um enclave Trabalhista de Barak e Peres – e de seu líder, Aaron D.
militar do imperialismo estadunidense, constituído so­ Gordon, não somente excluía de suas fileiras os traba­
bre a base de desalojar à força os legítimos habitantes do lhadores não judeus, como fazia campanhas para que os
território, o povo palestino. empregadores só contratassem trabalhadores judeus e

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despedissem os árabes. “Avodá ívrít” (trabalho para os o dado de que os Estados Unidos entregam a Israel uma
judeus) é o lema da Histadrut. ajuda direta no valor de US$ 5 bilhões por ano.
Apesar do financiamento de Israel ser um elemen­ A ajuda incondicional e ilimitada recebida nestes 52
to revelador da natureza desse Estado, nenhuma das anos de existência é o preço pelo serviço que o Esta­
correntes sionistas tem vergonha de reconhecer que do sionista presta, é “o preço de custo” para que esse
desde o início foi financiado pelos Estados Unidos e Estado garanta e desenvolva sem travas sua função es­
os poderosos lobbies de milionários judeus. Já nos pri­ sencial: levar judeus para a Palestina a qualquer preço;
meiros anos de sua fundação, entre 1949 e 1966, Israel expulsar os árabes da Palestina; desempenhar o papel
recebeu US$ 7 bilhões. Para avaliar o significado dessa de “bastião adiantado da civilização ocidental”.
cifra, basta recordar que o Plano Marshall, feito para
a Europa ocidental de 1949 a 1954 chegou a US$ 13 As correntes que governam Israel
bilhões. estão de acordo na estratégia
Israel, na época com pouco menos de dois milhões
de habitantes, recebeu – é certo que em mais tempo As correntes sionistas têm em comum uma compre­
– mais da metade do que receberam duzentos milhões ensão e uma estratégia para os palestinos que podería­
de europeus. Em outras palavras, Israel recebeu do im­ mos resumir nas palavras de Edward Said: “O sionismo
perialismo estadunidense cinco vezes mais por cabeça sempre quis mais terra e menos árabes: de Ben Gurion
que o ambicioso plano de reconstrução européia. a Sharon – passando por Rabin, Shamir, Netanyahu, e
Uma cifra que define com certa clareza a natureza Barak – há uma continuidade ideológica ininterrupta na
do Estado israelense é que já nos anos 1970-1980 o total qual o povo palestino é visto como uma ausência dese­
da ajuda estadunidense – sem contar a ajuda da “Diás­ jada pela qual se combate”. As correntes sionistas mos­
pora” ou dos empréstimos – representava mil dólares tram isso ao dizer que os judeus têm todos os direitos à
por habitante/ano, o que por si só equivalia a mais de “terra de Israel”, então qualquer não judeu que esteja aí
três vezes o produto interno bruto por habitante do Egi­ não possui qualquer direito.
to e da maioria dos países africanos. É superconhecido Até Simon Peres, que às vezes parece falar uma lin-

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guagem humana, nunca se deixa levar a ponto de Assim como os afrikaners da África do Sul, esses
considerar os palestinos sequer como merecedores racistas nazistas consideram os palestinos como seres
de um tratamento como iguais. Os judeus devem huma­nos inferiores, um não povo. Por isso, seus seguido­
continuar sendo uma maioria, possuir toda a terra, res nas colônias em territórios palestinos ainda hoje re­
definir as leis tanto para judeus como para os não petem sem maiores problemas esse discurso, “não se
judeus, garantir a imigração e a repatriação somente pode chamá-los de povo”.
para judeus. Os dois padrinhos e antecessores de Sharon, Me­
nachem Begin e Itzhak Shamir têm uma trajetória que
As definições da corrente fascista originada nos re­ coloca na prática essa concepção fascista em relação
visionistas de Vladimir Jabotinsky, admirador de Mus­ à “questão palestina”. Em 1988, Shamir dizia sobre a
solini e Hitler, que teve continuidade no Likud de Be­ Intifa­da: “Temos de criar a barreira e conseguir que
gin, Netanyahu e Sharon foram e são mais diretas nessa os árabes dessas zonas voltem a ter medo da morte...”
direção.­ Qualquer semelhança com a atual política de Ariel
O livro The Iron Wall (A Muralha de ferro) de Lenni Sharon­ não é mera coincidência!
Brenner reproduz o pensamento racista e fascista desse Todavia os trabalhistas, apesar da retórica diferente
fundador do sionismo. do Likud, têm a mesma estratégia – a prática é o critério
É impossível que alguém se assimile a pessoas que da verdade. Os dados sobre a ocupação de territórios du­
tenham sangue distinto ao seu. Para se assimilar, tem rante os últimos anos mostram a mesma política, apenas
que mudar seu corpo, tem de converter-se em um com ênfases e discursos às vezes distintos. Em 1936,
deles no sangue. Não pode haver assimilação. Nun- Ben Gurion dizia (referindo-se à aceitação da partilha
ca haveremos de permitir coisas como o matrimônio da Palestina): “Um Estado judaico parcial não é o obje­
misto pois a preservação da integridade nacional so- tivo final, mas sim apenas o princípio. Estou convencido
mente é possível mediante a pureza racial e para isso de que ninguém pode nos impedir de estabelecer-nos
haveremos de ter esse território em que nosso povo em outras partes do país e da região”. E agregava mais
constituirá os habitantes racialmente puros. tarde: “o Estado será somente um estágio na realização

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do sionismo e sua tarefa é preparar o terreno para nos­ O último governo de maioria trabalhista, o de Ehud
sa expansão. O Estado terá que preservar a ordem, não Barak, foi o maior instalador de colônias desde 1992 nos
com prédicas, mas com metralhadoras.” territórios de Gaza e Cisjordânia ocupados em 1967. Um
Já em 1948, segundo seu biógrafo Bar Zohar, em artigo de Nadav Shragai no Haaretz de 27 de fevereiro
sua primeira visita à cidade de Nazaré, ele haveria dito: de 2001 relatava: “O governo começou a construção de
“porque há tantos árabes, porque não os expulsaram?”. 1.943 unidades habitacionais nos territórios ano passado
Moshe Dayan, ministro da Defesa do governo traba­ – o maior número desde 1992, de acordo com os da­
lhista em 1967, declarava: dos apresentados ontem pelo parlamentar Mussi Raz
Somos uma geração de colonizadores e sem os ca- (Meretz).”­
pacetes de aço e o canhão não sabemos plantar uma Por isso não deveria surpreender tanto que o “pom­
árvore, ou construir uma casa. Não retrocederemos ba” Simon Peres possa facilmente aceitar ser parte de
ante o ódio de centenas de milhares de árabes em um governo Sharon. A organização israelense Gush
torno a nós, não desviaremos nossas cabeças para que Shalom – que luta pela retirada das colônias nos terri­
nossas mãos não tremam de medo. Este é o destino tórios ocupados através do boicote aos seus produtos
de nossa geração. Estar preparados e armados. – publicou no jornal Haaretz de 16 de fevereiro de 2001:
“Dez dias atrás o Partido Trabalhista declarou que Sha­
Rabin, que depois ganhou o prêmio Nobel da Paz, ron provocaria um banho de sangue e a guerra. Agora,
era ministro da Defesa de Shamir em 1988 e tinha esta os líderes trabalhistas correm para integrar o governo
política para enfrentar a primeira Intifada, segundo o in­ Sharon, prontos para fornecer o álibi de que ele necessi­
suspeito Jerusalem Post: “A prioridade absoluta é o uso ta para o banho de sangue e a guerra”.
da violência, o emprego da força, as surras... Conside­ A resposta à pergunta sobre o que leva correntes
ram isso mais eficaz que as prisões [porque] depois des­ aparentemente adversárias como Likud e trabalhistas a
tas podem voltar a atirar pedras nos soldados. Porém, se formarem governos de “unidade” está no acordo estra­
as tropas quebram suas mãos, já não podem reincidir...” tégico sobre a natureza do Estado colonizador que leva
(New York Times, 21 de janeiro de 1988). a uma aliança histórica entre essas correntes, apesar­ das

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

diferenças táticas. Por exemplo, levou a que se dividis­ Nessa situação, em que consiste o critério “racional”
sem sobre a aceitação da partilha da Palestina de 1947, e “equitativo” dos dois Estados? Em legitimar esse atro­
mas não em relação ao que fazer com os árabes residen­ pelo? Em legalizar a ocupação? Porém, suponhamos que
tes. O pensamento de Ben Gurion, Dayan, Rabin­, Peres­ se aceite essa decisão como um imperativo. Os acordos
e Barak tem, na matriz, a idéia chave de um Estado de Oslo, como os diversos planos de paz, têm, em es­
judaico e de que é necessário construir as bases para sência, este fundamento de dois Estados, e a história
isso às custas da expulsão da população árabe. Todas mostrou-se inapelável com esse raciocínio: em meio à
as negociações de paz são para assegurar esse marco e miséria crescente e à expulsão dos palestinos, o curso
buscar que os palestinos aceitem viver nos guetos que expansionista do sionismo tem sido permanente.
lhes foram reservados. Na medida em que a razão de ser do Estado sionista
é trazer o “povo sem terra” à “terra sem povo”, a expan­
A expansão como tarefa essencial são é intrínseca à sua própria natureza. A Palestina his­
do Estado sionista tórica tem uma extensão de 27.242 km², Israel ocupa já
mais de 22.000 km², ou seja, mais de 80% do território.
Quem defende como possível solução a conformação A conquista de território por parte do Exército is­
de dois Estados – um judaico e outro Palestino – parece raelita foi acompanhada pelo assentamento de colonos
apoiar-se, em primeiro lugar, num critério “racional” e judeus. Já no primeiro ano de vigência dos acordos de
“equitativo”. Suponhamos que alguém tenha a casa in­ paz de Oslo, Israel confiscou 670 km² de terrenos pa­
vadida, parte de sua família assassinada, e outra parte lestinos para ampliar as colônias e abrir novas estradas
expulsa, e a que fica está confinada em um pequeno entre elas, depredando, de passagem, mais de 14 mil
quarto da casa. A partir daí, toda a sua vida, trabalhar, árvores frutíferas. Nesse mesmo período, o número de
comer, educar-se, movimentar-se de um lugar a outro colonos na Cisjordânia (sem contar Jerusalém) passou
passa a depender dos acordos que chegue com um ocu­ de 125 mil para 136 mil. Em dez anos de negociações de
pante que, além do mais, continua trazendo mais gente paz, o número de colonos judeus duplicou.
a esse espaço que considera como sua casa. Alguns buscam no Likud ou nos “extremistas judeus”­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

a razão pela qual a expansão dos assentamentos judaicos paz e da “solução dos dois Estados” deveriam prestar
continua, e se apóiam no fato, correto, de que surgiram especial atenção ao processo de Jerusalém.
em determinados momentos tensões entre colonos e o É em base à teoria da convivência dos dois Estados
governo sionista de turno. Contudo, este fato não ab­ que Jerusalém foi dividida artificialmente em duas par­
solve o Estado, nem o exime de forma alguma dessa tes em 1948, por resolução da ONU. A parte ocidental,
política expansionista, e tampouco disfarça o fato irrefu­ ocupada por Israel, estava povoada em sua maioria por
tável de que a expansão continuou, tanto sob governos árabes. Sessenta mil palestinos dos bairros ocidentais
do Likud quanto do Partido Trabalhista. de Jerusalém e dos povos vizinhos tiveram que aban­
Simon Peres afirmava, já em 1995, que os colonos donar – aterrorizados – suas casas. Em 22 de junho de
não eram um obstáculo para a paz; que poderiam ficar 1967, Israel anexava militarmente a parte oriental, que
na Cisjordânia e na Faixa de Gaza depois do fim do pro­ estava sob controle jordaniano. Durante as décadas de
cesso de paz. Basta ver as atuais facilidades para a co­ 1960 e 1970, Israel expandiu a presença judaica me­
lonização, indicando que não há nenhum plano real de diante a expropriação de propriedades árabes. Durante
descolonização e nisso existe acordo entre os trabalhis­ a década de 1980, colonos judeus vinculados aos setores
tas e o Likud. Pode-se apelar a muitos exemplos, como mais fascistas, com o apoio do Ministério da Moradia,
em Maalé Alunin, onde é extremamente vantajoso para então dirigido por Ariel Sharon, instalaram-se no bairro
um judeu se instalar. Mas para ver o papel do Estado árabe do centro da cidade, nas proximidades de Haram
basta dizer que em Hebrón, para proteger trezentos al Sharif.
e cinqüenta mil colonos situados no próprio centro da Durante os últimos governos trabalhistas e do Likud,­
cidade, há setecentos soldados; na Faixa de Gaza, no foi criado o projeto da Grande Jerusalém reservada ape­
enclave de Netzarum, há um batalhão inteiro para cus­ nas para os judeus. Entre 1996 e 1999, somaram-se a
todiar 53 famílias judaicas. essa expansão 42 colônias “selvagens”. E, em 21 de ju­
Jerusalém concentra, por diversas razões, boa parte nho de 1998, o governo israelense deu o aval formal ao
do conflito, e não por casualidade foi o cenário da ex­ plano da Grande Jerusalém com algumas medidas, en­
plosão da nova Intifada. Os defensores dos planos de tre outras, a que retirava as permissões de residência aos

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

árabes que figurassem no censo da ANP ou tivessem inseparáveis da vida palestina: a diáspora de quase qua­
casa nos territórios administrados por ela. tro milhões de palestinos, de uma população total que
O plano baseou-se no objetivo declarado de manter não chega a oito milhões, e a miséria mais completa dos
um equilíbrio demográfico de sete judeus por cada três quase três milhões de palestinos que vivem na Faixa de
palestinos, em ir isolando a cidade do restante da Pales­ Gaza e na Cisjordânia.
tina, impossibilitando o crescimento dos bairros árabes A expansão sionista arruinou a agricultura palesti­
e estabelecendo assim uma área de expansão popula­ na. Mediante o confisco de terras, a imposição de cotas
cional judaica na Cisjordânia. Mediante a anexação de para as exportações ao mercado israelense, o controle
terras, expropriações ilegais de municípios próximos a de importação de ferramentas agrícolas ou o envio, a
Jerusalém (Ramallah, Belém, Beir Sahur) foi sendo cria­ preços muito competitivos, do excedente agrícola is­
do – como diz o expert holandês Jan de Jong – um siste­ raelense aos territórios ocupados, acabou se reduzindo
ma de dois anéis concêntricos de assentamentos judeus a extensão dos cultivos, limitando o número de peões
que rodeiam Jerusalém por completo. Como diz o pre­ nas granjas e empurrando os habitantes de várias aldeias
feito palestino de Hebrón, “não querem viver a nosso para o mercado de trabalho israelense. Neste plano, não
lado, mas em nosso lugar”. faltou a proibição aos agricultores palestinos de exportar
produtos agrícolas para a Jordânia; zonas inteiras de oli­
O “Estado” da miséria palestina veiras e árvores frutíferas foram destruídas.
Sem dúvida, uma arma poderosa em mãos dos mili­
Independentemente da retórica, na hipótese de que tares sionistas é a água. Os recursos hidráulicos, devido
se reconhecesse os dois Estados, a verdade é que só a à escassez, tornaram-se um dos recursos mais estratégi­
cegueira completa ou um cinismo sem limites permi­ cos no Oriente Médio, e por isso zonas como as colinas
tiria chamar de “Estado palestino” aqueles guetos de de Golã foram fonte constante de disputa. Durante anos
miséria cercados por colonos e militares sionistas, com as ordens militares sionistas incluíram a destruição de
franca supremacia econômica, política e militar. poços de água palestinos, a proibição de que cavassem
O expansionismo sionista vai associado a dois fatos a mais de 120 metros de profundidade (os colonos sio­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

nistas tinham autorização para cavar até 800 metros de capita. Portanto, não é de estranhar a falta de camas e
profundidade), a expropriação de poços de proprietários medicamentos nos hospitais palestinos.
“ausentes” etc. Desde 1982, todo o sistema hidráulico Carentes de recursos “quinhentas escolas, oito uni­
está sob administração da “Rede Nacional Israelense”. versidades e mais onze mil empregados do setor edu­
Os habitantes palestinos de Gaza e Cisjordânia dispõem cativo nos territórios ocupados padecem sem o menor
de 115 milhões de metros cúbicos de água por ano, o financiamento ou diretriz”.
que representa 19% dos recursos de seu país. A econo­ A economia palestina vive em fase de completa
mia israelense e os assentamentos judaicos dispõem de pauperização sobretudo desde 1967, quando as autori­
485 milhões de metros cúbicos. dades jordanianas terminaram de descapitalizar toda
Em termos de infra-estrutura, só 2% das localida­ a Cisjordânia para favorecer a industrialização da an­
des da Cisjordânia têm rede de esgotos; apenas 21% dos tiga Transjordânia. O papel da economia palestina na
habitantes conta com sistema de coleta de lixo; apenas “divi­são do trabalho” está determinado pelos projetos
44% das localidades cisjordanas dispõe de fornecimento do ocupante. Assim, em um informe de 1970 do Mi­
permanente de energia elétrica e apenas 20% dos habi­ nistério de Defesa israelense afirma-se: “por um lado,
tantes está conectado à rede telefônica. os territórios ocupados constituem um mercado suple­
Em um estudo realizado no início dos anos 1990, em mentar para as exportações israelenses e as empresas
uma situação “melhor” que a atual, os dados em maté­ pertencentes ao setor terciário e, por outro, é provável
ria de saúde eram relevantes. Dos US$ 830 milhões de que acabem convertendo-se em um canteiro de mão de
impostos nos territórios ocupados recolhidos pelas auto­ obra não qualificada”. Já em 1987, mais de 92% das im­
ridades militares israelenses, somente trezentos foram portações de Gaza e Cisjordânia procediam de Israel.
invertidos em projetos de saúde, educação e assistência Como cifra comparativa, tem-se que em 1992-1993
social. Nesse período, os gastos da administração civil o PIB de Israel subia para US$ 63 bilhões, o da Jor­
em matéria de saúde pública passaram de US$ 40,00 a dânia a 4,1 bilhões e o dos territórios ocupados foi de
18,30 per capita, enquanto que na Jordânia a cobertura US$ 2.200 bilhões, sendo que um terço desses ingres­
era de US$ 140,00 e em Israel chegava a US$ 370,00 per sos procede da mão de obra empregada em Israel, dos

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

600 mil palestinos que dependem do mercado de tra­ Acordos de paz que trazem bantustões
balho israelense.
O fechamento dos territórios decretado pelo governo Já em 1988, o ex-subsecretário de Estado George
israelense só aumentou a asfixia desse quadro de pau­ Ball (administrações de Kennedy e Johnson) em seu ar­
perização. As taxas de desemprego dispararam de 23% tigo “A paz de Israel depende de um Estado apêndice
para 50% da população ativa, e calcula-se que nos úl­ dos palestinos” afirmava:
timos anos o poder aquisitivo da população de Gaza e A preocupação de Israel por segurança poderia ser sa-
Cisjordânia caiu 46%. tisfeita em boa medida redigindo um tratado formal­
Como se fosse pouco, os acordos de paz obrigam a com salvaguardas vinculadas e executáveis que impe­
ANP a “uma mesma política de importação” que Israel, çam ao novo Estado palestino ter qualquer força ar-
deixando-lhe como “margem” importar determinados mada própria e limitem o número e tipo de armas
produtos de países árabes, em quantidades limitadas e a que sua polícia possa usar. Como salvaguarda adicio-
preços acertados previamente com Israel. nal, o acordo poderia incluir a instalação de postos de
Cabe então perguntar: qual é a viabilidade de um vigilância mais amplos, numerosos e efetivos que os
Estado sem recursos hidráulicos, sem indústrias, com que atualmente funcionam no Sinai a partir do acor-
a agricultura destruída, sem infra-estrutura de mora­ do de paz de Israel com o Egito.
dia, saneamento, educação ou transporte, e sem inde­
pendência, sequer formal, para estabelecer relações A assinatura, em setembro de 1993, dos chamados
comerciais­ exteriores? Acordos de Oslo, negociados em segredo entre o go­
Em tais condições de coexistência entre os dois Es­ verno israelense e a direção de Arafat, está em sintonia
tados, o chamado “Estado palestino” não seria mais que com essa proposta antiga dos funcionários do governo
a administração de um gueto, gerente de um bantus­ dos Estados Unidos. Mas esses acordos também devem
tão, cujos ínfimos recursos econômicos dependeriam da ser explicados pela mudança na estratégia palestina que
“ajuda exterior”, essa que chega a conta-gotas, depen­ teve início em dezembro 1988 com a decisão da maioria
dendo do quanto o doador goste das medidas adotadas. do Congresso Nacional Palestino, dirigido por Arafat,

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

de reconhecer o Estado de Israel. Essa mudança punha árabes ocupados, entre eles, Jerusalém oriental”. Os
no centro da estratégia palestina a negociação sobre a Acordos estão em sintonia com a manutenção de Israel
base do reconhecimento de dois Estados. enquanto Estado sionista. Impõe-se, com a rubrica de
Os Acordos de Oslo eram a máxima expressão dessa Arafat, essa visão racista e teocrática, que repete solu­
estratégia, e foram seguidos por uma enorme difusão, ções anteriormen­te impostas pelo imperialismo em suas
que não poupou elogios e cumprimentos. A declaração colônias nos séculos 19 e 20.
mesma começava com a solene afirmação dos assinan­ Uma definição dada por Edward Said ilustra esses
tes de que havia “chegado o momento de pôr fim a antecedentes e permite dar um marco histórico ao status­
decênios de confrontações e conflitos, de reconhecer atual estabelecido nas negociações sobre a região:
reciprocamente seus direitos legítimos e políticos, de Os acordos de autonomia com os quais os palestinos
esforçar-se por viver em coexistência pacífica, em dig­ (excluímos os quatro milhões de refugiados cuja sor-
nidade e segurança mútua...” Os direitos legítimos e a te foi jogada para a nebulosa situação do “estatuto fi-
dignidade para os palestinos resumem-se a uma “auto­ nal”) têm que conviver são um curioso amálgama de
nomia” carente de recursos próprios, guetos de miséria três “soluções”, historicamente descartadas, e ide-
cercados pelas Forças Armadas israelenses. Em troca, a alizadas por colonizadores brancos para o problema
direção de Arafat renunciou não só à autodeterminação, dos povos antigos da África e Américas do século 19.
como também a Jerusalém e aos direitos dos refugia­ Uma delas baseava-se na idéia de que os nativos po-
dos, ou seja, aos direitos de 55% da população palestina. diam ser convertidos em irrelevantes seres exóticos
Mas, além de fracionar a negociação (o tema do regresso privados de suas terras e mantidos em tais condições
dos refugiados ficava de fora), Arafat empenhou-se em de vida que seriam reduzidos a trabalhadores braçais
fracionar a resistência palestina. Edward Said definiu temporários ou agricultores pré-modernos. Este é
os Acordos de Oslo como um “instrumento de submis­ o modelo índio-americano. A segunda consistia na
são”, como a “capitulação”. “Israel obteve dos árabes a divisão de suas terras (reservas) em bantustões des-
aceitação, o reconhecimento e a legitimidade, sem ser contínuos, e no estabelecimento de uma política de
obriga­do a renunciar à soberania sobre os territórios apartheid que dava privilégios especiais aos colonos

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brancos (hoje os israelenses), enquanto se permitia Sobre alguns argumentos da esquerda


aos nativos viver em seus guetos miseráveis; assim, a favor dos dois Estados
estes eram responsáveis dos assuntos municipais sem
deixar de estar submetidos ao controle do branco (de Excede os limites de espaço deste artigo e seu ob­
novo Israel). Este é o modelo sul-africano. Finalmen- jetivo responder os diversos argumentos daqueles que,
te, a necessidade de que estas medidas gozassem de na esquerda, defendem como saída para o conflito uma
certo grau de aceitação requeria que um “chefe” na- solução pacifica baseada na conformação de dois Esta­
tivo assinasse na parte inferior da página. Este chefe dos. Por exemplo, é um argumento dos que defendem a
obtinha temporariamente um estatuto mais elevado solução “realista” afirmar que Israel já é uma realidade
do que aquele que dispunha antes, recebia apoio dos após cinqüenta anos de existência. A validade desse ar­
brancos, um título, um par de privilégios, e talvez, gumento seria o mesmo que afirmar, anos atrás, que o
uma força policial nativa, de tal maneira que todo apartheid sul-africano era uma “realidade” após décadas
mundo pudesse apreciar sem dificuldade que se ha- e deveria ser aceito pelos negros com algumas reformas.
via feito o melhor para esse povo. Esse é o mode- Tão progressista como exigir a San Martín que fosse
lo seguido pelos franceses e britânicos na África do realista diante do fato evidente de mais de três séculos
século 19. Arafat é o equivalente do século 20 dos de presença espanhola na América Latina.
dirigentes africanos. Queremos nos referir, particularmente, a uma cor­
rente de esquerda que advoga pela solução dos dois
O giro na estratégia dos dois Estados é a política e a Estados e a retomada das negociações de paz: o Se­
orientação da direção de Arafat. É impossível entender cretariado Unificado da IV Internacional (SU). Mi­
a Intifada sem esse cerco de miséria, asfixia e terror im­ chel Warshawski, dirigente de seu grupo israelense e
posto pelo Estado sionista, mas é pertinente dizer que a especialista no tema, sobre o qual escreve artigos para
Intifada também é um protesto contra essa política, que o jornal Rouge da LCR, seção francesa do SU, advoga
legitima o sionismo enquanto condena o povo palestino por uma “verdadeira paz” e a “coexistência entre dois
à fome e ao desemprego. Estados, sob auspícios da ONU”.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Segundo Michel Warshawski: alista” e o “revolucionário” é apelar para a boa vontade


Para deter a loucura assassina em curso, é necessária de uma intervenção internacional para, nada mais nada
uma intervenção internacional, decidida a impor, ao menos, impor a retirada das tropas israelenses? Os di­
menos, a retirada das forças militares israelenses e a rigentes do SU adotaram esse hábito político de exigir
redefinição de um marco de negociações que possa a intervenção da ONU frente a qualquer conflito que
pôr fim ao diktat israel-estadunidense. Os palestinos se dê no mundo (Bósnia, Kosovo, Timor, Chechênia).
pedem uma proteção internacional e este chamado Curioso pacifismo este que encontra na exigência de in­
deve ser retomado com vigor pelo movimento de tervenções militares da chamada “comunidade interna­
solidariedade que começa a se reorganizar em todo cional” a solução para todos os problemas. Curioso anti­
o mundo, depois de sete anos de confusão mantida militarismo este que converte os exércitos da ONU nos
pelos acordos de paz. instrumentos políticos de todas as soluções. E infeliz e
Uma força de interposição internacional seria, sem lamentável a política que chama as massas permanen­
dúvida alguma, a solução menos custosa. É o que pe- temente a confiar em instituições como a ONU, como
dem os palestinos. É também o que pode acelerar se esta fosse neutra ou alheia aos problemas, como se a
o reinício das negociações, que o governo de Barak, ONU ou os exércitos que intervenham em seu nome
mais isolado que nunca e incapaz de tomar a menor estivessem acima dos grandes Estados, acima das clas­
decisão – a não ser a de golpear – sabe ser inevitável. ses, como se não fossem serviçais do imperialismo, em
Neste sentido, uma intervenção internacional não particular do estadunidense.
serviria somente para evitar o massacre dos palesti- Para Warshawski, parece que “a comunidade inter­
nos, mas também para limitar o número de vítimas nacional”, ou a ONU poderiam ter outra política para
do lado de Israel, que não vai parar de aumentar, o conflito, qualitativamente diferente, dos “planos de
como confirma o último atentado de Gaza. paz” que vêm sendo aplicados. Como se junto com a in­
tervenção militar da ONU chegassem os planos de paz
Ou seja, diante de tal ofensiva – impossível de ser “verdadeiros”, nos quais seriam reconhecidas as legíti­
derrotada por causa da desproporção de forças – o “re­ mas reivindicações palestinas.

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Não se lembra que foi a ONU que repartiu a Palesti­ jovens palestinos que protagonizam a Intifada. E se os
na para permitir, primeiro, que se formasse e depois que jovens palestinos não aceitarem parar de atirar pedras,
fosse legitimado internacionalmente o Estado sionista? se se negarem a ficar quietos à espera de novos “planos
Não se lembra que foi a ONU que aprovou perseguir de paz”? A solução proposta por Warshawski só é possí­
militarmente todos os que se levantaram em armas con­ vel com a condição de parar a Intifada, porque do con­
tra sua resolução de repartir a Palestina? E não foi sob os trário os jovens palestinos terão de enfrentar o Exército
auspícios da ONU que se negociaram, primeiro em se­ israelense e o da ONU.
gredo, depois se assinaram os vergonhosos Acordos de Warshawski afirma que essa intervenção “é o que pe­
Oslo que tantos sofrimentos trouxeram aos palestinos e dem os palestinos”. Deveria dizer, com mais precisão,
contra os quais luta hoje a Intifada? que isso é o que pede Arafat! Não precisar isso é a forma
Michel Warshawski sabe perfeitamente que den­ de confundir a defesa dos palestinos e sua Intifada com a
tre todas as organizações da esquerda mundial, só a defesa de Arafat e sua política. Arafat clama pela ONU,
IV Internacional levantou, em 1948, sua voz contra a para negociar com Israel e para acabar com uma Intifada
constituição do Estado de Israel. “Abaixo a divisão da que surgiu apesar dele e, em boa medida, contra ele.
Palestina!, Abaixo a intervenção imperialista na Pales­ Propor como solução pedir a intervenção da ONU,
tina!, Fora do país todas as tropas estrangeiras, os ‘me­ independentemente da vontade que acompanha essa
diadores’ e ‘observadores’ da ONU!”, dizia a declaração proposta, acaba se convertendo no apoio à permanência
da IV Internacional. Warshawski deveria reconhecer ao do Estado de Israel; o apoio à política de Arafat, em outra
menos que a defesa de “ambos os Estados”, da coexis­ palavras, é o oposto ao apoio incondicional à Intifada.
tência entre eles e o pedido insistente de intervenção da
ONU feito pelo SU hoje é uma posição diametralmente Retomar a defesa de uma Palestina laica,
oposta à declaração programática da IV Internacional. democrática e não racista
Warshawski exige “uma força de interposição in­
ternacional” que, se concretizada, obviamente estará A fortaleza do Estado de Israel, sua existência por
obrigada a se interpor entre o Exército israelense e os mais de cinqüenta anos, não se explica por seu poderio

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militar, nem sequer contando com todo o arsenal esta­ tarde, ao retrocesso sistemático, ao gueto e a miséria.
dunidense. Como em toda guerra, é a política e não os Como afirma Ralph Schoenman, trotskista judeu es­
meios técnicos militares – apesar de serem importantes tadunidense em seu livro História oculta do sionismo,
– o elemento determinante. É difícil, na história dos Na realidade, os supostos defensores dos direitos pa-
Estados, encontrar um que, enquanto mantém sua do­ lestinos que exigem a aceitação e o reconhecimento
minação a ferro e fogo, expulsa, saqueia e assassina, seja do Estado de Israel, seja como for que se disfarcem,
apresentado como a “pobre vítima sitiada”, “cercada de estão atuando como advogados do Estado colonial
inimigos”, a quem “não se deixa viver em paz”. estabelecido na Palestina. Utilizam a cobertura pseu-
O sionismo conta com o auxílio da televisão e da do-esquerdista da autodeterminação para “ambos os
imprensa mundial, com o apoio dos Estados mais po­ povos”, mas essa sofisticada utilização do princípio
derosos e influentes, além das inúmeras emissoras de da autodeterminação, equivale a um chamado enco-
televisão, jornais, clubes das poderosas comunidades berto a uma anistia a Israel.
sionistas no mundo e os grandes lobbies milionários.
Conta também com inúmeras organizações políticas, Esse giro estratégico da direção da Al Fatah teve
sindicais, culturais, incluindo boa parte da esquerda, e tem como destinatário o governo estadunidense e
que acabam fazendo parte da canalhesca manobra de as burguesias européias. Trata-se de mostrar “sentido
capitalizar para o sionismo o sofrimento do povo judaico comum” e agradar os possíveis doadores. Agora sim,
com o Holocausto (vide capítulo anterior), de confundir a OLP defende uma política “integradora”, “não ex­
deliberadamente judeus com sionistas, de adocicar, jus­ cludente”, de “convivência entre árabes e judeus”, re­
tificar ou minimizar o terror de todo um Estado. petem reiteradamente os defensores do giro estratégi­
O giro de uma parte da direção palestina, a que é co. Até nesse aspecto tão crucial de toda luta, como a
dirigida por Arafat, e sua estratégia de dois Estados, é, batalha ideológica, o giro parece um certo reconheci­
acima de tudo, um triunfo do sionismo, porque legiti­ mento tácito dos reiterados e reacionários tópicos que
ma o direito de um Estado sionista existir. A partir daí, o sionismo sempre agitou: “os palestinos querem aca­
qualquer negociação só pode levar, mais cedo ou mais bar com os judeus”, “querem atirá-los ao mar”, “acabar

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com o Estado de Israel­ é anti-semitismo, perseguição jetivos colonialistas insaciáveis de Sharon, Peres e com­
aos judeus”. panhia. Um programa e uma estratégia que punham
Que outro programa, a não ser o programa funda­ ênfase especial em não confundir de forma alguma os
cional da OLP, propunha a convivência entre árabes judeus com os sionistas.
e judeus em um só e mesmo Estado? A proposta de O então recém-nomeado presidente, Yasser Arafat,­
uma Palestina democrática, laica e não racista defendi­ explicando o programa fundacional da OLP, dizia:
da pelo programa da OLP aprovado em 1969, marcou “Como presidente da OLP, conclamo os judeus, a cada
toda uma perspectiva de emancipação, que buscava um individualmente, a reconsiderar sua opinião sobre o
a convergência­ entre árabes e judeus, sobre a base da caminho para o abismo pelo qual o sionismo e os diri­
eliminação do colonialismo sionista. Uma Palestina na gentes israelenses os conduzem [...] Fazemos a vocês o
qual os judeus que não faziam parte da invasão sionista mais generoso dos apelos para que vivamos efetivamente
eram “considerados como palestinos” Esse programa uma paz justa, juntos em nossa Palestina democrática”.
afirmava: A Intifada, de 1988 a 1992, abriu pela primeira vez a
O movimento de libertação nacional palestino não necessidade de que Israel, com apoio dos Estados Uni­
luta contra os judeus enquanto comunidade étnica e dos, tivesse que negociar, e permitiu a sobrevivência da
religiosa. Luta contra Israel, expressão de uma coloni- direção da Al Fatah. E Arafat se pôs à cabeça da nego­
zação e baseada em um sistema teocrático racista e ex- ciação, nos moldes do imperialismo estadunidense, para
pansionista, expressão do sionismo e do colonialismo. chamar a paz e trair os heróicos combatentes das pe­
dras. Qual é a avaliação, depois de mais de uma década,
Apontava assim uma estratégia para revolução pales­ desse giro? Arafat é hoje o presidente de um bantustão
tina, atraindo o apoio de massas na Palestina e no res­ de miséria e sofrimento, cercado de questionamentos
to do mundo árabe assim como de parcelas das massas quanto à sua autoridade, em meio a denúncias de cor­
mais pobres prejudicadas pelo predomínio sionista e de rupção, torturas e da divisão da resistência palestina.
camadas da juventude judaica cansadas de servir de car­ A nova Intifada não apenas repete as cenas de heroís­
ne de canhão numa guerra sem fim para garantir os ob­ mo do povo palestino e renova, com sua juventude, o

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

compromisso com a luta, mas é também um questiona­ ação contra a ocupação dos territórios ocupados dentro
mento objetivo, de cima abaixo, desse giro estratégico, de Israel (Gush Shalom) e soldados como Noam Kuzar,
da política dos dois Estados e os “acordos de paz”. que se recusam a servir neles, orientados por grupos
Edward Said diz que, em defesa da Intifada, é preciso como o Yesh Gvul. Seria impensável há alguns anos
abrir “uma segunda frente”. Está correto, pois defender que, como em 2001, no dia da comemoração da funda­
hoje a causa palestina, apoiar a Intifada exige, a nosso ção de Israel houvesse uma contra-manifestação desses
ver, redobrar esforços para explicar incansavelmente em grupos reunindo judeus e palestinos em Jerusalém. A
todos os lugares do planeta as razões da luta palestina, resistência palestina e árabe ao colonialismo sionista
contradizer os argumentos falaciosos do sionismo, que­ permitiu que se abrissem as primeiras brechas na antes
brando o cerco que se quer levantar sobre a Palestina e considerada invencível força armada israelense. E hoje
rodeando assim de solidariedade a heróica Intifada. a coragem dos ativistas da Intifada não se abate apesar
Quando se fala dos planos de paz como “saída para dos assassinatos, tiros e ameaças do Exército sionista.
o conflito” e se renuncia à batalha estratégica pela Pa­ Em suas mentes, corações e ações repousa a esperança
lestina democrática, laica e não racista em nome de um e o futuro do povo palestino e de sua revolução.
suposto realismo diante da “força do inimigo”, convém
dizer-lhes que não se trata de menosprezar nem um mi­
límetro a força do sionismo e do imperialismo, mas é
bom lembrar que recentemente os combatentes do Lí­
bano conseguiram a retirada das tropas de Israel, para
a qual colaborou a mobilização das mães dos soldados
judeus que não agüentavam mais a perda de seus filhos
em uma guerra sem sentido.
A partir do Líbano, começaram a aparecer os sinto­
mas da exaustão da juventude judaica com os anos de
guerra em prol do colonialismo. Já existem grupos de

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A DERROTA DE ISRAEL NO LÍBANO

Alejandro Iturbe
Josef Weil

A recente invasão de Israel ao Líbano e seu resul­


tado com a vitória de Hezbollah não significaram uma
guerra a mais entre as sucessivas que o Estado sionista
desfechou em seus 58 anos de existência. Uma nova
realidade desenhou-se na esteira da invasão e da der­
rota de Israel nas mãos da resistência libanesa. Desnu­
dou-se tanto a natureza genocida desse Estado como a
crescente fragilização política e militar à medida que
enfrenta cada vez maior repúdio e maior resistência
dos povos árabes e muçulmanos. A demonstração de
que “é possível derrotar o sionismo” espalhou-se por
todo o Oriente Médio. Até mesmo no interior de Isra­
el vozes do aparato de Estado e sionistas declaram-se

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

preocupados com a própria sobrevivência do Estado vale do Baalbek: tentaram enganar a população local,
racista. disfarçando-se de soldados libaneses, falando árabe e
Aqui é necessário recordar o papel de cada um deles chegando de madrugada, mas a população desconfiou
na região e a história de 58 anos de conflitos bélicos de seu linguajar incomum, avisou a guerrilha. Flagra­
entre Israel e seus vizinhos. Apesar do mito de ser o dos e repelidos, tiveram que enfrentar um combate que
pequeno país – o Davi contra o Golias – na verdade, Is­ acabou com a morte de um tenente-coronel e mais um
rael nunca esteve sob real perigo nas guerras anteriores. ferido grave dos comandos israelenses e uma fuga pre­
Com o apoio total das potências imperialistas, frente a cipitada da tropa sionista em um helicóptero sob o fogo
inimigos com governos corruptos como os dos países da guerrilha, sem conseguir seu objetivo.
árabes, as batalhas foram curtas e demolidoras, como na Israel despejou uma quantidade impressionante de
famosa Guerra dos Seis Dias em 1967, ou no blitzkrieg bombas e mísseis nas cidades e nas vilas de todo o Lí­
sobre o Sinai de 1956. bano. Mobilizou mais de trinta mil soldados e utilizou
Nesta última guerra, frente não a um exército regular,­ a mais moderna tecnologia militar. Apesar disso, nunca
mas a uma organização de resistência que utilizou a conseguiu quebrar a capacidade militar de Hezbollah
clássica guerra de guerrilhas, como fez o Hezbollah, Is­ que, mesmo no final do conflito, continuava dispa­
rael foi derrotado e saiu em crise, tanto o governo como rando mais de duzentos foguetes diários ao território
as Forças Armadas, antes consideradas invencíveis. Até israelense.­ As tropas israelenses sofreram um alto nú­
os famosos comandos israelenses foram fragorosamente mero de baixas, e também a destruição de numerosos
derrotados, em dois episódios: a “tomada de Bint Jbeil”, tanques e equipamento militar.
que depois de proclamada a todas as redes de televisão, Havia décadas que Israel não via seu território ata­
resultou em um contra-ataque fulminante do Hezbollah cado em um conflito militar. Neste caso, o norte do
com dezenas de tropas israelenses mortas e feridas e a país, incluída Haifa, a terceira cidade israelense, foi
evacuação do Tsahal da cidade. permanentemente afetada pelos foguetes lançados
O outro foi uma tentativa de Israel logo após o ces­ pelo Hezbollah.­ Como resultado, milhares de pessoas
sar-fogo de raptar um alto dirigente do Hezbollah no tiveram que abandonar suas casas e, pela primeira vez

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

na história de Israel, formar acampamentos de refugia­ siva a duas crises combinadas. Porém, como a de Bush
dos. Nem sequer havia abrigos para alojar as pessoas no Iraque, a política de Olmert enfrentou um colossal
em peri­go no norte. ascenso de massas árabes e muçulmanas, cuja expressão
Apesar do primeiro-ministro israelense Olmert e o mais alta são as guerras de libertação nacional contra o
presidente estadunidense George Bush afirmarem que invasor­ imperialista. Sem dúvida, o Hezbollah desenvol­
Israel ganhou a guerra contra os “terroristas do Hez­ veu uma força militar eficiente e seus milicianos com­
bollah”, é cada vez mais difundida a noção de foi o con­ batem com valentia e determinação. Porém, o decisivo
trário que se deu. Apesar de toda a destruição sofrida foi a política. Quando as massas libanesas, começando
pelo Líbano, o Exército sionista sofreu uma dura derrota pelos xiitas, mas não somente elas, também amplos seto­
e teve que se retirar sem atingir seus objetivos políticos res dos sunitas, cristãos, ateus etc. perceberam que se
e militares. Trata-se de um fato de imensa importância tratava da defesa da soberania contra o odiado invasor
porque põe na ordem do dia a possibilidade de concre­ sionista, respaldaram totalmente a resistência seja por
tizar uma tarefa histórica: a destruição do Estado racista apoio direto seja por simpatia explícita e uniram suas
e policial de Israel. vozes contra os agressores. Uma pesquisa constatou 85%
de apoio ao Hezbollah no auge da guerra, apesar de toda
O RESULTADO DA GUERRA destruição causada e que Israel tentou utilizar para divi­
dir o povo libanês, responsabilizando o Hezbollah pela
Como dizia o jornal Correio Internacional 123: catástrofe e se aproveitando de que o Hezbollah tinha
A melhor demonstração do verdadeiro resultado da uma base forte apenas entre os xiitas. Mas essa luta foi
guerra é o claro contraste entre o festejo dos habi- respaldada pelo conjunto do povo libanês, que o apoiou
tantes do sul do Líbano quando voltavam a seus po- ou defendeu sua razão para combater e forneceu, afinal
voados, apesar de encontrá-los quase destruídos, e a de contas, seus combatentes. Quando acabou a guerra,
grave crise política que se abriu em Israel. os refugiados que retornavam a seus lugares destruídos
gritavam seu ódio a Israel e muito deles davam vivas ao
O ataque israelense tentou dar uma resposta ofen­ Hezbollah.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Crise grave em Israel Afeganistão. A crise da política dos Acordos de Oslo de­
pois do triunfo eleitoral do Movimento de Resistência
Um Estado em perigo era o título de um artigo do Islâmica (Hamas, em árabe) tinha agravado a situação.
Haaretz de 02 de setembro de 2006. Refletindo um de­ Olmert e Bush acreditaram que obteriam uma vitória
bate interno acirrado depois da guerra, em que em geral rápida e contundente no Líbano que lhes permitiria
o foco se centra no papel do governo e da cúpula militar, começar a reverter essa crise. Mas Israel não somente
este artigo de Yair Sheleg tenta discutir a nova realidade não conseguiu essa vitória contundente como foi derro­
criada pela derrota no Líbano. tado, e isso aprofundou ainda mais a crise da política do
Mas por que uma derrota abalaria tanto um país imperialismo.­
como Israel? Temos que entender que se trata de um Isso também gera uma insegurança dentro do próprio
país cuja natureza é ser um “Estado policial”, ou seja, Estado de Israel. Além de uma disputa entre todas as
garantir a ferro e fogo, via uma superioridade militar in­ forças políticas para achar os culpados e ver uma saída.
contrastável, seu predomínio na área e a garantia que A oposição de direita diz que o problema foi a vacilação
oferece aos interesses imperialistas. Vários comentaris­ em invadir por terra com tudo logo no primeiro dia de
tas estadunidenses informavam o descontentamento do guerra, e exige levar às últimas conseqüências a missão
governo Bush por Israel não ter “entregue a fatura” que de destruir Hezbollah e Hamas, ainda que às custas de
prometera: liquidar o Hezbollah em poucos dias e livrar milhões de mortos e de baixas muito maiores no Exér­
a região de um inimigo armado e desafiador. O fracasso cito. Sucedem-se manifestações pedindo a cabeça de
em conseguir essa meta desacredita Israel aos olhos do Olmert e/ou de Peretz e a volta imediata dos soldados
imperialismo, que ameaça relativizar seu compromisso capturados na praça de Tel Aviv. Alguns pacifistas, um
de adesão total. setor minoritário, afirmam que era melhor ter negociado
Afinal Israel sempre foi considerado peça-chave na a troca dos soldados tomados como reféns entre Israel
política de “guerra contra o terror” iniciada por Bush e o Hezbollah, assim como com o soldado seqüestrado
em 11 de setembro de 2001. Essa política está total­ em Gaza com Hamas. O comando do Exérci­to também
mente empantanada no Iraque e, agora, reaberta no é fortemente criticado e muitos pedem sua cabeça.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

A sensação de vitória nas massas luta dos povos iraquianos e afegãos contra a ocupação
árabes e muçulmanas imperialista de seus países.
Assim mostram os exemplos a seguir:
A derrota das tropas sionistas gerou uma imensa ale­ A rua árabe foi entrando em uma situação parecida a
gria nos povos árabes e muçulmanos. Um dirigente ára­ quando se esquenta uma panela de água: foi esquen-
be expressou isto com muita clareza: tando pouco a pouco até chegar ao ponto de ebuli-
Durante anos e anos, disse-se aos árabes das gerações ção. Significativas foram as manifestações no Egito,
anteriores que nada se poderia fazer contra a força de por exemplo: onde os irmãos muçulmanos mistura-
Israel. Agora todos os árabes estão despertando para vam-se com a esquerda do movimento Kefaya (“Bas-
a nova realidade [...] para além do Líbano, essa sen- ta!”), onde retratos do xeique Nasrala misturavam-se
sação se alastra como fogo em palha seca por todo o com os de Nasser e Che e onde a televisão Al Manar
mundo árabe e muçulmano [...] É uma sensação de compete às claras com a Al Jazeera. Mas não só no
poderio que poderá por fim selar a sorte não só de Egito. Em todo o mundo árabe centenas de manifes-
Israel, mas também desses governos árabes que são tações, cada qual mais massiva, tomaram as ruas com
vistos por seus cidadãos como “vendedores” da fal- um grito unânime: “Sem justiça não há paz”. Essa
sa idéia da impotência árabe para ocultar sua própria concepção positiva da paz que tanto assusta o impe-
impotência e sua corrupção. rialismo em qualquer parte do mundo: resolução das
causas que geram os conflitos. E no Oriente Médio
Esta “sensação de poderio” significará seguramente esse conflito tem um responsável: Israel.
um grande impulso para a luta das massas árabes e mu­
çulmanas, não só contra Israel, mas também contra os Na Arábia Saudita houve manifestações muito repri­
governos responsáveis de décadas de capitulação, espe­ midas, com várias prisões, mas não se pôde deixar de
cialmente os mais amigos de Israel ou do imperialismo, noticiar que os xiitas do noroeste estão extremamen­
como os da Arábia Saudita, Egito e Jordânia. Podemos te descontentes com a monarquia e têm uma enorme
acrescentar que será também um estimulante para a simpatia pela luta dos seus irmãos do Líbano e pelo

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Hezbollah. Até no Bahrein – sultanato petroleiro onde manifestantes com bandeiras do Líbano e do Hez­
existe uma base dos Estados Unidos – houve protestos bollah, cobrando-lhe aos gritos que tomasse posição
exigindo justiça no Líbano. contra Israel. Alguns deles, entrevistados pelas redes
de televisão, diziam que Annan não devia tentar enga­
A ONU desacreditada nar o povo libanês enquanto Israel continuava a manter
o bloqueio naval e aéreo ao Líbano. As massas libanesas
A ONU saiu extremamente comprometida e desa­ perceberam que o direito de veto dos cinco integrantes
creditada ao se mostrar como um instrumento da opres­ do Conselho de Segurança da ONU transformou-se na
são imperialista e sustentáculo de Israel. Supostamente prática, pela relação Estados Unidos-Israel, em direi­
uma instituição a serviço da paz e do respeito às na­ to de veto do Estado sionista ante qualquer aspiração
ções, não foi capaz sequer de garantir um cessar-fogo legítima das populações da região. E ao exercício sem
quando havia claras mostras do caráter genocida dos ata­ contestação de toda a força militar genocida e do arse­
ques israelenses. Colocou a culpa permanentemente no nal de armas proibidas até mesmo pela convenção de
Hezbollah­ pelo início da guerra e declarou-se sempre Genebra, como as bombas de fragmentação. O governo
pelo seu desarmamento via a anterior Resolução 1559, de Israel cinicamente diz que agiu sem violar as con­
exatamente a política central de Bush e dos sionistas. venções internacionais e essas afirmações são recebi­
Nada mais ilustrativo para o entendimento do desgaste das sem qualquer ameaça de sanção efetiva ao governo
dessa instituição imperialista do que a manifestação nas de Israel.
ruas de Beirute contra a representação diplomática da Na verdade, a aposta de Bush e Olmert era de arra­
ONU no dia em que os manifestantes – não somente sar com a resistência libanesa em semanas, mas o tiro
apoiadores do Hezbollah, mas pessoas de várias posi­ saiu pela culatra e a derrota das tropas sionistas não fez
ções políticas – queriam invadir sua sede aos gritos de mais que potencializar a crise da política imperialista no
“Morra América, morra Israel!”. Oriente Médio. Um exemplo disso foram as dificulda­
Ou ainda a visita conturbada de Kofi Annan a des e vaivéns para formar a força de paz prevista pela
Beirute­ depois do cessar-fogo, quando foi cercado de Resolução 1701 da ONU.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Como corresponde ao rol de ferramentas do imperia­ gem que ficou nítida aos olhos de militantes árabes e
lismo que tem esta organização, esta resolução não con­ muçulmanos, como revela esse trecho de entrevista de
denava a agressão sionista nem a destruição ocasionada. um militante do Hezbollah dada a Mohamad Ali Nayel,
Limitava-se a chamar o cessar-fogo e enviar os “capace­ Nicole Younness y Jaume d’Urgell:
tes azuis” ao lado libanês da fronteira. Ao mesmo tem­ A ONU sempre defendeu os interesses dos Estados
po, insistia no mandato de outras resoluções anteriores, Unidos e de seus amigos, os ocupantes da Palestina e
como a 1559, para “desarmar o Hezbollah”. agressores do Líbano. Ponhamos em questão o exem-
O objetivo real da resolução é de amenizar a derrota­ plo dos seqüestros. Por que, quando os ocupantes da
do Exército israelense e que a “força de paz” estabe­ Palestina seqüestram alguém e torturam-no duran-
lecesse uma zona tampão entre Israel e Líbano e impe­ teonze anos, não se dá a isso o nome de terrorismo?
disse os ataques de foguetes do Hezbollah. Muitos dos Por que Annan não aparece na televisão condenan-
países convidados a enviar tropas recusaram-se a ir ou do esse tipo de ato? Por que condena unicamente as
propuseram um contingente reduzido. A antiga potência­ ações (proporcionalmente insignificantes) realizadas
dominante no Líbano e com intenções de retomar­ sua pelo Hezbollah? Em minha opinião, quando um or-
influência, a França, não assumiu a responsabilidade de ganismo internacional que aspira ocupar o lugar a que
chefiar e mandar três mil homens, pois seus generais re­ a ONU pretende, mostra-se como juiz e litigante de
cusaram a proposta e queriam mandar apenas duzentos, um modo tão evidente, sua justificação desaparece.
pois ainda têm presente a lembrança de sua participação
em outra força da ONU nesse país na década de 1980,
que foi literalmente “pelos ares”. Isso gerou protestos Uma nova guerra é inevitável
de Bush, pressões a que outros países imperialistas da
Europa saíssem a oferecer-se para substituir a França, O cessar-fogo pactuado no Líbano é sumamente
como Itália e Espanha. precário. Israel continuou a manter o bloqueio naval e
Para aqueles que ainda querem ver na ONU um aéreo por mais três semanas depois do “cessar-fogo”. O
“instrumento da paz”, é impossível esconder essa ima­ governo israelense declarou que Israel deve se preparar

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

“para uma segunda ofensiva” contra o Hezbollah. A não existir. Apoiados na resolução da ONU, com o respal­
ser que... o Líbano curve-se totalmente e o Hezbollah do tanto dos Estados Unidos quanto do da URSS e na
aceite desarmar-se ou as tropas da ONU e do Exército comoção mundial despertada pelo genocídio nazista, os
libanês o imponham, o que parece extremamente di­ sionistas souberam manobrar para passar essa imagem
fícil­ de acontecer pelo resultado da guerra. Neste caso, ante o mundo, inclusive com uma boa parte da esquer­
Israel­ não vai admitir a presença de um desafio dessa da apoiando sua política, apontando os kibutzim como
magnitude em sua fronteira. Uma nova mostra de que ilhas de “socialismo” num mar de regimes feudais e
a origem das guerras e conflitos na região é o caráter de despóticos nos países árabes. Dizia-se que, depois de
policial do imperialismo do Estado de Israel. Em algum tanto sofrimento, os judeus queriam apenas instaurar
tempo, o Estado sionista voltará a atacar e já está se pre­ um país com os princípios de democracia, igualdade e
parando, lambendo suas feridas, para fazê-lo. Uma nova sem perseguições religiosas. E que seriam atacados por­
demonstração também de que não poderá haver paz no que esses governos árabes odiavam esse “exemplo” de
Oriente Médio até que não se derrote definitivamente liberdade e prosperidade.
e se destrua a Israel. A derrota que sofreu no Líbano de­ E os palestinos, que para os sionistas não eram um
monstra que, com uma luta unificada das massas árabes povo, seriam apenas joguete desses tiranos, que os uti­
e muçulmanas, seria possível fazê-lo. lizariam para atacar Israel. As mentiras propaladas para
sustentar essa tese eram incríveis. Uma das mais repug­
A perda da imagem de Davi frente a Golias nantes foi a versão de que os palestinos que haviam sido
expulsos de suas terras entre 1947 e 1948 pelo Haganá e
Durante muitos anos, poderíamos dizer especialmen­ pelos grupos terroristas sionistas com líderes como Me­
te entre sua fundação em 1948 e o ano de 1973, da guer­ nachem Begin, Sharon e Shamir, ambos posteriormente
ra do Yom Kippur, Israel apresentava-se ante a opinião primeiros-ministros, teriam sido vítimas de uma supos­
pública como o pequeno Estado nascido da vontade dos ta “propaganda das rádios árabes que os convidavam
perseguidos judeus e acossado pelas hordas árabes e a sair”. E todo aquele que se atrevia a contestar essas
muçulmanas que simplesmente não o queriam deixar mentiras era logo acusado de “anti-semita”.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Agora, a máscara do monstro vai caindo. As cenas da mídia que defende a tese da “única democracia do
do Líbano mostraram a brutalidade, o desprezo às vi­ Oriente Médio assediada pelos terroristas do Hezbollah
das de civis, a destruição da infra-estrutura para impor e Hamas”. Na Inglaterra, uma pesquisa durante a inva­
a rendição mesmo às custas de fome, falta de remédios são deu uma ampla maioria de 62% contra a agressão
etc., a ponto dos observadores da ONU e organizações ao Líbano, em total contradição com a política de Tony
como Anistia Internacional e HRW que sempre evita­ Blair de apoio incondicional a Israel. Isso ocasionou um
vam uma posição nessa área, terem condenado Israel debate público entre figuras de peso do Labour Party,
e declarado suas ações “crimes de guerra”. Nos anos o próprio partido de Blair, sobre se era correto continu­
1950-1970, uma série de intelectuais de esquerda acei­ ar com essa posição de aliado incondicional de Israel e
tava o discurso de Israel como sendo o oásis “socialista” de Bush.
ou “democrático” na região. Com as últimas ações, cada Cada vez mais Israel é associado à política genoci­
vez mais setores médios, da esquerda e a intelectuali­ da de Bush e do imperialismo no Oriente Médio. No
dade progressista vão se distanciando e inclusive come­ Oriente Médio, os governos que tentam aparecer como
çando a denunciar o próprio papel de Israel como Esta­ “moderados” e acenam com acordos aceitando o status
do terrorista na região. O português prêmio Nobel José quo e o papel de Israel como potência colonial e milita­
Saramago declarou “Israel está fazendo perder o capital rista perdem rapidamente o respeito de seus habitantes,
de compaixão, de admiração e de respeito que o povo são atacados politicamente como covardes ou cúmplices
judeu merecia pelos sofrimentos por que passou. Já não dos massacres.
são dignos desse capital”. O argentino Pérez Esquivel, No único lugar em que ainda tem uma maioria
prêmio Nobel da Paz, chamou Israel de “Estado terro­ apoiadora na população, os Estados Unidos, Israel tam­
rista”. O ex-candidato a presidente dos Estados Unidos, bém sofreu um desgaste: embora continue o apoio total
Ralph Nader, classificou a agressão de Israel ao Líbano de ambos os partidos republicano e democrata e uma
de “bombardeio terrorista”. postura totalmente pró-sionista não só do governo como
Na Europa e na América Latina cresceu muito a re­ do Congresso, 54% dos votantes democratas e 39% dos
pulsa aos métodos de Israel, apesar de toda a blindagem republicanos estão a favor de uma política de neutra­

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Josef Weil (org.)

lidade, oposta ao atual alinhamento total com Israel.


Para quem conhece o peso do lobby sionista nos Es­
tados Unidos, é um número indicativo do desgaste até
mesmo nos Estados Unidos. Uma petição de judeus dos
Estados Unidos contra a agressão de Israel aos povos
libaneses e palestinos já tem mais de mil assinaturas. Parte 2
A tal ponto chegou o desgaste da imagem que até
Brzezinski, ex-assessor de inteligência exterior de Re­
agan, da junta de segurança nacional que assessorava
Bush pai e em particular grande “amigo de Israel”, co­
meça a dizer que são necessárias mudanças na política
de seu eterno aliado.
História do Islã
Odeio dizê-lo, mas vou dizer. Penso que o que os
isralenses estão fazendo agora, por exemplo no
Líbano,­ é na prática, na prática – talvez não na inten-
ção – uma matança de reféns. Uma matança de reféns.
Pois quando se mata trezentas pessoas, quatrocentas
pessoas – que nada têm a ver com as provocações do
Hezbollah – e isto se faz na prática com deliberação e
indiferença pela magnitude do dano colateral, está se
matando reféns com a esperança de intimidar os que
se quer intimidar. E o mais provável é que não se os
intimide. Simplesmente se os ultraja e se os converte
em inimigos permanentes cujo número não cessará
de crescer.

126
ISLÃ: DA PORTA SUBLIME À PORTA
DO INFERNO

Cecília Toledo
José Welmovicki

“Porta sublime” é como ficou conhecida a corte que


dominava o mundo árabe na época do Império Otomano
(1299-1922) . Depois da I Guerra Mundial, o Islã passou
a padecer sob o domínio de outro império, muito mais
sanguinário, o britânico, e agora padece sob as botas do
infame imperialismo estadunidense. Nestes artigos fa­
zemos uma retrospectiva de alguns dos principais acon­
tecimentos que marcaram essa conturbada história. Para
isso, usamos duas fontes básicas: a revista Correio Inter-
nacional 7 (agosto de 1984), dedicada à guerra Irã-Ira­
que, e a 19 (maio de 1986), dedicada ao Islã, com artigos
importantes escritos por Gabriel Massa e Jan Poliansky,

129
Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

e o livro de Tariq Ali, Bush na Babilônia, recentemente deserto. Essas tribos expulsas foram convertendo-se nos
lançado no Brasil. Nosso objetivo é oferecer aos leitores ferozes beduínos. A cultura beduína era essencialmente
um panorama do Islã, ressaltando os momentos mais de subsistência, baseada no pastoreio, uma agricultura
importantes de sua história, tão rica e tão complexa, no mínima nos oásis, e complementada pela razzia, palavra
sentido de colaborar para uma melhor compreensão do árabe que designava os ataques a outras tribos beduínas,
que vem ocorrendo hoje no Iraque. às caravanas comerciais ou às aldeias camponesas­ para
Este primeiro artigo aborda, de forma sucinta, o sur­ roubar víveres.
gimento do Islã, tendo em conta que desde os princí­ No início do século 7, um próspero comerciante de
pios da civilização, o Oriente Médio desempenhou um Meca, principal cidade de Hedjaz, na costa ocidental da
papel importante na História da Humanidade. península arábica, chamado Maomé, refletindo as ne­
Durante mais de dois milênios, diversos impérios cessidades do setor mais dinâmico da classe comercial
tentaram dominar a região do Oriente Médio, vital de­ que se desenvolvera na região, começava uma pregação
vido a seu comércio e produção de alimentos. Sucede­ religiosa-política que o levaria, em menos de vinte anos,
ram-se os egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, a se transformar no líder de um Estado teocrático árabe
romanos e bizantinos. Os gregos e bizantinos deixaram unificado.
importantes contribuições culturais, mas nenhum desses O Islã expandiu sua hegemonia para além dos limi­
impérios conseguiu impregnar com sua cultura os povos tes da Península Arábica. O instrumento religioso para
do Oriente Médio, e menos ainda dar-lhes uma unidade isso foi a jihad, a guerra santa. A burguesia comercial
política que sobrevivesse à dominação imperial.­ cresce. As caravanas avançavam atrás das tropas con­
Árabe – adjetivo que hoje identifica mais de 180 quistadoras. O impressionante fluxo de riquezas que
milhões­ de pessoas, desde o Saara Ocidental até o Ira­ chegavam ao centro do império como botim de guerra
que – no começo do século 7 só identificava a população deu aos soldados islâmicos a possibilidade de um rápido
da Península Arábica. A limitação de recursos nas franjas enriquecimento e sua consolidação em uma casta mili­
litorâneas fazia com que os excedentes de população, as tar que deixou de lado suas origens beduínas.
tribos mais débeis, fossem obrigados a emigrar para o Esta casta burocrático-militar institucionalizou-se

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

com a consolidação do império, o advento da dinas­ merciantes e pequenos artesãos sofriam a opressão e
tia dos omeyas ao poder e o translado da capital para a miséria.­ Seria dessas classes urbanas de onde sairia
Damasco. Apesar da forma do Estado ser similar a de maior parte dos grandes movimentos de protesto na
muitos países asiáticos – uma casta de administradores história do Islã.
decidindo os destinos do país – a formação econômico- Um aspecto essencial do império e que se conser­
social subjacente tinha fortes elementos capitalistas. varia no mundo islâmico foi a tolerância em relação às
Uma boa parte da produção artesanal das cidades e comunidades não-muçulmanas. É verdade que, du­
da produção agrícola estava especializada por zonas e rante os primeiros anos, os povos conquistados eram
destinada ao mercado, e não eram raras as oficinas com obrigados a adotar a fé muçulmana, uma herança da
mão de obra assalariada. No campo primava a peque­ mentalidade beduína. Contudo, depois, o estabeleci­
na propriedade privada, em geral em mãos de dhimis mento de um império de comerciantes e administra­
(estrangeiros não assimilados ao Islã) que pagavam im­ dores percebeu que era mais vantajoso não destruir os
postos ao Estado. Os poucos latifundiários recebiam setores sociais­ existentes entre os povos conquistados,
a maior parte da renda em dinheiro, não em espécie, mas integrá-los à sociedade muçulmana como clientes
mais parecidos com a burguesia do que com os senhores ou sócios menores dos grandes comerciantes, pagando
­feudais europeus. impostos ao Estado em troca de proteção. Essa polí­
A civilização árabe era essencialmente urbana, giran­ tica chegou ao apogeu durante o reinado da dinastia
do em torno do comércio, do artesanato e de um cres­ dos Abássidas, que optaram por assimilar ao Islã todos
cente setor financeiro. Apesar das proibições corânicas os que assim o desejassem, levando ao máximo a in­
ao empréstimo a juros, um grande setor da burguesia tegração das culturas árabe e dos povos conquistados.
comercial dedicava-se às atividades financeiras e aos Essa tolerância manifestou-se em grandes exemplos
poucos passava a controlar as grandes cidades, que vão de convivência, como a dos muçulmanos, cristãos e ju­
se tornando cada vez mais autônomas. deus na Espanha árabe – em contraste absoluto com
No campo, os dhimis sobreviviam sem grandes a Espanha cristã posterior à Reconquista (1492) – e a
dificuldades econômicas, porém, nas cidades, os co­ integração total dos judeus na sociedade árabe durante

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treze séculos. Algo que só o imperialismo e o sionismo conquistados, a cultura chegou a um nível que não havia
conseguiriam,­ não sem grandes esforços, destruir. alcançado nem sequer na Antigüidade clássica em sua
época de esplendor. O desenvolvimento da navegação,
A civilização islâmica das matemáticas, astronomia e medicina são alguns dos
que serviram de base para o avanço científico que pro­
Menos de duzentos anos depois de Maomé, a socie­ moveu o Renascimento na Europa. A arte floresceu a
dade islâmica havia chegado ao seu apogeu. Bagdá che­ partir da herança bizantina e persa, manifestando-se
gou a um milhão de habitantes. Era a cidade mais rica e essencialmente na arquitetura e em uma impressionan­
povoada do mundo. Mas não reinava sozinha. Em todo te produção literária. O idioma árabe transformou-se na
o império floresciam dezenas de cidades com mais de língua dominante em todo o império e hoje é praticado
cem mil habitantes. do Marrocos ao Iraque, nos países islâmicos não-árabes,
Bagdá comercializava com o mundo inteiro, des­ na Ásia central e do Sul, e deixou para sempre inúmeras
de a China até a Espanha. Todas as rotas comerciais palavras no vocabulário espanhol.
passavam pelo império árabe. O ouro do Sudão viajava
ao Oriente, de onde vinham a seda e as especiarias. O A decadência do Islã árabe
tráfi­co de ouro e escravos tornou-se o sustento econô­
mico do Islã. Uma navegação contínua animava o Me­ Enquanto a riqueza do império chegava ao seu ponto
diterrâneo, o Mar Vermelho e o Índico. As embarcações mais alto, as revoltas populares urbanas, fomentadas pe­
árabes tocavam todos os portos da África oriental e da las enormes diferenças sociais, assim como os levantes
Ásia meridional. Chegavam inclusive até a Malásia e a de escravos, se espalhavam. Por outro lado, o avanço dos
China. O dinar, moeda árabe de ouro, era procurada por navegantes-comerciantes europeus no Mediterrâneo
todas as partes. começou a minar uma das principais fontes da riqueza
Esse auge do comércio e da riqueza não esteve divor­ árabe. Tudo isso contribuiu para a instabilidade de um
ciado do desenvolvimento cultural, artístico e científi­ império que se estendia por vários milhões de quilô­
co. Muito pelo contrário. Com a assimilação dos povos metros quadrados. Por outro lado, para os comerciantes

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

não era necessária a unidade política. Bastava a unidade aí ocupados encontraram, em parte, estruturas de tipo
cultural, a língua comum e a facilidade de deslocamen­ feudal, impostas pelos cruzados ocidentais ao débil im­
to no seio do mundo islâmico. pério bizantino. Apesar de abolida a propriedade feudal,
Já no ano 773, a Espanha conseguia sua independên­ que passou a ser propriedade do sultão, aproveitaram as
cia, assumindo a denominação de Califado de Córdoba. divisões dos feudos, outorgados como concessão aos
Três séculos depois, a autoridade do califa de Bagdá era só multezim, velhos senhores feudais cooptados pelo re­
nominal fora dos limites do Iraque, enquanto que as an­ gime otomano. Além dos multezim, dos militares e dos
tigas províncias eram, de fato, reinados independentes.­ diversos setores burocráticos ligados ao aparato estatal,
o regime otomano também se apoiava na organização
O Império otomano dos millets, as comunidades religiosas. Apesar de não
mais haver o predomínio dos comerciantes, a tradição
No começo do século 14, o caudilho Osman conse­ de tolerância não se havia perdido, tanto que cristãos e
guiu unificar, sob sua direção, várias tribos turcas (que judeus chegaram aos mais altos cargos do Estado.
depois assumiram denominações como otomanos ou Já a partir do século 8, a aristocracia visigoda da Es­
osmanlis)­. Seu filho Orjan conquistou a cidade de Bursa, panha havia começado sua resistência aos invasores ára­
na Anatólia, e criou ali a capital. A partir desse momen­ bes. Mas foi apenas três séculos depois que passariam à
to começava uma expansão rumo à Europa sul-oriental, ofensiva. Nessa época, os incipientes setores comerciais
destruindo o Império bizantino e apropriando-se de seus europeus começaram a se sentir suficientemente fortes
territórios. A conquista de Constantinopla em 1453, cha­ para disputar o controle do comércio mediterrâneo com
mada a partir daí de Istambul, marcou a constituição do a burguesia árabe. Esse foi o fundamento político e eco­
Império otomano. Istambul seria o centro de expansão, nômico das cruzadas.
por um lado, rumo ao centro da Europa e, por outro, em Em dois séculos, os cruzados foram derrotados pelos
direção ao Islã árabe em decadência e desagregação. militares turcos em sua tentativa de se estabelecer na
Ao contrário dos conquistadores árabes, os turcos oto­ Palestina. Entretanto, tiveram vitórias importantes: a to­
manos chegaram ao coração da Europa, e nos territórios mada de Creta, Rodas e Chipre, o conseqüente controle

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Josef Weil (org.)

de uma boa parte do comércio marítimo, e o estabeleci­


mento de setores de propriedade feudal tanto no Líbano
como na parte européia do império bizantino. O final da
Reconquista espanhola em 1492 e a posterior conquista
pelos reis católicos de várias áreas no norte da África ter­
minaram por afastar a navegação árabe do Mediterrâneo.
A burguesia comercial portuguesa, com um maior
desenvolvimento das técnicas de navegação que a bur­ os novos cruzados
guesia árabe, pôde chegar às costas ocidentais africanas
e, depois de dobrar o Cabo da Boa Esperança, atingir as Cecília Toledo
costas orientais, o Oceano Índico e o Extremo Oriente, José Welmovicki
obtendo o controle tanto do tráfico de ouro e escravos
da África subsaariana quanto das especiarias do Orien­ A perda do controle do comércio no Índico foi o co­
te, assim como do comércio com a Índia. Aos poucos, os meço do fim do Império otomano no Oriente Médio.
navegantes árabes foram recuperando parte do comércio­ Apesar de várias tentativas durante o século 18 de criar
no Índico. No entanto, não seriam nem eles nem os uma nova classe burguesa, dedicada à produção indus­
portugueses que dominariam essa atividade. Um século trial, o Estado osmanli continuou sendo essencialmen­
mais tarde os navegantes holandeses estabeleceriam-se te parasitário, incapaz de enfrentar a pujante burguesia
definitivamente na região. euro­péia, em expansão.
O mundo árabe havia sobrevivido às divisões políti­ No final do século 18, os imperialismos europeus
cas e às invasões nômades. Mas o avanço do imperialis­ estavam em condições de aspirar a algo mais do que o
mo europeu cortou definitivamente suas principais ro­ controle das rotas comerciais otomanas.
tas comerciais, reduzindo a possibilidade de trânsito às “Homem enfermo da Europa”. Assim Nicolau I,
caravanas do deserto, como ocorrera dez séculos antes czar de todas as Rússias, chamava o Império otomano.
da irrupção do Islã. A sorte do Islã estava lançada. Desde o final do século 18, essa doença estressava os

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países europeus: era a “questão do Oriente”, ou seja, o sublime­ ou submetendo os seus opositores. Como diz
problema da repartição das imensas possessões da Porta Tariq Ali, “O califa-sultão não insistiu no controle total
sublime. A história do século 19 esteve profundamente nem na obediência, contanto que os impostos fossem
impregnada por ela. pagos ao Tesouro de Istambul”.
Os imperialismos europeus começaram a solucionar A burguesia ocidental tinha outra concepção do
rapidamente a “questão do Oriente”. Depois da fracas­ imperialismo. Tratava de incorporar todos os países
sada expedição de Napoleão ao Egito, a França ocupou “atrasados” ao mercado mundial, explorando todos os
a Argélia e estabeleceu “protetorados” sobre Túnis e seus recursos. Isso se manifestou desde a imposição
Marrocos, e obteve direitos especiais na Síria e no Líba­ do monocultivo de algodão ao Egito, país que durante
no. Por outro lado, o ascenso dos ingleses foi fulminante: milênios havia sido auto-suficiente em alimentos, até
começam por Malta (1815), depois “protegem” a Costa a expropriação dos fellahs (camponeses) argelinos e a
dos Piratas e o conjunto dos emirados do Golfo Pérsico apropriação do petróleo árabe e iraniano.
(1820), atribuem a si Áden e Omã (1839), tomam Chipre Ao mesmo tempo em que a penetração imperialista
(1878), compram a Companhia do Canal de Suez (1875), destruía a antiga classe dominante, criava um novo setor
apoderam-se do Egito (1882) – depois de terem esma­ privilegiado, ligado ao destino de seus amos. Na Penín­
gado a revolta de Arabi Paxá – e do Sudão (1898). Ao sula Arábica, o imperialismo estadunidense favorecia a
mesmo tempo, tomam posse dos protetorados da costa tribo beduína dos sauditas contra a tradicional família
sul da Arábia (1886 a 1914). Outros imperialismos mais de grandes comerciantes dos Hashemitas (guardiães de
débeis, como Alemanha, Rússia, Itália e Espanha, tam­ Meca e, segundo a tradição, descendentes de Maomé).­
bém tirariam sua parte do território otomano. Nos territórios dos sauditas havia grandes poços de
O Império otomano não se preocupara em alterar a petróleo. No Irã, o imperialismo britânico, e depois o
estrutura social do mundo árabe. Colocara-se na posi­ estadunidense, frente à existência de uma burguesia
ção de seu parasita, contando com a colaboração de im­ comercial (do bazar) ainda relativamente forte, preferi­
portantes setores das velhas classes dominantes, então ram favorecer a formação de um novo setor ligado ao
em decadência e transformadas em clientes da Porta aparato estatal e militar, em torno da figura do xá Reza

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Pahlevi.­ Sempre é mais fácil negociar com uma classe para desenvolver suas sociedades. O maior exemplo
social nova, cuja fonte de recursos essencial passa pela dessa tendência no mundo árabe foi dado por Moham­
sua relação com o imperialismo, do que com uma classe med Ali, um albanês que havia sido nomeado vice-rei
social antiga, que possa mostrar, de vez em quando, al­ do Egito pelo sultão otomano em 1805. Tentando ob­
gum ar de independência. ter a independência do Egito em relação à Istambul,
Ali buscou tecnologia e capitais ocidentais, ainda que
O nacionalismo ligado ao Ocidente subordinando-os às necessidades do país. Construiu
um grande setor industrial estatal, mudou o regime
A discussão sobre a “questão do Oriente”, nos go­ das terras e introduziu o cultivo do algodão, mantendo
vernos ocidentais, tinha a ver com a partilha das pos­ a produção de cereais. Apesar do regime imposto por
sessões do Império otomano, e coincidia com um cres­ Ali se parecer ao que havia caracterizado o conjunto do
cente sentimento nacionalista no seio do povo árabe. mundo islâmico durante séculos, na verdade tratava-se
O Estado otomano era essencialmente parasitário, não de algo totalmente novo. O regime de Ali deveria fazer
possibilitando nenhum desenvolvimento econômico a mediação entre a burguesia imperialista européia em
­sério. Como reação a isso, muitos setores árabes come­ expansão e as classes locais. É o que Trotsky definiria,
çaram a colocar a necessidade de romper com o domínio um século depois, como bonapartismo sui generis.
otomano­ e buscar um desenvolvimento independente. Em 1831, com o apoio da França – que via uma oportu­
Em suas origens, a poderosa burguesia árabe em nidade para a expansão de sua influência na região – Ali
expansão havia sido internacionalista. Agora, em retro­ fundou um Estado sírio-egípcio independente. No en­
cesso há séculos, debilitada e sem suas fontes de lucro, tanto, a dinâmica do regime ameaçava provocar o rápido
tornava-se nacionalista para defender o pouco que lhe desmembramento do Império otomano em um momen­
restava. to em que as potências ocidentais não estavam ainda
Em muitos países coloniais ou semicoloniais, seto­ preparadas para tomar conta dele por completo. Assim,
res das classes dominantes tomaram como referência o antes de cumprirem-se dez anos de independência, as
pujante capitalismo europeu, em particular o britânico, tropas do sultão, junto com as inglesas e francesas, der­

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rotaram o Exército egípcio, obrigando Ali a voltar a seu O Irã, independente da coroa otomana, também bus­
antigo cargo de vice-rei e tanto o Egito quanto a Síria cou a Europa para modernizar-se. Os resultados de sua
voltaram à órbita do império. “modernização” não foram menos nefastos para a socie­
Teve início, então, a máxima penetração dos capitais dade iraniana do que haviam sido para a egípcia. Porém,
imperialistas no Egito, destruindo sua indústria estatal no Irã existia uma forte burguesia mercantil – a burgue­
e empurrando os capitais nacionais para o campo, obri­ sia do bazar – que não buscava a “modernização”. Junto
gando-os ao monocultivo de algodão (o Egito deixava a ela estavam os clérigos xiitas, ulemás e aiatolás, donos
de ser auto-suficiente em alimentos), controlando os de grandes extensões de terras e vinculados ao bazar.
principais investimentos – entre eles, a construção do Em 1891, encabeçada pelos clérigos, juntamente com
Canal de Suez – e impondo o conseqüente endivida­ os comerciantes do bazar e as classes populares, ocorreu
mento, empobrecimento e dependência do país ao im­ a primeira insurreição antiimperialista no Irã, que se
perialismo europeu. repetiria várias vezes durante o século 20, culminan­do
Surgem os primeiros movimentos nacionalistas, pro­ com a revolução de 1979.
pondo a ruptura tanto com Istambul como Londres.
Em 1882, explode, no Egito, a insurreição dos urabi, A I Guerra Mundial
que exigia um regime constitucional e a ruptura com a
Grã-Bretanha. Sua derrota foi obtida graças à interven­ A primeira grande guerra de rapina imperialista em
ção direta da Frota e das tropas inglesas. Dez anos de­ nível mundial, ocorrida entre 1914 e 1918, deu pé para
pois era fundado o Partido Nacionalista, com propostas uma mudança no mapa político do Oriente Médio. O
similares às do movimento urabi. imperialismo queria repartir os despojos do certamen­
Esses movimentos nacionalistas antiimperialistas con­ te derrotado Império otomano, enquanto a burguesia
tavam, entre suas bases, com um importante número de árabe­ queria conquistar a independência.
camponeses e artesãos das cidades; no entanto, sua dire­ Para obter o apoio árabe à sua luta contra os turcos,
ção continuava sendo burguesa. Eram setores da burgue­ em novembro de 1918, os governos imperialistas de­
sia arruinados ou ameaçados pela avidez imperialista. clararam que o objetivo da França e Grã-Bretanha ao

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continuar no Leste a guerra desatada pela ambição da Para Tariq Ali, a autodefinição do Império britânico foi
Alemanha era a emancipação completa e definitiva dos resumida com perfeição numa frase publicada no docu­
povos tão longamente oprimidos pelos turcos e o esta­ mento que instituiu o Comitê de Defesa Imperial em
belecimento de governos e administrações nacionais, 1904: “O Império britânico é, em primeiro lugar, uma
cuja autoridade derivasse da iniciativa e livre escolha grande potência naval, indiana e colonial”. A expressão
dos povos nativos. “potência indiana” referia-se ao esteio humano que a
Enquanto as potências européias ganhavam com Índia forneceu aos ingleses para que estes exercessem
essa promessa os setores nacionalistas árabes para sua sua hegemonia colonial; os soldados indianos foram uti­
luta contra o poder otomano, acertavam em segredo a lizados em ambas as guerras mundiais, assim como na
partilha do império, concedendo inclusive por meio da colonização do mundo árabe durante o período entre
Declaração Balfour, em 1917, um “lar nacional judaico” guerras. E a força expedicionária que tomara as três pro­
em terras da Palestina. O resultado disso é que, com o víncias otomanas – Bagdá, Basra e Mossul – que viriam
fim da guerra, os povos árabes livraram-se do Império a formar as fronteiras do Estado do Iraque ao final da I
otomano, mas caíram sob o poder britânico e francês. Guerra, compunha-se de soldados indianos. Em 1917,
“As vitórias e derrotas da I Guerra Mundial torna­ os soldados indianos ajudaram os britânicos a tomar
ram-se a ponte para a partida de um império e a chega­ Jerusalém­ e Bagdá.
da de outro. Enquanto os soldados otomanos rodavam A tática do imperialismo britânico era “dividir para
para oeste, seus substitutos britânicos e franceses mar­ reinar”, mantendo-se o mais longe possível dos campos
chavam para Leste”. de batalha, utilizando os soldados indianos e insuflan­
do as disputas intestinas. Tariq Ali lembra que o acordo
O Império britânico anglo-francês (Sykes-Picot) de partilha do espólio de
guerra levou à divisão do oriente árabe e à criação de
A dominação do Império britânico foi um dos proces­ novos Estados e novas fronteiras que deram ímpeto às
sos mais longos e difíceis da história do Oriente Médio. correntes nacionalistas embrionárias já existentes. Os
A Porta sublime foi substituída pela porta do Inferno. clãs hashemita e saudita foram fortalecidos pelos britâni­

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cos como dique de proteção contra o nacionalismo e as que lembram muito a atual ocupação do Iraque pelos
idéias sindicalistas e socialistas que vinham da Europa.­ Estados Unidos e ingleses:
Concebido pelo Império britânico, o Iraque foi um O povo da Inglaterra foi levado, na Mesopotâmia, a
Estado colonial desde o berço. Em seu livro, Tariq Ali uma armadilha da qual será difícil escapar com dig-
mostra como isso determinou suas estruturas e o caráter nidade e honra. Foi atraído a ela com mentiras, me-
de sua burguesia, totalmente dependente das ordens e diante uma constante retenção de informação. Os
dos favores dos britânicos. Mas o povo do Iraque resistiu comunicados emitidos desde Bagdá são tardios, men-
desde o início aos novos amos coloniais. Sobre isso, Ta­ tirosos, incompletos. As coisas foram muito piores do
riq Ali divulga uma estatística interessante, extraída do que nos disseram; nosso governo lá, mais sanguinário
livro de Richard Gott, Our Empire Story (a ser publica­ e ineficiente do que o povo sabe. É uma desgraça
do), que esquematiza a história do Império britânico: para nossa história imperial, e logo a ferida pode fi-
para cada dia em que este Império existiu, houve um car tão inflamada que não seja mais possível aplicar-
ato correspondente de revolta dos súditos contra seu lhe um remédio comum. [...] Dissemos que íamos à
domínio. Isto é coisa para os fiéis do novo Império Mesopotâmia para derrotar os turcos. Dissemos que
pensarem enquanto a situação do Iraque continua a ficaríamos lá para libertar os árabes da opressão do
se desenrolar e as baixas dos Estados Unidos aumen- governo turco, e para tornar acessíveis ao mundo os
tam lentamente. recursos de grãos e petróleo da região. A esses obje-
tivos dedicamos um milhão de homens e quase um
O tenente-coronel Lawrence – o lendário Lawren­ bilhão de libras. Este ano, estamos destinando 92
ce da Arábia – artífice da campanha britânica contra os mil homens e cinqüenta milhões para o mesmo fim.
turcos, escreveu um artigo a pedido do jornal Sunday Nosso governo é pior que o velho sistema turco. Esse
Times, para dar à opinião pública de seu país uma visão regime mantinha uma força de 14 mil reservas locais
do que ocorria na Mesopotâmia, hoje Iraque, durante a e matava, em média, dois mil árabes por ano para
ocupação britânica no pós-I Guerra. Foi publicado em manter a paz. Nós temos noventa mil homens, com
23 de agosto de 1920. Aqui reproduzimos alguns trechos aviões, veículos blindados, tanques, lanchas com ar-

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tilharia e trens blindados. Matamos uns dez mil ára- têm prisioneiros? [...] Dizemos que nossa intenção
bes revoltosos neste verão. Não podemos pensar em na Mesopotâmia é impulsionar seu desenvolvimento
manter essa média: é um país pobre, escassamente para benefício do mundo. Todos os experts afirmam
povoado, mas Abd el Hamid [sultão que governou a que a oferta de mão de obra é o fator dominante para
Turquia entre 1909 e 1910] aplaudiria se visse o que seu desenvolvimento. Em que medida a matança de
estamos fazendo. Disseram-nos que a revolta tinha dez mil moradores das aldeias e cidades afetará a pro-
motivos políticos, mas não nos disseram o que quer o dução de trigo, algodão e petróleo? Por quanto tempo
povo. Pode ser que seja o que o gabinete lhe prome- mais permitiremos que milhões de libras, centenas
teu. [...] Há quatro semanas, o estado-maior na Me- de soldados imperiais e milhares de árabes sejam
sopotâmia escreveu um memorando pedindo mais sacrificados por uma administração colonial que não
quatro divisões. Creio que era dirigido ao Escritório pode beneficiar a ninguém além de si mesma?
de Guerra, que agora transferiu três brigadas vindas
da Índia. Se já não é possível tirar mais homens da
fronteira noroeste, de onde virá o equilíbrio? En- Chantagistas e oportunistas
quanto isso, nossos infelizes soldados – indianos e
britânicos – estão fazendo trabalhos de polícia em A desintegração do Império otomano e a chegada
uma zona imensa, sob inclementes condições de cli- dos novos amos ingleses fez com que vários grupos se­
ma e alimentação, pagando diariamente um alto pre- cretos de oligarcas se tornassem públicos e passassem a
ço em vidas pela política deliberadamente errônea se engalfinhar pelo poder, disputando os favores e mi­
da administração civil em Bagdá. [...] O governo em galhas atiradas pelos britânicos. Os clãs árabes raramen­
Bagdá esteve enforcando árabes nessa cidade por de- te precisavam de ajuda quando era hora de trocar de
litos políticos, aos que chama rebelião. Os árabes não lado. Numa dessas alas oportunistas estavam os hashe­
estão em guerra conosco. Com essas execuções ile- mitas, que tinham sido totalmente leais aos britânicos
gais se busca provocar os árabes para que pratiquem e receberam seus prêmios por isso: Abdulah tornou-se
represálias contra os trezentos britânicos que man- rei da Jordânia e Faissal assumiu o trono do Iraque. Não

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obstante, como a monarquia, assim como tudo no país, reocupar o país. Os nacionalistas recusaram-se a colabo­
havia sido imposta de cima para baixo, teve sua legiti­ rar com os ocupantes; enquanto isso, os comunistas, se­
midade questionada desde o princípio e por todos os guindo a linha imposta por Moscou, abandonavam toda
lados. Faissal sabia que, em sua maioria, os ex-oficiais e oposição efetiva. Ainda assim, durante os anos da guer­
burocratas otomanos que o cercavam não eram dignos ra e depois dela, o caldeirão continuou a ferver. A elite
de confiança e, para não ser deposto, aproximou-se cada pró-britânica nunca entendeu plenamente a extensão
vez mais dos britânicos. “Sou um instrumento da políti­ de seu próprio isolamento.
ca britânica”, declarou certa vez.
Com a morte de Faissal em 1933, assume o trono seu A resistência
filho Gazi, que era hostil aos britânicos e acabou mor­
rendo em um “acidente” automobilístico. Os curdos receberam bem os britânicos, confiantes
Tariq Ali resume: em conquistar a autonomia. Mas quando viram que isso
As três primeiras décadas do regime monárquico-im- não ocorreria, começaram a se mobilizar. Em 1914, os
perial foram um desastre sem atenuantes para o povo ingleses informaram aos iraquianos que chegavam ali
local. O custo da imposição do regime colonial e de “como libertadores, e não como colonizadores”. Poucos
uma monarquia vinda de fora foi elevado: o uso de ar- foram enganados e houve um apoio popular avassalador
mas químicas e do poderio aéreo provocou noventa e às fatwas, que exigiam a guerra santa contra a ocupação
oito mil baixas. E havia a selvagem repressão política dos infiéis.
em casa, simbolizada pelos enforcamentos públicos: Em sua maioria, os líderes sunitas tradicionais que
um dos que assim foram tratados foi o líder comunis- tinham trabalhado intimamente com os otomanos tam­
ta Fahd. [p. 69] bém se sentiam marginalizados pelos britânicos e pas­
saram a incentivar a unidade entre sunitas e xiitas para
Em 1941 ocorre o golpe dos Quatro Coronéis, que combater o inimigo comum. A população árabe como
instaurou um governo nacionalista popular no Iraque. um todo sofria com as novas estruturas de domina­
Depois de um mês de guerra, os britânicos conseguem ção. A imposição meio frouxa da propriedade privada

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da terra no final do período otomano foi transformada multidões ocuparam as cidades. O movimento ficou
num sistema impiedoso: os proprietários foram cober­ conhecido como Al-watbah­ (“o salto”), significando o
tos de privilégios e usados para policiar a nova ordem. salto da consciência das massas que acontecera nas 48
A institucionalização das propriedades particulares en­ horas anteriores.
fraqueceu a estrutura tribal tradicional e, nas regiões
onde isso aconteceu, criou uma classe de camponeses A irrupção do sionismo e o início
sem-terra. Nas cidades, a invasão do capital estrangeiro da resistência palestina
e sua aceitação pelos empresários locais produziu mais
uma divisão de classe e, o que era ainda mais perigoso A história do Oriente Médio, a partir de 1948, ficou
para as autoridades imperiais, alimentou o surgimento marcada para sempre pela presença do sionismo. Du­
de um nacionalismo radical e levou à formação de um rante séculos, o enraizamento de judeus na Palestina
Partido Comunista que logo se tornou o mais influente havia ocorrido, fundamentalmente, por razões religio­
do Oriente árabe. sas e, dada a tradicional tolerância muçulmana, sem
Em 1948, explode uma revolta estudantil. Foram as ­maiores conflitos.
primeiras manifestações de protesto contra o tratado de Para Nathan Weinstock, a base essencial do sionis­
Portsmouth, que consolidava a ocupação colonial bri­ mo é a miséria das massas judias na Europa central e
tânica. Os estudantes foram brutalmente reprimidos, oriental. Fundamentalmente, esse movimento é o pro­
vários caíram mortos, mas no dia seguinte todas as fa­ duto da conjunção, no século 19, da decomposição da
culdades e escolas entraram em greve, conquistando estrutura feudal dos impérios czarista e austro-húngaro
a libertação dos presos. O PC chama os trabalhadores e da fase decadente do capitalismo. O primeiro fenô­
ferroviários e os pobres da cidade a se unirem aos es­ meno havia minado as bases sócio-econômicas da vida
tudantes e uma enorme passeata forma-se no dia 20 judaica na Europa oriental, o segundo havia bloqueado
de janeiro de 1948. A polícia recebeu ordem de abrir o processo de assimilação.
fogo e vários manifestantes foram mortos. Isso defla­ A solução para esse dilema, proposta por grandes
grou um levante de massa sem precedentes, grandes burgueses judeus, como os barões Hirsch e Rotschild,

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foi usá-los como bucha de canhão para seu empreendi­ tra-se no livro autobiográfico de Edward Said, onde ele
mento colonial. Assim, matava-se dois coelhos de uma conta como a sua própria família, de comerciantes abas­
cajadada só. O sionismo começou a concentrar uma co­ tados, ajudava os palestinos expulsos de suas terras. No
munidade judaica cada vez mais forte na Palestina. Os entanto, nenhum desses setores estava a favor de rom­
sionistas atacavam de forma cada vez mais violenta os per a fundo com o imperialismo. Enquanto Nashashibi,
palestinos, para ficar com suas terras. chefe de uma das famílias palestinas mais tradicionais,
No entanto, apesar das permanentes declarações e dizia no VI Congresso Palestino, que a colaboração com
atitudes pró-imperialistas dos dirigentes sionistas, nun­ os britânicos era compatível com o nacionalismo árabe
ca o imperialismo britânico ficou totalmente ao seu lado. palestino, Amim al-Husseini, líder de outra grande famí­
Enquanto faziam concessões aos sionistas, favoreciam lia, declarava sua fidelidade ao rei do Hedjaz, Hussein,­
os burgueses árabes amigos: criaram o poderoso exérci­ que já havia capitulado totalmente aos ingleses.
to jordaniano chamado Legião Árabe, sob o comando As lutas entre os clãs e sua colaboração direta
do general inglês John B. Glubb (Glubb Pashá), e em (Nashashibi) ou indireta (al-Husseini e os hashemitas)
1945 é fundada a Liga dos Estados Árabes. com o imperialismo britânico sabotavam as possibilida­
Para o imperialismo inglês, o enclave sionista desti­ des de êxito da luta do povo palestino contra os invaso­
nava-se a pressionar os governos árabes a levar a cabo res sionistas.
uma política de “colaboração” com o império. Ocorre­ A primeira insurreição anti-sionista ocorre em 1929.
ram choques entre os sionistas e as autoridades britâni­ Em 1936, uma greve geral paralisa o país. A greve du­
cas, que tardaram em reconhecer o enclave como nação. rou mais de cento e setenta dias, acompanhada de uma
O chamado lar nacional judeu não era, de maneira algu­ onda de desobediência civil, ações de guerrilha e levan­
ma, a única ou a principal carta na manga da diplomacia tes camponeses. Mas o chamado comum por parte da
britânica. Arábia Saudita, Iraque e Transjordânia para suspender
Na Palestina, a primeira resistência contra o sionis­ a greve e “confiar nas boas intenções de nossa amiga, a
mo esteve dirigida pelas famílias tradicionais, em geral Grã-Bretanha”, foi aceito pelo Alto Comitê Árabe (pre­
grandes comerciantes. Um bom exemplo disso encon­ sidido por al-Husseini). O fracasso das negociações com

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

a Grã-Bretanha relançou o movimento, a partir desta de sua fundação. Mas foram derrotados. O reino da Jor­
data dominado por seu caráter popular, insurrecional, dânia, em acordo com os sionistas, ocupou uma parte do
antifeudal e antiinglês. A repressão será mais terrível território palestino, segundo divisão feita pela ONU. Os
ainda, porque dela participaram os grupos sionistas e palestinos foram alojados em precários acampamentos
uma parte das grandes famílias palestinas – em parti­ de refugiados em Gaza e Cisjordânia, ou dispersos por
cular os Nashashibi. Houve várias centenas de mortos uma infinidade de países árabes. Mais de um milhão
e deportados: as forças vivas da resistência palestina deles ficaram em território jordaniano.
são esmagadas. Durante os próximos vinte anos ela não
ressurgirá e será reduzida a um papel menor. Amin al- O nacionalismo árabe
Husseini, que havia mantido uma atitude antiinglesa,
encontrará refúgio na Alemanha hitlerista, contribuindo A derrota dos povos islâmicos, representada pela
assim para desacreditar seu povo. fundação de Israel, tem um efeito surpreendente no
A criação de Israel em 1948 foi decidida como parte seio dos países árabes. Como reação a Israel e à humi­
dos acordos entre Estados Unidos, Inglaterra e URSS lhante derrota dos exércitos árabes em 1948, surge uma
depois da II Guerra Mundial. Era outra divisão territo­ forte corrente nacionalista entre setores burgueses, de
rial que provocaria novos conflitos que levariam os go­ classe média e de oficiais mais plebeus. A crise dos ve­
vernos a depender cada vez mais da “ajuda” econômica lhos regimes que ainda aceitavam submissos a presença
e militar das potências. Os líderes sionistas eram servos de tropas inglesas e francesas em seu território também
declarados do imperialismo. Stalin apostava na aliança colaborou para isso.
contra-revolucionária estabelecida com Washington em Durante a década de 1950, essa corrente chegou ao
Ialta e Potsdam e na qual os elementos “socialistas” do poder no Egito, na Síria e no Iraque. Na maioria dos ca­
sionismo serviriam como ponto de apoio contra os reis sos, por meio de golpes de Estado e sobre os ombros de
e sultões árabes. oficiais nacionalistas que fizeram sua escola na derrota
No mundo árabe, a reação foi imediata. Os exércitos de 1948.
de vários países árabes atacaram Israel no dia seguinte O coronel Gamal Abdel Nasser foi o inspirador do

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

golpe de Estado de 1952 no Egito, que pôs fim à mo­ segurança formado por Grã-Bretanha, a Turquia, o Irã,
narquia, expulsou as tropas inglesas e começou a refor­ o Iraque e o Paquistão, cuja meta era instituir uma rede
ma agrária, além de um processo de industrialização. de bases militares para proteger o petróleo e reprimir a
Apoiou-se no Exército e em organizações sindicais cria­ população, sobretudo manter acuado o inimigo comu­
das e controladas por pelegos. Buscou o apoio dos Esta­ nista. Os Estados Unidos acharam mais prudente ficar
dos Unidos para a “modernização” do Egito. de fora do Pacto de Bagdá, para vigiar de perto os seus
Em 1956, Nasser decide nacionalizar o Canal de atos. O Pacto enraiveceu os nacionalistas, visto como
Suez, até então administrado pelos ingleses. Queria violação da soberania árabe. Em contrapartida, Nasser e
usar os fundos do pedágio para financiar a construção os membros do partido Baath sírio formam a República
de uma represa em Assuan, necessária ao projeto de Árabe Unida em 1958, uma unidade entre Síria e Egito
industrialização. Mas a nacionalização de Suez foi um para lançar as bases da unidade árabe e isolar os regimes
golpe para os imperialismos europeus. Inglaterra, Fran­ pró-ocidentais. Uma razão não divulgada era marginali­
ça e Israel invadiram o Egito para recuperar o controle zar a influência dos partidos comunistas árabes, informa
do estratégico canal. Os Estados Unidos, novo senhor Tariq Ali.
do mundo, e a URSS, apoiaram o Egito e forçaram a No Iraque, apesar da enorme repressão, o povo foi às
saída das tropas ocupantes. A derrota levou a Inglaterra ruas para derrubar a ditadura. Em 14 de julho de 1958,
e a França a perderem quase toda a sua influência no os Oficiais Livres (os partidários de Nasser dentro do
Oriente Médio. Exército iraquiano) dão um golpe e tomam o poder, de­
A nacionalização de Suez e a derrota das potências clarando o fim da monarquia. Em Bagdá, mais de cem
européias e Israel produziram uma enorme onda de en­ mil pessoas põem abaixo a estátua de Faissal e tam­
tusiasmo nacionalista e antiimperialista em todo o mun­ bém a do general britânico Maude, o “conquistador de
do islâmico. No Iraque, a elite de chantagistas que se Bagdá”.­
instalara no poder, desencadeou uma onda de repressão Tariq Ali resume a situação interna do Iraque quan­
em grande escala, apoiada pelos Estados Unidos e Grã- do da instalação do novo regime: vinte e três famílias
Bretanha. Surge o Pacto de Bagdá, um novo sistema de – os Chalabi, Pachachi, al-Khudaivi e outras – contro­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

lavam 56% do capital comercial e industrial privado do to popular nos países independentes. O imperialismo
país. O petróleo estava sob o controle da Iraq Petroleum escolheu esse momento para atacar. Em 5 de julho de
Company, de propriedade britânica. No campo, os bri­ 1967, Israel iniciou um ataque demolidor e simultâneo
tânicos tinham transformado os xeiques tribais em do­ contra a Síria, a Jordânia e o Egito. Em seis dias, apo­
nos de grandes propriedades, criando assim uma base derou-se e estabeleceu seu domínio militar sobre o de­
material para a colaboração de longo prazo segundo um serto do Sinai (onde estão todos os poços de petróleo
modelo já testado e comprovado no subcontinente do egípcios) e o Canal de Suez, a Faixa de Gaza, a Cisjor­
sul da Ásia: como seus colegas de Sind e Bengala, na dânia (a margem ocidental do rio Jordão) e as colinas de
prática, os camponeses iraquianos tornaram-se servos. Golã, na Síria. Com isso, Israel quadruplicou os territó­
A educação superior era em sua maior parte reservada rios sob seu controle. Esse foi o primeiro ataque de peso
às classes média e alta. do imperialismo estadunidense contra os países árabes
Nas décadas seguintes foi feita uma reforma agrária independentes e marcou o fim do nasserismo.
que quebrou a espinha dorsal do latifúndio e em 1961 O sucessor de Nasser (que falecera em 1970) foi
o novo regime nacionalizava o petróleo e as indústrias Anwar el-Sadat, que aprofundou o processo de entre­
de base. ga ao imperialismo que havia começado com os acordos
de paz firmados por Nasser. Em 1972, Sadat expulsou
A guerra de 1967 e a ofensiva do os vinte mil assessores soviéticos que trabalhavam no
imperialismo estadunidense Exército egípcio e nas grandes obras públicas, como a
represa de Assuan, marcando o começo do fim da influ­
Em meados dos anos 1960, o nasserismo já declinava ência de Moscou na região. Com essa medida, busca­
no Islã e a Península arábica assiste à consolidação das va abrir caminho para um acordo geral com os Estados
monarquias petrolíferas. Essas haviam chegado a acor­ Unidos. Mas, antes do acordo, fez uma aliança com a Sí­
dos com os monopólios estadunidenses que lhes permi­ ria e lançou um ataque militar no final de 1973 contra as
tiam obter maiores lucros com a exploração do petróleo. posições israelenses em Golã e no Sinai. Foi derrotado
No entanto, havia crise econômica e descontentamen­ pela enorme máquina bélica israelense preparada pe­

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Josef Weil (org.)

los estadunidenses. Sadat, então, rompeu com os Esta­


dos Unidos? Muito pelo contrário. Nem bem assinou o
cessar-fogo com Israel, o Egito já trocava embaixadores
com os Estados Unidos pela primeira vez em vinte anos,
e o imperialismo começava a enviar ajuda econômica a
Sadat. Poucos meses depois, ele assinou um acordo com Parte 3
o FMI e começava a aplicar a clássica receita de “abrir”
a economia (infitah, em árabe). Permitiu o ingresso de
produtos importados, eliminou a proteção da indústria,
abriu as portas aos investimentos imperialistas, rebai­
xou os salários e tudo o mais que nós já conhecemos.
Em 1978, Sadat firmava os acordos de Camp David e,
com isso, o imperialismo estaduniense mostrava triun­
Caráter do Islamismo
fante o primeiro país árabe a reconhecer Israel: o Egito,
antes referência do nacionalismo árabe. A Liga Árabe,
incluindo os sauditas, rompeu relações com o Egito, iso­
lando-o do restante do Islã, e em 1981 Sadat foi assassi­
nado pelas balas dos oficiais islâmicos.

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Islamismo, expressão distorcida
do nacionalismo

Angel Luis Parras

O presente material surgiu inicialmente como uma


resposta ao texto de Angel intitulado “Sobre a caracte­
rização do fundamentalismo islâmico como movimento
político comparável ao fascismo”, que representa, em
nossa opinião, as posições sustentadas pela maior parte
da esquerda no mundo.
Começamos assumindo que não somos grandes co­
nhecedores deste tema que, sem dúvida, tem uma im­
portância vital e estratégica. Falamos de um fenômeno
mundial, com peso de massas nos países onde o impe­
rialismo mais beligerante está hoje; um fenômeno que
é parte essencial do processo de reorganização operária
no Oriente Médio, na Ásia e no Magreb, mas também

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

– algo vital para nós – entre os trabalhadores imigrantes O alcance do debate em curso
nos países imperialistas.
A eterna falta de tempo, mas sobretudo a obrigação É, sem dúvida, um traço distintivo da situação mun­
de ser muito cuidadoso e mais exaustivo no estudo do dial o giro direitista das direções do movimento de mas­
fenômeno, foi atrasando a publicação deste trabalho. sas, sua integração aos regimes burgueses e sua colabo­
Este atraso permitiu, por outro lado, observar como, ao ração com o imperialismo, na imensa maioria dos casos
compasso da ocupação do Iraque e da guerra de liber­ de forma aberta, sem a menor dissimulação.
tação nacional que lhe sucedeu, incorporavam-se novos Desta “lei” geral não escapa, de nenhuma maneira,
elementos de polêmica na esquerda. a esquerda nos países árabes, Oriente Médio ou Ásia.
Quero acrescentar finalmente duas declarações. A O mito da “onda verde”, o perigo de um ascenso islâ-
primeira é que esta contribuição inscreve-se inteiramen­ mico ao poder, que coloca em perigo “democracias”­
te em acordo com as teses mundiais apresentadas ao VIII que não existiam, mas que podiam existir, era a des-
Congresso da Liga Internacional dos Trabalhadores-IV culpa ideal para semelhante capitulação política da
Internacional (LIT-QI) e que têm o mérito, a meu ver, de esquerda árabe. Mas esta capitulação tinha outra
sintetizar de forma extraordinária as posições principistas cara, paralela à absolutização do islamismo e de suas
a respeito do fenômeno islâmico. Em segundo lugar, di­ tendências reacionárias: a ocultação da responsabi-
zer que este trabalho é o resultado das contribuições de lidade do imperialismo da situação de miséria das
vários companheiros e companheiras árabes como Morad, massas. Sua integração aos regimes políticos da zona
Tafa, Abbas, Maryam e especialmente de Juan Carrique, vem a ser justificada com base na necessidade de lu-
um dos melhores conhecedores do tema, que o vem es­ tar contra a um islamismo comparável ao fascismo,
tudando e acompanhando de forma direta há anos. E é o mas ao mesmo tempo disfarça ou oculta a dominação
resultado de uma escola do partido que debateu de forma que exerce o imperialismo através do governo local.
muito ilustrativa o tema, no verão de 2004. Que fique Há milhares de exemplos de militantes da esquerda
claro que todas as conclusões do que aqui está escrito são marxista e nacionalista que aceitam postos ministe-
responsabilidade inteiramente minha. riais e governamentais com esta justificação.

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Basta dar uma olhada na Argélia, Palestina e Iraque no e nas próprias colônias de trabalhadores imigrantes
para ver como a esquerda – ou boa parte dela – rechaça nos países imperialistas.
a unidade de ação com os islâmicos enquanto não tem Deve-se falar de fenômeno político ou correntes
a menor dificuldade em participar junto com o imperia- pois, contra a imagem interesseira de um movimento
lismo em juntas militares (Argélia), em governos bona­ mundial, estamos frente a organizações absolutamen-
partistas de perseguição aos que sustentam a luta contra te diferentes, mesmo quando se chamem da mesma
o sionismo (Palestina) ou tomar parte de governos de forma. Por exemplo, o Hamas da Palestina é bastante
ocupação postos pelo imperialismo (Iraque). conhecido por ser parte muito destacada da Intifada e
Os “revolucionários” dos países árabes ou islâmicos dos choques armados com o sionismo. Mas o Hamas da
que são os máximos inimigos de qualquer unidade de Argélia, atualmente MSP, apoiou o golpe, a repressão e
ação com o fundamentalismo são, em nossa opinião, ex­ a ilegalização do FIS, inclusive fazendo parte dos go­
pressão do vendaval oportunista que percorre o Planeta. vernos da ditadura argelina, nos quais chegou a ter até
A particularidade dos países árabes ou muçulmanos não cinco ministros.
pode ocultar que a essência do debate é a mesma em Do islamismo, reivindicam-se desde os talebãs ao
todo o mundo, a posição dos revolucionários frente ao Hezbollah, passando pela FIS argelina, o Hamas na
imperialismo. Palestina, a Al Qaeda ou o governante partido turco
do Refah. Inclusive Estados inteiros, como a Arábia
As definições gerais da LIT-QI Saudita­ ou a República Islâmica do Irã.
Como assinalado no documento apresentado para
Como é bastante conhecido, as correntes islâmicas o VIII Congresso da LIT-QI, são as correntes aberta­
existem como tais desde o começo do século 20 e em mente antagônicas ao imperialismo as que têm granje­
particular após a aparição da Irmandade Muçulmana no ado mais simpatias no movimento de massas dos países
Egito (1928). Porém, é desde os anos 1980, depois da árabes e muçulmanos e o que configura realmente o
revolução iraniana, que se convertem em um fenômeno chamado fenômeno islâmico. Depois da bancarrota do
político que cresce em todo o mundo árabe e muçulma- ­stalinismo e do antigo nacionalismo burguês pan-arabis­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

ta dos anos 1960-1970, ocuparam seu espaço na resis­ suas doutrinas reacionárias. Em alguns casos, como o
tência ao imperialismo e aos governos pró-imperialistas, foram em suas origens muitas das correntes islâmicas,
o que lhes granjeou grande prestigio entre as massas de adquirem um caráter fascistóide (talebãs, a maioria des­
toda a região. tas corren­tes nos anos 1960-1970 nas universidades).
Estas correntes são direções burguesas e pequeno- Na esquerda mundial, abriu-se uma discussão sobre
burguesas que se apóiam nos diferentes setores eco­ a política a ser adotada ante os enfrentamentos entre
nômicos e em alas da hierarquia muçulmana (xiita ou estas correntes e o imperialismo. Há quem coloque
suni­ta wahabita) e tomam o islã como referência cole­ que se trata de dois setores igualmente reacionários,
tiva frente à dominação imperialista, à recolonização. e que a política deve ser chamar pela paz. Foi o caso
Estas correntes burguesas se apóiam no movimento de da consigna “nem Bush nem Talebã”, durante a guerra
massas, nas mobilizações e protestos deste, buscando do Afeganistão. Em alguns casos nem sequer se pode
seu espaço frente à exclusão pressuposta para setores igualar­ o caráter reacionário de ambos, a não ser quando
burgueses inteiros nas colônias e semicolônias, o pro­ os islâmicos são equiparados ao fascismo e portanto, em
cesso mundial de centralização de capitais e de saque alguns casos, isto até justifica os golpes militares contra
que representa a recolonização. São em essência setores eles como foi o caso da Argélia.
burgueses que clamam por seu espaço enfrentando o Na esquerda mundial, em particular no LPP pa­
imperialismo na medida em que são excluídos como ca- quistanês, sustenta-se que, diferente das correntes e
pitalistas. Por sua natureza burguesa e teocrática, nunca organizações burguesas e/ou pequeno-burguesas dos
são conseqüentes na luta contra o imperialismo. países coloniais e semicoloniais com as quais são possí­
Do ponto de vista de sua ideologia, propõem alter­ veis os acordos de unidade de ação, de luta no mesmo
nativas teocráticas (Estados islâmicos), que são regimes campo militar contra o imperialismo, com as correntes
bonapartistas – ditaduras sob manto religioso – que aca­ islâmicas, a linha é “nenhum acordo”, “o fascismo não
bam desmontando e enfrentando todo processo revo­ se discute, o fascismo destrói-se”. A razão desta posição
lucionário, perseguindo os ativistas operários e juvenis sustenta que o islamismo, o fundamentalismo, é uma
e toda corrente que não aceite seus planos políticos e corrente reacionária antiimperialista e anticapitalista só

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

porque pretende retroceder ao feudalismo. Para os revo­ pelo fato de estarem sob “governos inimigos ou infi­
lucionários, especialmente nos países do Oriente Mé­ éis” e que inspiram nas massas muçulmanas uma idéia
dio e do Magreb, trata-se de uma luta para “livrar-nos equivocada de como enfrentar o imperialismo. A uti­
do capitalismo e do feudalismo internacionalmente” lização do terrorismo indiscriminado, como fazem a
“Os fundamentalistas [...] são partidos que defendem Al Qaeda e seus seguidores, só ajuda o imperialismo a
os restos medievais. Neste sentido, podemos chamá- ganhar as massas para sua política, tal como mostrou o
los de partidos medievais ou feudais [...] Não estão no 11 de Setembro.
caminho do progresso burguês, mas da reação asiática, O combate contra as direções islâmicas, fazemo-lo
medievalista”. pondo, no centro, as necessidades da luta de classes, o
Para nós, ante o enfrentamento com o imperialismo, combate ao imperialismo e aos governos lacaios. Des­
a LIT-QI defende a derrota do imperialismo e, portan­ mascarar sua inconseqüência, seu palavrório, sua sub­
to, o triunfo do país agredido, independentemente de missão aos interesses burgueses, seu falso igualitarismo,
quão reacionária seja sua direção e seu regime. Para to­ é parte do combate e o fazemos deste ângulo, o da luta
mar a terminologia em uso neste debate, poderíamos dos trabalhadores por cima das crenças religiosas e não
dizer que o fundamentalismo é um fenômeno compa- do “combate à religião”.
rável ao nacionalismo. Em conseqüência, preservando
a independência política e de classe e sem dar apoio Dois critérios diametralmente opostos
político a estas direções, chamamos a unidade de ação
com as correntes islâmicas que enfrentam o imperialis- Para nós as caracterizações políticas das correntes
mo. Seguimos, assim, a tradição do trotskismo expres­ não podem ser determinadas por sua ideologia. A ideo­
sada na guerra China-Japão, no Vietnã, e na guerra das logia é um componente desta caracterização, mas nem
Malvinas. sequer a determinante, porque é o mais superestrutural
Também somos claros ao repudiar a política das or­ de todos. Para nós o determinante é a luta de classes,
ganizações que aparecem como defensoras da matan­ o caráter de classe desta corrente, sua política e seu
ça indiscriminada de setores populares simplesmente programa, o que dizem e o que fazem, sua relação com

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

o sistema social dominante, com o imperialismo e sua loniais como o Brasil ou Argentina é o peso dos fatores
vinculação, o grau de relação que mantêm com o movi- superestruturais pré-capitalistas, isto é, a religião”.
mento de massas.
Para nós o elemento de referência determinante não Alguns erros a que as visões
deve ser buscado na superestrutura, na ideologia, mas superestruturais induzem
na estrutura, na luta de classes. E os momentos excep­
cionais, as revoluções, as grandes comoções sociais ou as Embora seria motivo de todo um trabalho, pode-se
guerras são o cenário em que todos estes fatores saem à resenhar como exemplo desta visão superestrutural,
luz com maior clareza. ideológica, as referências ao wahabismo. O wahabismo
Angel utiliza um critério de raciocínio diametral­ é apresentado como a visão mais “fanática” do Islã, a
mente oposto. Para amplos setores da esquerda e, neste ideologia que acompanha a atuação terrorista de Bin
caso, para Angel, a ideologia é o fio condutor de toda Laden. Trataria-se de “um movimento religioso de vol­
sua caracterização, o determinante, e em conseqüência ta às origens do Islã”.
a definição da política. Por isto, ao fazerem uma caracte­ Sem dúvida, trata-se de afirmações corretas no geral,
rização, dão um peso central às explicações das teorias mas que pouco ou nada ajudam a entender o choque de
do egípcio Sayyib Qotb, do paquistanês Mawdudi, do um homem vinculado à burguesia saudita e ao imperia­
iraniano Khomeini ou do saudita Al Wahab. lismo durante tanto tempo como Bin Laden e em pouco
O peso que dão à ideologia é tanto que a análise ou nada ajudam a explicar em termos marxistas o apoio
do islamismo vai percorrendo o tempo desde 1928 até social a estes setores burgueses. Se a monarquia saudita
nossos­ dias, sem mais referência digna de menção que a é wahabita e Bin Laden também, por que o wahabismo
de seus diferentes teóricos na boca de uns é um sustento ideológico do enfrenta­
O peso da ideologia é tão determinante para Angel mento com os Estados Unidos e na boca de outros a
que ele define, ou matiza, a natureza social de um país justificação da aceitação do domínio colonial?
pelo peso de um elemento superestrutural, a religião: “O O fato de afirmar que Bento 16 e Leonardo Boff
que singulariza estes países em relação a outros semico­ partilham sua fé em Cristo e ambos se nutrem da Bí­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

blia é uma verdade indubitável, mas não passa de uma rado e sua substituição pelos impostos da jihad contra o
definição superestrutural e superficial que não serve resto dos emirados, foi a base do acordo que permitiu
muito para entender o que social e politicamente cada que entre meados do século 18 e a primeira década do
um representa e menos ainda para definir uma política 19 se alcançasse a unificação da Península Arábica e o
revolucionária frente a ambos setores. apogeu saudita. Em 1808, os exércitos sauditas contro­
Na realidade esta superficialidade e visão “ideológica” lavam uma frente de quatro mil quilômetros.
expressam a educação eurocêntrica de boa parte da es­ A jihad lançada contra o resto dos emirados permitiu
querda, à qual nós mesmos muitas vezes não escapamos.­ a acumulação capitalista. “O que produz a jihad é uma
O conceito de “wahabismo” é uma invenção eu­ prosperidade que, mesmo não sendo relativa, deixou
ropéia, dos diplomatas europeus para ser mais exato. de representar um progresso decisivo [...] o ‘wahabis­
“O termo ‘wahabismo’ é um exemplo flagrante desta mo’ converteu-se na arma ideológica do movimento de
distorção: [...] mais que uma realidade, encerra um fan­ centralização da Península Arábica, a tradução teórica e
tasma exterior, em suma expressa mais uma estratégia teológica da unificação social e da centralização política
política que um enfoque científico”. e econômica [...] Como movimento de reforma que pro­
Abd al-Wahab foi o artífice da denominada revolução duziu uma revolução, o wahabismo permitiu a intrusão
nayí, o processo revolucionário que no século 18 obteve da Arábia na História”. Por isso, alguns historiadores de­
a primeira e verdadeira unificação política e econômica nominaram Abd al-Wahab “o Lutero da Arábia”.
da península arábica. O acordo entre Abd al-Wahab e o Se no plano econômico e social o primeiro Estado
príncipe Mamad Ibn Saud representava a tentativa de saudita esteve marcado pela concentração de riquezas
um setor da nascente burguesia de um oásis, o emirado em mãos de uma oligarquia urbana e mercantil, que
de Nach, de se expandir, unificar econômica e politi­ centralizava um vasto território e uma grande abertu­
camente a Península Arábica e responder assim tanto ra comercial no exterior, no plano político instaurava-se
ao incômodo domínio do Império otomano como ao do um regime monárquico, e bonapartista, em que o prín­
nascente imperialismo britânico. cipe era “o primeiro combatente, o primeiro crente e o
A abolição dos impostos à produção agrícola do emi­ primeiro comerciante”.

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A contra-ofensiva britânica em 1809 foi o princípio guesas que se levantam contra o governo títere colonial.
do fim e, em 1818, a invasão egípcia pôs fim ao primeiro O término do acordo com os Estados Unidos, subscrito
Estado saudita e à vida do príncipe Abdallah Ibn Saud, em 1945 para a exploração petrolífera durante cinqüenta
que foi levado a Istambul e decapitado. anos ou a concessão de território para o estacionamen­
A história posterior é mais conhecida, os Saud re­ to das tropas ianques convertem-se em detonadores de
gressariam como príncipes à Arábia, mas desta vez pe­ crises e confrontos sociais, incluídas as inter-burguesas.
las mãos do imperialismo britânico, para instaurar uma Bin Laden aparece aos olhos de setores inteiros das
colônia que adotou a forma de Estado rentista. massas árabes como o herdeiro do “verdadeiro” Abd al-
O impressionante incremento dos ingressos petrolí­ Wahab, que encabeçara a revolução nayí, enfrentando
feros entre 1973 e 1983 foi a base material que tornou o Império otomano e o nascente imperialismo britâni­
possível o Estado rentista e a captação de mão de obra co. A religiosidade não é mais que o invólucro da in­
estrangeira. dignação social e Bin Laden, como Abd al-Wahab, um
Porém, a partir de 1981 começa o declínio econô­ ­“nacionalista”.
mico. Milhares de empresas da construção e firmas co­ Não é casual portanto que o próprio Angel tenha que
merciais quebram e com eles milhares de pequenos e assinalar:
médios investidores, que vão à ruína. O principal objetivo de Al Qaeda não são os ianques
Começa assim uma decadência, acompanhada por nem os sionistas, é a família real saudita. É curioso
fatos de repercussão mundial que afetam muito direta­ como na declaração da ‘frente islâmica mundial’ pela
mente a Península Arábica, como a primeira Guerra do guerra santa mundial contra judeus e cruzados sejam
Golfo ou o reconhecimento saudita do Estado de Israel.­ detalhadas as queixas de determinados setores bur-
O papel da decadente burguesia saudita em meio gueses e religiosos contra a administração saudita, in-
à ofensiva recolonizadora do imperialismo no Oriente clusive que não lhes pagam os rendimentos de seus
Médio e a acelerada deterioração das condições de vida depósitos bancários.
convertem-se assim no caldo de cultura do protesto so­
cial e a aparição de correntes pequeno-burguesas e bur­ Basta, pois, desvencilhar-se de preconceitos e da

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“aparência das coisas” para ver em Bin Laden e em sua com paixão esta tremenda revolução incluindo o proces­
“moderna” versão do wahabismo outra das particulares so contra-revolucionário que lhe sucedeu, pelo qual os
expressões do nacionalismo burguês. aiatolás­ chegaram finalmente ao poder com sua sharia,
e sua economia islâmica incluída.
Alguns fatos da luta de classes Em setembro de 2000, estourava na Palestina a se­
gunda Intifada. A nova revolta – enésimo ato de hero­
Em fevereiro de 1979, uma revolução sacudiu o mun­ ísmo das massas palestinas – introduzia algumas mu­
do, a Revolução iraniana. Todos os atores da cena nacio­ danças substanciais na reorganização política da luta
nal e internacional deram-se conta deste grande acon­ palestina. O papel liquidador da direção de Arafat e da
tecimento. O sanguinário regime do xá Reza Pahlevi foi Al Fatah, a renúncia à luta pela destruição do Estado de
derrotado pelas massas. Israel e a constante submissão às burguesias árabe e eu­
Em todo o mundo – e em particular no mundo árabe ropéias da direção do Rai palestino, alentou o surgimen­
e entre as massas muçulmanas – a Revolução iraniana to, com peso de massas, de correntes como o Hamas.
extravasou todo o sentimento antiimperialista e anti- O Hamas converteu-se numa referência para milhares
sionista. Como em 1956, no Egito de Nasser, a onda de de lutadores no mundo árabe e a violenta morte de seu
simpatias percorreu todos estes países, e o imperialismo carismático dirigente e fundador Ahmed Yasín ampliou
sofreu um autêntico revés. seu prestigio.
Este fato teve conseqüências de primeira magni­
tude em muitas facetas, e uma delas foi no que ago­ Revolução e contra-revolução no Irã
ra analisamos, o chamado movimento islâmico, sobre
o qual provocou uma mudança qualitativa, como logo Vamos olhar de perto então o enorme processo revo­
me referirei. Mas é uma autêntica lástima que os que lucionário que aconteceu no Irã em fevereiro de 1979.
susten­tam o caráter feudal do islamismo, de que se tra­ Açoitado pela crise econômica e a degradação social, o
ta de correntes que lutam por retroceder a História a Irã foi atravessado por uma onda de lutas, levantes e
uma etapa anterior ao próprio capitalismo, não estudem protestos, nos quais um papel destacado foi jogado pela

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

poderosa classe operária iraniana, em particular os ope­ O peso da esquerda iraniana era mais que notável
rários das industrias petrolíferas. As greves estudantis e entre a juventude tinha uma enorme implantação
e a greve convocada pelos petroleiros em novembro de os denominados Mujahidins do Povo, uma corrente
1978 geraram uma onda de greves e protestos que de­ que se definia islamo-marxista, os chamados “xiitas
sembocou numa greve geral e em manifestações massi­ vermelhos”.­
vas em dezembro de 1978. O ascenso revolucionário pu­ Este foi, esquemática e obrigatoriamente super­
nha em crise o governo e todo o regime, incluindo suas ficial, o quadro dos primeiros meses da revolução. O
Forças Armadas e precipitava a queda estrepitosa do “kerensky” Khomeini, representante do clero xiita e da
sanguinário xá Reza Pahlevi. Com a fuga do xá, em fe­ burguesia do bazar e de boa parte da indústria vincula­
vereiro de 1979, culminava a queda do regime em meio da ao comércio nacional, tinha como tarefa restabelecer
à completa crise das instituições, incluindo as Forças o Estado e encerrar a crise revolucionária desatada em
Armadas e a odiada polícia Savak. O imperialismo per­ fevereiro de 1979.
dia assim seu guardião da área, em meio a um ascenso A contra-ofensiva imperialista, cujo episódio mais
revolucionário que dava origem a organismos operários,­ sanguinário foi alentar a guerra Irã-Iraque em 1980,
os shoras, e da entrada em cena de centenas de milhares junto à completa capitulação ao governo e ao clero da
de estudantes e jovens. A consciência antiimperialista esquerda iraniana, tanto do PC (Tudeh) como dos pró­
foi tão poderosa que os slogans do próprio clero xiita prios Mujahidins (que, em 1981, passaram à rebelião
estavam salpicados das expressões da esquerda e da luta armada contra o regime), facilitaram o controle da situa­
de libertação nacional. A indústria do petróleo, assim ção pelos aiatolás e a posterior perseguição e extermínio
como as principais indústrias energéticas, foram nacio­ de toda a oposição.
nalizadas, como foram nacionalizados o comércio exte­ Centenas de milhares de iranianos – alguns elevam a
rior e as redes bancárias. cifra a um milhão – pereceram nesta sanguinária guerra
Nacionalizou-se uma boa parte da distribuição para que o imperialismo alentou via Saddam Hussein e, com
garantir os produtos básicos às famílias e as proprieda­ este cenário, os aiatolás puderam cumprir sua tarefa
des do xá foram expropriadas. contra-revolucionária.

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Sem dúvida, neste debate há dois temas em que se Não há ninguém, em seu pleno juízo, que defenda
é obrigado a deter: o balanço da primeira República is­ que hoje o Irã é feudal ou está em transição para isto.
lâmica e a influência da revolução iraniana sobre o “fe­ O clero xiita não foi mais que o aparato político de um
nômeno islâmico”. setor burguês que se levantou, cavalgando sobre os pro­
testos sociais, contra a espoliação a que o imperialismo
A República islâmica do Irã, feudal submetia o país, com a conivência de seu gestor e títe­
ou capitalista? re xá Reza Pahlevi. E, hoje, este clero xiita continua
dividido e em profunda crise; ele é a expressão ou as
Os aiatolás impuseram o triunfo da contra-revolu­ expressões de diferentes setores burgueses que lutam
ção. O Irã define-se como uma República islâmica. Sua por um espaço próprio – um pedaço do mercado – fren­
Constituição rege-se pela sharia, se bem que não basta te à avidez recolonizadora do imperialismo ou, então,
invocá-la: é-se obrigado a atuar de acordo com a “lei que que solicitam um lugar como sócio submisso retornando
pertence ao domínio do Estado”. A Constituição obriga junto ao amo imperialista (é o caso de Khatami).
o Estado a trabalhar pela “economia islâmica” e, assim, Sua economia islâmica e seu preceito corânico da
em 1983, foi decretado o “sistema bancário islâmico”. Os riba não são mais que mecanismos particulares (ou nem
assuntos econômicos regem-se, portanto – ao menos na tanto) de levar a cabo a obrigatória acumulação de capi­
retórica – pela proibição islâmica da riba (usura) e as Cai­ tal sobre o velho método de espólio e exploração.
xas de Empréstimo Sem Juros, assim como as “Funda­ Vejamos alguns exemplos. As Fundações de Deser­
ções de deserdados e mártires” estenderam-se por todo dados e Mártires e as Caixas de Empréstimo Sem Juros,
o Irã a partir de 1984. Após 25 anos de governo dos aiato­ por serem “sociedades beneficentes”, ficaram à margem
lás, o que é então o Irã hoje? Um país capitalista, semico­ de toda regulamentação do tribunal de contas iraniano
lonial ou um país feudal ou em transição ao feudalismo? de tal maneira que se converteram num dos grandes
Os islâmicos tomaram o poder e, em consonância monopólios econômicos das elites do Estado, incluindo
com sua ideologia, seu anticapitalismo reacionário, não os militares. As Fundações surgiram sobre a base das
retrocederam a uma época feudal? propriedades confiscadas do xá. Dedicadas a “proteger

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

os deserdados”, as Fundações foram acumulando pro­ que não se tinha em conta as considerações ao dogma”.
priedades e setores sobre a base da mais absoluta obscu­ O resultado de tal empenho dos juristas foi “uma aco­
ridade nas contas e, tendo o cuidado de acumular uma modação sobre o papel entre práticas capitalistas e a
vasta rede clientelar, com base em licenças para o co­ proibição islâmica referente à obtenção de juros”.
mércio, postos de trabalho, subvenções, acesso a deter­ O peculiar sistema das Caixas de Empréstimo Sem
minados bens de consumo etc. A maioria dos ocupantes Juros funciona da seguinte maneira. Elas autorizam de­
dos cargos das Fundações tem sua origem no Exército, pósitos de dois tipos. O primeiro é o depósito bancário
vinculados de uma ou outra forma aos “pasdaran”.­ Seu feito por particulares e que não produz juros. Todavia,
fácil acesso às divisas do petróleo, as isenções fiscais e a o Banco, ou a Caixa, que o aceitem estão autorizados a
impunidade por estarem por fora de todo controle tribu­ oferecer bônus ou incentivos diversos aos depositantes.
tário lhes permitiram acumular em tal grau que hoje são Isto gera uma rede de participantes. Os membros desta
verdadeiras holdings. Hoje as Fundações abarcam ativi­ rede depositam seu capital e por sua vez podem, num
dades muito variadas, desde a indústria até o comércio, momento determinado, dispor do depósito comum.
atividades relacionadas com a hotelaria, as companhias Desta maneira, o capital redunda em lucro dos diversos
aéreas, os transportes. Alguns especialistas assinalam participantes da rede. Cada Caixa acaba apoiando-se,
que as Fundações controlam 40% do PNB iraniano. em geral, em redes centradas em destacados membros
Os lucros deste setor provocam atritos e crises com do bazar, que contam via esta instituição “piedosa”
as políticas “liberalizantes”, os projetos privatizantes e com um notável mecanismo de liquidez para fazer seus
acordos com as multinacionais de Khatami. negócios.­
Outro tanto se pode dizer das célebres Caixas de Outro sistema são os depósitos de investimento a
Empréstimo Sem Juros. O preceito corânico proíbe o prazo, também chamados de sociedade de responsabi­
juro (riba): “Não obstante, a necessidade de que um in­ lidade limitada. O Banco, ou a Caixa, e o depositante
vestimento fosse produtivo fez com que numerosos ju­ compartilham o risco e o lucro do investimento. Este
ristas islâmicos se esforçassem em buscar interpretações sistema serve essencialmente para canalizar a poupança
para poder recorrer à taxa de lucros sem que parecesse de populações rurais e monetarizar as relações de se­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

tores inteiros marginalizados pelo atraso do meio rural. mo pró-imperialista, alentado e alimentado desde o seu
Para alguns setores, este tipo de depósitos permitiu que centro internacional mais público, a Arábia Saudita. Em
se incorporassem à especulação dos bazar. As enormes segundo lugar, o islamismo adquiriu verdadeiro caráter
fraudes e quebras destas caixas, em especial as dedica­ de massas. E, em terceiro lugar, representou, felizmen­
das aos tipos de depósito de sociedade de responsabili­ te, uma autêntica diáspora das correntes islâmicas. Em
dade limitada têm sido notáveis nestes anos. meio ao ascenso do islamismo, a negativa dos aiatolás
A mesma invocação a Alá não deixa de ser uma boa a estender a Revolução iraniana gerou uma verdadeira
propaganda para atrair os depósitos: “Alá recompensa diáspora de correntes e setores. Dito de outra maneira,
dez vezes a esmola, e dezoito vezes o empréstimo sem o islamismo como corrente política ficou mais dividido
lucro”. e descentralizado do que nunca.
Como se vê, os aiatolás têm-se dedicado nestes Existe abundante informação para comprovar que
25 anos a atividades acumuladoras nada feudais nem as correntes islâmicas do início do século 20 nasciam
piedosas.­ auspiciadas e financiadas pelo próprio imperialismo e
os regimes títeres. Tratava-se de fazer um contrapeso
O islamismo após a Revolução iraniana à influência da esquerda marxista e ao nacionalismo
pan-arabista. Particularmente, durante duas décadas,
Abordar o islamismo de um ângulo essencialmente dos anos 1960 aos 1980, em muitos casos estes grupos
ideológico, desconhecendo ou menosprezando o signifi­ islâmicos nasciam vinculados ao poder como autênticos
cado da Revolução iraniana, resulta em falar do islamis­ bandos fascistas dedicados à perseguição e assassinato
mo como se não houvesse existido um corte qualitativo de ativistas da esquerda ou nacionalistas. Seus lugares
no fio islâmico entre a Irmandade Muçulmana egípcia de maior desenvolvimento foram as universidades. No
em 1928 e o atual fenômeno islâmico. Marrocos, era tristemente célebre a denominada Asso­
A Revolução iraniana provocou uma mudança quali­ ciação da Juventude Islâmica, responsável, entre outros,
tativa. O primeiro determinante para definir o fenômeno pelo assassinato em 1975 do dirigente da União Socia­
é o que supõe uma ruptura radical com o fundamentalis- lista de Forças Populares, Omar Benyelun. Outro tanto

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

se pode dizer dos islâmicos argelinos cujas atrocidades e bem-estar a seus países, enquanto a maioria deles
perseguindo ativistas foram célebres nos anos 1970 e têm claudicado visivelmente frente ao imperialismo.
1980 na Universidade de Argel. E o mesmo era aplicável
no começo dos 1970 para o islamismo tunisiano, desen­ O Hamas palestino é um bom exemplo da manei­
volvido às sombras do poder. ra como o ascenso antiimperialista do movimento de
Sem dúvida, a Revolução iraniana marca uma mu­ massas impactou muitos destes grupos, liquidado uns e
dança qualitativa. A entrada em cena do movimento de obrigando outros a realocarem-se. Este grupo nasceu na
massas em toda a região, a onda de lutas e explosões Palestina, mais precisamente na faixa de Gaza, em 1987
sociais (recorde-se, por exemplo, as revoltas do pão no com a primeira Intifada e ainda com um papel bastante
início dos anos 1980 em Marrocos e Tunísia) obriga es­ irrelevante com relação ao resto das organizações pales­
tes grupos a se relocalizar, dissolver-se, desaparecer ou tinas. Não é nenhum segredo que foi alentado pelo cle­
nascer ao calor deste movimento, mas com um signo ro iraniano e apoiado por um tempo, com vistas a tentar
político diametralmente oposto. O islamismo aparece controlá-lo, de um lado, pela Líbia, e, de outro, pela Ará­
assim como um fenômeno nos países coloniais e se­ bia Saudita. Contudo, o mais significativo é que nasceu
micoloniais enfrentando à sua maneira o imperialismo sob o beneplácito direto do gabinete de Isaac Shamir.
e é precisamente isso o que lhe granjeia as simpatias O governo sionista alentava uma corrente islâmica para
das massas, que vêem crescer sua miséria dia a dia ante contrabalançar o peso das organizações nacionalistas e
a cumplicidade ou o estrepitoso fracasso das direções marxistas palestinas (Al Fatah, FPLP, FDLP etc).
tradicionais.­
A grande onda revolucionária produzirá uma violenta As raízes sociais do islamismo
queda do prestígio dos líderes bonapartistas árabes e
os dirigentes guerrilheiros. O desprestígio de Sadat, O bombardeio dos meios de comunicação identi­
Saddam Hussein, Assad, Boumedien, os sauditas, o fica sistematicamente milhões de trabalhadores e jo­
próprio Arafat, se assenta em que não têm sido ca- vens muçulmanos com o “fanatismo religioso”. Em um
pazes, nem de esmagar Israel, nem de dar liberdade país como a Espanha, cheio de padres, de verdadeiros

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

talebãs­ de batina, onde o peso da Igreja católica é asfi­ A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da mi-
xiante em todas as esferas da vida, em que o Estado, a séria real e, por outro, o protesto contra a miséria real.
partir dos cofres públicos, continua financiando a cada A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração
ano escandalosamente a Igreja, é revoltante ouvir falar de um mundo sem coração, assim como é o espíri-
de “fanatismo religioso”. to de uma situação carente de espírito. É o ópio do
Fazendo eco à opinião pública dos países imperialis­ povo. [grifos de ALP]
tas, para a maior parte da esquerda européia, o fenôme­
no islâmico explica-se pelo “atraso das pessoas destes Trata-se de buscar as raízes do fenômeno em sua
países”, “pela ignorância”. base material. Lenin, seguindo o mesmo critério de
Se o desenvolvimento do islamismo é explicado, sem Marx, acrescenta:
mais, pelo atraso das massas, por sua ignorância, caberia A raiz mais profunda da religião em nossos tempos
perguntar, por que as massas não limitaram seu senti­ é a opressão social das massas trabalhadoras, sua
mento religioso ao culto e a encher, sem mais, as mes­ aparente impotência total frente às forças cegas do
quitas às sextas-feiras? Por que, no lugar de um desen­ capitalismo, que cada dia, cada hora causa aos tra-
volvimento religioso místico-passivo, o islamismo nas balhadores sofrimentos e martírios mil vezes mais
duas últimas décadas vem associado a um monumental horrorosos e selvagens que qualquer acontecimento
ascenso das lutas, à irrupção de milhões de jovens na extraordinário, como as guerras, os terremotos etc.
vida política, à insurreições, levantes etc? “O medo criou os deuses”. O medo da força cega do
É inútil esperar uma explicação séria de gente tão capital – cega pois não pode ser prevista pelas massas
“culta” e tão “adiantada”. Mas ainda não faltará um do povo –, que a cada passo ameaça jogar e joga o
esquerdista ou um burguês liberal que repita a célebre proletário ou o pequeno proprietário com a perdição,
frase de Karl Marx, “a religião é o ópio do povo”. Porém, a ruína “inesperada”, “repentina”, “casual”, conver-
basta ler a citação completa de Marx para diferenciar o tendo-o em mendigo, em indigente, lançando-o na
argumento de um revolucionário do de um liberal anti­ prostituição, acarretando-lhe a morte por fome: eis
clerical ou um anarquista, que tanto se parecem: aqui a raiz da religião contemporânea que o mate-

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

rialista deve ter em conta antes de tudo, e mais que Frente Islâmica de Salvação (FIS) tornava praticamen­
tudo, se não quiser permanecer como aprendiz de te segura sua vitória pela maioria absoluta no segundo
materialista. [grifos de ALP] turno. Menos de um mês depois, na noite de 11-12 de
janeiro, o presidente Chadli Bendjedid renuncia e o
A brutalidade do imperialismo, com as inúmeras ex­ Exército argelino assume o poder. Os militares suspen­
pressões de barbárie que o acompanham em sua ago­ dem as eleições, colocam a FIS na ilegalidade e come­
nia, a bancarrota do stalinismo e do antigo nacionalismo çam a repressão. Milhares de militantes e simpatizantes
burguês e a inesgotável tensão e heroísmo das massas, da FIS são internados em campos de concentração no
sua reiterada vontade de luta, explicam este fenômeno deserto do Saara. O que tantas vezes a esquerda fez, a
do islamismo. condenação dos golpes militares, desta vez não existiu.
Por isso, parafraseando Lenin, situar o combate con­ Pelo contrário, uma parte optou pelo silêncio confortá­
tra as direções islâmicas no terreno da “luta contra a vel, outra pelo apoio entusiasta aos militares. Veja como
religião” não é mais do que acabar ajudando o imperia­ exemplo o próprio partido comunista argelino, o PAGS,
lismo e os aiatolás ao mesmo tempo. firme defensor já há muito tempo da ilegalização da FIS
Para nós, o desenvolvimento deste sentimento reli­ e resoluto partidário dos chamados “exterminadores”
gioso islâmico entre milhões de trabalhadores e jovens do Exército. O argumento repetido até hoje é que a FIS
do mundo tem profundas raízes sociais e qualquer pro­ é fascista, os islâmicos são fascistas. Alguém imagina o
paganda revolucionária contra a religião estará subordi­ que seria a Argélia para as mulheres se a FIS ganhasse?,
nada à tarefa central: o desenvolvimento da luta de clas- repetiam “democratas” de toda sorte para fundamentar
se das massas exploradas contra os exploradores. um golpe militar contra uma organização que acaba de
ganhar a maioria numa eleição. Os amantes da demo-
A dramática experiência argelina cracia acima de tudo, os paladinos das eleições como
panacéia universal declararam-se resolutos animado­
Em 26 de dezembro de 1991, ocorria o primeiro res do sabre, tudo em nome do “combate ao fanatismo
turno das eleições legislativas na Argélia. O triunfo da islâmico”.­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

E a FIS era fascista? Basta despir a superficialidade e da burocracia que parasitava o Estado rentista petro­
e a intoxicação dos meios de comunicação para ver que leiro, empreendeu, de mãos dadas com o FMI, o pro­
a FIS não foi outra coisa senão um enorme aparato elei- cesso de “liberalização”, e as reformas econômicas e
toral, contra-revolucionário, nascido para reconduzir ao políticas colocaram-se na ordem do dia. Começaram a
terreno eleitoral e institucional a revolta social argelina. liberalizar o sistema financeiro até então nacionaliza­
A FIS foi a tentativa de um setor da decomposta bur­ do, a abrir o subsolo argelino às multinacionais petro­
guesia argelina, com a colaboração de setores do enor­ líferas, introduziram um drástico corte nas subvenções
me aparato do Estado, de preservar seu espaço em meio públicas, desvalorizaram o dinar. Os ajustes de preços,
à crise econômica, social e política desencadeada nos o congelamento de salários, o fechamento de empresas
anos 1980. O golpe militar foi a aposta do imperialismo, públicas e as demissões começaram a se colocar na or­
com o europeu à frente e o FMI, para aplicar os pla­ dem do dia. O desemprego começou a alcançar taxas
nos neoliberais e encerrar a crise aberta com a explosão desconhecidas, até 17% e a dívida externa disparou até
social­ de 1988. US$ 20 bilhões. A própria direção da UGTA, a principal
força sindical argelina, e sindicato do regime, acusava os
A explosão social de 1988 impulsionadores das reformas do governo de “forças ne­
ocoloniais” “partidários da França sonhando ainda com
A Argélia afundava-se em meados dos anos 1980 na a assimilação”.
crise econômica. Num país onde as rendas do petróleo Neste quadro geral, uma onda de greves convocadas
representam até 98% da receita, a queda do preço do pela UGTA em empresas diversas e serviços públicos,
barril em 1986 trouxe conseqüências dramáticas, per­ foi acompanhada em 4 de outubro de 1988 por uma
dendo até 50% de sua renda. Assim como a década de enorme manifestação de jovens dos institutos e facul­
1970, ao abrigo da alta do petróleo, foi a do chamado dades em Argel. A eles se uniram milhares de jovens
“desenvolvimento econômico”, a dos 1980 tomou um dos bairros mais pobres. Os ministérios, os escritórios
giro diametralmente oposto. bancários, armazéns e lojas de luxo foram assaltados e
O partido único, a FLN, representante do Exérci­to destruídos. No dia 6 – pela primeira vez desde a In­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

dependência –, o governo declara estado de sítio, mas cena do movimento de massas no meio da crise econô­
apesar disto continua a greve de transporte. Um dia de­ mica e do regime. Um setor do próprio regime alentou
pois, à saída da oração, vários milhares de manifestan­ inicialmente a formação da FIS para tentar por esta via
tes enfrentam-se com a polícia, com cinqüenta mortos. “integrar” os setores que protagonizavam o descon­
Apesar dos tanques nas ruas, o processo estendeu-se a tentamento social: “O Exército [...] consideraria a FIS
outras cidades e uma semana depois os mortos já eram como uma boa via para integrar os excluídos do sistema,
quinhentos e centenas os feridos e detidos. dados os elevados riscos de instabilidade que vinham
do mal-estar social”.
A transição argelina Como em tantos lugares do mundo, frente às explo­
sões sociais a aposta comum não foi outra senão recon­
O regime argelino, em meio a uma profunda divisão duzir ao processo eleitoral todo o descontentamento
interna, sacudido pela crise econômica social e política social e a esta tarefa se apresentou resolutamente à dire­
que vivia o país, tenta reconduzir a situação via “tran­ ção da FIS.
sição”. Os diferentes clãs da FLN e do Exército – to­ Em 12 de junho de 1990, 28 anos depois da Inde­
dos vinculados à administração das indústrias estatais, pendência, celebravam-se as primeiras eleições pluri­
beneficiários diretos das rendas petrolíferas – empreen­ partidaristas. A principal força de oposição, a Frente de
deram a “transição”, com a colaboração direta dos que Forças Socialistas, e o MDA do dirigente histórico da in­
meses depois seriam os dirigentes da FIS. Entre outras dependência regresso, Ben Bella, chamaram ao boicote
medidas, legalizavam-se as associações políticas e refor­ das eleições “por falta de garantias democráticas”. A FIS
mava-se a Constituição. As eleições municipais primei­ jogou-se com tudo no processo eleitoral e obteve 55,46%
ro e legislativas depois formariam parte do processo de dos votos em meio ao afundamento estrepitoso da FLN.
“abertura”. Neste quadro de crise, de explosão social e Na Kabilia – zona bérbere – o chamado ao boicote da
de falta de direção, nasce a FIS em março de 1989 e é FFS foi obteve resposta positiva de 80% dos eleitores.
legalizada alguns meses depois. Em meio à crise descomunal do regime, da onda de
A crise de 1988 representou a entrada no centro da protestos sociais, em meio ao seu indiscutível triunfo

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

eleitoral, qual foi a política da FIS? “As eleições legis­ Iraque. Foi o Partidos dos Trabalhadores (PT) de Luisa
lativas”. Efetivamente, os dirigentes da FIS pediram Hanune que, em setembro de 1990, convocou em Argel
que se dissolvesse a Assembléia Nacional Popular, se a primeira manifestação contra a intervenção imperialis­
formasse uma Assembléia Constituinte e se convo­ ta no Iraque. A convocação foi um êxito e isto provocou
casse eleições gerais em três meses. A direção da FIS, uma mudança de posições em vários dos partidos arge­
pela boca de seu dirigente Abasi Madani, lançou uma linos. A FNL, MDA, RDC, o próprio PT e várias per­
campanha para “mudar sua imagem radical ante os ‘ex­ sonalidades constituíram o Comitê de Apoio ao Povo
cessos’ de seus partidários e da ‘manipulação’”. Como Iraquiano que poucos dias depois organizou uma nova
prova disto, comprometeram-se a cancelar a convocação manifestação que juntou mais de duzentas mil pessoas.
da greve da limpeza de Argel e a colocar seus próprios Entre os trabalhadores e a juventude, a simpatia com
militantes para limpar as ruas. o povo iraquiano era massiva. “A base popular da FIS
A FIS havia capitalizado a raiva social contra os mi­ estava totalmente desorientada e começava a fazer per­
litares e a FLN ante a ausência de uma referência de guntas sobre seu partido. Depois disto a FIS teve que
oposição fora da Kabilia. mudar completamente de posição.”
É esta pressão popular que explica que em 19 de
A Guerra do Golfo e a política da FIS: janeiro de 1991 a FIS, junto com outras forças, mobi­
participar nas eleições a todo custo lizou um milhão de pessoas nas ruas para pedir armas
e campos de treinamento para ir combater no Iraque.
A Guerra do Golfo introduziu na Argélia, como em Segundo Paul Balta, o próprio Madani viajou a Bagdá,
todo o Oriente Médio e no Magreb, uma mudança qua­ embora esta posição gerasse divisões no interior da FIS.
litativa. Uma das razões que explicava a confiança do Esta política custou à FIS a ruptura com seus padri­
regime como uma boa via para integrar os excluídos do nhos sauditas e a sentença de morte que lhe ditou o
sistema, eram as alianças internacionais da FIS. No co­ imperialismo.­
meço da guerra – e convém não perdê-lo de vista –, a As massivas mobilizações contra a intervenção impe­
FIS apoiou o Kuwait, isto é, a Arábia Saudita contra o rialista no Iraque ocorriam ao mesmo tempo em que o

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regime aumentava sua submissão ao FMI e a FIS entra­ e o primeiro turno das legislativas a FIS perdeu mais de
va em crise aberta. um milhão e meio de votos.
Em dezembro, convocaram-se as eleições legislati­ O resto da história já é conhecido. Em 26 de dezem­
vas, em meio a uma crise social galopante. O estado de bro de 1991, o triunfo da FIS estava praticamente segu­
sítio estava decretado desde junho, dezenas de milhares ra por maioria absoluta no segundo turno, dezesseis dias
de ativistas estavam presos após as greves de junho, in­ depois o Exército argelino consuma o golpe militar.
cluindo vários dos principais dirigentes da FIS no cárce­ No estrangeiro, muitas vezes se pensa que a FIS é
re, “A Argélia era já uma imensa prisão”. Neste quadro um partido fascista, o “perigo verde”. Você acha que
algumas forças políticas (entre elas o PT) chamam o a FIS é um partido fascista? Sempre que em qual-
boicote às eleições. quer lugar do mundo uma corrente política põe em
E os dirigentes da FIS, que fizeram nesta situa­ perigo os interesses das grandes potências, a tratam
ção? Participaram das eleições e chamaram sua base a de fascista, como aconteceu com os presidentes Nas-
fazê-lo. Esta é a conduta de uma organização fascista? ser ou Boumedien [...]. Não digo que a FIS seja um
O chamado setor moderado que Abdelkader Hachani partido democrático, nem que seu programa seja o
encabeçava, “após ferozes lutas intestinas conseguiu melhor. A FIS é um partido autoritário, antidemocrá-
impor-se”. A apresentação da FIS às legislativas neste tico, conservador, mas não é um partido fascista, se
quadro mostrava o que, em essência, era: um aparato as palavras têm algum sentido.
eleitoral vindo para canalizar o descontentamento social.
“Na realidade a nova direção teve muitas dificuldades
para convencer a base, que não entendia que o partido Uma anedota reveladora
fizesse concessões tão importantes ao poder enquanto
seus chefes continuavam presos, sem terem sido julga­ Luisa Hanune é a figura pública do PT na Argélia
dos e sem terem sequer o direito de se apresentar como – grupo vinculado ao lambertismo – que conta com vá­
candidatos”. As dificuldades para convencer as bases rios deputados e desenvolveu-se especialmente após a
são mostradas pelo fato que entre as eleições municipais aniquilação da FIS. A política oportunista que acompa­

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nha tudo relacionado ao lambertismo é reafirmada aqui revelador. Como se explica que, em pleno levante, em
tanto o fato que sejam signatários do chamado Acordo meio a uma barricada, com correntes, barras de ferro... os
Nacional de Roma que o imperialismo europeu alentou militantes e/ou simpatizantes de uma organização “fas­
como saída para a Argélia, quanto o outro fato que a gran­ cista” como a FIS, tomados de demência, reconhecem
de palavra de ordem com que concorreram às eleições uma dirigente, mulher, da esquerda, num país onde a
de 1999 foi “Paz, fraternidade e socialismo”. Por outro imensa maioria da esquerda, ainda mais, exigia do go­
lado, não é o propósito deste trabalho abrir outro flan­ verno a ilegalização da FIS e apoiava o golpe militar...
co de polêmica, agora com o lambertismo. Sem dúvida, e a saúdam (!), falam com ela (!), pedem-lhe opinião! E
Luisa Hanune é uma personalidade vinculada durante lhe abrem a barricada para que siga tranqüilamente seu
muitos anos à luta das mulheres e, indubitavelmente, é caminho! Mas que tipo de fascistas são estes?
muito reconhecida na Argélia. Narrando os fatos que ro­ A reveladora anedota não é senão um dado a mais
dearam o golpe, ela conta que, começados os primeiros da mentira que identificou islâmicos com fascistas para
disparos, “acreditei que nunca voltaria à minha casa”, justificar assim o golpe dos militares.
seguindo o chamado da FIS ante o golpe, as ruas enche­
ram-se de jovens com “correntes, barras de ferro... que Os direitos das mulheres e o golpe
levantavam barricadas”. No caminho, Luisa Hanune
topou de frente com uma destas barricadas de jovens Um dos argumentos mais reiterados para justificar
da FIS “tomados de demência, estavam como loucos”. o golpe militar foram as mulheres. A chegada da FIS
“Fiz-lhes um sinal de longe e então me reconheceram”. colocava “uma ameaça para os direitos das mulheres”,
Continua depois relatando como foi o breve encontro e diziam. Uma vez mais, alguma dose de verdade é utili­
as desesperadas dúvidas dos jovens para explicar o que zada para dar credibilidade social às grandes mentiras.
estava acontecendo. Após a conversação, abriram-lhe Em 1984, isto é, quatro anos antes que existisse sequer
passagem e ela continuou seu caminho. a FIS, o governo do “laico” FLN e dos militares apro­
Independente das caracterizações que se tenha de vou o Código da Família. Segundo este código, nenhu­
Luisa Hanune e da política oportunista do PT, o fato é ma mulher argelina pode se casar sem permissão de seu

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

tutor, que tem que ser obrigatoriamente um homem, o mo” foi um dos cínicos slogans para apoiar os militares
pai, o irmão, o filho (!), o tio ou um juiz se a mulher não golpistas autores do degradante Código da Família, au­
tem família. A resolução favorável de uma solicitação de tores da ordem presidencial que “rechaça toda iniciativa
divórcio feita por uma mulher é praticamente impossí­ que esteja contra a sharia”.
vel. As surras e espancamentos não são razão suficiente. Há apenas alguns dias, o pró-imperialista regime ar­
Mediante o chamado jol, a mulher pode comprar sua li­ gelino que restaurou a “democracia” voltou a ratificar os
berdade pagando o preço estipulado entre o juiz e o ma­ conteúdos básicos do reacionário Código da Família.
rido. Quando o homem solicita o divórcio, o juiz conce­
de-o automaticamente, o que lhe dá direito a ficar com O GIA e a guerra civil
o domicílio conjugal. Este fato, denunciam as associa­
ções de mulheres, provoca o drama de milhares de mu­ O golpe militar afundou a Argélia numa guerra civil
lheres argelinas que perambulam pelas ruas. O Código de fato. Algumas cifras falam de cento e cinqüenta mil
define os deveres das mulheres, que devem obediência mortos ao longo desses doze anos. A FIS desmoronou
ao marido, ao pai e ao sogro. Como se não bastasse, a como um castelo de cartas ante a repressão. A crise em
aprovação do código foi acompanhada de uma ordem que vivia praticamente desde sua fundação estourou de
presidencial que dizia: “Todas as proposições e iniciati­ forma aberta.
vas que estejam contra a sharia serão sistematicamente Sem dúvida, os atentados, os crimes em aldeias ar­
rechaçadas”. A lei de Murphy alerta que tudo o que está gelinas ou o seqüestro e assassinato de estrangeiros de
mal é suscetível de ficar pior, mas não faltavam razões forma indiscriminada foram jogados sobre os “islâmi­
à Luisa Hanune para afirmar: “Legalmente, o que mais cos” e o GIA foi apresentado como a continuidade da
pode fazer um Estado teocrático como eles dizem?” FIS, mostrando assim seu caráter “fascista”. A associa­
Depois de 1988, criaram-se mais de vinte associações ção do GIA e da FIS foi, indubitavelmente, uma das
de mulheres e milhares delas saíram às ruas protestar manipulações dos meios de comunicação mais vergo­
contra o Código da Família. nhosas. O GIA surge efetivamente de uma ruptura da
A “defesa das mulheres argelinas frente ao integris­ FIS, para ser mais exato, da diáspora que foi o golpe

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

militar para a FIS. A Junta militar e todo o coro midiá­ dirigen­tes da guerrilha islâmica e militares apropriarem-
tico europeu guardaram sob sete chaves fatos clamoro­ se de novos recursos e manter desta maneira o nível de
sos que desmentiam a vinculação FIS-GIA. De fato o violência [...] assim parte desta imensa população em
GIA “declarou guerra à FIS” e converteu-na em alvo crise social, política e econômica encontra no maquis ou
de seus ataques. O GIA jactava-se em janeiro de 1994 no quartel além de um emprego uma via de progresso
de ter “executado setenta traidores” da FIS. Em julho social”.­
de 1995, o GIA assassinava, em Paris, o imã e fundador
da FIS, Abdelbaki Saharaui, exilado na França desde o Palestina: nem sionismo nem Hamas?
golpe militar. As infiltrações dos militares no GIA es­
tavam na ordem do dia e foram vários os trabalhos de Ao compasso do processo das duas Intifadas e da ca­
investigação nestes anos que denunciavam a implicação pitulação da ANP, as organizações islâmicas, em parti­
militar em atos reputados ao GIA. O ajuste de contas cular o Hamas, adquiriram um crescente peso entre as
entre a própria direção do GIA era iminente. Na reali­ massas palestinas. “A renuncia ao combate contra Israel
dade, tudo indica que o GIA acabou sendo uma espécie e a formação de uma entidade autônoma situam os pa­
de “franquia” ou etiqueta sob a qual atuavam grupos lestinos frente a si mesmos”.
isolados e infiltrados até a medula. Frente ao levante palestino, em meio a uma crescen­
Há outro fator material que operou ao largo da guer­ te miséria, a direção palestina firma os acordos de Oslo e
ra civil e do sanguinário processo argelino. A economia a criação da ANP em 1994. Os acordos são acompanha­
argelina foi gerando um mercado paralelo, conhecido dos pelo desembarque nos territórios ocupados da corte
popularmente como trabendo, espécie de contrabando burguesa de Arafat, os chamados “tunisianos”. “Quan­
que o processo de recolonização estimulou como for­ do estavam no estrangeiro, acreditávamos que eram
ma de acumulação para um setor da burguesia argelina gente de bem. Na verdade, só vieram fazer negócios,
deslocada do Estado rentista. O trabendo gerava entre para juntar dinheiro. Não são como nós, são individua­
30% e 60% dos ingressos familiares na Argélia, “Uma listas. Sabem que isto durará pouco, assim se dedicam a
economia de “pilhagem” permite aos notáveis locais, fazer negócios e a investir no estrangeiro”, diz Sami, um

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

dos jovens dirigentes da primeira Intifada. Investidos Mais ainda, a ANP apostou “em empregar maciça­
com o cartão VIP que o governo sionista outorga, a cor­ mente os jovens da primeira Intifada nas forças de ordem
te recém-chegada instala-se em Gaza: “Acondiciona-se para assegurar o poder [...] o acesso à profissão de polícia
numa zona da praia, põe-se a alugar casas para os ve­ ou de militar é uma alternativa ao desemprego”. Como
ranistas. Abre um restaurante chique, Le Moulin, que era de esperar, sua missão estava dedicada à repressão
serve pratos caros, organiza sessões de bingo e festas de todos aqueles que se negaram a acatar as ordens da
com bailes. Trata-se de lugares seletos onde este círculo nova Autoridade e os islâmicos passaram a ser objeto da
social restrito refugia-se e a que também têm acesso de­ repressão mais brutal. Os Acordos de Oslo (1993) pre­
terminados cidadãos de Gaza próximos à Autoridade”. viam uma polícia palestina de nove mil homens. Em
As grandes famílias burguesas de Nablus (a base de 2003, eram mais de cinqüenta mil. A repressão, que in­
apoio da ANP, junto à burguesia do exterior) pressio­ clui assassinatos e mortes sob tortura nas mãos da polí­
nam pelo fim da Intifada enquanto tiram seus filhos cia da ANP, caiu não só sobre os islâmicos, mas até para
para mandá-los estudar nos Estados Unidos ou Euro­ militantes da Al Fatah ou da FPLP. Em muitos acam­
pa. Toda uma geração de jovens, os da segunda Intifada pamentos de refugiados e barricadas, a solidariedade da
e parte dos da primeira, encontram-se “desorientados população com os perseguidos tem crescido de forma
pelo fracasso do nacionalismo palestino e pelos erros de constante e as mesquitas converteram-se em lugar de
seus governantes”. encontro e homenagem aos tombados, mesmo quando
Marcando presença nos acampamentos de refugiados são militantes da FPLP ou da Al Fatah.
mais pobres, fora do núcleo dos privilegiados “tunisia­ A morte de Arafat e a chegada do pró-imperialista
nos”, reclamando para si a bandeira da luta pela destrui­ Abu Mazen, não faz mais do que aumentar esta política
ção do Estado de Israel e para “reconquistar toda a Pa­ miserável da ANP. Os islâmicos aparecem assim como
lestina”, o Hamas tem aumentado sua influência entre os mais resolutos, enfrentando à sua maneira o Estado
as massas palestinas. Frente à divisão e desorientação sionista, o enclave do imperialismo no Oriente Médio.
de milhares de ativistas, o Hamas tem feito sua a bata­ Para quem o islamismo representa “os restos feu­
lha para “recuperar a unidade da primeira Intifada”. dais”, está no caminho da “reação asiática”, é na essên­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

cia um fenômeno comparável ao fascismo, com as cor­ Não vou me deter neste debate que está suficien­
rentes islâmicas a linha é “nenhum acordo”, “o fascismo temente documentado na troca de cartas entre o Se­
não se discute, o fascismo destrói-se”... que outra linha cretariado Internacional da LIT-QI e Farooq Tariq que
pode-se aplicar na Palestina a não ser “Nem sionistas aparecem no número citado da Marxismo Vivo.
nem Hamas”? Como a esquerda pró-imperialista eu­ Sem dúvida, quero referir-me à caracterização de
ropéia não tem vergonha alguma efetivamente faz sua “fascistas” que se faz destes grupos. Para muitas orga­
esta política e cuida escrupulosamente em pôr um sinal nizações da esquerda, o termo fascista é utilizado como
de igual – quando não pior – entre o Hamas e Sharon. arma precipitada sem o menor rigor pela definição e
o que ela diz. Que, por exemplo, o conservador Parti­
Afeganistão do Popular espanhol seja chamado de fascista por um
jovem ativista não tem maior relevância, e reflete em
O debate entre a LIT-QI e o dirigente do Labour Par- geral uma justíssima indignação. Porém, na boca de di­
ty of Pakistan, Farooq Tariq, ficou amplamente refletido rigentes de formação marxista e longa trajetória, esta
na revista Marxismo Vivo. Tivemos desacordo comple­ superficialidade acaba resultando fatal e só ajuda a fo­
to com o LPP; não podíamos ter acordo algum com um mentar confusão.
partido que fez da “Paz” uma bandeira quando milhares Tomemos uma definição do fascismo por sua fun­
de jovens dispõem-se a pegar em armas para combater ção política tal como num momento de seu trabalho faz
a intervenção militar imperialista. Basta observar as rei­ Angel: “partido com um braço armado que começa a
teradas referências aos “fanáticos religiosos” que Farooq exercer o terror ainda antes de tomar o poder contra to­
Tariq faz em suas cartas para ver o escasso grau de rigor dos os que vê como inimigos: a esquerda, o movimento
marxista que há nestas análises. Não há acordo algum, operário, as classes médias ocidentalizadas, as mulhe­
pois ainda se fosse certa a caracterização que igualava res ‘libertadas’”. Dito de outro modo, caracterizamos as
os grupos islâmicos ao fascismo, seguiríamos tachando organizações fascistas, em sua essência, como destaca­
de capituladora e oportunista a orientação da direção do mentos armados dirigidos para a destruição física das or­
LPP frente à agressão imperialista no Afeganistão. ganizações operárias. Nesta definição, com quase total

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

segurança, não há polêmica com Angel. Vejamos então nenhum (felizmente)! De modo que as poderosas or­
os fatos. ganizações “fascistas” que estão ostensivamente arma­
Ao menos dois dirigentes da LIT-QI viajaram ao das não atacam e matam os militantes das organizações
Paquistão e participaram de manifestações, reuniões e operárias? De novo, cabe perguntar: que tipo de fascis­
atividades do LPP e outras organizações. Todos – in­ tas são estes?­
clusive a direção do LPP – dão fé que as organizações Nada mais longe de minha vontade que fazer cari­
islâmicas agruparam, nos protestos contra a intervenção catura de nada. Em não poucas ocasiões organizações
militar estadunidense e aliada, dezenas de milhares de que sob nenhum modo podem ser caracterizadas de
pessoas, especialmente jovens. Estes mesmos compa­ fascistas acabaram atacando militantes revolucionários
nheiros (e a mídia internacional) dão atestam que as ou ativistas operários, assassinando-os. O LPP não esta­
manifestações iam resguardadas por um numerosíssimo rá isento deste tipo de agressão, nem muitas de nossas
grupo de militantes islâmicos armados com kalashnikovs­ organizações. Porém, a atividade essencial destas orga­
e armas médias, exibindo-as dos caminhões, carros e nizações islâmicas é atacar as organizações operárias,
motos que acompanhavam como escolta armada das assassinar seus militantes, estourar seus atos? E se não
manifestações.­ é isto, reiteramos a pergunta: que tipo de organizações
Os companheiros (e os informes do próprio Farooq) fascistas são?
também confirmam que o LPP era um forte partido de Com segurança, a LIT-QI (em especial os argen­
vanguarda que – em coerência com o que foi defendido tinos) podem dar fé com muitos mais dados e trágicas
por Farooq Tariq – desenvolveu suas próprias manifes­ experiências do que é a ação de uma organização fascis­
tações e atos contra a guerra, diferenciando-se e enfren­ ta, a nós ocorreu vivenciar nos anos da transição (1976-
tando os islâmicos. 1980) o que era a atividade essencial dos bandos fas­
Então, retomando as definições e sua utilidade prá­ cistas. Muitos ativistas operários, jovens em particular,
tica caberia perguntar, quantos mortos teve o LPP pe­ perderam a vida nas mãos destes sinistros grupos, entre
los ataques destas poderosas organizações “fascistas” eles nossa companheira Yolanda.
armadas? Quantos feridos? Que saibamos, até agora,

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

A resistência iraquiana segmento das forças comprometido em ações violentas


no Iraque é constituído pelos fanáticos enormemente
A posição frente à resistência iraquiana é hoje, sem reacionários, principalmente fundamentalistas islâmi­
dúvida, a chave de qualquer política revolucionária fren­ cos, que não distinguem entre civis – inclusive os pró­
te à guerra no Iraque. Isto obriga a todo um debate a prios iraquianos – e pessoal armado, e recorrem a ações
esse respeito e excederia, portanto, o propósito deste horrendas”.
trabalho. Mas, sem dúvida, é inevitável abordar a nature­ Desta análise que diferencia entre ações legítimas e
za e composição da resistência iraquiana porque tem nos ações “horrendas”, Achcar chega à seguinte conclusão
islâmicos uma parte essencial da mesma. política:
Há dois ângulos em que de forma explícita ou im­ ...isto significa que qualquer apoio incondicional à
plícita se vem questionando a resistência por setores “resistência” iraquiana em sua totalidade nos países
da esquerda. O primeiro é sobre o caráter das ações da ocidentais, onde o movimento contra a guerra o ne-
resistência, as ações “legítimas” e as “ilegítimas” que cessita extremamente, é gravemente contraprodu-
protagonizam os “fanáticos islâmicos”. O segundo ques­ cente e, ao mesmo tempo, profundamente equivo-
tionamento é o dos que contrapõem a ação de massas (as cado (embora baseado em boas intenções). Deveria
manifestações e a organização de sindicatos) às ações da existir uma clara distinção entre as ações contra a
resistência. ocupação que são legítimas, e as dos denominados
Um dos personagens que com maior veemência tem grupos de “resistência” que devem ser rechaçados.
sintetizado os dois ângulos de questionamento da resis­
tência é o conhecido especialista nos temas do Oriente Isto é, o apoio à resistência não pode ser “incondicio­
Médio no SU, Gilbert Achcar. Referindo-se ao hetero­ nal”. Há que acrescentar que este personagem acabou
gêneo conglomerado de forças que compõem a resistên­ defendendo o apoio crítico às fraudulentas eleições or­
cia, Achcar assinala: “A denominada resistência iraquia­ questradas pelos ocupantes.
na está formada por um conglomerado heterogêneo­ de Para nós, não há terrorismo mais fanático que o le­
forças, muitas delas exclusivamente locais [...] Mas outro vado a cabo pela aliança anglo-estadunidense. Como

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

gritamos nas manifestações: “Não é terrorismo, é resis­ O Iraque é um país ocupado e a resistência ao ocu-
tência”, “terrorismo é o imperialismo”. pante é um direito e um dever de todo o povo iraquiano,
As organizações iraquianas que fazem parte da resis­ qualquer que seja a forma que adote esta resistência. O
tência apresentaram provas mais que confiáveis da bar­ apoio incondicional às ações de resistência ao invasor
bárie cotidiana imposta pelos ocupantes. Os milhares é o ponto de partida de qualquer posição que se preze
de mortos; as torturas, das quais a prisão de Abu Ghraib revolucionária.
é todo um símbolo; os mais de dez mil presos políti­
cos no Iraque; a Guernica em que converteram Faluja; A resistência e Al Zarqaui
todos esses eventos testemunham a barbárie imperia­
lista. Treze anos de bombardeios e sanções impostas O argumento mais utilizado e recorrente de todos os
deixaram mais de treze milhões de iraquianos (mais da que rechaçam a resistência, põem um sinal de igual en­
metade da população) dependendo do sistema de ra­ tre esta e o imperialismo ou questionam o apoio incon­
cionamento para poder comer. Um quarto das crianças dicional às ações militares desta, são os atentados da Al
menores de cinco anos sofrem de desnutrição crônica e Qaeda, o chamado grupo de Al Zarqaui. As ações deste
44% dos iraquianos não podem satisfazer as mínimas grupo são uma das grandes demonstrações dos que sus­
necessidades alimentares. Os campos, sem poderem ser tentam que o islamismo é uma variante do fascismo. A
cultivados porque estão cheios de bombas; o hospital de pressão midiática e a superficialidade dão-se as mãos
Bagdá, após dez meses de ocupação, tinha esgoto cor­ para acabar questionando as ações da resistência toda
rendo pelo solo, a água para beber contaminada e 80% vez que o grupo de Al Zarqaui atua.
dos pacientes contraíram infecções enquanto permane­ Como podem apoiar as ações da resistência se me­
ciam hospitalizados. Toda a rede de segurança social tem carros-bombas nas mesquitas e mercados?, pergun­
desmantelada, centenas de milhares de trabalhadores tam-nos em ocasiões. E quem diz que estas ações são
do setor público (que monopolizava a economia iraquia­ da resistência?
na) despedidos, uma taxa de desemprego de 70% da Lembre-se de que a suposta presença de Al Zarqaui
população trabalhadora. em Faluja foi o pretexto dos Estados Unidos para en­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

trar a sangue e fogo nesta cidade do sul iraquiano. Em Basta recordar como os propagandistas do Pentágono
14 de outubro de 2004, enquanto Faluja estava sendo foram explicando suas crescentes dificuldades em um
assediada brutalmente pelas forças de ocupação, o pre­ país que supostamente iria recebê-los de braços aber­
sidente do Centro de Estudos dos Direitos Humanos tos. Primeiro, segundo eles, a resistência continuaria
e da Democracia, Kasim Abdelsattar, dirigia uma car­ enquanto não fossem localizados seus “dirigentes”, os
ta ao secretário geral da ONU, o sinistro Kofi Annan filhos de Saddam Hussein. Quando estes foram loca­
“em nome do povo de Faluja e do Conselho da Shura lizados e assassinados, explicaram que a resistência au­
de Faluja, Associação de Sindicatos, Sindicato de Pro­ mentou suas ações porque Saddam Hussein continuava
fessores, Conselho de Dirigentes Tribais e Casa da livre. Quando este finalmente foi detido as crescentes
Fetua e da Educação Religiosa”. Nesta carta, dizia-se: ações da “insurgência” foram creditadas à presença do
“Al Zarqaui: um pretexto criado pelos Estados Unidos. “máximo dirigente do regime ainda não capturado”,
Passou-se quase um ano desde que criaram este novo Izzat Ibrahim al Duri. Agora o enfermo e decrépito ge­
pretexto e toda vez que destroem casas, mesquitas e neral de Saddam parece ter sido esquecido e Al Zarqaui
matam crianças, mulheres, dizem: ‘lançamos uma ope­ tomou a frente.
ração vitoriosa contra Al Zarqaui’ Nunca dirão que o Independentemente de existir este personagem, o
mataram porque tal pessoa não existe [...] O povo de que cada vez parece mais certo é que a Al Qaeda não é
Faluja pediu muitas vezes que qualquer pessoa que veja mais que uma “marca”, uma “franquia” que vale tanto
Al Zarqaui o mate”. para qualquer grupo nacional ou local como para os ser­
Alguns grupos da resistência, igual a Faluja, conde­ viços de inteligência estadunidenses ou sionistas.
naram solenemente Al Zarqaui à morte, acusando-o de Basta observar as ações militares de uns e outros
ser “um agente da ocupação”. para perceber que as ações de Al Zarqaui ou grupos
Na realidade, a obstinação em misturar a resistência similares têm como destinatários a população xiita.
a este personagem real ou fictício é a enésima tentativa Como diz a resistência, este grupo é parte dos ocu­
do imperialismo em trivializar a resistência, em negar o pantes porque esta política de divisão “étnica” e en-
óbvio, as raízes populares que esta tem. frentamento religioso, é a política que o imperialismo

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

quer aplicar, uma política que nos Bálcãs deu tão bom centralização da resistência é um fato bastante conhe­
resultado. cido. A maior parte dos grupos tem origem baathista.
Só pela concessão à pressão da opinião pública e a Na verdade, alguns se denominam “neobaathistas”
superficialidade para olhar as coisas se pode explicar para reafirmar seu “nasserismo”, seu “nacionalismo”, e
que de forma tão grosseira em setores da esquerda se se diferenciar claramente do Baath dirigido por Saddam
confunda o grupo de Al Zarqaui com a resistência e Hussein. Um exemplo disto é o denominado Movi­
este argumento os leve vergonhosamente a questionar mento de Oficiais Livres (MOL), formado por militares
o apoio às ações desta. nacionalistas que retomam o nome de uma formação
clandestina de oficiais na etapa de luta contra a monar­
O caráter nacionalista da resistência quia anterior à revolução republicana de 1958 (o mesmo
nome do grupo de Nasser no Egito).
Recentemente no Correio Internacional citavam-se Outro exemplo notável é a Aliança Patriótica Ira­
dados sobre a resistência iraquiana. Além da dificuldade quiana. Seu presidente agora desaparecido, Abdelyaber
de dar cifras sobre os componentes da resistência, o certo al Kubaisi, vem do Baath, dos setores que tiveram que
é que falamos de dezenas de milhares de combatentes. se exilar e voltaram ao Iraque para enfrentar a ocupa­
E mais ainda, em um país onde há cento e quarenta e ção. Numa entrevista realizada em julho do ano passa­
oito mil efetivos militares da coalizão, vinte mil merce­ do, Al Kubiasi, referindo-se aos contatos entre diferen­
nários de mais de sessenta empresas privadas, a polícia­ tes grupos para avançar na construção de uma Frente
cipaia, seus confidentes e os serviços de inteligência dos Unificada da resistência, fala de 22 grupos diferentes.
Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Irã, o Mosad etc. Oito destes grupos, os mais numerosos, salvo no Sul,
é impossível desenvolver a menor ação insurgente sem são baathistas, o resto são grupos islâmicos, nasseris­
contar com um amplíssimo respaldo popular. tas, um setor do PC... e o mais numeroso, do Sul, é o
Fazem parte desta resistência organizações sindicais, exército de El Mehdí, a milícia dirigida por Moqtada
políticas, de direitos humanos, religiosas, de mulheres... al Sadr.
e, obviamente, grupos armados. A falta de unidade e Nesta mesma entrevista, Abdelyaber al Kubaisi fala

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

de que a resistência iraquiana conta com mais de cem se agrupam os exilados e dissidentes baathistas e nas­
mil efetivos e acrescenta: seristas opostos ao regime anterior mas não vinculados
Tenho que dizer que, apesar da maior parte do povo aos Estados Unidos e Reino Unido em sua política de
iraquiano ter retornado à religião, não são islâmicos. assédio e posterior invasão; e o MOL, formado por ex-
A luta árabe pela unidade e a libertação da Palesti- militares de orientação nacionalista do dissolvido Exér­
na e pela verdadeira independência se manterá, e cito iraquiano”.
segundo minha opinião, os nacionalistas [baathistas Todos estes movimentos, os diferentes acordos ou
e nasseristas] seguirão sua batalha contra o imperia- tentativas de agrupar a resistência estão marcados em
lismo mas têm que demonstrar que são democrá- sua essência pelo caráter nacionalista burguês de seu
ticos. Creio que a cultura da resistência ajudará na programa.
emergência de um novo movimento nacional que
continue o combate anticolonial pela construção da O islamismo iraquiano, fascistas
unidade árabe. ou nacionalistas?

Mais recentemente, no terreno da centralização da O Iraque – novo centro mundial da luta de classes
dispersa resistência, o mais avançado que se conhece é – deve servir de referência obrigatória para a polêmica
o processo que um grupo de organizações está realizan­ em curso. Seriam os islâmicos iraquianos comparáveis
do com o fim de conformar uma “Frente de Libertação ao fascismo?
Nacional (FLN) ou Nacional e Islâmica”. Estas organi­ O islamismo iraquiano cumpre, em linhas gerais, as
zações são “o Partido Baath Árabe Socialista (PBAS), mesmas pautas que vínhamos assinalando e, em pri­
ilegalizado pelos estadunidenses imediatamente depois meiro lugar, o que foi afirmado no início deste traba­
de iniciada a ocupação; a União do Povo (UP), que in­ lho: quando se fala de “islâmicos” é impossível falar de
tegra os dissidentes do Partido Comunista Iraquiano outra coisa senão de organizações dispersas e absoluta-
(PCI), entre eles o histórico dirigente comunista Yusuf mente diferentes e até adversárias mortais, como agora
Hamdan; a Aliança Patriótica Iraquiana (API), em que veremos.­

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

Já me referi antes à posição tanto de grupos islâ­ Estes setores aos quais se unem outros círculos reli-
micos como de outros setores da resistência sobre Al giosos xiitas de menor consideração, socialmente repre-
Zarqaui,­ nem mais nem menos que a condenação “so­ sentam setores burgueses vinculados à burguesia do ba-
lene” à morte. zar, bem como vínculos com o Irã ou como mediadores
Duas organizações “islâmicas” são os principais comerciais e políticos entre as grandes companhias pro-
suportes políticos da ocupação, o Partido Islâmico de tegidas pela ocupação e as fontes de riqueza iraquianas.
Predicação (Hizb Al Daua al Islami) e o Conselho Su­ Há que se dizer que esta localização econômica e polí­
perior da Revolução Islâmica (CSRI). O atual primei­ tica é compartilhada com setores burgueses xiitas laicos
ro-ministro do governo títere surgido das fraudulentas vinculados ao imperialismo cujos máximos expoentes,
eleições do último 31 de janeiro, Ibrahim Al Yafari, per­ e mais conhecidos, são os corruptos Admed Chalabi e
tence à primeira. Ambas formações são pontos-chave Iyad Alaui.
da domina­ção, mas sua colaboração direta com o impe­ Porém, frente a este setor colaboracionista se levan­
rialismo remonta a muito tempo atrás. Estes dois parti­ tam multidões de grupos islâmicos que fazem parte da
dos apoiaram os Estados Unidos na primeira Guerra do resistência. Algumas destas organizações fazem parte,
Golfo. Em 1991, com a ajuda dos Estados Unidos, suas junto a organizações baathistas e nacionalistas laicas, do
milícias (Batalhão Badr, Failaq Badr) expandiram-se no chamado Conselho Nacional Unificado da Resistência
sul do Iraque e estima-se que causaram mais de dez mil Iraquiana (CNRI) constituído em maio de 2004 e que
mortes entre a população iraquiana do sul. Antes disto diz agrupar mais de trinta organizações.
ambas formações tomaram partido do Irã na Guerra Irã- Indubitavelmente, contudo, o grupo mais numeroso
Iraque. e conhecido é o encabeçado por Muqtada al Sadr. Sua
Depois de idas e vindas – de uma suposta atitude milícia, El Mehdi, opôs-se tenazmente durante sema­
“intermediária” –, o máximo líder religioso, Al Sistani – nas à entrada das tropas estadunidenses em Nayaf. Em
mais alta autoridade xiita – destacou-se de forma notável que pesem as pressões de Al Sistani e toda a cúpula
pelo apoio ao plano da ocupação e acabou encabeçando o xiita, o grupo de Moqtada al Sadr não apoiou as eleições
grupo mais votado na farsa eleitoral de janeiro passado. de 31 de janeiro. Moqtada al Sadr representa os círculos

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econômicos do sul que sempre mantiveram suas raízes O Iraque mostra que boa parte das correntes islâmi­
nacionalistas árabes, diferente do xiismo pró-Irã. cas não é outra coisa que expressões distorcidas, prolon-
Enfrentando, no terreno militar, os ocupantes e os gamentos, do nacionalismo.
“islâmicos” pró-iranianos que apóiam a ocupação, a mi­
lícia de Moqtada al Sadr converteu-se em “uma mistura A luta armada e a resistência de massas
de diferentes grupos (ex-baathistas, nasseristas, ativis­
tas democratas e seguidores religiosos etc). Todos os Com o risco de exceder as pretensões deste traba­
iraquianos contrários à ocupação no sul do Iraque situa­ lho, quero me referir brevemente às posições que, de
ram-se sob a bandeira de Al Sadr...” forma velada ou direta, contrapõem o apoio militar à
Se a posição dos revolucionários frente às correntes resistência­ com as “ações de massas” e assinalam que as
islâmicas, é igualá-los (compará-los) com o fascismo e, ações militares da resistência não são “nosso método”.
portanto, nenhuma unidade de ação com ele, “nem Isto dá lugar a debates em muitas organizações da es­
discute com ele, o destrói” etc., o que fazer no Iraque? querda que se situam contra a intervenção.
Dá no mesmo se os islâmicos são parte do governo de O mesmo documento de Angel, sem ser categórico a
ocupação ou da resistência? Como explicar que os “fas­ respeito, aponta nesta perspectiva: “É evidente que de­
cistas” façam parte de frentes políticas e/ou militares vemos girar o peso de nossa propaganda sobre o Iraque,
com baathistas, nasseristas, laicos, marxistas... esta é a centrando-nos mais no profundo movimento reivindi­
atitude das organizações fascistas? No assédio à Nayaf, cativo e de construção de sindicatos que se está pro­
teria que se dizer nem ianques nem Mehdi? duzindo na classe operária e menos nas espetaculares
De novo, como disse ao referir-me à Palestina, a teo­ ações armadas que ex-policiais, ex-militares e jihadistas
ria do islamismo comparável ao fascismo quando se apli­ estrangeiros estão realizando”. Coerente com isto a re­
ca aos centros da luta de classe ou é impossível aplicar ferência a seguir são os PCs.
esta política com um mínimo de seriedade revolucio­ As autoridades da ocupação adotaram como primei­
nária, ou ao aplicá-la acabamos nos somando ao coro da ras medidas “libertadoras” manter em vigência a lei do
esquerda pró-imperialista. regime anterior que proíbe as greves e restauraram a

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

pena de morte. Em setembro de 2003, o administrador A CIOSL, que brinda seu apoio a esta Federação
colonial Paul Bremer, de acordo com o FMI e o Banco sindical, pôs em marcha, em abril de 2004, “um pro­
Mundial, promulgou os decretos que puseram o Iraque grama para respaldar o desenvolvimento dos sindicatos
à venda. Decretou-se a privatização de cem por cento no Iraque”. Atuando como a pauta sindical da ocupação,
de todas as indústrias, bancos, infra-estruturas, granjas, a CIOSL “tem como intenção ajudar que se forme um
telecomunicações, transportes etc; até escolas, hospitais sólido marco de instituições, legislação e políticas que
e prisões foram postos à venda. Centenas de milhares garanta uma reconstrução justa [...] Se espera que na
de despojados foi o resultado imediato. A desocupação economia iraquiana se façam mudanças consideráveis,
afeta 70% da população. Os iraquianos que ainda têm incluindo a possibilidade de importantes investimentos
um posto de trabalho recebem “pagamentos de emer­ estrangeiros e privatizações de indústrias que eram pro­
gência” do governo e que representam cerca da metade priedade do Estado”.
do salário que cobravam antes da ocupação. Neste qua­ Dentro dos sindicatos de oposição, cabe destacar,
dro, a maioria das empresas “não estava em condições até onde conhecemos, duas formações, a Federação
de funcionar”, e a luta operária acabou inevitavelmente de Conselhos e Sindicatos de Trabalhadores do Iraque
entremeada com as demandas e lutas populares. Assim (FWCUI), formada em dezembro de 2003 por outro
as manifestações, greves e a constituição ilegal de sindi­ PC, o chamado Partido Comunista dos Trabalhadores
catos formaram parte da resistência. (PCT).
Há que se dizer que os únicos sindicatos legais hoje Um terceiro sindicato, o mais dinâmico por um tem­
no Iraque são os auspiciados pelas forças ocupantes e po, pelo que se conhece, é o Sindicato de Desocupados
dirigidos pelo contra-revolucionário PCI que forma par­ do Iraque (UUI), criado em maio e aderido à FWCUI.
te da ocupação. A Federação Iraquiana de Sindicatos de O PCT manteve distância da luta armada da resis­
Trabalhadores (IFTU) foi criada em maio de 2003 por tência. O problema é que as forças de ocupação não he­
ativistas do Movimento Sindical Democrático de Tra­ sitaram um instante em perseguir os ativistas, disparar
balhadores, uma organização clandestina sob a ditadura contra as manifestações e assassinar os trabalhadores.
de Saddam e dirigida pelo PCI. Para citar um exemplo, em janeiro do ano passado as

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

tropas britânicas abriram fogo contra uma manifestação Daí a conclusão de que
de desempregados assassinando seis deles e ferindo gra­ As revoluções mais dinâmicas, importantes e ricas
vemente outros oito. Estes fatos repetiram-se em várias do pós-II Guerra – como a chinesa, vietnamita e
ocasiões. Pior ainda, um importante setor dos sindica­ cubana – desenvolveram-se por meio da guerra de
listas acabou sucumbindo à pressão e integrando-se no guerrilhas. Todo o processo de guerra de guerrilhas
sindicalismo oficial. no mundo colonial e semicolonial, quando não levou
Tudo indica que a abstrata contraposição da luta de à expropriação da burguesia, ao menos obteve a in-
massas à luta armada, longe de fortalecer um pólo ope­ dependência nacional de muitas colônias (Argélia,
rário, não fez mais do que facilitar a liquidação de boa Angola, Moçambique etc). Nossas perspectivas não
parte dos ativistas sindicais e assegurar o controle da contemplavam a guerra de guerrilhas do imediato
resistência às direções burguesas e pequeno-burguesas, pós-II Guerra na magnitude e importância que esta
laicas ou religiosas. adquiriu.

Guerra de libertação nacional, guerrilha Quando o imperialismo ataca brutalmente o movi­


e independência de classe mento de massas com métodos de guerra civil, as forças
regulares e as irregulares desencadeiam impiedosamen­
Anos atrás, nossa corrente, à luz das revoluções chi­ te seus ataques; quando esta brutalidade impõe graves
nesa, vietnamita e cubana, essencialmente, chegou à derrotas ao movimento de massas; quando este movi­
conclusão de que nós, aferrados ao esquema do pós-I mento de massas parte de um baixo nível de consciência
Guerra e dado que tanto na Revolução russa, como na e da completa ausência de uma direção revolucionária,
alemã, a espanhola etc. a luta armada só tomou a forma mas responde à agressão... a guerrilha popular – ou ope-
de insurreição urbana, “chegamos à falsa conclusão de rária e popular – surge e adquire um valor enormemen­te
que a História repetir-se-ia no pós-II Guerra: não ha­ progressivo.
veria guerrilhas mas apenas insurreições urbanas tipo A guerra no Iraque adquiriu uma nova natureza, co-
fevereiro e outubro”. meçou uma segunda guerra, a do povo iraquiano contra

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

os invasores e pela libertação do país. O rápido surgi­ de em menosprezar as tarefas de libertação nacional ou
mento da resistência e o apoio popular com que conta, subvalorizar a guerrilha como instrumento de luta, mas
mostra que a revolução iraquiana não segue o curso das sim em que para nós as tarefas de libertação nacional são
insurreições urbanas ao estilo das recorrentes na Bolívia indissolúveis das tarefas de libertação social.
ou Equador, mas que retoma a experiência da luta anti­ Basta ver o programa de qualquer um dos agrupa­
colonial do pós-II Guerra. mentos da resistência, tanto o elaborado pelo Con­
Contrapor as ações de massas à resistência conver­ selho Nacional Unificado da Resistência Iraquiana
te-se, assim, numa completa abstração, numa abstração (CNURI) quanto o da Aliança Patriótica Iraquiana,
fatal, que nega a experiência revolucionária das últimas ou o rascunho da FNL, para ver que não passam de
décadas. Contrapor o “profundo movimento reivindi- programas frente-populistas democráticos burgueses,
cativo da classe operária” à resistência mostra também onde a propriedade das fábricas, bancos, jazidas pe­
uma concepção diametralmente oposta à concepção do trolíferas, infra-estruturas­ etc. nem são mencionadas.
programa de transição nos países coloniais e semicolo­ Mas a dinâmica objetiva da guerra de libertação, o es­
niais. A tarefa de libertação nacional não é a tarefa nú­ pólio da riqueza nacional, a venda do Iraque median­
mero um da classe operária? te as privatizações, a miséria crescente das massas, o
Levantar frente à atual guerra de libertação nacional desmantelamento da saúde ou da educação colocam
no Iraque uma posição operária revolucionaria, isto é, as palavras de ordem transicionais anticapitalistas e
de independência de classe, significa ordenar em nosso antiimperialistas na ordem do dia e as vinculam às ta-
programa, tal como o assinala o Programa de transição: refas de libertação nacional. Por exemplo, vincular à
a “independência nacional” é a “tarefa central dos paí­ expulsão dos ocupantes e seus lacaios a exigência de
ses coloniais e semicoloniais”. Perder de vista este pro­ renacionalização de todas as indústrias, jazidas, ban­
blema central é acabar na mais completa capitulação ao cos, hospitais e o controle operário dos mesmos ou o
imperialismo em nome da “luta operária”. não pagamento da dívida aos ladrões imperialistas, é
Nossa primeira grande diferença, portanto, com as uma tarefa bastante mais simples de explicar que de
direções guerrilheiras – islâmicas ou laicas – não resi­ omitir. Não há expulsão do imperialismo nem “Iraque

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Josef Weil (org.) O Oriente Médio na perspectiva marxista

para os iraquianos” que não inclua a recuperação da tica ousadia de nossa parte tentar hoje apontar fórmulas
riqueza nacional espoliada. concretas de organização operária no Iraque. Todavia, a
Na medida em que a direção da resistência, ou me­ proposta de impulsionar hoje sindicatos no Iraque como
lhor, as direções das resistências, não passam de dire­ linha de desenvolvimento da independência de classe
ções burocráticas, frente-populistas, burguesas e pe­ contraposta ao apoio às ações da resistência está mais
queno-burguesas, sejam islâmicas ou laicas, tentarão perto do cooperativismo mais estreito que de uma posi­
sempre refrear o movimento. Forçados a enfrentar o ção revolucionária.
imperialismo de armas na mão, isto não significa que Tomara que me equivoque e os companheiros(as)
abandonem suas concepções contra a mobilização per­ que estejam acompanhando melhor este processo me
manente das massas e a organização independente das desmintam, mas não creio que tenhamos hoje condi­
mesmas. Daí que, como aprendemos vendo a ação deste ções para ser mais precisos em propostas de organiza­
tipo de direções, tentarão superdimensionar, absolutizar ção que, a par das que se apóiem nas ações militares
a guerra de guerrilhas, controlando-a assim ferreamen­ da resistência, permitam ir avançando na organização
te, militarmente, e minimizar o movimento de massas e independente das massas.
sua organização democrática. O impulso internacional de apoio às ações da resis­
Uma posição revolucionária no Iraque não pode tência, a solidariedade com a luta do povo iraquiano
duvidar nem por um momento que as tarefas de liber­ deve continuar sendo tarefa central na LIT-QI e daí
tação nacional e social, o enfrentamento por todos os divulgar nossas posições alentando assim o surgimento
meios ao ocupante, deve ser acompanhado do impulso de um núcleo fundacional do partido revolucionário no
da organização independente da classe operária. Mas Iraque.
porque esta organização independente da classe deve
ser a organização de sindicatos? Porque não é possível Conclusão
iniciar esta organização em meio à crescente desocupa­
ção, pelos bairros operários? Quando nem conhecemos Segundo a ideologia xiita, a jurisprudência islâmica
o suficiente nem estamos sobre o terreno, é uma autên­ outorga ao “alfaquí” – representante na Terra do Imã es­

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Josef Weil (org.)

perado – o beneplácito de não ser julgado nunca pelos


erros que comete pois “quem se esforça e acerta será du­
plamente premiado” e “quem se esforça e se equivoca só
terá uma recompensa”. Assim pois, o alfaquí pode viver
tranqüilo porque em qualquer caso obterá recompensa.
Não me cabe a menor dúvida de que se se aplica­
rem a Angel estes princípios da jurisprudência islâmica,
obteria,­ por seu esforço, no mínimo uma recompensa, Siglas
como qualquer alfaquí. Não obstante, para os marxistas
revolucionários os equívocos, longe da recompensa, só
trazem conseqüências sérias, às vezes dramáticas e não
há lei sagrada que nos livre de sermos julgados por eles. ANP Autoridade Nacional Palestina
Se tivéssemos que resumir este longo debate em FIS Frente Islâmica de Salvação
duas ou três linhas – com o risco entranhado em toda FMI Fundo Monetário Internacional
definição esquemática –, diríamos: o chamado fenô­ LCR Liga Comunista Revolucionária, francesa
meno islâmico surgido nas duas últimas décadas é, na LPP Labour Party of Pakistan
essência,­ uma expressão distorcida do nacionalismo. OAS Organização do Exército Secreto, em francês.
Portanto, para os revolucionários as relações com estas OLP Organização para a Libertação da Palestina
correntes se guiam, em linhas gerais, pelos mesmos pa­ ONU Organização das Nações Unidas
râmetros que atuamos frente às direções nacionalistas PC Partido comunista
burguesas ou pequeno-burguesas quando se chocam PIB Produto interno bruto
com o imperialismo. PNB Produto nacional bruto
URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

Madri, abril de 2005

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OS AUTORES

Cecília Toledo é jornalista, professora universitária


Joseph Weil foi da juventude sionista, depois a e pesquisadora do Ilaese (Instituto Latino-Americano
abandonou em nome do trotskismo. É professor, integra de Estudos Sócio-Econômicos). Milita no Partido So­
a direção nacional da Liga Internacional dos Trabalha­ cialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) desde a
dores-IV Internacional (LIT-QI), e edita seu órgão, o Convergência Socialista. Escreveu Mulheres: o gênero
Correio Internacional, e a Marxismo Vivo. nos une, a classe nos divide, publicado pela Editora
Sundermann.
Angel Luís Parras é espanhol. Nos anos 1970
entrou no trotskismo através das Comisiones Obreras José Welmovicki, professor de Ciências Sociais, é
Metalúrgicas de Madri, clandestinas. Integra a direção membro da direção nacional do PSTU e da LIT-QI.
do Partido Revolucionario de los Trabajadores (PRT) da O fruto de seu doutorado é a obra Cidadania ou classe?
Espanha, e o Comitê Executivo da LIT-QI. O movimento operário na década de 80, publicado em
2005 pela Editora Sundermann.
Coleção Moreno próximos lançamentos

A Ditadura revolucionária do proletariado História da Revolução Russa


304 páginas, ISBN 978-85-99156-15-5 dois tomos
Leon Trotsky

Lógica marxista e ciências modernas


136 páginas, ISBN 978-85-99156-14-8 História da Internacional Comunista
dois tomos
Pierre Broué

O Partido e a revolução
544 páginas, ISBN 978-85-99156-09-4

Na Contra-corrente da História
dois volumes
Fulvio Abramo e Dainis Karepovs (org.)

Em homenagem a Nahuel Moreno no aniversário


de 20 anos de seu falecimento.
OUTROS TÍTULOS DA próximos lançamentos

1 Os sindicatos e a luta contra a burocratização A Lei do desenvolvimento desigual e combinado


José Maria de Almeida George Novack

2 Chávez levará a Venezuela ao socialismo? Do Socialismo utópico ao socialismo científico


Alejandro Iturbe Friedrich Engels

3 Autobiografia de uma mulher comunista Manifesto do Partido Comunista e


sexualmente emancipada Princípios do comunismo
Alexandra Kollontai Karl Marx e Friedrich Engels

4 Homossexualidade: da opressão à libertação Programa de transição


Hiro Okita Leon Trotsky

Estes e outros títulos você pode adquirir em Em breve nas melhores livrarias e em
www.editorasundermann.com.br www.editorasundermann.com.br
1a edição [2007]

Para a composição deste livro foi usada, no corpo de texto, a fonte


Caslon, desenhada por William Caslon (1692-1766), com tamanho 11 pt
e entrelinhas de 14 pt. Para cabeçalhos, títulos, subtítulos, utilizou-se a
fonte Univers, desenhada por Adrian Frutiger (1928- ).
A impressão ficou a cargo da Gráfica Vida e Consciência de São Paulo,
Brasil e realizou-se em papel ofsete 75 g/m2 fornecido pela própria gráfica.

Esta primeira edição tem tiragem de 1.000 exemplares.

Impresso em julho de 2007.

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