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Nietzsche, Vontade de Potência e Irracionalismo

Nildo Viana*

Resumo:
O artigo apresenta as ideias fundamentais de Nietzsche, reconstituindo o seu pensamento como uma
totalidade coerente, apesar da falta de sistematicidade, que é oriunda de sua filosofia. O texto aponta para
a hipótese de que sua concepção é irracionalista e que a ideia fundamental de toda sua filosofia e que
fornece coerência ao seu pensamento é a da “vontade de potência”, o que é complementado com algumas
considerações críticas sobre o se pensamento.
Palavras-chave: irracionalismo, Nietzsche, vontade de poder.

Abstract:
The article presents the ideas basic of Nietzsche, reconstituting its thought as a coherent totality, although
the lack of systematic organization, that is deriving of its philosophy. The text points with respect to the
hypothesis of that its conception is irrationalist and that the basic idea of all its philosophy and that
supplies coherence to its thought is of the “will of power”, what is complemented with some critical
considerations on if the thought.
Key-words: irrationalism, Nietzsche, will of power.

A filosofia de Nietzsche é uma das mais difíceis de compreensão. Isto é


derivado tanto de sua forma de exposição (aforismos, por exemplo), quanto pelas
diversas mudanças ocorridas em seu pensamento e da falta de clareza típico das
especulações filosóficas, o que é reforçado pela diversidade de interpretações de sua
obra. Para alguns, Nietzsche é o precursor do nazismo; para outros, é um autor próximo
ao anarquismo. Hoje, ele é resgatado pelo pós-estruturalismo. Outras interpretações
existem e muitas vezes antagônicas.
Partimos de uma perspectiva determinada, como não poderia deixar de ser.
Toda interpretação parte de uma determinada perspectiva. O nosso ponto de partida é a
perspectiva geral que possuímos aliada a uma determinada forma de leitura derivada
desta perspectiva. Porém, a forma como compreendemos a perspectiva é bem diferente
daquela apresentada por Nietzsche com seu perspectivismo (Viana, 2007a; Viana,
2007b), que discutiremos adiante.
Assim, analisaremos a obra de Nietzsche buscando compreender a sua essência
e o seu processo de formação. Não se trata, como diversos comentaristas fizeram, de
comentar suas diversas obras cronologicamente. Este procedimento, além de ser pouco
didático para o leitor e pouco claro, talvez revelando não compreensão da totalidade do
pensamento do autor em questão, é muito pouco útil para apresentar a concepção de um

*
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Especialista e
Mestre em Filosofia; Mestre e Doutor em Sociologia/UnB. Email: nildoviana@ymail.com
1
pensador, gerando, inclusive, diversas repetições. Pretendemos aqui sintetizar em
poucas páginas os elementos fundamentais de seu pensamento. As repetições, no
entanto, ocorrerão, já que o pensamento de Nietzsche é bastante circular, voltando
sempre ao mesmo ponto. Mas não somente devido a isso, já que a repetição está
presente em toda sua obra, juntamente com a falta de uma maior organização do
pensamento deste filósofo, o que faz ele ir e voltar ao mesmo tema e problema, retomar
e ir adiante retomando mais uma vez.
Sendo assim, não apresentaremos, como alguns fazem, o seu pensamento em
três fases (Marton, 1993) e sim expor suas idéias fundamentais, tomando como
fundamental a sua última fase, e, as obras das demais fases são percebidas como forma
rudimentar de algumas teses desenvolvidas ali ou problemas que não recebiam ainda a
solução posterior. Em tal processo – por questão de espaço, que limita a possibilidade
de uma análise mais extensa da obra deste filósofo –, alguns temas relativamente
importantes no conjunto do pensamento de Nietzsche e outros diversos sem grande
importância terão que ser deixados de lado. Neste sentido, nossa leitura parte da
concepção de que a obra de Nietzsche forma um todo coerente, embora sua coerência
seja sui generis, isto é, marcada pela falta de sistematicidade e organização, oriunda de
sua própria filosofia, tal como colocaremos no decorrer deste texto.
A Vontade de Potência
A base da filosofia nietzschiana é o irracionalismo. Apesar de alguns
contestarem esta interpretação, o conjunto da obra deste filósofo e suas teses
fundamentais apontam para isso. O ponto de partida de Nietzsche é a crítica da
metafísica, identificado com o platonismo e outras expressões filosóficas que partem da
razão como elemento fundamental da reflexão filosófica. A chamada primeira fase de
seu pensamento expressa um filósofo iniciante buscando na filosofia e cultura existentes
manifestar suas idéias ainda em elaboração. A ligação com Richard Wagner, a
influência de Kant e principalmente Schopenhauer, expressam esta procura. A fase da
procura é desdobrada na fase seguinte, marcada pela influência positivista e pela
preocupação metodológica. No entanto, não se deve iludir com tal influência. Nietzsche
não era um positivista neste período, como alguns dizem, pois era apenas um pensador
que, durante sua busca, teve influências que, no entanto, não eram a forma do seu
pensamento e sim uma apropriação indecisa e eclética. A terceira fase é a fase da síntese
e organização do seu pensamento, embora de forma pouco organizada e sistemática, ao

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contrário de outros sistemas filosóficos produzidos por outros filósofos1. Os aforismos
são não apenas exemplo de estilo, mas de produto de uma determinada perspectiva.
A grande questão para o pensamento de Nietzsche e que é a base de sua
construção filosófica é a chamada “vontade de potência”. A origem da concepção
nietzschiana de vontade de potência remonta sua visão da Grécia antiga. A oposição
entre o dionisíaco e o socrático está na base de sua formulação de vontade de potência.
Nietzsche parte da crítica de Sócrates e da filosofia grega posterior a ele, socrática, tal
como em Platão e Aristóteles, colocando que este filósofo iniciou a longa carreira da
metafísica e originou a separação entre pensamento e vida. Neste sentido, Sócrates e
Platão são “pseudo-gregos” ou “antigregos”.

Essa irreverência de considerar os grandes sábios como tipos de


decadência nasce em mim precisamente num caso em que o
preconceito letrado e iletrado se opõem com maior força:
reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência,
instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos, anti-
gregos (Nietzsche, 1984a, p. 18).
Isto significou uma decadência da filosofia. O filósofo-legislador, aquele que
manifestava a vida ativa e o pensamento afirmativo, o filósofo pré-socrático, é
substituído pelo filósofo metafísico. O primeiro realizava a crítica de todos os valores
estabelecidos e era um criador de novos valores, enquanto que o metafísico passou a
enquadrar a vida e opor a ela valores considerados superiores. Sócrates – o mais sábio
dos tagarelas, segundo Nietzsche – é o fundador da metafísica, pois ele foi o
responsável pela separação entre a essência e a aparência, a verdade e a falsidade, o
inteligível e o sensível.
Assim, surge o filósofo metafísico em oposição ao filósofo dionisíaco e trágico
que o antecedeu. O trágico, ligado a vida, é substituído pelo metafísico, o pensamento
separado da vida. Surge uma era da razão, no qual os valores superiores passam a ser o
Verdadeiro, o Belo, o Bem, entre outros. A concepção anterior, expressa na tragédia
grega, revela a unidade da vida e da morte, pensamento e vida. Para Nietzsche, “em
todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada”
(Nietzsche, 1984a, p. 17). Sócrates, que pertencia ao populacho, era feio, e a feiúra é o

1
“Rapsódico e descontínuo por temperamento, por método e por inspiração, por estranha
individualização dos momentos de sua vida, Nietzsche tinha que propor-se o que havia de mais difícil
para ele, a organização sistemática. Os livros que acompanham ou seguem ao Zaratustra (A Gaia
Ciência, Para Além do Bem e do Mal, Genealogia da Moral, etc.) são fragmentos separados de um
conjunto para o qual Nietzsche toma notas desde 1882 e que chegou ao estágio de esboço: A
Transmutação de todos os Valores ou A Vontade de Potência” (Lefebvre, 1993, p. 105-106).
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sinal de uma evolução descendente, tal como os criminólogos dizem que o tipo
criminoso é feio (Nietzsche, 1984a). Assim, o pensamento socrático e metafísico,
doravante hegemônico, substitui a unidade de pensamento e vida presente na visão de
mundo dionisíaca e realiza a decadência da filosofia, e isto vai ter continuidade no
platonismo.
A partir da oposição entre homem teórico e homem trágico, Nietzsche
considera toda a filosofia grega posterior, identificada por ele com o platonismo, como
manifestação da metafísica e do predomínio do primeiro sobre o segundo. Daí sua
crítica e negação da metafísica. Porém, o cristianismo também passa a ser alvo do
filósofo e, no entanto, não significa nada mais do que a continuação da metafísica,
segundo sua concepção. Para Nietzsche, o cristianismo é um platonismo popular, ou,
em outras palavras, um platonismo de escravos. A relação entre cristianismo e moral
dos escravos é um dos pontos básicos da filosofia nietzschiana:

A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio


começou a produzir valores, o ódio que tinha a contentar-se com
uma vingança imaginária. Enquanto toda a moral aristocrática
nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a moral dos
escravos opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu; este ‘não’ é o
seu ato criador. Esta mudança total do ponto de vista é a própria
do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes
externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. O
contrário acontece na moral aristocrática: opera e cresce
espontaneamente e não procura o seu antípoda senão para se
afirmar a si mesma com maior alegria; o seu conceito negativo
‘baixo’, ‘vulgar’, ‘mau’, não é senão um pálido contraste e
muito tardio, se se comparar com o seu conceito fundamental
impregnado de vida e de paixão, ‘nós os aristocratas, nós os
bons, os formosos, os felizes’. Quando o sistema aristocrático
erra e peca contra a realidade, está numa esfera que desconhece
e desdenha, é a esfera do povo baixo. Mas por muito que falseie
a imagem percebida, este costume de orgulhoso desdém e de
superioridade, não é tanto como a desfiguração violenta que o
rancor e o ódio, põem na imagem do adversário. No desdém
aristocrático há muita negligencia e descuido, muita alegria
íntima e pessoal, para que o objeto possa transformar-se numa
caricatura, num mostro (Nietzsche, 1990, p. 28-29).
A moral dos escravos surge do ódio e esta é a origem do cristianismo. Os fracos
querem um dia ser fortes. Um dia chegará o seu reino, afirma Nietzsche, e eles
humildemente o chamam de “o Reino de Deus”. Segundo Nietzsche, “por cima da
porta do paraíso cristão da ‘bem-aventurança eterna’ poder-se-ia escrever com maior
razão: ‘também a mim o ódio eterno me criou’ (...)” (Nietzsche, 1990, p. 38).
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O que a metafísica da filosofia e a moral dos escravos produziram foi uma
perversão dos instintos. Os valores cristãos são valores de escravos. Ela se forma a
partir de uma moral do ressentimento. Esta moral do ressentimento tem como pilares a
culpabilização do outro pela própria fraqueza, o sentimento de culpa e o ideal ascético
(aliás, é aqui que muitos irão ver semelhanças entre a filosofia nietzschiana e a
psicanálise) (Nietzsche, 1990).

Na minha Genealogia da Moral apresentei, pela primeira vez,


psicologicamente, a idéia de contraste entre uma moral nobre e
uma moral de ressentimento, a última nascida do ‘não’ respeito
da primeira: é a moral judaico-cristã por inteiro. Para poder
dizer ‘não’ em resposta a tudo o que representa o movimento
ascendente da vida, o bem nascido, o poder, a beleza, a
afirmação de si sobre a terra, foi preciso que o instinto de
ressentimento convertido em gênio, inventasse ‘outro’ mundo,
por onde aquela ‘afirmação’ da vida nos aparecesse como o mal,
como a coisa reprovável em si (Nietzsche, 2000b, p. 38).
Em oposição a esta decadência da filosofia e ao domínio da metafísica, Nietzsche
contrapõe a vontade de potência. A vontade de potência é um dos termos fundamentais
da filosofia nietzschiana, mas é um dos menos compreendidos e um dos menos
abordados por alguns dos especialistas em seu pensamento. É na vontade de potência
que reside a base da concepção nietzschiana da filosofia e de sua crítica da metafísica e
do cristianismo, bem como de sua concepção perspectivista e seu imoralismo, tal como
colocaremos adiante.
O que é a vontade de potência? Este termo, como alguns já colocaram, é
geralmente mal interpretado. Devido à concepção de Descartes, segundo a qual a
vontade é uma faculdade, muitos (Karl Jaspers, Martim Heidegger) interpretaram
equivocadamente este conceito nietzschiano (Moura, 2005). O próprio Nietzsche fez
questão de distinguir sua concepção e a concepção cartesiana (Nietzsche, 2004). Para
Nietzsche, a vontade de potência não é uma faculdade, não é produto da consciência. A
consciência foi transformada em algo em si que, no fundo, não existe. A filosofia
passou a buscar um mundo-verdade, criando e evocando um valor sublime que não
passa de uma criação de uma ficção útil ao seu criador. Assim, Nietzsche busca destruir
as bases desta concepção metafísica, e questiona também a idéia de causa e o
mecanicismo. Nietzsche também contesta o hedonismo ao colocar que o homem não
busca o prazer e não se esquiva do desprazer. Em substituição a tudo isso, Nietzsche irá
erguer um novo edifício ideológico que terá como base a vontade de potência.

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A vontade de potência não é a mesma coisa que luta pela sobrevivência. Aqui
reside um dos motivos da crítica de Nietzsche a Darwin. Darwin postula algumas teses
que entrarão em desacordo com a filosofia nietzschiana. Para Darwin, distinguindo-se
de Lamarck, o meio cumpre um papel fundamental no processo da evolução (Viana,
2003). Nietzsche irá questionar a “influência das circunstâncias exteriores”, bem como
o papel do que é útil ser preservado. Além disso, para Nietzsche, não são os mais aptos
que sobrevivem, pois estes são uma minoria que é suplantada pela maioria dos menos
aptos. A crítica nietzschiana de Darwin tem sua razão de ser a sua própria definição de
vontade de potência. Para ele, o organismo não luta pela vida, simplesmente, não busca
a mera sobrevivência. Ele quer mais. É este querer mais que é a base da vontade de
potência. Ele fornece um exemplo que ajuda a entender sua concepção:

Tomemos o caso mais simples, o da nutrição primitiva: o


protoplasma estende seus pseudópodes para buscar algo que lhe
resista; – não porque tenha fome, mas para pôr em ação sua
vontade de potência. Depois tenta suplantar esse algo, apropriá-
lo, incorporá-lo. O que chamamos nutrição é simplesmente a
conseqüência, a aplicação dessa vontade primitiva de tornar-se
mais forte (Nietzsche, 2004, p. 265).
Assim, notamos a diferença entre a concepção nietzschiana e a darwinista, pois
apesar das semelhanças, inclusive conseqüências convergentes, tal como na idéia da luta
pela sobrevivência e a sobrevivência dos mais aptos que pode, tal como na doutrina da
vontade de potência, resultar na defesa dos fortes contra os fracos, o que se pode
perceber em certos momentos na obra nietzschiana, as bases das duas concepções são
bem diferentes.
O desprazer pode ser tanto um estímulo para superar obstáculos quanto pode, no
caso do esgotamento, ser um processo que representa a diminuição e enfraquecimento
da vontade de potência. O desprazer, portanto, ao contrário do que pensa a filosofia
hedonista, pode tanto fortalecer como enfraquecer a vontade de potência. O prazer, da
mesma forma, pode também executar os dois papéis. Para Nietzsche, existem duas
espécies de prazer. A primeira espécie é a do adormecer. Os seres esgotados querem
justamente a primeira espécie, querem o repouso, a paz, a tranqüilidade. Este é o ideal
de felicidade das religiões e das filosofias niilistas, e é a preferência dos fracos. Ao
contrário, “os ricos e os vivos querem a vitória, os adversários suplantados, o
transbordar do sentimento de potência sobre domínios novos” (Nietzsche, 2004, p. 265).

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Segundo Nietzsche, as funções sadias de um organismo apontam todas para a luta pelo
crescimento dos sentimentos de potência.
O homem não aspira à felicidade, como coloca a psicologia, também amplamente
criticada por Nietzsche. Assim, Nietzsche diz que a planta não aspira à felicidade e as
árvores em uma floresta não lutam entre si pela felicidade e sim pela potência. Daí o seu
postulado fundamental:

Meu postulado – é necessário recolocar o agente na ação, depois


que o retiraram de uma forma abstrata, tendo sido a ação assim
esvaziada de seu conteúdo; é necessário retomar na ação o
objeto da ação, o ‘escopo’, a ‘intenção’, o ‘fim’ após tê-los
retirado de forma superficial, tendo sido a ação destarte
esvaziada de seu conteúdo; todos os ‘escopos’, todos os ‘fins’,
todos os ‘sentidos’, não são mais que meios de expressão e
metamorfose de uma única vontade, inerente a tudo que
acontece, a vontade de potência; ter fins, escopos, intenções,
numa palavra querer, equivale a querer tornar-se mais forte,
querer crescer – e querer também os meios para isso: o instinto
mais geral e mais profundo em toda ação, na prática,
obedecemos sempre à sua ordem, porque nós somos essa ordem
(Nietzsche, 2004, p. 268).
A vontade de potência é um pathos que gera um devir e uma ação. A vontade de
potência é sempre a busca de “ser mais”. É o desejo de tornar-ser mais forte, é “desejo
de se apropriar, de se tornar senhor, de aumentar, de se converter em mais forte”
(Nietzsche, 2004). É um constante superar a si mesmo (Nietzsche, 1984). Porém, pode
se perguntar, isto ocorre na esfera individual? Sendo assim, não haveria uma luta de
todos contra todos? Já que a vontade de potência não é uma característica apenas do ser
humano, mas um princípio vital de todos os organismos e seres vivos, então a natureza
não seria palco de uma eterna e infinita luta entre os seres existentes? Segundo
Nietzsche: na natureza, existe uma diversidade de quanta de forças em ação, que tem
como essência exercer a potência sobre outras quanta de forças. A vida é vontade de
acumular força, nenhuma quer tão-somente conservar-se, mas sim ampliar-se. A vida
aspira a um máximo de potência, aspirando a um excedente de potências. Assim, para
Nietzsche, a vontade de potência é a busca de mais força.
Irracionalismo e Crítica da Metafísica
A base da concepção nietzschiana é a idéia de vontade de potência. A crítica que
ele faz ao racionalismo e a metafísica tem sua origem em tal idéia. Já colocamos alguns
elementos desta tese. É por partir da idéia de uma “vontade de potência” que ele irá

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recuperar o que pode ser chamado “visão dionisíaca do mundo”2. É por isso que o
mundo grego e sua tragédia serão abordados em várias obras de Nietzsche. A base do
irracionalismo nietzschiano reside na vontade de potência.
É por isso que Nietzsche irá questionar a verdade, a metafísica, a religião. Elas
seriam nada mais que ilusões. Ou, em suas palavras, “aparências úteis”. Sua crítica da
verdade é bastante ampla e já realizamos alguns apontamentos sobre ela. “Todas as
hipóteses do mecanicismo, a matéria, o átomo, a pressão, o choque não são fatos em si,
mas interpretações com auxílio de ficções psíquicas” (Nietzsche, 2004, p. 259). Mas o
seu fundamento reside na idéia de que a vontade de potência é o princípio vital
determinante e que a realidade é um caos. Ela é, tal como já foi colocado, um processo
de forças em luta para adquirir mais força.
Em sua crítica à lógica aristotélica, ele desenvolve alguns aspectos de sua
concepção da realidade. O princípio da não-contradição é o aspecto basilar de toda e
qualquer demonstração. Este princípio, no entanto, afirma algo sobre a realidade, o que
pressupõe um conhecimento deste por outro meio, e assim tal princípio quer dizer que
não podemos atribuir princípios contrários à realidade. No entanto, também pode
significar que não devemos atribuir princípios contrários à realidade. No primeiro caso,
os axiomas lógicos correspondem à realidade; no segundo caso, são medidas para criar
o conceito de realidade como se fosse coisa real, de acordo com sua utilidade. “Ora,
para poder afirmar a primeira, impunha-se, como já indiquei, o prévio conhecimento do
ser – o que, em absoluto, não é o caso. O princípio não contém, portanto, um critério de
verdade, mas um imperativo ao tema do que deve passar por verdadeiro” (Nietzsche,
2004, p. 239). Assim, a lógica aristotélica é reduzida a uma construção ficcional e útil,
nada mais do que isso.
A verdade, por conseguinte, é também uma ficção útil. Não se trata de buscar uma
nova verdade, pois ela é tão-somente disfarce da vontade de potência.

A reflexão nietzschiana sobre a ciência, quando confrontada


com a problemática da arte em seus primeiros escritos, tem
como tema central uma crítica da verdade. O mesmo acontece

2
Este é o título de uma obra de juventude de Nietzsche, no qual ele já esboçava sua concepção de vontade
de potência: “A arte dionisíaca, por outro lado, repousa no jogo com a embriaguez, com o
arrebatamento. São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural ingênuo até o
esquecimento de si característico da embriaguez, a pulsão da primavera (frühlingstrieb) e a bebida
narcótica. Seus efeitos são simbolizados na figura Dioniso. O principium individuations é rompido em
ambos os estados, o subjetivo desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do
natural-universal” (Nietzsche, 2005, p. 08). Em outra obra ele diz: “sou um discípulo do filósofo
Dionísio...” (Nietzsche, 1986, p. 39).
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quando a relação é estabelecida com a moral. Em Nietzsche, a
crítica nunca é uma teoria do conhecimento que tenha por
objetivo denunciar os pseudoconhecimentos, suas ilusões, seus
erros e estabelecer as condições de possibilidade da verdade, o
ideal do conhecimento verdadeiro. A novidade e a importância
do projeto nietzschiano em todas as fases de sua realização é a
crítica, não dos maus usos do conhecimento, mas do próprio
ideal de verdade; é a questão, não da verdade ou falsidade de um
conhecimento, mas do valor que se atribui à verdade, ou da
verdade como valor superior; é a negação da prevalência da
verdade sobre a falsidade (Machado, 2002, p. 51).
Para Nietzsche, o conceito é uma criação de algo igual em coisas desiguais, tal
como no exemplo da folha. O conceito de folha é algo impensável. Só se pode pensar
em tal conceito abolindo as diferenças individuais existentes. É um processo no qual se
deixa de lado o que é distintivo e cria-se uma igualação inexistente na realidade. A
verdade, assim, é uma criação de um conjunto de construções que se tornam, após longo
uso, canônicas, obrigatórias. “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são
(...)” (Nietzsche, 1991, p. 34). A sua definição de verdade lhe retira qualquer caráter de
valor superior:

A ‘verdade’ não é, conseqüentemente, algo que exista e que


devamos encontrar e descobrir – mas algo que é preciso criar,
que dá seu nome a uma operação, melhor ainda, à vontade de
alcançar uma vitória, vontade que, por si mesma, é sem
finalidade: introduzir a verdade é um processus in infinitum,
uma determinação ativa – e não a manifestação na consciência
de algo que seja em si fixo e determinado. É uma palavra para a
‘vontade de potência’ (Nietzsche, 2004, p. 245).
Se não existe uma verdade ou a verdade, se ela é apenas uma ficção útil, um meio
que se utiliza para manifestar a vontade de potência, então como se percebe as formas
de conceber o mundo, a realidade? Ao lado da concepção da realidade como um
encontro de forças caóticas buscando ficar ainda mais fortes e da crítica da verdade,
temos o complemento que é a concepção nietzschiana das interpretações, o chamado
perspectivismo.
A consciência produz uma imagem subjetiva do mundo. Este é o perspectivismo
da consciência. O homem, e não só ele, constrói, partindo de si mesmo, um mundo. Este
mundo construído, é assim feito por cada um de acordo com sua vontade de potência.
Todo corpo específico aspira a tornar-se mais forte e repelir o que impede sua expansão.
Ele se choca, assim, com os outros corpos que possuem a mesma aspiração. Neste
processo, ele acaba por criar um arranjo com outros corpos que são semelhantes e
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realizam uma conspiração para conquistar a potência. As teses do perspectivismo
podem ser assim resumidas:

1) As categorias pelas quais todo o conhecimento é possível são


constructa, ficções úteis, à primeira vista, ao serviço de uma
fundamental força de autopreservação ou vontade de viver.
2) Existe algo como coisa em si que é referido sob várias
denominações – caos, quantidade pura, diferença absoluta, devir
contínuo, etc. – a que não há acesso direto e é sempre
‘traduzível’ em formas subjetivas ou, mais corretamente,
interpretadas.
3) Toda perspectiva é interpretação e ficção reguladora.
4) As ficções reguladoras, categorias, não serão usadas num
programa de inversão dos valores, isto é de seu uso pela ‘grande
razão’, como instrumentos de objetivação e sistematização, mas
seu uso visará sobretudo a descoberta da singularidade e a
constituição de complexidades não abstratas (Marques, 2003, p.
71).
Embora a interpretação de Marques referente à Nietzsche seja excessivamente
racionalista e a forma de exposição acima tenha, devido a isso, elementos questionáveis,
podemos dizer que temos um resumo útil do significado do perspectivismo
nietzschiano. Realmente, para Nietzsche, as categorias e o conhecimento são ficções
úteis e reguladoras que estão a serviço da vontade de potência, elemento que Marques
coloca posteriormente em sua análise em substituição a autopreservação e vontade de
viver. A realidade é o caos e é interpretada a partir de uma perspectiva, que é uma
ficção reguladora criado por um corpo ou, no caso dos seres humanos, por um indivíduo
(que pode, como vimos, realizar “arranjos” com outros indivíduos a partir de
determinadas semelhanças). A perspectiva ideal visa não constituir leis ou sistemas e
sim descobrir singularidades e complexidades não-abstratas.
Assim, a própria existência é perspectivista, essencialmente interpretativa. É
possível pensar diferente, pois o espírito humano, durante tal análise, partirá de sua
perspectiva e unicamente dela, o que significa negar as demais perspectivas. Isto é
exemplificado na metáfora: “só podemos ver com nossos olhos” (Nietzsche, 2006, p.
251). Assim, o mundo é palco de uma infinidade de interpretações. A realidade é o caos
e as interpretações dela também.
Crítica da Moral e Imoralismo
Assim como a razão, a ciência, a idéia de verdade, a moral também é analisada
por Nietzsche como sendo manifestação da vontade de potência. Nietzsche começa por
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demolir a concepção de moral a partir de sua genealogia e etimologia. A palavra bom
deriva, em toda as línguas, de uma mesma mutação de sentido. Ela, em sua origem,
significava nobreza e distinção. Assim, a palavra bom revela a matriz principal segundo
a qual os nobres se consideravam superiores. Também significou o “puro”, ariano, “de
cabelos loiros”, etc. Nietzsche questiona se o anarquismo, o socialismo e a tendência
para a Comuna, “não são essencialmente senão um monstruoso efeito de atavismo, de
tal modo que a raça dos conquistadores e senhores, a raça ariana esteja a caminho de
sucumbir por completo?” (Nietzsche, 1990, p. 23). No fundo, segundo Nietzsche, a
palavra bom pode ser derivada de “guerreiro” e bonus seria o homem de luta. Em
alemão, gut significaria der Goettlhich, isto é, “divino”. Nietzsche afasta a possível
contradição que haveria entre o guerreiro e o divino:

Se a transformação do conceito político da proeminência num


conceito psicológico é a regra, não constitui uma exceção o que
a casta mais elevada forma ao mesmo tempo da casta sacerdotal
e prefira um título que designe as suas funções. Deste modo a
oposição ‘puro’ e ‘impuro’ serviu primeiramente para distinguir
as castas e ali se desenvolveu mais tarde uma diferença entre
‘bom’ e ‘mau’ num sentido já não limitado à casta. Evitemos
atribuir à idéia de ‘puro’ e ‘impuro’ um sentido demasiado
rigoroso, demasiado lato, e menos ainda um sentido simbólico.
A palavra ‘puro’ designa simplesmente ‘um homem que se
lava’, que se abstém de certos alimentos insalubres, que não
coabita com as mulheres sujas da plebe e que tem horror ao
sangue e nada mais (Nietzsche, 1990, p. 23-24).
Além disso, a aristocracia sacerdotal tende a espiritualizar as oposições de valores,
tal como esta entre puro e impuro. No entanto, as castas começam a invejar-se
mutuamente e querer o domínio. A aristocracia guerreira e a aristocracia sacerdotal
passam a disputar o poder. A aristocracia guerreira valoriza a musculatura, a saúde,
enquanto que a aristocracia sacerdotal é o contrário. A classe sacerdotal é a mais
maligna, pois é a mais impotente e isto faz crescer nela um ódio monstruoso, sinistro,
intelectual e venenoso. É desta classe que nasce os maiores vingativos da história. O
exemplo mais notável é o dos judeus.

Os judeus vingaram-se dos seus dominadores por uma radical


mudança dos valores morais, isto é, com uma vingança
essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar
assim. Os judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra
a aristocrática equação dos valores ‘bom’, ‘nobre’, ‘poderoso’,
‘formoso’, ‘feliz’, ‘amado de Deus’. E, com o encarniçamento
do ódio afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os pobres, os
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impotentes, os pequenos, sãos os bons; os que sofrem, os
necessitados, os enfermos, sãos os piedosos, são os benditos de
Deus; só a eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário,
vós, que sois nobres e poderosos, sereis por toda a eternidade os
maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os
réprobos, os malditos, os condenados...’ Todos sabem quem foi
que recolheu a herança destas apreciações judaicas... E recordo
aqui o que noutro lugar (Para além do Bem e do Mal) disse: que
com os judeus começou a emancipação dos escravos na moral,
esta emancipação que tem já vinte séculos de história e que já
hoje perdemos de vista por ter triunfado completamente
(Nietzsche, 1990, p. 25-26).
O ódio judaico, transmutador de todos os valores, gerou um “amor novo”. Da
mais sublime e profunda forma de ódio surge a mais sublime forma de amor. Jesus de
Nazaré era a sedução mais irresistível que levaria aos valores judaicos. Assim, graças
aos judeus, triunfou a moral do povo, dos escravos, do populacho, do rebanho. A moral
aristocrática foi derrotada pela moral dos escravos. A moral fundada na auto-afirmação
é substituída pela moral negativa. A moral dos escravos diz não a tudo que não é seu, ao
contrário da moral aristocrática, que realiza um crescimento espontâneo e só
tardiamente irá criar o conceito negativo de “baixo”, “vulgar”, “mau”, em contraste com
a moral dos escravos.
O mau dos aristocratas é distinto do mau dos escravos. O maligno para os
escravos rancorosos é a idéia original, fundadora, a base formadora da moral dos
escravos. O mau para os aristocratas é uma criação posterior, um acessório, algo
complementar. A moral dos escravos é, portanto, uma moral do ressentimento e é daí
que aparecem suas noções de bom e mau. A culpabilização do outro é uma das fontes da
moral do ressentimento, a moral dos escravos.
A moral dos escravos também manifesta a questão da má consciência. O
esquecimento é mais do que geralmente se pensa, é um poder ativo, uma faculdade
moderadora, é uma proteção que permite a realização das demais funções, tal como
governar. O esquecimento é uma força, expressão de robusta saúde. No entanto, há
também a memória, que permite um equilíbrio com o esquecimento. O homem é um
fazedor de promessas e precisa ser educado, necessita de disciplina, e isto está na
origem da responsabilidade. Este processo educacional é a moralização dos costumes.
Mas o homem livre, aquele que pode fazer promessas, seria autônomo e supermoral.
Mas a consciência rompe com esta autonomia e além da moralidade. Antes do

12
cristianismo, fazer sofrer o outro causava um enorme prazer, era uma “verdadeira
festa”. “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda” (Nietzsche, 1990, p. 55).

Estas reflexões não são para levar água ao moinho do


pessimismo, antes pelo contrário, e tanto que naquele tempo em
que a humanidade se não envergonhava ainda da sua crueldade,
a vida sobre a Terra era mais serena e feliz do que nesta época
de pessimismo. O sombrio da abóboda celeste cresceu em
proporção da vergonha que o homem experimentou à vista de
outro homem. O olhar pessimista e fatigado, a desconfiança no
enigma da vida, a glacial negação ditada pelo enfado, não são os
sinais característicos daquela infância da humanidade; pelo
contrário, verdadeiras plantas dos pântanos necessitavam que se
formasse o pântano, em que haviam de viver; refiro-me ao
doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de
todos os seus instintos. Na sua porfia por ser converter em anjo
(para não empregarmos uma palavra mais dura), o homem
conseguiu esta fraqueza do estomago e esta linguagem
mentirosa, que lhe tornam insípida e dolorosa a vida (...)
(Nietzsche, 1990, p. 55-56).
A crueldade não foi extinta, apenas se revestiu com novas cores, se espiritualizou.
A origem da “má consciência” (remorso, “sentimento de culpa”) foi resultado do
movimento histórico que engendrou uma transformação contra a qual não se poderia
lutar. A organização das aves de rapina, de uma raça de conquistadores e senhores, que
exercia uma tirania, através de um estado primitivo que funcionava como uma máquina
sangrenta e desapiedada. A origem do sentimento de culpa pode ser encontrada na
consciência de ter uma dívida para com a divindade. Este sentimento não cessou crescer
e com a evolução do conceito humano de Deus até chegar ao Deus cristão, a mais alta
expressão do divino, fortaleceu cada vez mais. O homem interioriza a consciência da
dívida com seu credor, Deus. Assim, o homem passa a torturar-se a si mesmo. Assim, o
torturado é vítima de sua própria obrigação para com Deus, o instrumento da tortura.
Essa crueldade psíquica de se achar culpado revela uma espécie de demência da
vontade.
O terceiro elemento da moral dos escravos é o ideal ascético. Os artistas, os
sacerdotes, os filósofos, são propensos ao ascetismo? O ideal ascético está presente nos
filósofos de forma mais exemplar. Eles consideram necessário se libertar das
obrigações, dos deveres, dos cuidados, da desordem, do ruído. Eles defendem as três
palavras mágicas do ascetismo: pobreza, humildade e castidade. “O filósofo distingue-
se em evitar três coisas brilhantes e ruidosas: a glória, os príncipes e as mulheres”
(Nietzsche, 1990, p. 98). “O artista sabe quão prejudicial é o comércio com a mulher
13
nos dias de grande tensão de espírito e preocupação intelectual” (Nietzsche, 1990, p.
99). A renúncia radical expressa pelo ascetismo contribui com o desenvolvimento de
uma espiritualidade superior e é, ao mesmo tempo, sua conseqüência.
A finalidade do ideal ascético, no entanto, é mais clara no sacerdote do que no
artista ou no filósofo. O sacerdote é o representante do espírito sério. “O sacerdote tirou
do seu ideal ascético não só a sua fé, mas também a sua vontade, o seu poder, o seu
interesse” (Nietzsche, 1990, p. 104). Esta espécie inimiga da vida é contraditória, mas
deve ser a própria vida que cria, por algum interesse, este tipo contraditório. Porém, esta
negação da vida é aparente. O ascetismo tem sua origem em um instinto profilático de
uma vida em estado de degeneração. A vida procura se conservar sob todas as formas
possíveis. Ela inventa sempre novos artifícios e o ascetismo é um destes artifícios. O
sacerdote é a encarnação da luta pela sobrevivência, garantidor da vida. Ele conserva a
vida dos defeituosos, extraviados, enfermos, desgraçados. Não são os maus o maior
perigo para a humanidade e sim os doentes. “Os desgraçados, os vencidos, os
impotentes, os fracos são os que minam a vida e envenenam e destroem a nossa
confiança” (Nietzsche, 1990, p. 109). É deste terreno que brota a erva venenosa, de
onde nasce a conjuração dos doentes contra os robustos e os triunfantes. É de onde
brotam o ódio e o rancor. Esses incuráveis monopolizam a virtude e se declaram os
únicos bons. Entre eles, muitos vingativos, clamando por justiça e usando a máscara de
juízes.

Veja-se o que se passa no recôndito de todas as famílias, de


todas as corporações e comunidades; por toda a parte a luta dos
doentes contra os sãos; uma luta quase sempre secreta. Cita de
pós envenenados, de alfinetes, de semblantes astutamente
resignados e às vezes revestidos de uma hipócrita ‘nobre
indignação’. Até nos sacrossantos domínios da ciência, se
houvem os ladridos destes cães doentes, o raivoso rancor, o
espírito de mentira destes nobres fariseus (por exemplo, aquele
berlinense apóstolo da vingança, Eugenio Duhring), o charlatão-
mor destes reinos, incluindo entre os seus amigos os antigos
semitas). Há nestes homens rancorosos, nestes degenerados,
uma sede de vingança subterrânea, insaciável, inesgotável contra
os bons, engenhosa em máscaras e pretextos. Quando alcançarão
o triunfo sublime e definitivo desta vingança? Indubitavelmente
quando conseguirem infundir na consciência dos felizes a sua
própria miséria (Nietzsche, 1990, p. 110-111).
O sacerdote ao pregar o amor ao próximo reforça o instinto da vontade de
potência. O cristianismo primitivo se fundava em associações para proteger os pobres,

14
sociedades de ajuda mútua, etc. Os doentes possuem o instinto de se organizar em
rebanho. O sacerdote os organiza tendo por base este instinto. Os fracos buscam se unir,
os fortes se separar. Os fracos se unem por prazer, os fortes para uma ação comum
mesmo que isto lhes contrariem. A ciência moderna se revela o melhor auxiliar do ideal
ascético, por isso seria vão buscar nela um antídoto para tal doença. O ideal ascético foi
purificado, espiritualizado, polido.
A moral, portanto, é sinal da decadência. Nietzsche, ao negar a moral produz um
imoralismo. A crítica da moral que se vê em diversas obras de Nietzsche, e que se
manifesta principalmente como crítica do cristianismo (Nietzsche, 2004b; Nietzsche,
2000a; Nietzsche, 2000b), busca revelar suas origens nas classes inferiores. A moral e
os seus valores considerados “superiores” são negados e em seu lugar Nietzsche propõe
a transmutação de todos os valores. Isso significa abandonar a moral e os valores que
ela prega, tal como o amor ao próximo, e em seu lugar instaurar o imoralismo, a recusa
da moral enquanto valor e novos valores, os do homem nobre, ou melhor, o do super-
homem.
A idéia de super-homem é o desfecho final da filosofia nietzschiana. O super-
homem é aquele que está além do bem e do mal (Nietzsche, 2000b), é o que assume a
vontade de potência e busca realizá-la abandonando qualquer moral. O homem superior
nega a moral do populacho e decreta a morte de Deus. Quando se diz “somos todos
iguais perante a Deus”, ele retruca: Deus está morto. Quando se diz: “somos todos
iguais diante do populacho”, ele retruca: “perante o populacho não queremos ser iguais”
(Nietzsche, 1984b, p. 217). A idéia de super-homem é a idéia da aristocracia que não se
envergonha de si, de seu poder, de sua vontade de potência, que não quer a paz, mas a
guerra. Assim, o imoralismo abre espaço para a defesa do super-homem, o homem além
do bem e do mal, que exerce conscientemente sua vontade de potência. Assim falava
Nietzsche.
Considerações finais
A obra de Nietzsche é extensa, apresentando uma diversidade de livros. Porém, tal
obra é perpassada pela mesma idéia chave que é a da vontade de potência. A base de
toda a filosofia nietzschiana é a vontade de potência. Sem dúvida, poderíamos colocar
que os problemas psíquicos deste pensador tenha sido a fonte de sua filosofia, mas isto
apenas explicaria a motivação de tal filosofia, mas não suas teses fundamentais, seus

15
desdobramentos, suas limitações. A loucura pode explicar Nietzsche e a motivação de
sua filosofia, mas não é suficiente para a sua análise enquanto filosofia.
A vontade de potência, idéia chave de Nietzsche, é uma cosmologia que não tem
nenhuma fundamentação além das próprias palavras do pensador que a produziu. Sem
dúvida, em certo sentido, existem elementos na realidade que coincidem com a tese
nietzschiana. Porém, enquanto doutrina universal da vida, a concepção de Nietzsche se
revela infundada e muito pobre. Trata-se de mera especulação que não dá conta da
realidade que busca expressar. E é com base nesta filosofia especulativa da vida que ele
irá produzir sua concepção irracionalista e imoralista.
O irracionalismo nietzschiano possui dois problemas fundamentais. O primeiro é
a sua recusa da verdade, que é em si uma contradição. Ao afirmar que não existe a
verdade e ela sendo apenas manifestação de uma ficção útil, então o seu postulado não é
verdadeiro, é tão fictício quanto qualquer outro postulado. Poder-se-ia dizer que isto não
é uma contradição, pois é uma confirmação do seu postulado, a da inexistência da
verdade. Assim como todas as demais pretensas verdades, a idéia nietzschiana é uma
ficção útil e nada mais. Porém, aqui se mantém a tese da veracidade do seu ponto de
partida.
A idéia nietzschiana da inexistência da verdade seria verdadeira, ou seja, isto é
uma contradição insolúvel. Também é possível se argumentar, em defesa de Nietzsche,
que ele condena a lógica aristotélica e o postulado da não-contradição. Sem dúvida, mas
isto não anula a contradição de seu discurso e que dizer que não pode haver contradição
na realidade é uma coisa, e dizer que não pode haver contradição no discurso é outra
coisa. Caso pudesse haver contradição nos discursos, a comunicação humana estaria
inviabilizada. Nietzsche cai em contradição e isso mostra a fragilidade de suas bases
filosóficas.
Mas a idéia de ficção útil deve atingir também o seu postulado de vontade de
potência. Se a idéia de uma “vontade de potência” é uma ficção útil, então ela não é
verdade e logo não pode ser base para a existência de diversas outras ficções. Sendo
assim, o seu discurso é autofágico, destrói a si mesmo. Ao mesmo tempo é revelador, no
sentido de que ele mostra que ele criou ficções úteis para ele, de acordo com a vontade
de potência que ele, enquanto indivíduo, possuía, para justificar e legitimar o seu
irracionalismo e imoralismo.

16
O segundo problema fundamental da filosofia nietzschiana é a sua teoria da
realidade como caos de forças em busca de mais força, que não é comprovada em lugar
algum, combinada com a recusa do conceito. Não se pode dizer “a folha”. Sem dúvida,
Nietzsche comete o equívoco de considerar uma palavra qualquer com um conceito, o
que significa desconhecer a diferença entre linguagem comum e linguagem complexa
(científica, filosófica, etc.)3. Mas deixando isto de lado e partindo para sua afirmação,
ela tem como postulado fundamental a diferença absoluta entre os seres. Tal diferença
absoluta é apenas uma invenção nietzschiana. As folhas, concretas, são diferentes, sem
dúvida. Porém, não possuem apenas diferenças. Também possuem semelhanças. É
devido a estas semelhanças que se torna possível chamar de folha um conjunto de folhas
diferentes. Os macacos são seres singulares, diferentes, mas que possuem semelhanças e
por isso podemos qualificá-los como macacos.
Além disso, Nietzsche cai em nova contradição, pois, ao declarar a
impossibilidade do conceito, ele demonstra que sua própria filosofia é uma
impossibilidade, pois os termos que ele utiliza e generalizações que realiza através
deles, tal como moral, aristocracia, escravos, vontade de potência, judeus, mulheres,
bem, mal, perspectiva, etc., é exatamente o processo de igualação que ele havia
criticado. A realidade não é o caos. Este suposto caos é uma atribuição que Nietzsche
lhe dá.
Neste sentido, se o postulado da vontade de potência é uma filosofia especulativa
da vida sem base concreta e se o irracionalismo que lhe é derivado não se sustenta,
então o seu imoralismo também cai por terra, bem como os seus corolários, tal como a
transmutação de todos os valores e o super-homem. A moral não é uma produção
apenas dos escravos. Nietzsche forçou a história para dizer o que queria dizer. A sua
tese se fundamenta na origem etimológica da palavra bom, o que não se sustenta, pois a
mutação do sentido de uma palavra nunca ocorre isoladamente, o que significa que ele
deveria ter analisado a mutação social e lingüística mais ampla para entender o real
significado da mudança.
A falta de senso histórico em Nietzsche, apesar de tentar realizar uma genealogia
e uma história natural da moral, é visível4. Ele nunca se dispôs a ir até a realidade

3
Isto não deixa de ser estranho, tendo em vista sua formação em filologia, que sempre o influenciou,
inclusive em sua Genealogia da Moral, no qual busca descobrir a origem da palavra bom.
4
“Desgraçadamente, Nietzsche não ligou sua teoria das ilusões ideológicas a uma doutrina coerente da
história e da prática social. Não foi, pois, além das categorias mistificadas e já rechaçadas, há muito
tempo, pelo pensamento crítico. Quando critica largamente as teorias morais do homem e da história,
17
concreta, preferiu se refugiar, como a filosofia em geral faz, em especulações. Sua
suposição de uma classe aristocrática e de escravos não possui historicidade, não
apresenta o seu momento de surgimento e nem sua superação na sociedade moderna e
nas mudanças que ocorreram devido a isso. Sua concepção é a-histórica. Mas além de a-
histórica, não é fundamentada, pois sua genealogia é apenas uma atribuição bastante
superficial de significados a alguns poucos acontecimentos históricos selecionados por
ele. O seu imoralismo se fundamenta numa crítica da moral que é limitada e que não se
sustenta.
Apesar de todas estas limitações e problemas5, a filosofia de Nietzsche tem algum
valor. Sem dúvida, sua genealogia da moral serve como elemento de contribuição para
uma história da moral e suas bases sociais, desde que ganhando precisão e historicidade
e abandonando os preconceitos do filósofo. O mesmo se pode dizer de seu
perspectivismo, que é uma contribuição para se pensar as bases do pensamento e suas
fontes sociais, algo que ele não desenvolveu devido o seu apego a sua tese metafísica da
diferença absoluta e da vontade de potência. Desta forma, tal como Scheler e outros
filósofos, Nietzsche oferece uma certa contribuição para o que alguns chamam
“sociologia do saber”, ou, mais exatamente, para uma história da consciência social.
Porém, no conjunto, a obra de Nietzsche é bastante limitada, apesar do seu
sucesso. A razão de tal sucesso tendo em vistas as referidas limitações seria um outro
tema para estudo, o que não nos propomos aqui. Em síntese, a filosofia de Nietzsche é
uma concepção metafísica da vida que quis dar conta da totalidade das manifestações
culturais e que fracassou por partir de bases equivocadas.

quando mostra que a história não foi um idílio espiritualista, descobre o mediterrâneo. Seu pensamento
retorna ao tempo de Kant e de Fichte. Não percebe as aquisições fundamentais do hegelianismo. Faz
assim, inconscientemente, obra de vulgarização, algumas vezes demasiado zeloso, do imoralismo
implícito na dialética histórica de Hegel. Apesar de sua audácia, não está à frente de sua época, mas
atrás. Por outra parte, experimentou constantemente a tentação de isolar a ilusão ideológica. Não via
claramente os fundamentos históricos e práticos da consciência e se limitava a psicofisiologia”
(Lefebvre, 1993, p. 166-167).
5
Claro que poderíamos também expor as raízes sociais do seu pensamento e suas ligações com sua época.
Porém, não é objetivo do presente trabalho. Um esboço desse tipo de análise pode ser consultado e se
encontra em Henri Lefebvre, que afirma que Nietzsche fez um balanço, do ponto de vista espiritual, da
etapa imperialista da sociedade moderna: “porém, sua crítica não sai do imperialismo. Sua teoria da
vontade de potência, seu esforço por isolar a violência pura e apresentá-la como criadora da história, faz
dele, em certo sentido, um filósofo do imperialismo” (Lefebvre, 1993, p. 151).
18
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