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Abraão Carvalho
Universidade Federal do Espírito Santo
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All content following this page was uploaded by Abraão Carvalho on 07 September 2015.
Abraão Carvalho
abraaocarvalho.com
Oscar Wilde
1
brasileiro. Ficção esta que pretende investigar os rastros e os vestígios de tais
antagonismos da vida urbana. Modo de vida este, que sucumbe, em certa
medida, na ruína que atravessa o solo urbano, no qual se move a experiência
de um grande contingente dos passantes da cidade brasileira contemporânea,
que perduram historicamente, sobretudo, como excluídos dos direitos à vida 1.
No conto “O outro”, do livro “Feliz ano novo” 2, que tal como “As flores do
mal” de Baudelaire, fora censurado pelo Estado no ano de sua publicação,
narra uma relação fragmentária na qual os abismos sociais criados desde o
início da colonização ibérica no Brasil, ainda se fazem visíveis na cidade
brasileira do século XX, antes mesmo é a violência enquanto acontecimento
súbito “que brota do devaneio e do tédio”3, do qual fala Baudelaire, que dá a
entonação da própria dinâmica da vida urbana.
1
Quando estamos nos referindo ao ser humano excluído dos direitos fundamentais à vida, estamos falando daqueles
aos quais estão destinadas as grandiosas e ilimitadas filas nos postos de saúde do Estado, para o escasso e precário
atendimento médico, bem como, estamos nos referindo aos modos de vida situados no espaço urbano brasileiro
onde o saneamento básico ainda não foi efetivado, sem moradia digna, alimentação adequada, vestimenta, sujeitos à
precariedade do sistema de transporte coletivo que superlota os ônibus, bem como, à margem do mundo do
trabalho, etc...
2
“Feliz ano novo, lançado em outubro de 1975, foi recolhido pelo Departamento de Polícia Federal por despacho do
ministro da Justiça Armando Falcão em dezembro do ano seguinte e teve a sua publicação e circulação proibidas
em todo o território nacional, sob a alegação de ‘exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes’. Em
abril de 1977, Rubem Fonseca entrou com um processo contra a União, que correu por mais de doze anos, ao longo
dos quais o livro – que no momento da apreensão já tinha vendido mais de 30 mil exemplares – jamais pôde ser
reeditado. Somente no final de 1989 o escritor obteve decisão favorável do Tribunal Regional Federal, liberando a
sua obra”; Segunda Edição de “Feliz ano novo”, Companhia das Letras, 1989
3
Baudelaire, “O Mau Vidraceiro”.
2
medo e do tédio que afeta a aterradora vida urbana brasileira, referenciada,
muitas das vezes por questão de sobrevivência, na perspectiva da circulação
acelerada de mercadorias e capitais, que atravessa o mundo do trabalho
competitivo, no qual se situa o emblema do “executivo”.
3
rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado,
implacável, até que chegamos em minha casa. Eu disse, ‘espere
aqui’.
Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta, e ele
ao me ver disse ‘não faça isso doutor, só tenho o senhor no
mundo’. Não acabou de falar, ou se falou eu não ouvi, com o
barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino
franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que
nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia
esconder. ”
Não nos parece tão nítido o sentido dessa inversão, no entanto, uma
possibilidade para encaminharmos essa questão, não sem o risco de sermos
4
atravessados por um certo modo de ambigüidade, consiste em situá-la como
originária do isolamento da vivência urbana, emblematizada aí, no “executivo”.
Como dissemos a pouco, é deste isolamento que irrompe o devaneio e o medo
que ofusca e confunde o olhar acerca do aparecimento do outro. De maneira
que o modo de vida do executivo é atravessado pelo ritmo de trabalho
competitivo, sobretudo, referenciado pela perspectiva de que tempo é
dinheiro. Neste sentido, enuncia o executivo: “Corria contra o tempo. Quando
havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo
que eu tinha”. Essa perspectiva se evidencia na inquietação tediosa e
perturbadora que afeta o executivo em seu isolamento na sua confortável
moradia particular: “À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não
passava. Tentei ler um livro. Mas a minha atenção estava em outra parte, no
escritório. Liguei a televisão mas não consegui agüentar mais de dez minutos”.
Desta forma, frustra-se o “executivo”, ou mesmo o “doutor”, na acepção do
“pedinte”, após um “dia terrível” de trabalho em seu escritório:
5
qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado,
dizendo, ‘doutor, doutor’. Sem parar, eu perguntei, ‘agora o quê?’.
Mantendo-se ao meu lado, ele disse, ‘doutor, o senhor tem que
me ajudar, não tenho ninguém no mundo’. Respondi com toda
autoridade que pude colocar na voz, ‘arranje um emprego’. Ele
disse, ‘eu não sei fazer nada, o senhor tem de me ajudar’.
Corríamos pela rua... ‘Não tenho que ajudá-lo coisa alguma’,
respondi. ‘Tem sim, se não o senhor não sabe o que pode
acontecer’, e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela
primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu
coração batia, de nervoso e de cansaço. ‘É a última vez’, eu disse,
parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.”
6
migalhas que caem da mesa dos ricos 4”, da qual fala Wilde, a abertura da
possibilidade de sobrevivência. Neste sentido, o suplicante pedinte do conto de
Rubem Fonseca, por extensão, renuncia a perspectiva de Zumbi do Jogo da
Bola, que aparece no conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, para o
qual “É preferível roubar do que pedir esmola”. Este modo de vivência, na
acepção de Benjamin, que perdura no espaço urbano em condições contrárias
à vida, a saber, o pedinte do conto “O outro”, fecha a possibilidade de correr
um risco maior, pois recusa também a perspectiva enunciada por Chico
Science, que ao som enérgico de tambores eletrificados e guitarras distorcidas,
canta tomado por um certo estado de humor e cólera:
4
Oscar Wilde, “Desobediência: A virtude original do homem”, p. 66
7
Referências