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Razão da esperança

Teologia para hoje

Leandro Antonio de Lima


Razão da esperança - Teologia para hoje, de L eandro A n to n io de L im a © 2 0 0 6 E ditora C u ltu ra
C ristã. Todos os direitos são reservados.

I a edição —2 0 0 6
3 .0 0 0 exem plares

Revisão
H erm isten M aia Pereira d a C o sta
C lau d ete Á gua de M elo

Editoração
A ssisnet

Capa
M ag no Paganelli

Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:


Cláudio M arra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Luiz Ramos, Francisco Baptista de Mello, Mauro
Fernando Meister, Otávio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastião Bueno Olinro, Valdeci da Silva
Santos.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lima, Leandro Antonio de

L732r Razão da esperança - teologia para hoje / Leandro Antonio de Lima. São
Paulo: C ultura Cristã, 2006.

672p. ; 16x23 cm.

ISBN 85-7622-140-3

1. Teologia Sistemática 2. Teologia Reformada 3. Doutrina ï . Lima, L.A. II.Tftulo.

CD D - 230.44

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Superintendente-, Haveraldo Ferreira Vargas


Editor. Cláudio Antônio Batista Marra
Sumário

Introdução......................................................................................................... 09
1. A revelação de D eus................................................................................... 13
2. Deus existe?.................................................................................................. 27
3. Conhecendo a D eus....................................................................................39
4. A Trindade: Da teoria à prática.................................................................51
5. Rocha eterna: O Deus imutável............................................................... 67
6. O teu Deus, onde está?...............................................................................77
7. Soberania de Deus ou livre-arbítrio?....................................................... 91
8. Predestinação: Deixando Deus ser D eus.............................................101
9. O Santo de Israel....................................................................................... 121
10. O enigma do m al.....................................................................................135
11. Criação ou evolução?..............................................................................147
12. Voltando ao início: A criação do hom em ......................................... 157
13. Providência: O Deus que trabalha......................................................173
14. Deus de m ilagres..................................................................................... 183
15. A queda: A mãe das tragédias..............................................................199
16. A morte: O último inim igo..................................................................209
17. O lugar dos mortos................................................................................ 217
18. O evento central da história.................................................................227
19. O filho de M aria......................................................................................243
20. A morte do Mediador............................................................................ 253
21. O substituto dos pecadores..................................................................267
22. A extensão da expiação de Cristo........................................................283
23. Ressurreição: A grande vitória.............................................................295
24. Ascensão: A coroação do Rei...............................................................309
25. A salvação pela graça............................................................................. 319
26. Cristo em nós: A união mística............................................................329
27. Muitos chamados, poucos escolhidos.............................................. 339
28. Regeneração: Da morte para a v id a ................................................... 353
29. Conversão: Uma guinada na existência........................................... 363
30. Justos pela f é ..........................................................................................373
31. Santificação: As alturas da f é ..............................................................383
32. A bênção da perseverança..................................................................399
33. O batismo com o Espírito Santo.......................................................409
34. Plenitude espiritual..................................................................................433
35. Mantendo a plenitude.......................................................................... 445
36. Os dons do E spírito............................................................................ 455
37. O pecado contra o Espírito................................................................475
38. A igreja verdadeira............................................................................... 483
39. Os sacramentos e a espiritualidade.....................................................497
40. Adoração: A grande prioridade.........................................................511
41. A ordem do culto..................................................................................525
42. Esperança escatológica........................................................................ 543
43. Imortalidade...........................................................................................561
44. Sinais do fim...........................................................................................569
45. A vinda do inim igo.............................................................................. 581
46. A segunda vinda de Cristo.....................................................................591
47. O Reino m ilenar......................................................................................599
48. A ressurreição fin al.................................................................................615
49. O dia do ju ízo ..........................................................................................623
50. A esperança da eternidade.................................................................... 631
Notas................................................................................................................. 643
Bibliografia...................................................................................................... 667
Prefácio
W W

João Calvino (1509-1554), comentando o texto de ITimóteo 6.3, diz


que “[a doutrina] só será consistente com a piedade se nos estabelecer no
temor e no cilto divino, se edificar a nossa fé, se nos exercitar na paciên­
cia e na humildade e em todos os deveres do amor”.1 Estamos convenci­
dos de que a genuína piedade bíblica começa pela compreensão correta
do mistério de Cristo, conforme nos diz Paulo: “Evidentemente, grande
é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justifi­
cado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido
no mundo, recebido na glória” (lTm 3.16). Todo o conhecimento cristão
deve vir acompanhado de piedade: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de
Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno
conhecimento da verdade segundo a piedade” (Tt 1.1). Portanto, deve­
mos indagar sempre, a respeito de doutrinas consideradas evangélicas, se
elas, de fato, contribuem para a piedade. A genuína ortodoxia será plena
de vida e piedade.
Partindo desses princípios, tenho a honrosa alegria de apresentar o livro
Ratção da Esperança: Teologia para Hoje. A obra do Rev. Ms. Leandro Antonio
de Lima, pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, é um tratado de Teologia
que aborda de forma sistemática, profunda, simples e prática diversos tópi­
cos da chamada Teologia Sistemática sem perder o seu propósito de ser com­
preensível e edificante. Ela certamente é resultado do trabalho de vários anos
como escritor profícuo de lições para Escola Dominical da Igreja Presbite­
riana do Braáil, respeitado pastor em Guarapuava, Paraná, e professor de
teologia em diversas instituições teológicas. O autor, mesmo sendo muito
jovem, acumula ampla experiência docente, pastoral e administrativa.
O Rev. Leandro, como reformado que é, partindo da autoridade inerrante
e infalível daá Escrituras, propõe-se a apresentar a razão da nossa esperan­
ça (IPe 3.15,16), fundamentando-a não em lendas ou ficções, mas na Pala­
vra de Deus, que nos fala do nosso passado, orienta o nosso presente e
orienta-nos quanto ao futuro. Desse modo, o autor, de maneira séria e
corajosa vai desenleando diante de nós tópicos difíceis da Teologia, de­
monstrando çom fidelidade bíblica caminhos que podemos seguir de modo
coerente com a Palavra.
Este trabalho tem relevância acadêmica - podendo, portanto, ser usado
em Seminários, Faculdades de Teologia e Institutos Bíblicos e devocional,
constituindo-se num excelente manual de estudo para a Escola Dominical
e classes especiais de doutrina.
Portanto, o autor está de parabéns, bem como a Editora Cultura Cristã,
e o povo evangélico em geral, que busca uma literatura séria, esclarecedora
e edificante.

Maringá, agosto de 2005.


Hermisten Maia Pereira da Costa
A gr a d e cim en to s
A Deus, acima de tudo...
A minha esposa, Vivian, pelo companheirismo.
A minha família, pelo apoio.
A Igreja Presbiteriana Betei, pela compreensão.
Ao Rev. Hermisten, pela leitura, pelas sugestões e pela correção do texto.
Ao Rev. João Alves pelas sugestões.
Ao Rev. Cláudio Marra (editor), por acreditar neste trabalho.
Introdução

"Santificai a Cristo, c o m o Senhor, e m vo ss o coração, esta n d o s em p r e prep a ra d os


p ara re sp o n d e r a todo aquele que vos p ed ir razão da e sp e ra n ça que há e m vós,
fa z e n d o - o , todavia, c o m m a n s id ã o e temor, c o m boa con sciên cia"
(1 Pe 3 .1 5 ,1 6 - n egrito acrescentado).

Costuma-se dizer: “Repetir sem entender é coisa de papagaio”. Os do­


nos de papagaios os domesticam para que eles repitam palavras decoradas.
As vezes, se pensa que os papagaios estão sendo inteligentes por repetirem
o que foram condicionados a dizer. Porém, a verdade é que as pobres aves
literalmente “não sabem o que estão falando”. Pensamos que muitas vezes
uma situação semelhante ocorre na igreja. Os líderes eclesiásticos fazem as
pessoas engolirem um tipo de Cristianismo sem lhes dar explicações con­
vincentes sobre o que estão ensinando e sem demonstrar que os seus ensi­
nos têm base na Palavra de Deus. E esses “pobres cristãos” saem por aí
repetindo ensinos que foram condicionados a repetir. Talvez eles nunca
pensem sobre eles. Um cristão deveria ser alguém com discernimento; al­
guém que não pode engolir tudo o que ouve sem considerar atentamente o
que está sendo dito. O caos da irracionalidade moderna não deveria atingir
a fé. Porém, infelizmente, hoje em dia, as grandes doutrinas da Palavra de
Deus estão quase que esquecidas. Em geral, as pessoas sabem muito pouco
sobre os atributos de Deus, as naturezas de Cristo, ou sobre o verdadeiro
significado do batismo com o Espírito Santo. E quando elas sabem, não
parecem demonstrar muito interesse. As questões escatológicas são discu­
tidas, mas só em nível superficial e a respeito de determinados temas, como,
por exemplo, o milênio ou o arrebatamento. Uma das razões dessa falta de
conteúdo substancial nessas discussões tem a ver com as obras teológicas
publicadas. De modo geral, muitas vezes as boas obras de teologia são es­
critas em linguagem inacessível para os não-iniciados. Enquanto isso, as
prateleiras das livrarias cristãs estão cheias de livros de auto-ajuda, que pro­
metem soluções milagrosas em apenas “alguns passos”, mas que não tra­
zem verdadeiro crescimento na graça e no conhecimento de Deus (2Pe
3.18). O fato é que ser cristão, hoje, está se tornando apenas uma questão
10 Razão da esperança

de sentimentalismo. E, muitas vezes, até de gosto pessoal. No senso co­


mum dos nossos dias, o cristão verdadeiro não é aquele que “sabe” mais, e
sim aquele que “sente” mais (teve “experiências”). A ênfase no sentimenta­
lismo é uma das marcas do relativismo do mundo pós-moderno. Até mes­
mo porque os sentimentos são extremamente subjetivos e relativos.
De acordo com a Bíblia, como cristãos, devemos estar “sempre prepa­
rados para responder a todo aquele que nos pedir ra^ão da esperança que há
em nós” (IPe 3.15, ênfase acrescentada). Esperança é algo que aponta para
o futuro. Porém, a certeza do futuro se constrói a partir de um passado e de
um presente sólidos. A fé deve ser bem fundamentada e amplamente con­
vincente, não somente no aspecto emocional, mas também no racional.
Todo cristão sincero deve chegar a um estágio na sua vida em que precisa
perguntar a si mesmo: “Será que a minha religião é verdadeira?” E claro que
respostas pré-fabricadas não satisfazem e nem devem satisfazer a ninguém.
Como diz Michael Horton, todo cristão deveria relutar em aceitar com o
coração uma fé que falha em convencer a sua mente.2 Porém, a verdade é
que, muitas vezes, a igreja se torna o local em que a mente é menos exigida.
O fato é que, quando os rituais substituem a vida, “verdades”, que podem
ou não ser verdadeiras, são decoradas e repetidas quase que com desinte­
resse pela maioria dos “fiéis”. Infelizmente, os cristãos estão acostumados
a não pensar a respeito da sua fé. Eles são como papagaios, ensinados a
repetir coisas que não entendem, apenas para causar admiração nos outros.
Nestes tempos, quando a autojustificação ou a auto-ajuda têm domina­
do a pregação, as publicações e os programas televisionados, precisamos
desesperadamente voltar para a mensagem da graça, para a mensagem do
comprometimento bíblico-teológico. O nosso sentido e o nosso propósito,
como indivíduos e como igreja, dependem amplamente do grau de clareza
em compreendermos as verdades sobre quem Deus é, quem nós somos, e
o que o plano de Deus para a História envolve. Só assim poderemos dizer
por que a nossa esperança tem razão (é racional), e qual é essa razão.
Mesmo sabendo da complexidade de muitos dos temas aqui considera­
dos, objetivamos dialogar sobre questões que fazem parte do dia-a-dia dos
crentes (aqueles que têm fé) e mesmo dos não-crentes. Não queremos tra­
tar de assuntos teológicos como se eles nada tivessem a ver com a vida
prática das pessoas. O que se pretende é uma análise sincera, de uma pers­
pectiva bíblica, a respeito de temas selecionados que são vitais para um
verdadeiro conhecimento de Deus e uma vida cristã frutífera. Não importa
se as nossas fraquezas tenham que ser expostas para que a verdade de Deus
brilhe ainda mais forte diante de nossos olhos. E certo que, quando con-
Introdução II

frontamos as nossas crenças pessoais com a Escritura, percebemos que


muitas vezes essas crenças se mostram infundadas. A razão é que, talvez,
jamais tenhamos estudado seriamente o assunto de uma perspectiva bíbli­
ca. De qualquer modo, o nosso apego à Escritura deverá ser maior do que
qualquer coisa, até mesmo do que os nossos gostos pessoais.
Agora, uma palavra ao leitor com relação à metodologia adotada. Aqui
não faremos questionamentos sobre a Bíblia, mas a partir da Bíblia. A nossa
concepção é que muitos questionamentos e “releituras” da Bíblia já foram
feitos e pouco ou nenhum proveito resultou para o povo de Deus, especial­
mente para as pessoas mais simples. Este trabalho assume a inerrância e a
suficiência da Escritura para a fé cristã, e anela por colocar a teologia na
linguagem de todos os crentes, Não assumimos também a postura de que
haja uma teologia para a Europa, outra para a África e outra para a América
Latina. Teologia é teologia em qualquer lugar do mundo; é a busca pelo
conhecimento de Deus, e Deus é o mesmo em qualquer lugar. Por outro
lado, o estudante de teologia nunca pode se esquecer de um princípio funda­
mental: sua teologia precisa ser útil. Podemos perceber um excesso de abs­
trações teológicas em muitas obras - profundo conhecimento histórico e
pesquisa séria, porém, pouca aplicação. Enquanto os “intelectuais” cristãos
se deliciam com manjares, é possível que o povo simples esteja sem o ali­
mento de que ele tanto precisa.3 Precisamos mais do que nunca traduzir a
teologia para a linguagem do povo, uma teologia com aplicação prática. O
objetivo deste estudo é conhecer melhor o Deus da Escritura para desenvol­
ver um relacionamento melhor com ele, ou seja, uma teologia para a vida.
Ainda é importante que, por outro lado, se tenha em mente que vive­
mos dias em que o estudo das doutrinas bíblicas tem sido deixado para o
segundo plano. A doutrina tem sido associada à frieza espiritual. Chavões
como: “A letra mata”, “quem estuda esfria”, usados indiscriminadamente
ou fora de contexto, têm impedido muitos crentes de crescer em conheci­
mento espiritual. E claro que, se você está lendo este livro, é porque não
compactua com esse pensamento, mas, de qualquer modo, importa relembrar
que o conhecimento das doutrinas sempre foi uma das maiores preocupa­
ções de Jesus e da igreja primitiva. Conhecer as doutrinas bíblicas foi uma
das primeiras marcas da verdadeira espiritualidade na igreja primitiva (At
2.42).4 Quanto mais conhecemos Deus e suas obras, conforme ele se reve­
la na sua Palavra, melhor poderá ser o nosso relacionamento com ele. Se a
vida espiritual é a que importa, é interessante lembrar que Jesus disse que o
Espírito viria para nos guiar a toda a verdade (Jo 16.13). Segundo o entendi­
mento do próprio Jesus, a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17). Desse
12 Razão da esperança

modo, entendemos que o Espírito Santo nos orienta no estudo dessa Pala­
vra. E isso é a verdadeira espiritualidade
A história da igreja tem demonstrado, ao longo dos séculos, que a coisa
que mais destrói a vida e a comunhão autêntica da igreja é a falsa doutrina,
especialmente os falsos ensinos sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O
Senhor Jesus, e especialmente seus apóstolos, demonstraram profunda pre­
ocupação com essa questão, e apontavam para o futuro como um tempo
muito conturbado nesse sentido (Mt 24.11; 2Tm 4,3,4). À luz do que temos
visto hoje, percebe-se que eles estavam rigorosamente certos. Entendimen­
tos errôneos acerca de Deus têm minado a verdadeira religião nos quatro
cantos do mundo, introduzindo erros e heresias destruidores, tanto na vida
individual do povo de Deus como também em denominações inteiras. Co­
nhecer doutrina não é coisa sem importância; é fundamental para os dias
em que vivemos.
O propósito deste trabalho é apresentar, numa linguagem simples e aces­
sível, os principais ensinamentos da teologia. Abordamos de forma breve
todas as oito disciplinas da Teologia Sistemática (Introdução, Teontologia,
Antropologia, Cristologia, Soteriologia, Pneumatologia, Eclesiologia e Es-
catologia)5, concentrando-nos nos principais temas da teologia que tenham
interesse para os teólogos e também para as pessoas em geral. De certo
modo, são capítulos avulsos que podem ser lidos em seqüência, ou aleato­
riamente, conforme o interesse ou a necessidade da pessoa. O nosso inte­
resse não é apenas o conhecimento intelectual sobre essas matérias, mas
também a aplicação prática delas. A nossa busca é pelo conhecimento que
pode e deve influenciar o nosso dia-a-dia, dando-nos maior firmeza na fé,
um relacionamento mais estreito com Deus e uma condição sempre pronta
para dar, a todo aquele que nos pedir, ra%ão da esperança que há em nós,
porém, fazendo isso com temor, mansidão e boa consciência.
A revelação de Deus1

Há dois modos de se fazer teologia, e isto depende de como se aborda a


Escritura. A teologia, necessariamente, precisa ser a Teologia da Bíblia,2
porém, há duas maneiras de nos aproximarmos da Escritura: 1) com o
pressuposto da fé; 2) com o pressuposto da dúvida. As duas maneiras têm
sido adotadas ao longo da História. Quem se aproxima com o pressuposto
da fé entende que a Escritura é inspirada, infalível e inerrante em tudo o
que ela ensina. Esse estudioso não se preocupará primariamente com ques­
tões a respeito de fontes, desenvolvimento de tradições, questionamento
de datas ou autorias. Ele procurará entender o ensino da Bíblia e se subme­
terá a ele, porque acredita ser verdadeiro e normativo. Além disso, entende
que, ao longo dos séculos, a Escritura já deu suficientes provas de sua au­
tenticidade. Essa posição não significa estar fechado para discussões, mas
que não se está disposto a abandonar a fé como pressuposto fundamental
da teologia. Anselmo, que foi Arcebispo da Cantuária (1033-1109), dizia
que teologia é a fé em busca de compreensão.3 E, de fato, não se estuda
teologia necessariamente para questionar a fé - embora algumas vezes ela
precise de questionamento - , mas para desenvolver e fundamentar a fé.4
Geralmente, aqueles que adotam essa perspectiva são chamados de “con­
servadores”, e, às vezes, até de “fundamentalistas”, o que nem sempre é um
rótulo adequado. E possível identificar uma linha histórica de estudiosos
desse tipo, desde os dias atuais até o tempo dos apóstolos. Recentemente,
tem surgido uma nova maneira de abordar a Escritura. Trata-se do que
chamamos aqui de pressuposto da dúvida. Especialmente a partir do
Iluminismo (séc. 17), e com as descobertas científicas dos séculos seguin­
tes, muitos estudiosos começaram a abordar a Bíblia como um livro mera­
mente histórico, que precisava ser analisado de uma perspectiva científica.
Já não se aceitava mais o pressuposto da fé. A partir daí, começou-se a
questionar as narrativas bíblicas, principalmente as que narram aconteci­
mentos sobrenaturais. Um grande esforço foi feito para recuperar o Jesus
histórico que teria sido distorcido pelos evangelhos. A autoria mosaica do
14 Razão da esperança

Pentateuco foi rejeitada e, em seu lugar, foi desenvolvida uma complexa


teoria de fontes. Assim, o Pentateuco foi dividido em diversas ramificações
que seguiriam fontes anteriores e que teriam sido compiladas por alguém
depois do Exílio. Essa abordagem ficou conhecida como Crítica das Fon­
tes. Posteriormente, falou-se em crítica das formas, crítica das tradições,
crítica da redação, etc. O que todas essas abordagens têm em comum é a
perspectiva de crítica da Escritura sem respeito ao seu caráter inspirado.
Esse pressuposto de abordagem não rejeita o Cristianismo, mas não está
disposto a aceitar que tudo o que está registrado na Bíblia é verdadeiro.
Depois de tantos estudos e especulações, no entendimento desses estudio­
sos, pouca coisa na Escritura permanece como verdadeira e acima de qual­
quer suspeita. Os adeptos dessa abordagem são geralmente rotulados de
“liberais”. Como já foi dito, essa abordagem começou a ser feita durante a
época do Iluminismo, e ela permanece até hoje como a forma mais predo­
minante nos meios acadêmicos teológicos do mundo todo, embora com
muitas variações.
Não é o propósito desta obra discutir profundamente esta questão, e o
estudante mais interessado deverá se preocupar em pesquisar outras fontes.
Justifica-se a opção pela primeira forma de abordagem por ser a forma
histórica mais praticada, a que não violenta os escritos bíblicos e a que
mantém as verdades essenciais do Cristianismo. O pressuposto da dúvida,
embora tenha fornecido alguma ajuda para o aprofundamento acadêmico,
tem causado esfacelamento no Cristianismo mundial ao retirar a sua base
de fé e comprometer o ensino bíblico sobre a Redenção e, assim, demolin­
do a própria estrutura do Cristianismo. Além disso, é necessário que se
esclareça que todas as teorias racionalistas permanecem apenas como teo­
rias, carecendo de provas documentais. Amplo trabalho apologético (defe­
sa da fé) tem sido feito pelos conservadores no sentido de rebater as teorias
racionalistas. Na verdade, até hoje não há razões suficientes para se aban­
donar o pressuposto de fé na integridade das Escrituras.

Propósito e progressividade
Uma vez que a integridade da Escritura é assumida, é necessário enten­
der como ela surgiu e chegou até nós. Neste capítulo, que talvez seja o mais
“técnico” do livro, veremos muito resumidamente como isso aconteceu.
A revelação especial é o ato divino pelo qual Deus se torna conhecido
de modo redentor ao homem decaído. Sem a revelação, Deus seria eter-
A revelação de Deus 15

namente o absconditus (escondido), pois a natureza de Deus é tão diferente


da dos homens, que os homens jamais conseguiriam descobrir qualquer
coisa de Deus por si mesmos. Talvez, por essa razão, Paulo faça eco às
palavras do Salmo 14 ao dizer: “Não há quem entenda, não há quem bus­
que a Deus” (Rm 3,11; SI 14.2). Isso parece contraditório diante do que se
vê no mundo, onde as pessoas, quase que freneticamente, procuram Deus
para resolver os seus problemas. Porém, esse é justamente o problema,
pois, no fundo, as pessoas não estão buscando Deus, mas simplesmente
buscando algo dele. A rotina comum do ser humano é fugir de Deus, como
Adão e Eva, que se esconderam entre as árvores do jardim (Gn 3.8). E,
nessa mesma cena, vemos Deus procurando o casal e chamando-o para
restaurar o relacionamento. Isso é revelação, pois se trata de um movimen­
to de Deus em direção ao homem, dando-se a conhecer, revelando o seu
plano redentor com o objetivo de restaurá-lo. A revelação especial, que
deve ser distinguida da revelação geral,5 concentra-se na revelação do pla­
no redentor de Deus. Adão, antes da queda recebeu revelação especial não-
redentora, mas, depois da queda, pode-se dizer que a revelação especial de
Deus é uma revelação com propósitos redentores. Portanto, é possível iden­
tificar a revelação especial com a Bíblia.
Um aspecto importante da revelação especial é que ela é progressiva. O
se quer dizer com isso é que a Escritura não foi revelada e registrada num
único momento, mas Deus usou diversas pessoas, em diversas épocas, para
registrar, parte por parte, a revelação que ele ia fazendo de si mesmo. De
certo modo, Gênesis 1.1 é o resumo de toda a Bíblia, pois contém
embrionariamente tudo o que foi explanado depois. Ao longo da História,
Deus foi oferecendo à humanidade mais conhecimento de si mesmo. Disso
decorre que é preciso entender o significado como um todo, em toda a
Escritura, entendendo que muitas coisas, que não estão claras a princípio,
serão esclarecidas depois. Isso pode ser visto nas várias ministrações da
aliança divina, que embora seja uma só, foi renovada em momentos subse­
qüentes, e elementos novos foram acrescentados, revelando mais do cará­
ter divino e do seu plano redentor.

M o d o s de revelação
O autor aos Hebreus diz: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes
e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou
pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também
16 Razão da esperança

fez o universo” (Hb 1.1,2). Mesmo antes de a Bíblia ter sido escrita, Deus já
se revelava de modo especial para o seu povo. Dois modos muito usados
por Deus na antiguidade foram: a teofania e a profecia.

Revelação p o r teofania
Teofania, que literalmente significa “manifestação de Deus”, refere-se
aos aparecimentos de Deus, bem como as demonstrações fantásticas do
seu poder. A teofania foi predominante até o período mosaico. Deus se
manifestou a homens como Adão (Gn 2.15-17, 22,23; 3.8), Abraão (Gn
12.2; 28.13) e, especialmente, Moisés. A Bíblia afirma que, depois de Moi­
sés, esta não seria mais a maneira “oficial” de revelação (Dt 34.10), embora
alguns homens do Antigo Testamento tenham recebido teofanias, como
Elias, por exemplo. A característica principal da teofania é o apelo ao físico,
ao sensitivo. Deus tomava a forma de um anjo ou de um homem e podia
ser visto, ouvido e até tocado. Evidentemente, essas eram formas temporá­
rias, assumidas por Deus para se comunicar com o ser humano.

Revelação p o r profecia
A partir de Moisés, Deus passou a usar mais amplamente um novo modo
de revelação. Ele começou a se revelar por meio de profecia (Nm 12.6-8). A
revelação por profecia é um modo mais indireto de revelação. O profeta
recebia algo de Deus, porém por meio de um sonho ou uma visão. Então,
o profeta tinha a responsabilidade de transmitir ao povo o que ele tinha
visto desse modo. Como sempre havia risco de falsificação, Deus estabele­
ceu testes para confirmar o profeta e a profecia. Esses testes eram basica­
mente dois, o da veracidade do fato profetizado (Dt 18.20-22) e o da con­
formidade com a Palavra escrita (Dt 13.1-5). O tempo predominante dos
profetas se estende da morte de Moisés até João Batista (Mt 11.13).
A função básica do profeta era ser um porta-voz de Deus. Por isso,
geralmente o profeta começava a sua mensagem com a seguinte expressão:
“Assim diz o Senhor...”. Isso indica que o próprio Deus colocava as pala­
vras na boca dos profetas (Jr 1.7; Is 51.14; Êx 4.10-12; Dt 18.18). Um deta­
lhe que não pode ser esquecido é o caráter orgânico da recepção e da entre­
ga da mensagem profética. Os profetas não falavam em transe, mas usavam
os seus próprios recursos, qualidades e talentos para transmitir a mensa­
gem de Deus. Esta era, de certo modo, acomodada à personalidade do
profeta.
A revelação de Deus 17

Revelação na pes so a do Filho


Jesus Cristo é o clímax de toda revelação de Deus (Hb 1.1,2). Nada
antes ou depois dele fala mais, ou melhor, do que ele sobre Deus. Aqui,
também podemos ver o caráter progressivo da revelação divina. Cristo é a
expressão máxima do ser de Deus. Ele é o próprio Emanuel, o Deus conosco.
Ele é o Deus manifestado na carne, pois nele habita toda a plenitude da
divindade (Cl 2.9). Jesus não é uma teofania nos moldes do Antigo Testa­
mento, pois não é uma manifestação temporária de Deus. Ele é a manifes­
tação plena e eterna de Deus. Ele é, e para sempre será, o Deus-homem. Na
pessoa de Jesus, estava o ápice da revelação. Ele próprio costumava dizer:
“Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Entretanto, só em algumas ocasi­
ões ele se descortinou mais amplamente aos olhos humanos (Lc 9.29).
Durante todo o seu ministério terreno permaneceu esvaziado de algumas
de suas prerrogativas divinas (Jo 17.5; Fp 2.5-8), carregando com alegria o
fardo dos homens e se submetendo a uma vida de servidão. Porém, seus
milagres, suas palavras e, especialmente, sua presença, foram a maior de­
monstração de Deus para o mundo, E sua morte na cruz foi a grande prova
do amor desse Deus (Rm 5.8).

0 registro da revelação - Inspiração6


Como diz a Bíblia, Deus se revelou de muitas maneiras; porém, houve
um processo pelo qual esta revelação foi registrada, ou seja, escrita e preser­
vada nas páginas da Escritura Sagrada. Na revelação de Deus, há o momen­
to do ato propriamente dito em que Deus revelou algo de si mesmo. Esse
ato é uma tarefa exclusiva de Deus. A inspiração é o momento em que essa
revelação foi registrada. O registro é uma tarefa tanto divina como humana.
Inspiração é a influência divina sobre os escritores da Bíblia a fim de preservá-
los de erros, e para que eles registrassem com toda a fidelidade os aconteci­
mentos revelatórios de Deus e mesmo os presenciados pelos escritores
(boa parte dos evangelhos e de Atos, por exemplo). Em alguns casos, como
nos salmos, o ato da revelação coincidiu com a escrituração, pois, no mo­
mento em que o salmista meditava sobre algum tema, tomava a pena para
escrever e acontecia simultaneamente a revelação e o registro. Isso pode ser
visto também nas epístolas. Porém, em outros casos, houve um intervalo
entre o ato divino da revelação e sua escrituração, como por exemplo, quando
o profeta recebia a visão, e só a registrava posteriormente. De qualquer
18 Razão da esperança

modo, todo o processo, desde o ato revelatório até o momento da escritu­


ração é revelação de Deus. A inspiração não é uma atividade à parte da reve­
lação. Fazemos essa distinção apenas para que possamos entender os dois
momentos, que às vezes ocorrem juntos, e às vezes separados.

Fatores que c o ntribuír am para o registro

É perfeitamente possível que alguns fatores tenham contribuído para o


ato de registrar a revelação. Porém, isso não anula e nem torna desnecessá­
ria a atuação divina. Os principais fatores que contribuíram para o registro
da revelação, especialmente nos registros posteriores aos acontecimentos,
foram a tradição oral e a tradição escrita. A tradição oral foi muitas vezes uma
intermediária entre os acontecimentos antigos e o registro inspirado. A tra­
dição oral pode ter tido, um papel muito importante antes da invenção da
escrita. Histórias que passavam de pai para filho podiam passar às gerações
subseqüentes importantes revelações de Deus. E provável que Adão tenha
transmitido revelações que ele havia recebido diretamente de Deus a seus
filhos, e estes às gerações seguintes. Desse modo, o conhecimento a respei­
to do Jardim do Éden, da expulsão do Jardim, da torre de Babel, do Dilú­
vio, provavelmente foi transmitido de pai para filho, tendo assim chegado
até Moisés, que escreveu o Pentateuco (Js 4.6, 21). Isso explicaria o fato de
haver relatos antigos em outras culturas primitivas, que são semelhantes
aos relatos bíblicos da criação e do dilúvio. E importante, porém, que seja
observado que essas tradições podem, muitas vezes, ter sido corrompidas
ao longo da História. De qualquer modo, isso não significa que Moisés e os
outros escritores bíblicos tenham feito os seus registros sobre a base exclu­
siva dessas tradições. É possível que as tradições tenham colaborado, mas
foi a inspiração divina que garantiu que fosse registrada a pura e exclusiva
verdade divina.
Quanto à tradição escrita, sabe-se que há muitos escritos antigos que
não são bíblicos, mas que eram tidos em grande consideração e, por certo,
continham dados históricos bastante precisos. Esses livros podem ter sido
usados como ajuda no processo de registro da Escritura. São exemplos
bem claros disso os seguintes: o Livro das Guerras do S e n h o r (Nm 21.14),
o Livro dos Justos (Js 10.13; 2Sm 1.18), o Livro das Crônicas de Samuel, o
vidente; Natã, o vidente; e Gade, o vidente (lC r 29.29), o Livro da História
de Salomão (lRs 11.41), o Livro da História de Semaías, o profeta e de Ido,
o vidente (2Cr 12,15). Nenhum desses livros existe mais, mas eles foram
úteis no registro da revelação de Deus,
A revelação de Deus 19

Um excelente exemplo do uso de tradições escritas e orais para o regis­


tro da revelação de Deus vem do Novo Testamento, mais precisamente dos
escritos de Lucas! Ele escreve: “Visto que muitos houve que empreende­
ram uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, con­
forme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas
oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois
de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito,
excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena
certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.1-4). Lucas diz clara­
mente que tinha conhecimento de outros escritos que relatavam a vida de
Jesus, e que fez uma longa e acurada pesquisa histórica para relatar os fatos.
Isso em hipótese alguma tornou desnecessária a inspiração, mas a pesquisa
de Lucas transparece no texto, pois, de fato, Lucas é o que tem mais deta­
lhes da vida de Jesus, especialmente do seu nascimento e infância.

0 proces so de seleção

Nem toda revelação de Deus foi registrada. Deus superintendeu todo o


processo de seleção, para que fosse guardado para a posteridade o que ele
julgou mais importante. Grandes porções de revelação divina se perderam
ao longo da História. Possivelmente fossem revelações apropriadas para
uma determinada época, mas que Deus não julgou relevantes para a poste­
ridade (IR 4.32; Nm 11.26-29; lR s 22.5-28; Jr 36.1-3, 27-28; Jo 20.30-31;
21.25). Pelo menos duas das cartas do apóstolo Paulo também se perde­
ram. Ele diz ter escrito uma carta anterior aos Coríntios (ICo 5.9) e outra
para a igreja de Laodicéia (Cl 4.16). Possivelmente elas fossem aplicáveis
apenas à situação dessas igrejas, ou quem sabe, muito semelhantes a outras
cartas de Paulo. O fato é que não temos como saber o motivo de o Espírito
não ter preservado essas cartas para a posteridade. Só podemos dizer que
Deus, no seu processo de seleção, não julgou que elas, assim como muitas
outras revelações que não chegaram até nós, fossem necessárias.

Evidência bíblica da inspiração


As principais evidências da inspiração da Bíblia são internas, ou seja, pro­
vêm da própria Bíblia. A Bíblia reclama para si a inspiração divina: “Toda a
Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3.16), disse o apóstolo Paulo. Pedro
diz com relação aos escritores bíblicos: “Homens [santos] de Deus falaram
inspirados pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). Os escritores do Antigo Testa-
20 R azão da esperança

mento tinham a convicção de que escreviam a Palavra de Deus (Dt 4.2; Am


3.7). O Novo Testamento claramente reconhece a autoridade divina do
Antigo Testamento em todas as citações que faz dele, e na consciência de
inspiração de seus próprios autores (Jo 20.30,31; At 4.25; 7.37,38; 28.25,26;
ICo 2.13; 7.10,12,17,40; 2Co 13.13; G13.8; lTs 2.13; 2Tm 3.16,17; Hb 1.1;
Tg 4.5; IPe 1.12; 2Pe 1.19-21). Jesus deu testemunho de que a Escritura do
Antigo Testamento era a Palavra de Deus (Mt 5.17-20; Jo 10.33-36; Mt
10.19,20; Jo 16.7,13). Além disso, os escritores do Novo Testamento de­
monstram ter consciência da inspiração dos outros escritores do Novo
Testamento (lTm 5.18; Lc 10.7; 2Pe 3.16).
Do mesmo modo, há evidências externas da inspiração da Bíblia, e quan­
to a isso existem muitos argumentos. Por exemplo, a credibilidade da Bí­
blia; suas histórias têm sido comprovadas cientificamente como verdadei­
ras; as descobertas arqueológicas não conseguem provar que a Bíblia esteja
errada, ao contrário a confirmam. A sobriedade das Escrituras é outro ar­
gumento em favor de sua inspiração; apesar de ser um livro tão antigo, ele
não contém nenhum absurdo; todos os livros religiosos antigos dos chine­
ses, dos árabes, dos persas, dos hindus, dos gregos, etc., estão cheios de
superstições e erros históricos, geográficos e científicos; a Bíblia, porém,
não afirma absurdos sobre o sol, a terra, ou as estrelas como aqueles livros
ensinam, ao contrário, seus ensinamentos são precisos (Jó 26.7; SI 135.7;
Ec 1.7; Is 40.22). O mesmo pode ser dito de sua coerência e unidade. E
difícil imaginar um livro escrito por mais de quarenta autores diferentes
num espaço de mais de 1.500 anos, que conte uma história homogênea,
com começo, meio e fim. A Bíblia é esse livro.

Teorias a respeito da inspiração


Dissemos que a inspiração é uma obra divina que conta com a participa­
ção humana. Uma das coisas mais difíceis de explicar é justamente esse
relacionamento entre o aspecto divino e o aspecto humano na inspiração.
Qual é a função de cada parte? Algumas teorias foram formuladas a respei­
to desse processo.

In spiração m e c â n i c a

Essa teoria concebe o ato da inspiração como um tipo de ditado divino.


Desse modo, Deus teria ditado literalmente todas as palavras que foram
A revelação de Deus 21

registradas. Ao homem não coube qualquer participação emocional ou in­


teligente na obra. Ele foi apenas um instrumento, praticamente inanimado,
que Deus usou para registrar a sua Palavra. Essa teoria lembra um pouco a
idéia espírita da “psicografia”. Ela torna a Bíblia um livro totalmente divi­
no, um tipo de “telegrama celestial”. A principal falha dessa teoria pode ser
verificada ao se observar que a Bíblia não tem uma uniformidade literária.
E difícil conciliar a idéia de ditado divino com a percepção de que há aspec­
tos variados e estilos pessoais na Bíblia. Se tudo tivesse sido “ditado”, deve­
ria haver uma uniformidade de estilo, o que não ocorre. Geralmente, os
estudiosos rotulados de “fundamentalistas” advogam essa teoria. Os
“fundamentalistas” são os mais radicais na defesa do conservadorismo bí­
blico. A intenção é boa, mas para evitar qualquer possibilidade de erro, eles
concebem a inspiração como um ditado. Assim, a Bíblia seria totalmente
divina. Entretanto, essa teoria não nos parece fazer justiça ao caráter literá­
rio da Bíblia.

Inspiração m e n t a l

Essa teoria é praticamente o oposto da teoria da inspiração mecânica.


Muitos autores que se dizem ortodoxos defendem a idéia de que os pensa­
mentos dos autores foram inspirados, mas que eles foram livres para regis­
trar as suas idéias. A inspiração mental advoga inspiração apenas dos concei­
tos e não das palavras. Essa idéia encontra maior aceitação no liberalismo
teológico. Uma vez que os teólogos liberais têm dificuldades para acreditar
que Deus se revelou por meio de atos e principalmente de palavras, eles
preferem pensar que o autor teve um tipo de “elevação” em seu raciocínio,
que, então, pode ser considerado inspirado. Essa idéia elimina completa­
mente a noção de uma ação direta do Espírito sobre os homens na produção
dos livros da Bíblia. O autor bíblico seria inspirado como qualquer outro
autor o pode ser na composição de uma poesia ou de uma música. Desse
modo, Deus não é o autor da Bíblia, ele apenas é a fonte da vida dos autores
bíblicos que falaram, com palavras imperfeitas, o que vem de Deus. No con­
ceito mental de inspiração, a Bíblia está condicionada à cultura de cada povo,
e às vezes não passa do registro da experiência religiosa de um povo numa
determinada situação. Porém, pode haver momentos em que o escritor ele­
vou-se acima de si mesmo, tendo produzido algo que pode ser considerado
divino. Nesse sentido, às vezes os partidários do liberalismo dizem que só
algumas partes da Bíblia seriam a “pura” Palavra, e o restante palavra de
homens. Daí o método “desrespeitoso” com que eles abordam a Bíblia, ain­
22 Razão da esperança

da que prefiram dizer “científico”, procurando aqui ou ali indicações de im­


precisões ou pistas que os remetam a outras situações históricas, que consi­
deram mais importantes e dignas de crédito do que o que a Bíblia relata.
Essa teoria não faz justiça ao que a Bíblia representa para a fé cristã.

Inspi ração d i n â m ic a ou orgâ nica


Essa teoria diz que a Bíblia é ao mesmo tempo divina e humana. O
Espírito Santo usou homens como organismos vivos e não como meras
máquinas. Deus não ditou palavras para serem escritas, e nem simplesmen­
te os homens tiveram “elevações” que os levaram a fazer registros. Deus
agiu no ser hum ano usando todos os recursos pessoais, superintendendo
todo o processo, de modo a garantir a veracidade absoluta dos escritos.
Assim, esses escritos podem ser considerados humanos, porque foram pro­
duzidos por homens, e também divinos, na medida em que eles foram ori­
entados pelo Espírito Santo. O Espírito usou um homem da corte como
Isaías, um boiadeiro como Amós, um músico como Davi, um sábio como
Salomão, um general como Josué, um homem formado na corte egípcia
como Moisés, um pescador como Pedro, um erudito como Paulo, um mé­
dico como Lucas ou um cobrador de impostos como Mateus. Os estilos
podem ser diferentes, mas o resultado final é o mesmo. O Espírito fez uso
das faculdades humanas, adequando-as, para que o produto final, embora
contendo traços do perfil humano, fosse a exata expressão da vontade de
Deus. Deus usou os recursos humanos, como por exemplo, a capacidade
de pesquisa, o raciocínio, a arte ou a musicalidade de uma pessoa, mas,
superintendeu todo o processo a fim de que a sua vontade fosse expressa­
mente revelada. Há uma idéia de cooperação, pois Deus age no homem,
dirigindo-o, controlando-o, como que energizando-o, de tal modo que, como
seu instrumento, ele fica acima de si mesmo, pois escreve algo que nunca
conseguiria sozinho. Deus fala a mesma coisa de maneira diferente e por
autores diferentes. O produto final é a sua palavra inspirada e inerrante.
Essa é a concepção conservadora de inspiração. Ela evita os extremos das
duas anteriores, e faz justiça ao ensino e ao caráter das Escrituras.

A inerrância da Escritura
Quando se diz que a Bíblia é inerrante, isso quer dizer que em tudo o
que a Bíblia ensina, seja religioso, moral, social ou físico, ela é absolutamen­
A revelação de Deus 23

te verdadeira e livre de erros (SI 119.142,160; Pv 30.5,6; Mt 5.17-20; Jo


10.34,35; 17.17). Isso não significa que a Escritura diga toda a verdade sobre
tudo o que ensina, mas que em tudo o que ensina ela diz a verdade. Muitos
defendem uma inerrância limitada (inspiração parcial). Desse modo, a Es­
critura seria infalível apenas nas questões de fé e prática no que diz respeito
ã salvação, e nas demais poderia ter falhas. Porém, como acreditar que ela
possa falar a verdade sobre um assunto e mentir sobre outro? Além disso,
desse modo, a base histórica da salvação poderia ser retirada (2Tm 3.16; SI
12.6; SI 119.96; Rm 15.4).
A inspiração da Bíblia não exige que ela use linguagem científica em
suas afirmações. A linguagem da Bíblia é a linguagem do homem comum.
Nesse sentido, a Bíblia diz que o Sol gira ao redor da terra, que o vento
sopra, e outras afirmações fenomenológicas, ou seja, que podem ser vistas
da perspectiva comum. Deve ser entendido que a Bíblia não pretende ser
um compêndio de química, física ou geografia, e, portanto, ela não tem
necessidade de empregar as linguagens próprias dessas ciências, A inerrân­
cia também não exige uma estrita conformidade com as regras da gramáti­
ca. Aos melhores escritores é permitido “errar” em troca da comunicação.
O próprio uso de figuras de linguagem, como a hipérbole (exageros), a
sinédoque (o menor pelo maior) e a metonímia (um nome por outro), não
compromete a doutrina da inerrância. No contexto da inerrância, os gêne­
ros literários da Bíblia, como o poético ou o apocalíptico, precisam ser
entendidos a partir de suas peculiaridades. As imagens fabulosas e fantasiosas
são condicionadas ao seu próprio gênero, e devem ser consideradas a partir
de sua interpretação, e não da perspectiva literal. O fato de a Bíblia não dar
explicações científicas completas sobre geografia ou geologia não implica
que haja alguma imprecisão. Esse seria o caso se as informações fossem
falsas, mas se são limitadas, ainda assim são verdadeiras.
Nem mesmo as citações imprecisas da Escritura do Antigo Testamento
no Novo Testamento podem ser consideradas como erros. Quando o An­
tigo Testamento era citado, era necessário que ele fosse traduzido, e toda
tradução envolve muitas variantes. Além disso, citações livres sempre fize­
ram parte da produção literária antiga. Do mesmo modo, não precisamos
que as palavras de Jesus, conforme foram registradas na Escritura pelos
evangelistas, contenham a ipsissima verba (palavras exatas), mas a ipsissima
vox (voz exata). Ou seja, o que importa é o significado preciso, e não neces­
sariamente, as palavras exatas. Os apóstolos registraram fielmente o que
Jesus ensinou, mas precisa ser lembrado que muitas palavras de Jesus fo­
ram ditas em aramaico e os evangelhos foram escritos em grego, portanto,
24 Razão da esperança

sempre houve necessidade de adaptações. Do mesmo modo, as palavras


de Pedro, de Paulo, ou dos demais apóstolos, quando foram registradas
por Lucas, por exemplo, não foram necessariamente citações literais dos
seus sermões, pois é compreensível que Lucas tenha feito resumos dessas
preleções; no entanto, elas representam perfeitamente o significado pre­
tendido pelos apóstolos.
A inerrância também não exige exatidão nos números. Quando lemos
que cinco mil pessoas estavam presentes num determinado evento, trata-se
de um valor aproximado, mas não há necessidade de que se conte uma por
uma. Geralmente é apontado como erró o fato de um evangelista dizer que
havia uma pessoa numa determinada casa, enquanto que o outro evangelis­
ta diz que havia duas. Muitas coisas poderiam explicar essa aparente diver­
gência. Os dois poderiam não ter contado as pessoas no mesmo momento,
ou cada um registrou o que viu num determinado momento, o que não
implica necessariamente num erro.
Finalmente, deve ser entendido que a inerrância se refere apenas aos au­
tógrafos.7 Quanto ao argumento de que, se somente eram inerrantes os au­
tógrafos originais, e nenhum deles existe mais, falar em inerrância não tem
muito sentido, respondemos que, de fato não temos mais os originais, po­
rém, pela comparação entre todas as cópias (variantes), pode-se concluir que
as cópias concordam em 99% de tudo o que elas tratam, e nenhum caso
sério de doutrina seria afetado pelas variantes. Além do mais, se o Espírito
Santo inspirou os escritos, ele não poderia preservar com fidelidade o que
estava escrito neles? Podemos concluir que, apesar de todos os seus esfor­
ços, os críticos não têm conseguido provar que a Bíblia contenha erros.

A suficiência da Escritura
Com relação ao tema da suficiência da Escritura, é preciso entender que,
na fé reformada, somente a Escritura é a regra de fé e prática. Não há outra
fonte na qual o cristão possa encontrar orientações infalíveis para a sua
vida. A tradição, embora considerada na teologia, não pode ser comparada
com a Escritura. Uma pergunta que normalmente surge quando se pensa
em suficiência da Escritura é: “Ainda há revelação divina hoje?” Nossa po­
sição é que não há mais revelações de Deus hoje, pelo menos não em pé de
igualdade com a Bíblia. Entretanto, deve ser dito que a revelação de Deus
continua hoje. Deus se revelou na criação, e essa criação continua apontan­
do para Deus. A providência, que é a continuação da criação, ou seja, a
 revelação de Deus 25

maneira como ele dirige a História e o mundo, também o revela, Porém,


isso não quer dizer que exista uma “nova” revelação de Deus. Trata-se da
mesma revelação do início, porém sempre sendo percebida de formas dife­
rentes. A Escritura também é a mesma, mas cada vez que vamos até ela
descobrimos coisas novas, em forma de aplicações diferentes para a nossa
vida. Deus continua se revelando, portanto, por meio da criação (revelação
geral) e por meio da Escritura (revelação especial). Essa última é a principal
fonte de conhecimento, especialmente da salvação.
Embora cada parte da Bíblia tenha sido escrita numa determinada épo­
ca, ela nunca esteve limitada ao tempo. De fato, Deus se revelou no passa­
do, mas a mensagem continua significativa para as pessoas de hoje e de
sempre. Deus é o mesmo e sua Palavra também. A mesma denúncia do
pecado e o mesmo chamado ao arrependimento dirigido às pessoas dos
tempos bíblicos vale para hoje. Embora tenha havido muito progresso no
mundo, as pessoas ainda são as mesmas e o pecado ainda é o mesmo, pois
ele continua dominando a sociedade. Do mesmo modo, as necessidades
são as mesmas, assim como a solução.
Desde a sua fundação, a Igreja Católica Romana sustenta outra fonte
de autoridade em pé de igualdade com a Escritura: A tradição. O catoli­
cismo entende que a igreja deu origem à Bíblia, e não que a Bíblia tenha
dado origem à igreja, e, portanto, das duas, a igreja tem a prioridade. Essa
é a base para a defesa de muitas doutrinas que foram criadas pelos concí­
lios, ainda que não tenham embasamento escriturístico. A Reforma repu­
diou a teoria da dupla autoridade. No pensamento reformado, a Escritura
tem a primazia. Esta questão de outra fonte de autoridade continua sen­
do um problema nos dias atuais, não apenas para Roma, mas também
para os evangélicos. E nem é preciso pensar em casos extremos como o
dos mórmons, que sustentam outro livro como fonte de autoridade, pois
o subjetivismo evangélico coloca a autoridade no “Deus me falou”. As
vezes, quando crentes conservadores dizem que nada além da Bíblia é
necessário para o crescimento espiritual, eles são taxados de “frios” e
insensíveis à atuação do Espírito. Porém, é a própria Bíblia quem afirma
essa suficiência. Paulo escreveu a Timóteo: “Toda a Escritura é inspirada
por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a
educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfei­
tamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). De acordo com
essa passagem, tudo o que uma pessoa precisa para atingir o nível espiri­
tual máximo nesta vida pode ser encontrado na Escritura. Portanto, a
Escritura é suficiente.
26 Razão da esperança

Todas essas considerações devem levar o estudante de teologia a uma


atitude de reverência para com a Bíblia. Não podemos nos aproximar dela
como juizes, e sim como servos. Estudar a Escritura precisa ser fonte de
vida devocional e aprimoramento do relacionamento espiritual com Deus.
O Deus da Escritura é o Deus que deseja estreitar o relacionamento da
Aliança com o seu povo. Ele se revelou nessas antigas páginas porque dese­
ja que o conheçamos melhor, e para que o amemos com mais intensidade.
Ao estudarmos essas “sagradas letras”, podemos ter a certeza de que estamos
nos aprofundando em algo não apenas sagrado, mas confiável, e que pode
aumentar a nossa sabedoria, o nosso vigor espiritual e a nossa esperança.
2

Deus existe?1

A pergunta que serve de título para este capítulo pode soar estranha
numa obra de teologia. Porém, trata-se de uma pergunta que os incrédulos
fazem e, talvez, algumas vezes até os crentes. De início, é preciso que se
diga que a existência de Deus é a grande afirmação pressuposta pela Bíblia.
A Bíblia não tenta provar a existência de Deus, ela simplesmente a assume
como um fato. O excelente teólogo reformado Louis Berkhof afirma: “Para
nós a existência de Deus é a grande pressuposição da teologia”.2 De fato,
nenhum teólogo poderia negar a existência de Deus, pois isso o faria auto­
maticamente ficar sem profissão. Porém, ao longo da História, filósofos e
teólogos têm debatido sobre a questão sobre se a mente humana pode ter
certeza da existência divina. Será que a existência de Deus é algo que deve
ser aceito somente pela fé? Ou será que é possível, a partir da razão e de
argumentos racionais, provar a existência de Deus?
Desde já é preciso que se admita que a fé é absolutamente necessária
para que se aceite a existência de Deus. Mas o ponto a ser discutido é: Esta
fé se baseia em quê? Além do mais, o que poderia ser excluído desse princí­
pio? Quando é que a fé não é necessária? Será que temos provas suficientes
para todas as nossas crenças, sejam religiosas, científicas ou morais? O fato
é que cremos. Crer nada mais é do que exercitar a fé. Nesse sentido, os
defensores de muitas teorias científicas modernas talvez sejam os mais cren­
tes. Eles acreditam em teorias, defendem essas teorias fanaticamente, e ela­
boram outras teorias com base nelas, O fato é que o ser humano decide em
que crê e em que não crê. Uma pessoa pode ter todas as provas diante de si,
e ainda assim negar a realidade de algum fato, desde que não queira acreditar
nesse fato. Isso pode ser visto facilmente em tempos de eleição para cargos
políticos, ou nos tribunais. Por outro lado, quando alguém deseja crer, nada
o faz mudar de idéia, ainda que as provas sejam escassas. Uma coisa precisa
ficar clara: mesmo que existissem provas explícitas da existência de Deus,
as pessoas não deixariam de negar a existência dele. A questão deste capítu­
lo não é a existência da fé em Deus, mas sim a racionalidade dessa fé. Crer
28 Razão da esperança

irracionalmente não é uma fé saudável. A diferenciação que se pretende


estabelecer aqui é que todos se guiam por algum tipo de fé, mas a fé autên­
tica é a que tem bases sólidas. Mas isso não quer dizer que a razão será o
árbitro da fé, como se pretendia no Iluminismo. O único árbitro da fé é a
revelação. A revelação é a base sólida sobre a qual edificar a fé.

Naturalismo irracional
O naturalismo está na moda neste mundo moderno. Tudo o que é da
“natureza” é automaticamente mais aceito. As pessoas cultuam a mãe natu­
reza, e procuram soluções “naturais” para os seus problemas. A existência
humana também tem sido explicada a partir de elementos naturais. Nesse
sentido, evoluáonismo e naturalismo são sinônimos. Trata-se da tentativa hu­
mana de explicar a existência do ser humano sem precisar apelar para o
sobrenatural, para o divino.

S em sentido

Porém, que sentido teria a vida se não existisse um Deus? Se imaginar­


mos que tudo é obra do acaso, se acreditarmos nas teorias naturalistas e
aceitarmos que tudo o que existe é produto da evolução, no final das contas
teríamos que dizer que não viemos de lugar algum e nem vamos para lugar
nenhum. Seríamos apenas fruto de um acidente cósmico, de um tipo de
conspiração molecular inanimada. Um dia, a matéria morta, por algum
motivo ignorado, tornou-se animada. Depois de passar por um longo pro­
cesso evolutivo, ela tornou-se o que somos hoje. E preciso entender, po­
rém, que não houve propósito algum nisso tudo. Foi apenas obra do acaso;
de um terrível e impessoal acaso que pode se inclinar para qualquer lado, de
maneira que se alguém viver até ultrapassar os 100 anos, ou morrer daqui a
alguns minutos vítima de uma bala perdida, essa vida terá sido sem qual­
quer ordem ou propósito. Esse rolo compressor chamado “acaso” passa
por cima de todos, sem levar em conta sentimentos, sonhos, planos ou
desejos. De qualquer modo, não fará diferença viver cem anos ou um mi­
nuto, pois o destino de todos é o mesmo: nenhum. Sob essa sombra, não
faz diferença o cultivo das virtudes ou a prática dos excessos. Ajudar ou
prejudicar, matar ou dar vida, ser honesto ou desonesto, são apenas lados
de uma mesma moeda, uma vez que, depois do túmulo, para onde todos
vão, não há recompensas ou punições, louvores ou vaias. Se não existe um
Deus existe? 29

Deus que tenha propósitos para este mundo e para a vida do ser humano,
então não existe razão, não existe esperança, e nada faz sentido. A con­
clusão lógica e única a que se pode chegar a partir de uma concepção
desse tipo é que não vale a pena viver, pois a vida não tem sentido. Não é
de admirar o desespero de homens e mulheres que se negam a crer na
existência de Deus. De fato, como diz Schaeffer, eles baixaram a linha do
desespero,3 Já não existe mais nada lógico nem coerente. Tudo se tornou
irracional. Eis a razão do estado caótico do mundo moderno, que cons­
truiu o seu modo de vida sobre esse frágil alicerce chamado “acaso”. O
assoalho debaixo dos nossos pés treme porque o grande princípio
sustentador da sociedade foi retirado. Deus foi destronado e, no seu lugar,
foi colocado o acaso.

Irracion alism o p u r o

O naturalismo é uma das maiores forças que o teísmo4 já enfrentou.


Definimos naturalismo como o conjunto de teorias que, de um modo ou
de outro, defende o evolucionismo como explicação para a vida. A tese
principal do naturalismo é que não existe uma causa absoluta para a exis­
tência de todas as coisas. Uma definição clássica do naturalismo é: “O ho­
mem é o produto de causas que não tinham previsão de fim para o que
foram feitas; sua origem, seu crescimento, suas esperanças e seus medos,
seus amores e suas crenças, são conseqüências de acidentais colocações de
átomos”.5 Desse modo, a vida surgiu necessariamente da própria matéria
inanimada, sendo que, de alguma maneira, a matéria, nos primórdios da
vida, foi energizada a tal ponto que, inexplicavelmente, se transformou em
matéria animada. Mediante um vagaroso processo evolutivo, sempre im­
pulsionado pelo “comportamento adaptativo”, o ser humano veio a ser o
que é hoje. Esse comportamento adaptativo é a chave para entendermos
a evolução. Foi ele que selecionou naturalmente o que deveria mudar no
ser humano, a fim de que ele pudesse sobreviver. Se, para a sobrevivência,
é melhor ter dois braços, então, o processo de adaptação desenvolveu
dois braços. O próprio cérebro humano é fruto desse desenvolvimento.
O cérebro se desenvolveu para garantir a sobrevivência da espécie. Nesse
sentido, o homem continuará evoluindo e sempre se adaptando às neces­
sidades do seu habitat natural. Se, no futuro, as pernas não forem neces­
sárias, elas poderão deixar de existir, e no lugar delas, talvez nasçam asas.
De qualquer modo, o ser humano sempre se adaptará para garantir uma
sobrevivência melhor.
30 Razão da esperança

A questão que surge é a seguinte: será que o naturalismo é racional? Em


última instância, podemos dizer que o naturalismo também é uma questão
de fé. Os cientistas não têm provas concretas do que dizem, mas eles crêem
que é verdadeiro. Kuyper argumenta que “toda ciência, num certo grau, par­
te da fé”, pois “toda ciência pressupõe fé em si”,6 ou seja, para continuar a
defender a posição naturalista é necessário acreditar que ela é verdadeira,
apesar da escassez de provas, e isso é fé. A primeira observação que pode ser
feita a respeito do naturalismo é que a sua base é extremamente frágil. Ele
tem uma belíssima estrutura, mas os seus pés são de barro. Uma pergunta
sempre ficará sem resposta no naturalismo: Qual é a causa última de todas as
coisas? Só há uma resposta: o nada. Essa não é uma resposta muito convin­
cente, mas não há outra. Ou o naturalista faz o sacrifício mental e diz que é
o nada, ou cai no desvario de dizer que a matéria é eterna. Nesse ponto só
resta para o naturalismo a irracionalidade. Não há saídas. A única maneira
que a ciência tem para se manter racional é admitir que Deus existe, e que,
como diz Kuyper, “o cosmos não se torna vítima dos caprichos do acaso,
mas que existe e desenvolve-se a partir de um princípio, segundo uma ordem
estável, visando a um plano fixado”.7 Esse princípio somente pode ser Deus.
O famoso big-bang não pode ser esse princípio, pois é preciso que a causa
última de todas as coisas seja uma “causa em si mesma”. Se ela não for a
causa de si mesma terá que ter outra causa, e a outra por sua vez outra, e
assim até o infinito. Kuyper está mais uma vez certo ao afirmar que:

Sem uma profunda convicção dessa unidade, estabilidade e ordem, a ciên­


cia é incapaz de ir além de meras conjecturas. Somente quando há fé na
conexão orgânica do Universo, haverá também a possibilidade para a ciên­
cia subir da investigação empírica dos fenômenos especiais para o geral, e
do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei para o princípio que
domina sobre tudo.8

Ao excluir Deus, o naturalismo se tornou irracional, pois excluiu o prin­


cípio. Ele caiu num círculo vicioso de teorias que precisam comprovar ou­
tras teorias, como se uma mentira pudesse fazer com que outra mentira se
tornasse verdade.
O naturalismo é um sistema contraditório, e a nossa própria estrutura
intelectual e a lógica, como uma elaboração daquela, nos ensinam a não
crer em contradições: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não é
possível acreditar em algo que desmente a si mesmo. Alguns tipos de racio­
cínios são um tipo de “bomba-relógio”, pois se autodestroem. A máxima
do modernismo, por exemplo, era que “toda verdade precisa ser verificável”.
Deus existe? 31

Durante muito tempo as pessoas acreditaram que, com essa afirmação, elas
tinham chegado ao máximo do saber. Até que alguém levantou a seguinte
questão: se toda verdade precisa ser verificável para que seja verdade, então,
essa verdade (a própria declaração) também precisa ser verificável. Se não
há como verificá-la, não há como comprová-la e, então, ela é falsa. Assim,
se é verdade que “toda verdade precisa ser verificável”, então não é verdade
que toda verdade precisa ser verificável. O mesmo pode ser dito do pós-
modernismo que apregoa: “Não existem absolutos”. Se não existem abso­
lutos, então essa própria afirmação não pode ser um absoluto. Esses são
exemplos de argumentos autodestrutivos, aos quais Aristóteles, se os co­
nhecesse, teria cham ado de sofism as. O naturalism o tam bém é
autodestrutivo. Alvin Plantinga, um filósofo reformado norte-americano,
expôs o argumento da seguinte maneira:9 1) Se o naturalismo é verdadeiro,
então a nossa mente é um produto da evolução. 2) A evolução seleciona
para a sobrevivência; portanto, a mente foi desenvolvida para a sobrevivên­
cia, não para conhecer a verdade. 3) Se o naturalismo é verdadeiro, não
temos suficientes razões para acreditar que a nossa mente poderia determiná-
lo como verdadeiro, e o agnosticismo,10 portanto, faria mais sentido. Então,
se o naturalismo fosse verdadeiro, nunca poderíamos constatar isso. Por­
tanto, percebe-se que o naturalismo não é uma saída racional para o enigma
da existência do mundo e da vida inteligente. Porém, antes de falar sobre a
explicação teísta, é preciso rebater um argumento bastante usado nos mei­
os acadêmicos para se negar a existência de Deus.

A existência do m a l
Sempre que um ateu tenta argumentar contra a existência de Deus, seu
principal argumento é a existência do mal. O argumento consiste das seguin­
tes partes: 1) Deus existe, ele é onipotente, onisciente e onipresente e, acima
de tudo, bom. 2) Existe o mal. A questão é: Como um Deus bom, todo-
poderoso e onisciente poderia ter permitido que o mal existisse? Portanto,
ou Deus não é bom por permitir tanta maldade neste mundo, ou ele não é
todo-poderoso, nem sabe todas as coisas, pois devido a um erro seu, por
falta de previsão ou de poder, o mal entrou no mundo. A lógica parece
irrefutável: Se existe o mal, Deus não existe, ou no mínimo ele não é bom,
nem todo-poderoso. Algumas soluções para esse problema não ajudam. Se
dissermos que o mal é independente de Deus, então, Deus não é todo-pode-
roso. Se simplesmente dissermos que Deus é o autor do mal, então, ele não
32 Razão da esperança

é bom. Muitos cristãos não têm resposta para essa argumentação. Todavia, a
solução existe.” Se houver uma terceira razão, que possa ser consistente
tanto com a existência de Deus quanto com a existência do mal, então, anu­
laríamos esse argumento. Ou seja, se houver uma razão pela qual Deus, que
é bom, tivesse um bom motivo para tolerar o mal, então, a existência de
Deus e a existência do mal não seriam mutuamente excludentes. Porém, qual
seria essa boa razão pela qual o Deus bom, onisciente, onipresente e onipo­
tente teria permitido o mal? Há uma razão: Para a sua glória. A Escritura diz
que todas as coisas existem para a glória de Deus. Deus manifesta a sua
glória ao permitir que o mal exista, pois ele sabe como lidar com ele. A
existência do mal permite, por exemplo, que Deus demonstre a sua miseri­
córdia. Se o homem não tivesse caído no pecado, jamais conheceria a mise­
ricórdia de Deus na sua plenitude. Deus, que “é amor” (ljo 4.8), demonstra
a intensidade desse amor que o leva a entregar o próprio Filho pelos pecados
dos homens (Jo 3.16). Paulo diz que o fato de Deus ter entregado o seu Filho
para morrer pelos pecadores é a prova do seu amor (Rm 5.8). Se o mal não
existisse, essa prova não seria dada. A encarnação do Filho está intimamente
ligada à existência do mal. Sem o mal, o Logos não precisaria se tornar ho­
mem, e o maior e mais espetacular acontecimento da história do universo
não aconteceria: a encarnação (Jo 1.14). Ainda devemos lembrar que uma
criação testada e aprovada é mais valiosa do que uma criação que jamais foi
testada. Nessa linha de argumentação, podemos dizer que o ser humano, que
uma vez caiu no pecado e experimentou todas as mazelas decorrentes disso,
depois de redimido não terá mais a mínima vontade de pecar.'2 Ainda deve­
mos observar que a qualidade de um objeto deve ser avaliada primariamente
tendo em vista o seu propósito. A criação de Deus, dentro do seu propósito
eterno e soberano, tinha como característica essencial a possibilidade con­
creta e real até mesmo da desobediência a Deus.
Concluímos, então, que a existência do mal não impossibilita a existên­
cia de um Deus bom e todo-poderoso. O mal, como tudo o mais, existe
para a glória de Deus. Entretanto, isso não significa que possamos entender
de modo lógico essa questão. Pela lógica humana, sempre haverá lacunas
em qualquer explicação sobre a existência do mal e a existência de Deus,
Não precisamos nos envergonhar de não ter essas respostas plenas, até
porque, para que isso fosse possível, teríamos que ter uma mente igual a de
Deus. O nosso desejo foi demonstrar que a existência do mal não inviabiliza
a existência de Deus.
De acordo com Schaeffer,13 o Cristianismo é o único sistema de crença
que pode dar a resposta para o enigma da existência do mal, embora essa
Deus exisle? 33

não seja uma resposta puramente racional, pois ela parte da fé. Somente o
Cristianismo pode dar essa resposta, porque somente ele crê na desconti-
nuidade da atual condição do homem. O mal não é algo intrínseco ao ho­
mem. O homem não foi criado essencialmente mau, mas se tornou assim
por um ato da sua vontade. Como vimos, Deus tolerou o mal porque tinha
bons motivos para isso, porém, o mal não é a condição “normal” do ho­
mem. Disso decorre que o mal pode ser combatido no homem, coisa que o
mundo moderno, que vê o mal como algo natural, não pode afirmar, pois
se o homem lutasse contra o mal, estaria lutando contra si mesmo. A evo­
lução poderia levar o homem definitivamente para o lado do mal, desde
que isso garantisse a sobrevivência da espécie. De qualquer modo, para a
evolução não faria qualquer diferença, pois não há mal, nem bem, tudo é
fruto do acaso. No Cristianismo, o mal é um intruso que, não obstante
sirva aos propósitos de Deus, no devido tempo será extirpado. E justamen­
te o seu caráter de intruso que garante que ele pode deixar de existir.14
Ainda trataremos mais a respeito da origem do mal ao longo deste trabalho.

A rgu m entos racionais


Até agora vimos que os grandes argumentos contra a existência de Deus
caem diante de uma análise mais detalhada. Porém, será que só podemos ir
pelo caminho da defesa, ou há argumentos a favor da existência de Deus?
Há muita discussão entre os teólogos sobre se é possível apresentar provas
racionais a respeito da existência de Deus sem o uso da Escritura. O que
deve ser esclarecido é que, se por provas racionais, se entende a idéia de que
elas devem convencer a todos de que Deus existe, ou que sejam o único
instrumento do despertamento espiritual de alguém, então essas provas
não existem. Somente o Espírito Santo, fazendo uso da revelação, pode
convencer alguém da existência de Deus.
Historicamente, alguns argumentos têm sido formulados para defender
a existência de Deus. São argumentos filosóficos, tirados do senso comum.
Vamos considerá-los primeiro, para em seguida darmos uma opinião sobre
os mesmos.15

0 a r g u m e n t o on to ló gic o: A idéia de u m ser sup erior


Segundo esse argumento, uma das coisas que nos leva a pensar que Deus
deve existir é o fato de que todos têm essa idéia em si mesmos. Em geral, a
34 Razão da esperança

idéia que as pessoas fazem de Deus é a de um ser superior e infinito. A


questão é: como noções a respeito de um ser infinito podem surgir na men­
te de seres finitos? O filósofo e matemático francês Descartes (1595-1650)
não conseguia conceber que o homem fosse capaz de criar essas idéias;
para ele, essa idéia necessariamente precisava ter vindo de fora, ou seja, do
próprio Deus. E fato inegável que a crença na existência de um ser superior
é generalizada, e por mais que seja descaracterizada em muitos lugares, isso
não anula a evidência de que ela aponta para algo além de nós mesmos,
Segundo esse argumento, todos imaginam que exista uma divindade, logo
essa divindade deve mesmo existir. Para muitos teólogos e filósofos, o ar­
gumento é convincente, embora deve ficar claro que ele não prova objeti­
vamente a existência de Deus. Porém, não se pode negar que ele dá uma
resposta bastante convincente a uma situação verificável: a idéia do divino
que é comum a todas as pessoas.

O a r g u m e n t o c o s m o ló g i co : Toda causa tem u m efeito

Uma outra idéia comum e aceita entre os homens é que todo efeito
precisa ter uma causa. E dito que uma obra de arte não surge do nada; ela
precisa de um grande artista. Uma das leis da física é que não há efeito sem
causas. Nesse sentido, o mundo criado é o efeito, enquanto o criador, a
causa. Sendo o mundo tão grandioso como é, necessariamente precisa ter
uma causa grandiosa também. Esse argumento vai além do anterior, que
determina apenas a existência de um ser superior, ao demonstrar que esse
ser superior é também infinito, pois só alguém infinito poderia ter criado
um universo tão grande. Popularmente se diz que o universo é infinito, mas
é claro que de modo absoluto isso não é possível. Somente Deus pode ser
infinito, pois a existência de dois infinitos é uma contradição. O universo,
entretanto é enorme, além da compreensão do homem. A existência de um
universo tão grande pressupõe a existência de um Deus ainda maior. Tem
sido apontado que a falha desse argumento é que, se toda causa tem um
efeito, então, Deus também precisaria ter uma causa. A resposta é que Deus
é a causa de si mesmo, ou seja: a causa não causada. Ele é eterno, isto é,
existe desde toda a eternidade. O valor desse argumento está no fato de dar
uma explicação para a origem de todas as coisas, o que nenhuma outra
teoria consegue de forma mais convincente.
Deus existe? 35

0 a r g u m e n t o teleológico: Há p rop ós ito e m tudo o que existe

O mundo não é caótico, ao contrário, em todos os lugares é possível ver


ordem, propósito, organização e harmonia. O mundo revela um senso de
inteligência que não pode ser ignorado. Há muitos exemplos disso: no ciclo
das águas, a chuva faz a água cair sobre a terra, a água corre para o rio, o rio
corre para o mar, o sol faz evaporar a água do mar que sobe até as nuvens,
e das nuvens cai outra vez na terra, e assim o ciclo se reinicia (Ec 1.7). Essa
noção de organização e inteligência pode ser vista nas coisas mais insignifi­
cantes, como na vida dos insetos, e também nas coisas mais sofisticadas,
como na constituição do corpo humano. Toda a simetria, toda a lógica,
toda a harmonia pressupõem uma inteligência maior que planejou tudo. A
organização do universo pressupõe a existência de um ser inteligente e com
propósitos definidos. Esse argumento vai além dos anteriores porque pre­
sume a existência de um ser inteligente e sábio que planejou o universo. No
meio científico moderno este argumento pode ser visto na teoria do cha­
mado “design inteligente”, que é a base do “criacionismo científico”. A
idéia é que pode ser vista na natureza evidência de um desenho inteligente.
Quando se analisa um floco de neve, por exemplo, percebe-se que ele tem
um desenho, mas é um desenho que pode ser explicado através de causas
naturais, como a intensidade do frio, a velocidade e a inclinação do vento,
etc. Mas quando se analisa uma molécula de DNA que compõe o “genoma”
humano, aí estamos diante de uma complexidade que não pode ser explica­
da simplesmente a partir de elementos naturais. Estamos diante de um
“design inteligente”, o que pressupõe um criador inteligente.

0 a r g u m e n t o m or al: Há u m a idéia de m or a l implícita e m todos


Todos os seres humanos têm uma noção de certo e errado. Todos alme­
jam por justiça e se irritam com a injustiça. Essa noção depende muito do
aprendizado que a pessoa recebe durante a vida, mas não totalmente, pois
há um grau em que esse senso é inato em todos os homens. Até mesmo os
piores criminosos tem uma noção de justiça. A questão é: de onde vem essa
noção? A explicação é que a noção é implantada pelo próprio Deus. Hodge
argumenta que “como a imagem do sol refletida de um espelho ou da su­
perfície lisa de um lago nos revela que o sol existe e o que ele é, assim a alma
humana, de modo claro e infalível, revela que Deus existe e o que ele é”.16
Somos criaturas morais. A moral não poderia se originar em nós mesmos;
por isso, deve existir um Deus que a implantou em nós. A evolução não
36 Razão da esperança

consegue explicar a existência dessa moral. Esse argumento vai além dos
anteriores, pois não só diz que Deus existe, que é infinito, que é sábio, mas
que é um ser moral. Até mesmo Kant, que rejeitava os demais argumentos,
aceitava esse, pois entendia que o caminho próprio da religião era o cami­
nho da moral. Para Kant, o homem é um ser moral, e, portanto, deve refle­
tir a vida de um Deus moral.
Não achamos que esses argumentos sejam provas definitivas de que
Deus existe. Como já dissemos, em última instância, a fé é necessária para
que se creia na existência de Deus. De qualquer modo, esses argumentos
são úteis para nos ajudar a entender que não é irracional crer na existência
de Deus. Grudem pensa que o “o valor dessas provas reside principalmen­
te na superação de algumas objeções intelectuais dos descrentes”,17 e pode­
mos acrescentar que elas são úteis para demonstrar a racionalidade da fé.
Portanto, elas não provam que Deus existe, mas provam que a fé em Deus
é razoável, ou seja, que a fé é racional.

Apelo íntim o
Quando as pessoas olham para a natureza, algo acontece dentro delas.
Ninguém, por mais indiferente que seja, consegue olhar para as obras da
natureza sem sentir nada. Ela fala algo. Nem sempre as pessoas conseguem
entender, e muitas vezes distorcem essa voz, mas é inegável que elas a ou­
vem.18 A Escritura diz: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firma­
mento anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma
noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há pala­
vras, e deles não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz
ouvir a sua voz” (SI 19.1-4). A voz da natureza proclama a existência e a
glória do Deus criador. O que se percebe nos chamados argumentos racio­
nais é, na verdade, uma sistematização dos efeitos que a natureza produz
nas pessoas quando elas a contemplam. A voz da natureza proclama, sem
usar palavras, a existência de Deus. Como já foi dito, essa voz é tão alta que
ninguém consegue fechar os ouvidos a ponto de suprimi-la totalmente. A
razão disso é porque há um eco dessa voz dentro das pessoas. O Eclesiastes
diz que Deus “pôs a eternidade no coração do homem” (Ec 3.11), ou seja,
existe algo dentro do ser humano que assegura a existência de Deus. E por
isso que nada satisfaz ao homem nesta terra. Por mais que ande atrás de
prazeres e realizações, e consiga tudo o que quer, ao final, se ele parar para
pensar, chegará à conclusão de que tudo não passou de “vaidade e correr
Deus existe? 37

atrás do vento” (Ec 2.11). Deus pôs a eternidade dentro do homem, ou


seja, o homem foi feito para mais do que se pode conseguir aqui. O que é
esse anseio íntimo natural em todos os homens, senão uma comprovação
do que disse Agostinho: “Criaste-nos para vós e o nosso coração vive in­
quieto enquanto não repousa em vós”?19 O simples fato de os homens
buscarem com tanto empenho algo que os satisfaça, que os torne felizes é
uma indicação da existência de Deus. No fundo, eles estão procurando a
Deus. Procuram-no nos lugares errados, parecem cegos “tateando” a fim
de encontrá-lo (At 17.27). Por outro lado, ao mesmo tempo em que o bus­
cam, fogem dele; ao mesmo tempo em que desejam vê-lo e ouvir a sua voz,
agem como Adão, que se escondeu envergonhado por entre as árvores,
temeroso de que Deus visse a sua nudez (Gn 3.8-10).
Ainda no século 16, o Reformador João Calvino falou de um sentimen­
to natural no homem com respeito a Deus. Ele desenvolveu a idéia de que
todos os homens têm um sentimento inato sobre a existência de Deus, e o
chamou de sensus divinitatis (senso da divindade). Segundo o reformador,
esse senso vem acompanhado de um sentimento de adoração à divindade,
ao qual chamou de semem religiones (semente da religião). Com isso, Calvino
não estava querendo afirmar que os seres humanos, à parte da Escritura,
possuam um conhecimento correto a respeito de Deus, mas, que embora
cegos, eles possuem um conhecimento que é deturpado, tanto por sua ce­
gueira, quanto por sua maldade. O reformador disse: “Pois, ainda que Deus
nos represente com tanta claridade quanto possível, no espelho de suas
obras, tanto a si mesmo como a seu reino eterno, sem dúvida, nós somos
tão rudes, que caímos como tontos e não nos aproveitamos de testemu­
nhos tão claros”.20 No entendimento de Calvino, há coisas externas e inter­
nas que fazem apelos ao homem a respeito da existência de Deus.
Que esse sentimento de religiosidade é natural no ser humano pode ser
comprovado pelo simples fato de que todos os homens são naturalmente
religiosos. A tribo mais longínqua e isolada do planeta terá alguma organi­
zação religiosa. Uma pessoa pode crescer solitária em algum lugar, mas em
algum momento desenvolverá ídolos para adorar. A questão é que os argu­
mentos racionais, citados acima, só fazem sentido porque encontram den­
tro das pessoas essas “impressões” de Deus. Como Plantinga afirma: “Não
é que alguém contemple o céu estrelado, observe a sua grandeza, e conclua
que precisa existir uma pessoa como Deus”.21 E mais do que isso, é como
se houvesse um gatilho lá dentro, e quando se olha para as maravilhas da
natureza, esse gatilho é disparado. O ateu passa a vida inteira lutando con­
tra isso, e os demais seres humanos fugindo disso. Porém, embora o ser
38 Razão da esperança

humano se confunda ao ouvir a voz da natureza e o eco dentro de si mes­


mo, não dá para negar que a voz está lá, reconhecível até para o mais endu­
recido, que não poderá jamais alegar ignorância diante de Deus. A Escritura
é clara: “Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como
Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21). A natu­
reza clama pela existência de Deus, o nosso ser íntimo clama pela existência
de Deus, então, por que duvidar que Deus existe? A existência de Deus é a
resposta mais convincente e racional para a origem da vida, e de todas as
demais coisas. Porém, como dissemos no início deste capítulo, as pessoas
sempre duvidarão da existência de Deus, ainda que todas as evidências apon­
tem no sentido contrário. Isso acontece porque, em última instância, o úni­
co que pode convencer alguém da existência de Deus é o Espírito Santo,
que faz uso da revelação divina, a Escritura, e abre os olhos dos homens
para que vejam as maravilhas da graça de Deus.

Deus existe! A única resposta


Francis Schaeffer chegou a uma conclusão admirável sobre a necessidade
da existência de Deus: “Ele existe. Não há outra resposta e os cristãos ortodo­
xos devem sentir-se envergonhados de terem sido defensivos por tanto tem­
po. Não é tempo de sermos defensivos. Não há outra resposta possível”.22
Podemos ter a certeza de que a nossa fé bíblica é absolutamente racional. A
vida tem sentido porque Deus existe. Por essa razão, “Deus, e somente Deus é
o maior bem do homem”.23 A existência dele é a garantia da racionalidade de
nossa própria existência. E a certeza de que a vida tem sentido. O Deus da
Bíblia existe, e por isso faz diferença ser justo ou injusto. Há um Deus justo e
poderoso o suficiente para julgar retamente, recompensar o que deve ser re­
compensado e punir o que deve ser punido. Há um Deus bom e sábio o sufi­
ciente para planejar todo este universo e estabelecer todas as leis que gover­
nam a criação. Nós existimos porque Deus existe. Não é irracional crer na
existência dele. Não é irracional crer na Escritura. E maravilhoso contemplar
as obras da mão dele e saber, no âmago do nosso ser, que ele é o grande autor
de tudo. Como ao final de uma apresentação, podemos nos colocar de pé ante
o imenso palco da natureza e aplaudir o criador pela maravilhosa obra de arte
que ele realizou. E, acima de tudo, podemos nos sentir como parte dessa or­
dem e propósito. Não somos fruto do acaso. Somos obra das mãos do Ser
infinito e inteligente que nos criou e nos incluiu no seu plano eterno e perfeito.
Conhecendo a Deus

Não havia cidade mais famosa e religiosa no mundo antigo do que Ate­
nas. A silhueta dos seus templos majestosos podia ser vista a quilômetros
de distância. Havia estátuas de deuses e deusas no Partenon e em todos os
templos da cidade, até mesmo nos edifícios públicos e comerciais. Os mo­
radores construíram um local em que ficava o “Altar dos Doze Deuses”.
Esse altar havia sido edificado para garantir que nenhum deus fosse esque­
cido. Talvez esse fosse o altar do “Deus desconhecido”, ao qual eles adora­
vam sem conhecer. Paulo falou desse altar quando esteve em Atenas, ten­
tando fazer os filósofos entenderem que toda a filosofia e o conhecimento
deles, ã parte da revelação de Deus, não passava de um esforço em “tatear”
em busca do Deus verdadeiro (At 17.27). Muitas pessoas, nos dias de hoje,
à semelhança dos atenienses, adoram um “Deus desconhecido”. Elas se
contentam em freqüentar cultos, participar de rituais, desempenhar fun­
ções religiosas em honra a um Deus que na verdade não conhecem.
A passagem de Paulo por Atenas se reveste de um caráter muito interes­
sante, pois dois grupos de filósofos (estóicos e epicureus), que eram como
que remanescentes, de segunda linha, dos grandes filósofos do passado,
discutiam temas filosóficos. O fato é que a filosofia, desde os seus dias mais
remotos, sempre se preocupou em responder às perguntas básicas da hu­
manidade, como: Quem somos? De onde Viemos? Qual a razão da nossa
existência? Qual é o conhecimento verdadeiro? O curioso é que Paulo, em
poucas palavras, deu respostas simples e precisas a todas essas perguntas.
Deus é a resposta para todos estes questionamentos. Ele demonstrou que
Deus é a origem do ser humano, que a existência humana está sob o con­
trole de Deus, que o homem existe para buscar a Deus, mas que é limitado
nesse conhecimento, como um cego que tateia (At 17.24-27). Pela reação,
os filósofos obviamente não gostaram das respostas (At 17.32). Porém, é
um fato que os filósofos mais antigos não tinham dificuldades em admitir a
existência de um ser absoluto como o princípio de todas as coisas. Paulo
disse: Na verdade “Deus não está longe”, porém, quando alguém está cego,
40 Razão da esperança

algo muito próximo pode ser inalcançável. E não há filosofia ou


espiritualismo que possa torná-lo visível. Séculos de buscas, inquirições e
raciocínios não conseguiram dar ao homem o conhecimento verdadeiro
sobre Deus, e conseqüentemente, sobre o próprio homem. Fala-se muito
sobre Deus nos dias de hoje. Parece que todos o conhecem, mas fica claro
que as pessoas não estão falando do mesmo Deus. A pregação sobre Deus,
que pode ser ouvida nas igrejas, mostra deuses muito diferentes. Em certas
igrejas, ele é o Soberano, em outras aquele a quem o homem pode dar
ordens. Em alguns lugares, ele é apresentado como o Santo, o inalcançável;
em outras, como alguém muito parecido com os homens, que pode ser
tratado como igual. As vezes, parece uma brincadeira sobre disfarces. Dian­
te de tudo o que se pode ver, está claro que as pessoas continuam “tateando”,
mas no fundo, não sabem, e talvez, nem queiram saber quem ou como é o
Deus verdadeiro. É mais fácil crer num Deus criado pela própria imagina­
ção. E mais fácil fazer um “Deus” à nossa imagem do que aceitar que fo­
mos feitos à imagem de Deus.
Será que é impossível conhecer a Deus como ele realmente é? Será
que Deus sempre será o “ilustre desconhecido”, ao qual os homens ado­
rarão sem nunca realmente compreender? Neste capítulo, trataremos da
possibilidade de se conhecer a Deus. Nossa intenção é entender até que
ponto Deus pode ser conhecido. Nosso pressuposto não é a filosofia,
mas a revelação.

S im p lesm en te incom preensível


Os teólogos medievais tinham uma frase interessante para falar sobre a
possibilidade do homem conhecer e compreender a Deus: “O finito não
pode conter o infinito”. Sobre essa frase, o teólogo reformado contempo­
râneo R. C, Sproul afirma: “Nada é mais óbvio do que isso: um objeto
infinito não pode ser comprimido dentro de um espaço finito”.1 Se Deus é
infinito e o homem finito, então é impossível que o homem tenha todo o
conhecimento de Deus. Porém, será que isso significa que o homem nada
pode compreender a respeito de Deus? Será que o fato de Deus ser infinito
e o homem finito faz com que eles nunca possam se encontrar? Filósofos
como Kant (1724-1804) diziam que se Deus existe, nada se pode saber
sobre ele, pelo fato de que ele faz parte de uma outra dimensão, que não é
a dos seres humanos.2 Muitos argumentam que, como Deus não pode ser
compreendido, conseqüentemente, também não pode ser conhecido. Po-
Conhecendo a Deus 41

rém, antes de falar sobre isso, precisamos analisar o que a Bíblia fala a
respeito da incompreensibilidade de Deus. Quando as pessoas têm dificul­
dade para entender algo do modo como Deus age, elas lembram-se do
texto de Deuteronômio 29.29: “As coisas encobertas pertencem ao S e n h o r ,
nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos,
para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. E um fato
incontestável que Deus não revelou tudo de si. A partir da Bíblia, podemos
concluir que Deus é incompreensível por duas razões. Primeiro porque ele
não revelou tudo de si, e dependemos inteiramente da revelação para
conhecê-lo e saber como ele é. Porém, ainda que ela o revelasse, o fato é
que a natureza divina é tão diferente da nossa, tão mais complexa, e tão
grandiosa que não conseguiríamos entendê-la. Então, a segunda razão é
porque o nosso entendimento é limitado. Somos incapazes de entender a
complexidade do ser de Deus. Sabemos o quanto o ser humano é comple­
xo em suas qualidades e defeitos. Costumamos dizer que não entendemos
os outros, e a razão é porque não conhecemos os pensamentos dos outros.
Quando vemos as ações deles, não conseguimos montar o quebra-cabeça.
Isso nos faz pensar na complexidade do ser de Deus. Ele é complexo não
por causa de contradições e falhas como nós, mas pela infinidade de idéias
e propósitos que lhe são próprios.

Pen samentos elevados


Não conseguimos entender a maneira como funciona a mente de Deus.
Isso é atestado claramente pela Escritura. O próprio Deus disse: “Porque
os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos ca­
minhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são
mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os
vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos
pensamentos” (Is 55.8,9). A maneira como funciona a mente de Deus é tão
diferente, que os seus pensamentos e propósitos se tornam incompreensí­
veis para nós. Não é sem motivo que Paulo declara: “O profundidade da
riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão inson­
dáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem,
pois, conheceu a mente do Senhor?” (Rm 11.33,34). Essa declaração de
Paulo se torna ainda mais cativante pelo fato de ter sido proferida justa­
mente depois de ele ter tratado do difícil tema da “predestinação”, ou seja,
Paulo reconhece que a mente de Deus está muito acima da nossa, e que não
conseguimos compreender totalmente o seu plano para o mundo. Entre-
42 Razão da esperança

tanto, é preciso que fique claro que a Bíblia não quer dizer com isso que na
mente de Deus a contradição seja aceitável. E comum, quando nos encon­
tramos diante de uma situação aparentemente contraditória, dizermos: “Isso
pode não fazer sentido para nós, mas funciona perfeitamente na mente de
Deus”. Esse raciocínio pode ser perigoso, pois, se o nosso raciocínio é
contraditório, nem mesmo Deus poderá nos socorrer. A mente de Deus
realmente é diferente da nossa, mas isso não quer dizer que ela admita
contradição.3 Sua mente é elevada e trata de questões incompreensíveis
para nós, porém, tudo o que Deus pensa faz sentido e é perfeitamente
lógico.

0 i n co m p a r á v el

No livro de Jó encontramos a seguinte afirmação: “Deus é grande, e


não o podemos compreender” (Jó 36.26). Não existe uma medida que
possa ser usada para se mensurar Deus. Todas as nossas noções de tama­
nho derivam da capacidade que temos de medir os objetos. A infinidade
de Deus o torna incompreensível para nós porque ele é incomparável.
Quando queremos entender o tamanho ou a beleza de algo, basta colo­
carmos outra coisa ao lado e teremos uma noção. O problema é que não
podemos colocar nada ao lado de Deus. Ele é absolutamente incompará­
vel. Isaías questiona: “Com quem comparareis a Deus? Ou que coisa se­
melhante confrontareis com ele?” (Is 40.18). Nesse texto Isaías está pro­
fetizando para o povo de Judá, que seria cativo da Babilônia, o maior
império daquela época. Aparentemente, o insignificante reino de Judá
perante a Babilônia não teria a mínima chance de ser libertado. Porém, o
profeta afirma que Deus é maior do que a Babilônia e do que qualquer
nação que exista ou possa existir. Não há a menor comparação, e por isso
ele diz: “Eis que as nações são consideradas por ele como um pingo que
cai de um balde e como um grão de pó na balança; as ilhas são como pó
fino que se levanta” (Is 40.15). E depois arremata: “Todas as nações são
perante ele como coisa que não é nada; ele as considera menos do que
nada, como um vácuo” (Is 40.17). A estrutura dessa passagem é fascinan­
te. Primeiro, o profeta diz que as nações, se comparadas a Deus, são como
“um pingo que cai de um balde”. Em seguida, ele reduz o tamanho, “como
um grão de pó na balança”. Não contente com essa definição, reduz mais
uma vez: “como pó fino que se levanta”. Em seguida, volta a reduzir:
“como coisa que não é nada”. Quando parecia que havia chegado ao
mínimo possível, ele reduz outra vez: “ele as considera menos do que
Conhecendo a Deus 43

nada, como um vácuo”. A definição de vácuo pode ser: “Algo vazio, com
ausência até de ar”. E dessa maneira que Deus considera as superpotênci­
as do mundo. Nações como os antigos Impérios da Babilônia, Grécia e
Roma, e poderíamos acrescentar as modernas Alemanha, Rússia e Esta­
dos Unidos são, diante de Deus, menos do que nada. Ele é de fato incom­
parável. Como compreendê-lo?

M ã os grandes

A grandeza de Deus não tem comparação. O profeta pergunta retorica-


mente: “Quem na concha de sua mão mediu as águas, e tomou a medida
dos céus a palmos? Quem recolheu na terça parte de um efa o pó da terra,
e pesou os montes em romana e os outeiros em balança de precisão?” (Is
40.12). Sabemos que os céus são tão vastos que o homem não consegue
medir, mas, retoricamente, Isaías diz que Deus mede a palmos. A quantida­
de de água dos mares e dos rios é incalculável, mas o profeta diz que todas
as águas cabem na concha da mão de Deus. Além disso, ele pesa os montes
em “romanas”, um tipo de balança que serve para quantificar mínimos
gramas de ouro. A grandiosidade da criação nos fala de um criador ainda
mais grandioso. Se o universo que Deus criou não pode ser medido, quanto
mais o próprio Deus que realizou essas obras tão grandiosas. A imensidade
da sua obra, e a grandeza das suas ações, nos mostram o quanto ele é gran­
de e incompreensível ao nosso entendimento.

Comida para os corvos

O modo como Deus dirige a história do mundo também é incompre­


ensível para nós. Alguém consegue entender todos os propósitos dele, bem
como por que certas coisas acontecem e outras não? De alguma maneira,
entretanto, sabemos pela Escritura que tudo o que acontece está sob o
domínio de Deus. Deus é aquele que providencia comida para os corvos
(Jó 38.41), que cuida dos lírios dos campos (Mt 6.30), que não permite que
um pardal caia sem a sua aprovação, e que sabe até mesmo o número de
fios de cabelo que temos na cabeça (Mt 10.29,30). Por que Deus se preocu­
paria até com os corvos? Os corvos se alimentam de restos de animais
mortos, e nisso vemos que até a morte cumpre algum papel. Porém, uma
coisa é saber que ele controla tudo, outra é entender os seus propósitos. E
difícil entender que as guerras, as catástrofes, e até mesmo as tragédias, que
apesar de serem causadas pelos seres humanos, de alguma maneira fazem
44 Razão da esperança

parte do seu plano. É difícil entender que mesmo este mundo de injustiças,
opressões e violência, não segue um curso independente do plano de Deus.
Sabemos que todas essas coisas acontecem por causa do pecado que en­
trou no mundo, mas também sabemos que Deus não assiste a tudo isso de
modo impotente ou impassível. Se ele permite que tudo aconteça desse
modo é porque, de alguma maneira incompreensível para nós, faz parte
dos seus propósitos. O plano de Deus para o mundo e para cada pessoa
pode parecer incompreensível e até mesmo contraditório em certas situa­
ções, pois pode se assemelhar a uma grande obra inacabada. Quando pas­
samos diante da construção de um prédio em que há uma placa informan­
do o que o prédio será, podemos ter dificuldades em imaginar que toda
aquela confusão de materiais e instrumentos, no final, se transformará num
prédio perfeito. Porém, por trás de um prédio bem construído há em geral
um excelente projeto. Na construção de Deus há muitas coisas que pare­
cem estar fora do lugar; porém, no final veremos que tudo se encaixa per­
feitamente, e que seguiu um projeto perfeito. No momento, entretanto,
não conseguimos ver isso, e assim temos dificuldades para entender os
caminhos de Deus.

A m o r i nco m p re en sí v el

Não conseguimos entender sequer a maneira como Deus se relaciona


com o homem, naquilo que chamamos de evangelho. Como Deus pode
amar uma criatura decaída como o ser humano? Como entender o amor
que o levou a entregar o seu próprio Filho como sacrifício pelos pecados
de homens corruptos? De fato: “Não podemos compreender como Deus
ama, pois o modo de ele amar é muito diferente do nosso. A base do seu
amor está nele próprio, e nunca nas razões que o objeto amado oferece.
Conosco é exatamente o inverso e, por isso, o que ele faz por nós é incom­
preensível”.4 Podemos dizer que o versículo mais conhecido e proclamado
da Bíblia é talvez o mais incompreensível para nós: “Deus amou ao mundo
de tal maneira, que deu o seu Filho unigénito, para todo aquele que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Como explicar esse amor?
Como entender a medida dele, ou a sua intensidade?
Diante de todas essas coisas, é preciso capitular: “Deus é Incompreensí­
vel”. De fato, o finito não pode conter o infinito. Mas agora precisamos
voltar à pergunta: Será que isso significa que não podemos compreender
nada dele, e que, portanto, não podemos conhecê-lo?
Conhecendo a Deus 45

Deus p o d e ser conhecido


Se, por um lado, as coisas encobertas pertencem ao Senhor, como diz
Deuteronômio 29.29, por outro lado “as reveladas nos pertencem, a nós e
a nossos filhos para sempre”. As coisas reveladas, nessa passagem, são
uma referência à própria Lei. A Lei não continha toda a revelação acerca
de Deus, mas continha alguma revelação sobre Deus, e essa revelação per­
tence ao povo de Deus no sentido de que estava à disposição dele para que
conhecesse mais sobre Deus e a vontade dele. O que Deus quis que ficasse
encoberto jamais será conhecido, mas aquilo que ele revelou, é seu desejo
que seja conhecido. A única possibilidade de haver conhecimento de Deus
é porque Deus decidiu se revelar, caso contrário, haveria realmente uma
barreira intransponível para o ser humano: a barreira entre o finito e o
infinito. Porém, foi o próprio Deus quem rompeu essa barreira ao criar o
ser humano à sua imagem e, mesmo depois da queda, procurá-lo para lhe
dar informações sobre como o relacionamento com Deus poderia ser res­
taurado. De fato foi ele quem rompeu definitivamente a barreira quando
“o verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14), Nesse momento, o
eterno adentrou o tempo, o infinito adentrou o finito, num paradoxo sem
precedentes.
Queremos afirmar que, embora Deus seja infinito e incompreensível
para nós, ainda assim podemos conhecê-lo. Quando afirmamos que o finito
não pode conter o infinito, não estamos querendo dizer que nada pode ser
compreendido a respeito de Deus, mas apenas que Deus não pode ser com­
preendido de modo exaustivo, ou seja, na sua totalidade. Ele pode ser co­
nhecido de modo verdadeiro, e isso porque ele mesmo se dá a conhecer e
nos capacita a fazê-lo. Esse é um bom momento para lembrar as sábias
palavras de Clark: “Podemos saber que Deus existe, sem sabermos tudo o
que ele é. Podemos tocar a terra sem, entretanto, sermos capazes de abarcá-
la com os braços. A criança pode conhecer a Deus, ao passo que o filósofo
não pode descobrir toda a sua perfeição”.5 Isso é algo que torna a revela­
ção divina ainda mais esplêndida. Ele se torna acessível ao simples, de ma­
neira que o mais humilde dos homens o possa conhecer verdadeiramente,
enquanto o mais inteligente dos homens nunca poderá conhecê-lo comple­
tamente, Portanto, o finito pode conhecer o infinito, pois podemos conhecê-
lo verdadeiramente sem que o compreendamos exaustivamente.
46 Razão da esperança

C o nhec im en to revolucionário

O conhecimento que podemos ter de Deus é algo que emana do pró­


prio Deus com o propósito de transformar as pessoas. E um conhecimen­
to que integra todas as partes de nosso ser e produz transformações pro­
fundas no nosso caráter, na nossa vontade e nos nossos sentimentos, pen­
samentos e ações. Em resumo, é algo que redireciona a vida da pessoa.
Jeremias diz: “Assim diz o Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria,
nem o forte, na sua força, nem o rico, nas suas riquezas; mas o que se
gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o Senhor e faço
misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o
Senhor” (Jr 9.23,24). Observe a total inversão de valores que o conheci­
mento de Deus produz na vida das pessoas. Coisas como “sabedoria”, “for­
ça” e “riqueza” são as grandes fontes propulsoras deste mundo, pois tudo
é construído sobre esses alicerces, e todos os homens buscam essas coisas
de uma maneira ou de outra. Conhecer a Deus, entretanto, faz com que
esses valores sejam invertidos. Conhecer a Deus é o verdadeiro motivo de
orgulho e não o simples fato de se possuir sabedoria, força ou riqueza.
Conhecer a Deus e experimentar a sua misericórdia, o seu juízo e a sua
justiça é a grande razão da nossa existência, e faz com que a nossa vida
tenha real significado, e não seja mera vaidade e correr atrás do vento (Ec
2.11). Conhecer a Deus transforma a noção da existência.
Se conhecemos a Deus, sabemos que a vida tem sentido e que nada
acontece por acaso neste mundo. Dessa perspectiva, os nossos maiores
temores podem se dissipar, e nada há que consideremos como impossível
ou inalcançável. Conhecer a Deus modifica a maneira como encaramos as
dificuldades e os prazeres da vida. As dificuldades não serão mais simples
“cruzes” que carregamos gemendo ao longo da vida. Quem conhece a
Deus procura achar a razão ou o objetivo de estar passando por qualquer
situação. Alguém que sofre sem ser culpado deve pensar que Deus tem um
propósito para a sua vida com esse sofrimento. Ele sabe que não precisa se
revoltar contra o mundo, contra as pessoas, e nem contra Deus por não ter
atendido a um desejo seu. Também a concepção dos prazeres mudará. Em
primeiro lugar, a busca pelos prazeres jamais será o principal objetivo neste
mundo. O principal objetivo de quem conhece a Deus é conhecê-lo ainda
mais. Isso não quer dizer que será preciso se privar de todos os prazeres. E
certo que dos ilícitos sim, e a Bíblia tem a palavra final a respeito de quais
são estes; com relação aos prazeres permitidos, eles devem ser considera­
dos uma dádiva de Deus e desfrutados nele (Pv 23.24-26). A vida vivida na
Conhecendo a Deus 47

sua plenitude física e espiritual, em conformidade com a Escritura, é cheia


de deleites, encontra alegria na tristeza, e sempre se aproxima mais de Deus,
e a cada passo pode conhecê-lo melhor.

Antes eu te co nhec ia só de ouvir...


E preciso sempre lembrar que há níveis de conhecimento a respeito de
Deus. Jó era um servo extremamente fiel a Deus, mas se viu envolvido numa
acirrada disputa. Sabemos de tudo o que Satanás, sob a permissão divina,
infligiu a jó . Sabemos também que Jó não pecou, e no seu livro o vemos
agonizando muito mais por não conseguir entender o motivo de tudo aquilo
do que pela dor das chagas. A certa altura, ele desabafou: “Ah! Se eu soubes­
se onde o poderia achar! Então, me chegaria ao seu tribunal. Exporia ante ele
a minha causa, encheria a minha boca de argumentos” (Jó 23.3,4). Deus
finalmente concedeu uma audiência a Jó. Deus veio até ele e lhe falou do
meio de um redemoinho (Jó 38.1). Entre outras coisas, Deus demonstrou
que Jó não entendia nada dos planos eternos de Deus; mostrou que Jó não
entendia a maneira como Deus havia criado o mundo, e nem mesmo como
o preservava, cuidando dos animais pequenos ou grandes, das estações do
ano, da influência dos astros sobre a terra (Jó 38-41). Deus quis demonstrar
a Jó que ele não tinha razões para questionar os seus propósitos. Depois de
tudo isso, Jó fez o seguinte reconhecimento: “Eu te conhecia só de ouvir,
mas agora os meus olhos te vêem” (Jó 42.5). Uma frase como essas na boca
de uma pessoa que se mostra hesitante quanto a servir ao Senhor é compre­
ensível, mas de alguém como Jó, sobre quem o próprio Deus deu testemu­
nho de que era íntegro, temente a Deus e que se desviava do mal (Jó 1.8), é
algo no mínimo intrigante. Ao final da sua experiência trágica, ele reconhe­
ceu que o seu conhecimento de Deus havia tomado proporções não imagi­
nadas. O fato é que ele precisou perder as três coisas que as pessoas mais
valorizam no mundo (bens, família e saúde), para entender que não conhecia
realmente a Deus. Porém, foi naquele momento de dor que Jó pôde reco­
nhecer que, embora não o compreendesse, agora o conhecia. Um conheci­
mento pessoal, a partir da experiência de vida com Deus. Não mais um co­
nhecimento de ouvir, mas um conhecimento de ver. Evidentemente que Jó
não está falando em termos literais, pois ninguém jamais viu a Deus nesse
sentido. O que Jó está dizendo é que o seu conhecimento de Deus, naquele
momento, já não era de impressões externas, ou a partir do que os outros
falavam. Ele conhecia Deus a partir de sua própria experiência. Deus se
revelou a ele, e embora não tenha revelado os seus propósitos (Deus não
48 Razão da esperança

explicou a razão do sofrimento de Jó), ele demonstrou que era um Deus


confiável. Jó percebeu que Deus o amava ainda que as bênçãos tivessem
desaparecido. Jó percebeu que Deus era suficientemente sábio e poderoso
para guiar o destino do mundo sem que os seus planos fossem frustrados (Jó
42.2). Ele entendeu que conhecer a Deus era sinônimo de crer e descansar
nele. Isso convenceu a sua mente e encheu o seu coração de paz. Agora ele o
conhecia de verdade. Na sua experiência, Jó pôde chegar à conclusão de que
não conhecia somente algo sobre Deus, mas que conhecia o próprio Deus.6
No entanto, esse conhecimento tinha vindo pela experiência.

Conhece-te a ti m e s m o
Conhecer a Deus implica conhecer a si mesmo, pois Deus é a origem do
homem. Não conhecer a Deus implica não saber de onde viemos, onde
estamos e muito menos para onde vamos. Não conhecer a Deus é nada
entender sobre o mundo, sobre a vida, ou sobre qualquer outra coisa. Nas
palavras de Packer, para aqueles que não conhecem a Deus “o mundo se
torna um lugar estranho, louco, penoso, e viver nele algo decepcionante e
desagradável”.7 Só resta o desespero para quem não conhece a Deus, pois
não conhecer a Deus significa não conhecer coisa alguma, significa viver
uma vida de fracassos, decepções, tropeços e desilusões. Não conhecer a
Deus é viver uma vida inferior à dos animais, pois a Bíblia diz que “o boi
conhece o seu possuidor, e o jumento o dono da sua manjedoura”, mas
com relação a Israel Deus diz tristemente “Israel não tem conhecimento, o
meu povo não entende” (Is 1.3). A filosofia tem demonstrado isso vivida-
mente ao longo dos séculos. Desde os filósofos estóicos e epicureus que
Paulo enfrentou no Areópago, que desejavam alcançar a paz da alma me­
diante a imperturbalidade ou por se afastarem dos prazeres, até os moder­
nos filósofos nihilistas,8 todos têm rejeitado o conhecimento de Deus, e
desse modo, rejeitaram o conhecimento do homem.

Conclusão: 0 b em su p rem o
Não precisamos adorar um “Deus desconhecido”. Embora seja verdade
que nunca conseguiremos conhecer a Deus plenamente, podemos conhecê-
lo verdadeiramente, e isto, porque ele próprio tem se revelado ao ser huma­
no, especialmente através das Escrituras. Mas é preciso ter a coragem de
reconhecê-lo como ele é, e não necessariamente como nós gostaríamos que
Conhecendo a Deus 49

ele fosse. É preciso resistir à idéia de “fazê-lo” conforme a nossa imagem, e


“deixá-lo” ser o que é: O Deus soberano cujos pensamentos não são os
nossos pensamentos e cujos caminhos não são os nossos caminhos (Is 55.8).
Conhecer a Deus deve ser o grande objetivo do ser humano. Porém,
conhecer a Deus não é, necessariamente, sinônimo de buscar as bênçãos
dele. Percebemos que esse foco está distorcido na vida de muitos crentes,
que estão mais interessados nas bênçãos do que no próprio Deus. Vivemos
num tempo em que a oferta de “soluções para todos os problemas” tem
sido a grande proclamação das igrejas. Há um grande erro por trás dis­
so, pois Deus é o maior bem que o homem pode ter, Deus em si mesmo,
seu ser mais do que seus benefícios, o doador mais do que a dádiva, a fonte
mais do que o córrego. Não podemos adorá-lo enquanto levantamos os
nossos olhos interesseiros em sua direção. Deus, em si mesmo, é o Bem
Supremo, e todos os nossos esforços devem se concentrar em conhccê-lo.
O exemplo do Apóstolo Paulo deve ser nosso lema: “Mas o que para
mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras con­
sidero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de
Cristo Jesus, meu Senhor” (Fp 3.8,9). O desejo maior do Apóstolo era “o
conhecer, e o poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimen­
tos” (Fp 3.8,10,11). É terrível perceber que este não é o objetivo da maioria
dos crentes. Assim, por mais que aparentem conhecê-lo, continuam
tateando...
A Trindade: Da teoria à prática
w w

A doutrina da Trindade é uma das mais importantes do Cristianismo


ortodoxo. Percebe-se, entretanto, que, pelo menos no contexto brasileiro,
essa doutrina é tida em pouca consideração. A razão disso talvez seja o
pragmatismo que a religião brasileira tem como base. As pessoas só se inte­
ressam pelo que elas entendem que pode ser útil para a sua vida. Elas que­
rem coisas práticas e a teoria as deixa enfadadas. Esse é justamente o moti­
vo pelo qual não gostam de estudar teologia. Teologia sugere algo teórico,
e as pessoas dizem que estão mais interessadas em “experiências” com Deus,
e na prática demonstram que desejam “soluções” de Deus para os seus
problemas. Não é que os cristãos não acreditem na veracidade da doutrina
da Trindade; é que, de modo geral, as pessoas não sabem para que ela serve.
E aquela velha história de que, para que algo seja importante, ele precisa
“falar ao coração”. Talvez, para a maioria, pouco importa se Deus é um ou
três. Entretanto, esquecer-se da doutrina da Trinadade ou descaracterizá-la
é perder muito do que a Bíblia e especialmente Deus tem a nos dizer no real
sentido da palavra. É perder de vista a coisa mais essencial de Deus que
podemos saber, Na verdade, é ignorar a própria essência de Deus. Hoje em
dia, poucas pessoas pensam na Trindade, e quando pensam, não seria ab­
surdo dizer que, em muitos casos, elas imaginam três deuses. Esse impor­
tante tema precisa ser mais bem estudado. Num certo sentido, a doutrina
da Trindade é de fato a mais misteriosa e também a mais difícil de todas as
doutrinas bíblicas, porém, como afirma Lloyd-Jones: “Ela é, em certo sen­
tido, a mais excelsa e a mais gloriosa de todas as doutrinas, a coisa mais
espantosa e estonteante que aprouve a Deus revelar-nos sobre Si mesmo”,1
ou, como afirma Bavinck:

O artigo sobre a santa Trindade é o coração e o núcleo de nossa confissão,


a marca registrada da nossa religião, e o prazer e o conforto de todos aque­
les que verdadeiramente crcem em Cristo. Essa confissão foi a âncora na
guerra de tendências ao longo dos séculos. A confissão da santa Trindade é
a pérola preciosa que foi confiada à custódia da igreja cristã.2
52 Razão da esperança

Deus quis mostrar aos seus filhos esse aspecto tão impressionante de
sua essência. Queremos demonstrar que a doutrina da Trindade não é ape­
nas um conceito teórico ou desinteressante, mas um elemento essencial da
espiritualidade.

D esenvolvim ento histórico da doutrina da Trindade


No início do Cristianismo, a Trindade foi motivo de controvérsias, An­
tes do Concílio de Nicéia (325 d.C.), as principais controvérsias trinitárias fo­
ram influenciadas pelo judaísmo, com a sua ênfase no monoteísmo e na
unidade de Deus; pelo gnostinsmo, que via todas as coisas como emanações
de Deus e considerava a matéria má; e pelo platonismo, que cria no Logos
como a principal criatura de Deus. Os cristãos primitivos foram grande­
mente influenciados por essas correntes filosóficas, o que deu origem a
uma série de disputas, cujos resultados foram algumas teorias heréticas so­
bre a Trindade.3 As principais foram:

0 monarquismo
Essa heresia surgiu da dificuldade de explicar o elemento divino na pes­
soa de Cristo, e mesmo do Espírito Santo, sem cair no erro do triteísmo. O
monarquismo modalista não admitia a existência da Trindade Ontológica
(em essência), mas apenas Econômica (funcional), ou seja, Pai, Filho e Es­
pírito Santo são uma única pessoa que se manifestou sucessivamente na
História. Deus se manifestou na pessoa do Pai na criação, na pessoa do
Filho na encarnação e na pessoa do Espírito Santo na regeneração. Já o
monarquismo dinâmico negava a divindade essencial de Jesus, afirmando
que Deus é essencialmente um, e que Jesus havia recebido o dinamis (poder)
de Deus por ocasião do seu batismo, sendo elevado a uma categoria divina.
Esse poder o abandonou poucos instantes antes da sua morte.

0 ar i a n i sm o
O arianismo recebeu esse nome de seu fundador, Ario (250-336 d.C.),
que foi um presbítero da igreja de Alexandria. Ario era essencialmente
unitarista, e negava qualquer possibilidade de haver uma Trindade. Segun­
do Ário, somente Deus era eterno, Jesus era uma criatura intermediária
gerada do nada por Deus antes da criação do mundo. Desse modo, o Pai
A Trindade: Da teoria à prática 53

nem sempre foi Pai, pois antes de ter criado o Filho, Deus existia sozinho.
O Filho não é eterno. Segundo Ario, a importância do Filho estava no fato
de que ele foi o instrumento por meio do qual Deus criou todas as coisas e
nada mais. E impossível não associar o arianismo ao que proclamam hoje
os Testemunhas de Jeová.

Os concílios

A igreja reagiu à maioria das heresias antigas reunindo-se em concílios,


nos quais foram formuladas declarações de fé que demonstravam a verda­
deira ortodoxia. Os concílios que mais trataram a respeito da Trindade fo­
ram os de Nicéia e Calcedônia.
O Concílio de Nicéia foi convocado em 325 d.C. pelo Imperador Cons-
tantino por causa do arianismo. Nesse concílio, o arianismo foi rejeitado,
tendo sido formulada a seguinte declaração de fé:

Cremos em um só Deus, o Pai todo-poderoso, eriador de todas as coisas,


visíveis e invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, o filho de Deus,
gerado do Pai, unigénito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de
luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só subs­
tância eom o Pai, pelo qual todas as coisas vieram a ser, coisas nos céus e
coisas na terra, o qual, por nós, homens, e por nossa salvação, desceu e Se
encarnou, tornando-Se homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu
aos céus, e virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo. Mas,
quanto àqueles que dizem “tempo houve em que ele não existia”, e “antes
de nascer ele não era” e que ele veio a existir do nada, ou que afirmam que
o Filho de Deus procede de uma hipóstase ou substância diferente, ou é
criado, ou está sujeito a alteração ou mudança —a esses a igreja Católica
(Universal) anatematiza.

Essa declaração colocou o Filho em pé de igualdade com o Pai, ou seja,


ele é da mesma substância do Pai. Não é um Deus diferente, e muito menos
inferior.
No Concílio de Constantinopla, em 381, as diferenças com relação à
divindade do Espírito Santo foram resolvidas. A fé nicena foi reafirmada,
mas a questão do Espírito Santo foi mais bem esclarecida: “Nós cremos no
Espírito Santo, o Senhor, o Doador da Vida, que procede do Pai,4 que com
o Pai e o Filho juntamente é adorado e glorificado...” Essa declaração afir­
ma claramente que o Espírito Santo não era subordinado ao Filho e nem ao
Pai, mas era da mesma substância do Pai e do Filho.
54 Razão da esperança

A spectos bíblicos da doutrina da Trindade


Aqueles que negam a existência da Trindade, em geral acusam os
trinitarianos de inventar uma doutrina que não está na Bíblia. Embora o
termo “Trindade” realmente não seja encontrado na Escritura, existe um
amplo consenso de que essa doutrina é amplamente comprovada pelos
textos sagrados. Aliás, de onde essa doutrina poderia surgir senão da reve­
lação de Deus? Quem poderia formular essa doutrina do nada? A igreja
teve que reconhecer e defender a Trindade exatamente para poder conciliar
os elementos bíblicos. Como crer que há somente um Deus como a Escri­
tura afirma (Dt 6.4), se as próprias Escrituras dizem que Jesus também é
Deus (Jo 20,28)? E do mesmo modo afirmam que Jesus e o Pai são pessoas
distintas (Mt 3.16,17)?

Evidências do Antigo Testamento

No Antigo Testamento, a existência da Trindade não é explicitamente


exposta, mas, à luz da revelação do Novo Testamento, podemos encontrar
indícios da existência dela.
Uma coisa que fica absolutamente clara é a ênfase do Antigo Testamen­
to na unicidade de Deus (Dt 4.35,39; 32.39; 2Sm 22.32; Is 37.20; 43.10). A
principal confissão de fé do povo hebreu em Deuteronômio 6.4 diz: “Ouve
Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Do mesmo modo, Isaías
4 5 .18 diz: “Porque assim diz o S enhor, que criou os céus, o único Deus,
que formou a terra, que a fez e a estabeleceu; que não a criou para ser um
caos, mas para ser habitada: Eu sou o S enhor, e não há outro”. Porém,
indícios de que na divindade há mais de uma pessoa são encontrados ainda
em muitas outras passagens.
O Nome de Deus. O título “Elohim”, traduzido como Deus em Gênesis
I.1, é o nome mais comum aplicado à divindade no Antigo Testamento.
Esse nome está no plural. Isso por si só não quer dizer que haja três pessoas
na divindade, mas, de algum modo implica pluralidade dentro da divindade.
A luz de João 1.1,3, entendemos Gênesis 1.1-3 como uma referência à obra
do Pai, do Filho e do Espírito Santo na criação.
A comunicação de Deus consigo mesmo. Passagens como Gênesis 1.26, 3.22,
II.7 e Isaías 6.8 têm sido bastante difíceis de explicar. Nelas, é como se Deus
falasse consigo mesmo na primeira pessoa do plural: “Façamos o homem à
nossa imagem, conforme a nossa semelhança.,,” (Gn 1.26). Com quem Deus
A Trindade: Da teoria à prática 55

estava falando nesse momento? Certamente não era com os anjos, pois o
homem não foi feito à semelhança dos anjos, nem os anjos estão no mesmo
nível de Deus.5 E a Bíblia não diz que Deus toma conselho com anjos ou
qualquer outra criatura (Is 40.13,14). A resposta mais plausível é que Deus
falava consigo mesmo dentro da Trindade. Esse entendimento só é possível
ã luz da revelação do Novo Testamento, a qual de uma maneira ainda mais
clara demonstra o relacionamento dentro da Trindade, conforme pode ser
visto nas palavras do próprio Jesus: “Respondeu Jesus: Se alguém me ama,
guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos
nele morada” (Jo 14.23). O mesmo “nós” dos textos do Antigo Testamento
pode ser visto no relacionamento de Jesus com o Pai.
A repetição dos nomes de Deus na Hênção Araônica. Na bênção araônica le­
mos: “O S e n h o r te abençoe e te guarde; o S e n h o r faça resplandecer o seu
rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o S e n h o r sobre ti levante o seu
rosto e te dê a paz” (Nm 6.24-26). Três vezes aparece na passagem o título
S e n h o r . À luz da revelação do Novo Testamento, especialmente da bênção
apostólica, na qual as três pessoas estão claramente distintas (2Co 13,13),
conseguimos ver na bênção araônica indícios da Trindade.6
O Anjo do S e n h o r , Uma boa referência do Antigo Testamento a respeito
da Trindade encontra-se na pessoa do Anjo do S e n h o r . O caso é que algu­
mas vezes esse Anjo, que deve ser distinguido dos demais anjos, se identifi­
ca com o próprio Senhor, enquanto em outras ocasiões ele é distinguido do
Senhor, o que nos leva a pensar em pluralidade de personalidade (Ver Gn
16.7-13; 22.15,16; 31.11-13; Êx 3.2-6; 23.23, 32.34; Nm 20.16). Geralmen­
te, associa-se essa figura do Anjo do S e n h o r com a Segunda Pessoa da
Trindade.
Aparecimentos de Deus. Talvez a prova mais evidente do Antigo Testa­
mento com relação à Trindade esteja nos aparecimentos de Deus. A Escri­
tura do Novo Testamento diz que ninguém jamais viu a Deus (Jo 1.18; 5.37;
6.46; ljo 4.12). Como explicar, então, todos os supostos aparecimentos de
Deus no Antigo Testamento? (Gn 18.1; 28.13; Êx 33.18-23; Dt 34.10). O
próprio João diz: “Ninguém jamais viu a Deus, o Deus unigénito, que está
no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). João chamou Jesus de Logos
(Jo 1.1) que é traduzido como Palavra ou Verbo, e traz a idéia de fala ou
comunicação. Entendemos, então, que Jesus foi o revelador da pessoa divi­
na no Antigo Testamento. Jesus disse que Abraão havia visto o seu dia, pois
ele existia antes de Abraão (Jo 8.56-58), referindo-se com certeza à ocasião
da destruição de Sodoma e Gomorra, quando Abraão viu o Senhor, con­
forme relata Gênesis 18.1: “Apareceu o S e n h o r a Abraão nos carvalhais de
56 Razão da esperança

Manre, quando ele estava assentado à entrada da tenda, no maior calor do


dia”. Quem Abraão viu naquele dia foi o próprio Jesus antes da sua encar­
nação. Depois desse encontro, os anjos desceram e destruíram as cidades.
Outra passagem que ajuda a perceber que Jesus se manifestou no Antigo
Testamento é João 12.37-41: “E, embora tivesse feito tantos sinais na sua
presença, não creram nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que
diz: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço
do Senhor? Por isso, não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-
lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos,
nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados.
Isto disse Isaías porque viu a glória dele e falou a seu respeito”. Observe
que João disse que Isaías viu a glória de Jesus. Mas, quando, e em que oca­
sião? O versículo 40 é uma citação direta do capítulo 6 de Isaías. E pode­
mos ler o seguinte no início do capítulo 6: “No ano da morte do rei Uzias,
eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas
vestes enchiam o templo. Serafins estavam por cima dele; cada um tinha
seis asas: com duas cobria o rosto, com duas cobria os seus pés e com duas
voava. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o
S e n h o r dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. As bases do
limiar se moveram à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça.
Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios
impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos
viram o Rei, o S e n h o r dos Exércitos!” (1-5). Isaías disse ter visto o S e n h o r
dos Exércitos. E se João disse que Isaías tinha visto Jesus, então o S e n h o r
e Jesus são a mesma pessoa. A conclusão é que, todas as vezes que Deus foi
visto no Antigo Testamento, tratava-se de uma manifestação da Segunda
Pessoa da Trindade. Portanto, o Antigo Testamento tem bons indícios da
existência da Trindade.

Provas do Novo Testamento


O Novo Testamento é muito mais decisivo na sua ênfase trinitária. Há
muitas passagens que nos dão a idéia clara de que Deus é um e é três ao
mesmo tempo.
No batismo de Jesus. Na passagem que relata o batismo de Jesus, é dito:
“Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o
Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. E eis uma voz
dos céus, que dizia: Este é o meu filho amado, em quem me comprazo” (Mt
A Trindade: Da leoria à prática 57

3.16,17). Observe que são mencionados três personagens. Jesus está sendo
batizado, o Espírito está descendo sobre ele, e o Pai está falando dos céus.
Inconfundivelmente, aí estão, simultaneamente as três pessoas da Trindade.
Na Fórmula Batismal. Jesus disse: “Ide, portanto, fazei discípulos de to­
das as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo” (Mt 28.19). Nessa passagem, não somente as três pessoas são cita­
das conjuntamente, como a expressão “em nome” está no singular. A Es­
critura não diz “batizando-os no nome do Pai, no nome do Filho e no
nome do Espírito Santo”. Há apenas um nome para o Deus que subsiste
em três pessoas.
Na Bênção Apostólica. O texto diz: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o
amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós”
(2Co 13.13). Por que Paulo colocaria esses três nomes em pé de igualdade,
se não os considerasse como pessoas da mesma divindade? Seria Paulo
idólatra? Então, fica claro que a Bíblia afirma a existência da Trindade. Em
Apocalipse 1.4,5 a bênção é pronunciada de forma ligeiramente diferencia­
da, mas as três pessoas estão presentes: “Graça e paz a vós outros, da parte
daquele que é, que era e que há de vir, da parte dos sete Espíritos que se
acham diante do seu trono e da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o
Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra”.
Na obra da Salvação. A Escritura mostra em passagens como 1 Pedro
1.1,2 e Judas 20-22, Pai, Filho e Espírito Santo agindo em pé de igualdade
na vida dos crentes na eleição, na redenção e durante todo o processo da
santificação. A Trindade conjuntamente age em favor dos escolhidos.
Na Capacitação da igreja. Nas passagens de ICoríntios 12.4-6 e Efésios
4.4-6 que tratam da maneira como Deus capacita a sua igreja para em uni­
dade, desenvolver a sua tarefa no mundo, as três pessoas da Trindade são
mencionadas como sendo a base pela qual a igreja sobrevive e age no mun­
do. João 14.16 também faz menção da Trindade, mas nesse caso é o Espí­
rito Santo que vem por meio do pedido do Filho ao Pai para substituir o
próprio Filho no meio da igreja.
No Ensino de Cristo. Ao mesmo tempo em que Cristo disse que Deus era
seu Pai que estava no céu (Mt 5.16; 7.21; 11.25-27), ele disse que não eram
a mesma pessoa (Mt 16.27; Jo 10.17), e disse também que era “Um” com
ele (Jo 10.30, 38). A comparação entre as palavras de Jesus nos leva a crer
que a Divindade é composta por mais de uma pessoa. E esse certamente é
o maior argumento bíblico a favor da divindade: a consciência do próprio
Jesus. Ele sabia e demonstrou que era alguém diferente do Pai e, ao mesmo
tempo, “um” com o Pai.
58 Razão da esperança

Em 1João 5.7. A passagem mais clara na Bíblia com relação à Trindade é


ljoão 5.7. Entretanto, ela é amplamente controvertida, e muito provavel­
mente não seja realmente original, pois não aparece na maioria dos códices
gregos antigos, nem nos latinos e não é citada pelos pais anti-nicenos. Po­
rém, há grande evidência da antigüidade dessa passagem, talvez antes mes­
mo de 160 d.C,7 o que demonstra que a doutrina da Trindade era tão antiga
quanto essa data sugere.
Todos esses elementos bíblicos considerados conjuntamente deixam a
certeza de que há um só Deus, que subsiste em três pessoas: O Pai, o Filho
e o Espírito Santo.

Aspectos teológicos da doutrina da Trindade


Falar sobre a base teológica da doutrina da Trindade significa estabelecer
conceitos que nos ajudem a entendê-la melhor. E claro que jamais podemos
nos esquecer que estamos lidando com algo que ultrapassa em muito o nos­
so entendimento. As palavras de Calvino sobre a Trindade são muito instru­
tivas nesse sentido, e servem de advertência contra especulações:

Entendamos que se nos secretos mistérios das Escrituras nos convém ser
sóbrios e modestos; certamente este que tratamos no presente não requer
menor modéstia e sobriedade, mas é preciso estar de sobreaviso, para
que, nem o nosso entendimento, nem a nossa língua vão além do que a
Palavra de Deus nos tem demonstrado. Por que, como poderá o entendi­
mento humano compreender, com sua débil capacidade, a imensa essên­
cia de Deus, quando nem sequer consegue determinar com certeza qual é
o corpo do sol, mesmo que todos os dias o vê com seus olhos? Assim
mesmo, como poderá penetrar por si só a essência de Deus, uma vez que
não conhece nem a sua própria? Portanto, deixemos a Deus o poder de
conhecer-se. 8

Definições
Podemos definir a doutrina da Trindade como um Deus em essência,
mas que subsiste em três pessoas distintas. Não há analogia ou ilustração
que possa nos ajudar a entender como isso é possível. No passado, os Pais
da igreja costumavam usar analogias para ajudar a entender a unidade den­
tro da Trindade. Falava-se, por exemplo, da união da luz, do calor e do
esplendor numa só substância do sol; da raiz, do tronco e das folhas de uma
planta, ou mesmo do intelecto, da vontade e dos sentimentos na alma hu-
A Trindade: Da teoria à prática 59

mana. O fato é que as ilustrações acrescentam muito pouco à doutrina da


Trindade e, às vezes, até mesmo a distorcem.
“Essência” é a tradução da palavra grega ousia que também pode sig­
nificar substância,9 e refere-se à natureza divina. Essa natureza essencial
é compartilhada pelas três pessoas da Trindade. Quando pensamos na
raça humana, sabemos que todos compartilham a mesma natureza, a hu­
mana, mas, cada um é um indivíduo autônomo. Compartilhamos a mes­
ma natureza, mas somos seres diferentes. Na Trindade há apenas uma
natureza, pois há apenas um ser, mas em três pessoas. Cada uma das três
pessoas da Trindade compartilha da mesma natureza divina, a qual é nu­
mericamente uma. São três pessoas distintas, mas não separadas. Há ape­
nas uma vontade, um poder, uma mente, uma determinação, um senti­
mento, um ser. A essência de Deus não é dividida entre as três pessoas da
Trindade; ela é absoluta, completa e perfeita em cada uma delas. Não são
três partes de um só Deus, nem três deuses, é um Deus, uma substância
e três pessoas.
“Pessoa” é tradução dos termos gregos prosopon e hjpostasis ou o latino
persona, que foram usados pelos escritores antigos para indicar as distinções
da Divindade. Modernamente, tem-se falado em subsistência como um ter­
mo mais adequado e livre de ambigüidades. Na verdade, muito tempo foi
gasto na tentativa de encontrar uma palavra que mais bem definisse o sen­
tido da distinção, e isso, por si só, já mostra o quanto todas são na verdade
inadequadas. O importante é que o termo “essência” nos fala da unidade
de Deus, enquanto o termo pessoa ou subsistência nos fala das distinções
que existem no ser divino. Pessoa é o elemento diferenciador na Trindade.
Essência é uma, pessoas são três. Não se trata de três modos de manifesta­
ções, mas três existências, ou subsistências reais, dentro de um único ser.
No Ser de Deus, a unidade e a diversidade não são antônimas. Deus, no seu
ser, pode ser tripessoal, sem deixar de ser um.

A Trindade e m essência (Ontológica)

Dentro da Trindade existe absoluta igualdade de essência, logo, não existe


qualquer grau de subordinação, nem mesmo de honra. O Pai não é maior
em essência do que o Filho e nem o Filho maior do que o Espírito Santo. O
Pai não deve ser mais adorado do que o Espírito, ou o Espírito mais do que
o Filho. Entretanto, há características próprias em cada uma das pessoas da
Trindade, as quais não são encontradas nas demais. Estamos falando da
Paternidade, da Filiação e da Processão.
60 Razão da esperança

A paternidade é uma característica exclusiva do Pai. Nesse sentido, não


podemos chamar o Logos de Pai e nem o Espírito de Pai. A paternidade do
Pai é diferente da que os homens concebem por ser eterna. Não houve um
tempo em que Deus não fosse Pai. Desde toda a eternidade ele é o Pai do
Filho. O Pai difere do Filho e do Espírito Santo por não ser gerado e nem
proceder de ninguém, e por ser o único que gera.
O Filho possui a característica exclusiva de ser gerado. Somente o Filho
é filho do Pai. Não houve um tempo em que o Filho não existia (Mq 5.2),
ele é eternamente gerado da essência do Pai. A igreja tem historicamente
afirmado que a geração do Filho é desde toda a eternidade como um ato
atemporal. Se o Pai gerou o Filho em algum momento da História, então,
isso significa que ele mudou de essência e que o Filho não é eterno em
essência. A geração do Filho não cria uma nova essência na Trindade, pois
é a mesma essência que é compartilhada tanto pelo Pai quanto pelo Filho.
A geração é uma comunicação da essência do Pai ao Filho, num ato
atemporal, que faz com que tanto o Pai, quanto o Filho tenham vida em si
mesmos (Jo 5.26). Berkhof dá a seguinte definição da geração do Filho: “E
ato eterno e necessário da primeira pessoa da Trindade, pelo qual ele, den­
tro do Ser Divino, é a base de uma segunda subsistência pessoal, semelhan­
te à Sua própria, e dá a esta segunda pessoa posse da essência divina com­
pleta, sem nenhuma divisão, alienação ou mudança”.10 Em geral, os argu­
mentos mais usados para dizer que Cristo não é eterno são as passagens de
Colossenses 1.15 e Apocalipse 3.14 que falam respectivamente de Jesus
como o “primogênito” e o “princípio” da criação de Deus. Dizem os unitá­
rios, especialmente os Testemunhas de Jeová, que esses termos colocam
Cristo como a primeira criatura de Deus, não sendo, portanto, eterna. Em
Colossenses 1.15 “primogênito” da criação não pode se referir ao primeiro
ser criado, pois subentenderia que Cristo é o primeiro filho da própria cria­
ção, e isso não faz sentido. A interpretação mais provável é que Cristo é o
herdeiro de toda a criação de Deus. Do mesmo modo, em Apocalipse 3.14
falar de Cristo como o primeiro por causa da palavra “princípio” não faz
justiça ao uso dessa palavra no próprio livro do Apocalipse, pois o próprio
Deus é chamado de princípio (Ap 1.8; 21.6; 22.13). Faz muito mais sentido
pensar que a passagem está falando de Cristo como o mais proeminente de
toda a criação, o principal, o mais importante, o chefe (Ver Cl 1.18).
O Pai gera o Filho, o Filho é eternamente “gerado” do Pai, e o Espírito
Santo “procede” eternamente do Pai e do Filho. Nas línguas grega e he­
braica as palavras pneuma e ruach, que são traduzidas como “espírito”, deri­
vam de raízes que significam “soprar, respirar, vento”. Daí a idéia de o
A Trindade: Da leoria à prática 61

Espírito ser soprado por Deus (Jo 20.22). A doutrina de que o Espírito
“procede” do Pai e do Filho levou algum tempo para ser formulada pela
igreja, sendo que somente em 589, no Sínodo de Toledo, foi formulada a
seguinte declaração de fé: “Cremos no Espírito Santo, que procede do Pai
e do Filho”.11 A base bíblica de que o Espírito procede do Pai e do Filho é
João 15.26, bem como as passagens em que o Espírito é chamado de Espí­
rito de Cristo ou de Espírito do Filho (Rm 8.9; G1 4.6; Fp 1.19; IPe 1.11).
Berkhof define a “espiração” do Espírito como sendo “o eterno e necessá­
rio ato da primeira e da segunda pessoas da Trindade, pelo qual elas, dentro
do Ser Divino, vêm a ser a base da subsistência pessoal do Espírito Santo, e
propiciam à terceira pessoa a posse da substância total da essência divina,
sem nenhuma divisão, alienação ou mudança”.12

A Trindade n o trabalho (Econômica)

Um modo interessante de ver a Trindade é entender como a Trindade


age, não em relação a si mesma, mas em relação à criação. Quando fala­
mos em essência, vimos que embora haja características próprias em cada
pessoa da Trindade, não existe qualquer grau de subordinação entre elas.
Porém, quando falamos em trabalho (economia) da Trindade, percebe­
mos que há uma ordem no modo em que Deus trabalha. Isso nos revela
muito do caráter trinitário. Jesus fez algumas declarações que certamente
poderiam nos deixar confusos se não entendêssemos a diferença de Trin­
dade em essência (ontológica) e Trindade econômica. Já vimos que ele
disse ser um com seu Pai, porém, em outras passagens ele afirmou ser
submisso ao Pai, como por exemplo, João 6.38: “Porque desci do céu,
não para fazer a minha própria vontade; e, sim, a vontade daquele que me
enviou”. E também noutra ocasião ele disse: “O Pai é maior do que eu”
(Jo 14.28), Já dissemos que, de acordo com a Bíblia, há igualdade absoluta
entre as pessoas da Trindade, mas então, por que Jesus disse que o Pai era
maior do que ele? Certamente porque ele estava se referindo à sua encar­
nação e à obra que precisava fazer. Ele foi submisso ao Pai nesse sentido
e, portanto, inferior em função, mas não em essência. Estamos agora
falando da realização de obras, não dentro do ser divino, mas em relação
à criação, providência e redenção. Na Escritura, vemos algumas obras
sendo mais atribuídas a uma das pessoas da Trindade do que a outra.
Entretanto, devemos tomar cuidado para não exagerarmos nas distin­
ções, pois de certa maneira, a Trindade participa conjuntamente de todas
as obras externas.
62 Razão da esperança

Não precisamos temer falar de uma subordinação econômica do Filho


ao Pai, desde que entendamos que não há qualquer subordinação de essên­
cia. E por isso que Paulo diz: “Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o
cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça
de Cristo” (ICo 11.3). No contexto, ele está tratando da diferença que exis­
te entre o homem e a mulher, e da subordinação que a mulher deve ao
homem. Ele não está dizendo que a mulher é inferior ao homem, mas que
deve ser submissa e guardar as diferenças proporcionais.13 Do mesmo modo,
o Pai é o cabeça de Cristo, mas isso não quer dizer que ele é superior, pois
a essência é a mesma. A questão está nas funções, que são diferentes.
Devemos evitar a formulação simplista de que o Pai é o responsável
pela criação, o Filho pela redenção, e o Espírito pela santificação, pois a
Trindade participa conjuntamente de tudo isso. A distinção que podemos
fazer é a seguinte: Ao Pai pertence mais o ato de planejar, ao Filho o de
mediar, e ao Espírito o de agir. Isso pode ser visto no relato da criação. Na
passagem de Gênesis 1.1-3 as três pessoas da Trindade estão agindo. O
texto diz: “No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Observe
que a criação é atribuída a Deus. Entretanto, em seguida veja algumas ma­
nifestações diferentes desse Deus: “A terra, porém, estava sem forma e
vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava
sobre as águas” (Gn 1.2). Aí está a Terceira Pessoa, o “Espírito de Deus”. A
maioria dos comentaristas concorda que o Espírito Santo está numa fun­
ção de “energizar” a matéria, sendo, portanto, o ponto de contato entre
Deus e a matéria. Porém, onde está o Filho? O Filho é a “palavra” de Deus.
Foi João quem chamou Jesus de o “verbo” de Deus (Jo 1.1). Ele é a Palavra
proferida, o “haja luz”, é o instrumento por meio do qual todas as coisas
foram criadas. A Bíblia afirma isso categoricamente: “Pois, nele, foram cri­
adas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam
tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi cria­
do por meio dele e para ele” (Cl 1.16). Portanto, podemos dizer que na obra
da criação, o Pai fala, o Filho é a Palavra falada - o Mediador, e o Espírito
Santo é o agente direto sobre a matéria. Em termos semelhantes, a Trinda­
de trabalha na redenção, cada pessoa executando uma tarefa particular. A
passagem de 1 Pedro 1.2 é clara nesse sentido, pois diz que os crentes são:
“Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito,
para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo”. Aqui também o
Pai é o ideaüzador da salvação, pois a ele pertence o ato de escolher os que
devem ser salvos. Nesse sentido, o Pai é o autor da eleição. O Filho está
novamente na função de Mediador, ele possibilita a obediência a Deus pela
A Trindade: Da teoria à prática 63

aspersão do seu sangue. Já ao Espírito Santo é designada a tarefa de santifi­


car, ou seja, separar para si os eleitos. Então, o Pai elegeu, o filho salvou e o
Espírito aplicou a salvação. Na verdade, essa ordem de funções pode ser
vista por toda a Escritura: O Pai planejando a salvação (Jo 6.37,38) e esco­
lhendo os eleitos (Ef 1.3,4), o Filho executando o plano de Deus (Jo 17.4;
Ef 1.7), e o Espírito Santo confirmando essa obra nos crentes (Ef 1.13,14).
De fato, como declara Lloyd-Jones, “essa é uma idéia atordoante, ou seja,
que essas três bem-aventuradas Pessoas, na bem-aventurada santíssima Trin­
dade, para a minha salvação, quiseram dividir assim o trabalho”.14

Aspectos práticos da doutrina da Trindade


Até aqui vimos aspectos históricos, bíblicos e teológicos da doutrina da
Trindade. Agora queremos falar sobre aspectos práticos. Claro que isso não
significa que o que foi dito acima não seja prático. Porém, até aqui nos
preocupamos em definir bem os conceitos; agora, queremos falar sobre
como a doutrina da Trindade deve influenciar a nossa vida diária.
E impossível ter um relacionamento correto com Deus sem considerar
a Trindade. Hoje as pessoas demonstram inconscientemente preferência
por uma das pessoas da Trindade. Há aqueles para quem a pessoa do Pai é
a central. Essas pessoas pensam muito pouco em Jesus e no Espírito Santo.
Principalmente os oriundos da tradição católica, quando lembram de Deus,
pensam na pessoa do Pai. Outros preferem a pessoa do Filho, geralmente
os influenciados pelo “pietismo”, mas certamente trata-se de uma minoria.
O Espírito Santo é o foco principal da vida da maioria dos crentes das
igrejas carismáticas. Essa fragmentação das pessoas da Trindade é coisa
bem típica do nosso mundo moderno. Ela dilui a compreensão da riqueza
de Deus. Por outro lado, na prática o que se percebe é um tipo de unitarismo
funcional. Quando pensamos em Deus, não trazemos à memória a existên­
cia triúna, mas o imaginamos como uma pessoa única. Isso compromete
demasiadamente o nosso relacionamento com ele, pois impede que enten­
damos mais completamente o seu caráter. Na verdade, é impossível com­
preender a criação e a redenção sem pensar na Trindade, pois, como vimos,
tanto a criação quanto a redenção não são obras de uma das pessoas divi­
nas, mas da Trindade como um todo.
Nesse ponto outras coisas precisam ser consideradas. Um problema é
imaginar que Deus precisou criar o mundo para se sentir mais pleno. Isso é
um engano, pois Deus é absolutamente completo em si mesmo. Ele não
64 Razão da esperança

precisava criar o universo para se sentir melhor, nem mesmo para experi­
mentar algum relacionamento, pois em seu ser, Deus já é completo e
relacionável. Na oração sacerdotal Jesus disse: “E agora, glorifica-me, ó Pai,
contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse
mundo... porque me amaste antes da fundação do mundo” (Jo 17.5,24). Na
verdade, esse por si só, já é um grande argumento em favor da Trindade. Se
a Bíblia diz que Deus é amor (ljo 4.8), então, o que ele amava antes de ter
criado alguma coisa? Deus exercitava o amor a si mesmo, no relacionamen­
to trinitário, que por sua vez, veio a ser a base para o relacionamento amo­
roso com os homens, que assim, também pode ser chamado de “amor
eterno” (Jr 31.3). Deus expandiu o seu amor intra-trinitário para suas cria­
turas, e isso demonstra de modo assombroso como é grande esse seu amor.
Quando Deus nos chama para a fé, na verdade é um convite para mergu­
lhar no relacionamento trinitário, aquele relacionamento que as pessoas da
Trindade têm entre si. Jesus disse: “Se alguém me ama, guardará a minha
palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada” (Jo
14.23). Deus não precisava criar nada para se sentir mais pleno, mas ainda
assim decidiu criar para dar maior expressão ao relacionamento trinitário.
Somos chamados para participar disso, como Jesus deixou bem claro na
sua oração: “A fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu
em ti, também sejam eles em nós” (Jo 17.21). Dessas passagens é deduzida
a seguinte idéia : O Deus triúno em nós, e nós no Deus triúno, uma comu­
nhão com base trinitária. Somos chamados a mergulhar no amor da Trin­
dade. Por essa razão, não considerar a Trindade é deixar de entender o
amor de Deus na sua plenitude.
Isso, por sua vez, nos leva a entender o nosso chamado relacional. Jesus
continuou orando ao Pai: “Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens
dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim
de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu
me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.22,23). E
fácil entender por que a comunhão é tão difícil na igreja. As pessoas bus­
cam comunhão por meio de eventos sociais, trabalhos comunitários, músi­
cas que incentivam cumprimentos mútuos, etc. Porém, a verdadeira base da
comunhão da igreja é a Trindade. Precisamos entender que fomos chama­
dos para refletir o mesmo amor que existe na Trindade. Somos chamados
para mergulhar nesse amor, e ele precisa inundar a nossa vida de tal manei­
ra que os outros irmãos recebam os efeitos dele. O próprio sentido da
nossa missão no mundo também está explícito nessas palavras de Jesus.
Queremos que o mundo conheça o evangelho, e para isso fazemos imensas
A Trindade: Da leoria à prática 65

campanhas evangelísticas, cultos de evangelização, distribuímos folhetos,


mas percebemos que os resultados são insignificantes. Jesus ensinou que o
nosso testemunho depende da nossa unidade. Enquanto o amor da Trinda­
de não invadir o nosso coração a ponto de alcançar os outros, o mundo
continuará descrente em relação a Jesus.
A consciência da Trindade muda também o próprio culto que presta­
mos a Deus. O culto cristão é essencialmente trinitário. Uma definição de
culto cristão poderia ser: “Adorar o Pai, pela mediação do Filho, no poder
do Espírito Santo”.15 Essa é uma definição interessante, mas há o perigo de
compartimentar as coisas, pois não é só o Pai que é adorado, e sim o Deus
triúno. A idéia é que o culto como um todo é para a Trindade e obra da
Trindade. O acesso à presença de Deus é feito pela pessoa do Filho. A
comunicação de Deus com o povo se dá pelo Espírito que faz uso da Pala­
vra. O culto é uma vibrante atuação do Deus triúno. Quando temos isso
bem claro na nossa mente, percebemos que a única coisa de que precisa­
mos para adorar a Deus verdadeiramente é a atuação da Trindade. Isso
evidentemente não dispensa os elementos do culto como a música, os ins­
trumentos e as próprias pessoas. Porém, a adoração verdadeira não pode
depender de um cântico animado, de instrumentos bem tocados ou da elo­
qüência do pregador. Se essas coisas são os instrumentos da adoração é
provável que não esteja acontecendo adoração. A adoração verdadeira é
obra da Trindade em nós, e a partir de nós, para a própria Trindade. Por
isso o culto bíblico é bastante diferente do que se vê na maioria das igrejas.
O culto bíblico é teocêntrico e não antropocêntrico.
Finalmente, a doutrina da Trindade é um chamado ao serviço. Estuda­
mos sobre a absoluta igualdade essencial da Trindade. Nesse sentido, não
há qualquer grau de subordinação entre as pessoas da Trindade. Porém,
percebemos que nas obras externas, ao trabalhar na criação e na redenção,
as pessoas da Trindade se subordinam umas às outras e trabalham em per­
feita cooperação. Embora sejam pessoas plenas, e cada uma tenha a essên­
cia completa da Trindade em si, elas não são, e nem desejam ser, autôno­
mas. Elas são absolutamente livres e isso faz com que se relacionem e pro­
movam a obediência. O Filho faz questão de obedecer ao Pai, e o Espírito
é obediente ao Filho. A dificuldade que os cristãos têm para trabalhar em
conjunto é por causa do ego. Cada um tem o seu orgulho pessoal, e quer
que a sua opinião prevaleça. Achamos que obedecer e servir uns aos outros
nos torna inferiores. Achamos que liberdade é a autonomia. A Trindade
nos ensina que, por meio do serviço e da obediência cristã, é que desfruta­
mos da plena liberdade. Quando o Filho de Deus amarrou a tolha na cintu-
66 Razão da esperança

ra e lavou os pés dos discípulos, isso não o tomou menos digno nem me­
nos livre, ao contrário.
Diante dessas coisas, concluímos que devemos valorizar mais essa dou­
trina. Precisamos nos arrepender por considerar tão pouco esse precioso
ensino da Escritura, e passar a considerar o caráter trinitário do nosso Deus
em nosso relacionamento com ele, com os irmãos e no culto que lhe pres­
tamos. Acima de tudo, permanece o fato de que não podemos conhecer
verdadeiramente a Deus se não considerarmos o seu caráter trinitário. Como
diz Bavinck, “somente quando nós contemplamos essa Trindade é que nós
descobrimos quem e o que Deus é”.16
Rocha eterna: 0 Deus imutável

Os primeiros capítulos da Escritura narram a criação. Ao final de cada dia


da criação, Deus contemplava sua obra e dizia que tudo era bom. A medida
que a terra foi se delineando, os oceanos se estabelecendo, os seres vivos se
desenvolvendo, ouvia-se o aplauso dos anjos (Jó 38.4-7), e Deus se deleitava
na sua criação, vendo que tudo era bom (Gn 1.10,12,18,21,25). Ao final do
sexto dia, depois de concluir a sua obra-prima, de ter criado o ser humano, e
colocá-lo para governar a terra, Deus percebeu que as coisas estavam ainda
melhores. O autor inspirado registra: “Viu Deus tudo quando fizera, e eis
que era muito bom” (Gn 1.31). Porém, logo as coisas se complicaram. O
homem e a mulher cederam à tentação. O mundo transformou-se num caos.
Caim matou Abel. E o número dos perdidos passou a ser muito maior do
que dos salvos. Ao contrário do que se poderia imaginar, Deus tolerou a
situação durante vários séculos. Até que um dia ele deu um basta. Em Gêne­
sis 6.5,6 está registrada a impressão geral de Deus sobre a criação decaída:
“Viu o S e n h o r que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e
que era continuamente mau todo desígnio do seu coração; então, se arrepen­
deu o S e n h o r de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração.
Disse o S e n h o r : Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o
homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os
haver feito”. Deus já não podia dizer que tudo na criação era “muito bom”.
Na verdade, ele percebia que a parte principal da criação, o ser humano,
havia se tornado “continuamente mau”. Então, de acordo com a passagem,
ele arrependeu-se de ter criado o homem e decidiu exterminá-lo. A narrativa
bíblica é bastante simples, mas dá origem a alguns problemas teológicos:
Deus não havia previsto todo o mal que se estabeleceria depois da queda?
Será que, de alguma maneira, ele foi pego de surpresa? Teria ele mudado os
seus planos? O que a Bíblia quer dizer com: Deus se arrependeu?
A maioria das religiões crê num Deus que muda de acordo com as situ­
ações. Será que Deus é como os seres humanos, sujeito a derrotas e fracas­
sos? Será que um dia ele acorda bem-humorado e num outro mal- humorado?
68 Razão da esperança

Será que ele tem um temperamento instável como o nosso? Ou será que
Deus é sempre o mesmo, nada o afeta, nada o faz retroceder?

Um conceito necessário
Freqüentemente os escritores bíblicos chamam Deus de “Rocha”.1 En­
tre outras coisas, podemos dizer que, quando os escritores usavam esse
termo, eles tinham em mente a idéia de um local seguro, um abrigo, uma
fortaleza. A expressão “rocha” também transmite a idéia de algo que não se
abala com o tempo, algo que permanece, que é eterno. É nesse sentido que
Isaías diz: “Confiai no Senhor perpetuamente, porque o Senhor Deus é
uma rocha eterna” (Is 26.4). O profeta desafia o povo a confiar em Deus
não apenas hoje ou amanhã, mas eternamente, porque o Senhor é eterno e,
como uma rocha, não muda. Por essa razão, Deus é uma fonte eterna de
segurança. Ninguém confia em coisas mutáveis. Não arriscamos o nosso
dinheiro em investimentos instáveis. Não colocamos a nossa confiança em
pessoas cujo temperamento muda da noite para o dia, pois é um fato esta­
belecido que segurança está intimamente ligada a estabilidade. Não poderí­
amos nos refugiar no esconderijo do altíssimo se ele não fosse uma rocha
eterna. Se Deus não permanecesse firme nos seus propósitos, como pode­
ríamos ter certeza de que tudo o que ele disse se cumprirá? Se ele mudasse
de planos a cada momento, de acordo com as inclinações do momento, e
em resposta a situações inesperadas, como saber se sua vontade será feita?
A Rocha Eterna fala de um Deus que não muda de planos, e que não pre­
cisa mudar, porque os seus planos não têm falhas. A Rocha Eterna é uma
fonte eterna de segurança.
A doutrina da imutabilidade de Deus é uma das mais importantes para a
fé cristã. Crer num Deus imutável é fundamental para que se mantenha um
sistema racional de fé e coerência bíblica. Deus, na sua essência, jamais so­
freu ou sofrerá qualquer mutação. Ele é o mesmo ontem, hoje e eternamen­
te (Hb 13.8). Esse é um conceito necessário. E absolutamente necessário
que um ser perfeito seja imutável, pois mudança necessariamente pressupõe
imperfeição. A idéia de progresso ou regresso somente é admitida em al­
guém finito e imperfeito. O homem progride ou regride na sua vida porque
não é um ser acabado, não possui perfeições imutáveis e está em constante
aprendizado. Se Deus mudasse algo na sua essência, teria que mudar para
melhor ou para pior.2 Se mudasse para pior estaria se tornando menos per­
feito, e se mudasse para melhor, isso significaria que ainda não era perfeito.
Rocha elerna: 0 Deus imutável 69

Sendo um ser absoluto e perfeito, Deus está livre de todas as causas e possi­
bilidades de mudanças. Shedd usa a questão do conhecimento para demons­
trar que Deus necessariamente não muda: “Uma criatura cresce em conheci­
mento em certas direções, e perde conhecimento em outras. Ela adquire
informação e esquece. O criador tem conhecimento infinito a todo instante,
ele nunca aprende ou esquece”.3 Isso pode ser aplicado a todos os atributos
de Deus. Por esse motivo, não podemos imaginar qualquer tipo de mudança
essencial no ser de Deus, e nem precisamos, pois a Escritura é farta em
afirmações a respeito da sua imutabilidade. O próprio nome pessoal com
que Deus se revelou no Antigo Testamento atesta a sua imutabilidade. Ele
disse: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3.14). Deus é o eterno “Eu Sou absoluto”.
Ele não é um “vir-a-ser”, como se crê no panteísmo, mas o eterno “Eu Sou”,
conforme a Escritura atesta. O salmista diz: “Eles perecerão, mas tu perma­
neces; todos eles envelhecerão como um vestido, como roupa os mudarás, e
serão mudados. Tu, porém, és sempre o mesmo, e os teus anos jamais terão
fim” (SI 102.26,27). Não dá para fazer uma comparação entre Deus e os seus
inimigos porque todos mudam e perecem, mas Deus será o mesmo eterna­
mente. O próprio Deus fala por meio de Isaías: “Dá-me ouvidos, ó Jacó, e
tu, ó Israel, a quem chamei; eu sou o mesmo, sou o primeiro e também o
último” (Is 48.12), Deus está chamando o povo a confiar nele por causa de
sua eternidade e imutabilidade. A Escritura afirma que Deus é o “pai das
luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17).
Nessa passagem, Tiago está argumentando que todo bem é proveniente de
Deus que sempre foi bom e jamais deixará de ser. Ele nunca deixará de ser
bom porque é impossível que haja qualquer mudança nele, nem sequer uma
sombra. No ser de Deus não existe a possibilidade de mudança.
Deus é imutável na essência do seu ser e também em seus atributos. Sua
onisciência é sempre a mesma, assim como a sua santidade e o seu poder.
Não devemos interpretar mal certas passagens da Escritura; por exemplo,
quando ela fala em santificar ao Senhor ou ao seu nome (Nm 27.14; Is 8.13;
Ez 28.22, IPe 3.15). Com isso a Escritura não está dizendo que devemos
fazer algum acréscimo à santidade que Deus já possui, mas que devemos
render a ele o que lhe é devido. A imutabilidade divina está intimamente
conectada com os demais atributos dele, como, por exemplo, a sua infini­
dade, onipotência, eternidade, etc. A imutabilidade é absolutamente neces­
sária a fim de que Deus continue sendo o Deus poderoso, absoluto e
confiável que é. Uma única mudança no ser divino ou em seus atributos
afetaria de modo completo a sua divindade, e assim, ele não seria mais o
Deus que é. Por essa razão, a imutabilidade é um conceito necessário.
70 Razão da esperança

Não é tão difícil aceitar que Deus seja imutável no seu Ser, mas e com
relação ao seu modo de agir? Será que ele nunca muda de planos ou atitu­
des? Inicialmente, é possível dizer que do simples fato de sua imutabilidade
ontológica (em seu ser), decorre necessariamente que ele também é imutá­
vel em suas atitudes. Como imaginar um Ser Imutável que, não obstante,
muda? A fim de entendermos melhor essa questão, podemos dividi-la em
duas seções que demonstram o agir imutável de Deus: ele é imutável nos
seus decretos e nas suas promessas.

Decretos imutáveis
Quando falamos em decretos divinos, estamos nos referindo às deter­
minações que tomou desde toda a eternidade. Isso tem a ver com o propó­
sito dele com relação a todas as coisas que foram criadas. Como seria se
Deus resolvesse criar todas as coisas sem um propósito definido? Se ele
fosse improvisando tudo, sem objetivos, deixando, como se diz por aí, “a
coisa rolar”? Existe uma teoria cada vez mais aceita entre os evangélicos de
que Deus não conhece o futuro.4 Essa teoria diz que a onisciência de Deus
abarca apenas o passado e o presente, mas não o futuro, porque o futuro
simplesmente não existe. O futuro está totalmente aberto, e Deus e os
homens construirão o futuro num constante ritmo de adaptações e inova­
ções. Como o homem freqüentemente frustra a vontade de Deus, Deus
precisa buscar novas soluções. Porém, se as coisas fossem realmente as­
sim, teríamos que pensar que o futuro pode não ser como queremos e nem
mesmo como Deus quer. Se nem Deus conhece o futuro, não há qualquer
garantia de que o bem vencerá o mal. Graças à Escritura, não precisamos
mergulhar nesse mundo de incertezas. A Escritura diz que Deus conhece o
futuro porque ele o decretou. Os decretos divinos são a garantia de que a
vontade de Deus finalmente prevalecerá, não a do homem, e muito menos
a de Satanás. A recusa das pessoas em aceitar que Deus tenha decretos é
infundada. Como imaginar um construtor que começa a construir uma
grande obra sem uma planta? Ninguém faz isso, e, se faz, está condenando
a própria obra. Se até os homens que são falíveis e mutáveis, antes de
realizarem qualquer coisa, planejam detalhadamente, por que Deus não
faria isso?
Esses propósitos ou decretos foram formulados por Deus antes da fun­
dação do mundo. Ele os concretiza durante a História, nas épocas que
predeterminou. Concluímos, a partir do ensino da Escritura, que Deus de­
Rocha eterna: 0 Deus imutável 71

cretou todas as coisas que acontecem neste mundo. O Breve Catecismo de


Westminster define os decretos como “o seu eterno propósito, segundo o
conselho da sua vontade, pelo qual, para a sua própria glória ele predestinou
tudo o que acontece” (P, 7). Essa doutrina está fundamentada em muitas
passagens bíblicas. Efésios 1.11 diz: “Nele, digo, no qual fomos também
feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as
coisas conforme o conselho da sua vontade”. Deus não se guia pela vonta­
de dos outros a fim de realizar as coisas que devem ser realizadas. Ele segue
apenas o conselho da sua vontade. De acordo com a Escritura, esses decre­
tos são imutáveis. Ou seja, aquilo que Deus determinou acontecerá exata­
mente como a sua vontade determinou. A Escritura diz: “Se ele resolveu
alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó
23.13,14). Deus não precisa de improvisos ou adaptações. Jó demonstrou
esse entendimento de modo ainda mais abrangente no final do seu livro:
“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado”
(Jó 42.2). Por mais que lute, o homem não consegue frustrar os planos de
Deus. O Salmista demonstra o mesmo entendimento ao afirmar que “o
Conselho do Senhor dura para sempre; os desígnios do seu coração, por
todas as gerações” (SI 33,11). E, comparando a fragilidade dos propósitos
humanos com os divinos, o escritor de Provérbios diz: “Muitos propósitos
há no coração do homem, mas o desígnio do Senhor permanecerá” (Pv
19.21). Já o profeta Isaías afirma categoricamente: “Jurou o Senhor dos
Exércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e, como determinei, as­
sim se efetuará” (Is 14.24), e, ainda “Lembrai-vos das coisas passadas da
antiguidade: que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há outro
semelhante a mim; que desde o princípio anuncio o que há de acontecer e
desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu
conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.9,10). Deus
é aquele que pode anunciar as coisas antes que aconteçam, não só porque
as decreta, mas porque deseja e tem o poder de realizá-las.5
Jesus proibiu que seus discípulos fizessem juramentos. Ele disse: “De
modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra,
por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande
Rei; nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco
ou preto” (Mt 5.34,35). Há coisas que fogem ao nosso controle, por isso,
nem sempre conseguimos cumprir as nossas promessas. O homem não
controla os meios para chegar aos fins e por isso deve se abster de jurar. Há
coisas que fogem ao seu controle, coisas que acontecem por si mesmo, como
o branquear dos cabelos, e sobre os quais não se tem controle. Porém, Deus
72 Razão da esperança

tem controle sobre todas as coisas e sobre si mesmo, por isso ele faz jura­
mentos, pois tem poder para cumprir o que jura. Ele não muda. E isso o que
o escritor aos Hebreus tem em mente quando afirma: “Por isso Deus, quan­
do quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade
do seu propósito, se interpôs com juramento” (Hb 6.17). O autor aos He­
breus diz que “Deus jurou por si mesmo” (Hb 6.13). Ele pode jurar, pois
tem poder para cumprir, e nada pode mudá-lo. Deus nunca precisou fazer
um plano novo; seus planos e propósitos são eternos e imutáveis.

Promessas imutáveis
Deus cumpre todas as promessas que faz. Ele nunca muda as suas pro­
messas, pois essa é a expressão natural de sua imutabilidade. Números 23.19
diz: “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se
arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado,
não o cumprirá?” Porém, não devemos dizer que a fidelidade de Deus é por
nossa causa. Deus não é fiel a alguém, ele é fiel a si mesmo. Se fosse fiel a
nós, então, somente cumpriria as suas promessas desde que nós permane­
cêssemos sempre fiéis a ele. Mas a Escritura afirma: “Se somos infiéis, ele
permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm
2.13). Isso jamais deve ser entendido como uma autorização da parte de
Deus para o pecado, pois as conseqüências de todos os pecados que come­
termos certamente virão sobre nós mesmos. A passagem está dizendo que
Deus não deixa de cumprir suas promessas, que representam o seu propó­
sito, devido a alguma falha humana,6 pois se fosse assim, dificilmente Deus
conseguiria cumprir qualquer promessa sua. Uma passagem clássica que
nos ajuda a entender isso é Malaquias 3.6: “Porque eu, o Senhor, não mudo,
por isso vós, ó filhos de Jacó, não sois consumidos”. Nos tempos de Mala­
quias, o povo de Deus havia se desviado dos padrões estipulados por Deus,
especialmente no que se referia aos dízimos e às ofertas (Ml 3.7-12). Entre­
tanto, Deus tinha um plano e havia feito promessas a Abraão, Isaque e Jacó.
Embora os “filhos de Jacó” merecessem ser exterminados, Deus os poupa­
ria por causa da sua promessa de abençoar todas as famílias da terra em
Abraão e sua descendência. Com relação ao próprio Abraão, Deus demons­
trou a imutabilidade das suas promessas na ocasião em que ele, seguindo a
idéia de sua mulher, resolveu ter um filho com a serva Agar. Aquilo foi
desagradável aos olhos do Senhor, mas o Senhor não deixou de cumprir a
promessa que havia feito a Abraão, e no tempo determinado, Isaque nas­
Rocha eterna: 0 Deus imutável 73

ceu. Não precisamos ter dúvidas, pois como diz Paulo: “Os dons e a voca­
ção de Deus são irrevogáveis” (Rm 11.29).

Aparentes m u d a n ça s em Deus
Alguém dirá: e como ficam as várias passagens da Escritura que afir­
mam que Deus se arrependeu de alguma coisa que havia dito e mudou dc
atitude? E como explicar a própria encarnação de Cristo? Como pôde Cris­
to ter tomado um corpo humano, morrido e ressuscitado e ainda assim a
essência da Trindade permanecer imutável? Ele voltou para o céu com um
corpo, e ainda assim nada mudou?
Comecemos pelas aparentes mudanças em Deus. Algumas passagens da
Escritura de fato dizem que Deus se arrependeu. Como já foi visto, Gêne­
sis 6.5,6, diz isso claramente: “então, se arrependeu o Senhor de ter feito o
homem na terra, e isso lhe pesou no coração”. O mesmo, porém de modo
inverso, pode ser visto em Êxodo 32.14, quando Deus declara o desejo de
exterminar o povo por causa de seu pecado, mas diante da suplica de Moi­
sés, a Bíblia diz que: “Então, se arrependeu o Senhor do mal que dissera
havia de fazer ao povo” (Ver Jr 18.8-10; 26.13; Jn 3.9,10; Am 7.1-3). Como
conciliar essas passagens com o conceito de imutabilidade? Para começar a
responder a questão, precisamos fazer uma distinção teológica. Quando
dizemos que Deus é imutável, não estamos querendo dizer que Deus é
imóvel ou impassível. Não se deve confundir imutabilidade com imobilida­
de.7 Deus não deve ser descrito como alguém sem movimento, que não se
importa com nada. Se fosse assim, Deus não teria sentimentos, e não pode­
ríamos atribuir amor, misericórdia, graça, ou mesmo ira a Deus. Deus não
é imóvel ou impassível, ele está em constante relacionamento com o ser
humano, que por sua vez é essencialmente mutável. Há realmente um rela­
cionamento entre Deus e os homens, porém é Deus quem pauta esse rela­
cionamento e não o homem, como pretende o teísmo aberto. Isso não quer
dizer que haja alguma mudança em Deus, mas que ele se apresenta a nós da
maneira como o podemos entender. A Escritura diz que Deus tem boca,
nariz, braços, coração, etc. Ela diz que ele inclina os ouvidos para ouvir,
como se de outra maneira não conseguisse. Essas seriam descrições literais
de Deus? Evidentemente que são “antropomorfismos”, ou seja, caracterís­
ticas humanas atribuídas a Deus a fim de que possamos compreendê-lo
melhor. E desse modo que devemos interpretar a expressão “Deus se arre­
pendeu”. E uma atitude de colocar em linguagem humana algo que é pró-
74 Razão da esperança

prio somente de Deus (antropopatismos). Ou seja, não sabemos qual foi o


teor do sentimento que Deus teve quando viu a degeneração da raça huma­
na, mas não podemos confundir isso com o arrependimento humano, que
sempre carrega a idéia de imperfeição, inabilidade ou incompetência. O
arrependimento que é atribuído a Deus não representa isso, mas carrega a
idéia de que o Deus que tem sentimentos, entristece-se ao ver a situação da
raça humana decaída. Está claro na passagem que a situação do ser humano
“pesou no coração” de Deus (Gn 6.6). O que é esse sentimento de peso no
coração senão tristeza diante da situação trágica da humanidade? Os estu­
dantes de teologia perguntam freqüentemente se não havia uma palavra
que pudesse explicar melhor o que Deus sentiu nos momentos descritos
acima. A resposta é não. Não há palavras para explicar que sentimento
Deus teve. A expressão que o escritor inspirado usou é a melhor; porém,
precisamos entender à luz de toda a Bíblia o que ela realmente significa. E
como já vimos, a Bíblia diz que Deus não é “filho de homem, para que se
arrependa” (Nm 23.19). Então, podemos entender as passagens que falam
do arrependimento de Deus como se referindo a um arrependimento dife­
rente daquele que o homem sente. Isso precisa ficar bem claro, pois em
Deus não há falhas. Ele não precisa lamentar por não conseguir realizar
algum plano. Ele jamais poderá ser acusado de não ter planejado ou previs­
to as dificuldades, como é comum no ser humano. Porém, ele tem senti­
mentos. Jesus deixou isso bem claro ao lamentar sobre Jerusalém, quando
esta o recusou, dizendo: “Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a
galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o
quisestes!” (Lc 13.34). Será que Jesus não tinha poder para mudar aquela
situação? Certamente que tinha, porém ele não mudou. Não obstante, en­
tristeceu-se por ver a dureza de coração do povo. Do mesmo modo, Jesus
chorou diante do túmulo de Lázaro (Jo 11.35), mas ninguém poderia dizer
que aquele foi um choro impotente, até porque logo o morto estaria saindo
do túmulo. Aquele foi um choro de quem se compadece da terrível miséria
que desabou sobre a humanidade por causa do pecado. Deus tem senti­
mentos e os expressa, mas não há falhas e nem mudanças nos seus planos.
Algumas vezes, parece que Deus muda suas promessas ou deixa de cum-
pri-las, mas com respeito a isso, há algo que precisa ser entendido. Algumas
promessas dc Deus são realmente condicionais. E como se Deus dissesse:
“Se vocês fizerem isso, receberão a minha bênção, mas se não fizerem,
serão amaldiçoados”. Nesse caso, também não há qualquer mudança em
Deus, pois ele está agindo conforme o seu propósito em ambos os casos. A
própria conversão do homem se enquadra nisso. Antes de se converter, o
Racha eterna: 0 Deus imutável 75

homem tinha sobre si a ira de Deus, mas, depois da conversão recebe graça
e misericórdia. Observe que em todos os casos citados acima não foi Deus
quem mudou, mas o homem. Deus apenas agiu em conformidade com o
que havia decretado a respeito das atitudes dos homens, sem nada mudar
do seu ser quanto aos atributos, promessas ou decretos. O famoso caso do
rei Ezequias também se enquadra nessa explicação. Ezequias, depois de
receber um ultimato de Deus de que iria morrer, implorou ao Senhor que
lhe concedesse mais tempo de vida e Deus lhe deu uma sobrevida de quin­
ze anos (Is 38.1-8). Ezequias morreria se Deus não interviesse, mas estava
no seu plano intervir, fazendo uso da oração do próprio Ezequias. Isso
tudo faz parte do decreto divino e em nada abala a sua imutabilidade, mas
destaca, de uma maneira impressionante o papel da oração no cumprimen­
to dos decretos de Deus. Até porque, se Deus quisesse realmente levar
Ezequias, não teria mandado o profeta avisá-lo.
Falta-nos ainda explicar a encarnação de Cristo, e esta é certamente a
tarefa mais difícil até aqui. A chave para entender a questão é que devemos
entender a encarnação de Cristo como fazendo parte do eterno propósito
de Deus, que foi levado a efeito por um ato da sua vontade. Nesse sentido,
a encarnação não trouxe nada de novo à divindade, pois era algo eterna­
mente previsto e predeterminado. As vezes, lemos na Bíblia que Jesus é o
Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo (IPe 1.20; Ap 13.8).
Mas quando foi que Cristo morreu? Para Deus, ou seja, nos seus planos e
decretos, essa morte já estava contada desde o início. O mesmo, portanto,
pode ser dito de sua encarnação. Era algo predeterminado, algo que já fazia
parte da história da Trindade. Nada foi acrescido ou diminuído de Deus
pela encarnação de Cristo, pois ele apenas agiu de acordo com os seus
planos eternos.

Conclusão: Vale a p en a confiar


Concluímos, portanto, que Deus está sempre em movimento, porém o
seu ser, os seus atributos, a sua vontade e os seus decretos jamais mudam.
Como diz Pink, “aqui temos consolação firme. Não se pode confiar na
criatura humana, mas em Deus sim”.8 De fato, Deus é uma Rocha Eterna
que nunca muda. Ele se relaciona com o ser humano e se faz conhecido na
linguagem do ser humano. Seus sentimentos não são artificiais ou forjados,
mas puros, sinceros e perfeitos. O futuro existe para Deus e não está em
aberto. Ele é tão certo e definitivo quanto o passado. O conhecimento de
76 Razão da esperança

Deus sobre as coisas que ainda virão é o mesmo que ele tem sobre as coisas
que já aconteceram. Seu domínio é pleno e completo. Nossa salvação re­
pousa sobre esse caráter divino que é imutável. E o caráter de um Deus que
inicia uma obra e a completa, mas não no improviso, em reação aos erros e
vicissitudes de uma construção, pois ele segue o seu plano como um arqui­
teto que tem uma planta perfeita. E não é só a planta que é perfeita, mas
também o seu conhecimento e poder para executar o que ele mesmo deter­
minou. Se o futuro estivesse “aberto” para Deus, então, toda a certeza so­
bre qualquer coisa desapareceria. Não saberíamos sequer se Deus conse­
guiria estabelecer os “novos céus e nova terra” que estão prometidos. Tudo
deveria ficar em suspense, e talvez, em vez de orarmos a ele para que nos
ajude, ele teria que pedir a nós que o ajudássemos a cumprir o seu plano.
Ou pelo menos que não o atrapalhássemos. Se Deus mudasse os seus pla­
nos, ou melhor, se algo forçasse Deus a mudar os seus planos, como um
mau construtor precisa, a cada momento, consertar os erros cometidos,
não teríamos garantias de que as promessas que estão na Bíblia de fato
aconteceriam. E certo que não precisamos ter medo disso, e o motivo não
é outro senão que Deus é imutável. A imutabilidade de Deus é a garantia de
que todas as suas promessas se cumprirão. Isso nos dá segurança para crer
nele, e podemos mesmo ficar seguros, pois, afinal a Rocha é Eterna.
6

0 teu Deus, onde está ?

As m i n h a s l á g r i m a s t ê m s ido o m e u al i m e n t o dia e noite, e n q u a n t o m e di zem


c o n t i n u a m e n t e : o teu Deus, o n d e está? (SI 42. 3)

Desde a mais tenra infância aprendemos a cantar corinhos que dizem


“Deus é bom para mim”. Essa consciência de que Deus é bom nos acom­
panha durante a vida inteira. Há ocasiões, entretanto, que temos dificul­
dades em acreditar que isso seja realmente verdade. E triste, mas muitas
vezes, nossas crenças não passam de uma questão de decorar “chavões”
ou slogans religiosos que não fazem qualquer sentido real. Vivemos num
mundo muito cruel. Raramente se vê a justiça triunfar, e os bons, geral­
mente são os que sofrem mais. As vezes, dá a impressão de que Deus se
esqueceu de ajudar aqueles que esperam nele. Quando olhamos para toda
a desgraça que há neste mundo surge a pergunta: Como pode um Deus
bom permanecer impassível diante de tanta desgraça? Como um Deus
bom pode permitir que bebês morram na infância; que crianças morram
de fome em meio à pobreza ou nas guerras; que alguns tenham tanto
privilégio enquanto outros, tanta escassez; que o injusto domine sobre o
justo; e que muitos fiéis sejam perseguidos e mortos sem temor nem
piedade? Não podemos negar que este mundo tem uma vocação para a
tragédia. Anos de trabalho e dedicação podem se perder por causa da
seca ou da enchente. O frio mata e o calor escalda. Os descontroles da
natureza se abatem sobre todos, especialmente sobre os menos favoreci­
dos. Futuros brilhantes são despedaçados por balas perdidas que, quan­
do não colhem a vida de inocentes, os deixam condenados a camas de
hospitais. Os criminosos estão à solta pelas ruas, enquanto os cidadãos
de bem estão aprisionados nas suas próprias casas. Por mais que se faça
oração e por mais que se busque a Deus, as calamidades e as tragédias
continuam ocorrendo e ceifando vidas inocentes, espalhando o caos e a
violência. Diante de todas essas coisas, muitas vezes temos que ouvir a
pergunta dos incrédulos: “O teu Deus, onde está?” Se ele existe, onde
78 Razão da esperança

está a bondade e a justiça dele? É sobre isso que queremos falar neste
capítulo —sobre a bondade e a justiça de Deus apesar de todas as tragé­
dias que nos cercam.
Devemos crer na bondade de Deus porque a Escritura afirma que ele é
bom. Tiago, ao escrever aos perseguidos e sofridos crentes da dispersão, os
admoestou dizendo: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto,
descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra
de mudança” (Tg 1.17). E a certeza da imutabilidade de Deus que nos dá
garantias de sua bondade também. Tiago está dizendo que todo o bem vem
de Deus, porque ele é eterna e imutavelmente bom. Deus jamais muda, e
por isso, concluímos que a sua bondade igualmente jamais muda.

Entendendo a bondade de Deus


Uma coisa que precisamos entender sobre a bondade de Deus é que ele
é bom no seu ser essencial. Deus não é apenas benevolente, ou seja, apenas
um concessor de coisas boas; Deus não é bom só pelo que ele faz; ele é
bom pelo que ele é. Ele é essencialmente bom, e nesse sentido poderíamos
dizer que é ele o único bom (Mc 10.18). Tudo nele é bom, e ele, necessaria­
mente, age sempre de acordo com a sua bondade. Ser bom é uma lei ine­
rente de Deus, faz parte do seu caráter.

O a m o r de Deus

O amor de Deus é uma maneira de ver a sua bondade. A Escritura


afirma que “Deus é amor” (ljo 4.8,16), demonstrando que o amor faz
parte da própria essência de Deus. Amar é algo absolutamente natural em
Deus. Ele não precisa se esforçar para produzir esse sentimento. Esse amor
de Deus se direciona a tudo o ele fez, a todas as obras das suas mãos, como
um reflexo do amor trinitário.
Na sua bondade, Deus não manifesta o seu amor apenas para o seu povo;
ele é bom para com todas as pessoas e coisas criadas. Como criador, Deus se
importa com toda a sua criação e é bom para ela. O Salmo 145.9,15,16 diz:
“O Senhor é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam todas
as suas obras (...), em ti esperam os olhos de todos, e tu, a seu tempo, lhes dás
o alimento. Abres a mão e satisfazes de benevolência a todo vivente”. A
bondade de Deus se estende a tudo o que existe, pois, na sua benevolência,
ele sustenta todos os seres vivos. Todas as coisas são objeto do amor e do
0 teu Dens, onde está? 79

carinho especial de Deus. Até as criaturas de menor importância são consi­


deradas por ele, às quais ele sustenta com a sua benevolência.
Num sentido mais técnico, poderíamos dizer que é quando a bondade
de Deus se direciona mais especificamente para o homem que ela recebe o
nome de amor. Devemos pensar no amor como uma demonstração da
bondade de Deus que se direciona mais às criaturas racionais, embora, como
já vimos, não é necessariamente errado dizer que Deus ama toda a criação.
Algo que precisa ser entendido é que não devemos localizar na criatura a
motivação do amor de Deus. Deus não ama as suas criaturas com base em
algo que vê nelas, mas com base no seu próprio amor, Como explica Berkhof:
“ele ama as Suas criaturas racionais por amor a Si mesmo, ou, para expressá-
lo doutra forma, neles ele se ama a Si mesmo, Suas virtudes, Sua obra e Seus
dons”.1 Nesse sentido, não precisamos temer afirmar que Deus ama todas
as pessoas, inclusive os seres perdidos. Como suas criaturas, ele ama e cuida
delas, como veremos na seção a respeito da graça comum, abaixo. O que
precisamos entender é que Deus ama o seu povo de um modo especial,
pois os vê como filhos espirituais em Cristo. O amor pelas criaturas é dife­
rente do amor pelos filhos. Nesse ponto, o seu amor está relacionado ao
sacrifício do seu Filho. Certamente, a maior de todas as provas de amor que
Deus deu aos homens foi o ato de entregar o seu Filho por nós. Romanos
5.8 declara: “Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato
de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores”. Essa é a maior
de todas as provas da bondade e do amor de Deus. Geralmente, as pessoas
buscam encontrar provas do amor de Deus nas bênçãos recebidas. Quando
não se sentem abençoadas, elas dizem: “Deus não me ama”. De acordo
com a Escritura, a verdadeira prova do amor de Deus está no sacrifício de
Jesus. Em meio às dificuldades da vida, devemos continuamente olhar para
o sacrifício de Cristo que nos dá a certeza do seu amor. É verdade que Deus
nos concede dádivas porque nos ama, mas a Escritura também diz que,
porque ele ama, ele disciplina, conforme está escrito em Apocalipse 3.19:
“Eu repreendo e disciplino a quantos amo”. Deus não demonstra o seu
amor apenas quando nos concede benefícios, mas também quando permi­
te que certas coisas ruins nos atinjam com o propósito de nos disciplinar,
testar, ou de fazer a nossa dependência dele crescer.

A gr a ç a de Deus
Um outro modo de dizer que Deus é bom é dizer que ele é gracioso,
pois graça se refere a uma faceta da bondade de Deus. A graça tem sido
80 Razão da esperança

classicamente explicada como “um favor imerecido”. Ela representa a bon­


dade de Deus em relação às pessoas que não merecem recebê-la.
Os teólogos têm feito uma distinção entre graça comum e graça espe­
cial, que são os modos pelos quais ela é demonstrada por Deus. A graça
comum é a bondade de Deus para todas as pessoas, mesmo as não-crentes,
que sendo criaturas de Deus, são alvo do cuidado divino. Deus mostra
favor até ao perverso, como o próprio Jesus demonstrou: “Eu, porém, vos
digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos
torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre
maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.44,45). Ao comen­
tar essa passagem, Hendriksen disse que “o amor de Deus para com os
habitantes da terra, sejam bons ou maus, é imparcialmente revelado nas
bênçãos do sol e da chuva e de todos os seus resultados benéficos”.2 Esse
autor não tem medo de chamar essa benevolência divina de amor. De fato,
Deus não manda chuvas apenas para o campo dos crentes. Podemos, por­
tanto, definir a “graça comum” como a bondade de Deus pela qual ele, por
meio do Espírito Santo, concede benefícios como lhe apraz a todos os
homens, sem levar em conta se são convertidos ou não, e sem necessaria­
mente lhes mudar o coração. A graça comum tem a ver com a preservação
da vida neste mundo.
Há muitas outras maneiras de Deus manifestar a sua graça comum, como,
por exemplo, no refreamento do pecado. Em geral, o homem não é tão
mau quanto poderia ser. Isso se deve aos limites que Deus impõe ao ho­
mem. Estes podem ser internos e externos. Internamente há a lei da cons­
ciência (Rm 2.14,15). O ser humano sabe quando está infrigindo essa lei, e
por mais que lute contra ela, não consegue se ver livre. Externamente, exis­
te a autoridade civil e a própria opinião pública. A Escritura diz que “não há
autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram
por ele instituídas” (Rm 13.1). Deus concedeu poderes às autoridades civis
para que executem a justiça para que a vida humana seja mais suportável.
Por isso, Paulo declara: “A autoridade é ministro de Deus para teu bem.
Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a
espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o
mal” (Rm 13.4). A opinião pública também age no sentido de restringir o
pecado. Existe, na maioria das pessoas, sejam cristãs ou não, um consenso
geral sobre certo e o errado. Uma pessoa não precisa ser cristã para saber
que matar, roubar, mentir, adulterar, etc., são coisas erradas. Essa opinião
pública ajuda a restringir o pecado e deve ser considerada uma atuação da
graça comum. Porém, essa manifestação da graça comum de Deus parece
0 teu Deus, onde está? 81

estar cada vez menos atuante no mundo. Frente aos ataques maciços dos
meios de comunicação, a moralidade que dominava a opinião pública tem
recuado. Isso só pode ser uma preparação maligna para a manifestação do
Anticristo e seu reino imoral. São aqueles tenebrosos tempos profetizados
pela Escritura, nos quais o mistério da iniqüidade terá livre curso neste
mundo. Parece que já podemos avistá-los.
Podemos também ver a manifestação da graça comum naquilo que
denominamos cultura. Deus possibilitou ao homem que desenvolvesse
talentos naturais a fim de que, por meio da medicina, da tecnologia, das
artes, etc., pudesse tornar a vida humana menos penosa. Essas coisas não
colaboram para a salvação de ninguém, pois não têm o menor caráter
redentor, sendo simplesmente benefícios que Deus concede aos homens
para tornar a vida humana um pouco melhor. As pessoas podem ser tão
dotadas como Einstein, Shakespeare, Da Vinci, etc., por causa da atuação
da graça comum.
A forma mais sublime, entretanto, de a graça de Deus se manifestar é
por meio do que denominamos “graça especial”. A graça especial refere-
se ao tratamento divino em relação aos seus filhos por meio de Cristo
Jesus. Ela está ligada à redenção, ao contrário da graça comum. É chama­
da de “especial” porque não é direcionada a todos os homens. Podemos
definir a graça especial como “a obra do Espírito Santo que efetivamente
move o homem para crer em Jesus Cristo como Salvador”. E por essa
graça que somos salvos, conforme a Bíblia declara expressamente: “Pela
graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; e dom de Deus”
(Ef 2.8), Sem ela, jamais encontraríamos a salvação, pois estamos “mor­
tos em delitos e pecados” (Ef 2.1), sendo por natureza “filhos da Ira” (Ef
2.3). Por ela somos “justificados gratuitamente” (Rm 3.24) e recebemos
todos os benefícios espirituais de Deus (Jo 1.16; 2Co 8.9). O fato de a
graça especial ser direcionada apenas para os crentes não significa que
eles sejam menos pecadores do que os perdidos; na verdade, todos são
igualmente pecadores diante de Deus (Rm 3.10,23). A graça especial está
intimamente ligada ao amor eletivo de Deus, o qual será estudado nos
próximos capítulos.
Portanto, podemos fazer a seguinte distinção entre graça comum e es­
pecial: a graça comum se dirige a todos os homens e tem a ver com benefí­
cios comuns; a graça especial se direciona apenas aos crentes e tem a ver
com a salvação. Ambas as manifestações dessa graça evidenciam a bondade
de Deus para com as suas criaturas.
82 Razão da esperança

A misericórdia de Deus

Um outro modo de entendermos a bondade de Deus é pensarmos em


sua misericórdia. A misericórdia é uma das características divinas mais
louvadas pelos escritores bíblicos. O Salmo, 136 do início ao fim, declara
que Deus deve ser louvado “porque a sua misericórdia dura para sem­
pre”. Ele não deixa de agir na vida daqueles que clamam por sua miseri­
córdia. Para Berkhof, “se a graça de Deus vê o homem como culpado
diante de Deus e, portanto, necessitado de perdão, a misericórdia de Deus
o vê como um ser que está suportando as conseqüências do pecado, que
se acha em lastimável condição, e que, portanto, necessita do socorro
divino”.3 Socorro é algo que Deus não nega aos que clamam por ele (SI
22.24; 30.2; 121.1,2).
O profeta Jeremias diz que as misericórdias do Senhor, nos momentos
críticos pelos quais o povo de Judá passou, eram a causa de o povo estar
vivo: “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos
porque as suas misericórdias não têm fim; renovam-se a cada manhã” (Lm
3.22,23). Poucas coisas na Bíblia recebem o adjetivo “infinito”. O amor é
uma delas (ICo 13.8) e a misericórdia também.
A mais bela declaração da misericórdia de Deus foi obra do poeta que
cantou: “Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui con­
soante as nossas iniqüidades. Pois quanto o céu se alteia acima da terra,
assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem. Quanto dista
o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós as nossas transgressões. Como
um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que
o temem. Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (SI
103.10-14). De fato, é o conhecimento que Deus tem de nós como criatu­
ras finitas e decaídas que o leva a manifestar a sua misericórdia. Ele conhe­
ce a nossa estrutura, sabe que somos pó. Na verdade, o Novo Testamento
afirma que esse é um dos motivos pelo qual Jesus se compadece de nós. Ele
já foi um de nós, entende as nossas fraquezas e por isso é tão misericordio­
so, como afirma o autor da carta aos Hebreus: “Porque não temos sumo
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele
tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado.
Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim
de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião
oportuna” (Hb 4.15,16).
0 teu Deus, onde está ? 83

A pa ci ên cia de Deus

Por fim, uma outra demonstração da bondade de Deus refere-se à sua


paciência. Por paciência devemos entender o fato de que Deus tolera os
pecados dos homens por longos períodos, sem visitar imediatamente a ini­
qüidade deles. E uma espécie de chance que Deus dá aos homens para que
se arrependam. Ele não faz questão alguma de antecipar o julgamento dos
ímpios. Pedro diz: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a
julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não que­
rendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”
(2Pe 3.9). Se Deus ainda não destruiu este mundo é porque a sua paciência
é realmente muito grande. Não é sem motivo que ele é chamado de “o
Deus da paciência” (Rm 5.15).
A paciência de Deus é algo surpreendente para nós, principalmente le­
vando em consideração que os homens não são pacientes com as falhas
dos seus semelhantes. Se muitas vezes os homens não fazem algo contra as
falhas de seus semelhantes é porque lhes falta poder; mas quando pensa­
mos que Deus tem poder para agir no momento em que quiser, e condenar
os maus, mas espera, para que eles tenham tempo de se arrepender, vemos
quão longa é sua paciência. Os homens seriam sábios se atentassem a essa
paciência do Senhor, pois, ao contrário do amor, ela não dura para sempre.

As tragédias do m u n d o
As explicações acima são um resumo do que a Bíblia fala a respeito da
bondade de Deus. Porém, é um fato que elas nem sempre nos dão respos­
tas precisas sobre o motivo pelo qual Deus permite as tragédias no mundo.
Porém, queremos insistir que o fato de que Deus demonstra amor, graça,
misericórdia e paciência para com os homens deve ser suficiente para que
aceitemos e entendamos que ele é de fato bom. Somente a fé nos faz aceitar
a bondade divina. Com isso em mente, vamos pensar na questão das tragé­
dias que acontecem neste mundo. Será que elas de alguma maneira com­
prometem a bondade ou a justiça de Deus?

Conseqüências do Pecado

A primeira coisa que deve ser entendida é que Deus não está satisfeito
com o estado caótico do nosso mundo, e nem foi ele quem desejou que o
84 Razão da esperança

mundo caísse nesse estado. Foi uma escolha deliberada do homem que trou­
xe todas as desgraças dessa vida. Quando Adão escolheu pecar, sabia das
conseqüências, pois Deus o havia avisado (Gn 2.17). E, depois do pecado
dele, Deus ordenou a maldição sobre este mundo, dizendo: “Maldita é a terra
por tua causa” (Gn 3.17). Observe que a culpa pela maldição é claramente do
homem. Como conseqüência da maldição, o mundo virou um caos em todos
os sentidos. Os descontroles da natureza e a maldade do homem seriam cons­
tantes em toda a história do mundo. A Bíblia diz que a criação “está sujeita à
vaidade, não voluntariamente” (Rm 8.20) e que ela “geme e suporta angústias
até agora” (Rm 8.22), o que nos sugere que todas as catástrofes que aconte­
cem neste mundo são conseqüências do pecado. Não pelo pecado de cada
homem, mas pelo estado decaído da humanidade e do mundo. A bondade de
Deus se manifesta justamente pelo fato de que ele poderia ter deixado o
mundo entregue ao seu próprio destino, mas escolheu não fazer isso.4 Deus
providenciou uma redenção completa para este mundo. Chegará o dia em
que a “criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). Até lá teremos que conviver com as
desgraças desta vida, embora sempre tenhamos em Deus o nosso refúgio
seguro, “bem presente nas tribulações” (SI 46.1).

O triu nf alismo pseudocristão


Atualmente, muitos crentes acreditam numa espécie de triunfalismo
pseudocristão. Eles pensam que um fiel não passa por dificuldades, que
não pode ter problemas financeiros ou ficar doente. Em geral, esses pro­
blemas são atribuídos ao Diabo, e pensa-se que, o fato de passar por essas
dificuldades evidencia falta de fé. Pastores ensinam os crentes a se conside­
rar vitoriosos sobre todos os problemas, pois são filhos de Deus, e não é
justo que sofram. Eles devem exigir na prática a posição de que desfrutam
como “príncipes”. Diante das dificuldades, basta orar e decretar que o pro­
blema não mais existe e ele desaparecerá. Basta profetizar vitórias e todos
os problemas desaparecerão. Essa “teologia” se parece muito com a filoso­
fia de vida chamada de “pensamento positivo”. O que essa maneira de
pensar ignora é que o mundo está debaixo da maldição do próprio Deus, e
que o fato de alguém ser crente não impede que nasçam ervas daninhas no
seu quintal, nem que a sua esposa tenha dores de parto (Gn 3.16-18). Esses
são exemplos da maldição do mundo citados pelo próprio Deus.
Outra coisa que esse modo de pensar ignora é que o próprio Deus pode
enviar provações para trazer amadureximento aos crentes. A Bíblia clara-
0 teu Deus, onde está ? 85

mente demonstra que Deus permite que venham tribulações sobre a vida
dos crentes a fim de purificar a fé. Assim como Deus quis demonstrar a
Satanás que Jó era fiel não apenas pelos benefícios que concedia a ele, ele
também pode deixar o crente passar dificuldades - e muitas vezes ele faz
isso - , a fim de que se comprove a fidelidade do mesmo. Pedro diz que os
crentes deveriam se alegrar, mesmo que no presente, por breve tempo, se
necessário, fossem contristados por várias provações. Segundo ele, isso acon­
teceria “para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais
preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em
louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (IPe 1.6,7). As prova­
ções da vida redundam no louvor de Jesus. Paulo experimentou na sua
própria vida todo tipo de provações e dificuldades. Ele foi várias vezes
açoitado, fustigado com varas, apedrejado, enfrentou naufrágios, perigos
de todo tipo, trabalhos além das forças, fome, sede, frio e nudez (2Co 11.25-
27). Paulo não seria um modelo de fé para muitas igrejas da atualidade. Ele
próprio fez questão de relatar um sofrimento terrível na sua vida, o qual
chamou de “espinho na carne”, que o atormentava, e do qual insistiu com
o Senhor que o livrasse, mas recebeu como resposta: “A minha graça te
basta” (2Co 12.7-9). Deus não retirou o sofrimento, e não adiantaria nada
Paulo dizer “eu sou um filho de Deus, e decreto que este sofrimento desa­
pareça”, porque aquele sofrimento era para o bem de Paulo. Era justamen­
te essa graça (bondade) que o ensinou a “viver contente em toda e qualquer
situação”. Ele disse que na pobreza ou na riqueza, na honra ou na humilha­
ção, na abundância ou na escassez, “tudo posso (a idéia é: suporto tudo)
naquele que me fortalece” (Fp 4.11-13). Curiosamente, esse versículo é um
dos mais usados para defender o triunfalismo supostamente cristão. Os
crentes o citam querendo dizer “eu sou invencível, posso realizar qualquer
coisa”, enquanto Paulo dizia: “eu consigo suportar todo sofrimento deste
mundo porque ele me fortalece”. De fato, Paulo enfrentou todo tipo de
situação, algumas que quase o fizeram desesperar da própria vida (2Co 1.8),
mas jamais deixou de ser fiel, e sua fé foi maravilhosamente amadurecida, a
ponto de poder dizer ao final de seu ministério: “Combati o bom combate,
completei a carreira, guardei a fé” (2Tm 4.7). Nos moldes de Jó, Paulo
descobriu a graça de Deus no sofrimento, e por causa dela podia dizer:
“Quando sou fraco é que sou forte” (2Co 12.10). Infelizmente, o triunfalismo
alegadamente cristão impede que as pessoas tenham as maiores e mais verda­
deiras experiências com Deus, e nunca levará uma pessoa a um nível espiri­
tual mais elevado. Esse triunfalismo cria crentes mimados, bebês em Cristo
que nunca experimentam o verdadeiro crescimento, pois se recusam a usar
86 Razão da esperança

os instrumentos que Deus dá para o crescimento de seus filhos. O


triunfalismo falsamente cristão ignora a verdade de Romanos 8.28: “Sabe­
mos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. O propósito de
Deus é que sejamos conforme à imagem de Cristo (Rm 8.29). Deus usa
todas as coisas, inclusive o sofrimento, para o nosso crescimento. Tiago,
escrevendo aos perseguidos crentes da dispersão, disse: “Meus irmãos, ten­
de por motivo de toda alegria o passardes por várias provações” (Tg 1.2).
Esse apóstolo está dizendo que os crentes devem se alegrar nas provações
que passam nesta vida, não porque sejam “masoquistas”, pessoas que gos­
tam de sofrer pelo prazer de sentir dor, mas porque Deus tem um propósi­
to até mesmo com o sofrimento. Tiago afirma que as provações vão trazer
perseverança aos crentes, o que por sua vez os tornará maduros na fé (Tg
1.3,4). Creio que é nesse sentido que devemos entender Romanos 8.28.
Nesta vida, muitas coisas que nos acontecem são ruins, e mesmo as suas
conseqüências imediatas não são boas, por isso, também, precisamos en­
tender que esse bem pode ser um “bem final”, aquilo que tem a ver com o
propósito de Deus, pelo qual ele chamou os crentes. Devemos evitar pen­
sar que todas as recompensas de Deus são dadas nesta vida, e que recebe­
mos ainda neste mundo a justiça por toda injustiça recebida. Somos desafi­
ados pela Bíblia a olhar para o futuro, especialmente para o Novo Céu e
Nova Terra, onde todo sofrimento desaparecerá e seremos eternamente
bem-aventurados. Porém, há ocasiões em que recebemos o bem ainda nes­
ta vida. A Bíblia dá um exemplo disso por meio da vida de José. Por inveja,
seus irmãos o venderam para alguns mercadores que iam ao Egito. A partir
desse momento José passou por grandes dificuldades, chegando até mes­
mo a parar na prisão. Deus, porém, o abençoou e o fez chegar à posição de
Príncipe do Egito, o segundo do reino, abaixo apenas de Faraó. Com isso,
José pôde ajudar o seu próprio povo, inclusive seus irmãos, impedindo que
perecessem na terrível seca que sobreveio sobre a terra. E sublime o enten­
dimento que José teve da situação, conforme demonstrou em suas próprias
palavras dirigidas aos irmãos: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra
mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se
conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). Observe que José não disse que
a atitude dos irmãos tinha sido boa e por isso desculpável. Eles realmente
agiram mal, porém, Deus tinha um plano com aquilo tudo, de maneira que
no final, tudo deu certo. A chave da questão é: “Deus transformou o mal
em bem”. Sproul diz que Lutero confiava tanto nessa verdade bíblica que
costumava dizer: “Se Deus me dissesse para comer o estrume de animais
0 leu Deus, onde eslá ? 87

que fica nas ruas, eu não só comeria, como iria saber que aquilo era bom
para mim”.5 De alguma maneira, as tragédias do mundo contribuem para
que o plano de Deus se concretize.

Não tarda e não fa lha


A impunidade dos maus neste mundo é uma das coisas que faz com que
as pessoas desconfiem da bondade de Deus. Porém, as tragédias e a impie­
dade deste mundo não comprometem a bondade e nem a justiça de Deus
porque ele mantém tudo sob controle e, no devido tempo, retribuirá com
justa medida a cada um segundo o que tiver feito. Uma coisa é certa, todos
receberão de Deus o que merecem. A resposta do Salmista do Salmo 115 à
pergunta “onde está vosso Deus” foi a seguinte: “No céu está o nosso
Deus e tudo faz como lhe agrada” (SI 115.3). Deus habita os céus onde está
o seu trono, de onde ele governa a tudo e a todos, e de onde ele executará a
sua justiça sobre tudo e sobre todos, ainda que o seu amor, a sua graça, a
sua misericórdia e a sua paciência muitas vezes retardem a sua ira. Tudo o
que acontece, por mais estranho que seja, acontece como o agrada, ou seja,
de acordo com a vontade dele. Porém, se olharmos somente para o agora,
não veremos a bondade e muito menos a justiça de Deus de modo comple­
to; por isso, precisamos olhar para o futuro, para o fim dos ímpios. Lá
veremos outra vez a diferença entre o justo e o perverso. Nunca devemos
nos esquecer de que haverá um juízo final. Na verdade, a única garantia de
que a bondade e a justiça de Deus serão finalmente vindicadas é que existe
um Juízo Final. A Justiça de Deus garante que todos terão um julgamento
justo. Diz o ditado popular: “A justiça tarda, mas não falha”. A Bíblia ensi­
na que Deus pode reter a condenação merecida de alguém, dando-lhe
chances para que se arrependa e se refugie em Jesus; porém, caso isso não
aconteça, no momento certo, Deus punirá todos os pecados dos ímpios.
Por isso não podemos dizer que a justiça de Deus tarda, ela apenas não
acontece, necessariamente, no tempo em que queremos. Deve ser entendi­
do que a punição de Deus, exigida pela sua justiça, se aplica apenas aos
ímpios. Os crentes não podem receber punição porque Jesus já a recebeu
no lugar deles. O Juízo Final deixará bem claro o quanto Deus é bom e
justo, quando todos os ímpios forem condenados por suas obras, confor­
me nos indica o livro do Apocalipse: “Vi também os mortos, os grandes e
os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ain­
da outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados,
88 Razão da esperança

segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros” (Ap
20.12). Cada ato impróprio do ser humano está registrado nesses livros.
Deus tem todas as provas de todos os crimes. Ninguém poderá apelar
diante desse tribunal,
A recompensa de Deus será dada apenas aos crentes, A justiça de Deus
exige que aqueles que mereceram, sejam recompensados, Porém, a pergun­
ta que surge é: Quem mereceu? Está claro na Bíblia que nada merecemos,
pois somos salvos pela graça, não pelas obras, justamente para que não nos
vangloriemos (Ef 2.8,9). O fato é que seremos recompensados pelos méri­
tos de Cristo, que nos são imputados, Recebemos a recompensa dele como
se fosse nossa, Ele não só pagou a nossa dívida morrendo por nós, como
conquistou méritos para nós mediante a sua vida de estrita obediência à Lei
de Deus. Para ilustrar isso, poderíamos dizer que ele não só pagou a dívida
que tínhamos com Deus, como ainda deixou um saldo gordo na nossa
conta perante o Altíssimo.6 O Altíssimo, como bom pagador que é, nos
recompensará por isso. E ainda existe a recompensa que receberemos pelas
boas obras que praticamos, aquelas que ele preparou para que andássemos
nelas (Ef 2.10). Essas realmente são obras nossas, mas fomos capacitados
a fazê-las por sua graça (Fp 2,13). No entanto, seremos recompensados por
causa delas, Isso nos faz perceber que toda a recompensa é uma questão de
graça, e não de méritos nossos.

Conclusão: Bem ao nosso lado


Às vezes, as pessoas pensam que Deus é injusto por não punir os peca­
dos dos homens nesta vida. Talvez devêssemos pensar se viver uma vida
inteira sem Deus já não é um tipo de punição. A Escritura afirma que, da
nossa perspectiva, pode até demorar, mas um dia todas as atitudes recebe­
rão o julgamento justo de Deus. Na verdade, o que faz com que esta vida
valha a pena é saber que há um Deus justo com um julgamento justo. Sem
isso, os crimes hediondos não seriam vingados, as traições, os perjúrios, as
difamações, as perseguições jamais encontrariam sua merecida punição. Ser
bom e honesto não valeria a pena se não houvesse um Deus justo com um
julgamento justo. Deus é justo e o seu julgamento também. Não temos
razão para duvidar da sua bondade. Ele demonstra seu amor, graça, miseri­
córdia e paciência sobre nossa vida, e até sobre os ímpios. De alguma ma­
neira, ele faz com que todas as coisas colaborem para o nosso bem. Ele já
tem separado um dia em que a sua bondade e a sua justiça serão plenamen­
0 leu Deus, onde eslá? 89

te reconhecidas. Até lá, teremos que viver pela fé, e não pelo que vemos.
Embora as tragédias e as dificuldades da vida nos espantem, no nosso ínti­
mo devemos manter a confiança na bondade e na justiça de Deus. Ele está
no céu, no trono, e também está do nosso lado: “Porque assim diz o Alto,
o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no
alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito,
para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos” (Is
57,15). Quando nos perguntarem onde está o nosso Deus, devemos res­
ponder: nos céus, observando e julgando todas as ações dos homens, e do
nosso lado, nos fazendo fortes quando somos fracos.
Soberania de Deus ou livre-arbítrio?

“Caro júri”, disse o advogado, “este jovem não é verdadeiramente cul­


pado pelo seu ato (roubo seguido de assassinato). Ele é uma vítima da
sociedade. Ele cresceu numa favela, onde desde o início viu muitas desi­
gualdades. Ele via os garotos de sua idade, filhos de pais abastados, des­
frutarem de todos os benefícios que o dinheiro pode comprar, principal­
mente tênis novos e brinquedos, enquanto ele precisava pedir esmolas
nos sinaleiros, que levava para a sua mãe, mas que o seu padrasto tomava
e gastava em bebedeiras. Já adolescente, não podia freqüentar a escola,
que ficava muito longe, pois não tinha condições de pagar o ônibus. Foi
então que conheceu uma turma que lidava com drogas, começou a se
envolver, e tornou-se um dependente. O fato de ser negro colaborou
muito para a sua exclusão, pois jamais conseguiu um emprego decente e,
sem estudo, não tinha esperança alguma. Naquela manhã, quando saiu de
casa e viu mais uma vez os ‘filhinhos de papai’ com os seus belos tênis
novos, não agüentou e, por causa da vontade de também ter um tênis,
resolveu tomá-lo à força. Diante da reação da vítima, acabou desferindo
cinco golpes de faca contra ela, a qual veio a falecer. Porém, que uma
coisa fique bem clara: esse crime não é dele, ele é de toda a sociedade.”
Esse parece ser o tipo de defesa que será mais usado em tribunais daqui
para a frente - a responsabilidade pessoal de cada indivíduo sendo
minimizada diante da atitude da maioria; uma tentativa de justificar o erro
individual a partir de atitudes coletivas, ou a velha atitude humana de
jogar a culpa no outro (Gn 3.12,13).
Para muitos, a idéia da soberania de Deus não pode ser aceita porque ela
faria com que o homem não fosse responsável pelos seus atos. Aqui depa­
ramos com um dos maiores dilemas da teologia. Neste estudo, abordare­
mos os aspectos bíblicos a respeito da soberania de Deus e da responsabi­
lidade humana, numa tentativa, não de harmonizá-los, mas de demonstrar
que ambos são verdadeiros e bíblicos. Nossa abordagem visa demonstrar
que a Bíblia enfatiza que Deus é soberano, mas que, ao mesmo tempo, o
92 Razão da esperança

homem é responsável pelas suas atitudes, e que ninguém pode alegar igno­
rância ou coação em nada do que ele faça ou deixe de fazer,

Paradoxo ou contradição ?
Sempre imaginamos que Deus é mais poderoso do que o homem, mas
nem sempre relacionamos isso com o dia-a-dia, com as decisões que preci­
sam ser tomadas a cada momento. Será que a pessoa tem livre-arbítrio para
tomar todas as decisões, ou será que, de alguma maneira, tudo o que a
pessoa decide já foi decidido antes por Deus? Até que ponto Deus é sobe­
rano em relação a tudo o que acontece neste mundo, e até que ponto o
homem é responsável pelos seus atos? Ou será que esses dois conceitos são
mutuamente excludentes? Os teólogos têm chamado essa tensão aparente­
mente contraditória entre a soberania de Deus e a responsabilidade huma­
na de “paradoxo”. Paradoxo pode ser definido como “a junção de dois
pensamentos que parecem contradizer-se”.1 J. I. Packer prefere chamar de
“antinômio”. Ele entende que paradoxo é apenas uma figura de linguagem,
e que, portanto, não faz justiça à essa tensão bíblica.2 De qualquer maneira,
os termos não são tão importantes, desde que se entenda que há uma ten­
são exposta na Bíblia entre a soberania de Deus e a responsabilidade huma­
na. Trata-se de duas verdades, aparentemente contraditórias, ambas susten­
tadas pela Escritura, e que não são realmente contraditórias. Geralmente, as
pessoas vão optar por uma ou por outra. Quem acredita que tudo o que
acontece nesta vida acontece exclusivamente porque o homem toma deci­
sões, e é responsável por elas, não consegue imaginar que Deus tenha, na
sua soberania, determinado todas as coisas. Por outro lado, aqueles que
pendem apenas para o lado da soberania de Deus, às vezes, fazem do ho­
mem algo como um mero robô, isento de responsabilidades pessoais.
Como já dissemos, essas duas verdades não podem ser realmente contradi­
tórias. Quando dois elementos se contradizem, apenas um pode ser verda­
deiro, pois é impossível que haja duas verdades contraditórias. Nesse caso,
só podemos admitir que “parece” contradição, por causa da incapacidade da
nossa mente de compreender o todo, mas ambos os elementos são verdadei­
ros. A Bíblia diz que Deus é aquele que “faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade” (Ef 1.11), e que ninguém jamais “resistiu à sua
vontade” (Rm 9.19). Com relação aos homens, Paulo diz que Deus é o Olei­
ro que tem direito sobre a massa “para do mesmo barro fazer um vaso para
honra e outro, para a desonra” (Rm 9.21). Essas expressões demonstram
Soberania de Deus ou livre-arbílrio? 93

claramente a soberania de Deus sobre tudo e sobre todos. Há um número


incrivelmente extenso de passagens bíblicas que poderiam ser usadas em
acréscimo. Entretanto, do mesmo modo, a Bíblia diz que o homem é absolu­
tamente responsável por suas próprias atitudes. Jesus disse: “Porque o filho
do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retri­
buirá a cada um segundo as suas obras” (Mt 16.27). Se a retribuição de Deus
leva em conta as obras de cada um, então é porque todos têm total responsa­
bilidade por tudo o que fazem. Tiago, numa de suas frases mais famosas
sobre oração diz: “Nada tendes, porque nada pedis; pedis e não recebeis,
porque pedis mal” (Tg 4.2,3). Tiago está dizendo que uma das razões pelas
quais os crentes, muitas vezes, não têm nada é porque deixaram de pedir o
que precisavam. A responsabilidade, nesse caso, é totalmente deles. Vemos,
portanto, que a Bíblia enfatiza tanto a soberania de Deus quanto a responsa­
bilidade humana simultaneamente, e como a Bíblia não pode se contradizer,
necessariamente esses dois conceitos precisam ser verdadeiros.
Em Filipenses 2.12,13 podemos ver esse conceito bem explícito. A pas­
sagem diz: “Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na
minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a
vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós
tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”. A responsabili­
dade de “desenvolver” a salvação, uma idéia que certamente tem a ver com
santificação, é atribuída aos crentes. São eles que devem desenvolver-se na
sua fé, buscando o crescimento e demonstrando “temor e tremor”. Isso nos
dá uma noção da seriedade do tema da santificação. Porém, é um fato que se
o texto terminasse no versículo 12, teríamos a idéia de que tudo depende
exclusivamente do homem. Quando lemos o versículo 13, entretanto, perce­
bemos que as coisas não são bem assim. Paulo explica que Deus opera o
“querer” e o “realizar” na vida das pessoas. Isso só pode ser entendido como
o ato de colocar o desejo correto em nós, que é a condição de realizar o que
é certo, somado à capacidade de realizá-lo. Nisso vemos os conceitos de
soberania de Deus e responsabilidade humana conjuntamente, e conforme a
passagem deixa bem claro, um não elimina o outro. Devemos pensar em
Deus como soberano, e entender que tudo o que acontece neste mundo
acontece como a vontade dele deseja, porém, igualmente entender que o
homem tem a obrigação de agir corretamente. A princípio, essas duas verda­
des parecem opostas, mas, na verdade, elas se complementam. De nada adianta
colocarmos a soberania de Deus e a responsabilidade do homem uma con­
tra a outra, pois juntas, elas demonstram harmonia e propósito, ainda que
não entendamos muito bem esse relacionamento.
94 Razão da esperança

Há muitas outras passagens que mostram esses dois conceitos unidos,


como por exemplo, Lucas 22.22: “Porque o Filho do homem, na verdade,
vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio de quem
ele está sendo traído!” Essa passagem diz que Jesus seria morto porque isso
havia sido determinado por Deus; porém, o traidor, no caso Judas Iscariotes,
pagaria por isso. Judas jamais poderia argumentar diante Deus que não tinha
culpa pela traição, dizendo que simplesmente fizera o que já estava decreta­
do, ou que fora forçado pelas circunstâncias. Ele tinha responsabilidade pes­
soal no ato, pois quis fazer aquilo. O fato é que ninguém o obrigou, embora,
em úlüma instância, tudo tenha ocorrido segundo a vontade de Deus.
Apesar dessas explicações, aqui não se pretende dizer que é possível
entender perfeitamente o “paradoxo” ou “antinômio”. Não se trata só de
entender. Seria muito mais fácil excluir uma dessas verdades e tentar viver
confortavelmente3 com a outra, como muitos têm feito. Isso, porém, não
faria justiça ao ensino da Escritura. Mesmo que não entendamos perfeita­
mente esses dois conceitos, precisamos mantê-los, crendo e afirmando tan­
to a soberania de Deus quanto a responsabilidade do homem.

A vontade de Deus
O ensino bíblico a respeito da “vontade de Deus” é essencial para en­
tendermos um pouco mais a respeito do relacionamento entre a soberania
de Deus e a responsabilidade humana. Podemos definir a vontade de Deus
de duas maneiras: absoluta e relativa.

Vontade absoluta

A vontade absoluta de Deus é conhecida como vontade decretiva. Ela


refere-se a tudo o que Deus determinou que aconteça. Deus tem um plano
traçado para todas as coisas, e nada neste mundo foge aos seus propósitos.
Por meio de sua intervenção direta ou por meios naturais, Deus leva a
efeito o seu plano, e nada pode impedi-lo. As vezes, essa vontade é chama­
da de encoberta por ser desconhecida (Dt 29.29), e também de vontade de
propósito, pois se refere ao supremo propósito de Deus. No livro do profeta
Isaías encontra-se uma excelente descrição da vontade decretiva de Deus:
“Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade: que eu sou Deus, e não
há outro, eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que desde o
princípio anuncio o que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas
Soberania de Deus ou livre-arbílrio? 95

que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho permanecerá de pé,
farei toda a minha vontade; que chamo a ave de rapina desde o Oriente e de
uma terra longínqua, o homem do meu conselho. Eu o disse, eu também o
cumprirei; tomei este propósito, também o executarei” (Is 46.9-11). Na
descrição do profeta, Deus é aquele que pode anunciar as coisas antes que
elas acontecem por dois motivos: primeiro porque tem um plano definido,
e segundo, porque tem o poder para realiaá-las. O livro de Daniel também
nos fala sobre a vontade decretiva de Deus: “Todos os moradores da terra
são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o
exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a
mão, nem lhe dizer: que fazes?” (Dn 4.35). Ninguém pode se levantar para
impedir que Deus faça algo e nem mesmo questioná-lo. Os moradores da
terra nada são perante ele, mas, ao mesmo tempo ele opera por intermédio
deles. Isso é colocado pela Confissão de Westminster da seguinte maneira:
“Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho de sua própria
vontade, Deus ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, po­
rém de modc que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a
vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contingência das causas
secundárias, antes estabelecidas”.4 A vontade decretiva de Deus é a razão
última por que qualquer coisa acontece neste mundo, seja boa ou má. Essa
vontade não pode ser contrariada, pois o eterno propósito de Deus não
pode ser frustrado. Parece óbvio que tudo o que acontece neste mundo,
acontece, no mínimo, porque Deus permitiu. Às vezes, esse aspecto per­
missivo da vontade de Deus é o escape dos teólogos para explicar o
inexplicável. Não devemos pensar em Deus como um todo-poderoso pas­
sível que simplesmente diz: “Pode ser”. Deus é ativo. Ele é o soberano do
universo. Num simples ato de permitir, está incluído muito mais do que
uma autorização. Porém, a Confissão é clara como a própria Bíblia: Isso
não faz de Deus o autor do pecado.5

Vontade relativa
Há um outro aspecto da vontade de Deus que difere do que estudamos
acima por não ser absoluto. Trata-se da vontade de Deus que os homens
conseguem contrariar. Um aspecto dessa vontade tem a ver com os seus
preceitos e está ligado à Lei de Deus. Nesse sentido, estamos falando da
vontade preceptiva. A vontade preceptiva pode ser também chamada de vonta­
de revelada. Ela refere-se aos mandamentos divinos e ao fato de que ele
quer que a sua justiça seja cumprida. Ao contrário da vontade decretiva, a
96 Razão da esperança

preceptiva pode ser, e é, freqüentemente contrariada. Deus quer que todos


os homens cumpram a sua Lei, porém é um fato evidente que a Lei não é
respeitada por todos. Nesse sentido, a sua vontade é contrariada, e isso o
desagrada: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos
céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7.21),
Quando Deus ordenou “não matarás”, ele estava revelando um aspecto da
sua vontade, porém, não um aspecto absoluto, no sentido de que ele não
pode ser contrariado, e sim um aspecto relativo, pois o homem pode cum­
prir ou não esse mandato de Deus.
Um outro aspecto relativo da vontade de Deus é o que pode ser chama­
do de vontade de desejo, que nesse caso representa o que Deus gostaria que
acontecesse, como Deus bom e justo que é, mas que nem sempre acontece.
Isso pode ser visto, por exemplo, em Ezequiel 33.11: “Tão certo como eu
vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em
que o perverso se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-
vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de
Israel?” Deus não tem prazer na morte do perverso, seu prazer está em vê-
lo convertido. É nesse sentido que devemos entender a passagem de 1 Ti­
móteo 2.3,4 que afirma que Deus “deseja que todos os homens sejam sal­
vos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. Deus, no seu ser ínti­
mo, não deseja que alguém seja condenado (2Pe 3.9). Porém, nesse ponto é
impossível não questionar: Então por que nem todos se convertem? Não
há outra resposta senão: Porque não é sua vontade decretiva que todos se
convertam, e também porque não é da vontade dos homens se converter.
A certeza que podemos ter é que se converterão todos aqueles que, no
decreto de Deus, foram designados para isso. O fato de Deus desejar que
certas coisas aconteçam, como, por exemplo, a conversão dos ímpios, não
anula o fato de que ele tem uma vontade decretiva, e que, muitos desses
ímpios certamente não se converterão. O simples fato de Deus desejar que
todos sejam salvos não faz com que todos sejam salvos. Podemos pergun­
tar em contrapartida: Deus não tem o poder de salvar a todos? Só há uma
resposta: sem dúvida ele tem. Então, por que não os salva? Novamente só
há uma resposta: porque, embora essa seja a sua vontade de desejo, não é a
sua vontade de decreto. A vontade relativa de Deus, portanto, refere-se a
algo bom que Deus deseja que aconteça, porque Deus sempre deseja o
melhor, mas, ao contrário da vontade decretiva, não precisa necessariamen­
te acontecer. Precisamos pensar na responsabilidade do homem à luz des­
ses dois conceitos da vontade de Deus, que de certo modo, também são
conceitos paradoxais.
Soberania de Deus oú livre-arbílrio? 97

Se alguém argumentasse, a partir da exposição da vontade absoluta e da


vontade relativa de Deus, se é possível que alguém, ao mesmo tempo, cum­
pra e descumpra a vontade de Deus, teríamos que responder com as pala­
vras de Agostinho: “Este é o significado da afirmação: “as obras do Senhor
são grandes, bem consideradas em todos os seus atos de vontade” - que, de
um modo estranho e inefável, mesmo o que é feito contra a sua vontade
\contra eius voluntatem\ não se faz sem a sua vontade \praeter eius voluntaleri[ /“

0 livre-arbítrio
Uma pergunta que normalmente surge diante disso é: E o livre-arbítrio
do ser humano? Não diz a Bíblia que o ser humano tem livre-arbítrio? Por
mais incrível que possa parecer para muitos, o fato é que a Bíblia não diz
isso. A expressão “livre-arbítrio” não se encontra na Bíblia, e o conceito
popular que se tem dele também não. Especialmente o conceito de que as
pessoas tenham a capacidade de agir absolutamente livres e independentes
de qualquer coisa. Ninguém é independente de Deus. Paulo disse aos filó­
sofos gregos que em Deus “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At
17.28). Se uma pessoa tivesse a capacidade de agir completamente livre da
influência de Deus, então, ela teria que ser igual a Deus. Nem sequer somos
independentes do meio em que vivemos. A sociedade influencia a nossa
vida, mas isso não significa que sejamos menos responsáveis pelas nossas
atitudes. Uma outra definição de livre-arbítrio seria a capacidade de agir de
modo contrário à própria natureza. Essa definição de livre-arbítrio é mais
exata e pode ser encontrada, pois pelo menos Adão a teve. Adão foi o
único homem que tinha a liberdade de agir de forma contrária à sua nature­
za. A natureza de Adão era boa, porém, Deus o capacitou com liberdade
suficiente para escolher tanto o bem quanto o mal. Assim, fazendo uso de
seu livre-arbítrio, ele escolheu o mal. Depois disso, os homens não tiveram
mais esse livre-arbítrio, pois se tornaram maus e sem condições de escolher
o bem. Depois da queda todos os homens se tornaram corruptos, confor­
me Deus constata antes de mandar o dilúvio: “Viu o Senhor que a maldade
do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau
todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). A Bíblia indica que a corrupção do
pecado passou a todos os seres humanos: “Portanto, assim como por um
só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim tam­
bém a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12).
Essa é a terrível constatação que a Bíblia faz de toda a humanidade: “Não
98 Razão da esperança

há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a


Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o
bem, não há nem um sequer” (Rm 3.10-12). Os teólogos reformados cha­
mam essa incapacidade humana em fazer o que é certo de “Depravação
Total”. Depois da queda, o homem se tornou depravado, Seu coração, na
linguagem de Jeremias - “desesperadamente corrupto” (Jr 17,9) - , não tem
mais condição alguma de escolher o que é certo. Todos os homens, por
natureza, estão mortos nos seus delitos e pecados (Ef 2.1). O livre-arbítrio
não existe porque o homem não tem condições de escolher o que contraria
a sua natureza pecaminosa,
Embora o homem não possua livre-arbítrio, ele tem certa liberdade, ele
não é um robô. Em geral, os teólogos reformados chamam essa liberdade
humana de “livre agência”, uma expressão que dá uma conotação diferente
de livre-arbítrio. A livre agência significa a liberdade que o homem tem de
escolher certas coisas, mas dentro de um contexto. E possível que Deus, na
sua soberania, conceda um nível de liberdade ao ser humano para que ele
tome certas atitudes e aja segundo princípios inerentes a ele. E o que segun­
do a Confissão de Fé, Deus faz ao estabelecer por seu decreto a liberdade
ou a contingência das causas secundárias. Se Jesus nos mandou pedir a fim
de obtermos algo, buscar para achar e bater para que fosse aberto (Mt
7.7,8) é porque, do contrário, nada disso aconteceria. Se ele nos disse que
deveríamos insistir em oração diante de Deus, como a viúva insistiu diante
do juiz iníquo (Lc 18.1-7), é porque Deus, na sua soberania, determinou que
a oração tivesse papel crucial na obtenção das bênçãos. O mesmo pode ser
dito da fé. Deus nos deu essa liberdade, porém, ele a supervisiona de tal
modo que não há riscos de que a nossa liberdade frustre o seu plano eterno.
Somos livres, mas não independentes. Somos como peixes no mar: dentro
dele, temos certa liberdade, mas fora dele só resta a morte. Nosso mar é a
soberania de Deus, ela proporciona a nossa liberdade, porém, não se trata de
uma liberdade ilimitada. A diferença é que, desse mar, nós não podemos sair.
Ainda com relação à oração, muitos não entendem porque Deus nos
manda orar se ele já sabe todas as coisas. E não devemos esquecer que foi o
próprio Jesus quem disse que ele sabe (Mt 6.8), A oração faz parte impor­
tante do propósito divino, Além disso, “a oração não existe para informar a
Deus o que ele já sabe a respeito das nossas necessidades, mas para gozar
da alegria de experimentar a sua vontade justa e soberana e, no mais, as
outras coisas nos serão acrescentadas”.7 Ela é de suprema importância,
embora não tenha o poder de “mudar” a vontade de Deus. Aliás, se a ora­
ção tivesse o poder de mudar a vontade de Deus, será que seria conveniente
Soberania de Deus ou livre-arbílrio? 99

utilizá-la? Se Deus estabeleceu algo, isso não significa que é o melhor? Afi­
nal, quem tem mais capacidade de planejamento, previsão e execução?
Não devemos esquecer que a liberdade humana capacita o homem a
agir somente de acordo com a sua natureza. O homem decaído não pode
escolher algo bom porque não existe nada de bom nele. Ele pode escolher
entre uma coisa pior e outra menos ruim, mas uma vez que a sua natureza
é caída, sempre escolherá coisas coerentes com ela. Ele não pode escolher
o bem (da perspectiva divina) porque a sua natureza é má (Mt 7.18). Para
que o homem escolha o que é certo, Deus precisa mudar a natureza dele,
implantando o princípio de vida espiritual que chamamos de regeneração, e
que capacita o homem a tomar uma decisão por Cristo. Esse princípio de
vida é implantado antes da conversão propriamente dita, e em geral vem
acompanhado do ouvir a Palavra de Deus. Nesse ato, Deus capacita o ho­
mem a se converter e a responder com fé à pregação do evangelho.8 O
homem é de fato um agente livre; porém, ele sempre agirá de acordo com
os seus princípios, e em plena conform idade com as disposições e tendên­
cias da sua alma. Segundo Berkhof, apesar da queda, o homem não perdeu
essa liberdade, mas perdeu “o poder racional de determinar o procedimen­
to, rumo ao bem supremo, que esteja em harmonia com a constituição
moral original de sua natureza”.9
Resta agora pensar no convertido; terá ele livre-arbítrio? O convertido
possui duas naturezas. A nova foi implantada por Jesus por meio da rege­
neração, porém a antiga ainda permanece, até porque o homem ainda está
“na carne”. Como tem duas naturezas, ele pode agir tanto segundo uma,
quanto segundo a outra. Propriamente dito, não se trata de livre-arbítrio.
De fato, o convertido não precisa mais agir segundo a carne, como Gálatas
5.16 deixa bem claro: “Andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscên­
cia da carne”. O convertido não tem livre-arbítrio porque age segundo a
sua natureza. Quando faz o bem, age segundo o Espírito que está nele;
quando faz o mal, age segundo a carne.
Todas as coisas acontecem de acordo com a vontade de Deus, porém,
precisamos tomar cuidado para não nos tornarmos fatalistas, pois o ser hu­
mano não é uma espécie de robô programado. Embora o ser humano não
tenha livre-arbítrio, ele continua sendo um agente livre que faz escolhas de
acordo com a sua vontade. E claro que, em última instância, o decreto de
Deus garante que até mesmo essas decisões serão tomadas de tal modo que o
seu plano maior não seja frustrado, mas o fato é que o ser humano toma essas
decisões conforme a sua vontade. Isaías profetizou que os caldeus invadiriam
Judá; isso estava decretado por Deus, porém, os caldeus invadiram Judá por­
100 Razão da esperança

que quiseram fazer isso. Todas as atrocidades que esse povo cometeu ao
invadir Judá aconteceram por causa do espírito maligno desses homens.
Embora estivesse no plano de Deus, a responsabilidade era pessoal. Deus
somente usou Isaías para profetizar o o que de fato já estava decretado, pois
Deus não poderia anunciar algo que corresse o risco de não acontecer. Entre­
tanto, os caldeus não agiram em obediência a uma ordem direta de Deus, e
sim, por causa da sua sede de conquistas (ver Is 10.5-15). Os decretos da
vontade soberana de Deus não contrariam a ação livre do homem. Na verda­
de, Deus decretou as ações livres dos homens, mas isso não torna os homens
menos livres, nem menos responsáveis pelos seus atos, O decreto de Deus
garante que um determinado evento acontecerá, mas não que Deus o realiza­
rá. Nada poderá frustrar o plano de Deus para este mundo, porém, cada
criatura é absolutamente responsável por todas as suas decisões e atitudes.

Conclusão: Tema difícil


Concluímos, portanto, que a Bíblia ensina tanto a soberania de Deus
quanto a responsabilidade humana. Esses dois conceitos paradoxais nos
dizem que nada acontece por acaso, pois tudo segue a ordem que Deus
estabeleceu e, ao mesmo tempo, o ser humano participa ativamente de tudo,
sempre agindo de acordo com os seus impulsos, e sendo responsável pelas
suas atitudes. Concluímos, ainda, que esse é um tema difícil e que deve ser
estudado com reverência. Porém, para que justiça seja feita ao ensino da
Palavra, não podemos deixar de lado nenhum deles. Deus é soberano e o
ser humano é responsável, esse é o ensino das Escrituras. Nem a sociedade,
e nem Deus, são culpados pelas nossas ações. A responsabilidade pelos
nossos atos é exclusivamente nossa, porém Deus é soberano. Tendo isso
em mente, podemos partir para a consideração de uma das mais discutidas
doutrinas do Cristianismo: a predestinação.
8

Predestinação:
Deixando Deus ser Deus
w w

Não existe doutrina que cause mais discussão no mundo cristão evangé­
lico do que a doutrina da predestinação. Algumas publicações polêmicas
que circulam nos meios evangélicos chegam a taxar a doutrina de “diabóli­
ca”.1E um fato que parte dos cristãos se sente desconfortável ao ouvir falar
dela. O que, afinal de contas, torna essa doutrina tão polêmica? Por que as
pessoas amam ou odeiam a doutrina da predestinação com a mesma inten­
sidade?
Podemos dizer que são duas as razões que fazem com que as pessoas
tenham medo de falar em predestinação. Primeiro, porque acreditam que se
a predestinação existe, então, Deus não é justo, pois teria escolhido uns e
não outros sem qualquer motivo aparente. Em segundo lugar, as pessoas se
sentem desconfortáveis com a idéia de que não têm liberdade para escolher
a respeito de sua própria salvação. E o velho grito de independência do ser
humano, tão antigo quanto Adão, que fala mais alto. A verdade é que o
homem sempre terá dificuldades em se submeter ao governo divino. O ser
humano sempre desejará ser o senhor do seu próprio destino, e fará de
tudo para conseguir isso, mesmo que seja preciso destronar Deus. E difícil
para o ser humano deixar Deus ser Deus.
Além disso, afirma-se que crer na predestinação inibe a pregação do
evangelho, pois não haveria razão para pregar se, afinal, todos são predesti­
nados para a vida ou para a morte. Ainda, objeta-se que a predestinação
inibe o desenvolvimento do próprio crente, pois se alguém já é predestina­
do para a salvação, então, não precisa fazer coisa alguma para garanti-la e,
então, não precisa pensar em santificação ou boas obras. Essas objeções
são dignas de consideração, mas representam um falso entendimento do
que é a doutrina da predestinação da perspectiva bíblica.
A doutrina da predestinação tem um fundo histórico bastante amplo e
controvertido. Agostinho (354-430), um teólogo do século 4o, foi o primei­
ro, depois de Paulo, a defendê-la. Aquino2 e Lutero3 falaram sobre a predes-
102 Razão da esperança

tinação antes de Calvino (1509-1564), mas coube ao reformador de Gene­


bra a tarefa de sistematizá-la, e assim, eternizá-la dentro do pensamento teo­
lógico da cristandade. O entendimento de Calvino sobre predestinação está
cristalizado na Confissão de Westminster, que é eminentemente calvinista,4
formulada por uma grande comitiva de teólogos puritanos no século 17. A
Confissão define a doutrina do seguinte modo: “Pelo decreto de Deus e para
a manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestina­
dos para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna”.5
Pouco tempo depois de Calvino, um teólogo reformado chamado
Armínio (1559-1609) revoltou-se contra o entendimento calvinista da pre­
destinação e reformulou a doutrina. Armínio defendeu a predestinação sob
a base exclusiva da presciência divina. Nesse sentido, o ato divino de esco­
lha é condicionado pelo seu conhecimento do futuro. Deus sabe quais pes­
soas crerão e quais não e, com base nisso, ele predestina. Depois da Refor­
ma, com o surgimento do Iluminismo, a teologia cedeu espaço para a filo­
sofia, e as doutrinas místicas foram consideradas impróprias. A teologia
liberal, fruto do Iluminismo, não se interessou pela doutrina da predestina­
ção. O movimento da neo-ortodoxia, que foi uma reação ao liberalismo, e
uma tentativa de voltar à ortodoxia reformada, fixou a sua atenção na pre­
destinação. Entretanto, os maiores teólogos desse período tiveram entendi­
mentos bem diferentes sobre ela. Barth (1886-1968), o grande teólogo da
neo-ortodoxia, a partir da sua visão “cristomonística” da revelação, enten­
dia que somente Jesus era o eleito e o preterido, e que nele toda a humani­
dade é eleita.6 A teologia de Barth leva ao universalismo. Atualmente, a
maior parte das igrejas se enfileira atrás do calvinismo ou do arminianismo.

Todos crêem na predestinação


Do que foi dito, fica claro que a maioria das denominações crê em pre­
destinação, pelo menos em tese. Não poderia ser diferente, afinal ela está
clara na Bíblia, inclusive com a palavra “predestinados” explicitamente apli­
cada aos crentes (Ef 1.11). O que ocorre é que há diferença no modo como
essa predestinação é vista. O arminianismo, de um modo ou de outro, é a
maneira como as igrejas evangélicas mais admitem a predestinação. No
arminianismo, acredita-se que Deus predestina as pessoas com base em
algo que vê nelas. Deus não escolhe por sua própria vontade, mas porque
viu que uma determinada pessoa o aceitaria. Embora uma grande parte do
Cristianismo veja as coisas desse modo, observamos algumas inconsistên-
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 103

cias nesse tipo de pensamento. Uma delas é que, se fosse assim, então não
existiria verdadeira escolha da parte de Deus, mas uma simples constatação
antecipada do que viria a acontecer. Nesse caso, a escolha verdadeira seria
do próprio ser humano, e então, nem haveria a necessidade de a Bíblia falar
em “predestinar”. Pois, se alguém já creria, por que então escolhê-lo? Isso
não parece fazer muito sentido.
Outra inconsistência deve-se ao fato de que, se Deus meramente anteviu
quem seria salvo, escolhendo sob essa ótica exclusiva, então, que garantias
poderia haver de que essa “predestinação” divina realmente viria a acontecer?
Se Deus não intervém com o seu poder para cumprir o seu propósito, a
possibilidade de que seus planos não se cumpram deve ser considerada
como algo real. Caso alguém afirme que o fato de Deus ter previsto garante
que o futuro aconteça mesmo que Deus não atue diretamente, então as
coisas ficam ainda piores, pois haveria uma força, que não é Deus, garantin­
do que o futuro aconteça. Essa força seria o acaso. No final das contas, o
acaso estaria governando, e então, tudo não passaria de fato de um
determinismo. Por outro lado, se é Deus que garante, então, isto é predes­
tinação segundo a visão calvinista.
Na visão reformada, às vezes se fala em dupla predestinação, que envol­
ve a salvação e a condenação. Na dupla predestinação, Deus teria predesti­
nado tanto os salvos quanto os perdidos, uns para o céu e outros para o
inferno. Entre os reformados, só os supralapsarianos aceitam a idéia da
dupla predestinação.7 Os infralapsarianos não usam o termo predestinação
ou eleição para a condenação, eles usam preterição, que é a ausência de
predestinação, e não dizem predestinados para condenação ou morte eter­
na em referência ao decreto divino, mas preordenados, que é o termo usa­
do na Confissão de Westminster. A diferença básica entre infra e
supralapsarianismo tem a ver com a ordem dos decretos divinos. A idéia é
se Deus levou em conta a queda ao decretar a eleição. Trata-se da questão
da lógica (não cronológica) dos decretos. No infralapsarianismo, Deus de­
cretou: 1) Criar; 2) Permitir a queda; 3) Escolher para a vida eterna parte da
humanidade decaída e deixar a outra em seus pecados e condenação; 4)
Dar seu filho Jesus para redimir o eleito; 5) Enviar o Espírito para aplicar a
redenção no eleito. No supralapsarianismo, Deus decidiu: 1) Escolher al­
guns para a vida e destinar outros para a perdição; 2) Criar; 3) Permitir a
queda; 4) Enviar Cristo para redimir o eleito; 5) Enviar o Espírito para
aplicar a redenção ao eleito.8 Entendemos que a posição infralapsária é mais
bíblica e mais coerente. Nela não há risco de Deus ser o autor do pecado
das pessoas, pois pela lógica, Deus não escolheu pessoas para a vida ou
104 Razão da esperança

para morte antes de decidir que elas poderiam cair. Por isso, quando fala­
mos em salvação, o termo correto é eleição, pois somente são eleitos os que
serão salvos. Quando falamos em condenação, o termo correto é preterição,
que significa “passar por alto”, “deixar para trás”. Assim, os salvos são os
eleitos ou predestinados, e os condenados são os preteridos ou não eleitos.

Valorizando as Escrituras
Cada vez menos as pessoas acreditam na Palavra de Deus e a valorizam.
O grande movimento da teologia liberal que inundou os seminários e con­
seqüentemente as igrejas, especialmente a partir do século 19, causou o
esfriamento e o esfacelamento da maioria das igrejas protestantes da Euro­
pa e dos Estados Unidos, por causa da sua ênfase no estudo da Bíblia com
pressupostos “científicos” e anti-sobrenaturalistas. Uma grande parte da
população cristã mundial deixou de crer na Bíblia como a Palavra de Deus
inerrante e infalível. Por outro lado, os movimentos teológicos do século
20, como a neo-ortodoxia e os movimentos subseqüentes, ou o movimen­
to pentecostal e neopentecostal, todos com ênfase no subjetivismo, e que
pareciam ser antídotos contra o liberalismo, caíram no mesmo erro, porém
pelo caminho inverso. Esperando tanto encontrar a Palavra de Deus, aca­
baram abandonando a Escritura como única fonte de autoridade, recorren­
do ao subjetivismo ou a novas revelações. Hoje vivemos um tempo de
extrema superficialidade. Em poucos lugares a Bíblia é realmente levada a
sério. A moda é usar partes da Bíblia de acordo com o interesse pessoal.
Assim, proliferam as chamadas “caixinhas de promessas”, recheadas de
“boas” palavras para os crentes, contendo apenas parte da revelação de
Deus. A Bíblia tem muito a falar sobre predestinação, mas ainda assim muitas
pessoas se recusam a ouvir. Em muitos casos, as pessoas chegam até a
dizer: “Pode estar na Bíblia, mas eu não posso aceitar que seja assim”. Elas
deixam a Bíblia de lado por causa de seus sentimentos pessoais ou de suas
próprias concepções a respeito da justiça de Deus. Preferem sua opinião
pessoal a respeito de como Deus deve ser do que a opinião da Bíblia. O
velho liberalismo selecionava as porções da Escritura que julgava dignas de
crédito, enquanto abandonava as outras. Hoje não é diferente. O ensino
bíblico sobre a predestinação é muito extenso, pode ser visto de Gênesis a
Apocalipse, e o fato de ser tão rejeitado é só mais uma amostra do quanto
a própria Bíblia é rejeitada na fé e na prática devocional das pessoas.
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 105

A necessidade de escolher
Romanos 9 é o grande capítulo bíblico sobre Predestinação. No início
do capítulo, Paulo trata de uma questão muito importante para a sua época:
Se Cristo veio para Israel, por que os israelitas não se converteram? Essa
era uma pergunta crucial para os crentes daquela época, pois se Cristo veio
para cumprir todas as promessas feitas a Israel, então, como justamente Is­
rael não reconheceu o Cristo? Teria a Palavra de Deus falhado?
Esse é o questionamento que Paulo tem em mente ao responder: “E
não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de
Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são
todos seus filhos. (Rm 9.6,7). Na visão de Paulo, a descendência de Abraão
verdadeira não é a da “carne”, mas a da promessa (v. 8). Os filhos da pro­
messa são, necessariamente, os eleitos. Abraão teve dois filhos, mas Deus
escolheu Isaque, filho de Sara e não Ismael, filho da escrava Agar. Isaque
também teve dois filhos (Esaú e Jacó); porém, Deus escolheu Jacó para ser
o patriarca da nação de Israel.
Com essas escolhas, Deus estava mostrando que, desde o início, a elei­
ção foi a ferramenta principal da sua construção. Essa é justamente a res­
posta que Paulo dá, a fim de provar que a Palavra de Deus não falhou. Ela
não falhou porque os eleitos foram salvos. Eleitos esses de dentro da pró­
pria nação de Israel (Rm 11.5,6). Mas acima de tudo, eleitos de entre todos
os povos. Podemos deduzir, portanto, do entendimento de Paulo, que a
eleição é a garantia de que a Palavra de Deus (as promessas) não falhou.
Nisso vemos a necessidade da escolha por parte de Deus. A predestinação
é absolutamente necessária. Sem ela a Palavra de Deus não seria digna de
crédito. Sem ela, nem mesmo Deus seria digno de crédito, pois para que
Deus tenha a prioridade sobre a criação e sobre o destino do mundo, ne­
cessariamente ele tem que fazer escolhas. O Deus da Bíblia é o Deus que
escolhe. Suas escolhas garantem o futuro planejado por ele. Suas escolhas
demonstram a fidelidade de sua Palavra e de suas promessas.

Antes da fu n d a çã o do m undo...
Falando sobre a escolha de Jacó e não de Esaú, Paulo diz: “E ainda não
eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que
o propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por
106 Razão da esperança

aquele que chama), já lhe fora dito a ela: o mais velho será servo do mais
moço” (Rm 9.11,12). A eleição não acontece depois do nascimento. Os
gêmeos foram objeto de escolha e preterição antes de terem nascido. Deus
escolheu Jacó em lugar de Esaú antes do nascimento de ambos. Isso está
em perfeita harmonia com o ensino de Efésios 1.3-5, que diz: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda
sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos
escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por
meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade” (ênfase acres­
centada). Neste texto, Paulo dá muitos detalhes a respeito da eleição. Ele
diz que os crentes são escolhidos “em amor”. O amor de Deus, portanto, é
o motivo da escolha divina. Os crentes são escolhidos “nele”, ou seja “em
Cristo”, pois Cristo é o instrumento da escolha divina. O tempo desta esco­
lha é “antes da fundação do mundo”, ou seja, na eternidade. A meta desta
escolha é para que sejam “santos e irrepreensíveis”, e para que sejam adotados
como filhos. A razão última desta escolha é o “beneplácito da sua vonta­
de”, e o objetivo último é o “louvor da glória de sua graça”. Todas estas
expressões somadas dão um peso imenso a idéia de que a eleição é pessoal
e incondicional realizada antes da fundação do mundo, ou seja, na eternida­
de. E impossível afirmar que o escolhido da passagem de Efésios 1.3-5 é
Jesus e não os crentes. Fazer isso é torcer o significado óbvio do texto que
afirma que “nós” fomos escolhidos.
Quando Jesus contou uma parábola para ilustrar o julgamento final, ele
disse que todas as nações seriam reunidas diante dele, e então, seriam sepa­
radas as ovelhas dos cabritos (Mt 25.31-33). Para as ovelhas, Jesus dirá:
“Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está prepa­
rado desde a fundação do mundo” (Mt 25.34). Para as suas ovelhas, Jesus
tem um reino preparado desde a fundação do mundo. E por isso que Jesus
afirma: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me
seguem” (Jo 10.27). Jesus conhece as suas ovelhas, pois, desde a fundação
do mundo, tem o nome de cada uma delas escrita no Livro da Vida (Ap
17.8). A salvação das ovelhas está decretada antes da fundação do mundo,
por isso, Jesus também disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me
enviou não o trouxer” (Jo 6.44). Mais à frente, ele disse a mesma coisa com
palavras diferentes: “Ninguém poderá vir a mim, se isso pelo Pai não lhe
for concedido” (Jo 6.65). Observe que ele disse essas palavras a um grupo
de pessoas que não criam nele. Obviamente, Jesus estava dizendo que elas
não eram escolhidas, e por isso não podiam ir até ele (crer). Para um grupo
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 107

de incrédulos, Jesus disse: “Mas vós não credes, porque não sois das mi­
nhas ovelhas” (Jo 10.26). A ênfase desta frase não deve ser invertida. Jesus
não disse: “Vós não credes e por isso não sois das minhas ovelhas”, e sim:
“E porque não sois das minhas ovelhas que não credes”. Deus escolheu
aqueles que serão salvos, que irão até ele, desde toda a eternidade, assim
como havia escolhido Jacó e não Esaú antes mesmo de eles terem nascido.
Mas isto não nos diz ainda se Deus levou algo em conta ao escolher as
pessoas, algo que tivesse pré-visto nelas.

Não p o r obras
De acordo com a passagem de Romanos 9, Deus escolheu Jacó e prete­
riu Esaú, mas isso não aconteceu por ele ter visto algo neles. Como vimos
acima, os gêmeos ainda não tinham nascido e, Paulo completa, “nem prati­
cado o bem ou o mal”. Deus não escolheu Jacó porque viu algo melhor
nele do que em Esaú, pois na verdade, Jacó era tão mau quanto Esaú, e até
podia ser pior. Deus escolheu com base exclusiva no seu propósito, pois é
esse propósito que determina a existência de todas as coisas (Ef 1.11), Ele
não poderia escolher baseado na capacidade humana de escolher, pois a
Bíblia afirma que o homem não tem essa capacidade, uma vez que se en­
contra em estado de “morte espiritual” (Ef 2.1). Como vimos, Jesus deixou
bem claro que ninguém pode ir até ele se Deus não o levar. Ele fez questão
de esclarecer para os seus discípulos quem escolheu quem: “Não fostes vós
que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos
designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16).
Na língua grega, essa passagem tem uma ênfase extraordinária. Jesus está
afirmando que não havia a mínima chance de os discípulos o escolherem, e
quando lemos os evangelhos, percebemos que de fato foi assim. Jesus en­
controu Pedro e João pescando, e os chamou para serem pescadores de
homens (Mt 4.19). Encontrou Levi assentado à coletoria de impostos, e,
sem explicação alguma, simplesmente ordenou a ele que o seguisse (Mc
2.14). Os discípulos responderam ao chamado divino c o m obediência. Sem
esse chamado, eles nunca teriam deixado tudo para segui-lo. De acordo
com a Bíblia, nem sequer temos a capacidade de nos arrepender, pois o
arrependimento é um dom de Deus (At 11.18; ver 2Tm 2.25). Para aqueles
que pensam que a fé é uma obra humana, a Bíblia diz que ela é um dom de
Deus (Ef 2.8). Segundo a Escritura, Deus concede fé aos que são destina­
dos para a vida eterna (At 13.48).
108 Razão da esperança

Não somos escolhidos por algo que Deus tenha visto em nós, pois não
há nada de bom no ser humano para ser visto por Deus (SI 14.2,3). Paulo
declarou a seu discípulo Timóteo que Deus “nos salvou e nos chamou com
santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria
determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos
eternos” (2Tm 1.9). Não fomos salvos e convocados por coisas boas que
tivéssemos feito, nem mesmo por uma fé pré-visualizada por Deus, a qual
teria que ser algum tipo de obra nossa, mas pela determinação de Deus, a
qual ele tomou antes que o tempo começasse a existir. O próprio texto de
Romanos, a respeito de Esaú e Jacó, se auto-explica, nesse sentido, no pa­
rêntese que segue: “Para que o propósito de Deus, quanto à eleição, preva­
lecesse, não por obras, mas por aquele que chama” (Rm 9.11). Paulo colo­
cou esse parêntese no texto justamente para enfatizar que Deus não levou
em consideração as atitudes posteriores dos homens ao definir o destino
deles. Mas será que há algum motivo pelo qual Deus nos escolheu?

0 verdadeiro motivo: 0 a m o r
Há um motivo pelo qual ele escolheu: o seu amor. A seqüência da passa­
gem de Romanos é ainda mais clara, pois diz que antes de os gêmeos nasce­
rem, antes que eles tivessem feito qualquer coisa, foi dito: Escolhi o mais
moço (Jacó). Não há como negar, nessa passagem, a preferência de Deus por
Jacó em vez de Esaú. Eleição significa exatamente isso: a preferência divina.
Deus preferiu Jacó em lugar de Esaú, como preferiu todos os demais eleitos
em lugar dos não-eleitos. A questão-chave nisso tudo é o seu amor, confor­
me mostra a continuação da passagem: “Como está escrito: amei a Jacó, po­
rém me aborreci de Esaú” (Rm 9.13). O amor de Deus pelo seu povo esco­
lhido é a grande base da eleição, pois fomos predestinados “em amor” (Ef
1.4). O que motivou esse amor, entretanto, é uma resposta que não temos.
Eleição é Deus escolher alguém que, em absoluto, não merece ser escolhido.
Vemos essa preferência aparentemente injustificada na própria escolha de
Israel no Antigo Testamento, conforme a Bíblia demonstra: “Não vos teve o
Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que
qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o Senhor
vos amava” (Dt 7.7,8). O motivo da escolha de Israel não foi o mérito da
nação, mas o amor que Deus tinha por ela, um amor eterno (Jr 31.3).
Em geral, quando os arminianos argumentam que a predestinação é
baseada apenas no pré-conhecimento, eles usam o texto de Romanos 8.29
Predestinação: Deixando Deus ser Deus

que diz: “Aos que de antemão conheceu, também os predestinou”. Porém,


no nosso entendimento, a ênfase posta sobre a expressão “conheceu” é
injustificada. Na Bíblia, o termo “conhecer” envolve muito mais do que
simplesmente “saber a respeito de”. Em muitos casos, ele envolve um pro­
fundo relacionamento amoroso (Mt 1.25, Mt 7.23; 2Tm2.19). Esse é o caso
de Romanos 8.29, pois quando é dito que Deus predestinou aos que de
antemão conheceu, está na verdade dizendo que predestinou aos que amou
de antemão. Pois Deus conhecia, no sentido de “ter conhecimento de”, até
mesmo os não-salvos, mas estes não foram objeto do seu amor. E sobre o
amor de Deus que Paulo está falando no final do capítulo 8 de Romanos.
Segundo ele, nada poderá nos separar do seu amor, que é de fato eterno.
Portanto, Deus conheceu os seus escolhidos no sentido de que os amou
desde sempre e para sempre. Deus escolheu não por obras, mas por amor.
Este pré-conhecimento, portanto, é sinônimo de amor. O amor de Deus
pelos seus eleitos é um amor eterno, e nada poderá separar os escolhidos
do amor de Deus (Rm 8.38-39).

Deixados para trás


Não é tão difícil falar dos escolhidos, mas não devemos nos esquecer que
existem os “não-escolhidos”. Como diz Sproul, “não é suficiente falar sobre
Jacó; precisamos considerar também Esaú”.9 Se a causa da eleição é o amor,
qual seria a causa da preterição de Esaú e de todos os demais não-eleitos?
Na verdade, não é necessária uma causa para a preterição, pois ela é a
ausência da escolha. Deus simplesmente não os escolheu porque não os
amou. A palavra “preterir” significa abandonar, deixar para trás, deixar de
lado. Para entender isso, ajuda-nos pensar que todos os homens estão per­
didos nos seus delitos e pecados. Em Adão todos caíram, e os homens por
natureza não desejam servir a Deus. Assim, quando Deus deixa de escolher
alguém, ele não está tirando algo que devia ser do ser humano por direito,
mas simplesmente abandonando-o à sua própria sorte, ou ao estilo de vida
que ele próprio escolheu para si. Seria mais difícil pensar na predestinação
se todos os seres humanos fossem salvos e Deus tirasse ou dificultasse a
salvação de alguns por meio do seu decreto; porém, todos já estão conde­
nados. Deus escolhe alguns para a vida, e deixa os demais onde eles já estão
por natureza, ou seja, na morte. Por isso o infralapsarianismo faz mais sen­
tido, pois o decreto da eleição segue o decreto permissivo para a queda.
Como diz Sproul:
110 Razão da esperança

A visão reformada ensina que Deus positivamente e ativamente intervém


nas vidas dos eleiros para garantir sua salvação. O resto da humanidade
Deus deixa a si mesmo. Ele não cria a incredulidade em seus corações Essa
incredulidade já está lá. Ele não coage a pecar. Eles pecam por suas próprias
escolhas. No calvinismo, o decreto da eleição é positivo. O decreto da re­
provação é negativo.10

E interessante lembrar que, quando Jesus incentivou as pessoas a entra­


rem “pela porta estreita”, o caminho da salvação, ele não disse que alguém
“entra pelo caminho espaçoso” (Mt 7.13,14). A razão é simples: Não é
preciso entrar pelo caminho espaçoso porque todos já estão nele. Eles não
precisam entrar, precisam sair. Podemos ilustrar a eleição como um ato de
Deus pelo qual ele retira algumas pessoas do caminho espaçoso (pela con­
versão) e as coloca no caminho estreito, deixando as demais no caminho
em que sempre estiveram, e do qual nem sequer desejam sair. Se alguém
desejasse sair, sairia com certeza, pois seria um eleito de Deus. Deus está
sempre disposto a salvar os que clamam por ele, conforme a Escritura diz:
“Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10.13).
E impossível ignorar a preterição no modo de agir divino. Deus esco­
lheu apenas Israel no Antigo Testamento (Ex 33.16, Dt 7.6; 10.15; Ml 1.2-
5). Ele não se revelou diretamente aos outros povos. Aqueles povos antigos
foram todos preteridos. Havia nações grandes e importantes naqueles tem­
pos, como o Egito, a Assíria e a Etiópia, mas Deus resolveu se revelar
apenas a Israel. Seu amor a Israel era tão grande que Deus disse: “Porque
eu sou o SENHOR, teu Deus, o Santo de Israel, o teu Salvador; dei o Egito
por teu resgate e a Etiópia e Sebá, por ti. Visto que foste precioso aos meus
olhos, digno de honra, e eu te amei, darei homens por ti e os povos, pela tua
vida” (Is 43.3-4). Deus estava disposto a sacrificar outras nações por causa
de seu amor por Israel, o povo escolhido de Deus (Is 43.10, Ver. Is 41.9).
Jesus também preteriu alguns povos durante seu ministério, tendo orde­
nado a seus discípulos que não fossem a certos lugares (Mt 10.5-7). Alguém
dirá: mais tarde esses povos foram evangelizados. Nem todos, pois há mui­
tos povos que até hoje não foram evangelizados. Pense um pouco: algumas
pessoas nascem num lar evangélico e ouvem a Palavra todos os dias, en­
quanto outras nascem em lares muçulmanos, ou em lares de prostitutas e,
talvez, nunca tenham acesso ao evangelho. No mínimo, as pessoas não têm
as mesmas oportunidades na vida. Não há uma preterição nisso? Mas aci­
ma de tudo é preciso que fique bem claro que, apesar de Deus preterir os
perdidos, eles não demonstram qualquer desejo de conhecer realmente ao
Predestinação; Deixando Deus ser Deus

Senhor e andar nos seus caminhos. De certo modo, eles têm preterido a
Igreja de Deus tanto quanto são preteridos por Deus.

Uma doutrina injusta?


Calvino diz: “Embora a razão carnal nos sugira que o mundo se move
ao acaso e seja dirigido a esmo, contudo devemos considerar que o infinito
poder de Deus é sempre associado à perfeita justiça”.11 Como já dissemos,
os que rejeitam a doutrina da predestinação fazem isso porque temem cha­
mar Deus de injusto. Paulo, aparentemente, está preparado para isso, pois
antevê a pergunta: “Que diremos pois? Há injustiça da parte de Deus?”
(Rm 9.14). Paulo não ignorava que algumas pessoas fossem tentadas a ima­
ginar um Deus injusto a partir da sua exposição, mas observe que esse
risco, no entendimento de Paulo, não era motivo suficiente para ignorar a
doutrina. Paulo sabe que as pessoas sempre tentam “encaixar” Deus dentro
de seus pressupostos. Na verdade, Paulo tem absoluta certeza de que a
doutrina da predestinação não torna Deus injusto, pois a sua resposta é:
“De modo nenhum!” O argumento é que a justiça de Deus se confirma
pelo fato de que ele não deve nada a ninguém, sendo, portanto, livre na
distribuição de sua misericórdia e de sua graça. A misericórdia de Deus é a
questão fundamental da eleição, segundo Paulo, e é a resposta ao questio­
namento a respeito da justiça de Deus. Segundo o apóstolo, Deus não é
obrigado a demonstrar a sua misericórdia de maneira igual para com todos
os seres humanos. Paulo acrescenta: “Pois ele diz a Moisés: terei misericór­
dia de quem me aprouver ter misericórdia, e compadecer-me-ei de quem
me aprouver ter compaixão” (Rm 9.15). O apóstolo dos gentios entende
que essa é uma prova de que Deus não é injusto, pois a misericórdia é dele,
e ele pode usá-la como bem quiser e com quem quiser. Se ele tivesse a
obrigação de salvar a todos, e salvasse apenas a alguns, estaria realmente
sendo injusto, mas, como já vimos, ninguém merece a salvação. Se todos os
homens fossem justos e merecessem a salvação, e Deus tirasse a salvação de
alguns, poderíamos dizer que houve injustiça, mas todos estão perdidos, e
Deus concede a salvação a alguns, e então só houve misericórdia. Os ho­
mens condenados receberão o que merecem,12pois eles mesmos não dese­
jam a Cristo, como a vida deles demonstra. Os homens perdidos não têm
vontade de encontrar a Deus, A. A. Hodge (1823-1886), ao considerar a
situação dos “réprobos”, faz uma distinção entre o aspecto “negativo” e o
“positivo” da reprovação:
112 Razão da esperança

Em seu aspecto negativo, a reprovação é simplesmente a não eleição, e é


absolutamente soberana, fundada unicamente no beneplácito de Deus, que
deseja eleger uns porque assim o quer e não porque sejam menos dignos.
Positivamente, a reprovação não é soberana senão judicial, porque Deus há
determinado tratar aos réprobos precisamente conforme os seus méritos e
à vista de sua absoluta justiça. 13

Nunca devemos nos esquecer do que estudamos no capítulo anterior,


que a soberania de Deus não invalida a responsabilidade humana. Os ho­
mens serão condenados por seus próprios pecados, e por sua falta de von­
tade de confiar em Cristo. Paulo não poderia ser mais claro sobre a eleição
incondicional ao afirmar: “Não depende de quem quer ou de quem corre,
mas de usar Deus a sua misericórdia” (Rm 9.16). Não depende da vontade
ou do esforço humano, mas de Deus usar a misericórdia que ele usa como
quer. O caso de Faraó exemplifica isso, pois Deus endureceu o coração de
Faraó a fim de que não deixasse o povo sair do Egito, e depois demonstrou
no próprio Faraó o seu poder, Esse endurecimento de coração não deve ser
visto como uma atitude “ativa” de Deus, como se Deus agisse no coração
de Faraó endurecendo-o diretamente. O coração de Faraó já era duro, Deus
apenas não agiu com misericórdia e não amoleceu aquele coração. Deus
tão-somente o entregou ao seu próprio pecado.14 A afirmação de Paulo é
categórica: “Logo, tem ele misericórdia de quem quer, e, também endurece
a quem lhe apraz” (Rm 9.18). A questão toda está na misericórdia de Deus.
Todos são pecadores, mas alguns são objeto de misericórdia e outros não.
Esses últimos serão atingidos pela ira (justiça), pois seus atos merecem isso.
Sproul tem uma afirmação muito feliz, nesse sentido:

Ele reserva para si o direito de ter misericórdia de quem quer ter misericór­
dia. Alguns membros da humanidade caída recebem a graça e a misericór­
dia da eleição. Deus ignora o restante, deixando-os em seus pecados. Os
não-eleitos recebem justiça. Os eleitos recebem misericórdia. Ninguém é
tratado com injustiça. Deus não é obrigado a ser misericordioso igualmente
com todos. E decisão dele o quanto será misericordioso.15

Muito importante nessa citação é: ninguém foi injustiçado, O ímpio é


condenado pelos seus pecados. O salvo recebeu a misericórdia. Por certo, a
lógica de Paulo não convence a todos, pois ele próprio antevê um novo
questionamento: “Tu, porém, me dirás: de que se queixa ele ainda? Pois
quem jamais resistiu à sua vontade” (Rm 9.19). Nesse ponto, parece que
Paulo perdeu o desejo de discutir. Sua resposta tem o poder de encerrar o
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 113

assunto: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura,


pode o objeto perguntar a quem o fez, por que me fizeste assim?” (Rm
9.19). Paulo entende que o homem não tem o direito de questionar as atitu­
des de Deus, assim como uma criatura não pode questionar os motivos do
seu criador. Para Paulo, tudo se resume nisso, de maneira que não precisa
dar uma resposta filosófica ou metafísica; ele simplesmente afirma: Que
cada um se coloque no seu lugar, Deus é Deus, e o homem é criatura. Não
temos o direito de questioná-lo, quer entendamos ou não os seus propósi­
tos. Em última instância, tudo repousa na questão do direito de Deus. A
fim de esclarecer isso, Paulo usa um exemplo: “Ou não tem o oleiro direito
sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para
desonra?” (Rm 9.21). A lógica é inquestionável: O oleiro tem ou não tem
direito de fazer do mesmo barro vasos diferentes, como lhe agradar? Veja
que a diferença não está na massa, mas no propósito. Se o oleiro fez um
vaso para uso honroso, terá obrigação de fazer todos os vasos dessa mesma
maneira? Não há injustiça da parte de Deus, pois Deus tem o direito de agir
como quer em relação à sua criação. Há dois tipos de vasos neste mundo.
Existem aqueles que foram “preparados para perdição”, que são os “vasos
de ira”, os quais servem para “mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder” (Rm 9.22). E também existem os “vasos de misericórdia, que para
glória preparou de antemão”. Aos vasos de misericórdia Deus dá “a conhe­
cer as riquezas da sua glória” (Rm 9.23). O fato de Deus usar a sua graça em
escolher os salvos, ou a sua ira em punir os pecadores não invalida a sua
justiça. A princípio, essa passagem pode sugerir que Deus tenha “prepara­
do” vasos de ira, o que o tornaria responsável pela condenação deles
(supralapsarianismo). Porém, isso não está de acordo com o ensino do
restante da Escritura. A questão fica mais simples quando lembramos que
o “barro” utilizado por Deus é um barro decaído (infralapsarianismo).
Como diz Sproul: “Um lote de barro recebe misericórdia para tornar-se
vasos de honra. Essa misericórdia pressupõe um vaso que já é culpado. Da
mesma maneira, Deus precisa tolerar os vasos de ira, próprios para des­
truição, pois eles são vasos de ira, culpados”.16 Ou, como diz Calvino:
“Paulo não pretende reivindicar para Deus um poder desordenado, senão
que lhe atribui o poder de agir com perfeita eqüidade”.17 A misericórdia de
Deus não fere sua justiça. Porém, precisamos capitular diante do fato de
que não temos todas as explicações para a doutrina da predestinação. Pau­
lo não nos deu todas as explicações, ele apenas apelou para a soberania de
Deus, para a questão do direito divino e da misericórdia divina. Isso tam­
bém deve nos satisfazer.
Razão da esperança

Concluímos, portanto que, para a sua glória, Deus escolheu, antes da


fundação do mundo, um grupo de pessoas para serem salvas em Jesus Cris­
to porque as amou, e preteriu as demais, as quais serão condenadas pelos
seus pecados.

Uma doutrina proveitosa


Ao contrário do que se argumenta, entender a predestinação faz muito
bem ao crente. Há muitas implicações positivas18 a respeito da predestina­
ção que poucas vezes são consideradas pelos que a rejeitam. No nosso
entendimento, entender a predestinação é essencial para um crescimento
saudável na vida cristã.

H um ild ad e
A primeira implicação que a doutrina da eleição deve produzir em nós
é a humildade. Isso é no mínimo curioso, pois geralmente as pessoas
acham que a eleição conduz ao orgulho. Mas a verdade é que não temos
do que nos orgulhar, pois Deus não nos escolheu porque viu algo de bom
em nós. Ele nos escolheu apesar de sermos seus inimigos. Isso humilha o
nosso coração orgulhoso. Paulo disse que os chamados não eram os mais
ricos e sábios deste mundo (ICo 1.27-29). O que isso significa? Que Deus
não se deixa levar pelas aparências. Nada havia de bom em nós que moti­
vasse a escolha divina. Quando um homem escolhe uma esposa, por exem­
plo, ele procura aquela que lhe parece ter mais coisas atrativas; entretanto,
Deus não escolheu desse modo, pois escolheu aqueles que não eram os
mais destacados. O motivo, segundo a Bíblia, é para que ninguém se glo­
rie. As vezes, vemos os crentes confessarem “nada do que eu faço pode
me salvar”, mas, essa mesma pessoa dirá “sou salvo por que eu disse sim
a Cristo”. A eleição muda essa frase nos nossos lábios, ela humilha o
nosso coração orgulhoso e nos faz dizer: “Eu fui salvo porque Cristo disse
sim para mim”. Outros dizem: “Dê uma chance para Jesus”. Mas será que
é ele quem precisa de uma chance? Definitivamente isso precisa mudar
nos nossos lábios, mas antes precisa mudar no nosso coração. Precisa­
mos entender, de uma vez por todas, que não é o homem quem escolhe
ou resolve dar uma chance ao Senhor Jesus, é Jesus quem nos escolheu.
Somos dele porque ele nos escolheu, e não porque nós decidimos fazer
isso. O conhecimento da eleição divina deve nos levar à humildade e não
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 115

à exaltação. Na verdade, entender a predestinação é um grande antídoto


contra o orgulho.

Ado ração

A verdadeira adoração também está diretamente vinculada ao conheci­


mento da predestinação, pois Deus nos escolheu para louvor da sua glória
(Ef 1.11,12). A adoração é uma das tarefas mais sublimes que nós temos
como cristãos. O conhecimento dessa doutrina é necessário para um lou­
vor adequado. Sem ela, Deus não é corretamente conhecido, e quando ele
não é corretamente conhecido, não pode ser corretamente adorado. Fre­
qüentemente, nossos cultos são voltados mais ao entretenimento do que à
adoração, e o motivo é simples: os cultos não são centrados em Deus, mas
no ser humano. Também isso tem um motivo: falta de conhecimento de
quem é Deus e de quem o ser humano é. Precisamos confessar: muitas
vezes não estamos interessados em que Deus se agrade do culto, queremos
sim, que nós mesmos sejamos agradados. O conhecimento da eleição faz
com que um respeito muito grande seja produzido dentro de nós. Como
disse Horton: “Nenhuma doutrina expulsa o narcisismo das igrejas e dos
púlpitos como ela. Nenhuma doutrina é mais própria para fazer a justifica­
ção pela graça mais central. Nenhuma doutrina tem mais sucesso em colo­
car o homem no seu devido lugar e Deus no que lhe pertence; por isso,
entender a predestinação é vital para a verdadeira adoração”.19 Enquanto
não rendermos a Deus a glória que é devida ao seu nome, não estamos
adorando verdadeiramente. Se nos recusamos a permitir que Deus seja so­
berano, estamos nos recusando a aceitá-lo como ele é. Quando isso aconte­
ce, não existe adoração. E interessante ver a doxologia de Paulo em Efésios
1.3-14, em que ele começa bendizendo a Deus justamente por causa da
eleição. Porque Deus escolheu o seu povo, Paulo louvou a Deus dizendo:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 1.3).

Santidade

John Wesley costumava argumentar que não podia aceitar a doutrina da


predestinação porque ela minava os principais suportes da santidade: te­
mor da punição e esperança da recompensa.20 Se de fato esses são os dois
grandes suportes da santidade, então Wesley estava certo. Porém, será que
o medo de ser punido e a esperança de ser recompensado são os verdadei­
ros suportes da santidade? Paulo, escrevendo aos romanos, declarou: “Por-
116 Razão da esperança

que não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, ate­
morizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clama­
mos: Aba, Pai” (Rm 8.15). Em outras palavras, o medo da punição é algo
que nós tínhamos antes de ser cristãos. Agora somos filhos, pois “ele
predestinou-nos... para a adoção de filhos” (Ef 1.5). Baseado nessa verda­
de, o crente pode olhar para o futuro com destemor, pois tem motivos para
esperar no nome de Deus e na vontade de Deus, Isso nos faz ver que a
eleição é uma dessas doutrinas que reorientam completamente a nossa vida.
A nossa motivação para a santidade baseia-se no fato de que fomos chama­
dos para sermos santos (Rm 1.7). Se não vivermos de maneira santa, esta­
remos sendo indignos do nosso chamado, ou seja, estaremos provando que
não somos chamados. Um eleito que não vive em santidade é uma contra­
dição em termos. Como alguém poderia ser parte de uma “raça eleita, sa­
cerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (lPd
2.9), sem ser essas coisas? Viver em santidade é algo inevitável para o eleito.
Devemos andar em boas obras de amor e caridade para com o nosso pró­
ximo porque Deus “de antemão preparou” para que andássemos nelas (Ef
2.10). Devemos perseverar na nossa meta de ser semelhante a Cristo não
por causa do temor de perder algo, ou pela esperança do lucro, mas porque
fomos “predestinados” para sermos conformes à imagem de seu Filho.
(Rm 8.29). No entendimento de Paulo, Deus nos escolheu “desde o princí­
pio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade” (2Ts
2.13). Portanto, fé e santificação são coisas essenciais para a confirmação
da eleição, pois fomos predestinados “para sermos santos e irrepreensíveis
perante ele” (Ef 1.4). Por isso, segundo Colossenses 3.12, devemos reves­
tir-nos “como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de miseri­
córdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade”. A base
da nossa santidade não é o medo de perder alguma coisa, mas a alegria por
saber que todas as coisas já são nossas em Cristo Jesus (ICo 3,21-23). Dian­
te de tudo isso, não há como um eleito não viver uma vida de santificação.
Paulo, escrevendo aos crentes de Tessalônica, disse-lhes: “Damos, sem­
pre, graças a Deus por todos vós, mencionando-vos em nossas orações e,
sem cessar, recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da
vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em
nosso Senhor Jesus Cristo, reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa
eleição” (lTs 1.2-4). Paulo era muito agradecido a Deus pelos crentes de
Tessalônica porque eles tinham três coisas especiais: fé operosa, amor ab­
negado e esperança firme, ou seja, santidade e boas obras. Ele disse que ver
essas coisas naqueles irmãos o levava a reconhecer que eles eram eleitos.
Predeslinação: Deixando Deus ser Deus 117

Pedro também afirma algo semelhante ao dizer: “Por isso, irmãos,


procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e elei­
ção; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum” (2Pe
1.10). Eleição é algo que se confirma com frutos. Nem poderia ser diferen­
te, pois Jesus disse: “Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porven­
tura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos?” (Mt 7.16). Santidade e
eleição são coisas impossíveis de separar. Porém, não é o medo de perder
algo que deve nos levar à obediência, mas a gratidão pela certeza do que já
somos, pela graça de Deus.

Oração

Às vezes, as pessoas perguntam: “Por que orar se Deus já sabe?” Essa é


uma das principais objeções levantadas contra a soberania de Deus. Pode­
mos dar dois motivos para orar, ainda que Deus já saiba de tudo que preci­
samos: Primeiro porque é um mandamento bíblico. Jesus nos mandou orar,
e por isso devemos obedecer a ele, pois não estamos em condições de
questioná-lo. Se ele deu o exemplo orando pessoalmente tantas vezes na
sua vida, se ensinou aos seus discípulos a orar, e se a Escritura nos manda:
“Orai sem cessar” (lTs 5.17), não há o que ser questionado. Ainda que a
oração não tivesse nenhum outro valor, só o fato de ser um mandato bíbli­
co já é motivo suficiente para ser obedecido. Mas não é só isso. Há ainda
mais um motivo pelo qual devemos orar: Porque Deus ouve as nossas ora­
ções. Algumas pessoas demonstram uma grande incoerência em relação ao
que crêem e ao que praticam, pois dizem que Deus não interfere na conver­
são de alguém, que tudo depende em última instância da própria pessoa, e
que ela, fazendo uso de seu livre-arbítrio, aceita ou deixa de aceitar a salva­
ção de modo absolutamente livre, mas ainda assim oram para que as pes­
soas se convertam. Nesse caso, poderíamos perguntar: Então por que orar?
Em vez de perguntar: “Por que orar se Deus já sabe?”, perguntaríamos:
“Porque orar se Deus não age?” Se eu não creio que Deus possa interferir no
livro arbítrio de alguém, eu não deveria orar: “Senhor, mude o coração da­
quela pessoa!” A teologia de muitas pessoas parece que deixa Deus de “mãos
atadas”, pois ele não pode interferir no “livre-arbítrio” das pessoas. Graças a
Deus que esse não é o ensino da Escritura, pois, se fosse assim, não poderí­
amos esperar muitas conversões. Deus ouve a nossa oração e age na vida das
pessoas levando-as a se converter. E claro que isso não invalida o seu plano,
como vimos no capítulo anterior, mas faz parte das “contingências” do seu
plano. Portanto, a eleição não anula a oração, antes a incentiva.
118 Razão da esperança

Eva ng elism o

De modo geral, as pessoas acham que predestinação e evangelismo são


duas coisas que se excluem. Queremos, porém, argumentar que o
evangelismo somente tem sentido depois que entendemos bem a verdade
da predestinação. Compartilhar a fé com não-cristãos pode ser uma tarefa
muito árdua, até que entendamos a eleição, pois ela transforma o nosso
evangelismo em três níveis: na nossa mensagem, nos nossos métodos e na
nossa motivação.21 A eleição transforma a nossa mensagem porque não
nos autoriza a dizer a qualquer incrédulo, “Deus ama você e tem um plano
maravilhoso para sua vida”. As vezes, as pessoas dão testemunho em pro­
gramas evangelísticos da seguinte maneira: “Eu encontrei Deus”. Mas quem
estava realmente perdido? A eleição transforma também os nossos méto­
dos de evangelização. Atualmente, o oferecimento do evangelho é guiado
pelo marketing. A cada momento, surgem novos métodos para convencer o
incrédulo a aceitar o “produto”. A eleição diz que não são os métodos que
convencerão o incrédulo a aceitar a verdade, e sim a determinação divina
em convertê-lo. E somente a graça redentora de Deus e não o belíssimo
prédio, a decoração celestial,\ a música ambiente ou a técnica do apelo que
convencerá algucm. Desse modo, podemos abordar incrédulos como seres
humanos decaídos que precisam desesperadamente de Deus, e não como
consumidores que, com alguma técnica, conseguiremos convencer.
Por fim, podemos dizer, e julgamos isso o mais importante, que a
eleição afeta o evangelismo na nossa motivação. O apóstolo Paulo, a res­
peito de quem todos concordam ser o maior missionário da igreja em
todos os tempos, escreveu: “Por esta razão, tudo suporto por causa dos
eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo
Jesus, com eterna glória” (2Tm 2.10). Era justamente o fato de saber que
Deus tinha os seus eleitos o que mais motivava Paulo a enfrentar todas as
situações e dificuldades da sua vida. Era a eleição que motivava o apósto­
lo a ir de cidade em cidade proclamando a mensagem divina, pois sabia
que Deus tinha “muito povo” em cada cidade (At 18.10). A grande moti­
vação para pregar o evangelho é que nunca correremos o risco de pregar
em vão. Deus sempre garantirá que os eleitos ouvirão e se converterão.
Nossa tarefa então, fica bem mais fácil, pois em última instância, a con­
versão de alguém não depende do pregador, mas daquele que enviou o
pregador. Nossa função é pregar com todo zelo e fervor, confiantes de
que Deus fará a obra. Esta sem dúvida é uma grande motivação para
pregar o evangelho.
Predestinação: Deixando Deus ser Deus 119

Finalizaremos este assunto com as palavras de Calvino:

Se alguém assim se dirige ao povo: “Se não credes é porque Deus já os há


predestinado à condenação”, esse não somente alimentaria a negligencia
como também a malícia. Se alguém também para com o tempo futuro es­
tenda a asserção de que não hajam de crer os que ouvem, porquanto hão
sido condenados, isto seria mais maldizer do que ensinar. (...) Como nós
não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao nú­
mero e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto, que desejemos
que todos se salvem; e assim, procuraremos fazer a todos aqueles que en­
contrarmos, sejam participantes de nossa paz (...). Quanto a nós concerne,
deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio, salutar e severa
correção, para que não pereçam eles próprios, ou a outros não percam. A
Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a Quem pré-conheceu e
predestinou,22

Desse modo, a doutrina da eleição, longe de ser um obstáculo à evange­


lização é na realidade um estímulo vital e consolador.23

Conclusão
Ao contrário de produzir apatia ou desinteresse, a doutrina bíblica da
predestinação é a base para uma vida de humildade, adoração, oração, san­
tidade e evangelismo. A eleição não faz com o que o crente cruze os braços,
mas arregace as mangas. E verdade que muitos, confiando na sua suposta
eleição, têm vivido de maneira despreocupada; entretanto, a base de sua
confiança é falsa. Um eleito precisa evidenciar certas coisas na sua vida para
que fique claro que é um eleito.
A despeito de todos os falsos entendimentos, a doutrina da predestina­
ção é bíblica e amplamente proveitosa para a vida cristã. A questão crucial
que impede o homem de aceitá-la deve-se ao fato de que, desde o início foi
difícil para o homem deixar Deus ser Deus. Adão e Eva se rebelaram por­
que queriam ter direitos iguais aos de Deus. O homem quer sempre tomar
todas as decisões e a idéia de que algo possa fugir ao seu controle lhe é
odiosa. Mas isso é uma grande tolice. Deus é Deus. Ele é o Oleiro, o barro
somos nós, Sempre seremos o barro, por mais que lutemos para inverter
essa ordem. O desejo íntimo de moldar Deus conforme nos apraz é o
nascedouro da idolatria, a qual Deus tanto abomina. Em nossos dias, os
homens têm feito deuses para si de acordo com o seu desejo pessoal, po-
120 Razão da esperança

rém, o Deus verdadeiro, o Deus da Bíblia é aquele que age como a sua
vontade determina, quer os homens aceitem ou não.
O que torna a doutrina da predestinação tão amedrontadora é o falso
entendimento dela, aliado a um falso entendimento da justiça de Deus e do
merecimento dos homens. Precisamos abandonar nossas próprias concep­
ções a respeito do que Deus “deveria ser” e aceitar que ele seja aquilo que
ele é. Devemos aceitar que Deus seja o que ele se revelou na Escritura: O
Deus soberano, amoroso e misericordioso, que tem escolhido um povo
para si. Não devemos desprezar a Escritura, pois a Eleição está clara nela.
Entendemos que essa é uma doutrina difícil, porém, acima de tudo, bíblica.
Se ela é bíblica, não devemos ter medo de proclamá-la.
Em vez de deixarmos o nosso coração se encher de incertezas e ques­
tionamentos em relação à soberania de Deus, devemos, a exemplo do após­
tolo Paulo, terminar este assunto glorificando a Deus por sua soberania.
Paulo encerra toda a discussão sobre a predestinação com as seguintes pa­
lavras: “O profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conheci­
mento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis,
os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi
o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser
restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele,
pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).
Paulo, apesar de não dar todas as respostas, e de talvez, nem ter todas as
respostas para o assunto “predestinação”, ao invés de questionar os desíg­
nios de Deus, se alegrou neles e louvou ao Senhor por seus pensamentos,
caminhos e obras inescrutáveis. Ele não deixou algum senso inadequado de
justiça própria ofuscar o brilho áureo da misericórdia de Deus. Paulo reco­
nheceu a soberania e a misericórdia daquele que não deve nada a ninguém,
mas ainda assim tem salvado um povo para si. Este povo é o povo eleito.
Ao Deus dos eleitos, portanto, seja a glória eternamente amém.
9

0 Santo de Israel
íSSSSíJfflBBí,
<1w r^ m r

"Santo, santo, s an t o é o S hnhor dos Exércitos;


toda a terra está cheia da s ua glória" (Is 6.3).

Por todos os lados, as marcas da rebeldia, da desobediência, da trans­


gressão e da corrupção se fazem visíveis. O pecado domina a raça humana,
propagando suas pestes devastadoras nos quatro cantos do planeta. A vio­
lência, os abusos, a cobiça e os desejos desenfreados deixam as suas vítimas
nas sarjetas das favelas ou nos apartamentos de luxo dos badalados requin­
tes da alta sociedade. Quando deixamos de lado toda preconcepção, perce­
bemos que a visão do nosso mundo é terrível. O problema, porém, é que,
às vezes, a igreja não parece muito melhor. Especialmente quando vemos
fotos de líderes religiosos que são taxados de corruptos estampadas em
capas de revistas. Ou quando sabemos que há um imenso povo fiel sendo
enganado pela cobiça de homens inescrupulosos cujo único interesse é o
lucro. Ou quando percebemos que políticos supostamente evangélicos ga­
rimpam votos das igrejas para tentar obter uma cadeira no planalto, mas
que, quando chegam lá, como muitos que já chegaram, mostram o seu
verdadeiro caráter. Ou quando sabemos que muitos homens e mulheres se
apresentam com uma capa de santidade que esconde todo tipo de fornica­
ção, impureza e podridão, que a falta de compromisso do mundo moderno
trouxe para dentro das igrejas, fazendo-as parecer muito mais clubes soci­
ais, e seus cultos programas de auditório, do que adoração ao Deus Santo.
E triste perceber que o real sentido do culto bíblico, da adoração “em espí­
rito e em verdade” se perdeu em tantas denominações e na vida pessoal de
tantos crentes, por causa dos modismos e invenções que o marketing religio­
so tem criado, desviando as pessoas da Palavra de Deus. Esse é um quadro
terrível que não pode ser ignorado, mas ao qual muitos crentes verdadeiros
têm fechado os olhos ou dado de ombros como se nada pudesse ser feito,
como se fosse algo inevitável. Enquanto isso, as caricaturas de Deus rodam
de igreja em igreja segundo as mais novas “ondas” do momento. Absurdos
122 Razão da esperança

e mais absurdos são praticados sob a justificativa da autoridade espiritual,


do apostolado, episcopado ou mesmo do popular “Deus me revelou”. Sob
essa suposta autoridade, um grupo de evangélicos derramou tonéis de óleo
sobre o Rio de Janeiro de um helicóptero, numa tentativa de ungir a cidade
para que a violência diminuísse. Sob essa suposta autoridade, grupos de
evangélicos urinam nos cantos das cidades com o intento de demarcar o
terreno para o Leão de Judá. E, neste momento, provavelmente em muitos
templos religiosos, as pessoas rolam pelo chão, riem ou choram
descontroladamente, vomitam ou dançam freneticamente tomadas por al­
guma nova forma de “unção”. Todas essas distorções se devem a uma ou­
tra ainda maior: a distorção do entendimento da pessoa de Deus. E preciso
resgatar a visão correta de quem é Deus para que o movimento evangélico
retorne aos trilhos. E preciso abandonar aquela antiga visão de Deus como
um bom velhinho que não leva em conta as falhas dos homens, e está
sempre concedendo absolvição ilimitada. Em lugar dela, não adianta colo­
car a noção de que Deus existe só para suprir as necessidades dos crentes,
que está muito mais para um dono de banco, ou apresentador da Porta da
Esperança do que o Deus justo e santo que se assenta no trono. Talvez,
justamente o que muitos ignoram é que Deus tem um trono. A visão deste
Deus, o que se assenta no trono em santidade absoluta, é que precisa ser
recuperada, a fim de que o culto seja novamente verdadeiro, o evangelismo
autêntico e a vida dos crentes fiel.

R esgatando a visão do trono de Deus


O profeta Isaías e o apóstolo João tiveram algo em comum. De algum
modo inexplicável, os dois estiveram no mesmo lugar num dado momento
de suas vidas. Ambos foram conduzidos ao local que governa o universo.
Eles tiveram uma visão do Trono de Deus. O apóstolo João relata a sua
visão no livro do Apocalipse. Ele era prisioneiro na ilha de Patmos, e con­
vivia com a dura realidade que um cristão fiel, muitas vezes, é chamado a
enfrentar nesta vida. De repente, João foi convidado para dar uma espiada
num outro mundo. Uma porta foi aberta no céu e ele foi chamado a entrar,
e assim, o privilégio máximo que alguém poderia ter foi lhe concedido:
entrar na sala do trono (Ap 4.1). Ao contrário do que muitos pensam, esse
lugar realmente existe. João esteve lá e nos contou a respeito dele. João viu
o trono que governa o universo. Ele pisou lá, viu suas cores, seus sons, sua
majestade e descreveu tudo em detalhes para nós. A descrição está nos
0 Sanlo de Israel 123

capítulos 4 e 5 do Apocalipse. Esse lugar não é apenas um sonho ou uma


esperança vã de algumas pessoas, mas trata-se de um lugar real, único e
verdadeiro. Um lugar muito diferente do mundo a que estamos acostuma­
dos, pois lá impera a santidade de Deus.
A visão que João descreve é de tirar o fôlego. Ele diz: “Imediatamente,
eu me achei em espírito, e eis armado no céu um trono, e, no trono, alguém
sentado” (Ap 4.2). Em seguida, ele passa a descrever algo como círculos
que se sobrepõem ao redor do trono. Esta é sua descrição: “E esse que se
acha assentado é semelhante, no aspecto, a pedra de jaspe e de sardônio, e,
ao redor do trono, há um arco-íris semelhante, no aspecto, a esmeralda”
(Ap 4.3). O primeiro círculo tem a cor do jaspe, que pode ser reconhecido
como diamante, cuja cor mais comum é o branco. O próximo leva a cor do
sardônio vermelho. O próximo círculo é da cor da esmeralda, mas o que se
destaca é a figura do arco-íris. Na busca pelo significado dessas cores, pode
se pensar na idéia do branco como santidade e pureza, no vermelho talvez
como uma referência ao sangue que purifica o pecado e dá acesso à presen­
ça de Deus, e no arco-íris como o antigo símbolo da paz que Deus estabe­
leceu com a criação depois do dilúvio.1 João descreve ainda: “Ao redor do
trono, há também vinte e quatro tronos, e assentados neles, vinte e quatro
anciãos vestidos de branco, em cujas cabeças estão coroas de ouro” (Ap
4.4). Não há dificuldade em se pensar que esses anciãos representem a
totalidade dos salvos, a igreja do Antigo Testamento representada pelos
doze patriarcas e a igreja do Novo Testamento representada pelos doze
apóstolos. Ainda há quatro seres viventes que formam outro círculo ao
redor do trono, eles têm olhos por diante e por detrás, e podem ser identi­
ficados como anjos de primeira grandeza, ou com a totalidade do mundo
criado por Deus, envolvendo os quatro aspectos da natureza: animais sel­
vagens, domesticados, homens e seres voadores. Mais dois círculos ainda
podem ser visto no capítulo 5, um de anjos incontáveis (Ap 5.11) e outro
envolvendo todas as criaturas (Ap 5.13). Assim, percebemos que ao redor
do trono de Deus estão representadas todas as coisas que ele criou, e que
rendem louvor à sua santidade, pois ele domina sobre tudo com absoluta
eqüidade. Ao ler o texto de João, percebemos como os detalhes são realça­
dos. Ele quer nos dar uma noção da grandeza a que teve acesso. João quer
que seus leitores acreditem que esse lugar existe, e especialmente como é
Aquele que se assenta no trono. Ele quer que acreditemos que a fonte de
toda a nossa esperança realmente existe. O mundo não veio do nada e nem
marcha sob as ordens tirânicas do acaso, há um trono que governa esse
mundo e todo o universo.
124 Razão da esperança

Mais do que a visão espetacular, João quer descrever a adoração que viu
no céu. De todos os lados e de todas as direções, o louvor se dirige ao que se
assenta no trono. Os quatro seres viventes proclamam de noite e de dia
“Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era, que
é e que há de vir” (Ap 4.8). Os 24 anciãos aproveitam o momento e se
prostram diante do Deus Santo, adorando-o, entregando suas coroas, e can­
tando com todas as forças: “Tu és digno, Senhor e Deus nosso, de receber a
glória, a honra e o poder, porque todas as coisas tu criaste, sim, por causa da
tua vontade vieram a existir e foram criadas” (Ap 4.11). Ambos os grupos
repetem essa adoração ao Cordeiro (Ap 5.8-10), e então, entra em cena um
significativo grupo de anjos, composto de “milhões de milhões e milhares
de milhares” e cantam com uma voz estrondosa “digno é o Cordeiro que foi
morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e
louvor” (Ap 5.12), e por fim, toda a criação irrompe em louvor dizendo:
“Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e
a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos”. Então, os quatro seres vi­
ventes selam a cerimônia com um contundente “Amém!”, e os anciãos se
prostram e adoram (Ap 4.14). A visão é estonteante. Quase dá para ouvir o
som de todas aquelas vozes adorando o Deus Santo e Soberano. Esse, sem
dúvida, é um “perfeito louvor” (Mt 21.16). Trata-se de uma visão do futuro,
quando todos os redimidos, junto com todos os anjos e toda a criação louva­
rão ao Senhor com todas as forças, numa adoração jamais vista. Esta é a
nossa vocação: somos chamados para a adoração de Deus “na beleza da sua
santidade” (SI 96.9). Um dia ouviremos o som daquela voz que disse a João
“sobe para aqui”, nos convocando também para participarmos desse gigan­
tesco coro em honra ao Deus Santo. Porém, de certo modo, tudo isso já está
acontecendo hoje. Deus já é exaltado entre as nações e exaltado na terra (SI
46.10). Ele é exaltado acima dos céus e em toda a terra esplende a sua glória
(SI 57.5). Enquanto estivermos neste mundo, essa é a visão de Deus que
devemos ter, e que mais do que nunca precisamos resgatar. E nosso dever,
portanto, resgatar essa visão correta do Deus que se assenta no trono, desse
Deus glorioso, excelso, sublime e, acima de tudo, santo. Só quando o mundo
evangélico resgatar essa visão, os abusos cessarão.
Isaías também esteve nesse lugar, pelo menos novecentos anos antes de
João. No seu texto, há mais detalhes que nos ajudam a recuperar a visão da
santidade de Deus e que têm aplicações diretas para a nossa vida. Isaías
diz: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um
alto e sublime trono” (Is 6.1). Essa é a visão do Soberano, o Santo, aquele
que não se corrompe jamais. Voltando ao tempo de Isaías, somos informa­
0 Santo de Israel 12 5

dos que o rei Uzias estava morto. Ele havia sido um bom rei, tendo reinado
durante 52 anos sobre Judá. Ele desempenhou uma importante função no
seu reinado ao reconstruir o reino de Judá, devolver a dignidade, o poderio
militar e econômico da nação. O final do seu reinado, entretanto, foi trági­
co; ele morreu leproso pela audácia de ter reclamado para si direitos per­
tencentes apenas aos sacerdotes no templo. Foi ferido pelo Senhor por ter
afrontado a sua santidade. A morte do rei foi sentida em Judá, pois um
grande rei havia morrido. Aqueles eram dias de luto, e foi justamente nesse
período que Isaías teve a sua visão. O rei de Judá estava morto, o trono da
nação estava vazio, mas Isaías viu outro trono e um rei que jamais morre e
jamais perde a sua majestade.2 Em sua visão, lá estava o Senhor, assentado
num alto e sublime trono. Não importa a situação do mundo, não importa
quem ocupe os tronos passageiros dos reinos da terra, há um Trono Eter­
no, onde impera a Santidade Eterna, esse é o Trono de Deus (SI 11.4). O
mundo passa, mas aquele que habita a eternidade, o alto, o sublime, o
santo, está eternamente assentado no seu trono, imutável e majestoso na
sua santidade.
Não é um absurdo afirmar que os crentes têm tido uma visão extrema­
mente debilitada de Deus, em que ele aparece despojado da sua soberania e
de sua santidade. Isso é extremamente perigoso, pois em busca de uma
suposta intimidade com Deus, muitas pessoas têm menosprezado a santi­
dade dele. Num certo sentido, realmente fomos chamados para termos
intimidade com Deus, porém, às vezes essa noção é confundida. Vemos
por aí as pessoas dizendo que são íntimas de Jesus, e o tratam com palavras
jocosas e até apelidos. Já ouvimos testemunhos de pessoas que afirmaram
que Jesus vinha até a casa deles e até contava piadas. Francamente, isso
pode ser chamativo, mas não é a visão que a Bíblia apresenta de Deus.
Somos chamados a servir a Deus “com reverência e santo temor; porque o
nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.28,29). Não podemos nos esque­
cer que ele está assentado num alto e sublime trono, que ele é o soberano de
toda a criação. Não vemos qualquer escritor bíblico chamando Deus de
“querido”, ou “meu Jesuzinho”, ou de outras maneiras “íntimas”. Além
disso, intimidade não significa que podemos nos intrometer e desrespeitar
aquele de quem somos íntimos. Nenhum desrespeito pode ser aceito por
Deus com a desculpa de uma suposta “intimidade”. Sem mencionar que a
Escritura não diz que a “intimidade” com o Senhor é o princípio da sabe­
doria, mas que o “temor” do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 9.10).
Por outro lado, com os que o temem, Deus se relaciona com intimidade (SI
25.14). Os “íntimos” de Deus são aqueles que o temem e obedecem a ele.
126 Razão da esperança

A reverência dos serafins


Diante deste Deus Santo e Soberano nenhuma outra atitude pode ser
aceita a não ser a reverência. No templo, Isaías percebeu que além do
Senhor, ele não era o único personagem ali presente. Seres que só apare­
cem nessa passagem são vistos: os serafins,3 que estão voando acima do
Senhor. Isaías passa a observar essas criaturas e logo percebe que elas
têm seis asas, ou três pares, mas é um detalhe em particular que chama a
sua atenção: somente duas asas são usadas para a função de voar, as ou­
tras quatro servem para cobrir o rosto e os pés, O que isso sugere? Certa­
mente é a reverência que os serafins, essas criaturas angelicais, têm diante
do Senhor. Os serafins jamais experimentaram o pecado, são totalmente
puros, e servem ao Senhor diante da santidade dele, mas mesmo assim -
e isso impressiona - , cies nem se atrevem a olhar diretamente para o
Senhor. Podemos entender facilmente a razão de os homens não olharem
para o Deus glorioso - a existência do pecado explica isso; porém, os
serafins são puros; no entanto, nem mesmo eles olham diretamente para
o Senhor dos Exércitos. Não poderia haver uma descrição mais sublime
da santidade de Deus do que a imagem que essa passagem sugere. O
texto ainda diz que os serafins cobrem os pés. Freqüentemente os pés
trazem a conotação de impureza. Quando Moisés se aproximou da sarça
ardente, Deus lhe ordenou que tirasse as sandálias porque a terra em que
estava pisando era santa (Êx 3.5). É certo que os pés dos serafins não são
impuros, porém, numa atitude de respeito diante da santidade de Deus,
eles cobrem os pés. Quem dera todos tivessem esse senso de reverência
diante da santidade de Deus!
Os anjos não foram os únicos a se sentirem na obrigação de reveren­
ciar ao Senhor na sua Santidade. Alguns homens sentiram isso na carne.
Um deles foi Davi, na famosa história em que decidiu trazer a Arca da
Aliança de Quiriate-Jearim para Jerusalém. Depois da conquista da cida­
de e o estabelecimento de sua capital, imitando o procedimento dos filis­
teus, Davi mandou trazer a Arca, conduzida com muita festa e celebra­
ção, sobre um carro novo. A Escritura diz que, em certo ponto, os bois
que transportavam a Arca tropeçaram e um homem chamado Uzá esten­
deu a mão para segurar a Arca. Uzá foi instantaneamente fulminado pela
ira de Deus (2Sm 6.1-8). Davi havia cometido uma série de erros básicos,
inclusive o de imitar os filisteus ao ter usado um carro novo para trans­
portar a Arca. A Arca não devia ser transportada em carros, ela possuía
0 Santo de Israel 127

argolas, e somente os levitas eram autorizados a conduzi-la (lC r 15.15).


Davi estava cheio de boas intenções e pensou que elas fossem suficientes.
Deus não pode permitir que a sua santidade seja violada. Muito provavel­
mente foi nessa ocasião que Davi compôs o Salmo 15, dizendo: “Quem,
Senhor, habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo
monte?” (v. 1); e também o Salmo 24: “Quem subirá ao monte do Se­
nhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar?” (v. 3). Com toda a
certeza, os moradores de Bete-Semes, uma pequena cidade de Israel, não
teriam cometido o mesmo erro de Davi. Eles já tinham tido uma expe­
riência com a santidade de Deus, na verdade uma dura experiência. Anos
antes, quando a Arca havia estado entre eles pela primeira vez, curiosos,
desejaram olhar para ver o que estava dentro da Arca, e foram feridos por
Deus (ISm 6.19). A declaração deles naquele momento foi: “Quem po­
deria estar perante o Senhor, este Deus Santo?” (ISm 6.20). A curiosida­
de não ajuda muito. Descuido muito menos. A reverência e o temor são
as melhores opções.
Voltando à visão dos serafins, percebemos que na sua reverência ao
Senhor, eles nos dão uma bela idéia de quão Santo é o nosso Deus, e faría­
mos muito bem se os imitássemos. Observe que os serafins são o mais belo
exemplo de intimidade, pois eles estão mais próximos de Deus do que
qualquer outro ser. De fato eles são íntimos dele, porém, isso não os torna
irreverentes. Se queremos ter intimidade com Deus, antes de qualquer coisa
precisamos aprender a respeitá-lo pelo que ele é. Deus é Santo. A proximi­
dade de Deus está sempre vinculada a respeito, reverência e temor.

0 cla m o r excelso
Da sua visão, o profeta descreve em seguida o clamor dos serafins. Ele
pôde ouvi-los clamando: “Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos;
toda a terra está cheia da sua glória” (Is 6.3). Eles não apenas demonstra­
vam com atos a santidade de Deus, mas também com palavras. A língua
hebraica é cheia de particularidades interessantes. Em todas as línguas há
maneiras de se enfatizar alguma coisa. Na língua portuguesa, quando que­
remos enfatizar uma expressão, a colocamos entre aspas, a sublinhamos ou
então usamos a palavra no grau aumentativo. Assim, se quisermos dizer
que algo é puro em extremo dizemos que é “puríssimo”; se quisermos
dizer que é extremamente santo, dizemos que é “santíssimo”. No hebraico,
isso é demonstrado pela repetição da mesma expressão ou palavra. O que
128 Razão da esperança

o s serafins proclamavam, portanto, é que Deus é extremamente Santo, na


verdade santíssimo.4 Berkhof nos lembra que “não parece próprio falar de
um atributo de Deus como sendo mais central e mais fundamental que
outro; mas, se isso fosse permissível, a ênfase da Escritura à santidade de
Deus pareceria justificar a sua escolha”.5 De fato, a Bíblia diz que Deus é
amor (ljo 4.8), mas não diz que é “amor, amor, amor”. Diz que Deus é luz
(ljo 1.5), mas não diz que é “luz, luz, luz”. E impressionante a atenção que
a Bíblia dá à santidade de Deus.
Há dois modos de vermos a santidade de Deus. Por um lado, precisa­
mos falar da sua característica de ser transcendente, ou seja, separado. A
Santidade de Deus o torna o único ser independente e autônomo. Assim,
estamos destacando a sua majestade. Por outro lado, precisamos falar da
sua santidade em termos de relacionamento com o homem, e então, nos
vem à mente o Deus imanente, aquele que está próximo e se relaciona, mas
que, não obstante, não tolera o pecado. E mais sobre essa última que estamos
tratando aqui. Não devemos nos esquecer que a santidade é uma caracterís­
tica essencial de Deus que afeta todo o ser de Deus. Deus é tão santo no seu
amor, na sua misericórdia, na sua graça quanto na sua ira. É isso o que o
salmista afirma ao cantar: “O Senhor é fiel em todas as suas palavras e
santo em todas as suas obras” (SI 145.13). Se pensarmos no relacionamen­
to de Deus com os seres humanos, podemos dizer que Deus odeia o peca­
do, pois a sua santidade não tolera a corrupção, ou como Habacuque diz:
“Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal” (Hc 1.13).
No seu cântico, os serafins disseram que “toda a terra está cheia da
glória de Deus”. Por mais que o homem se recuse a admitir, ele está im­
pregnado do senso da santidade de Deus. Ao longo da História, Deus tem
deixado no mundo marcas que evidenciam a sua santidade. A criação pro­
clama isso, como já vimos anteriormente, mas, também podemos ver essas
marcas na Lei de Israel, que foi dada pelo próprio Deus. Sabemos que a Lei
foi planejada por Deus para que Israel tivesse uma noção da santidade dele,
e para levar o povo a entender que precisava ter uma vida santa. Isso pode
ser visto em declarações bíblicas como as seguintes: “Santos sereis, porque
eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2). Porém, mesmo aqueles que
não conhecem a Lei de Israel não podem se desculpar diante de Deus, pois
ele imprimiu na consciência deles o conhecimento da sua santidade (Rm
2.14-16), de modo que todos têm uma noção do que é certo e do que é
errado, do que agrada a Deus e do que o desagrada. Porém, essa noção não
é suficiente para que as pessoas se prostrem diante de Deus. Para que isso
aconteça, é necessário algo mais.
0 Santo de Israel 129

A c o m o çã o diante do Santo
Imediatamente após o clamor dos Serafins, o profeta descreve que
houve uma grande comoção no templo: “As bases do limiar se moveram
à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça” (Is 6.4). Tremor e
fumaça parecem ser elementos comuns na presença de Deus em sua san­
tidade. Quando de sua primeira manifestação a Israel no monte Sinai, a
Bíblia diz que “todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera
sobre ele em fogo; a sua fumaça subiu como fumaça de uma grande
fornalha, e todo o monte tremia grandemente” (Êx 19.18). Esses ele­
mentos indicam a majestade e o poder divinos. E no mínimo curioso que
até os elementos naturais se comovam diante da presença do Santo. A
cena é estarrecedora. Imagine o profeta parado ali diante de toda aquela
cena, e a cada vez que os serafins clamavam, o lugar todo tremia. Lá
estava ele, sozinho, diante da santidade de Deus. Naquele momento, não
foram apenas as paredes que se moveram, o próprio profeta foi movido.
Ele literalmente desabou. Num instante, ele teve uma visão completa de
si mesmo, percebeu toda a sua pecaminosidade, e viu o quanto era indig­
no de estar na presença do Deus Santíssimo. Dá para imaginar a sensa­
ção de Isaías. De repente, ele foi levado ao templo celestial. A primeira
coisa que viu foi o trono de Deus e o próprio Deus assentado no trono.
Em seguida, viu os Serafins, e para seu espanto, eles não olhavam para o
Senhor, mas ele havia olhado. O cântico deles entra na sua alma como
uma lâmina, pois exalta a santidade de Deus, a qual ele estava profanan­
do com a sua presença pecaminosa. As paredes tremem, fumaça encobre
o local, e ele sabe que está condenado. Seu clamor reflete isso: “Ai de
mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no
meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o
Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5). Ele disse algo como “Ai de mim, eu vou
morrer”. Essas são palavras de alguém que teve plena consciência de que
estava profanando algo extremamente santo. Na presença santa do Se­
nhor, sentiu suas forças se esvaírem, e teve uma terrível sensação de morte.
Sentiu-se verdadeiramente perdido, porque sabia ser pecador, tanto quanto
seu povo, e, naquele momento, havia visto o Deus Santo. Esse é o tipo de
sentimento que a santidade de Deus produz nas pessoas. Olhar para Deus
e entender a sua santidade é algo que nos torna menos míopes para en­
xergar a nós mesmos. Ver o quanto Deus é Santo ajuda-nos a perceber o
quanto somos pecadores. Deixar esse senso da santidade de Deus inva-
\30 Razão da esperança

dir a nossa vida fará com que tenhamos ódio do pecado, tanto quanto
Deus o odeia.

0 toque da santidade
Muitas pessoas que se aproximaram de Deus sem considerar o seu
pecado pessoal, não tiveram um final feliz, porém, esse não é o caso de
Isaías. Podemos dizer que a sua história teve um final feliz, pois ele não
pereceu, apesar de ter tido um vislumbre da santidade de Deus. A única
explicação para isso é Redenção. E impressionante como a redenção de­
corre a partir do reconhecimento do pecado. Deus nada fará para salvar o
homem enquanto esse não reconhecer seus pecados e implorar o seu
perdão. E nosso entendimento que Isaías 6 é uma excelente passagem
messiânica, que esclarece, em termos pertinentes ao Antigo Testamento,
o sistema da salvação que é próprio do Deus da Escritura. Neste estudo,
não podemos deixar de fazer as devidas comparações à luz da revelação
do Novo Testamento.
Não devemos pensar que Deus ignorou o pecado de Isaías, fazendo
vistas grossas às suas transgressões. O Deus de Isaías é o mesmo de Levíti-
co que diz: “Ser-me-eis santos, porque eu, o S e n h o r , s o u santo e separei-
vos dos povos, para serdes meus” (Lv 20.26). Também é o mesmo que
disse a Ezequíel: “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.20), e posterior­
mente a Paulo: “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Deus, o Santo,
não pode admitir o pecador na sua presença. E Isaías não estava fingindo,
ele era realmente pecador. A grande notícia, porém, que a Bíblia nos dá, é
que Deus tem uma solução para o pecado do homem. Deus pode tornar o
homem aceitável diante da sua Santidade. Como vimos na visão de João no
Apocalipse, ao redor do círculo branco há um vermelho, pois o sangue nos
conduz à santidade. O profeta descreve que, depois do momento crucial
em que se sentiu perecendo, um dos serafins vôou em sua direção com uma
brasa tirada do altar com uma tenaz e tocou a boca do profeta dizendo:
“Eis que ela tocou os teus lábios; a tua iniqüidade foi tirada, e perdoado, o
teu pecado” (Is 6.6,7). Esse foi um toque santificador. O toque da brasa,
tão quente que o anjo usou uma tenaz, simbolizava o juízo de Deus sobre a
carne pecaminosa. Isaías recebeu uma pequena demonstração desse juízo,
mas quem o recebeu inteiramente foi Jesus, que suportou todo o peso e o
fogo consumidor da ira de Deus por ter carregado o pecado de seu povo.
Não existe salvação sem juízo, alguém tem que pagar a conta do pecado,
0 Santo de Israel 131

alguém precisa satisfazer a justiça e a santidade de Deus. Não há perdão


sem substituição e remissão sem derramamento de sangue (Hb 9.22). A
santidade de Deus exige punição pelos pecados cometidos, e Jesus recebeu
sobre si essa punição simbolizada no dolorido toque da brasa nos lábios de
Isaías. De fato, Lhoyd-Jones está profundamente certo quando diz:

Se lhes fosse solicitado responder onde a Bíblia ensina a santidade de Deus


mais poderosamente teriam de ir ao Calvário, Deus é tão santo, tão plena­
mente santo, que nada senão aquela morte terrível poderia tornar possível
que ele nos perdoasse. A cruz é a suprema e a mais sublime declaração e
revelação da santidade de Deus.6

A decorrência do “toque santificador” divino na vida do homem é que


possibilita que ele esteja na presença de Deus. Quando o seu pecado foi
perdoado, Isaías não precisou mais temer pela sua vida. O olhar de ira de
Deus num instante transformou-se em olhar de graça e misericórdia. O
pecador privado da glória de Deus (Rm 3.23), instantaneamente passa a ter
livre acesso ao Santo dos Santos (Hb 10.19-22) e a adorar ao Senhor na
beleza da sua santidade (SI 96.9).
Em vez de ficar ali repetindo rituais, ou mergulhando em aberrações a
partir de supostos “êxtases espirituais”, o profeta sentiu desejo de ser envi­
ado para servir ao Senhor. Essa foi a experiência de Isaías. De pecador
miserável, num instante ele se sentiu aceito, e seu coração transbordou de
desejo de servir àquele Deus. Ele queria levar aquela imagem santa de Deus
aos outros. Foi por esse motivo que atendeu tão prontamente ao chamado
divino dizendo: “Eis-me aqui, envia-me a mim” (Is 6,8).

A m issão do santificado
Quando Deus nos santifica com o seu toque, certamente não é para
que fiquemos de braços cruzados. Como já vimos, a primeira reação de
Isaías ao se sentir perdoado e aceito foi dizer: “Eis-me-aqui”. Essa ordem
nunca deve ser invertida. Primeiro a pessoa precisa entender a santidade
de Deus, depois a sua própria pecaminosidade e, em seguida, a redenção
para, só então, ouvir o chamado divino e responder: “Eis-me-aqui”. Só
desse modo ela se torna capacitada para cumprir a difícil tarefa que Deus
reservou para ela . Há muitos obreiros não chamados por Deus que se
auto-enviam ao mundo. Somente aqueles que entenderam o seu chamado
132 Razão da esperança

à luz da santidade de Deus, é que podem ir ao mundo com a mensagem


verdadeira. Como diz Ridderbos, “O Senhor pede alguém que Ele possa
enviar ao Seu povo, e Isaías se apresenta como voluntário. O que ele vira e
ouvira, e que a princípio o aterrorizara, o incita, agora que ele foi purifica­
do graciosamente, a um entusiasmo santo pela obra de Deus”.7
Isaías seria um poderoso proclamador da santidade de Deus. Um dos
títulos mais comuns que ele próprio usou para Deus no seu livro foi o de
“Santo de Israel”. Só ele cita 25 das 31 vezes que esse título aparece na
Bíblia. A própria missão de Isaías demonstraria a santidade de Deus. Deus
o chamou para proclamar juízo sobre a nação, uma vez que a justa retribui­
ção para os pecados não confessados e não abandonados se abateria sobre
o povo. Isaías teria que proclamar o pecado da nação até ver toda ela ser
destruída pela ira de Deus. Aquela não seria uma tarefa fácil e nem popular.
De fato, os falsos profetas, que só trazem mensagens boas, sempre acabam
sendo mais populares do que os verdadeiros. A noção da santidade de
Deus que Isaías teve naquele dia jamais o abandonaria, mesmo que ele
tivesse que morrer por ela. Ele não negociaria a mensagem de Deus, pois
tinha visto o Santo.
Do mesmo modo, a nossa mensagem para este mundo não é fácil, mas
temos que cumprir a nossa missão. A santidade de Deus precisa ser resga­
tada no culto, na pregação, na vida devocional diária e em tudo o que os
crentes fazem, A santidade de Deus deve nortear os nossos trabalhos, ami­
zades, negócios e lazer. Homens e mulheres precisam ser desafiados pela
visão da santidade de Deus a conformar suas vidas com a santidade dele.
Toda hipocrisia, toda atitude interesseira, toda atitude de descaso que é tão
comum nestes dias, precisam ser postas de lado, e em seu lugar nascer uma
reverência sincera, uma adoração autêntica e um desejo de servir a Deus
com integridade e amor, em todas as áreas da vida.
Nos dias em que vivemos, em que a corrupção do pecado permeia to­
das as camadas da sociedade, e pode ser vista até dentro das próprias igre­
jas, mais do que nunca precisamos enfatizar a santidade de nosso Deus, e o
compromisso de santidade que ele requer de nós. As pessoas que lotam as
igrejas em busca de prosperidade e solução para todos os problemas, preci­
sam ouvir a ordem de Deus: “Sede santos porque eu sou Santo” (IPe 1.16).8
De fato, o Deus da Escritura é um Deus santo e que exige santidade. Ele é
santo em todos os seus atributos e modos de agir. É hora de a igreja recu­
perar a visão de Deus como a de João e a de Isaías, a visão do Deus da
Bíblia. Está na hora de sentir o impacto que essa visão causa, como Isaías e
João sentiram, para que, no meio de toda corrupção em que vivemos, um
0 Santo de Israel 133

povo santo proclame a mensagem santa do evangelho santo do Deus San­


to. Precisamos recuperar a nossa identidade: “Vós, porém, sois raça eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim
de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz” (IPe 2.9). Sem santidade, não há proclamação verdadeira
e não há poder. Nossa mensagem não tem sido ouvida pela sociedade por­
que falta santidade em nós. As igrejas estão parecidas demais com o mun­
do. Temos sido mais influenciados do que influenciadores. Precisamos lem­
brar que Deus é o santo de Israel e nós precisamos ser o Israel santo de
Deus. E acima de tudo é preciso lembrar a necessidade premente de “san­
tificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14).
10

O enigma do mal

Uma das coisas mais difíceis de harmonizar com a soberania de Deus


é a questão da existência do mal, especialmente a origem dele. Falar sobre
a origem do mal é entrar num dos caminhos mais obscuros e pouco tri­
lhados da teologia. Poucos se aventuraram por essa estreita senda cheia
de armadilhas e dificuldades, em que facilmente se pode tropeçar e cair
na heresia e até mesmo na blasfêmia.1 A pergunta “Quem criou o mal?”
é uma daquelas de que todo professor de Seminário ou de Escola Domi­
nical gostaria de fugir. Em meus tempos de seminarista, certo dia deparei
com um livro que versava sobre a doutrina bíblica do pecado. O livro
pretendia falar sobre a origem do mal, e sabendo que se tratava de um
clássico da teologia, escrito por um respeitado teólogo reformado, fiquei
muito ansioso para lê-lo, esperando encontrar respostas convincentes para
as minhas muitas dúvidas. Devorei suas páginas avidamente para desven­
dar esse mistério tão grandioso, e foi grande a minha decepção de calouro
ao chegar ao final e deparar com a conclusão: não sabemos a origem do
mal. Sem esquecer o cuidado e o temor que esse tema requer, nos aventu­
raremos um pouquinho a pensar sobre a origem do mal. Porém, não se
surpreenda o leitor se, ao final do capítulo, a resposta não tiver mudado
muito. De qualquer modo, considerar este tema pode ser útil para enten­
dermos muitas outras coisas, especialmente o relacionamento de Deus
com o mal, bem como o nosso próprio relacionamento com o mal. A
origem do mal está diretamente ligada à criação do mundo espiritual, e
por isso precisamos meditar um pouco sobre essa criação antes de entrar
diretamente no tema.

A criação do m u n d o espiritual
Antes mesmo de criar a terra e tudo o que nela há, Deus criou algo do
qual não temos muito conhecimento, exceto pelas poucas indicações que a
Bíblia nos dá. Estamos falando do mundo espiritual. No primeiro versículo
136 Razão da esperança

da Bíblia está escrito: “No princípio criou Deus os céus e a te m ” (Gn 1.1).
O segundo versículo passa a concentrar toda a sua atenção na terra: “A
terra, porém, era sem forma e vazia” (Gn 1.2). A partir daí pouco se fala
sobre o céu. De algum modo, a criação do mundo espiritual está incluída já
no primeiro versículo. O livro de Jó dá a entender que os anjos foram cria­
dos antes que a terra fosse feita porque lemos: “Onde estavas tu, quando eu
lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento. Quem lhe
pôs as medidas, se é que o sabes? Ou quem estendeu sobre ela o cordel?
Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assentou a pedra angu­
lar, quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam
todos os filhos de Deus?” (Jó 38.4-7). Sabemos que Deus criou os anjos
antes dos homens, e que houve uma queda no mundo dos anjos, Essa queda
provavelmente aconteceu após o término da criação, uma vez que a Bíblia
diz que, ao terminar a obra, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era
muito bom” (Gn 1.31).2 Se tudo era muito bom, isso nos faz pensar que a
queda de Satanás ainda não havia ocorrido. Sabemos que hoje existem duas
classes de anjos, os bons e os maus. Os bons são chamados de “eleitos”.

Os an jos eleitos
Os anjos eleitos (lTm 5.21) foram dotados de uma capacidade de não
serem mais atraídos pelo mal, ou seja, Deus os preserva da queda. Se Deus
não fizesse isso com os anjos que não seguiram Satanás em sua rebelião,
sempre haveria a possibilidade de que algum anjo fosse iludido pelo diabo
e, então, até hoje anjos poderiam abandonar o céu para seguir o dragão,
Isso não acontece porque Deus preserva os seus anjos do pecado por um
processo semelhante ao da eleição dos homens. Já vimos que os homens
são eleitos, porém, são eleitos para serem salvos, pois a queda foi prevista
na eleição. Os anjos eleitos, diferentemente, são eleitos para que não per­
cam o estado que já possuem.
A Bíblia diz que os anjos são seres sem corpo (Mt 8.16; Lc 7.21; Lc
24.39) que podem estar em grande quantidade em apenas um lugar ao mes­
mo tempo (Lc 8.30).3 Eles não se casam (Mt 22.30), são seres racionais
(2Sm 14.20; Ef 3.10; 2Pe 2.11), extremamente numerosos (Dt 33.2; SI 68.17;
Mt 26.53, Ap 5.11). Eles são classificados em: querubins (Gn 3.24; 2Sm
22.11; SI 18.10; SI 80.1; Ez 1; Ap 4), serafins (Is 6.2, 6), principados, po­
testades, tronos e domínios (Ef 3.10; Cl 2.10; Cl 1.16; Ef 1.21; IPe 3.22),4
Apenas dois anjos recebem nomes na Bíblia: Gabriel e Miguel (Dn 8.16;
9.21; Lc 1.19, 26; Jd 9; Ap 12.7). Este último é chamado de o Arcanjo que,
0 enigma do m al 137

literalmente, significa o principal anjo (Jd 9), sendo o comandante dos exér­
citos celestiais (Ap 12.7). Esses dados bíblicos a respeito dos anjos nos
mostram que há uma grande diversidade em relação a eles, e que estamos
tratanto de um tema que pode gerar muitas especulações. No tocante a isso,
ficamos com as palavras de Calvino: “Ora, ainda que da diversidade de
nomes concluímos que há várias ordens, todavia, investigá-los mais minu­
ciosamente, fixar seu número e determinar suas hierarquias, não seria mera
curiosidade, e, sim, também temeridade ímpia e perigosa”.5
Os anjos têm muitas funções, entre elas a de louvar a Deus (Jó 38.7; Is
6.3; SI 103.20; 148.2; Ap 5.11), que talvez seja a principal. Eles também se
empenham para ajudar os crentes, e se alegram grandemente quando um
pecador se converte (Lc 15.10). Hebreus 1.14 diz que eles “são todos
espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de
herdar a salvação”. De acordo com essa passagem, de alguma maneira os
anjos ajudam aqueles que serão salvos. Sabemos que não é função dos
anjos pregar o evangelho e, ao contrário do que às vezes se pensa, a Bíblia
não diz que eles desejam pregar, diz apenas que eles desejam saber mais
sobre o assunto (IPe 1.12). De qualquer maneira, eles contribuem ao
obedecer às ordens de Deus. Também é função deles proteger os crentes
(SI 34.7, 35.4,5, 91.11-13, Mt 18.10, At 5.19). A Bíblia diz que Deus pro­
videnciou provisão física para Elias (lR s 19.5-7), encorajou Paulo duran­
te suas jornadas (At 27.23-25), libertou Pedro da prisão (At 5.19), direcio-
nou Pedro a se encontrar com Cornélio (At 8.26) por intermédio deles.
Uma tarefa peculiar que a Bíblia parece atribuir a eles é a função de enca­
minhar os crentes mortos para o céu (Lc 16.22), e no dia do Senhor, serão
eles que reunirão os escolhidos do Senhor (Mt 24.31; Mc 13.27). Eles
também se envolvem com as atividades julgadoras de Deus, como execu­
tores. Foram eles que anunciaram a destruição de Sodoma e Gomorra
(Gn 19,12,13). Um deles feriu o Rei Agripa por causa de sua blasfêmia
(At 12.23). Os anjos recolherão os ímpios para os levarem ao inferno (Mt
13.39-42). E função deles derramar os juízos de Deus sobre a terra (Ap
16.2-17), e a voz do Arcanjo anunciará o dia da vinda de Jesus (lTs 4.16).
Portanto, percebemos que os anjos possuem muitas funções e são extre­
mamente importantes para a consumação dos propósitos de Deus para
este mundo. Embora não possamos vê-los, e nem precisemos, podemos
ter a certeza de que eles estão sempre próximos, agindo em nosso favor
segundo as ordens de Deus.
138 Razão da esperança

Os an jos decaídos
Como diz Lloyd-Jones, “O diabo, ao cair, tornou-se a cabeça daquela
esfera que se acha fora da vida de Deus, e assim podemos descrevê-la como
o império da morte”.6 Não sabemos como aconteceu a queda dos anjos.
Hoekema está certo ao afirmar que “nada é dito na Escritura a respeito do
tempo ou da natureza da queda dos anjos”.7 Pelo menos não diretamente.
Algumas deduções são possíveis, no entanto, a partir de passagens indire­
tas. Sabemos apenas que, de alguma maneira, um grupo de anjos liderados
por Satanás se rebelou contra Deus. Satanás significa “adversário” e é o
grande líder dessa rebelião. Ele recebe muitos nomes na Bíblia, e o mais
conhecido, Lúcifer (portador da luz), não está na Bíblia. Esse nome vem do
latim e era aplicado ao planeta Vênus. O motivo de esse nome ser associado
a Satanás foi porque as versões latinas da Bíblia deram esse nome ao título
“estrela da manhã” que aparece em Isaías 14.12 (no hebraico, Hallel). A
passagem de Isaías diz; “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da
alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações! Tu dizias
no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o
meu trono e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do
Norte; subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo.
Contudo, serás precipitado para o reino dos mortos, no mais profundo do
abismo” (Is 14.12-15). Em geral, essa passagem tem sido entendida como
uma referência à queda de Satanás. O que não pode ser ignorado, entretan­
to, é que, em princípio, ela é dirigida ao rei da Babilônia. Trata-se de uma
profecia a respeito do rei da Babilônia e não uma explicação direta sobre a
origem de Satanás. E certo, porém, que o rei da Babilônia tem semelhanças
com Satanás e, no mínimo, é um representante dele na terra. Por esse mo­
tivo, é possível que, por detrás do que está sendo dito ao rei da Babilônia,
haja alguma referência ao próprio Satanás. A passagem descreve a queda
desse rei que, em seu orgulho, queria ser semelhante a Deus, e realmente
esse parece ser o motivo principal da queda de Satanás. Outra passagem
que em geral se aplica a Satanás é Ezequiel 28.12-19, que é uma profecia
contra o rei de Tiro. O mesmo que foi dito sobre o rei da Babilônia pode
ser aplicado ao rei de Tiro. A profecia diz: “Assim diz o S e n h o r Deus: Tu és
o sinete da perfeição, cheio de sabedoria e formosura. Estavas no Éden,
jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio,
o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de
ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em que foste criado,
foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci;
0 enigma do m al 139

permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas. Per­


feito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se
achou iniqüidade em ti” (Ez 28,12-15). Algumas expressões dessa passa­
gem são interessantes, como, por exemplo: “estavas no Éden”, “eras que­
rubim da guarda ungido”, “permanecias no monte de Deus”, “perfeito eras
nos teus caminhos desde o dia em que foste criado até que se achou iniqüi­
dade em ti”. De fato, essas expressões extrapolam em muito o que se pode­
ria dizer de um homem; elas parecem ter alguma aplicação ao próprio Sata­
nás, do qual o rei de Tiro era um representante. Porém, é impossível afir­
mar com certeza essas coisas. O pecado do diabo, provavelmente foi a
soberba. Paulo em uma passagem nas pastorais diz que o presbítero da
igreja não deveria ser neófito “para não suceder que se ensoberbeça e in­
corra na condenação do diabo (lTm 3.6). Isso sugere que o grande pecado
do diabo foi a soberba ou o orgulho.8 Se de fato a rebelião de Satanás
aconteceu após o sexto dia da criação, então, o próprio motivo dessa queda
pode ter sido o homem. Isso é só uma especulação, mas explicaria o ódio
dele ao ser humano. A inveja misturada ao orgulho por ver Deus colocar
sua imagem no homem, e ao mesmo tempo por não ter a adoração que
Deus tinha, pode ter sido o pivô da rebelião. O fato é que ele não está
sozinho em sua luta. Na sua rebelião, conseguiu arrastar um grande núme­
ro dos anjos de Deus. A Bíblia fala desses anjos como caídos. Pedro diz:
“Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no infer­
no, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4).
Judas fala deles como anjos “que não guardaram o seu estado original, mas
abandonaram o seu próprio domicílio”. Estes também tem sido “guarda­
dos sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do grande Dia” (}d 6). Essa
passagem, junto com a anterior (lTm 3.6), sugere que os espíritos malig­
nos, de algum modo, não estavam satisfeitos com o seu estado antes da
queda. Uma mistura de soberba, orgulho e descontentamento, portanto,
deve ter sido o que a ocasionou,
Há uma teoria segundo a qual a queda angélica aconteceu antes da cria­
ção do mundo. A argumentação é baseada em alguns detalhes de Gênesis
1.1,2. O primeiro versículo diz que Deus no princípio (também poderia ser
traduzido “num princípio”) criou os céus e a terra. O segundo versículo
parece trazer algo diferente: “A terra, porém, era sem forma e vazia, e o
espírito de Deus pairava sobre face do abismo”. Pergunta-se: Por que Deus
teria criado uma terra “sem forma e vazia”, um “abismo”, o que sugere um
estado de caos? Especula-se, então, que esse estado caótico teria sido o
resultado de uma queda pré-adâmica, causada por Satanás. Assim, os espí­
140 Razão da esperança

ritos malignos de hoje seriam na verdade as almas dessas criaturas criadas e


destruídas antes de Adão. A única coisa que essa teoria traz de interessante
seria alguma explicação para as descobertas geológicas modernas, as quais
poderiam se referir àquele mundo. O que se pode dizer dessa teoria é que é
uma especulação que nunca poderá ser provada.9
Uma outra teoria a respeito da queda dos anjos liga este evento com o
que está descrito em Gênesis 6.1-4, onde os “filhos de Deus” se enamora­
ram das “filhas dos homens”, e tendo se relacionado com elas, geraram
filhos. Segundo esta teoria, a queda dos anjos teria sido a concupiscência,
ou seja, um pecado sexual. Desde os tempos do judaísmo rabínico esta
teoria já era aceita. O problema com esta idéia é que o texto de Gênesis 6
não diz explicitamente que os “filhos de Deus” eram os anjos. Além disso,
anjos tendo relacionamento sexual não condizem com que Jesus falou de­
les: “Porque, na ressurreição, nem casam, nem se dão em casamento; são,
porém, como os anjos no céu” (Mt 22.30).
Satanás é o comandante dos demônios (Mt 9.34; 25.41; Ef 2.2). Ele tam­
bém é chamado de o príncipe deste mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11), ou o deus
deste século (2Co 4.4). Apesar de esses títulos sugerirem uma posição exalta­
da, não se deve pensar que ele é o chefe de toda a criação divina. É Deus quem
tem o controle total deste mundo. Satanás controla este mundo mau, o mundo
naquilo em que está separado de Deus.10 De acordo com Efésios 6.12, aparen­
temente Satanás e seus anjos formam um exército com algum senso de orga­
nização. A passagem diz: “Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne,
e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo
tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes”. Parece
haver uma espécie de hierarquia sugerida pelos termos “principados, potesta­
des, dominadores, forças espirituais”. O Antigo Testamento já sugeria alguma
hierarquia maligna. O livro de Daniel fala de alguns “príncipes” que provavel­
mente não sejam pessoas humanas, e que dominavam certas regiões do mun­
do antigo. Fala-se do “príncipe do reino da Pérsia” (Dn 10.13) e do “príncipe
da Grécia” (Dn 10.20). Esses príncipes resistiram ao mensageiro de Deus que
fora enviado a Daniel, mas o príncipe do povo de Israel, identificado como o
arcanjo Miguel, saiu em socorro do mensageiro (Dn 10.21).
De Satanás é dito que ele pode se transformar em anjo de luz (2Co
11.14), manipular acontecimentos físicos (Jó 1.12; 2Ts 2.9), sugerir pensa­
mentos errados (M t4.3,Jo 13.2), causar doenças (Mt 4.3), cegar os incrédu­
los (2Co 4.4), operar mediante desejos aparentemente inocentes e conse­
lhos bem-intencionados (Gn 3.6; Lc 4.2,3; Mt 16.22,23), causar sofrimento
(At 10.38), induzir à queda (lTs 3.5), iludir os homens (2Tm 2.26), roubar a
0 enigma do mal 141

palavra semeada (Mc 4.15), impedir os servos de Deus e resistir a eles (lTs
2.18, Zc 3.1) e até possuir um corpo humano (Jo 13.27). Uma das afirma­
ções mais espantosas sobre Satanás é que ele “detém o poder da morte”
(Hb 2.14). Isso não quer dizer que ele é quem decide quem morre ou deixa
de morrer. Essa é uma prerrogativa divina. O que a passagem está dizendo
é que, por causa do pecado, a morte entrou no mundo. Satanás foi o instru­
mento por meio do qual a morte entrou; então, nesse sentido, ele detinha o
poder da morte, porém, por causa do sacrifício de Jesus, Satanás perdeu
esse poder, pelo menos na vida dos salvos,

0 m a l necessário
Uma pergunta que normalmente surge é: Por que Deus permitiu e per­
mite a existência de um Satanás? Não há dúvidas de que Deus poderia ter
impedido a queda dos anjos ou mesmo exterminado todos eles a fim de
que não causassem todo o mal que eles vêm causando ao longo das eras.
Essas criaturas são absolutamente perversas, não há um pingo de bondade
ou justiça no caráter de Satanás e seus anjos; eles são absolutamente maus.
Por que Deus permitiria a existência de um ser tão mau no mundo? Essa
pergunta nos faz voltar à questão da própria origem do mal. De onde veio
o mal?

A origem do mal
O mundo antigo sempre acreditou que havia um deus bom e um deus
mau, Modernamente, essa crença denominada dualismo tem ressuscitado
em muitos lugares, especialmente nos movimentos ligados à Nova Era. O
dualismo identifica essas duas forças como iguais e dependentes uma da
outra, como se uma completasse a outra, que não poderia existir sozinha.
Esse conceito está muito longe de ser bíblico. De acordo com a Bíblia,
Satanás não é igual a Deus, Deus é o único soberano, Satanás é uma criatura
rebelde de Deus. Não existe comparação, Deus é o Rei por excelência,
Satanás não passa de um usurpador.
Quanto à origem do mal, talvez essa seja a mais difícil questão a ser
respondida, E um fato que nunca teremos uma resposta satisfatória, pelo
menos não nesta vida. Algumas perguntas que podem ser feitas nos ajudam
a pensar no assunto. De onde veio o mal, se Deus é o criador de todas as
coisas? E Satanás o criador do mal? Como ele teria criado o mal, se ele
142 Razão da esperança

próprio era bom antes de pecar? Para começar a responder, uma coisa pre­
cisa ficar absolutamente clara: Deus não é o autor do mal. Seja qual for a
resposta que dermos para a origem do mal, ela precisa necessariamente
excluir Deus, pois se Deus for o autor do mal, não poderia ser o Deus bom
e justo no qual cremos. Deus é o criador de todas as coisas, mas não é o
criador do mal. Então Satanás é o criador do mal? Se Satanás fosse o cria­
dor do mal, isso faria dele alguém que realmente está em competição direta
com Deus. A verdade é que o mal não foi necessariamente criado. O que
queremos dizer é que ninguém o criou do nada e de modo específico.
Bancroft diz que o mal é o que pode ser chamado de uma “originaçâo”.51
Ele é fruto do uso de coisas que já existiam, como por exemplo, o livre-
arbítrio, a personalidade e o poder de Satanás. Nesse sentido, Deus dotou
Satanás com essas qualidades e ele as usou para originar o mal. Isso é o
máximo que podemos dizer, é somente até onde podemos ir. Bavinck e
Berkouwer, por outro lado, dizem que o pecado não tem origem, mas só
um início.12 O que eles pretendem dizer com isso é que não podemos de­
terminar a origem do pecado e do mal, apenas constatar o seu início. Mui­
tos apelam para a expressão de Isaías, em que Deus diz: “Eu formo a luz e
crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o S e n h o r , faço todas estas coisas”
(Is 45.7), como uma prova de que Deus é o autor do mal. O contexto da
passagem em questão sugere que esse mal não se refere ao mal último,
metafísico, mas a uma situação específica, que, no caso dos judeus, seria a
vinda dos caldeus contra a nação. Nessa passagem, o mal se refere mais a
algo como a calamidade, e não ao pecado. O fato de a Escritura não dar
explicação direta sobre a origem do mal, mas por outro lado mostrar o
papel do mal, é uma indicação de que este último deve ser o foco da nossa
atenção. A origem do mal sempre será uma incógnita para nós.

0 pr op ós ito do m a l

Voltando à questão do motivo pelo qual Deus deu permissão para a


origem do mal, devemos pensar se, de algum modo, o mal não poderia ser
usado por Deus para os seus propósitos. Não adianta fecharmos os olhos
para o fato de que se Deus concedeu livre-arbítrio aos anjos, e depois a
Adão, ele assegurou a possibilidade da existência do mal. Porém, não pode­
mos imaginar que Deus permitiria algo que pudesse de fato arruinar os
seus propósitos. Deus sempre manteve tudo sob controle, inclusive a ori­
gem do mal. A origem do mal nem por um momento colocou em risco o
grande projeto de Deus. A Confissão de Fé de Westminster diz: “Desde
0 enigma do m al 143

toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho de sua própria
vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de
modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da
criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias,
antes estabelecidas” (III, 1). Essa talvez seja a afirmação mais precisa já
formulada sobre a origem de todas as coisas. Há uma tensão admitida na
frase, a de que, por um lado tudo acontece segundo a vontade de Deus, e
por outro, a de que isso não faz de Deus o autor do pecado, nem elimina a
liberdade do homem. A única responsabilidade pelo mal que pode ser atri­
buída a Deus é que ele criou um mundo no qual o mal era possível, e isso
para demonstrar a sua glória pelo fato de ele saber lidar com isso, e ao final
conduzir tudo para um fim bom.
A verdade é que a existência do mal segue os propósitos de Deus para
este mundo. Uma coisa precisa ficar clara: Deus não tem nenhum prazer
em Satanás e não compartilha de nenhuma de suas maldades, porém, Deus
pode usar Satanás para cumprir os seus propósitos. Não é que Satanás queira
gentilmente servir a Deus, na verdade, ele luta desesperadamente contra
Deus, mas tal é a soberania do criador, que Satanás, mesmo em sua luta
desesperada, acaba contribuindo para que o supremo propósito de Deus se
realize. Uma das maneiras em que Deus usa o mal é para testar o seu povo.
O teste é uma prova de qualidade. Qualquer produto, para que seja confiável,
precisa ser colocado sob alguma pressão a fim de que a sua resistência seja
confirmada. Os crentes recebem a pressão de Satanás e essa é uma boa
maneira de testá-los. Deus pode também usar Satanás como instrumento
de punição. Satanás é um instrumento de punição divina por causa da mal­
dade do mundo, e até dos crentes. Há pelo menos dois casos na Bíblia em
que pessoas foram “entregues a Satanás” como um castigo por seus peca­
dos, um crente e um incrédulo (ICo 5.5; lTm 1.20). Como diz Lorraine
Boettner,

As obras de Satanás são tão controladas e limitadas que elas servem aos
propósitos de Deus. Quando Satanás vorazmente deseja a destruição do
ímpio, e diligentemente trabalha para isso, ainda assim a destruição procede
de Deus. Em primeiro lugar é Deus quem decretou que o ímpio sofra, e
Satanás meramente recebe a permissão de trazer essa punição sobre ele. Os
motivos que estão por trás dos propósitos de Deus e aqueles que estão por
trás dos propósitos de Satanás são, é claro, infinitamente diferentes,13

Isso demonstra o quanto Deus é incomparável; ele usa a maldade de Sata­


nás para o bem do seu povo, e para o cumprimento do seu supremo propó­
144 Razão da esperança

sito. Deus permite a contínua existência de Satanás porque ele é de fato o seu
“chicote” para este mundo, porém, acima de tudo Deus o usará pessoalmen­
te para demonstrar o seu poder. Deus fará uma grande demonstração do seu
poder sobre o maior inimigo quando o aprisionar definitivamente no lago de
fogo. Entretanto, Deus já está demonstrando o seu poder sobre Satanás hoje,
ao resgatar as vítimas do império das trevas e levá-las a salvo para o reino
celestial. Ainda podemos dizer que pelo fato de ter deixado que o mal se
originasse, Deus criou a oportunidade de expressar ainda mais plenamente a
sua graça e a sua misericórdia. Esse caráter gracioso e misericordioso de Deus
jamais teria sido demonstrado se o mal não tivesse se originado.

A d u ra çã o do m a l
O mal não é eterno, pois não faz parte da essência das coisas que exis­
tem. O mal é um parasita, um impostor, e a certeza de sua existência é a
garantia da sua destruição. O fato de que Deus vencerá o mal torna a exis­
tência dele razoável. Deus permitiu o mal para que o seu poder fosse testa­
do, mas o mal não terá continuidade na criação de Deus. O mal cumpre um
papel estabelecido por Deus, e quando esse papel se acabar, Deus o elimi­
nará e nunca mais permitirá que ele reapareça.
No mundo vindouro, o mal nunca mais será uma possibilidade. Os que
tentam explicar a existência do mal com base no livre-arbítrio não têm
resposta para a seguinte pergunta: O homem poderá novamente pecar? Se
o livre-arbítrio de fato faz parte da constituição humana, sendo essencial
para que o ser humano seja ser humano, não há garantias de nossa salvação
nesta vida e nem na vindoura. Nesta vida, a qualquer momento, podemos
perder a salvação por um ato deliberado da nossa vontade, e mesmo no
futuro, embora não tenhamos mais motivos para pecar, sempre teremos a
possibilidade de pecar, se o livre-arbítrio continuar existindo. Se alguém
quiser afirmar que no futuro o ser humano não terá mais livre-arbítrio,
poderia se perguntar então, por que ele deveria ter hoje? Se no mundo
vindouro não houver livre-arbítrio é porque ele não é tão essencial assim ao
ser humano. De fato não haverá livre-arbítrio no futuro, como não existe
hoje. Deus não permitiria que o mal pudesse de novo entrar na sua criação
e corrompê-la outra vez, pois, no mundo porvir, seus planos para o mundo
já se consumaram. Essa é uma certeza que podemos ter: “A morte já não
existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coi­
sas passaram” (Ap 21.4).
0 enigma do mal 145

A atitude correta frente ao m a l


Em tudo na vida devemos ser equilibrados, e, portanto, a respeito desta
questão também devemos demonstrar moderação. Dois erros devem ser evi­
tados: o primeiro, o de não dar qualquer importância ao mal, e o segundo o
de exagerar a sua importância. Nos dias de hoje, muitas pessoas praticamente
negam a existência do mal. Os teólogos liberais têm negado a existência do
diabo, possibilitando desse modo uma capa para que ele possa atuar de modo
ainda mais sorrateiro. O resultado da teologia liberal, que fez com que grande
parte das igrejas evangélicas da Europa e dos Estados Unidos perdesse a
relevância bíblica, é uma das maiores vitórias que Satanás já alcançou. O
esvaziamento dessas igrejas é uma prova incontestável disso.14 O apóstolo
Paulo dizia que devemos sempre ter uma postura íntegra “para que Satanás
não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios” (2Co
2.11). Ignorar os desígnios dele é praticamente decretar a vitória dele. Numa
guerra, a pior coisa que pode acontecer é alguém ser pego de surpresa. Co­
nhecer o inimigo e suas táticas é uma garantia de enfrentá-lo mais eficazmen­
te. Paulo fala dos “desígnios” de Satanás, desse modo indicando a idéia de
que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação
com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas de acordo com as
circunstâncias. Satanás “fará qualquer coisa para conseguir vantagem sobre
nós”, diz o apóstolo, “fará qualquer coisa para derrubar-nos, para fazer-nos
parecer ridículos e para pôr em desgraça o nome de Deus”.15 Não devemos
ignorar que, “... quando o inimigo é invisível, maior é o perigo”.16
Por outro lado, há também aqueles que exageram a importância de Sata­
nás. Os monges da Idade Média se recolhiam em mosteiros para não serem
fascinados pelo diabo. Nos dias de hoje, ao contrário disso, muitos estão
desafiando o diabo abertamente, e até supostamente, entrevistando-o na
televisão. O diabo tem sido o alvo principal de muitos movimentos evangé­
licos, que o vêem praticamente em tudo. Em muitos casos, a responsabili­
dade pessoal de cada um é minimizada, pois tudo o que acontece de ruim é
atribuído ao diabo. Eles dizem: Para ter prosperidade, repreenda o diabo;
para ter saúde, repreenda o diabo; para ter o casamento feliz, repreenda o
diabo. Há uma verdadeira obsessão pelo diabo, o que por certo somente o
agrada ainda mais. E errado sacrificar o tempo do culto que deveria ser
dedicado à adoração a Deus para promover uma luta contra o diabo. Equi­
líbrio, portanto, é necessário. Não devemos nem exagerar nem minimizar a
importância do maligno.
146 Razão da esperança

Na nossa luta contra o mal, seguir a Bíblia sempre será a melhor opção
para não termos surpresas desagradáveis. A atitude do cristão é descrita na
Bíblia como de resistência. Pedro diz: “Sede sóbrios e vigilantes. O diabo,
vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando al­
guém para devorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de que sofrimentos iguais
aos vossos estão se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mun­
do” (IPe 5.8.9). Tiago compartilha dessa opinião: “Sujeitai-vos, portanto, a
Deus; mas resisti ao diabo, e ele fugirá de vós” (Tg 4.7). Também essa é a
grande explicação de Paulo: “Portanto, tomai toda a armadura de Deus,
para que possais resistir no dia mau e, depois de terdes vencido tudo, per­
manecer inabaláveis” (Ef 6.13). Não precisamos ir atrás dele, precisamos
resistir aos ataques dele. Resistência é a palavra de ordem.
11

Criação ou evolução?

"Quero s a b er c o m o Deus criou o m u n d o . . . ” Dr. Albert Einstein

O antigo Credo Apostólico começa com a seguinte declaração: “Creio


em Deus Pai Todo-poderoso, criador dos céus e da terra”. A igreja sempre
acreditou que Deus é o criador de tudo o que existe. A idéia de que a terra
surgiu como resultado de um processo evolutivo é relativamente recente.
Somente a partir do século 18 começou-se a questionar abertamente a va­
lidade do Gênesis como a exata expressão da verdade histórica. Desde a
fundação do Cristianismo, a crença em Deus como o criador do mundo foi
dominante, mas, a partir do iluminismo, as pessoas decidiram se livrar des­
se paradigma. O ser humano da idade moderna resolveu complementar o
grito de independência de Adão. Adão bradou: “Eu não preciso de um
mantenedor”. E o ser humano moderno foi mais longe ao bradar: “Eu não
preciso de um criador”. Agora, o ser humano moderno quer explicar a sua
existência sem precisar admitir que há um Deus por trás dela. Desde que
Darwin fundamentou a mirabolante teoria da “evolução das espécies” (1859),
as pessoas pensam que conseguiram dar o seu grito de independência defi­
nitivo. Infelizmente, as idéias modernas da ciência têm convencido muitas
pessoas crentes, algumas até sinceras, as quais, na tentativa de tornar a Bí­
blia supostamente mais acessível para o mundo moderno, têm negociado
princípios inegociáveis. A história da teologia mostra claramente quão trá­
gica é a tentativa de condicionar a teologia e a revelação aos paradigmas da
ciência moderna. No final, sacrifica-se a teologia, a revelação e a própria
mensagem da igreja.
A história da modernidade tem demonstrado a existência de ideologias
que sustentam praticamente todos os movimentos influentes no nosso
mundo. Hoje, quando se pensa em ciência, muitos imaginam uma
metodologia imparcial e livre de ideologias, mas isso é um grande mito. A
ciência moderna é essencialmente ideológica. Se não fosse assim, cientistas
famosos não estariam dispostos a forjar provas para as suas teorias, como a
148 Razão da esperança

vergonhosa “prova” da existência do homem de Neanderthal, cujo crânio


mais famoso foi uma prova forjada de um crânio de um homem do século
18. A ciência moderna está intimamente ligada às ideologias do mundo
moderno. Por trás da maioria das teorias científicas modernas, está o
relativismo dos costumes, da ética e da própria existência. Para a maioria
das pessoas, negar os absolutos significa se ver livre de condenações. Po­
rém, esse é mais um mito da modernidade.
Gênesis é o livro da Bíblia que afirma expressamente que Deus criou o
mundo e o ser humano. Esse livro tem dado origem a muita discussão, espe­
cialmente a respeito do seu caráter histórico e literário. O Cristianismo con­
servador tem se posicionado a favor do caráter histórico da obra. Porém,
muitos eruditos modernos têm relegado o livro à categoria de poético, algo
como fruto da experiência religiosa de um povo, com verdades submersas
ou escondidas atrás de mitos. Essa visão do Gênesis é extremamente preju­
dicial ao entendimento da Bíblia como livro inspirado e inerrante, e não
deveria ser aceita pelos crentes sinceros que honram a Palavra de Deus. Po­
rém, infelizmente, professores de teologia de diversos seminários e institui­
ções teológicas ensinam isso para alunos inexperientes e despreparados, que
ficam fascinados pela suposta erudição, e se esquecem da inspiração. Quan­
do muitos desses alunos voltam como pastores para as suas igrejas, já não
acreditam na infalibilidade da Escritura e, conseqüentemente, não têm men­
sagem para proclamar. Basta olhar para o que aconteceu em tantas igrejas da
Europa, dos Estados Unidos e até mesmo do Brasil, que desacreditaram da
Escritura, e se tornaram secularizadas, para perceber que essa é uma péssima
opção. Se a Bíblia for rejeitada, o Cristianismo não sobrevive.
O livro de Gênesis foi escrito por Moisés1 com a intenção de contar, ao
povo saído do Egito, quais eram as suas origens. A criação não é descrita
em termos científicos, até porque termos científicos são coisas bem recen­
tes. A tentativa é de dar ao povo daquela época uma compreensão da terra
prometida onde eles iriam habitar, sobre a origem dela, bem como da ori­
gem e do direito do próprio povo à terra. Ele relata em linguagem simples,
e de modo cronológico, fatos históricos. O gênero literário não é poético,
mas narrativo. Trata-se de uma narrativa histórica.

Antes de tudo, Deus...


E interessante o modo como a Bíblia apresenta Deus. Ela não se preo­
cupa em começar provando a existência dele. Ela diz: “no princípio Deus...”,
Criação ou evolução? 149

pressupondo, sem possibilidade de dúvidas, a existência de Deus, Para a


Bíblia, crer no Deus criador é uma questão de fé, conforme o escritor aos
Hebreus declara: “Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela
palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não
aparecem” (Hb 11.3). Como já dissemos, para alguém aceitar que Deus é a
origem de todas as coisas, a fé é necessária. Não porque não haja evidências
de que Deus é o criador, mas porque, para aquele que não crê, nenhuma
evidência é suficiente. Embora acreditemos que há boas evidências racio­
nais para se aceitar a idéia de Deus como criador, entendemos que, para
que as pessoas aceitem essa idéia, elas precisam receber o dom da fé.
Todas as coisas têm uma origem. Você sabe a data do seu nascimento,
sabe quando os seus pais nasceram, talvez até mesmo quando os seus avós
nasceram. Você tem conhecimento da época em que as suas roupas foram
confeccionadas, o ano em que o seu carro foi fabricado, quando a sua casa
foi construída, etc. Todas essas coisas tiveram um início. Porém, será que é
possível afirmar que todas as coisas que existem no universo tiveram um
início? Pense bem antes de responder, pois se você disser que sim, então,
poderá entrar num caminho de contradições. Se sua resposta é sim, então, o
que havia antes de a primeira coisa surgir? A resposta só poderá ser uma: o
nada. Porém, o nada pode existir? Você consegue imaginar o nada? E, para
piorar, como é que o nada poderia dar origem ao tudo?2 Se, em algum tem­
po houve o “nada”, então, logicamente o nada precisaria ser eterno, mas
observe que mesmo o conceito do tempo não poderia existir. O nada não
produz algo. Para dar origem a alguma coisa, o nada não poderia ser real­
mente nada, ele precisaria ser, no mínimo, algo. E esse algo precisaria neces­
sariamente ser incriado. Mas o incrível é que, para ser incriado, esse algo
precisaria ser absoluto ou supremo. A diferença entre o absoluto e o relativo
é exatamente essa questão da eternidade. Na verdade, por mais que as pes­
soas neguem, elas precisam acreditar que algo exisda antes que as outras
coisas aparecessem. Esse “algo”, a Bíblia apresenta como Deus, e o Credo
Apostólico afirma que é o Todo-poderoso. Ou, então, nós precisaríamos
sustentar a existência de um milagre estupendo: o nada deu origem a algo.
Para a Escritura, o mundo não foi criado pelo nada, mas do nada. Quem
criou o mundo foi Deus, porém Deus não tinha algo material usar a fim
de criar o mundo, então ele precisou formar a matéria. Isso não significa
que a matéria seja, portanto, uma extensão de Deus, como crê o panteísmo,
pois Deus transcende a matéria. Deus, no seu poder absoluto, criou a maté­
ria do nada, como Hebreus diz que “o visível veio a existir das coisas que
não aparecem” (Hb 11.3). Os teólogos têm chamado esse ato criador de
150 Razão da esperança

Deus de Fiat, o momento criador, que representa o poder de Deus de criar


as coisas a partir do nada.
Quando o Gênesis diz: “No princípio criou Deus os céus e a terra”, ele
não está lançando um conceito meramente religioso. Esse é um conceito
necessário. E a explicação que esclarece o que, até então, era inexplicável.
Todos os seres humanos, cristãos ou não, deveriam acatar esse conceito a
fim de que tudo faça sentido. Se Deus não é o criador, não existe mais ra^ão.
Como Sproul afirma, esse “é um conceito racionalmente necessário”,3 pois
se algo existe hoje, então um Ser supremo precisa existir, do qual todas as
coisas procedem. Se esse ser supremo não existe, a vida é irrelevante.

0 ataque do evolu cion ism o


A partir do século 18 o mundo mudou. O humanismo do iluminismo
começou a desbancar Deus do seu trono tanto da filosofia como da teologia.
A ciência, influenciada pelo panteísmo e pelo materialismo, e alimentada
pelas ideologias modernistas, investiu com força total contra a doutrina da
criação sustentada pela igreja e pela Bíblia. A idéia da origem de todas as
coisas pelo Fiat do criador foi ridicularizada e, em seu lugar, a idéia da evolu­
ção ganhou notoriedade. Da noite para o dia, uma teoria que tem mais furos
do que um queijo suíço tornou-se a expressão máxima da verdade, um dogma
inquestionável. Foi assim que o ser humano moderno rejeitou os dogmas
medievais, mas colocou os seus próprios dogmas no lugar deles.
Precisamos entender que há muitas teorias evolucionistas. O conceito
popular associado à evolução é o de que o ser humano veio do macaco,
porém isso é uma redução demasiadamente simplista da teoria. O conceito
evolucionista foi popularizado por Charles Darwin, na sua obra A Origem
das Espécies, publicada em 1859.4 Porém, houve muitos desenvolvimentos
dessa teoria. A teoria da evolução entende o mundo como estando em
constante transformação, melhoramento e adaptação. Assim, os seres hu­
manos são um produto de milhões de anos de evolução, cuja origem deve
rem ontar à m atéria inanim ada. Toda a vida, segundo a teoria da
macroevolução, deve ter surgido de uma única célula, que, por sua vez, se
originou de alguma possível transformação química.5 A vida seria, portan­
to, um acidente cósmico, e nós, seres humanos, poderíamos dizer de modo
pejorativo, não passaríamos de “amebas” superdesenvolvidas. Se a evolu­
ção é verdade, não seríamos criaturas criadas com um propósito, mas cria­
turas (esse termo nem poderia ser usado) existentes a partir do acaso, vin-
Criação ou evolução? 151

dos do nada e voltando para o nada, e, portanto, nada sendo. Como já


postulamos no segundo capítulo deste livro, não há como negar os fatos: se
a teoria da evolução é verdadeira, então a vida não tem sentido.
De modo geral, as pessoas pensam que os teístas rejeitam a teoria da
evolução por causa de sua fé, mas o motivo principal nem é esse. Precisamos
rejeitar a teoria da evolução por causa da ra^ão. Essa teoria não é racional.
Infelizmente, ela é ensinada nas escolas como verdade, porém não passa de
um grande mito que, para se acreditar nele, é necessária uma imensa dose de
fé. De fato, é preciso ter muito mais fé para crer na teoria da evolução do que
para crer no que a Bíblia diz. Não é de admirar que, para muitos, a ciência
tenha se transformado numa espécie de religião. E um fato indiscutível que a
ciência moderna está muito ligada ao ateísmo, e o ateísmo, por mais incrível
que possa parecer, é uma religião, pois é um sistema de fé. O ateu crê que
Deus não existe. Podemos dizer que ele crê, pois as suas idéias não podem ser
provadas, ou seja, ele não consegue ir até um laboratório e provar que Deus
não existe, Portanto, o ateísmo também é uma questão de fé. Como diz
MacGrath “O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o Cristianismo”.6
Engana-se quem pensa que a teoria da evolução substitui o criacionismo,
que é a teoria dos que defendem ter sido Deus o criador do cosmos. A
teoria da evolução tem uma grande lacuna na sua exposição, pois se as
coisas evoluíram, necessariamente precisam ter evoluído de algum ponto.
Não é possível evoluir do nada; então, algo deve ter existido antes para que
pudesse evoluir. A teoria da evolução não consegue responder a questão da
origem de todas as coisas, e, a menos que defenda a eternidade da matéria,
o que é um absurdo, terá que acreditar, em última instância, num “criador”.
O máximo que a teoria da evolução conseguiria explicar, e isso com muitas
lacunas, seria o desenvolvimento das coisas criadas, mas, quanto ao surgi­
mento delas, fracassa completamente. Como diz Hodge, isso não é solução,
“é mera negação de que alguma solução é possível”,7 ou como diz Machen
“é preciso dar um salto no vazio para aceitar a hipótese evolucionista”.8
Porém, mesmo a questão do desenvolvimento das coisas fica com muitas
lacunas na teoria do evolucionismo. Há muito tempo, os cientistas têm
observado que existe uma espécie de “projeto inteligente” no mundo. E
impossível imaginar que um acaso impessoal estivesse por trás desse design
do universo. Quando se contempla uma molécula de DNA, por exemplo,
que apesar de toda a tecnologia moderna e das mentes mais brilhantes do
mundo que estão a serviço de desvendar seus mistérios, ainda é algo bas­
tante incompreensível para o ser humano, temos um exemplo claro de um
design inteligente. A confirmação desse design inteligente tem sido a principal
152 Razão da esperança

tese dos defensores do chamado “criacionismo científico”, que é uma ten­


tativa de demonstrar cientificamente que a proposta da existência de um
criador tem muito mais sentido do que a idéia da evolução. Como citamos
no início deste trabalho, Einstein entendia que somente Deus poderia ser o
criador de tudo o que existe, e isso porque ele pôde ver a complexidade da
criação. Isso não significa que Einstein fosse um cristão, mas ele se viu
obrigado a admitir que as evidências da complexidade e da inteligência na
natureza apontavam para a existência de Deus.9
Algumas particularidades tornam a teoria da evolução ainda mais inaceitá­
vel. Como algo morto pode dar origem à vida? Como algo simples pode
originar o complexo? Uma brincadeira é feita com relação à teoria da evolu­
ção: uma vez que é dito que o big-bang, uma grande explosão, deu origem a
todas as coisas, pede-se que se jogue uma bomba numa relojoaria e, depois
que a poeira baixar, se verifique se todos os relógios estão sincronizados.
Como pode uma explosão dar origem a um universo sincronizado? Na verda­
de, a teoria da evolução contraria leis científicas como, por exemplo, a da
termodinâmica, que diz que as coisas tendem a se extinguir e não a evoluir.
Uma chama acesa não aumenta mais e mais, mas queima até se apagar. Uma
chaleira de água quente não se aquece mais e mais, ao contrário, ela esfria. A
partir dessa concepção, uma teoria da involução seria muito mais provável. As
coisas somente evoluem enquanto são alimentadas. A água aquece enquanto
há fogo embaixo, e o fogo queima enquanto há lenha ou algum combustível
que o alimente. Até mesmo para sustentar a teoria da evolução seria necessá­
rio supor que há um mantenedor por trás de cada ato evolutivo, e novamente
Deus seria necessário. Os seres humanos não podem deixar Deus de lado;
eles precisam dele para que algo faça sentido. Se o deixarmos de lado, estare­
mos abrindo mão da razão e mergulhando no caos da irracionalidade. Só
uma época de relativismo como a atual poderia aceitar uma teoria como essa.10

Dias ou eras?
Dado o progresso da ciência atualmente, algumas questões importantes
que têm surgido são: Qual é a idade da terra? Quanto tempo Deus levou
para criar o universo?
A primeira consideração que precisa ser feita é que calcular a idade da
terra, a partir de elementos bíblicos, é impossível. Embora um Arcebispo
chamado James Ussher (1581-1656), há cerca de quatro séculos, tenha ten­
tado provar que a criação aconteceu no ano 4004 a.G, tendo chegado a esse
Criação ou evolução? 153

número mediante a soma das genealogias relatadas na Bíblia, deve ser dito
que esse número é tão imaginário quanto qualquer outro. E um fato que a
Bíblia não se preocupa em dizer quantos anos a terra tem. Somar gerações
é algo inapropriado, pois não sabemos se a Bíblia cita todas as gerações.
Parece-nos que a Bíblia se preocupa apenas com as principais, como se
percebe da genealogia de Jesus em Mateus. Portanto, não há como dizer, à
luz da Bíblia, qual é a idade da terra,
Diante disso, será que as afirmações dos cientistas de que a terra tem
bilhões de anos é conclusiva? Novamente precisamos nos lembrar que a
ciência é muito limitada para definir coisas tão grandiosas, Nossa tecnolo­
gia ainda é muito incipiente, e freqüentemente vemos novas “descobertas”
de cientistas contrariando antigas “descobertas” que, até então, eram tidas
como verdades absolutas. Aliás, algo axiomático na ciência é a sua condição
provisória (Popper). Um dos métodos mais conhecidos usados nos últimos
anos para se saber a idade de algum objeto é do Carbono 14, mas hoje esse
método é bastante questionado, inclusive por muitos cientistas evolucionistas.
Certamente, as gerações vindouras vão rejeitar a teoria da evolução e mui­
tas das descobertas “científicas” da atualidade. Um pouco de ceticismo com
relação à ciência não faz mal a ninguém. Além disso, há muitos cientistas
que defendem que a terra tem milhares e não milhões de anos.
O livro do Gênesis diz que o cosmos foi criado em seis dias. Depois do
aparecimento da teoria da evolução, muitos teólogos readaptaram essa crença
a fim de harmonizá-la com a ciência. Uma das primeiras tentativas nesse
sentido foi apelar para o caráter poético do Gênesis. O primeiro capítulo
deixou de ser histórico para ser poético. Como um livro poético, então, os
detalhes não importam, mas sim a sua mensagem. Assim, dizem eles, não
devemos considerar os seis dias como literais, mas a mensagem subjacente,
que afirma ser Deus o criador, não importa em que época nem em quanto
tempo. Porém, considerar o livro do Gênesis como poético é fazer um
ataque muito sério à integridade da Escritura. Muitos conceitos bíblicos
comprovados pelo Novo Testamento se demonstrariam inexistentes. É
importante que se entenda que o Novo Testamento não vê o Gênesis como
um livro poético e sim histórico. Jesus fala de Adão e Eva como persona­
gens históricos (Mt 19.3-5), bem como de Abraão, Isaque, Jacó, etc (Lc
13.28). Teria ele se enganado?
Um ataque ainda mais sério à integridade do relato bíblico da criação
veio com a descoberta de um hino babilónico. Nesse hino é destacada a
figura do deus Marduque, que vence o deus Tiamat (que é o oceano), divi­
dindo o seu corpo e fazendo dele a terra e o céu.11 Por haver algumas
154 Razão da esperança

semelhanças entre essa história e o relato bíblico, o relato bíblico foi decla­
rado como uma cópia daquele. Porém, as diferenças entre os relatos são
muito grandes.12 No relato bíblico não há uma luta de deuses, somente a
figura soberana de Deus aparece. Além disso, por que o hino babilónico
não pode ser uma cópia distorcida do relato bíblico? Ou mesmo ambos
resultados de tradições orais ou escritas que divergiram ao longo do curso
da História?13 Não há problemas em admitirmos que existem relatos ante­
riores ao do Gênesis sobre a criação, porém, a inspiração do Espírito Santo
deu ao relato bíblico a certeza da verdade.
Há três teorias mais ou menos aceitas no meio cristão sobre a criação
que fazem com que os seis dias de Gênesis 1 se multipliquem bastante, ou
pelo menos que a semana da criação seja mais extensa. A primeira afirma
que cada dia da criação representa uma era. Baseados na passagem de 2
Pedro 3.8, que afirma que, para o Senhor, um dia é como mil anos, muitos
crentes entendem que cada dia da criação pode representar um longo pe­
ríodo de tempo, algo como um “dia geológico”. Outra tese bem aceita por
muitos eruditos considera os dias como sendo de 24 horas, mas admitindo
espaços de tempo entre esses dias.14 Assim, Deus teria agido de maneira
criadora no primeiro dia, em seguida teria se passado um período de tem­
po, e novamente Deus teria atuado de maneira criadora no segundo dia.
Entre um dia e outro poderiam ter se passado milhões de anos. Por fim,
podemos citar uma terceira tese, bem menos provável, que vê um longo
espaço de tempo entre os dois primeiros versículos do Gênesis. O primeiro
versículo diz: “No princípio criou Deus os céus e a terra”. O segundo ver­
sículo diz: “A terra era sem forma e vazia”, Da primeira declaração para a
segunda haveria um lapso de tempo, talvez de milhões, ou até mesmo bi­
lhões, de anos. Alguns inclusive defendem que houve uma pré-criação e
que na terra viviam os anjos (e talvez os dinossauros) e que, depois da
queda dos anjos, a terra tornou-se sem forma e vazia. A partir daí, Deus
teria começado a recriar a terra.15
Há dificuldades com todas essas posições, e, num certo sentido, todas
são especulações, porém não podemos afirmar categoricamente que elas
sejam improváveis. Mas deve ser dito que, para se fazer mais justiça ao ensi­
no da Bíblia, precisamos dizer que a interpretação mais plausível é a de que o
mundo foi criado em seis dias literais, num espaço literal de seis dias. O fato
de o sétimo dia ser o de descanso corrobora essa tese, pois certamente esse
dia precisa set um dia literal. Além disso, a palavra “dia” que aparece na
passagem, geralmente tem, na Bíblia, a idéia de um dia de 24 horas, e não é
boa exegese interpretar de outro modo, a menos que o contexto o exija.
Criação ou evolução? 155

Além disso, cada um dos dias citados na criação tem uma tarde e uma
manhã. Fica difícil imaginar uma manhã que dura milhões de anos.
Uma outra explicação que poderia ser dada para a idade da terra é a que
leva em conta a aparência das coisas quando Deus as criou. Deus criou
Adão já um homem adulto. Deus não fez um bebê que cresceu até chegar à
maturidade. Se Adão, no momento em que foi criado, passasse por uma
análise biológica, quantos anos lhe seriam dados? Biologicamente talvez ele
tivesse 20, 30 ou 40. Cronologicamente, porém, tinha alguns segundos.
Quando os cientistas analisam uma pedra ou um fóssil, eles calculam a sua
idade em milhões de anos, mas essa poderia ser sua idade biológica; qual
seria a sua idade cronológica? Deus poderia ter feito a terra nova com idade
de velha. De qualquer modo, não precisamos de todas essas explicações. É
suficiente o fato de que o evolucionismo suscita mais problemas do que
oferece soluções.

Conclusão
Do mesmo modo que a declaração de independência de Adão não o
tornou independente de Deus, assim também a negação do ser humano
moderno não muda o fato de que Deus é o criador do ser humano e de
tudo o que existe. A igreja fará muito bem em continuar crendo em Deus
como o criador de todas as coisas. Não temos resposta para tudo, porém,
não há argumentos suficientes para que essa crença seja modificada. Pensar
que o mundo se originou de um processo evolutivo levanta mais questões
sem solução do que afirmar que Deus foi o seu criador. No final das contas,
mesmo os evolucionistas necessitam de um criador. Portanto, a mensagem
bíblica da criação continua atual e altamente satisfatória para o mundo
moderno, pois não há explicação melhor. O criacionismo é mais racional
do que as teorias científicas. Ser criacionista é a melhor opção.
12

Voltando ao início:
A criação do homem

A evolução faz do homem um ser auto-existente, sem propósito. E na


criação que encontramos o verdadeiro sentido e o valor do ser humano. A
criação é a chave para entendermos o homem, mais do que a própria reden­
ção. Quando as pessoas começam a apresentação do evangelho a partir da
queda, quase que podem dizer: “Errar é humano”, como dizia Shakespeare.1
Mas errar não é humano, ou seja, não é algo próprio da humanidade pela
criação, é algo que sobreveio com a entrada do pecado no mundo. Por isso,
o problema não está no criador da humanidade, nem na criação em si, mas
no que a criatura decidiu fazer com a liberdade que o criador soberanamen­
te lhe concedeu. E muito importante estudar a criação, pois somente assim
poderemos entender o ser humano, bem como a própria redenção.
No século 5o a.C., um filósofo chamado Protágoras disse que o “homem
é a medida de todas as coisas”. De lá para cá, o humanismo, uma corrente
filosófica, que como o próprio nome sugere, coloca o homem no centro das
atenções, tem fomentado o pensamento da humanidade com a noção de que
tudo existe por causa do homem. No humanismo, o homem aparece como
a base de todos os valores e de toda excelência. Uma palavra que pode ser
sinônima de “humanismo” é “egocentrismo”. Ou seja, tudo deve ser centra­
lizado no homem e nos seus desejos. E nossa opinião que o humanismo tem
causado mais problemas para o homem do que qualquer outro sistema filo­
sófico. O humanismo tenta fazer do ser humano o que ele não é.
Para entendermos o ser humano, precisamos voltar às primeiras páginas
da Bíblia.

M a rca registrada
Gênesis 1.26-31 é uma das passagens mais conhecidas da Escritura. E a
narrativa histórica do sexto dia da criação, quando Deus criou o ser huma-
158 Razão da esperança

no. Até então, Deus já havia criado todas as outras coisas, mas somente a
respeito do homem ele disse, “façamos o homem à nossa imagem e seme­
lhança”. Hoekema expõe essa questão da seguinte maneira: “Deve-se notar
também que a criação do homem foi precedida por uma deliberação ou
conselho divino: ‘Façamos o homem...’ Isso demonstra novamente a idéia
da singularidade da criação do homem. Esse conselho divino não é men­
cionado com relação a nenhuma outra criatura”.2 Como diz Bavinck:

A o chamar à existência as outras criaturas, nós lemos simplesmente que


Deus falou e essa fala de Deus trouxe-as à existência. Porém, quando Deus
está prestes a criar o homem, ele primeiro conferencia consigo mesmo e
decide fazer o homem à sua imagem e semelhança. Isso indica que, especi­
almente a criação do homem, repousa sobre a deliberação, a sabedoria, a
bondade e a onipotência de Deus. (...) O conselho e a decisão de Deus são
mais claramente manifestos na criação do homem do que na criação de
todas as outras criaturas.3

A imagem divina, portanto, é uma característica exclusiva da humanida­


de. O que torna o homem tão especial? Num certo sentido, nós somos
iguais a tantas espécies de seres vivos. Os pássaros voam em bandos, as
bestas viajam em manadas e nós vivemos em tribos. Porém, há algo que
nos torna diferentes de todas as demais criaturas de Deus. Nós sabemos e
sentimos isso. A Bíblia explica o que é: Deus nos criou à sua imagem e
semelhança.

Im ita dor de Deus

Quando Deus terminou a obra da criação, que incluía o homem, viu que
tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Ou seja, Deus não viu qualquer defeito
moral no homem, porque de fato não havia. Havia justiça, santidade e pie­
dade em todas as atitudes. Tudo o que o homem fizesse, seria parte da
adoração a Deus. Planejar o futuro, nomear os animais, dar à luz filhos,
construir cidades, escrever músicas, praticar esportes, refletir sobre o signi­
ficado de cada coisa, etc., tudo deveria estar centrado em Deus. Além de
perfeição moral, Adão e Eva foram dotados da mesma criatividade do seu
criador. Deus imaginou um mundo perfeito e o trouxe a existência. Ele
criou o mundo do nada (ex nihilo), com tantas variedades de tons, cores e
formatos quantas se poderiam imaginar. Ele criou tanto o mundo macro
como o micro em todos os seus detalhes de forma, tamanho, cor e função.
O plano de Deus era que a humanidade se tornasse imitadora dele nesse
Voltando ao início: A criação do homem 159

sentido. É claro que o homem não poderia criar coisa alguma “do nada”,
mas como foi feito à imagem de Deus, poderia refletir a criativa imaginação
do criador em singular e impressionante imitação. Aprendemos isso do
texto de Gênesis. Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, confor­
me a nossa semelhança; tenha ele domínio...” (Gn 1.26). Observe a expres­
são “domínio”. Dominar é algo próprio de Deus, mas o homem que foi
criado à imagem divina também tinha a função de dominar, numa clara
imitação de Deus. Uma das primeiras funções do homem foi dar nome aos
animais (Gn 2.19,20).4 Deus estava estimulando a criatividade do ser hu­
mano. Deus queria um imitador seu, mas que tivesse qualidades originais.
Van Groningen diz que “Deus trouxe a humanidade para sua família real.
Ele não lhes concedeu sua deidade; ele os dotou com o privilégio e a res­
ponsabilidade de serem cotrabalhadores com ele nas tarefas reais a serem
executadas na criação”.5

Aspectos da i m a g e m Divina

Resumidamente, a imagem divina no homem pode ser vista em quatro


sentidos.6 A primeira idéia é a de personalidade. Deus é um ser pessoal, e o
homem feito à sua imagem dispõe dessa mesma personalidade. Isso não
faz o homem ser “algo mais” que os animais, mas faz o homem ser “ím­
par”. A personalidade pressupõe consciência, conhecimento e responsabi­
lidade. A segunda idéia é a da espiritualidade. Deus é um ser espiritual, e os
seres humanos também são personalidades espirituais. Apesar de ser cria­
tura num sentido material, pois faz parte da matéria criada, o homem é
também extra-material, pois tem em si o elemento espiritual, que o impele
a viver uma vida além da matéria. Quando Deus fez o homem à sua ima­
gem, colocou nele um senso insuperável da eternidade (Ec 3.11). E o que
Paulo diz aos atenienses: “Pois nele vivemos, nos movemos e existimos”
(At 17.28). Todos aspiram pelo divino. Ninguém consegue negar isso de
modo completo. E por isso que não existe um ateu no sentido exato. Mes­
mo quando as pessoas negam a existência de Deus, lá no fundo elas sabem
que ele existe. A imagem de Deus nos torna pessoas espirituais, capazes de
nos relacionar e nos comunicar com Deus. O terceiro sentido em que a
imagem de Deus afeta o ser humano é a da liberdade. Como ser pessoal e
espiritual, Deus é um ser livre. Deus criou o ser humano com liberdade
para amar, conhecer, confiar, desejar, obedecer, e também para se recusar a
fazer essas coisas. A quarta característica pode ser chamada de expressividade.
Deus tem a capacidade de se expressar, de fazer sua vontade conhecida e de
160 Razão da esperança

executá-la. Deus expressa a sua personalidade porque tem capacidade para


isso. A Bíblia diz que Deus tem olhos, nariz, boca, ouvidos, mãos, cabelo,
etc. Evidentemente que esse é um linguajar antropomórfico, pois são qua­
lidades humanas aplicadas à divindade, para sugerir que ele consegue se
expressar. O ser humano se expressa igualmente por meio de partes do seu
corpo, e pode transmitir a sua personalidade, espiritualidade, virtudes, etc.
Van Groningen define: “Fica bem claro que pensar nos seres humanos
feitos à imagem de Deus é considerar a relação ímpar de semelhança e um
vínculo amoroso, vivo; é considerar o que os seres humanos são e quais as
suas capacidades ímpares que os capacitam a funcionar, a se expressar e a
exercer influência”.7 Machen tem uma definição ainda mais inspiradora:
“Que mistério estupendo é isso! Aqui temos o homem, criatura finita, saído
da mão criadora de Deus, e que anda pela terra com um corpo feito do pó
da terra. E, apesar disso, este ser, tão insignificante como possa parecer a
primeira vista, possui o dom estranho e terrível da liberdade pessoal, e é
capaz de desfrutar uma relação pessoal com o Deus infinito e eterno”.8

Dicotomia o u tricotomia?
Uma das características mais marcantes do ser humano que foi feito à
imagem de Deus é a sua natureza, que é composta de corpo e alma. Essa é a
visão dicotômica do homem. Mas há muitos que sustentam uma tricotomia,
insistindo que o ser humano é composto de alma, corpo e espírito. A
tricotomia originou-se com os gregos, especialmente Platão. A alma seria o
meio de ligação entre o corpo e a mente (noui)? Entre os cristãos, Irineu
ensinava que, enquanto os incrédulos têm apenas corpo e alma, o crente tem
alma, corpo e espírito, este último criado pelo Espírito Santo. Há duas passa­
gens na Escritura que sugerem uma divisão tripartida do homem. Uma delas
é ITessalonicenses 5.23: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o
vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na
vinda de nos;,o Senhor Jesus Cristo”. A outra é Hebreus 4.12: “Porque a
palavra de Deuü é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes, e penetra até a ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas,
e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”. Porém, a
dicotomia é mais amplamente defendida pela Bíblia, o que nos leva a pensar
que as passagens acima não estejam ensinando uma divisão tripartida do ser
humano. Parece que Paulo está falando em termos gerais, tentando acumu­
lar palavras para expressar a idéia de que o cristão como um todo será guar­
dado até o fim.10 O autor aos Hebreus, por outro lado, está falando do poder
Voliando ao início: A criação do homem 161

que a Palavra tem de colocar certas coisas umas contra as outras dentro do
ser humano, Ele não está falando em termos literais, mas enfatizando que a
Palavra penetra nos recônditos mais interiores do nosso ser, trazendo à luz
as razões secretas das nossas ações.11 Como diz Kistemaker, “o escritor re­
corre ao simbolismo para dizer que, o que o homem habitualmente não
pode dividir, a Palavra de Deus separa completamente”.12 A dicotomia é a
visão mais bíblica, pois a Bíblia usa indistintamente as palavras alma e espíri­
to (Mt 10.28; ICo 7.34; Tg 2.26). Os mesmos sentimentos são atribuídos à
alma e ao espírito (ISm 1.10; Is 54.6; Jo 12.27; 13.21; At 17.16; 2Pe 2.8). O
louvor e o amor de Deus são atribuídos tanto à alma quanto ao espírito (Lc
1.46-47; Mc 12.30). A salvação é associada tanto à alma quanto ao espírito
(Tg 1.21; ICo 5.3,5). A morte é descrita igualmente como a partida da alma
e do espírito (Gn 35.18; lRs 17.21; Mt 10.28; SI 31.5; Mt 27.50; Lc 8.55; Lc
23.46; At 7.59). Os mortos ora são chamados de “almas” ora de “espíritos”
(Mt 10.28; Ap 6.9; Hb 12.23).13 Parece mais certo, portanto, dizer que o ser
humano é composto de corpo e alma. Porém, devemos evitar tratar dessas
coisas como se elas fossem separadas. O ser humano deve ser considerado
como um todo indivisível. Isso não significa que a alma seja mais valiosa do
que o corpo, como pretendia Platão e os gregos. O corpo e a alma possuem
o mesmo valor, e ambos decaíram em Adão e precisam ser redimidos. Por
essa razão, a Bíblia enfatiza a ressurreição. Não basta ao homem estar em
espírito junto de Deus depois da morte; para ser completo, ele precisará ter
de novo o seu corpo e, assim, com corpo e alma restaurados, o ser humano
viverá feliz para sempre...

A d i gn id a d e do ser h u m a n o
Do que foi dito até agora, já dá para perceber que a criação é a chave
para entender o ser humano, Quando pensamos em redenção, precisamos
limitá-la a um certo número de pessoas, pois ela se limita ao número daque­
les a quem Deus, no curso da História, moveu e chamou para si mesmo.
Porém, quando pensamos na criação, precisamos incluir tanto cristãos como
não-cristãos, pois todos são criaturas de Deus. Isso quer dizer que todos
são feitos à imagem e semelhança divina. Não é que o ser humano possua
a imagem divina, ele é essa própria imagem.14 Essa é uma das coisas de que
freqüentemente esquecemos. A universalidade da criação que colocou a
imagem divina em todos os seres humanos implica que o nosso próximo,
seja ele o mais obstinado ateu ou a mais dedicada anciã da igreja, foi feito
igualmente à imagem de Deus. Isso é um resultado da criação e não da
162 Razão da esperança

redenção. Se todas as pessoas são imagem divina, então é necessário que as


respeitemos, e reconheçamos a dignidade de todos os seres humanos, inde­
pendentemente de quem sejam, do que creiam ou do que façam. Além
disso, se a imagem é comum, então, significa que todos os seres humanos
têm uma dimensão moral, criativa e religiosa comum, que embora imper­
feita, não pode ser removida sob qualquer esforço humano. Ter sido criado
à imagem de Deus é algo vantajoso para o homem porque lhe dá dignidade;
por outro lado, isso lhe traz responsabilidade. As impressões digitais que
Deus deixou no ser humano o tornam significativo para todo o universo
criado, mas, ao mesmo tempo, o tornam tremendamente responsável dian­
te de Deus. Por isso, dissemos que não pode existir algo como um ateu.
Deus deixou de tal modo gravado no coração do ser humano o sentido de
sua existência que ninguém poderá argumentar diante de Deus, “Eu não
sabia”. Nestes tempos modernos, talvez antes de falar às pessoas sobre
aceitar Jesus como salvador, devêssemos falar sobre aceitar Jesus como
criador.15 Parte da ciência tem tentado negar esta verdade essencial.

Quem é o ser h u m a n o ?
Nada melhor para entender o ser humano do que ouvir o que o seu
criador tem para dizer a respeito dele. Quando não entendemos uma obra
de arte, a melhor coisa é pedir informações a quem a fez. A Escritura nos
ensina o que o criador tem a dizer sobre o ser humano. No Salmo 8 há uma
pergunta que o ser humano tem tentado responder desde o começo do
mundo. Ela diz respeito à identidade e à razão de existir da humanidade. O
salmista pergunta: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e
a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E
o filho do homem, que o visites?” (SI 8.3,4). O que é o homem? O mundo
tem oferecido muitas respostas, mas todas têm se demonstrado insatisfatórias
na medida em que elas analisam o ser humano como se ele fosse indepen­
dente de Deus. O Salmo 8 não faz isso. Ele analisa o homem em sua relação
com o criador. E esse é o único modo confiável para se entender realmente
quem ou o que é o ser humano.

A insign ificâ ncia h u m a n a


A prim eira conclusão a que o salmista chegou a respeito do ser hum ano
nos parece a princípio m uito negativa: ele é insignificante diante da grande-
Voltando ao início: A criação do homem 163

za da criação. O autor, Davi, muito antes de ser rei em Israel, era pastor de
ovelhas nas regiões montanhosas de Belém. E, como pastor, ele muitas
noites dormiu ao relento, tendo apenas o céu estrelado como cobertura.
Lá, no céu límpido do Oriente, Davi podia contemplar a lua e as estrelas
criadas por Deus, e se admirar diante da grandeza das obras do criador. A
pessoa que já teve a oportunidade de deitar-se numa bela noite estrelada ao
ar livre e contemplar o céu, sabe da sensação de pequenez que toma conta
dela diante da imensidão que os olhos tentam inutilmente captar. Provavel­
mente pensando nisso, Davi se perguntou: “Que é o homem?” Diante da
imensidão das coisas que foram criadas, o homem é insignificante. E quan­
to mais o ser humano progride no seu conhecimento da criação, mais mo­
tivo tem para sentir-se pequenino. Com todas as descobertas científicas que
nos ensinam sobre a imensidão das galáxias e das estrelas incontáveis, bem
como de tudo quanto se esconde dentro do tamanho minúsculo de uma
simples célula, o senso de nossa insignificância diante do todo se acentua.
Porém, o motivo maior que torna o homem insignificante não é a
grandeza da criação, mas a grandeza do seu criador. Esta criação tão grande
e majestosa possui um criador ainda maior e muito mais majestoso. Aquele
que criou todas as estrelas dos céus e é o criador do próprio ser humano
é o único realmente grandioso, e diante dele as pessoas não passam de
sombras.

A gra nd ez a h u m a n a
A partir do versículo 5, entretanto, parece que o autor começa a desdi­
zer tudo o que havia dito. Ele passa a falar o quanto o homem é grande e
importante. Porém, se atentarmos cuidadosamente, veremos que não há
contradição alguma. O Salmo nos mostra duas verdades com respeito ao
ser humano. Por um lado, a sua insignificância diante de Deus e de tudo o
que ele é e faz. Por outro, a sua grandeza, por ter sido feito à imagem de
Deus e por ter recebido uma função de suma importância das mãos do
próprio Deus. O salmista diz: “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor
do que Deus e de glória e de honra o coroaste” (SI 8.5). A maior de todas as
qualidades do ser humano é ser criatura de Deus, feito à sua imagem. Isso
não quer dizer que o homem seja divino, mas antes, que ele foi criado para
refletir perfeitamente o caráter de Deus. Com a queda no pecado, essa ima­
gem ficou distorcida, mas não deixou de existir.
O salmista continua: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e
sob seus pés tudo lhe puseste” (SI 8.6). Quando Deus criou o homem,
164 Razão da esperança

determinou que ele tivesse domínio sobre todas as coisas criadas, referin­
do-se principalmente ao reino animal e vegetal. O homem deveria ser o
administrador de Deus neste mundo. Nem é preciso dizer que essa função
satisfazia plenamente tanto a Deus, que se deleitava em seu “administra­
dor”, quanto ao próprio homem, que se sentia útil e totalmente integrado
com a obra de Deus. Deus criou o homem com a função de representá-lo
perante a criação, e nisso está a grande dignidade do ser humano. A criação,
portanto, dá toda dignidade ao homem. O homem somente tem importân­
cia porque Deus existe, e porque ele tem um plano para o homem. Somen­
te quando o ser humano reconhece a sua pequenez diante de Deus, e reco­
nhece que Deus é gracioso por se relacionar com ele, é que ele vai se sentir
humano de verdade. O humanismo moderno ou antigo é anti-humano,
porque sempre tentou fazer do homem o que ele não é e nem foi planejado
para ser. A Bíblia é um livro humanista no verdadeiro sentido da palavra,
pois coloca o ser humano no seu verdadeiro lugar: criatura de Deus, criado
para o louvor de Deus, e importante por causa disso. O ser humano não é
o centro do universo, Deus é. O homem não se sentirá satisfeito enquanto
ele quiser ser mais do que é. Ele nunca se realizará tentando ocupar o lugar
que é de Deus.
E interessante que, na estrutura da Reforma, nunca sobrou espaço para
glorificar o homem, pois toda a glória devia ser rendida a Deus. A Reforma
pôde proclamar Soli Deo Gloria porque mais do que ninguém ela entendeu o
ser humano. Quando temos uma visão melhor de nós mesmos e de Deus,
diminuímos a nossa importância e aumentamos a dele. É interessante que a
Reforma tenha produzido uma era de grandes pensadores e artistas, mas
ela nunca exaltou o ser humano, antes prostrou o orgulho humano diante
da majestade de Deus. Mas hoje as coisas estão muito mudadas. O ser hu­
mano é exaltado e Deus diminuído. Nossos cultos e serviços são freqüente­
mente celebrações de nós mesmos mais do que de Deus, há mais entreteni­
mento neles do que adoração. Nunca antes, nem mesmo na era medieval,
os cristãos tinham sido tão obsessivos a respeito de si mesmos. Nunca
antes Deus foi tão totalmente esquecido. Gastamos a maior parte do tem­
po, como Narciso, contemplando a nossa própria imagem distorcida na
água. Desse modo, o ser humano jamais será entendido, pois fomos criados
à imagem de Deus, mas como a nossa própria imagem foi distorcida pelo
pecado, o melhor modo para nos entendermos é olhar, não para nós mes­
mos, mas para o criador, em quem não há qualquer distorsão.
Voltando ao início: A criação do homem 165

0 propósito da criação
Uma teoria popular diz que Deus nos criou porque se sentia sozinho,
porém seria algo inacreditável imaginar que Deus precisasse dos seres hu­
manos para preencher um vazio no seu ser. E o homem que possui esse
vazio em decorrência da queda. Como poderia a divina Trindade se sentir
só em meio a milhões e milhões de anjos? Mas mesmo os anjos nunca
foram a base da comunhão trinitária. A Trindade basta a si mesma, pois há
um perfeito relacionamento de amor nela. Não é Deus quem está sozinho
sem o ser humano, é o ser humano quem está sozinho sem Deus.
Uma outra teoria diz que Deus criou os seres humanos porque ele que­
ria ter alguém que o amasse de livre vontade. Essa teoria diz que os anjos
amavam a Deus não por livre vontade, mas por compulsão. Isso é dar de­
masiado crédito ao ser humano. Além disso, como então boa parte dos
anjos se rebelou contra Deus? (Ver 2Pe 2.4; Jd 6; Ap 12.7).
Alguém pode pensar que esta discussão não tenha muita importância,
mas dela depende a nossa visão da criação e do próprio ser humano. Afinal,
a criação está centrada no ser humano ou está centrada em Deus? Deus
existe para o nosso propósito ou nós existimos para o propósito dele? A
resposta bíblica é que nós existimos por causa dele, para o louvor da sua
glória (Ef 1.6). A Escritura diz que Deus tem prazer nas suas obras. O
Salmo 104 diz: “A glória do Senhor seja para sempre! Exulte o Senhor por
suas obras!” (v. 31). Como o artista se alegra com a sua obra-prima, assim
Deus se alegra com as coisas que criou. Ou seja, todas as coisas existem por
causa dele e não por nossa causa. “Qual é o fim principal do homem?” Essa
é a pergunta número 1 do Breve Catecismo de Westminster, e a resposta é:
“Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”. Existimos para glorificá-lo e
para nos alegrarmos nele. Deus nos criou para ter prazer em nós, e nós, do
mesmo modo, devemos ter prazer nele. E por isso que nos foram dados os
prazeres terrestres. Eles servem para elevar os nossos sentidos para a ver­
dadeira alegria nele. Isso significa que a nossa busca por prazeres foi calcu­
lada para ser algo como uma motivação para uma busca de Deus. Imagine
a implicação desse tipo de pensamento. Por que será que Israel tinha tantas
festas no seu calendário litúrgico? Pense na história do Deus-homem, que
não somente viu uma bênção na união de um homem e de uma mulher,
mas até mesmo providenciou um milagre a fim de que houvesse vinho para
celebrar aquela ocasião (Jo 2.1-11). Talvez você questione: “Mas nós não
somos ensinados a abandonar o mundo e os seus prazeres”? De fato a
Razão da esperança

BíbHa ensina isso, mas é justamente porque a queda deturpou toda a ordem
da vida. Na verdade, o que estamos querendo afirmar é que o mundo em si
não é o problema, nem mesmo a humanidade em si e os seus prazeres. O
problema é a rebelião do mundo e da humanidade contra o seu criador. Um
antigo culto, conhecido como maniqueísmo, que foi grandemente influen­
ciado pelo gnosticismo, afirmava que toda matéria era má e que somente o
espírito era puro. Desse modo, o corpo, a inteligência e os apetites carnais
eram inerentemente demoníacos. Contra isso, o calvinismo afirmou que
toda a depravação, ou os pecados que surgem dela, não se levantam da
natureza, mas da corrupção desta natureza. Portanto, não são naturais, mas
completamente anormais. O problema não é a matéria, mas o pecado. Pre­
cisamos considerar o propósito da nossa criação como centrado em Deus.
Ele nos fez para o louvor da sua glória. Somente quando entendemos isso
é que podemos compreender o significado por trás do trabalho e do lazer,
do prazer e da restrição, da vida e da morte, do riso e do temor. A criação
mostra que Deus tem um imenso propósito para a vida de cada ser humano
que é chamado para ser um imitador de Deus.

Criação e relacionam ento


Deus idealizou para a coroa da sua criação três tipos de relacionamentos
que fariam com que o sentido da existência humana fosse completo.16 Es­
tes são: o espiritual, o social e o cultural. Na integração desses elementos, o
ser humano encontraria a sua plena realização e felicidade.

M a n d a t o espiritual

O mandato espiritual foi dado como parte da ordem da criação. Há três


particularidades na criação do ser humano que apontam para o fato de que
Deus desejava ter um relacionamento íntimo com o homem. Primeiramente,
o homem foi criado à imagem de Deus. Isso nos fala de uma semelhança e de
uma possibilidade plena de relacionamento, que nenhuma outra das criaturas
dispunha. Deus elegeu o ser humano para espelhar a sua própria grandeza. O
segundo aspecto foi a instituição do dia de descanso. Ao estabelecer o sába­
do, Deus estava proporcionado não só um dia de descanso para o ser huma­
no mas, acima de tudo, um dia de íntimo relacionamento consigo. E o tercei­
ro aspecto foi a ordem divina para não comer do fruto da árvore do conheci­
mento do bem e do mal. Se essa obediência tivesse sido seguida, Deus, Adão
Voltando ao início: A criação do homem 167

e Eva continuariam a manter o lindo relacionamento pessoal que possuíam


entre si, sendo que nada poderia haver entre eles que pudesse atrapalhar.
Adão e Eva deveriam permanecer em comunhão com Deus. Eles deve­
riam continuar andando com Deus quando ele viesse no final da tarde (Gn
3.8). O fato de Deus vir na “viração do dia” para se encontrar com o ser
humano demonstra que Deus queria que o homem “andasse” junto dele.
No Antigo Testamento, apenas dois homens tiveram esse privilégio pleno
de “andar” com Deus: Enoque (Gn 5.24) e Noé (Gn 6.9). O primeiro foi
transladado aos céus, e o segundo foi o único sobrevivente (junto com sua
família) da maior catástrofe que esse mundo já viu: o dilúvio.
O mandato espiritual, portanto, nos fala do nosso relacionamento pes­
soal com Deus. Ele precisa ser o mais importante da nossa vida. Deus deve
ocupar o lugar central na nossa vida. O objetivo principal da obediência ao
mandato espiritual consiste em gradualmente conhecer, aceitar e crer na
realidade da presença do nosso Deus triúno em todas as áreas da vida. Não
existe área ou aspecto da vida que Deus não conheça, não compreenda ou
não veja. Deus quer que todos os aspectos e situações sejam tratados com
uma clara consciência fundamentada no relacionamento com ele. Como
filhos de Deus, pertencemos a ele em primeiro lugar e precisamos saber
que ele nos reivindica para si. A partir disso, é preciso uma resposta pessoal
a Deus e um desejo de obedecê-lo, amá-lo e viver para ele.

M a n d a t o social
O aspecto espiritual, visto acima precisava transbordar para todos os
demais aspectos da vida humana, especialmente para o próximo relaciona­
mento que Deus instituiu: o relacionamento familiar, que também é cha­
mado de Mandato Social.
Mais do que um mandato, a responsabilidade social do homem é uma
bênção de Deus para a sua vida. Veja o que diz a Bíblia: “Criou Deus, pois,
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os
criou. E Deus os abençoou e lhes disse: sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra....” (Gn 1.27,28). Deus lhes deu a bênção de serem fecundos,
de poderem se multiplicar e povoar a terra, também a fim de dominá-la.
Portanto, o mandato social de constituir família, de ter filhos e educá-los no
caminho do Senhor é uma grande bênção para a vida das pessoas. Deus
deu ao homem a bênção do companheirismo. Deus percebeu que não era
bom para o homem permanecer só, e por isso, fez-lhe uma auxiliadora
idônea que o completasse como nenhuma outra criatura poderia fazer (Gn
168 R am o da esperança

2.18). E a reação de Adão, ao deparar com Eva, demonstra que estamos no


caminho certo, pois ele fez a primeira declaração de amor da história: “Esta,
afinal é osso dos meus ossos e carne da minha carne, chamar-se-á varoa,
porquanto do varão foi tomada” (Gn 2.23). Deus também concedeu ao ser
humano a bênção de ter filhos. Não podemos nos esquecer de que Adão e
Eva pecaram contra Deus, e Deus havia dito que, se eles pecassem, morre­
riam. Portanto, o fato de Deus permitir que eles ainda tivessem filhos é
uma prova de que a maldição foi diminuída, pois filhos representam conti­
nuidade. Deus concedeu a bênção do relacionamento sexual. Muitos afir­
mam que o pecado original foi um pecado sexual. Nada poderia ser mais
equivocado. Foi Deus quem instituiu o sexo. Ele abençoou o homem e a
mulher e lhes ordenou que fossem fecundos, que se multiplicassem, e de­
pois declarou que isso era “muito bom”. Deus não inventou o sexo apenas
para a procriação. Homem e mulher se realizam pertencendo um ao outro
dentro do casamento, e isso certamente agrada a Deus.
Os papéis do marido e da mulher no cumprimento do mandato social
são cruciais. O desempenho correto desses papéis, em que o homem é o
cabeça que deve amar a sua esposa, e a esposa é a auxiliadora que deve res­
peitar o marido, é de vital importância para que haja estabilidade na família,
para que os filhos sejam criados dentro dessa estabilidade, e assim sejam
pessoas equilibradas que irão influenciar positivamente a sociedade. A famí­
lia é a unidade básica mais importante e ordenada por Deus dentro da soci­
edade, mas ela precisa ser equilibrada para que possa cumprir o seu papel. O
mandato social de Deus, com todas as suas ramificações, não deve nunca ser
ignorado ou rejeitado, pois a obediência ao mandato social produz satisfa­
ção, alegria e paz que somente Deus pode dar. A família sempre foi muito
importante e quando ela falhou, como no caso de Eli (ISm 2.1-36), de Sa­
muel (ISm 8.1-5) e de Davi (2Sm 11; 13-16; 18), houve tristeza e tragédia.

M a n d a t o cultural

Por fim, vemos também no Gênesis o mandato cultural que engloba a


vida chamada “comum”, mas que de comum não tem nada. Deus disse para
o homem que sujeitasse a terra, dominando sobre “os peixes do mar, sobre
as aves dos céus, e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1.28). Nessa
ordem, vemos a imensa responsabilidade que o homem tem com relação a
este mundo. Cabe a ele ser o administrador de todos os bens que Deus lhe
confiou. O trabalho se encaixa nisso como um dom de suprema importân­
cia. Isso tem implicações sociais, econômicas, culturais e ecológicas.
Voltando ao ínícío: A criação do hom em 169

Geralmente, as pessoas fazem uma grande distinção entre o secular e o


espiritual. Mas o fato é que a obediência ao mandato cultural está intima­
mente ligada à obediência aos mandatos social e espiritual. Deus é o criador
de tudo. Foi ele quem nos deu todos esses aspectos culturais na criação.
Deus quer ser honrado, servido e adorado em todas as esferas da vida. A
vida é uma unidade. Quando Deus criou o homem, num só ato ele colocou
na sua esfera todos os três mandatos. Ele fez o homem à sua imagem, com
relacionamento pessoal com ele, o abençoou para que se multiplicasse, ou
seja, constituísse família e tivesse filhos, e ordenou que dominasse sobre
toda a terra. Por meio disso, Deus estava demonstrando que a vida é uma
integração total; que tudo está interligado.
Ninguém expressou melhor essa relação com o mundo do que o Filho
de Deus. Jesus não se limitou a pregar o amor de Deus, ele também pregou
o envolvimento sadio com a vida. Seu primeiro milagre, conforme relatado
no Evangelho de João, foi transformar água em vinho num casamento.
Além disso, claramente ele tinha conhecimento sobre os mais variados as­
suntos culturais da sua época. Ele falou sobre ouro, prata, e outros metais
preciosos. Ele sabia sobre a moeda corrente. Falou também sobre árvores
e seus frutos. Ele tinha conhecimento a respeito da vida militar. Lidou com
tempestades no mar, falou do semeador semeando em solos diferentes. Ele
entendia sobre a vida dos fazendeiros e falou sobre relvas e sementes. Co­
nhecia o ofício da pesca. Ele entendia sobre impostos, e, inclusive pagava
impostos. Falou ainda sobre o relacionamento entre empregados e patrões,
entre inquilinos e proprietários. Mostrou que sabia sobre lâmpadas e óleo.
Falou de ovelhas e de cabras, e de muitos outros aspectos culturais da sua
época. Ele não costumava dizer, “Essa não é a minha área”. Todas as áreas
da vida eram importantes para Jesus. Nesse sentido, podemos dizer que
Jesus era um homem deste mundo. Porém, ao mesmo tempo, ele era um
perfeito mestre da espiritualidade, que entendia da alma humana e do rela­
cionamento correto com Deus em oração e adoração. Ele era um homem
completo.
Portanto, nós, como pessoas completas, precisamos viver a vida na sua
integralidade. Este mundo pertence ao Senhor. Como Hoekema coloca,
“esta terra ainda é terra de Deus. Ele a criou e mantém e a dirige de tal
modo que o pecado em certa medida é refreado, a civilização ainda é possí­
vel e a cultura humana é importante”.17 Por isso, a obediência ao mandato
cultural é parte integral da vida humana. As pessoas não devem separar as
dimensões sociais, espirituais e culturais da vida, mas considerar todos es­
ses aspectos como uma unidade, pois, tudo está sob o reino de Deus. To­
170 Razão da esperança

dos os aspectos da vida são estabelecidos por Deus e pertencem a Deus.


Não podemos pensar que só por sermos obedientes espiritualmente e soci­
almente já teremos cumprido o nosso serviço e obedecido ao Senhor. Como
já afirmamos, o homem foi feito para administrar o mundo de Deus, e
“esta administração é parte da vocação humana em Cristo”,18 de modo que
não podemos agradar a Cristo se não estivermos envolvidos de maneira
sadia com todas as coisas sobre as quais ele tem domínio.
O domínio que Deus concedeu ao homem implica privilégio e responsa­
bilidade, como todas as demais bênçãos de Deus. Além do direito explícito
do homem de usar todas as coisas criadas, de explorar os seus recursos, de
dominar, de ser o príncipe de Deus, existe a responsabilidade de fazer isso
de modo coerente. Há muita responsabilidade inclusa na declaração: “Eu
vos tenho dado”. Isso quer dizer que, antes de tudo pertence a Deus, mas ele
nos deu para que façamos bom uso. Embora Deus tenha dado todas as
coisas ao homem, isso “não implica que a humanidade, como imagem de
Deus na terra, possa viver como melhor lhe aprouver”.19 O bom uso envol­
ve um uso equilibrado das coisas de Deus. Isso tem implicações ecológicas.
Deus nos deu este mundo natural no qual vivemos. Este é o nosso lar, O
mundo deve ser visto como o nosso paraíso apesar de afetado pelo pecado e
pela corrupção. Nós devemos fazer o máximo para manter o nosso meio
ambiente limpo e saudável para a vida cotidiana. Muitos cristãos não têm
atentado para os desafios do meio ambiente e têm deixado isso para pessoas
que tomam posições extremadas, e que, praticamente, divinizam a criação, A
criação não é Deus. Deus é separado da criação, mas ele se agrada de que nós
cuidemos dela. O que dizer de crentes que jogam lixo na rua?
Deus estabeleceu os três mandatos a fim de tornar a nossa vida completa.
Isso significa que há prazer para nós quando nós o desenvolvemos. O erro é
viver em busca do prazer que o aspecto cultural oferece. Porém, quanto o
equilíbrio é respeitado, podemos dizer como Salomão: “Sei que nada há
melhor para o homem do que regozijar-se e levar vida regalada; e também
que é dom de Deus que possa o homem comer, beber e desfrutar o bem de
todo o seu trabalho” (Ec 3.12,13). Porém, tudo isso deve ser integrado. Por
essa razão, o sábio Salomão já havia dito antes: “Nada há melhor para o
homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem do seu
trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão de Deus, pois, separa­
do deste, quem pode comer ou quem pode alegrar-se?” (Ec 2.24,25). Temos
a responsabilidade de viver uma vida integral, fazendo uso pleno e apropri­
ado de todos os bens e dons que Deus colocou à nossa disposição. Não
podemos agradá-lo, se não vivermos a plenitude que ele nos dá.
Voltando ao inicio: A criação do homem 171

Im plicações da criação
Há muitas implicações da doutrina da criação, e agora podemos apre­
sentar algumas.20 Primeiramente, ela implica respeito pelo semelhante; não
importa se o nosso próximo é um cristão ou não, ele merece respeito. Além
disso, ela implica que tenhamos relacionamentos comuns com não-cristãos
em praticamente todas as esferas da nossa vida; podemos construir carros
juntos, participar de assembléias ou de concílios escolares sem ser adversá­
rios, pois de fato a vida civil encontra a sua origem na criação mais que na
redenção. E uma vergonha, para nós evangélicos, que sejam os não-cristãos
que lideram as campanhas contra o aborto, contra a destruição da natureza,
contra as drogas ou contra a Aids. Será que essas funções não deveriam ser
nossas também? Quanto mais nós nos apegarmos à doutrina da criação,
mais seriamente tomaremos a nossa responsabilidade social.
A doutrina da criação também implica alegria no trabalho. A idéia popu­
lar é que devemos trabalhar durante a semana para desfrutar do fim de
semana. Porém, Deus estabeleceu o trabalho antes da queda para que ele
fosse santo, algo como um culto a Deus, uma atividade criativa (no sentido
de usar criatividade) como a do próprio Deus. A doutrina da criação nos
manda ter alegria em nosso trabalho, considerando-o algo positivo, louvá­
vel e de grande importância. Não faz diferença se alguém é um engenheiro,
um físico nuclear, uma doméstica ou um gari. O trabalho deve ser conside­
rado como um chamado de Deus, e todos devem buscar se alegrar nele e
glorificar a Deus, colocando em prática a criatividade da qual Deus os do­
tou. Isso significa que um bom cristão deve ser necessariamente um bom
profissional e um bom integrante da família. Se algum desses aspectos fa­
lhar, todos falharão.
Finalmente, ela implica que temos o verdadeiro sentido da vida. E so­
mente quando entramos em contato com o eterno que o significado desta
vida pode ser adequadamente compreendido. De acordo com a ideologia
científica, não há perspectiva eterna, e por isso tudo é permitido. Porém, a
Escritura nos explica o significado de cada ação diária como fazendo parte
de uma longa trajetória. Numa perspectiva de longo prazo, tudo faz senti­
do. Cada cabelo está contado, cada palavra terá que ser explicada, e cada ato
será avaliado. A imagem divina em nós e no próximo deve nortear o nosso
comportamento e acentuar a nossa responsabilidade. A doutrina da criação
nos mostra que é maravilhoso ser humano.
13

Providência:
0 Deus que trabalha

Quando os fariseus recriminaram Jesus por ter curado no sábado, Jesus


afirmou que o sexto dia não significava o fim do trabalho divino. Jesus
disse: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (Jo 5.17). Estri­
tamente falando, a obra da criação terminou no sexto dia. De lá para cá
Deus tem sustentado o mundo, providenciando tudo o que é necessário
para isso. Chamamos de providência o fato de Deus continuar a trabalhar
no mundo. Uma boa definição de providência pode ser: “O permanente
exercício da energia divina, pelo qual o criador preserva todas as suas cria­
turas, opera em tudo o que acontece no mundo e dirige todas as coisas para
o seu determinado fim”.1 A doutrina da providência está em relação direta
com duas doutrinas que já estudamos: a soberania de Deus e a criação. Ela
é um tipo de “continuação da criação”, é a maneira como Deus, na sua
soberania, conduz a criação em direção aos seus propósitos. A doutrina da
providência trata da questão sobre como o mundo sobrevive, e em que
direção caminha. Ela procura dar resposta para a pergunta sobre se há uma
ordem por detrás de todos os acontecimentos, ou se tudo acontece de modo
aleatório. Vivemos num tempo em que, ou por um lado as pessoas pensam
que o acaso governa, ou, por outro, defendem uma espécie de fatalismo,
como se tudo estivesse determinado e nada pudesse ou devesse ser feito
para mudar. O fato é que o homem sempre teve crenças interessantes sobre
o curso que o mundo segue. Uma crença já embrionária no século 16, cha­
mada “Deísmo” entendia que Deus havia criado o mundo, mas a partir de
então, não atuava mais nele. Deus teria estabelecido leis fixas para todas as
coisas, e então, o mundo simplesmente passou a seguir o curso dessas leis,
sem nenhuma interferência do criador. Nessa visão, o mundo seria uma
máquina que Deus acionou e que agora trabalha por conta própria. A visão
deísta implica que a matéria, depois de ter sido criada, se tornou auto-
subsistente e auto-sustentada, praticamente autônoma, mas essas caracte­
rísticas são propriedades incomunicáveis de Deus, pertencentes apenas ao
174 Razão da esperança

criador e não à criatura.2 Por outro lado, popularmente as pessoas acredi­


tam na “sorte”, no “acaso”, na “fortuna” ou no “destino”, e idealizam um
deus misturado com a criação, numa espécie de panteísmo.3 É como se o
mundo e o destino de todos os homens estivessem nas mãos de alguma
força impessoal e incompreensível.
Na Escritura, podemos ver três modos nos quais a providência divina se
manifesta: na preservação, na concorrência e no governo. Esses três modos
providenciais de Deus revelam a maneira e o propósito pelo qual o mundo
continua a existir, após ter sido criado, e espantam toda noção de acaso ou
fatalismo.

Deus preserva todas as coisas


Deus não apenas criou o mundo como também o sustenta. A Escritura
diz que o mundo foi criado por meio de Jesus, e que é sustentado igualmen­
te por meio dele “pela palavra do seu poder” (Hb 1.1-3). Esse poder de
Deus é o responsável pela sustentação do mundo. Se Deus tivesse criado
todas as coisas e entregado-as à sua própria sorte, ele não seria um Deus
pessoal, mas distante, impessoal e despreocupado. A Escritura, entretanto,
ensina que Deus se envolve com tudo o que criou até nos mínimos deta­
lhes, Em Neemias 9.6 há uma afirmação maravilhosa sobre a criação e a
providência de Deus: “Só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus, e
todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto
há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”
(ênfase acrescentada). Esse também é o entendimento do salmista: “Em ti
esperam os olhos de todos, e tu, a seu tempo, lhes dás o alimento. Abres a
tua mão e satisfazes de benevolência a todo vivente” (SI 145.15,16). Deus
preserva e sustenta todos os seres que criou, e quando deixa de sustentá-
los, eles morrem, conforme o salmista constata: “Todos esperam de ti que
lhes dês de comer a seu tempo. Se lhes dás, eles o recolhem; se abres a mão,
eles se fartam de bens. Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam; se lhes
cortas a respiração, morrem, e voltam ao pó” (SI 104.27-29). Nessa passa­
gem, o que mais se destaca é a partícula “se”, que revela a condição pela
qual a natureza continua existindo. Tal é o controle preservador de Deus
sobre a sua criação que Jesus disse: “Observai as aves do céu: não semeiam,
não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo vosso Pai celeste as susten­
ta” (Mt 6.26); e acrescentou mais tarde: “Não se vendem dois pardais por
um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai.
S’rovidcnäa: 0 Deus que írabalha 175

E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados” (Mt
10.29,30). Se Deus cuida até dos passarinhos, alimentando-os e sustentan­
do-os durante toda a vida deles, se Deus sabe até o número de cabelos que
temos na cabeça, então é porque o seu envolvimento com as coisas criadas,
das menores até as maiores, é total.
Diante dessas coisas, como alguém pode crer no acaso ou na sorte? A
conclusão lógica do tema discutido é que não existe algo como a “sorte”, o
“acaso”, ou o “destino”. Ninguém tem a “sorte” de estar vivo, tudo acon­
tece por obra da providência de Deus. O próprio envolvimento de Deus
com a criação exclui a possibilidade do panteísmo. Deus não está mistura­
do com a criação, ele é separado dela, mas cuida dela até nos mínimos
detalhes. Do mesmo modo, imaginar um Deus que criou o mundo, mas o
abandonou à sua própria sorte é algo absurdo, pois segundo a Bíblia, a
providência de Deus é a causa de o mundo ainda existir. E quanta miseri­
córdia há nisso, pois o mundo é rebelde contra Deus; não obstante, Deus o
preserva, fazendo nascer o sol sobre “maus e bons”, e cair “chuvas sobre
justos e injustos” (Mt 5.45). Só o louvor cabe a Deus pela grandiosidade de
sua obra providencial, como faz o salmista: “Cantai ao Senhor com ações
de graças; entoai louvores, ao som da harpa, ao nosso Deus, que cobre de
nuvens os céus, prepara a chuva para a terra, faz brotar nos montes a erva
e dá o alimento aos animais e aos filhos dos corvos, quando clamam” (SI
147.7-9). A providência mostra o cuidado divino com a criação.

Deus age e m todas as coisas


Um outro modo de ver a providência de Deus é por meio da sua opera­
ção imediata em todas as coisas que acontecem. Os teólogos têm chamado
isso de Concorrência ou “C o n c u r s u “Concursus” se refere à junção de duas
forças. Não significa necessariamente que sejam duas forças em pé de igual­
dade, mas, apenas que dois lados cooperam de alguma maneira, Berkhof
define concorrência ou “concursus” como “a cooperação do poder divino
com todos os poderes subordinados, em harmonia com leis pré-estabeleci-
das de sua operação, fazendo-os agir, e agir precisamente como agem”.4
Nessa junção, quando dizemos que Deus e o homem agem conjuntamente,
não estamos querendo dizer que cada lado contribui com a metade. Não dá
para comparar a vontade divina com a vontade humana. Nesse ponto, pre­
cisamos ter em mente que estamos tratando de um tema difícil, porém,
devemos ser honestos com o ensino da Palavra de Deus, mesmo que te-
176 Razão da esperança

nhamos dificuldades em entendê-lo. Por isso, acima de tudo, devemos manter


uma atitude reverente ao meditarmos nas passagens que estão a seguir.
Vejamos alguns exemplos bíblicos a respeito da concorrência ou concursus.
Num capítulo anterior, já estudamos sobre a passagem de Lucas 22.22, em
que o decreto de Deus e a traição de Judas acontecem paralelamente. Deus
determinou, mas Judas foi o responsável pelo seu ato. O mesmo também
pode ser visto no sermão de Pedro registrado em Atos 2, quando ele disse
que Jesus morreu “sendo entregue pelo determinado desígnio e presciência
de Deus”, porém, os culpados pelo ato infame foram os homens, confor­
me Pedro inequivocamente aponta: “Vós o matastes, crucificando-o por
mãos de iníquos” (At 2.22,23). Observe que Jesus foi entregue porque Deus
havia determinado que isso acontecesse, no entanto, o povo era o verdadei­
ro culpado da morte de Jesus. O povo gritou para que ele fosse crucificado,
preferindo a libertação de Barrabás (Mt 27.20,21). Essa mesma idéia reper­
cute no capítulo 4 de Atos, quando a igreja ora ao Senhor: “Porque verda­
deiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao
qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para
fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (At
4.27,28). Como diz Boettner, “os que crucificaram Cristo agiram em perfei­
ta harmonia com a liberdade de suas próprias naturezas pecaminosas, e
foram os únicos responsáveis pelo seu pecado”.5 Está claro que a culpa
pela morte de Jesus foi dos homens, porém, tudo o que aconteceu, seguiu a
vontade e a soberania de Deus, conforme o seu plano preestabelecido. O
que os homens fizeram foi errado, pecaminoso, e eles certamente pagarão
por isso, porém, ao fazerem aquilo, em última instância, fizeram o que Deus
havia determinado. Isso é concorrência ou a concursus”.

0 co n c u r s u s e os atos b o n s ó
Nunca conseguiremos excluir Deus de qualquer coisa que fazemos em
nossa vida. Precisamos nos lembrar que Paulo disse que “nele vivemos, e
nos movemos, e existimos” (At 17.28). Jamais o homem age de maneira
independente de Deus; por isso, todas as boas ações que os crentes prati­
cam, são ações que Deus direcionou. Já vimos que, segundo Filipenses 2.13,
Deus opera tanto o querer quanto o realizar para que uma obra seja concre­
tizada. O que isso quer dizer é que, se eu faço alguma boa ação, o mérito é do
Senhor. Quem realizou a obra foi eu, mas ela só foi possível porque o Se­
nhor me capacitou. E o que Paulo diz sobre o seu próprio trabalho apostó­
lico: “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi
Providência: 0 Deus que trabalha 177

concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles;
todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo” (ICo 15.10). Paulo tinha cons­
ciência de duas coisas: da graça de Deus e do seu trabalho árduo. Mas, acima
de tudo, ele sabia que tudo era pela graça. Ele tinha mais resultados do que
os outros apóstolos, e, numa primeira instância, poderia ser dito que foi
porque ele trabalhou mais, mas ele reconhece que tudo acontecia pela graça
de Deus. Assim, tudo o que um crente faz de bom sofre a ação do concursus.
O interessante é que isso pode ser visto também nas boas ações das
pessoas não-regeneradas. Elas também fazem coisas boas, mas evidente­
mente que não no sentido de aceitáveis para a salvação, porém boas porque
podem ter resultados benéficos para as pessoas. Podemos ver, na Bíblia,
que mesmo essas ações sofrem o concursus. Ciro, o rei da Pérsia, é um grande
exemplo disso. Isaías escreve algo muito interessante a seu respeito: “Assim
diz o Senhor ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita (...). Eu
irei adiante de ti, endireitarei os caminhos tortuosos, quebrarei as portas de
bronze e despedaçarei as trancas de ferro” (Is 45.1,2). Deus está dizendo
que age na vida de Ciro para o ajudar. Em seguida, ele expõe o motivo: “Por
amor do meu servo Jacó e de Israel, meu escolhido, eu te chamei pelo teu
nome e te pus o sobrenome, ainda que não me conheces” (Is 45.4). Deus
usou o imperador Ciro por amor do seu povo, ainda que Ciro não conhe­
cesse ao Senhor. Ciro foi usado para que o povo pudesse voltar do cativeiro
da Babilônia para a sua própria terra. O imperador foi o responsável pela
ordem que permitiu a volta do povo, e essa foi uma boa ação, mas ele não
fez isso pensando em agradar a Deus; na verdade, ele estava fazendo uma
manobra política, porém, acima de tudo, estava cumprindo a vontade
decretiva de Deus. Ciro agiu em conformidade com seus próprios interes­
ses, mas acabou fazendo algo benéfico para o povo, e nisso ele foi dirigido
por Deus, que agiu na vida de Ciro. Foi uma obra boa de um homem mau,
uma obra realizada por meio do concursus.
Todas as boas ações deste mundo sofrem a ação do concursus de Deus.
Tudo o que acontece de bom, acontece porque duas coisas participaram: a
vontade do homem e a vontade de Deus. Na sua soberania, Deus não anula
a vontade do homem, mas a vontade do homem em hipótese alguma
inviabiliza a vontade de Deus.

0 c o n cu rsu s c os atos m a u s
Não é difícil ver a atuação de Deus nas atitudes boas dos homens, afinal
de contas Deus é bom e é a fonte de todo bem, mas e com relação às coisas
178 Razão da esperança

más que acontecem? Uma das coisas mais difíceis é conciliar a vontade
soberana de Deus com os atos maus das pessoas. Um modo de responder
a essa questão é dizer simplesmente que Deus permite que as pessoas fa­
çam coisas más. Em parte, essa resposta está certa, mas as atitudes más dos
homens são permitidas por Deus embora elas firam a sua vontade preceptiva.
Porém, como já estudamos, a vontade preceptiva é apenas um aspecto da
vontade de Deus. Nunca poderemos nos esquecer que ele também tem
uma vontade decretiva. A questão é: Como os atos maus dos homens se
relacionam com os decretos de Deus?
Na Bíblia, podemos ver alguns casos que mostram que mesmo os atos
maus das pessoas não foram feitos independentes de Deus. O concursus pode
ser visto nessas atitudes também. Na sua vontade decretiva, Deus determi­
nou tudo o que deve acontecer, inclusive os atos maus dos homens, porém
isso não faz de Deus o autor do pecado deles. Embora certas coisas ruins
estejam decretadas, os homens as fazem de sua própria vontade, e a culpa é
somente deles, porque desejaram fazê-las. Ninguém os obrigou.
A história de José do Egito é novamente útil para entendermos isso.
José era o filho preferido de Jacó e seus irmãos tinham ciúmes dele. Num
certo dia, eles aproveitaram uma ocasião e o venderam a alguns mercadores
que iam para o Egito. Esse foi um ato muito mau da parte dos irmãos. José
enfrentou muitos problemas por causa disso, vindo a tornar-se um escravo
no Egito, e por fim, parou na prisão. Porém, o Senhor agiu na vida de José,
que acabou chegando ao cargo mais importante do Egito logo abaixo de
Faraó. Com isso, anos mais tarde, José pôde ajudar a sua família que passa­
va por dificuldades com a grande seca. Quando se encontrou novamente
com seus irmãos, José disse a eles: “Vós, na verdade, intentastes o mal
contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora,
que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). Tal foi o entendimento
de José daquela situação que até mesmo declarou: “Não fostes vós que me
enviastes para cá, e, sim, Deus, que me pôs por pai de Faraó, e senhor de
toda a sua casa” (Gn 45.8). O ato de vender José foi uma ação má dos
irmãos, e eles foram responsáveis por ela. Eles agiram segundo os seus
impulsos pecaminosos, porém, a Bíblia diz que, em última instância, Deus
havia planejado tudo. Deus não foi o autor do pecado dos irmãos, mas agiu
na vida deles, para que o seu propósito maior se cumprisse. Eles fizeram o
que desejavam, pecaram e se tornaram passíveis de punição, mas não deixa­
ram de fazer o que Deus desejava. Embora isso não seja fácil de entender,
precisa ser aceito pela fé, pois Deus quis que os irmãos vendessem José,
mas, o pecado foi somente deles, uma vez que ao agir daquele modo, eles
Providência: 0 Deus que trabalha 179

não estavam obedecendo a uma ordem direta de Deus, e sim fazendo a sua
própria vontade pessoal.
Deus atua até mesmo nos atos maus dos próprios homens maus. Sem­
pre imaginamos os irmãos de José como membros da aliança, e por isso
não os consideramos ímpios. Mas quando vemos o que a Bíblia fala sobre
o caso de Nabucodonosor, o ímpio rei da Babilônia, percebemos que a
soberania divina não tem limites. Nabocodonosor invadiu Judá e cometeu
todo tipo de atrocidades, porém, a Bíblia diz que Deus é quem o havia
levado e determinado que fizesse aquilo (Jr 25.9-11). Nabucodonosor agiu
em conformidade com a sua iniqüidade, ele queria saciar a sua sede de
conquistas, entretanto, Deus determinou que aquilo acontecesse, tendo usado
a Babilônia, império de Nabucodonosor, segundo os seus propósitos. Deus
declarou a respeito de Babilônia: “Tu, Babilônia, eras meu martelo e mi­
nhas armas de guerra; por meio de ti, despedacei nações e destruí reis; por
meio de ti, despedacei o cavalo e o seu cavaleiro; despedacei o carro e o seu
cocheiro; por meio de ti, despedacei o homem e a mulher, despedacei o
velho e o moço, despedacei o jovem e a virgem; por meio de ti, despedacei
o pastor e o seu rebanho, despedacei o lavrador e a sua junta de bois, despe­
dacei governadores e vice-reis” (Jr 51.20-23). Deus disse que ele havia feito
toda aquela destruição, porém a Babilônia pagaria, pois havia agido confor­
me ela própria desejava: “Pagarei, ante os vossos próprios olhos, à Babilô­
nia e a todos os moradores da Caldéia toda a maldade que fizeram em Sião,
diz o Senhor” (Jr 51.24). Babilônia agiu conforme a sua cobiça e deu vazão
à sua própria maldade, entretanto, em última análise, agiu como Deus havia
determinado. Ao mesmo tempo, Babilônia e seu imperador seriam castiga­
dos por Deus por causa disso.
Muitos outros casos podem ser considerados e demonstram o concursus
nos atos maus de homens maus, como por exemplo, o caso de Jeroboão
(lR s 14.10; 15.27-30); de Roboão (lRs 12.13-15; 22-24); do rei da Assíria
(Is 10.5-15); de Absalão (2Sm 16.20-23; 12.11,12; 17.14) e de tantos outros
casos que demonstram o mesmo que aconteceu com Nabucodonosor.7Em
todos eles, os homens ímpios agiram conforme os seus desejos pecamino­
sos e são culpados por isso, porém, ao agir daquela maneira, estavam fazen­
do o que a vontade decretiva de Deus havia determinado, pois estavam
cumprindo propósitos divinos. De todos os casos, o de Judas, que já foi
tratado no capítulo a respeito da Soberania de Deus e da Responsabilidade
Humana, é o mais evidente. Judas cometeu o crime mais maligno de todos
os tempos: ele entregou o Senhor Jesus para ser morto. Mas Judas fez tudo
aquilo que Deus havia predeterminado (Lc 22.21-22). Entretanto, isto não
180 Razão da esperança

desculpa Judas, pois ele fez também aquilo que a sua própria vontade deter­
minou. O ato mau de Judas colaborou para que o plano divino de salvar a
humanidade se consumasse. Mas o ato de Judas foi mau e de sua inteira
responsabilidade, ao passo que o propósito de Deus é sempre bom. Isso
nos leva a entender que tudo o que acontece neste mundo acontece debai­
xo do olhar e do comando eficaz de Deus. Nada foge ao controle divino,
porém, tudo o que o homem faz, faz de acordo com a sua própria vontade.
O concursus nos ajuda a entender a maneira como Deus age neste mundo e
também como os homens agem. Há uma concorrência entre os dois, po­
rém, não uma simples junção equivalente de forças, como se o homem
fizesse metade e Deus o resto. O fato é que Deus age no homem, levando-
o a fazer a Vontade Suprema, mas sem ferir a responsabilidade pessoal por
cada ato seu, e sem ser o autor do pecado deles. Percebemos, portanto, que
a Escritura ensina que Deus está no controle de tudo, e que até mesmo os
pecados dos homens estão no decreto de Deus. Porém, como observa
Hodge, “Esta providência universal de Deus é tudo o que a Bíblia ensina.
Em parte alguma ela tenta informar-nos como Deus governa todas as coi­
sas, ou como seu controle eficaz pode conciliar-se com a eficiência das
causas secundárias’5.8 Resta, portanto, aceitar pela fé que de fato é assim,
ainda que não possamos conciliar tudo na nossa mente. Precisamos aceitar
porque esse é o ensino bíblico, e a Bíblia é a verdade.

Deus go vern a todas as coisas


A perspectiva do governo de Deus é mais um modo de ver a sua provi­
dência. Isso não quer dizer que seja algo necessariamente diferente de pre­
servação e concorrência, pois a providência deve ser vista como um todo.
Ao enfatizarmos a idéia de governo, estamos nos referindo ao propósito
final de Deus para este mundo. Todas as coisas que existem e todos os
acontecimentos são governados para que esse propósito se concretize, pois
como diz Hodge, “se Deus governa o universo, então ele possui algum
grande alvo, inclusive um número infinito de fins subordinados, e ele tem
de controlar a seqüência de todos os acontecimentos de maneira que se
assegure o êxito de todos os seus propósitos”.9
A Bíblia apresenta Deus como o Grande Rei que está assentado no
trono e governa todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. O
que seria do mundo se Deus não tivesse propósitos? Se ele simplesmente
deixasse que tudo acontecesse seguindo o livre curso das decisões dos ho-
Providência: 0 Deus que trabalha 181

mens? Que garantias haveria de que as promessas bíblicas se cumpririam?


Como poderíamos saber que, de alguma maneira, o homem não sabotaria
o plano divino? Toda expectativa de fé se torna muito efêmera se Deus não
tem propósitos e, ao mesmo tempo, poder para realizá-los. A visão que
muitos têm de Deus, como se fosse alguém em constante mutação (proces­
so), sempre se adaptando ao ser humano, apesar de parecer bonita (ao ego
humano), é completamente incompatível com a visão bíblica, e lança fora
toda possibilidade de segurança e confiabilidade nos planos divinos.
Deus tem propósitos. A providência de Deus nos diz que ele guia os
acontecimentos do mundo para um determinado fim. Esse fim é o “bene­
plácito de sua vontade” (Ef 1.5), é o seu supremo propósito para este mun­
do que redunda em “louvor da sua glória” (Ef 1.12). Como já vimos, nada
acontece por acaso, não existe a sorte ou a fortuna, nem destino cego. As
vezes, nós dizemos, “Hoje foi o meu dia de sorte”, e nem percebemos o
quanto essa afirmação é perigosa. Deveríamos evitar falar coisas assim,
pois é como se estivéssemos dizendo que o acaso pendeu para o nosso
lado, e, de alguma maneira inusitada, impensada e não-planejada, nos favo­
receu. Isso tende até mesmo a ser uma forma de idolatria, já que algo está
sendo colocado no lugar de Deus. Essa atitude é muito parecida com a que
teve o povo de Israel depois de ter sido tirado do Egito. Naquela ocasião,
eles fizeram bezerros de ouro para si e disseram: “São estes, ó Israel, os teus
deuses, que te tiraram da terra do Egito” (Ex 32.4). Também fazemos isso
quando, ao recebermos alguma bênção do Senhor, dizemos, “Mas que sor­
te”. Por outro lado, imaginar que o destino cego é o que guia todas as coisas
não melhora nada. As vezes, as pessoas confundem a doutrina da soberania
de Deus com o fatalismo. A religião islâmica assume um tipo de fatalismo.
O muçulmano, ao deparar com um acontecimento inusitado, costuma di­
zer, “Está escrito”. Esse tipo de fatalismo diz: “O que tiver que ser será”.
Há uma grande diferença entre dizer que Deus dirige a História para os
seus propósitos e dizer que o destino a dirige.10
O destino não tem sentimentos e nem vontade, ele é cego, surdo e mudo.
Nosso Deus tem sentimentos e propósitos, pois ele fala, ouve e age. Não
dizemos, “O que tiver que ser será”; nós dizemos, O propósito do nosso
Deus, a sua vontade boa, agradável e perfeita prevalecerá (Rm 12.2), E ela
sempre será o que é melhor para nós, pois, para isso, todas as coisas coope­
ram (Rm 8.28). Do mesmo modo, não faz sentido a tendência moderna de
que o homem é quem determina o que deve acontecer. Muitos líderes religi­
osos falam em programas de televisão que Deus já liberou todas as suas
bênçãos na pessoa de Jesus, e que agora são as pessoas que precisam tomar
182 Razão da esperança

posse da bênção que está à disposição delas, É como se Deus permanecesse


impassível somente esperando que os homens façam a obra dele. Assim as
pessoas exigem, determinam e rejeitam certas coisas, Na visão destes, a provi­
dência já não é mais uma prerrogativa divina, passou a ser um atributo do
homem. No fundo é uma desconfiança de que Deus tenha os melhores planos
para nós. E isso nada mais é do que falta de fé, por mais que se diga o contrário.
Em comparação com todos esses falsos entendimentos sobre a razão
por detrás de cada acontecimento neste mundo, a doutrina da providência
é uma das mais belas doutrinas para a vida cristã. Ela nos fala do modo em
que Deus preserva e dirige este mundo que ele criou para o cumprimento
dos seus objetivos, Fala do Deus absoluto e transcendente, que está acima
e além do mundo, que não se mistura com a matéria, que é imutável e todo-
poderoso. Mas fala também do Deus próximo, atuante e vivo, que se im­
porta conosco, que está presente e age em cada detalhe da nossa vida. Nada
é demasiado simples ou insignificante que não seja do interesse dele, nada
acontece por acaso, não existe sorte ou fortuna, Deus existe e seus propó­
sitos são eternos. Este é o Deus que causa admiração, pois como diz Isaías,
“Desde a antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem
com os olhos se viu Deus além de ti, que trabalha para aquele que nele
espera” (Is 64.4). Nosso Deus, o Criador Soberano, é o Deus que trabalha,
14

Deus de milagres
jm j i« .
%i r W

Como vimos na doutrina da providência, Deus atua na criação o tempo


todo. Isso não significa que toda essa atuação seja miraculosa, pois então,
não haveria como separar o miraculoso do natural. O milagre se refere a
uma providência especial de Deus, tanto que alguns teólogos chamam os
milagres de providentia extraordinaria, referindo-se a um acontecimento que
não segue as leis secundárias estabelecidas por Deus. Milagre é quando
Deus deixa de lado a ordem estabelecida por ele próprio para agir de modo
extraordinário. Vamos explicar assim: as coisas deveriam seguir um deter­
minado rumo, porém, Deus suspende esse rumo natural por meio do seu
poder que está acima da natureza, neutralizando o resultado natural, e em
seu lugar produz algo sobrenatural.
O seguinte relato descreve a experiência de um suposto milagre:

Um dia, estávamos no meio de uma multidão de pessoas sofridas e ansiosas


numa igreja em São José, na Califórnia. Era fácil notar a dor em seus sem­
blantes. Acabamos de pregar e falamos como sempre: quem quer receber
uma graça do Senhor? E apareceram diversas pessoas. Um homem se apro­
ximou, e disse: eu tenho a minha perna direita mais curta que a esquerda
4cm. Será que o senhor pode orar por mim? Eu lhe respondi: tenho orado
por muita coisa, mas nunca orei para uma perna crescer. Puseram uma
cadeira em frente ao primeiro banco para nela ele espichar as pernas. Com
ele ali fiz a minha oração (...) e a perna do homem foi esticando, crescen­
do... E se igualou à outra!1

Relatos como esse podem ser encontrados em livros e em programas de


televisão. Milagres cada vez mais impressionantes são reivindicados por todo
tipo de pregadores e evangelistas, como um atestado de autenticidade e auto­
ridade divina. Parece estar havendo uma nova onda de milagres ao redor do
mundo. Porém, até que ponto podemos confiar nesses relatos? Até que pon­
to eles são verdadeiros? E até que ponto os milagres realmente atestam a
autoridade divina? Na verdade, todas as culturas do mundo são extremamen­
184 Razão da esperança

te ficas em relatos de milagres. Não há um único povo que não tenha crença
em intervenções sobrenaturais. Todas as religiões do mundo exibem “pro­
vas” de que milagres aconteceram dentro de seus arraiais, e alguns milagres
são supostamente comprovados cientificamente,2 Porém, será que milagres
realmente acontecem? Será que acontecimentos sobrenaturais realmente ocor­
rem, ou não passam de mitos e lendas criados pela fértil imaginação das
pessoas que, desejosas de ver algo sobrenatural, exageram nos relatos? Será
que os diversos milagres registrados na Bíblia podem ser considerados verídi­
cos? E será que ainda há milagres hoje como nos tempos bíblicos?

Definição de m ilagre
Atualmente, há uma banalização do termo milagre, a palavra perdeu o
sentido verdadeiro. Alguém acerta um objetivo difícil num jogo e ouve-se
a expressão: “Milagre”! Alguém escapa “por um triz” de algum acidente e
isso é chamado de milagre.3 Alguém acerta uma questão difícil numa pro­
va e pensa que isso foi um milagre. Na verdade, esses acontecimentos não
são verdadeiros milagres porque podem ser explicados. E certo que, mui­
tas vezes, eles são estranhos e não muito rotineiros, porém, são perfeita­
mente explicáveis, pois ocorreram por causa da combinação de certos fa­
tores. O milagre verdadeiro, porém, sempre será inexplicável da perspecti­
va humana. Suas causas não podem estar na natureza ou na simples com­
binação de elementos. O milagre é um acontecimento “sobrenatural”, o
que já indica que não pode ser comprovado ou produzido pela natureza.
Nesse senddo, o nascimento de um bebê, por exemplo, não é um milagre,
por mais que esse acontecimento seja grandioso, e até certo ponto, algo
que ultrapassa o entendimento humano. O nascimento de uma criança
pode ser explicado a partir das leis da concepção. Porém, o mesmo não se
pode dizer do nascimento de um bebê de um ventre estéril, pois não há
explicações para isso, a menos que algum tipo de tratamento o explique,
mas então, não seria milagre. E preciso entender que o milagre é um ato
extraordinário de Deus, e que “ele não difere do curso ordinário da nature­
za porque requer que Deus exerça o seu poder de modo grandioso, mas
porque ele requer de Deus exerça o seu poder de um modo diferente”.4
Isso é muito importante, pois não significa que Deus precise usar mais do
seu poder para realizar um milagre, do que, por exemplo, fazer o sol apare­
cer amanhã. Ambos os acontecimentos dependem da onipotência divina;
a diferença não está no poder, mas no propósito. Os milagres sempre são
Deus de milagres 185

realizados por Deus com algum propósito especial, daí a idéia de provi­
dência especial. Hodge define milagre como “Um acontecimento no mun­
do externo produzido pela eficiência imediata ou simples volição de Deus”.5
Ele usa essa definição para diferenciar o milagre dos demais atos providen­
ciais de Deus, bem como das atuações do Espírito Santo na conversão de
uma pessoa.
Adotamos aqui, a definição de Young:

Milagre é um ato, realizado no mundo externo pelo poder sobrenatural de


Deus, contrário ao curso comum da natureza (embora não necessariamente
levado a efeito contra os meios ordinários da natureza), e seu propósito é
servir de sinal ou comprovação. Um milagre, por conseguinte, não deve ser
considerado meramente como uma obra poderosa, mas como uma obra
poderosa designada para comprovar os propósitos redentores de Deus.6

Explicações inaceitáveis
A explicação que muitos dão para certos milagres bíblicos elimina total­
mente a idéia de milagre. Por exemplo, dizem que os israelitas atravessaram
o Mar Vermelho aproveitando um local de pântanos cheio de plantas acima
da água, sobre as quais passaram, em vez de terem atravessado o mar aber­
to por Moisés. Em geral, as pessoas que tentam achar uma explicação “ra­
cional” para os milagres são direcionadas por pressupostos anti-sobrenatu-
ralistas. Como elas têm dificuldade para aceitar que possam existir aconte­
cimentos sobrenaturais, tentam explicar de outra maneira, mas acabam anu­
lando a existência do milagre,7 O relato bíblico não dá o menor apoio a
essa idéia, pois diz que os israelitas atravessaram a pé enxuto (Ex 14.29), A
estrela de Belém é outro objeto de reinterpretação. Dizem que foi apenas
um brilho mais intenso de alguma estrela, uma combinação estelar, o plane­
ta Vênus, ou o cometa Halley. E preciso que se diga que, se foi apenas isso,
então não aconteceu um milagre realmente. Porém, fica difícil manter essa
explicação diante da afirmação bíblica de que os magos seguiam a estrela,
que por fim parou sobre o local onde Jesus estava (Mt 2.1-9). Um outro
milagre que é reinterpretado é o da multiplicação dos pães e dos peixes 0o
6.1-14). E dito que não teria acontecido um milagre no sentido de algo
extraordinário, mas que, simplesmente o fato de o menino ter repartido o
seu pão e os seus peixes fez com que todos os demais tivessem sido desper­
tados para repartir também o alimento que tinham escondido, de modo
que todos puderam se fartar. Essa é mais uma engenhosa explicação huma­
na para um milagre divino, mas que é antibíblica e elimina a própria exis-
186 Razão da esperança

tência do milagre, pois “Um milagre que pode ser explicado cientificamen­
te não é um milagre em absoluto”.8
Alguns estudiosos afirmam que os milagres são simples exceções da
natureza como a conhecemos. O que isso quer dizer é que se tivéssemos
um conhecimento mais completo da natureza, poderíamos explicá-los de
modo perfeitamente natural. Esse conceito é insustentável não só porque
prevê duas naturezas, bem como porque priva o milagre do seu caráter
excepcional.9 Novamente teríamos que dizer que, se esse fosse o caso, não
haveria milagre no sentido específico da palavra, porque haveria uma expli­
cação natural para ele, embora não a conhecêssemos.

Sobrenatural

Quando dizemos que milagres são acontecimentos sobrenaturais, é im­


portante lembrar que isso é da perspectiva humana. Como diz Shedd, “mi­
lagres não são acontecimentos antinaturais; eles são naturais para Deus”.10
Os milagres, no sentido exato da palavra, contradizem a natureza, confor­
me a reconhecemos neste mundo, embora estejam em perfeita harmonia
com a natureza de Deus. Jesus ter transformado água em vinho, ou ressus­
citado Lázaro de entre os mortos depois de quatro dias são exemplos claros
de operações contra ou sobre as leis da natureza. De todos os milagres, a
ressurreição de Lázaro foi o mais impressionante. O corpo de Lázaro esta­
va em decomposição, seguindo o curso normal da natureza. Jesus inter­
rompeu esse curso natural de decomposição e depois reverteu o processo
aceleradamente, fazendo com que, num instante, fosse restaurado o que
estava já em estado de putrefação (Jo 11.39-44). O que ele fez ali foi contra
a natureza, e absolutamente sem explicação natural.11
Os milagres podem não conter nenhum elemento natural; porém, nos
casos em que algum elemento natural está envolvido, este é usado de ma­
neira totalmente extraordinária. Deus pode até mesmo usar um meio natu­
ral para realizar o milagre, como por exemplo, a estrela de Belém, porém,
fica bem claro que o resultado configura-se em algo impossível apenas por
meio dos meios naturais.12

Necessários

A existência do milagre é algo totalmente necessário ao próprio caráter


de Deus, pois ele é o Deus que age. Um conceito de um Deus imóvel, que
não interfere na natureza, não é um conceito autêntico de Deus. Quando
Deus de milagres 187

Jesus se manifestou, uma das coisas que ficou bem clara era a sua atuação
miraculosa como comprovação de seu apostolado celestial. Desde o batis­
mo, Jesus demonstrou a seus discípulos que eles veriam os céus abertos em
franca atuação, Os milagres de Jesus apontavam para o seu caráter; a idéia
era demonstrar que nele estava o poder sobre as enfermidades, sobre as
dificuldades e sobre a própria morte. Berkhof entende que o milagre está
intimamente ligado à existência do pecado. Ele diz: “A entrada do pecado
no mundo torna necessária a intervenção sobrenatural de Deus no curso
dos eventos, para a destruição do pecado e para a renovação da criação”,13
A síntese dessa idéia é que, como o pecado é algo sobrenatural, no sentido
de que aconteceu fora da naturalidade, Deus precisou agir também de ma­
neira sobrenatural. Assim, os milagres seriam uma demonstração divina de
que Deus está agindo firmemente no mundo com propósitos redentores.
Isso se encaixa perfeitamente na definição de providência especial.

0 propósito dos m ilagres


Os milagres também são chamados na Bíblia de “sinais”. Um sinal aponta
para alguma coisa, e normalmente não para si mesmo. Um sinal de trânsito,
por exemplo, não pretende chamar a atenção para si mesmo, e, sim, apon­
tar para uma situação importante. Assim, os milagres não são simples de­
monstrações de poder para impressionar as pessoas, mas eles têm um pro­
pósito. Os sinais de Cristo nunca eram praticados com fins egoístas ou com
o propósito de se mostrar às pessoas. Na realidade, eles tinham sempre o
propósito de glorificar a Deus, relacionar de modo fundamental a base
sobrenatural da revelação e, também, satisfazer e aliviar as necessidades
humanas.

Obsessão p o r mila gr es

Nos dias atuais, as pessoas têm alegado realizar milagres, e em geral


esses milagres apontam somente para si mesmos, Eles acabam sendo um
“fim em si mesmos”. Não é de hoje que as pessoas querem ver sinais ape­
nas para se impressionarem. Paulo disse: “Os judeus pedem sinais” (ICo
1.22), referindo-se à exigência do povo judeu de ver milagres para crer. O
próprio Jesus foi confrontado por algumas pessoas com a seguinte exigên­
cia: “Mestre, queremos ver da tua parte algum sinal” (Mt 12.38). Percebe-
se, portanto, que desde aquele tempo, os homens já eram ávidos por verem
188 Razão da esperança

coisas extraordinárias. Jesus censurou as multidões que o seguiam queren­


do ver milagres, dizendo: “Se, porventura, não virdes sinais e prodígios, de
modo nenhum crereis” (Jo 4.48). Tristemente, apesar de terem visto tantos
sinais, elas não creram, conforme a Escritura afirma: “E, embora tivesse
feito tantos sinais na sua presença, não creram nele” (Jo 12.37). Freqüente­
mente ouvimos a respeito de pessoas que testemunharam milagres, e tal­
vez, até mesmo tenham recebido curas, mas, no entanto, jamais se firma­
ram na igreja. O que se percebe, portanto, é que Deus tem um propósito
com os milagres, mas não lhe agrada a idéia de que as pessoas focalizem a
atenção no milagre em si, nem que vivam ansiosas para ver algum milagre.

C onf ir m aç ão da palavra

Como podemos ver na Bíblia, o maior propósito para tantos milagres


que Deus realizou foi confirmar a Revelação. Evidentemente que essa con­
firmação precisa ser entendida como um “testemunho”, pois “a mais eleva­
da evidência da verdade é a própria verdade”.14 Em Números 14.11, o
Senhor diz: “Até quando me provocará este povo e até quando não crerá
em mim, a despeito de todos os sinais que fiz no meio dele?” Veja que Deus
diz que havia feito sinais suficientes para que o povo cresse, pois os seus
sinais autenticaram a revelação que havia dado por meio de Moisés. No
Novo Testamento, isso pode ser visto de modo ainda mais claro quando
Jesus comissionou os seus doze apóstolos para irem por todo o mundo
pregando o evangelho da salvação. A respeito disso, Marcos relata: “E eles,
tendo partido, pregaram em toda parte, cooperando com eles o Senhor e
confirmando a palavra por meio de sinais, que se seguiam” (Mc 16.20). O
mesmo relata Lucas com relação à pregação de Paulo e seus companheiros:
“Entretanto, demoraram-se ali muito tempo, falando ousadamente no Se­
nhor, o qual confirmava a palavra da sua graça, concedendo que, por mão
deles, se fizessem sinais e prodígios” (At 14.3). O objetivo dos sinais, de
acordo com essas passagens, era confirmar a Palavra da graça. Paulo, ao se
dirigir a alguns que duvidavam do seu apostolado, disse que os milagres
eram a credencial de seu ministério recebido do Senhor: “Pois as credenci­
ais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda a persis­
tência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos” (2Co 12.12). E Pedro
disse que a Palavra profética foi confirmada pela interferência miraculosa
do próprio Deus que falou dos céus autorizando o seu Filho, no monte da
Transfiguração: “Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando está­
vamos com ele no monte santo. Temos, assim, tanto mais confirmada a
Deus de milagres 189

palavra profética, e fazeis bem em atendê-la, como a uma candeia que bri­
lha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em
vosso coração” (2Pe 1.19,20). A Palavra profética de Deus foi confirmada
de maneira miraculosa e sobrenatural, pois, como diz Calvino, “A impor­
tância dos milagres é que eles nos despertam para alguma verdade particu­
lar sobre Deus”.15

As três g r a n d e s épocas

Ao fazermos uma análise mais cuidadosa da Bíblia, percebemos que


houve três ocasiões cruciais na História em que as operações miraculosas
foram grandiosas: no período de Moisés, no período dos profetas e no
período de Jesus e dos apóstolos. O que esses três momentos históricos
têm em comum? Foram as ocasiões em que as maiores porções da Escritu­
ra surgiram, o que nos leva a concluir que os milagres aconteceram para
confirmá-la, daí, portanto, as principais concentrações de sinais e maravi­
lhas. No período de Moisés, o Pentateuco foi escrito, e Moisés realizou as
dez pragas, abriu o Mar Vermelho, tirou água da rocha, e muitos outros
sinais que confirmavam a sua autoridade. No período dos profetas, espe­
cialmente Elias e Eliseu, também houve muitos milagres, e surgiram os
escritos que compõem a maior parte do Antigo Testamento. Já no período
de Jesus e dos apóstolos, foram realizados milagres como nunca na Histó­
ria, e foi nesse período que todo o Novo Testamento foi escrito.

M i la g r e s pa ra c o n d e n a ç ã o

Os milagres também servem para juízo do povo. Quando os fariseus e


escribas tentaram colocar Jesus contra a parede ao exiginr um milagre para
comprovar a sua messianidade, Jesus disse: “Uma geração má e adúltera
pede um sinal; mas nenhum sinal lhe será dado, senão o do profeta Jonas.
Porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande
peixe, assim o Filho do homem estará três dias e três noites no coração da
terra. Ninivitas se levantarão, no Juízo, com esta geração e a condenarão;
porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem é
maior do que Jonas” (Mt 12.39-41). O único sinal que Jesus daria para os
seus inimigos seria a sua ressurreição depois de três dias de sua morte. Jesus
ainda estava chamando a atenção para outra coisa: o fato de os ninivitas
terem crido na pregação de Jonas sem que Jonas tivesse realizado qualquer
milagre. Ao contrário do povo que supostamente só acreditaria se visse
190 Razão da esperança

milagres, os ninivitas creram sob a exclusiva autoridade da palavra de Jonas.


Jesus demonstrou que os israelitas eram mais duros de coração do que os
ninivitas. Eles tinham todos os motivos do mundo para crer e não creram,
ao passo que os ninivitas tinham poucos motivos para crer e, ainda assim
creram, por isso, os próprios ninivitas seriam juizes dos israelitas. O grande
milagre de Jonas foi ter convertido toda uma cidade sem realizar um único
sinal. Talvez, com isso, Jesus estivesse querendo dizer que os verdadeiros
crentes não precisam de sinais para crer, pois a sua fé vem pela pregação da
Palavra de Deus (Rm 10.17). Isso está em perfeita harmonia com as pala­
vras de Jesus dirigidas a Tomé, o discípulo que somente creria quando visse
Jesus e tocasse nele: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não
viram e creram” (Jo 20.29). Crer sem ver é melhor do que ver para crer. Em
outra ocasião, Jesus disse: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se
em Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fize­
ram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza”
(Mt 11.21). Nessas cidades, apesar de tantos milagres e sinais, não houve
muitas conversões. Disso vemos que os sinais, muitas vezes, são mais usa­
dos para a condenação do que para a conversão.

Ainda há m ilagres hoje?


A resposta depende muito do que se entende por milagres. Se quem faz
essa pergunta entende por milagre o fato de que Deus está vivo e ativo
neste mundo, e que, por meio de sua providência, ele influi nos aconteci­
mentos relacionados aos seres humanos, a resposta terá que ser inegavel­
mente: Sim. Se, com essa pergunta alguém está querendo saber se Deus
ouve as orações do seu povo e as responde e atua miraculosamente na vida
deles, novamente não pode haver outra resposta senão a positiva. Milagres
podem acontecer hoje, porque o Deus da Bíblia não é distante e impessoal,
mas próximo e pessoal, que dirige a História para o cumprimento dos seus
objetivos e, para isso, providencialmente, ele atua em todas as coisas, ora de
modo imediato, ora fazendo uso de meios secundários. Isso significa, por­
tanto, que às vezes Deus dirige o mundo por meio de leis preestabelecidas,
e que, em outras ocasiões, ele atua diretamente, de maneira miraculosa,
conduzindo a História para o seu propósito. Para ele não faz qualquer dife­
rença, mas para nós faz. Embora devêssemos reconhecer o cuidado divino
por meio de milagres ou da providência invisível, ambos demonstram a
bondade dele. O argumento utilizado por muitos de que os milagres cessa-
Deus de milagres 191

ram com os apóstolos não é muito convincente. O Novo Testamento não


diz que somente os apóstolos realizavam milagres.16 E Jesus disse que mila­
gres acompanhariam os que cressem (Mc 16.17).
Entretanto, se, por milagres, as pessoas entendem que devem ocorrer
hoje as mesmas demonstrações de poder conforme estão registradas na
Bíblia, os mesmos ministérios de cura e operação de sinais e prodígios que
vemos na vida de Paulo, Pedro, Moisés ou Elias, pensamos ter motivos
suficientes para responder que não. São três os argumentos principais que
podem ser usados nesse sentido, um da teologia, um dos fatos e um da
própria Bíblia.

Evidência teológica
Não estamos dizendo que milagres não acontecem, mas que não acon­
tecem mais milagres iguais, e nem na mesma proporção aos dos tempos
bíblicos. Como o objetivo dos milagres feitos em larga escala era o de au­
tenticar a revelação divina, hoje, por não haver mais revelação, não há a
mesma necessidade dos milagres como no passado, pois não vivemos num
período revelacional de Deus, Isso não quer dizer que vivemos numa época
inferior a de nossos antepassados; na verdade, talvez esta seja uma época
até superior, pois já dispomos da revelação completa e registrada, que é a
Escritura Sagrada. Historicamente, a igreja cristã tem defendido o fecha­
mento do cânon, ou seja, que o último livro inspirado pelo Espírito Santo
foi o Apocalipse de João e que, após esse livro, não houve outro inspirado.
Isso não quer dizer que Deus não “fale” mais nos dias de hoje, mas que ele
“fala” fazendo uso da revelação que é a sua Palavra. Com o cânon fechado,
não há necessidade de sinais em larga escala para autenticá-lo.

Evidência fa ct u a l
Além disso, há um argumento que pode ser retirado dos fatos. O que
queremos dizer com isso é que esses sinais, conforme os apóstolos realiza­
vam, não têm sido vistos nos dias atuais. Alguém pode argumentar: Mas, e
as curas e milagres que estão acontecendo em tantas igrejas evangélicas?
Deve ser dito que o mesmo é reclamado nas igrejas católicas, nos centros
espíritas, e em todas as formas de religião existentes ao redor do mundo.
Muitos “milagres” de hoje são fraudes comprovadas, e a maioria dos que
não foram desmascarados, também não foi comprovada. O tipo de milagre
mais reivindicado hoje é aquele em que o líder religioso dirige-se à congre-
192 Razão da esperança

gação dizendo: “Irmãos, Deus me revelou que nessa fileira de bancos à


minha direita tem alguém com problema num dos rins, mas que agora foi
curado. Aqui na frente tem alguém com dor nas costas; lá atrás uma mulher
que brigou com o marido, etc”. E assim as curas e soluções vão sendo
distribuídas, supostamente comprovadas, de maneira imediata. Convém que
entendamos que não era dessa maneira que os milagres ocorriam no tempo
dos apóstolos. Nem as curas eram meras expulsões de dor de cabeça, pro­
blema nas costas ou dor de barriga, mas aleijados de nascença que eram
curados, doenças hereditárias que eram interrompidas e até mortos que
eram ressuscitados. Alguns dizem estar fazendo isso hoje em dia, mas a
única prova que apresentam é a sua própria palavra.

Evidência bíblica

A Bíblia também indica que os milagres hoje não precisam ser iguais aos
dos tempos apostólicos. Deus manifestou poderes extraordinários quando
quis que o evangelho fosse pregado em todo o mundo. Não é difícil imagi­
nar o motivo. Pense bem, como um grupo de galileus, simples pescadores,
levaria a mensagem do evangelho aos confins do mundo, tendo contra si a
mais poderosa instituição que já existiu, o Império Romano? A resposta é:
Na força do poder de Deus. Deus muniu os seus humildes discípulos de
poderes especiais para que eles cumprissem a impossível tarefa, da perspec­
tiva humana, de proclamar a mensagem da salvação ao mundo inteiro. Im­
pressiona o fato de que, por volta do ano 30 desta era, havia cerca de 120
discípulos que seguiam o Senhor, mas dentro de sessenta anos, o evangelho
já estava nas fronteiras do mundo civilizado, distribuído por todas as cama­
das da sociedade, de escravos a nobres, das cidades bárbaras a Roma. Os
milagres abriram as portas para a pregação do evangelho.
Percebe-se, entretanto, que mesmo essas demonstrações de poder não
subsistiram durante todo o ministério apostólico. Deus não parece ter dado
a Paulo, no final do ministério dele, o mesmo poder que ele tinha no início.
A Bíblia diz que, quando Paulo chegou a Efeso, durante dois anos, pregou
a palavra “dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a pala­
vra do Senhor” (At 19.10). Em seguida, Lucas relata: “E Deus, pelas mãos
de Paulo, fazia milagres extraordinários, a ponto de levarem aos enfermos
lenços e aventais do seu uso pessoal, diante dos quais as enfermidades fugi­
am das suas vítimas e os espíritos malignos se retiravam” (At 19.11,12).17
Essa demonstração de poder vinda de Deus tinha como objetivo mostrar
que a pregação de Paulo era verdadeira. Claramente, esse mesmo poder já
Deus de milagres 193

não é visto na vida de Paulo anos mais tarde, quando as igrejas já estavam
organizadas e o evangelho era conhecido em quase todo o mundo. Nem
mesmo seu fiel companheiro Timóteo foi curado por Paulo, como o pró­
prio Paulo reconhece: “Não continues a beber somente água; usa um pou­
co de vinho, por causa do teu estômago e das tuas freqüentes enfermida­
des” (lTm 5.23). Por que Paulo não colocou um avental sobre Timóteo
para que ele fosse curado? Com respeito a outro de seus ajudantes, Paulo
diz: “A Trófimo, deixei-o doente em Mileto” (2Tm 4.20). Se Paulo teve
durante toda a sua vida o poder extraordinário para curar, por que não teria
curado Trófimo? Teria ele perdido a fé? Não é o que parece. Inclusive, é
possível que uma enfermidade tenha sido a maior provação pela qual o
próprio Paulo passou durante o seu ministério. Estamos nos referindo àquilo
que ele chama de “espinho na carne”, e do qual diz que orou três vezes ao
Senhor para que o retirasse dele, mas recebeu uma resposta negativa quan­
to à cura, porém positiva quanto a ter forças para resistir: “A minha graça te
basta” (Ver 2Co 12.7-9). Diante dessas evidências bíblicas que muitas vezes
passam despercebidas pelas pessoas, chegamos à conclusão de que Deus
usou milagres de maneira mais concentrada durante o período inicial da
pregação do evangelho e que, aos poucos, as manifestações miraculosas
foram diminuindo. Não que necessariamente elas tivessem cessado, mas
que cumpriram um papel designado por Deus para uma época específica.
Talvez a maior diferença entre aquela época e esta esteja na maneira como
Deus operava milagres naquele tempo e como opera hoje. Então, os após­
tolos eram os instrumentos diretos de Deus - eles ordenavam e acontecia.
Hoje, Deus cura pela oração da igreja, porém, hoje como ontem, os mila­
gres sempre aconteceram de acordo com a “vontade de Deus”.

As obras m aiores

Um argumento muito usado nos dias atuais para contrariar a noção ex­
posta acima é baseado nas palavras de Jesus registradas em João 14.12:
“Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará tam­
bém as obras que eu faço e outras maiores fará”. Há pregadores dizendo
que podemos realizar milagres maiores do que o próprio Jesus realizou se
tivermos fé suficiente. Entre os feitos de Jesus, lembramos que ele andou
sobre as águas, multiplicou pães, fez tempestades se acalmarem, ressuscitou
um morto de quatro dias, fez um homem andar sobre as águas, devolveu a
visão a cegos de nascença, restaurou paralíticos, etc. Será que alguém na
História ultrapassou o número e a grandeza desses milagres? Não é preciso
194 Razão da esperança

ter dúvidas: ninguém fez sinais maiores do que Jesus. Os apóstolos fizeram
grandes sinais, mas se fizermos duas listas, veremos que eles não se compa­
ram com os de Jesus. Em toda a história da igreja ninguém fez sinais como
Jesus. Então, não faz sentido pensar que Jesus estivesse falando em “maio­
res obras” como milagres maiores. Porém, não é difícil entender o que
Jesus tem em mente, Quando pensamos que Jesus restringiu o seu ministé­
rio apenas à nação de Israel, e que durante todo o seu ministério, cerca de
apenas 120 pessoas se mantiveram fiéis a ele, podemos entender o real
sentido de suas palavras, Num único sermão de Pedro, após o Pentecostes,
se converteram três mil pessoas, e, posteriormente, o evangelho foi levado
pelos apóstolos até os confins da terra. Estas eram as obras maiores, não
milagres maiores, mas uma obra de amplitude maior do que a do próprio
Jesus, Essa obra foi realizada pelos apóstolos, e nós continuamos a realizar
hoje, porém, é o próprio Senhor quem nos capacita. De qualquer modo,
continua sendo obra dele.

M ila gres mentirosos


É, portanto, inegável que atualmente Deus opera milagres, apesar de
não operar como no início da pregação do evangelho, ou nos períodos de
revelação. Porém, é um fato que muitos supostos milagres são psicológicos,
frutos da imaginação e do emocionalismo das pessoas. Uma doença psico­
lógica só pode receber uma cura psicológica. Isso quer dizer que nem a
doença nem a cura eram reais. Na expectativa de verem coisas sobrenatu­
rais, as pessoas freqüentemente as vêem, pois a mente é hábil em criar essas
coisas. Não são poucos os relatos de pessoas que, ao participarem de um
momento de êxtase emocional, se sentiram curadas, mas depois voltaram a
apresentar os mesmos sintomas. Até mesmo aleijados se levantam num
momento de extrema pressão psicológica e emocional, mas após passar o
frenesi do momento, voltam a ser dominados pelas retenções dos múscu­
los e, pelo esforço indevido, ficam piores do que antes, Mas infelizmente há
muitos que estão se promovendo à custa da ingenuidade das pessoas.
Por outro lado, milagres reais podem acontecer e, ainda assim, serem
mentirosos. Mateus 7.21-23 diz: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que
está nos céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Por­
ventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não
expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então,
Deus de milagres 195

lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que


praticais a iniqüidade”. Dá para imaginar a surpresa dessas pessoas diante
do Senhor Jesus quando ele lhes disser: “Nunca vos conheci”. É muito
difícil para a mente da pessoa conceber que ela viu e até mesmo realizou
milagres em nome de Jesus, e que Jesus não a conhece. Porém, é isso o que
o próprio Jesus disse que acontecerá no dia da sua vinda. Observe que
Jesus não disse que os milagres não haviam acontecido, mas simplesmente
que a existência deles não provava que os operadores eram crentes verda­
deiros. Até aqui já sabíamos que alguém pode ver e receber um milagre e
não ser convertido, e agora ficamos sabendo que alguém pode até mesmo
realizar um milagre sem ser convertido. De acordo com Jesus, o que faz de
uma pessoa alguém que ele “conhece”, não é o fato de ela ter visto ou
operado algum milagre, mas se ela faz a “vontade dele”. A vontade do
Senhor está registrada na sua Palavra, a Bíblia.
Não devemos esquecer que o próprio Satanás é perito em operar prodí­
gios e sinais. A Bíblia tem anunciado que a manifestação final do maligno
será recheada de acontecimentos sobrenaturais. Jesus disse que “surgirão
falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para en­
ganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24.24). Paulo também falou que
“o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder,
e sinais, e prodígios da mentira” (2Ts 2.9). Satanás é um imitador de Deus;
ele procura produzir obras semelhantes às de Deus a fim de confundir os
homens. Nessa passagem (2Ts 2.9), fica claro que Satanás se vale de todos os
recursos a ele disponíveis, contudo, como não poderia ser diferente, ampara­
do na “mentira”, já que ele é seu pai (Jo 8.44). E a segunda besta que João viu
e registrou no Apocalipse, e que representa a religião dominada pelo malig­
no, “também opera grandes sinais, de maneira que até fogo do céu faz des­
cer à terra, diante dos homens. Seduz os que habitam sobre a terra por causa
dos sinais que lhe foi dado executar diante da besta” (Ap 13.13,14). João não
poderia usar uma palavra mais precisa para demonstrar o efeito que os mila­
gres causam nas pessoas do que “seduzir”. O maligno seduz as pessoas lhes
dando o que elas mais querem. O desejo desenfreado do ser humano por ver
milagres será, afinal, como já tem sido, usado contra ele mesmo.

M ila gres substituindo a m e n s a g e m


Precisamos meditar ainda sobre o perigo de os milagres ocuparem o
lugar da mensagem. Isso é uma aberração, pois Jesus realizava milagres
196 Razão da esperança

justamente para chamar a atenção para a sua mensagem. Jesus operou mui­
tos milagres, mas nunca colocou os milagres no centro do seu ministério. O
centro era o seu ensino, era a sua própria pessoa. Quando ele concedeu
autoridade aos discípulos para realizarem sinais, eles voltaram alegres por
causa do poder que agora tinham, mas ele disse que eles deveriam se alegrar
pelo fato de seus nomes estarem escritos no céu (Lc 10.20). Jesus curou o
cego logo após dizer: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12; 9.1ss). Quando
multiplicou os pães, ele afirmou: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.1-14,35).
Quando ressuscitou Lázaro, ele disse: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo
11.25). Seus milagres apontavam para a sua mensagem.
Gradualmente, o mundo tem deixado de ser racionalista para ser
espiritualista. Até bem pouco tempo atrás, tudo o que não podia ser com­
provado cientificamente era considerado como uma farsa. Não havia espa­
ço para o sobrenatural. Porém, as coisas já não são rigorosamente assim.
Uma prova disso é o movimento da Nova Era. Esse movimento une ciên­
cia com mágica. Ao mesmo tempo em que usa a tecnologia, mergulha no
ocultismo. De fato, cada vez mais as pessoas crêem no oculto, no espiritual.
Os livros mais vendidos atualmente são os que visam despertar as pessoas
para a espiritualidade. Livros que falam de anjos, mantras, espiritismo e
toda sorte de ocultismo vendem como água. A cultura moderna está se
movendo rapidamente para a superespiritualidade, ou melhor, para a su­
perstição. Isso se torna cada vez mais evidente “à medida que alguns repu­
tados cientistas, filósofos e artistas de todos os tipos expressam hostilidade
aberta contra o pensamento racional e voltam-se na direção de uma mistu­
ra de mágica e ciência”.18
Vivemos na chamada “terceira onda do Espírito”,19 em que grande ênfa­
se é colocada nos sinais e maravilhas, e somente é considerado como evan­
gelho verdadeiro aquele que contém o maior sensacionalismo. Essa ênfase
está acontecendo no mundo inteiro. Na igreja, isso já está sendo considera­
do como evidência da verdade. Se não existirem sinais e prodígios, Deus não
está se manifestando. Uma característica desse movimento é que ele quase
não fala na Bíblia. O evangelho pregado é praticamente destituído dos ver­
dadeiros elementos bíblicos: a cruz e a ressurreição de Cristo. As pessoas
não se importam se as experiências podem ser comprovadas pela Escritura,
ou mesmo se são abertamente confrontadas por ela. A experiência vale por
si mesma. Se algum sinal aconteceu, então elas dizem que é de Deus. Igno­
ram que mais de quinze mil pessoas por ano dizem ter sido curadas em
Lourdes. Em cada edição da Sentinela da Ciência Cristã há muitos relatos de
curas. Muçulmanos paquistaneses dizem que um de seus reverenciados san-
Deus de milagres 197

tos, Baba Farid, tem curado pessoas de doenças fatais. Milhares de hindus, a
cada ano, dão testemunho de curas em seus templos. Portanto, se os sinais
comprovam a verdade, todas essas religiões são verdadeiras.
Com tristeza, podemos ver que a tendência evangélica atual é colocar os
milagres no centro de tudo. Livros evangelísticos somente falam de sinais e
não têm uma palavra sobre a cruz de Cristo, sobre santidade ou compro­
misso. Sermões evangelísticos deixam a Bíblia de lado para se concentra­
rem em ricas e comoventes histórias de milagres pessoais. Somos admoes­
tados pela Palavra de Deus a não nos desviarmos da centralidade de Cristo.
Não devemos nos deixar fascinar por nada que queira nos desviar da obra
redentora de Cristo. O conteúdo central da nossa mensagem precisa ser a
do Cristo crucificado, a qual Paulo diz ser escândalo para os judeus que
queriam apenas sinais e loucura para os gregos que buscavam sabedoria
(ICo 1.22,23).

Conclusão
Milagres são intervenções divinas sobrenaturais, mediante as quais Deus
age revogando as leis da natureza, mas de acordo com a sua vontade pré-
estabelecida. Deus age no mundo hoje e sempre, o que não quer dizer que
ele aja sempre da mesma maneira. Os milagres bíblicos tinham o objetivo
de comprovar a veracidade da revelação divina, e esses milagres não têm
mais acontecido nos dias atuais; porém, Deus age de modo sobrenatural
conforme os seus propósitos, curando e beneficiando de várias maneiras.
Não devemos, entretanto, viver somente em busca de milagres, pois Deus
age por meio de causas secundárias, e uma pessoa pode ser curada de cân­
cer por meio de um tratamento e não apenas por uma intervenção sobrena­
tural. De qualquer modo, o benefício existirá, e terá ocorrido pela provi­
dência de Deus. Devemos lembrar que não é certo louvar a Deus mais pelo
milagre do que pela providência. Certa noite, um pastor recebeu o pedido de
uma irmã, membro de sua igreja, para dar um testemunho. Ela testemunhou
que naquele dia, quando estava voltando da cidade vizinha para a sua cida­
de, ao parar no sinaleiro, dois homens entraram no carro e apontaram uma
arma para ela. Tratava-se de um assalto. Apavorada, silenciosamente come­
çou a orar pedindo por livramento. De repente, sem mais nem menos, ao
parar noutro sinaleiro, os homens desceram do carro e foram embora. De
modo miraculoso, Deus havia livrado a moça do assalto. Esse foi um belo
testemunho, mas ao final do culto o pastor chamou a irmã e disse, “Eu
198 Razão da esperança

também recebi uma graça de Deus hoje, e posso dizer que foi até mesmo
maior do que a sua”. “E mesmo?”, disse a irmã, “O que aconteceu?” O
pastor disse: “Também vim da cidade vizinha, mas nada aconteceu comi­
go”. “Eu não entendi”, respondeu a irmã. “Qual foi a graça?” Ele comple­
tou: “Nenhum assaltante entrou no meu carro, Deus não permitiu”.
15

A queda: A mãe das tragédias


w w

A criação fala da glória do homem criado à imagem de Deus; porém,


uma grande tragédia a co n teceu c o m o h o m em : ele caiu. A doutrina bíblica
do pecado não é uma doutrina muito atraente para a sociedade moderna.
Nos dias atuais, uma vez que é pregada a plena liberalidade, e uma vez que
as pessoas já não acreditam mais que algo seja totalmente certo ou errado,
então, não devemos esperar admiração por ensinar que todos são pecado­
res. A recusa do ser humano em admitir a sua condição decaída impede que
ele se conheça realmente, e trate do verdadeiro problema da sua alma. Com­
preender bem esta doutrina trará uma grande contribuição para viver me­
lhor neste mundo. Somente quando o ser humano reconhece as suas limi­
tações e descansa em Deus é que ele encontra a paz verdadeira e obtém a
salvação da sua alma. A intenção dela, ao contrário do que possa parecer,
não é denegrir o homem; antes, é colocá-lo no seu lugar próprio. Todas as
explicações dadas pela filosofia, pela psicologia, ou mesmo pela genética,
para os problemas da humanidade, sem levar em conta a queda no pecado
falham em diagnosticar o verdadeiro mal do ser humano. E, sem um diag­
nóstico preciso, o tratamento fica comprometido.
A queda está registrada nos primeiros capítulos do livro do Gênesis. O
texto de Gênesis 2,15-17 marca o estabelecimento do homem como admi­
nistrador da criação divina, demonstra os privilégios e as obrigações dele
nessa posição, mas, principalmente enfoca o teste de fidelidade que Deus
propôs ao ser humano. O relato de Gênesis 3.1-13 mostra como o ser
humano falhou nesse teste. A serpente, que segundo a Bíblia representa o
próprio Satanás (Ap 12.9; 20.2), foi o agente que levou o ser humano ao
pecado. Relegar a descrição do Gênesis à categoria de “mito” é ignorar a
intenção do autor, que narra um fato histórico e pretende que seja aceito
como tal. A seqüência do relato é muito simples: a serpente tentou a mu­
lher, levando-a a duvidar da Palavra de Deus. De tal modo a serpente esti­
mulou a mulher, que ela se sentiu atraída pelo fruto proibido e, sem resis­
tência, o comeu e deu ao esposo que, silenciosamente, também comeu.
200 Razão da esperança

Logo eles perceberam o erro que haviam cometido, mas já era muito tarde.
Com vergonha de si mesmos e de Deus, tentaram se esconder dele. Porém,
Deus os encontrou, os interrogou, e eles tentaram se desculpar, tirando a
culpa de si mesmos. Esse é um relato realístico que marca a queda da huma­
nidade, mostrando-nos a estratégia do diabo, a fragilidade do ser humano
pós-queda e a misericórdia de Deus em buscar o pecador, oferecendo-lhe
uma possibilidade de redenção.

Rebelde se m causa
A Bíblia diz que Deus, depois de criar o homem à sua imagem e semelhan­
ça, o colocou no jardim do Éden, e lhe deu a tarefa de cultivar e guardar esse
jardim. Em seguida, lhe deu uma ordem: “De toda árvore do jardim comerás
livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerá;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.16,17). Pou­
cas vezes pensamos em todos os privilégios que o homem tinha no jardim,
afinal ele poderia comer livremente de todas as árvores que lá havia, com exce­
ção de uma. Ou seja, nada lhe faltaria, e ele poderia desfrutar abundantemente
de todas as bênçãos de Deus sempre que quisesse. Essa descrição é útil para
perceber o quanto a queda foi injustificada. Foi uma verdadeira rebelião sem
causa. Isso faz lembrar um pouco dos acontecimentos dos anos 70. Depois
das lutas de resistência às ditaduras ao redor do mundo, um novo tipo de
rebeldia surgiu. Em meio à revolução sexual, musical e intelectual, novos re­
beldes começaram a se levantar, os “delinqüentes juvenis sem causa”. Esses
arruaceiros não faziam tumultos em protesto contra alguma injustiça social,
eles simplesmente protestavam pelo simples prazer de protestar. Hoje, igual­
mente as pessoas assumem posições de protesto e rebeldia, mas a maioria, no
fundo, não têm causa alguma. A primeira rebelião do ser humano também foi
sem causa, mas isso não significa que seja impossível achar um motivo para a
queda. O impossível é achar um motivo justo, muito embora Satanás tenha
convencido Eva do contrário. Devemos pensar na posição de extremo signifi­
cado que Deus conferiu ao homem, feito à sua própria imagem e semelhança;
ele deveria administrar toda a criação, podendo explorar livre e responsavel­
mente todos os recursos naturais do cosmos. Deus apenas queria fazer um
teste de fidelidade, e por isso a “árvore do conhecimento do bem e do mal” foi
posta no meio do jardim. Essa era a única exceção, tudo o mais estava à dispo­
sição do homem. Parece que é próprio da natureza humana não ver as bênçãos
de Deus quando há algum problema ou restrição.
A queda: A mãe das Iragédias 201

Distorcendo a Palavra de Deus

O maligno, porém, foi muito hábil em desviar a atenção dos nossos


primeiros pais. Primeiro, ele tentou corromper a afirmação divina torcendo
suas palavras: “E assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do
jardim?” (Gn 3.1). Na verdade, não havia sido isso o que Deus havia dito,
mas a mulher mordeu a isca: “Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvo­
res do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do
jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não
morrais” (Gn 3.2,3). O grande plano de Satanás foi transformar Deus num
ditador injusto. Se o homem entendesse que Deus estava sendo injusta­
mente exigente, então, seria bem mais fácil induzi-lo ao pecado, e foi exata­
mente isso o que aconteceu. Induzida pela astúcia de Satanás, a mulher
começou igualmente a torcer a Palavra de Deus. Deus não havia proibido
olhar para a árvore, e nem mesmo tocar nela, simplesmente eles não deve­
riam “comer” da árvore. Essa, porém, não foi a única distorção, pois Deus
havia dito: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17).
A morte não era apenas uma possibilidade, era uma certeza absoluta, po­
rém, na resposta da mulher, apenas a possibilidade aparece: “Para que não
morrais”. Quando Satanás viu que havia conseguido enredar o ser humano
na sua argumentação, opôs-se diretamente à Palavra de Deus: “Então a
serpente disse à mulher: é certo que não morrereis” (Gn 3.4). Em outras
palavras, ele disse à Eva: “Deus fala, mas não cumpre”. Como diz Horton,
“o segundo estágio no plano de Satanás foi usar, em Eva, a mesma linha
que havia usado tão efetivamente em si mesmo na sua própria rebelião. Eva
mordeu a isca, e os humanos têm seguido seu exemplo desde então: ‘Vocês
serão como Deus’ (Gn 3.5)”.1 Grande ilusão...

A fuga

Estava dado o golpe final, a mulher e o homem2 eram como passari­


nhos hipnotizados pela serpente. O passo seguinte, uma vez que a dúvida já
estava arraigada no coração, foi sucumbir à tentação e comer da árvore (Gn
3.6). A mulher, atraída pela beleza do fruto e pelas promessas mentirosas
do diabo, comeu do fruto e deu ao marido, que também comeu. A passa­
gem diz que, então, “abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo
que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si” (Gn
3.7). A partir daí, teve início o filme mais repetido da história da humanida­
de: A Fuga. O pecado cortou de uma maneira precoce e dolorida o rela-
202 Razão da esperança

cionamento pessoal do ser humano com Deus. Conscientes do erro, enver­


gonhados de sua nudez e temerosos de se encontrar com Deus, só podiam
tentar fugir da presença dele, escondendo-se por entre as árvores do jardim
(Gn 3.8). Essa é a cena mais trágica que poderia ser descrita. Ela representa
a imensa profundidade do poço em que o homem caiu. Quem antes se
encontrava alegremente com o Senhor para conversar sobre a criação e
para desfrutar da presença santa, agora só pode fugir desesperadamente. A
última coisa que ele desejava era encontrar-se novamente com o criador. A
quebra desse relacionamento com o criador foi o maior prejuízo humano
causado pelo pecado, e mostra o seu verdadeiro caráter. Como diz Plantinga:
“Pecado não é apenas a quebra da lei, mas também a quebra da aliança com
o Salvador. Pecado é uma nódoa na relação pessoal, uma ofensa ao pai
divino e benfeitor, uma traição do companheiro ao qual se está unido por
laços santos”.3 O pecado destruiu o mais importante dos nossos relaciona­
mentos, o relacionamento com Deus. Logo, estariam afetados os aspectos
sociais (familiares) e culturais (trabalho).

A o r i g e m do p ec a d o

A narrativa do Gênesis não se preocupa em dizer quem é o autor do


pecado, ela simplesmente narra o fato de que o pecado entrou no mundo.
Se quisermos entender a sua origem, precisamos considerar várias coisas.
Primeiramente, precisamos lembrar que já houve uma queda, a queda de
Satanás, e, portanto, o mal já existia. Em seguida, precisamos considerar a
atuação de Satanás junto ao ser humano, despertando nele a cobiça. De
alguma maneira, o pecado nasceu dentro do ser humano. Deus precisa ser
excluído de tudo isso, pois, como o Gênesis demonstra, tudo aconteceu no
relacionamento entre Satanás e o ser humano. Embora o decreto permissi­
vo de Deus assegurasse a entrada do pecado no mundo, o mal se originou
em Satanás e no ser humano. Talvez a melhor explicação bíblica para isso
venha da carta de Tiago:

Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não
pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada
um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a
cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez
consumado, gera a morte. Não vos enganeis, meus amados irmãos. Toda
boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes,
em quem não pode existir variação ou sombra de mudança (Tg 1.13-17).
A queda: A mãe das tragédias 203

Tiago está falando sobre a tentação para cristãos já regenerados, mas é


possível traçar um paralelo com a queda.4 Ele faz questão de dizer que a
tentação não pode vir de Deus, porque Deus não é tentado, nem tenta
ninguém. Essa declaração demonstra uma antítese absoluta entre Deus e o
mal.5 Portanto, Deus não pode ser o autor da tentação e muito menos da
consumação do pecado. Em seguida, Tiago diz de onde vem a tentação: ela
vem de dentro do ser que peca. Em primeiro lugar, surge a cobiça. A cobiça
se torna como que “grávida”, e então gera o pecado que, por sua vez, acar­
reta a morte. Em seguida, vem uma advertência: não vos enganeis. E um
sério engano imaginar que o pecado e o mal possam vir de Deus. De Deus
só podem vir coisas boas, ele é o Pai das luzes, a sombra não é uma possi­
bilidade no seu caráter. O que fica bastante claro na declaração de Tiago é
que a origem do pecado está dentro do próprio homem.6 Se isso der ori­
gem à pergunta sobre se Deus colocou dentro do homem esse desejo, só
podemos dizer que Deus concedeu liberdade ao primeiro homem para que
escolhesse. O pecado se originou dentro do homem, isso é tudo o que
podemos dizer.7

Independência fracassada
O espírito da nossa época é o de quebra de tabus. As pessoas dizem que
a única coisa que deve ser proibida é proibir. Todos devem ter liberdade
para fazer o que quiser com a própria vida. Porém, será que essas pessoas
que foram liberadas para fazer o que quiserem são realmente livres? As
pessoas são livres para fazer sexo tanto quanto para contrair o vírus da
Aids. Afinal de contas, do que é essa liberação? Que liberdade tem um
viciado em cocaína no fato de poder usar a droga onde e quando bem
quiser? “Seus olhos serão abertos” prometeu Satanás (Gn 3.5), mas, como
diz Horton, “ele sempre foi mentiroso”.8
Na verdade, foi Jesus quem disse: “Ele é o pai da mentira” (Jo 8.44).

Cada vez m a is trágico

Quando vemos a queda em contraste com a glória da criação, podemos


entender um pouco da tragédia do pecado. Todas as áreas da vida humana
foram afetadas, e nada do que foi criado por Deus foi deixado intacto. A
queda no pecado nos deixou corruptos, pois “a depravação significa que o
mal contaminou cada aspecto da humanidade - coração, mente, personali-
204 Razão da esperança

dade, emoções, consciência, razões e vontade (ver Jr 17.9; Jo 8.44)”.9 Ela


nos deixou corruptos fisicamente, emocionalmente, psicologicamente,
mentalmente, moralmente e espiritualmente. Quando o nosso relaciona­
mento com Deus se quebrou, não perdemos apenas a nossa religião ou
devoção, mas a nossa saúde, a nossa felicidade e todas as coisas pertencen­
tes à vida social e cultural. Deus disse: “Maldita é a terra por tua causa” (Gn
3.17). Toda a criação se tornou corrupta por causa do pecado do homem.
Por isso, Paulo diz que a natureza “geme e suporta angústias até agora”
(Rm 8.22). Todas as tragédias do mundo, toda a violência e corrupção do
homem e da natureza são conseqüências do pecado. E o pecado gera ainda
mais tragédias, violência e corrupção. De fato “o pecado é tanto causa quanto
resultado da miséria humana”.10 Toda a miséria começou com ele, e agora
o homem não consegue exterminá-lo, pois ele origina a miséria e se origina
dela; isso se torna um círculo vicioso, bem como mostra que a escolha de
Adão foi uma má escolha.

Herdeiros de Adão

Estamos todos juntos com Adão e Eva, pois herdamos deles o veneno
do pecado. Ele corre no nosso sangue. E isso o que os teólogos chamam de
pecado original. Adão incluiu a todos na sua decisão, e esta decisão foi fatal
para a raça. A escolha de Adão atingiu a todos, porém, num sentido, não
podemos dizer que cada um de nós é considerado pessoalmente responsá­
vel pelo que Adão fez, como se cada um de nós tivesse pecado o pecado de
Adão. O fato é que Adão agiu como nosso representante e, por essa razão,
a sua escolha nos atinge.11 Nesta questão não temos liberdade de escolha.
Uma ilustração útil para entender isso é a da Independência do Brasil. Quan­
do Dom Pedro proclamou a independência, nós estávamos incluídos nela.
Nenhum de nós bradou “independência ou morte”, mas todos nós usufru­
ímos os efeitos desse brado. Do mesmo modo, Adão foi o nosso represen­
tante diante de Deus; ele falou por nós, e, portanto, a queda dele foi a nossa
queda. Seu grito de independência jogou a todos nós na morte. Nenhum
dos efeitos da queda, como pecado, dor, sofrimentos ou tragédias podem
ser atribuídos a Deus. Deus criou o mundo perfeito; foi a escolha delibera­
da do homem que trouxe o caos; portanto, a humanidade é absolutamente
responsável por tudo o que acontece de mau neste mundo. E continuamos
a destruir a terra com o processo de exploração desenfreada. A ironia é que
nós poluímos o mundo e colocamos a culpa em Deus quando ocorrem
cataclismas da natureza.12
A queda: A m ãe das tragédias 205

Não somos pecadores apenas por escolha, mas por natureza. Não nas­
cemos como se fôssemos uma tabula rasa, ou uma folha em branco, nem
numa zona neutra, mas como inimigos de Deus, sendo “por natureza, fi­
lhos da ira” (Ef 2.3). Nós não fazemos o mal meramente, nós somos maus.
Não somente caímos, somos decaídos. Não somente nos perdemos, estamos
perdidos. Pecamos porque a nossa natureza é pecar, somos escravos, pois o
Senhor disse: “Todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
Não conseguimos abandonar o pecado quando queremos. Na verdade, nem
queremos. Podemos até controlar algumas atitudes pecaminosas, mas não
podemos deixar de ser pecadores.

Totalmente depravados

É claro que isso não significa que cada um de nós faz todo o mal imaginável,
mas significa que temos capacidade para isso. E mais do que isso, significa
que estamos completamente perdidos, pois Deus requer de nós a perfeição
com que nos capacitou quando nos criou; entretanto, não há área em nossa
vida que não tenha sido afetada pelo pecado. De modo algum poderemos dar
o que ele espera de nós. A essa incapacidade de dar a Deus o que ele deseja, os
teólogos têm chamado de “Depravação Total”.13 Isso não representa alguma
incapacidade física, nem significa que as pessoas não consigam fazer algo
bom neste mundo, pois não é uma completa ausência de bem relativo. A
questão é que, para que algo seja aceito por Deus como bom, precisa ter pelo
menos três elementos: fé verdadeira, estar de acordo com a lei de Deus e ser
para a glória de Deus. Nenhum herdeiro de Adão consegue fazer isso natu­
ralmente. Uma obra pode parecer boa externamente, mas Deus sabe o que se
passa no coração. Imagine um ladrão que rouba 5,000 e doa 100 para uma
instituição de caridade. Ele é bom por causa disso? Há ateus que negaram o
Cristianismo, mas foram servir às pessoas carentes na África. A depravação
total significa que o homem nunca consegue fazer algo que agrade a Deus, de
modo que Deus resolva salvá-lo por seus méritos. Como diz Berkhof, “numa
palavra, ele é incapaz de fazer qualquer bem espiritual”.14
O homem não peca da pior maneira possível, mas peca em tudo o que
faz, pois o pecado está arraigado em sua natureza. Segundo a Bíblia, o
homem não pode fazer o bem (Mt 7.17,18; ICo 12.3; Jo 15.4,5; Rm 8.7),
não pode entender o bem (At 16.14; 2Co 3.15,16; Jo 8.43; ICo 1.18; ICo
2.14; 2Co 4.3,4), nem desejar o bem (Jo 5.40). Evidentemente, essa é a visão
calvinista do homem. O arminiano pensa diferente, pois vê o homem como
se afogando, gritando desesperadamente por socorro; o calvinista vê o ho-
206 Razão da esperança

mem como afogado no fundo do oceano. Ele nem sabe que necessita de
ajuda. Para salvá-lo, é preciso uma obra sobrenatural de Deus, é necessário
trazê-lo para a superfície e introduzir vida no seu coração,
A doutrina da depravação total explica os problemas do nosso mundo, e
nos diz que a sociedade não resolverá esses problemas básicos até que to­
dos nasçam de novo. Porém, nem mesmo a conversão do mundo resolveria
todos os problemas, pois os cristãos continuam pecando. Por outro lado,
essa doutrina nos fala do imenso amor de Deus por nós. Nunca podería­
mos ser salvos por nós mesmos, foi somente o seu amor que possibilitou a
nossa salvação.
As folhas da figueira não agradaram a Deus (Gn 3.7,21), Essa foi uma
tentativa humana de esconder a própria nudez que, poderíamos dizer, já era
muito mais do que física. Talvez isso signifique que Deus não se impressi­
ona com os nossos jeitinhos. Nossas ofertas não lhe despertam qualquer
interesse, nossa justiça própria nunca passará de “trapos da imundícia” diante
de Deus (Is 64.6). Ele não se agrada das nossas tentativas de agradá-lo, ou
mesmo de nos desculparmos. Enquanto acharmos que as folhas da nossa
justiça própria são suficientes, jamais poderemos ser salvos.

li b e r d a d e que aprisiona
E, o que é mais irônico para nós seres humanos, é que a declaração de
independência foi totalmente fracassada. Ainda precisamos de Deus, pois
“não podemos viver independentemente de Deus mais que um peixe pode
viver independentemente de água”.15 Como o brado às margens do Ipiranga
não tornou o Brasil independente das potências estrangeiras, também o
grito de independência de Adão não o libertou. Ao contrário, o aprisionou
totalmente, pois ele passou a servir ao pecado (Jo 8.34) e, por conseqüên­
cia, à Satanás (Ef 2.2). A tão desejosa liberdade nunca veio. Houve um
tempo em que uma propaganda de cigarros era bastante popular. O nome
do cigarro podia ser traduzido como “livre”. E o slogan era: “Cada um na
sua, mas com alguma coisa em comum”. A única coisa que os viciados
tinham em comum era o vício. A liberdade era apenas um sonho.

0 que fazer c o m a culpa ?


Algo que o pecado deixa dentro de nós é o sentimento de culpa. Não
estamos falando aqui da culpa a ser tratada num tribunal, mas do que ocor-
A queda: A m ãe das tragédias 207

re dentro do ser humano, em termos de consciência. O ser humano não


sabe como lidar com a culpa. Ele gasta muito dinheiro com terapeutas para
tentar se livrar de algo que tanto o atormenta. Um método mais barato é
culpar os outros. Foi exatamente isso o que Adão e Eva fizeram. Quando
Deus interrogou o casal, Adão respondeu que a mulher que Deus havia lhe
dado era a responsável por tudo aquilo, e a mulher tratou de responsabilizar
a serpente (Gn 3.12,13). Cada um posou de vítima da situação. Não é assim
que os advogados tentam fazer com o júri hoje em dia? Tentam dizer que o
criminoso é apenas uma vítima da sociedade, mas Deus sabe muito bem
que não somos vítimas, pois intimamente nos deleitamos com o pecado.
Jogar a culpa nos outros nunca nos tornará inocentes. Se o filme mais
reprisado da história é A Fuga, o segundo é Não Fui Eu. Evidentemente
essa é uma maneira de auto-engano. Como diz Cornelius Plantinga, “o
auto-engano é um fenômeno sombrio por meio do qual puxamos a cober­
ta sobre alguma parte de nossa psiquê. Nós nos movemos dentro de nós.
Negamos, suprimimos ou minimizamos o que sabemos sobre a verdade.
Asseveramos, adornamos e elevamos o que sabemos ser falso. Tornamos
belas as realidades feias e compramos a versão maquiada”.16 Essa é a ima­
gem que o homem tenta produzir de si mesmo, desde o início. A grande
defesa é: Eu não sou o responsável por isso. E então, o ser humano segue o
seu caminho como se nada tivesse acontecido. Porém, trata-se de um tolo
engano. No nosso íntimo, sabemos que somos culpados. Sabemos que a
culpa que sentimos é porque temos culpa. Nem todo o dinheiro do mundo
gasto com terapias ou distrações poderia mudar essa realidade.

Conclusão
Aprendemos algumas lições muito importantes com a doutrina bíblica
do pecado. Primeiramente, que o homem depende inteiramente de Deus
para a salvação. De tal modo a queda afetou o ser humano que ele não pode
se salvar por si mesmo, e depende inteiramente de Deus querer e usar a sua
misericórdia para salvá-lo. Essa convicção é necessária para a igreja hoje.
Nós perdermos a visão realística do homem conforme a Bíblia a demons­
tra. Vivemos no tempo em que os crentes idolatram líderes religiosos, e se
surpreendem quando vêem esses homens caírem em pecado. Essa doutrina
também nos ensina que não há pessoa boa do ponto de vista de Deus.
Deus não olha para o que nós tentamos fazer, mas para o que nós somos.
Por isso, precisamos abandonar as nossas folhas de figueira e deixar que o
208 Razão da esperança

próprio Deus nos vista com a justiça de Cristo. Finalmente, essa doutrina
glorifica a graça de Deus. Se conhecermos bem o diagnóstico da nossa
doença, podemos nos maravilhar diante da cura. No evangelho, Deus não
oferece apenas uma anestesia para a dor, mas uma cura definitiva, que, a
princípio, pode até mesmo causar algum desconforto, mas que extirpa com­
pletamente a doença. Ignorar o pecado, como o mundo moderno tem fei­
to, só piora as coisas. E como negar a existência de uma doença gravíssima.
A negação não fará com que ela desapareça.
16

A morte: 0 último inimigo

“No dia e m que dela com eres, certam en te m orrerrás" (Gn 2.17).

O pintor medieval Jan Van Eick impressionava as pessoas com os seus


quadros que demonstravam ao mesmo tempo a futilidade da busca pelos
prazeres do mundo e a realidade da morte que assolava de maneira des­
percebida. Não raro, num mesmo quadro, ele ilustrava a loucura dos ho­
mens que viviam para satisfazer seus caprichos, enquanto muitos ficavam
prostrados, abatidos pela morte. Isso realmente retrata a situação da hu­
m anidade decaída. Deus deixou bem claro, desde o início, que a
consqüência da desobediência seria a morte, e nada há mais certo a res­
peito da vida do que a morte; porém, é impressionante o quanto os seres
humanos conseguem ocultar de si mesmos essa verdade. Quando somos
jovens, a vida parece radiante e a morte distante. Ano após ano, a vida
prossegue, vivemos nosso dia a dia, fazemos planos, construímos casas e
nos envolvemos com muitos projetos. Freqüentemente, lemos nos jor­
nais que pessoas estão morrendo de fome na África ou em explosões
terroristas no Oriente Médio. Mas esses lugares estão muito distantes de
nós. Paramos alguns instantes em frente à televisão, horrorizados pelas
tragédias, mas em seguida retornamos a nossa vida normal, e tudo aquilo
foge da nossa mente. De repente, um vizinho morre. Vamos ao enterro,
confortamos a família, e ficamos abalados por alguns momentos, mas
logo continuamos o nosso trabalho e voltamos às diversões e à rotina do
dia a dia. De algum modo, “há, dentro de nós, uma espécie de sentimento
de imunidade em relação à tragédia e a morte”.1 Mas, de súbito, a morte
bate à porta. Um pai, uma mãe, um esposo ou um filho é levado abrupta­
mente. Então, todo o desespero cai sobre nós com o peso de milhões de
toneladas. Uma imensa confusão se estabelece dentro de nós, e uma per­
gunta brota da agonia: Por quê?
210 Razão da esperança

A o rigem da morte
Pedro faz uma declaração de causar inquietação em todos os que se
sentem imortais: “Pois toda carne é como a erva, e toda a sua glória, como
a flor da erva; seca-se a erva, e cai a sua flor” (IPe 1.24; ver Is 40.6-8). E o
Salmo de Moisés já dizia coisas semelhantes, ao contrastar a eternidade de
Deus com a temporalidade do ser humano:

Antes que os montes nascessem e se formassem a tetra e o mundo, de


eternidade a eternidade, tu és Deus. Tu reduzes o homem ao pó e dizes:
Tomai, filhos dos homens. Pois mil anos, aos teus olhos, são como o dia de
ontem que se foi e como a vigília da noite. Tu os arrastas na torrente, são
como um sono, como a relva que floresce de madrugada; de madrugada,
viceja e floresce; à tarde, murcha e seca... Pois todos os nossos dias se pas­
sam na tua ira; acabam-se os nossos anos como um breve pensamento. Os
dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta;
neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapida­
mente, e nós voamos (SI 90.2-6; 9,10).

Não há como fechar os olhos; a morte é a realidade mais concreta que


conhecemos. A vida é muito breve. Todo esse sentimento negativo que os
seres humanos e os animais têm em relação à morte explica-se porque a
morte é uma anomalia. Como diz Packer, “a Bíblia confirma nosso senti­
mento instintivo dc que, no seu sentido mais profundo, toda morte é anor­
mal”.2 A morte não faz parte da criação de Deus, ela é uma intrusa,
A Bíblia demonstra que a morte entrou no mundo como conseqüência
do pecado. Quando Adão e Eva foram criados e Deus os colocou numa
digna posição de administradores da criação, o Senhor fez uma exigência,
pois desejava obter deles obediência completa, e por isso lhes disse: “De
toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento
do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certa­
mente morrerás” (Gn 2.16,17). Alguns estudiosos insistem que a morte
existia pelo menos no mundo animal e vegetal antes da queda, o que de
qualquer modo, não temos como comprovar. Devemos lembrar que tanto
o homem quanto a criação foi amaldiçoada pela queda. Paulo diz que a
criação “está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele
que a sujeitou (...). Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo,
geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.20-22). A criação é prisioneira
da “corrupção” por causa da entrada do pecado no mundo (ver Gn 3.17).
A morte: 0 último inimigo 211

E Paulo já havia declarado um pouco antes aos romanos: “Portanto, assim


como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a
morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos
pecaram” (Rm 5.12). Ele diz que o pecado entrou no mundo por meio de
um só homem, e como conseqüência, a morte também.
A morte é conseqüência do pecado. Se não houvesse pecado, não ha­
veria razão para pensar que a morte existiria. Quanto a essa idéia de que o
pecado de Adão e Eva gerou a morte, surge uma pergunta: Porque Adão
e Eva não morreram no dia em que pecaram? Deus havia dito: “No dia
em que dela comeres, certamente morrerás”, mas Adão e Eva viveram
ainda centenas de anos. Na verdade, não precisamos interpretar essa ex­
pressão literalmente. Ela é uma expressão idiomática hebraica que signifi­
ca “se você comer, vai morrer com certeza”. Isso pode ser visto em ou­
tras passagens da Bíblia Hebraica (lRs 2.37; Ex 10.28). Como diz Hoekema,
“baseado nessa interpretação, pois, o fato de Adão e Eva não terem
morrido fisicamente no mesmo dia em que comeram da árvore proibida,
não precisa nos causar nenhuma dificuldade especial”.3 O fato é que a
morte era certa, porque o pecado aconteceu. Adão e Eva, ao desobedece­
rem a Deus, tiveram a sua sentença de morte decretada. Eles morreram
espiritualmente imediatamente - ficando separados de Deus - ; todavia, a
morte física, que veio também comoxonseqüência do pecado (Gn 2.16,17;
3.11-24; Rm 5.12), não foi imediatamente executada, porque Deus usou
de sua graça comum, protelando a execução da sua sentença (Gn 3.15),
concedendo oportunidade para o arrependimento do homem; entretan­
to, o seu juízo entrou em processo de concretização, tornando a vida uma
caminhada para a morte.

O significado da morte
A morte é a conseqüência do pecado, mas não uma conseqüência natu­
ral. Devemos considerar a morte como um aspecto penal de Deus em rela­
ção à desobediência do ser humano. Morte, portanto, antes de qualquer
coisa é punição. Deus disse a Israel: “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez
18.4), e Paulo disse aos Romanos: “O salário do pecado é a morte” (Rm
6.23). Como diz Berkhof:

A morte não é descrita como algo natural na vida do homem, mera falha de
um ideal, e sim, assaz decisivamente como algo alheio e hostil à vida huma-
212 Razão da esperança

na: é uma expressão da ira divina (SI 90.7,11), um julgamento (Rm 1.32),
uma condenação (Rm 5.16), uma maldição (G1 3.13), e enche os corações
dos filhos dos homens de temor e tremor, justamente porque é tida como
uma coisa antinatural.4

Para definirmos “morte”, todos esses elementos devem ser considera­


dos. Quando pensamos na morte, precisamos entender que há três senti­
dos para esse acontecimento: morte física, morte espiritual e morte eterna.

M o r t e espiritual

O primeiro aspecto da morte a ser considerado é o seu caráter espiritual;


estamos falando da quebra da comunhão com Deus, pois, “uma vez que, de
acordo com as Escrituras, o significado mais profundo da vida é a comu­
nhão com Deus, o significado mais profundo da morte tem de ser a separa­
ção de Deus”.5 Isso aconteceu com Adão no mesmo dia em que ele pecou.
A Escritura diz que, após comerem do fruto da árvore proibida, Adão e
Eva tomaram consciência da sua nudez, fugiram da presença de Deus e se
esconderam por entre as árvores do jardim (Gn 3.7,8). A comunhão estava
quebrada. Essa morte é a maneira como todas as pessoas vivem! Paulo
descreveu todas as pessoas como estando mortas nos seus delitos e peca­
dos (Ef 2.1). Nesse estado, o homem não consegue agradar a Deus e nem
sequer dar um passo em direção a Deus. Esse estado de morte espiritual,
que é conseqüência do pecado, torna o homem cego para as coisas de Deus
(2Co 4.4), e incapacitado de ir a Jesus antes que Deus realize uma obra de
sua livre graça dentro dele. Então, é só quando Deus transforma o seu
coração e sua disposição que o ser humano consegue se voltar para Deus
(ver Jo 6.44).

M o r t e física

Nesse sentido, a morte deve ser entendida como a separação entre cor­
po e alma. Quando a alma deixa o corpo, a morte chegou (Tg 2.26). Nesse
ponto, se cumpre a Palavra que Deus dirigiu ao homem depois do pecado:
“No suor do rosto comcrás o teu pão, até qúe tornes à terra, pois dela foste
formado; porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3.19; ver Ec 3.20). Porém,
o Espírito não vira pó, pois como diz o Eclesiastes, o pó volta à terra, mas
o Espírito volta a Deus que o deu (Ec 12.7). A morte física é uma punição
porque o ser humano não foi feito para viver sem corpo. Os gregos antigos
A morte: 0 último inimigo 213

entendiam que a alma era divina e o corpo uma espécie de sepultura da


alma. No entendimento deles, a melhor coisa que poderia acontecer para a
alma era se ver livre do corpo. A Bíblia não endossa essa visão, Apesar de a
alma continuar vivendo após a morte, ela não se encontra em felicidade
completa, pois Deus criou o ser humano com dois aspectos, o espiritual e o
físico, e ambos precisam um do outro, Por essa razão, a Bíblia não diz que
a alma que vai para o céu depois da morte encontrou o seu destino final,
mas anuncia o dia da ressurreição, quando o ser humano ressurgir comple­
to em corpo e alma.

M o r t e eterna

A morte eterna deve ser vista como uma consumação da morte espiri­
tual depois da morte física. A morte física vem para todos, mas a morte
eterna somente para os que estão sem Cristo. Nesse ponto, é interessante
pensarmos que a salvação depende de um “novo nascimento” (Jo 3.3).
Quem nasce uma vez morre duas, mas quem nasce duas só morre uma.
Durante essa vida, embora grande parte das pessoas esteja no estado de
“morte espiritual”, mediante a graça comum, Deus lhes concede muitas
bênçãos e restringe o mal. Porém, na morte eterna “as restrições do presen­
te desaparecem, e a corrupção do pecado tem a sua obra completa. O peso
total da ira de Deus desce sobre os condenados, e isso significa morte, no
sentido mais terrível da palavra”,6 Morte eterna deve ser associada com o
inferno, e em última instância, com o lago de fogo do Apocalipse.

Dias contados
A morte será a última das conseqüências do pecado a ser retirada do
mundo. No capítulo 15 de 1 Coríntios, o apóstolo Paulo faz uma defesa
magistral da ressurreição de Cristo e dos crentes. Nesse capítulo, ele tam­
bém diz muitas coisas a respeito da morte. Primeiramente, ele repete o
ensino de Romanos 5.12-19: “Visto que a morte veio por um homem, tam­
bém por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como,
em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cris­
to” (ICo 15.21,22). Essa promessa de vitória pessoal sobre a morte descan­
sa sobre a vitória de Cristo. Ele abriu o caminho para a vitória sobre a
morte e agora os homens podem transitar por ele. Porém, além de ter aber­
to o caminho, o Senhor ocupa uma posição de governo em que luta para
214 Razão da esperança

destruir todos os seus inimigos. Paulo diz que o fim só virá “quando hou­
ver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder” (ICo
15.24). Evidentemente ele está falando de Satanás e suas hostes malignas. A
morte e a ressurreição de Jesus já garantiram a vitória sobre Satanás, tanto
que ele perdeu o seu posto de acusador (Ap 12.10). Porém, ainda falta o dia
quando ele será totalmente esmagado, cumprindo a promessa de Gênesis
3.15, ou como diz Paulo: “Porque convém que ele reine até que haja posto
todos os inimigos debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a
morte” (ICo 15.25,26). Os inimigos que assim serão submetidos não são
somente seres inteligentes hostis a Cristo, como também todas as formas
de mal, físicas e morais, já que se inclui especialmente a morte.7 A morte,
na linguagem de Paulo, é justamente o último inimigo. Naquele dia, Cristo
e a morte se encontrarão pela última vez.
O próprio Cristo conheceu muito bem os poderes da morte. Lembra­
mos daquela inesquecível cena do Senhor diante do túmulo de Lázaro.
Quando Maria, irmã de Lazaro, se aproximou de Jesus, João relata: “Jesus,
vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a acompanhavam, agitou-se no
espírito e comoveu-se. E perguntou: Onde o sepultastes? Eles lhe respon­
deram: Senhor, vem e vê! Jesus chorou” (Jo 11.33-35). Essa foi uma das
poucas ocasiões em que Jesus chorou. Qual teria sido o motivo desse cho­
ro? Certamente não era um choro de impotência diante das mazelas da
vida. O Senhor que ressuscitaria Lázaro em seguida não precisaria chorar
por isso. Era o choro de alguém que sabia o quanto a morte deteriorou a
perfeita criação de Deus. Era o choro de alguém que definitivamente não se
conformava com a morte. Mais tarde, ele próprio experimentou a fúria da
morte ao ser dependurado no madeiro. Portanto, Jesus sabe mais do que
ninguém o significado dela. Porém, três dias depois, na maior demonstra­
ção de poder entre a criação e o fim do mundo, o Senhor derrotou a morte
ao ressuscitar gloriosamente. A partir daquele dia, os dias da morte estão
contados; em breve, o último inimigo cairá definitivamente.

M a l transform ado em bem


Ainda falta considerarmos uma questão importante: Se a morte é resulta­
do do pecado e deve ser vista como punição, por que os cristãos ainda pre­
cisam morrer? A morte dos cristãos não deve ser considerada como puni­
ção, uma vez que não existe mais qualquer punição para o cristão. Paulo diz:
“Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”
A morte: 0 último inimigo 215

(Rm 8.1). Se Deus quisesse poderia transladar todos os cristãos para o céu,
como fez com Enoque e Elias, sem que passassem pela morte, porém, ele
resolveu deixar que a natureza seguisse o seu curso normal. Apesar de nasci­
dos de novo, nossos corpos ainda são decaídos, eles não foram aperfeiçoa­
dos, e o motivo disso é que continuamos adoecendo, cansando, suando e
morrendo (Gn 3.19). A morte deve ser vista, no caso do cristão, não como
uma punição, mas como uma conseqüência natural do corpo decaído. Nesse
sentido, ela tem realmente ainda um sentido negativo, porém, ela evoca pelo
menos dois aspectos imensamente positivos. Em primeiro lugar, devemos
considerar que ela abre as portas para a eternidade. No momento da morte,
a alma fica livre de todo o peso da corrupção, e passa a aguardar o dia em
que será reunida ao corpo aperfeiçoado da ressurreição. A morte para o
crente é o portal para uma situação imensamente mais abençoada do que a
presente. Em segundo lugar, embora a morte, em si mesma, continue sendo
um verdadeiro mal natural para os filhos de Deus, na economia da graça ela
se faz subserviente ao seu progresso espiritual e aos melhores interesses do
reino de Deus.8 A expectativa da morte leva o crente a considerar seus dias
e a manter a humildade. O salmista orou: “Ensina-nos a contar os nossos
dias, para que alcancemos coração sábio” (SI 90.12). A consciência da nossa
própria finitude ajuda a exercitar a sabedoria. Assim, a expectativa da morte
é benéfica para o nosso progresso espiritual; ela mostra que os nossos dias
aqui são limitados como tudo o mais nesta vida. E a experiência da morte, de
algum modo, nos será útil na eternidade. Jamais será caso de vergonha, antes
de regozijo, pois o nosso Senhor também a experimentou. Será um motivo
de louvor ao Deus que transforma o mal em bem.
A atitude dos crentes perante a morte deve ser totalmente diferente da
atitude do mundo que não tem esperança. Aos olhos de Deus, a morte dos
crentes não é uma retribuição pelas suas más ações, é algo que causa deleite
no Senhor, pois “preciosa é aos olhos do S e n h o r a morte dos seus santos”
(SI 116.15). Seja a morte de um crente de 100 anos ou de uma criança de
alguns dias, perante os olhos do Senhor, essa morte é preciosa, pois o Se­
nhor sabe que o céu é muito melhor. Para nós, é difícil aceitar a idéia de que
uma criança deixe este mundo apenas alguns dias depois de ter nascido.
Porém, devemos nos lembrar que a vida é como a erva, e logo estará mur­
cha de qualquer modo. Perante a eternidade, e diante daquele a quem mil
anos é como um dia (SI 90.4), talvez faça pouca diferença viver cem anos ou
alguns minutos.
O entendimento de que a morte nos conduz a um estado superior levou
o apóstolo Paulo a dizer: “Porquanto, para mim, o viver é Cristo, e o mor-
216 Razão da esperança

rer é lucro. Entretanto, se o viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já
não sei o que hei de escolher. Ora, de um e outro lado, estou constrangido,
tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente
melhor” (Fp 1.21-23). Aqui está um homem que viveu uma das existências
mais gloriosas e, ao mesmo tempo, mais sofridas de todos os tempos. Ape­
sar de todo sofrimento, ele não estava desanimado em continuar vivendo.
Porém, ele claramente demonstrou a sua preferência por partir e estar com
Cristo o que, para ele, não tem comparação. Ele desejava entrar naquele
estado de bem-aventurança que João descreveu no Apocalipse: “Então, ouvi
uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, desde
agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas
fadigas, pois as suas obras os acompanham” (Ap 14.13). Não precisamos
esperar a morte com receio ou angústia no coração, pois ela é um benefício
do Senhor para a nossa vida. Ela não é o fim, por mais que pareça ser. A
seguinte história poderá nos ajudar a entender o que é a morte:

Eis-me numa praia. Um barco, perto de mim, abre as velas brancas ao ven­
to e parte em direção ao alto-mar. Esse barco é belo e forte. Fico ali de pé,
a contemplá-lo, até que por fim parece como que uma pequenina mancha,
lá longe, precisamente no lugar em que o mar e o céu parecem juntar-se.
Alguém ao meu lado, diz nesse momento: “Desapareceu”. Desapareceu
para onde? Desapareceu da minha vista, eis tudo. Continua a existir da
mesmíssima maneira que existia quando partiu de junto de mim; e continua
tão capaz, como antes, de levar a sua carga ao porto de destino. O seu
tamanho diminuiu para mim, nada mais; e, precisamente no momento em
que alguém diz ao meu lado “Desapareceu”, noutra praia, lá longe, há ou­
tros olhos que esperam a sua chegada e outras vozes prontas a exclamar,
“Ele aí vem”; e é assim a morte. (Autor desconhecido)9

As pessoas queridas que desapareceram dos nossos olhos, e que morre­


ram no Senhor, desembarcaram nessa outra praia, onde todos nós, que
esperamos em Cristo, um dia também desembarcaremos. Quando o último
inimigo for definitivamente derrotado, então todo o sofrimento de Adão
finalmente desaparecerá.
17

0 lugar dos mortos

Uma pergunta que sempre fascinou os cristãos ao longo dos séculos é:


Para aonde vai a alma da pessoa depois que ela morre? Ao longo da Histó­
ria várias possibilidades têm sido levantadas pelos cristãos. Classicamente,
o Cristianismo tem defendido que, após a morte, enquanto o corpo vai
para a sepultura, o espírito vai para o chamado “Estado Intermediário”.
Esse é o local onde estão, por um lado os que foram salvos por Cristo - no
caso o céu - , e, por outro, os que foram condenados pelos seus pecados -
no caso o inferno. Outras interpretações têm sido igualmente sustentadas
desde os tempos mais antigos. Alguns, como os Testemunhas de Jeová e os
Adventistas, defendem o chamado “sono da alma”, ou seja, que todas as
almas, quer de ímpios quer de crentes ficam dormindo até o dia da ressur­
reição, quando finalmente acordarão juntamente com o corpo e enfrenta­
rão o Juízo Final. Outros ainda, como os católicos, sustentam que as almas
ficam num local de “purgação” de seus pecados, tendo a possibilidade,
depois que tiverem feito satisfação pelos seus pecados, de entrar no céu. Os
judeus e a igreja medieval sustentavam que a alma depois da morte ficava
num estado de semiconsciência, nem feliz, nem infeliz, esperando a ressur­
reição do corpo. E os espíritas dizem que é possível até mesmo se comuni­
car com as almas dos mortos que estão desencarnadas e esperando uma
reencarnação, Todas essas crenças demonstram que a vida após a morte é
algo que todos levam a sério.1 Porém, o que nos importa aqui é entender o
ensino bíblico sobre o lugar para aonde vão as almas dos mortos,

0 sheol e o hades
O Antigo Testamento fala relativamente pouco acerca do estado das
almas depois da morte. Encontramos em alguns livros do Antigo Testa­
mento a indicação de que as almas vão para um lugar chamado sheol. Sheol
mais comumente significa “sepultura”. E essa palavra que Jacó disse ser o
218 Razão da esperança

seu destino quando morresse: “Se lhe sucede algum desastre no caminho
por onde fordes, fareis descer minhas cãs com tristeza à sepultura (sheol)”
(Gn 42.38). No entendimento do Antigo Testamento, todos os homens
acabam no sheol. O salmista declara: “Que homem há, que viva e não veja a
morte? Ou que livre a sua alma das garras do sepulcro (sheol)?” (SI 89.48;
Ver 88.3; Os 13.14; Nm 16.33; SI 49.14; SI 9.17).
Se o sheol é o destino de todos os homens, então, ele não deve, nesse
sentido, ter significado positivo ou negativo. A interpretação mais plausí­
vel é que significa apenas sepultura, o lugar do esquecimento, a morte no
sentido genérico. Assim, o sheolé absolutamente igual para todos, como o
Eclesiastes deixa bem claro: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-
o conforme as tuas forças, porque no além (sheol), para onde tu vais, não
há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (Ec
9.10). Todos os homens, bons ou maus, vão para o sheol, pois ele significa
apenas o estado de morte, não necessariamente de recompensa ou de
punição.
Por outro lado, o Antigo Testamento diz que a morte do justo é mais
digna que a morte do ímpio. Balaão, quando chamado para amaldiçoar Is­
rael, demonstrou o seu desejo: “Que eu morra a morte dos justos, e o meu
fim seja como o dele” (Nm 23.10). Se o profeta infiel Balaão desejava mor­
rer a morte do justo é porque ela deve ser diferente da morte do perverso,
e, de algum modo, melhor (ver SI 16.11; 73.24). Porém, o que se percebe ao
ler o Antigo Testamento, é que não havia uma doutrina completa sobre o
Estado Intermediário. Isso não representa problema algum, pois entende­
mos que a revelação é progressiva, ou seja, Deus não revelou tudo de si de
uma única vez. Porém, o simples fato de haver esperança para o justo de­
pois da morte é uma evidência concreta de que, de alguma maneira, os
justos estariam melhor no sheol do que os injustos.
Se o Antigo Testamento usa a palavra sheol para definir o lugar dos mor­
tos, o Novo Testamento usa a palavra hades. Na mitologia grega, o hades era
composto de duas partes: a parte mais profunda era o local de punição,
algumas vezes chamado de Tártaro, e o lugar de bênçãos era chamado de
Campos Elisios.2 E difícil encontrar essa idéia no Novo Testamento, pois
aí Hades também significa lugar de punição. Assim, o rico da parábola que
Jesus contou foi para o hades (Lc 16.23). E Jesus disse que Cafarnaum seria
precipitada ao hades por ter recusado sua pregação (Mt 11.23). Igualmente,
Jesus disse aos fariseus que eles dificilmente escapariam da condenação do
hades (Mt 23.33). Todas essas passagens sugerem que, para o Novo Testa­
mento, o hades é o lugar de punição, o inferno.
0 lugar dos mortos 219

0 purgatório
A teologia católica afirma que os crentes do Antigo Testamento, antes
da ressurreição de Cristo estavam num lugar chamado Umbus Patrum (limbo
dos pais). Ali eles ficavam sem qualquer sofrimento, porém, sem a felicida­
de do paraíso. Quando Jesus ressuscitou, providenciou para que algumas
fossem libertas do limbo e levadas para o céu. Pensa-se que foi enquanto o
seu corpo estava na sepultura que o Senhor foi até o limbo e libertou-as de
lá. Geralmente, a passagem de 1 Pedro 3.18-20 é usada como texto-prova
nesse sentido. Porém, essa obscura passagem pode significar simplesmente
que o Senhor, pelo Espírito e por intermédio de Noé, pregou aos perdidos
enquanto a Arca estava sendo construída. A teologia católica fala também
do Umbus Infantum (limbo das crianças) que seria o lugar para aonde vão
todas as crianças não-batizadas, representando um lugar que, embora não
seja de condenação, também não é de bênção. Evidentemente que a idéia
da existência de um “limbo” não é bíblica, mas criada e sustentada pelos
homens, numa tentativa de minimizar as penas eternas.
A mais conhecida doutrina católica sobre o Estado Intermediário é a do
Purgatório. A doutrina do purgatório formulada pela igreja católica susten­
ta a possibilidade de salvação depois da morte. Segundo a teologia católica,
somente os verdadeiramente santos vão diretamente para o céu, onde estão
salvos para sempre, e somente os piores pecadores vão para o inferno,
onde estão perdidos para sempre. Todos os demais seres humanos vão
para o purgatório, que é um local de punição, porém temporário. Depois
que uma alma passa algum tempo sofrendo as penas, literalmente “purgan­
do” os seus pecados, pode ir para o céu. Na concepção católica, o fogo do
purgatório é o mesmo fogo do inferno, a única diferença é a duração. Por
isso, nas orações católicas se fala em “levar as almas todas para o céu”, ou
seja, tirá-las do purgatório. Na Idade Média, a doutrina do purgatório foi
muito útil para os cofres da igreja católica. Segundo o ensino oficial, o Papa
ünha poder para libertar as almas de lá, e vendia essa libertação por alguma
quantia de dinheiro. Essa prática ficou conhecida como venda das “indul­
gências”. Até hoje, o costume de pagar para “rezar” missas é fundamenta­
do no mesmo antigo sistema e, portanto, o purgatório continua rendendo
dividendos. O pagamento pode ser feito pela própria pessoa ou por paren­
tes. Aqui também encontramos a origem da “missa de sétimo dia”. Um
questionamento óbvio a essa idéia é que se o pagamento faz com que a
alma saia do purgatório, isso é um favorecimento do rico que pode pagar
220 Razão da esperança

mais missas. Além disso, se o Papa realmente tem poder para tirar as almas
do purgatório, por que bondosamente não faria isso por todas?
A doutrina do purgatório não tem qualquer respaldo bíblico. E uma
formulação humana que serviu e serve aos interesses da igreja católica. A
Escritura não ordena que as pessoas façam qualquer coisa pelos mortos,
exceto sepultá-los (Dt 26.13,14; Lv 19.28). Ao acrescentar a necessidade de
uma reparação humana, a doutrina do purgatório é uma afronta à suficiên­
cia da obra de Cristo para a salvação. A Bíblia claramente diz que “aos
homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo”
(Hb 9.27). Quem já foi para o paraíso ou para o inferno não pode mais sair
de lá (Lc 16.26). As únicas passagens da Escritura geralmente usadas para
defender a existência do purgatório são 1 Coríntios 3.15 que fala de ser
salvo através do fogo, e Judas 22,23 que fala de arrebatar os duvidosos do
fogo. Porém, essas passagens nada dizem sobre o purgatório, pois o fogo
deve ser identificado com a própria atividade julgadora de Deus; ele signifi­
ca que os salvos serão livrados, no sentido de isentados do fogo.

0 so n o da alm a
Como já vimos, outras seitas insistem que as almas depois da morte
ficam num estado de “sono”, esperando o dia do Juízo. Essa doutrina é
defendida por causa de algumas expressões usadas no Novo Testamento,
como por exemplo, o fato de Jesus ter dito que Lázaro dormia, querendo
dizer que ele estava morto (Jo 11.11,14; ver Mt 9.24; At 7.60; ICo 15.51;
lTs 4.13,14). Apela-se também para as passagens do Antigo Testamento
que descrevem a morte como um estado de inatividade (ver SI 6.5; 115.17;
146.4; Dn 12.2). Porém, essas passagens descrevem o morto apenas do
ponto de vista humano. Além do mais, o que está sendo enfatizado nelas é
o destino do corpo das pessoas e não, necessariamente, da alma. Evidente­
mente que o corpo dorme até o dia da ressurreição, no sentido de que fica
na sepultura aguardando aquele dia, porém, a Bíblia não diz que a alma
também dorme, pelo contrário.
Há suficiente ensino na Escritura para que entendamos para onde a
alma vai depois da morte. Jesus contou uma parábola (que pode ser uma
história real) onde há explicações suficientes sobre o lugar das almas depois
da morte (Lc 16.19-31). Havia um homem rico, que vivia para aproveitar
suas riquezas, e um homem pobre chamado Lázaro, que nada tinha para se
consolar. Os dois morreram, mas foram para lugares diferentes. Lázaro foi
0 lugar dos mortos

para o seio de Abraão e o rico para o inferno. Eles permanecem em estado


consciente; um está no lugar de punição e o outro, no lugar de recompensa,
e não há possibilidade de saírem de onde estão. Essa parábola sozinha der­
ruba tanto a doutrina do sono da alma quanto a do purgatório. Depois da
morte, a alma do salvo vai para o paraíso, enquanto a alma do perdido vai
para o inferno. Só existem esses dois lugares e quem foi para um deles não
pode mais sair. O Espiritismo também leva um golpe decisivo, pois os mortos
não são autorizados a voltarem. E finalmente, Jesus deixa bem claro que a
salvação somente é possível por meio da Bíblia (Lc 16.31). Portanto, Jesus
ensinou que as almas estão conscientes e, até a ressurreição, não devem sair
dos lugares em que estão.
Há muitas outras passagens que demonstram o estado consciente dos
crentes depois da morte. Jesus disse ao ladrão que se converteu na cruz:
“Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43). Embora os Testemunhas de
Jeová tenham até mesmo mudado a tradução dessa frase (“em verdade te
digo hoje, estarás comigo no paraíso”), a evidência textual não deixa mar­
gem para dúvidas: Jesus disse que ainda naquele dia, a alma do ladrão con­
vertido estaria no paraíso. Todo o sentido da frase de Jesus depende do
“hoje”, pois o ladrão pediu que Jesus lembrasse dele no futuro, e Jesus disse
que não seria preciso esperar. Outra passagem clara, nesse sentido, é a da
transfiguração, em que Moisés e Elias foram vistos conversando com Jesus
(Mt 17.1-8). Eles não estavam dormindo. Paulo também dizia que o cristão,
depois da morte, estaria imediatamente na presença do Senhor (Fp 1.21-
23). Ele disse que, ao deixar o corpo, o crente passa a habitar com o Senhor
(2Co 5.6-8). E ele sabia do que estava falando, pois esteve pessoalmente no
paraíso (2Co 12.4). Há mais duas passagens da Escritura que demonstram
claramente que a alma do salvo está no céu e num estado de consciência
diante de Deus. A primeira é Apocalipse 6.9-11:

Quando ele abriu o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas daqueles que
tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemu­
nho que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: Até quando, ó
Soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso san­
gue dos que habitam sobre a terra? Então, a cada um deles foi dada uma
vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo,
até que também se completasse o número dos seus conservos e seus ir­
mãos que iam ser mortos como igualmente eles foram.

A segunda é Apocalipse 7.14,15: “Ele, então, me disse: São estes os que


vêm da grande tribulação, lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue
222 Razão da esperança

do Cordeiro, razão por que se acham diante do trono de Deus e o servem


de dia e de noite no seu santuário; e aquele que se assenta no trono estende­
rá sobre eles o seu tabernáculo”. João viu as almas dos crentes mortos no
céu. Elas estão lá conscientes, descansando e esperando o último dia. Dian­
te disso, não faz sentido pensar que estivessem dormindo na sepultura.

A Bíblia aprova o espiritism o?


Resta ainda considerar se os mortos podem ser invocados. Como já
dissemos, na parábola do Rico e de Lázaro Jesus deixou claro que eles não
podem voltar. A doutrina do estado intermediário é uma das que mais se
opõem ao Espiritismo. O Espiritismo, que é uma das religiões que mais
crescem no Brasil e no mundo, se baseia na comunicação entre os mortos e
os vivos, geralmente pela intermediação de um médium (pessoa com o
“dom” de invocar os mortos). O Espiritismo está intimamente ligado à
adivinhação, quiromancia, astrologia, etc. O médium mais famoso do Bra­
sil, Chico Xavier, que morreu há algum tempo, já estaria se comunicando
com os seus discípulos. Muitos espíritas dizem encontrarem base na Bíblia
para as suas práticas. A Bíblia, porém, ensina claramente que as almas dos
mortos geralmente não têm autorização para voltar. Jó disse: “Antes que eu
vá para o lugar de que não voltarei, para a terra das trevas e da sombra da
morte” (Jó 10.21; ver 7.9,10). Davi disse com respeito ao seu filho morto
que a criança não voltaria: “Porém, agora que é morta, por que jejuaria eu?
Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim”
(2Sm 12.23). Além do fato de que os mortos não podem voltar, a Bíblia
ensina expressamente que é proibido tentar se comunicar com as almas.
Deus disse para Israel:

Quando entrares na terra que o S e n h o r , teu Deus, te der, não aprenderás a


fazer conforme as abominações daqueles povos. Não se achará entre ti
quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem
prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem
necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele
que faz tal coisa é abominação ao S e n h o r ; e por estas abominações o S e­
n h o r , teu Deus, os lança de diante de ti (Dt 18.9-12).

E impossível não observar, na passagem acima, o repúdio divino ao ato


de consultar os mortos. Ele disse que isso era uma coisa abominável. O
profeta Isaías também disse: “Quando vos disserem: Consultai os
0 lugar dos mortos 223

necromantes e os adivinhos, que chilreiam e murmuram, acaso, não consul­


tará o povo ao seu Deus? A favor dos vivos se consultarão os mortos? A lei
e ao testemunho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a alva” (Is
8.19,20). Portanto, a comunicação com os mortos é expressamente proibi­
da, e não há a mínima possibilidade de que alguém que conhece realmente
a Bíblia encontre elementos para defender essa prática.
Apesar de a Bíblia dizer que os mortos não podem voltar e que os
vivos não devem tentar consultá-los, há muitas experiências nos centros
espíritas que parecem comprovar a consulta aos mortos. Às vezes, segre­
dos são revelados, a voz do morto é imitada, e até o cheiro. Como expli­
car essas coisas? Nos casos em que tudo não passa de encenação (na
maioria é), segundo a Bíblia, isso pode acontecer pela atuação de espíritos
malignos. Paulo diz que o maligno faz coisas impressionantes para enga­
nar as pessoas: “Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de
Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com todo
engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram o amor da
verdade para serem salvos. E por este motivo, pois, que Deus lhes manda
a operação do erro, para darem crédito à mentira” (2Ts 2.9-11), O diabo
prende as pessoas na ignorância, e para isso pode utilizar sinais que im­
pressionem as pessoas, Espíritos malignos atuavam enganando no Anti­
go Testamento, tanto o rei Saul (ISm 16.14; 18.10), como o rei Acabe
(lR s 22.21-23). Por que não fariam isso hoje? Eles têm todo o interesse
em prender as pessoas nessas práticas, porque sabem que são coisas abo­
mináveis diante do Senhor.
Uma das passagens que sugerem que a consulta aos mortos é possível
está em 1Samuel 28.3-25, Esse texto decreve a ocasião em que Saul consul­
tou a médium de En-dor. Nesse episódio, o rei Saul, que já não obtinha
nenhuma resposta do Senhor devido ao seu próprio pecado, resolveu con­
sultar uma médium para tentar falar com Samuel, o profeta que já estava
morto. Ao consultar a médium, a passagem diz que Samuel falou com Saul.
Como explicar isso? A primeira possibilidade é que algum espírito maligno
tenha se feito passar por Samuel. Isso é possível porque Saul não viu Sa­
muel, mas confiou na descrição da médium (ISm 28.14), E, além disso, a
profecia de Samuel aparentemente não se consumou plenamente (ISm
28.19). Essa com certeza é a melhor posição, pois elimina muitas dificulda­
des adicionais. Porém, ainda que Samuel tenha realmente aparecido
ali,3algumas coisas na passagem são bastante sugestivas, e de qualquer modo,
não aprovam o Espiritismo. O que aconteceu aquele dia em Em-dor não se
parece com o que acontece numa seção espírita. A feiticeira não entrou em
224 Razão da esperança

transe, pelo contrário, ela mesma se assustou quando viu Samuel. Parece
que nem ela estava acreditando no que estava vendo. E possível, embora
não muito provável, que Deus tenha trazido o espírito de Samuel para con­
denar o rei Saul (ver Mt 17.1-8: nessa passagem, Moisés e Elias voltaram
para conversar com Jesus), porém, mais tarde Deus deixou bem claro que o
fato de ele ter consultado a feiticeira foi uma das causas de sua própria
morte. Assim está escrito em lCrônicas 10.13,14: “Assim, morreu Saul por
causa da sua transgressão cometida contra o S e n h o r , por causa da palavra
do S e n h o r , que ele não guardara; e também porque interrogara e consulta­
ra uma necromante e não ao S e n h o r , que, por isso, o matou e transferiu o
reino a Davi, filho de Jessé”. Portanto, essa passagem, ao contrário de dar
suporte à doutrina espírita, na verdade, a condena. Quem consulta os mor­
tos terá que sofrer a ira de Deus.

Por que estado "interm ediário"?


As almas dos que já morreram estão no céu ou no inferno, e estão lá
conscientes. Um dado interessante quanto a isso é que elas estão nesses
dois lugares temporariamente. O estado em que estão as almas depois da
morte, seja o céu ou o inferno, é chamado de intermediário porque não
corresponde ao local definitivo no qual, tanto os salvos quanto os conde­
nados, habitarão eternamente. As almas dos salvos no céu e as almas dos
condenados no inferno aguardam pelo último dia, o dia da ressurreição.
Naquele dia, de acordo com a Bíblia, todos ressuscitarão. Daniel já dizia:
“Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida
eterna, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12.2; ver ICo 15.52;
lTs 4.16). Depois da ressurreição, os perdidos irão para o lago de fogo (Ap
20.15), e os salvos para o novo céu e a nova terra (Ap 21.1). O motivo é
simples: Deus não criou o ser humano para viver sem corpo. Atualmente,
tanto no céu como no inferno, as almas estão despidas de seus corpos; o
futuro lhes assegura que um dia elas se reunirão a eles. Para os salvos, isso é
um consolo; para os perdidos, um tormento a mais, pois o novo céu e a
nova terra serão melhores do que o céu atual, porém, por certo, o lago de
fogo será pior do que o inferno atual.
Para o crente, a doutrina bíblica do estado intermediário é uma grande
bênção. Ela nos assegura que o crente não precisará ficar dormindo, es­
perando pelo consolo. Ele não precisará esperar o dia em que o Senhor
voltar no seu reino para desfrutar de recompensas, pois já estará naquele
0 lugar dos mortos 225

mesmo dia no paraíso com o Senhor. Além disso, a doutrina do estado


intermediário assegura a justiça divina, pois ninguém terá mais vantagem
por ter mais dinheiro, como a doutrina do purgatório acarreta. Do mes­
mo modo, segundo a Bíblia, uma alma não precisa reencarnar centenas
de vezes até alcançar a perfeição.4 Isso é possível com uma única vida,
basta confiar de todo coração naquele que deu a vida dele para que fôsse­
mos aperfeiçoados.
Para o perdido, por outro lado, a doutrina do estado intermediário é a
certeza de que os seus pecados não passarão impunes. É a certeza de que a
justiça pode parecer demorada, mas não falhará. As pessoas que não que­
rem compromisso com Deus anelam que o túmulo seja o fim de tudo, mas
terão uma surpresa terrível quando perceberem que estavam enganadas. A
doutrina do estado intermediário demonstra que a salvação é possível ape­
nas nesta vida. Isso demonstra a importância central do evangelho, a neces­
sidade de conhecê-lo plenamente e proclamá-lo apaixonadamente. O E-
vangelho será o assunto principal dos próximos capítulos.
18

0 evento central da história

“Vindo, p o r ém , a p le n itu d e d o tem po, Deus en v iou seu Filho,


n a scid o de mulher, n a scido sob a lei, para resgatar os q ue e sta v a m s o b a lei,
a f i m d e q ue receb êssem os a a d o çã o de filh os" (Gl 4.4).

John Lennon teria dito certa vez: “o Cristianismo acabará. Ele desapa­
recerá. Eu não preciso argumentar sobre isso. Eu tenho certeza de que o
tempo provará que é verdade. Agora, nós somos mais populares do que
Jesus”. A expectativa de Lennon não se confirmou, afinal, apesar de toda a
certeza dele. A verdade é que ninguém na história da humanidade foi po­
pular e, ao mesmo tempo, tão impopular como Jesus Cristo. Ninguém cau­
sou tanto impacto sobre o mundo, Desde que o homem de Nazaré andou
pelas colinas áridas da Terra Santa, o mundo tem reverenciado os seus
ensinamentos e confessado o seu nome, ou, por outro lado, vituperado a
sua pessoa. A vinda de Cristo permanece até hoje como o maior aconteci­
mento que este planeta já viu, mas as opiniões a respeito dele são muito
divididas.
Mas afinal quem é Jesus Cristo? Não há como enumerar as respostas
possíveis para essa pergunta. Ela depende do número de pensamentos e
filosofias que existirem no mundo. Pode haver um “Cristo” para cada
tipo de pessoa. Se reuníssemos um grupo de pessoas numa sala e pedísse­
mos para que fizessem uma descrição de Cristo, mas que não fosse pare­
cida com aquela tradicional das pinturas, certamente apareceria um Cris­
to rico, outro pobre, outro mártir, outro oriental, outro negro, outro “sem-
terra”, outro homossexual, outro revolucionário, etc. Porém, qual é o Cristo
verdadeiro?
No século 19, a teologia liberal se lançou numa verdadeira odisséia para
“desenterrar” o Cristo verdadeiro. Foi a chamada “busca pelo Jesus históri­
co”. Aqueles teólogos entendiam que os evangelhos haviam distorcido e
“enfeitado” demais o personagem histórico de Jesus de Nazaré.1 Como
não estavam mais dispostos a crer na mensagem dos discípulos, eles se
228 Razão da esperança

lançaram a uma busca audaciosa por pistas extrabíblicas do “verdadeiro”


Jesus. Nem é preciso dizer que foi uma busca totalmente fracassada. Ao
final, nada se conseguiu de substancial e que pudesse ser considerado acima
de qualquer suspeita, ou mesmo útil para uma reconstrução histórica de
Jesus. Portanto, a Bíblia é o único lugar onde se pode encontrar o Jesus
verdadeiro. O Cristo verdadeiro é o que nasceu numa humilde manjedoura
e morreu numa cruz. Isso nos fala da sua humildade. Mas é também o
Cristo sem pecado original, que venceu a morte pela ressurreição e subiu à
destra de Deus. Isso nos fala de sua divindade e de sua glória. As várias
facetas de Cristo que as pessoas têm pintado podem ser inspiradoras para
as minorias que se sentem rejeitadas pela sociedade, mas não podem redimir
ninguém. O ser humano não precisa de um mero exemplo, pois já teve
demais, e não houve muita diferença. O ser humano precisa de um Salva­
dor. Redenção, somente o Cristo da Bíblia comprou para o seu povo. Por
isso, o Cristo da Bíblia é suficiente, e somente ele é o verdadeiro.
O apóstolo Paulo descreveu a vinda de Jesus da seguinte maneira: “Vin­
do, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que rece­
bêssemos a adoção de filhos” (G1 4.4,5). Muitas expressões usadas nessa
passagem nos ajudam a entender quem é Jesus e o que significa a sua vinda.

A plenitude dos tem pos


Os antigos contavam o tempo como um recipiente no qual gotejavam
os minutos, horas, dias, semanas, meses e anos. É possível que Paulo tenha
isso em mente e, de acordo com ele, quando esse recipiente se “encheu”,
Deus enviou o seu Filho. Deus esperou que o tempo do mundo (chronos) se
enchesse, todavia, ele não esperou que o último grão de areia caísse no
recipiente do tempo de braços cruzados. Ele agiu efetivamente a fim de
preparar o mundo para o nascimento do seu Filho. Ao contrário do que diz
Baillie, não foi o homem quem retardou a vinda de Cristo por seu
despreparo,2 mas Deus, que preparou o mundo, ao longo dos séculos, para
o nascimento de Jesus. A vinda dele não foi uma decisão tomada de última
hora, como se surpreendentemente o mundo ficasse pronto de uma hora
para outra. Deus preparou o mundo cuidadosamente, e assim os grãos de
areia do tempo foram se juntando, até que, no momento planejado, Deus
enviou o seu Filho. Não poderia ser diferente, a maior e mais definitiva
intervenção de Deus na história do mundo não poderia acontecer de qual­
0 evento central da história 229

quer maneira. No contexto da afirmação de Paulo aos Gálatas sobre a ple­


nitude do tempo, destaca-se o papel desempenhado pela lei do Antigo Tes­
tamento. Ela foi um instrumento divino para preparar o mundo para a
vinda de Jesus.

0 A nt igo Testamento

Segundo a Bíblia, Israel foi o povo que Deus escolheu da descendência


de Abraão, ao qual estabeleceu na terra de Canaã, revelando-lhe a sua ex­
pressa vontade e o culto verdadeiro. Ao contrário do resto do mundo, Is­
rael era monoteísta, pois cria num único e supremo Deus. Não há relatos
em nenhuma cultura do mundo antigo de algum povo com crença seme­
lhante. Por meio de Israel, Deus queria espalhar a idéia do monoteísmo até
aos confins da terra, e para isso concedeu a Israel uma perfeita revelação do
seu caráter e da sua vontade: a lei.
No século 6o antes de Cristo, o povo de Israel foi levado cativo para a
Babilônia. O cativeiro ajudou a curar a idolatria de Israel, e assim homens
como Daniel e Neemias, e mulheres como a rainha Ester, puderam teste­
munhar a príncipes e imperadores sobre o Deus de Israel, O povo de Israel
nunca voltou totalmente para a sua terra —apesar de o cativeiro ter cessado
depois de setenta anos - , mas espalhou-se entre as nações, porém sempre
guardando e honrando a sua religião e a sua lei, Quando Jesus chegou, os
judeus haviam dado uma importante colaboração para a sua missão em
grande parte do mundo. O mundo sabia que existia um povo que não ado­
rava os deuses, e que dizia existir somente um Deus. Durante o exílio, os
judeus desenvolveram as sinagogas que eram locais onde adoravam e apren­
diam a lei. A sinagoga desempenhou um papel importante para que a men­
sagem de Jesus fosse proclamada e ouvida. Jesus pregou nas sinagogas e os
apóstolos também as usaram amplamente. O mundo tinha consciência de
uma lei superior, a lei do Deus de Israel. Esta, sem dúvida, foi o principal
instrumento de preparo do mundo para a vinda de Jesus.
Jesus disse: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna,
e são elas mesmas que testificam de mim” (Jo 5.39). Nenhuma única vez o
nome de Jesus aparece no Antigo Testamento, mas toda a sua vida e o seu
ministério estão lá amplamente descritos mediante profecias e “tipos” de
Cristo, Chamamos de “tipos” de Cristo personagens ou objetos do Antigo
Testamento que, em suas qualidades inerentes, anunciaram a vida e a obra
de Jesus. Nos dias de hoje, muitos estudiosos não acreditam nesse relacio­
namento entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Eles pensam
230 Razão da esperança

que são coisas totalmente distintas e irreconciliáveis. É verdade que essa


posição não é nova, como diz Berkouwer, pois já vem desde os dias do
hereje Marcião, do século 2o, que desprezava o valor do Antigo Testamen­
to.3 Porém, o crente deve ver o Novo Testamento em relação ao Antigo
num relacionamento de promessa e cumprimento. Apesar do imenso cui­
dado que se deve ter para não alegotizar4 o Antigo Testamento, é necessá­
rio que vejamos nele as promessas a respeito de Jesus. Pois de fato, Jesus
compreendia o Antigo Testamento, não como uma obra reservada ao povo
judeu e alusivo só à historia de Israel, mas como um livro que, diretamente
diz respeito à sua pessoa e obra”.5
O Antigo Testamento revelou ao mundo a existência de um Deus supre­
mo e justo que estabeleceu uma lei santa. Essa lei apontava para Cristo, pois
demonstrava o padrão exigido por Deus (lei moral), e ao mesmo tempo, o
sistema de expiação por meio do que Deus demonstrava a sua misericórdia
(lei cerimonial). Portanto, a lei cumpriu o seu propósito de mostrar ao ho­
mem o seu estado de completa inaptidão para servir a Deus, e indicou o
modo de salvação pelo derramamento de sangue, conforme o sistema de
sacrifício vigente no templo demonstrava. Além disso, sabe-se que Israel
desejava ardentemente a vinda do Messias, pois Deus se incumbiu de deixar
pistas, por todo o Antigo Testamento, sobre a vinda de um escolhido que
libertaria o povo e o levaria a uma era de paz e prosperidade. Sem essa cren­
ça, a vinda de Jesus não teria exercido o mesmo impacto. O próprio Jesus
disse que a sua vinda tinha a ver com o cumprimento dessa lei (Mt 5.17).

A cultura gr ega

Olhando para o mundo daquela época, podemos ver outros modos pelos
quais, aparentemente, Deus preparou a vinda de Jesus. A cultura da época
era bastante propícia para a manifestação de Jesus. Depois da queda da Babi­
lônia, o império mundial seguinte foi o de Alexandre o Grande, que espa­
lhou a cultura grega levando ao mundo o interesse pela razão, pela medita­
ção e pela pesquisa. Os famosos filósofos da antiguidade eram, em sua maio­
ria, gregos. Quando Jesus nasceu, o mundo estava impregnado do tipo de
pensamento que deixava as pessoas curiosas por ouvir algo interessante e, ao
mesmo tempo, descontentes com a mitológica religião grega. Quando ouvia
sobre algo mais consistente, o mundo grego acolhia com interesse. Percebe­
mos isso pela maneira como as pessoas receberam Paulo em Atenas (ver At
17,16-21). A maior contribuição, porém, da cultura grega foi a sua própria
língua. No tempo de Jesus, o mundo falava praticamente uma só língua, a
0 evenlo ceniral da hislória 231

grega. Isso facilitou não só a pregação do evangelho de Jesus Cristo a todos


os povos por meio dos apóstolos, como contribuiu para que os ensinamen­
tos de Jesus e dos apóstolos fossem registrados numa língua que todos pu­
dessem ler. O Novo Testamento foi escrito integralmente em grego/’ Com
isso, a disseminação dos escritos neotestamentários foi impressionante.

A cultura r o m a n a

Embora o mundo adotasse a cultura grega, já há muito tempo a Grécia


não dominava o mundo. O grande império da época de Jesus e de pratica­
mente todo o desenvolvimento do Cristianismo foi o Romano. A organiza­
ção desse império foi inigualável no mundo antigo. Até hoje, a sua estrutura
política, social, civil e militar é referência. Essa organização política tam­
bém contribuiu bastante para a implantação do Cristianismo. As estradas
romanas cortavam todo o império, o que facilitava a locomoção. Havia
também muita segurança por causa da Pax Romana, que proibia todo tipo
de conflito dentro dos seus domínios. Isso ajudou a disseminação do evan­
gelho. Paulo, como cidadão romano, tinha acesso livre a praticamente to­
dos os lugares do império.
Portanto, a Plenitude dos Tempos se refere ao tempo em que Deus, em
sua soberania, terminou os preparativos para executar o plano da redenção.
Essas conjecuturas históricas nos ajudam a ver um aspecto da preparação
divina, porém, como diz Hendriksen, “só Deus sabe plenamente por que,
em seu inescrutável decreto, decidiu que nesse momento específico termi­
naria o longo período de tempo (chronos) em que chegam ao seu final todos
os eventos preparatórios”.7 No plano de Deus, nos dias de Herodes, o mun­
do estava pronto para a vinda do Filho. Por essa razão, os anos 1-30 foram
os mais plenos que já existiram. Nada do que aconteceu antes, mesmo quan­
do os grandes impérios surgiram e desapareceram, mudou a monotonia do
tempo quando os pequenos grãos de areia caíam um a um. Por isso, a vinda
do Filho de Deus tornou os anos 1 a 30, um tempo pleno, mais que cheio,
porque alimentaram de sentido toda a história da revelação antes e depois
deles e, assim, a História propriamente dita.8 O tempo que Jesus esteve aqui
foi a grande intervenção de Deus na História, foi a plenitude dos tempos,
pois de fato, “com plenitude do tempo não está se falando, apenas, da
maturação de uma determinada questão dentro da grande estrutura da his­
tória redentora, mas do cumprimento do tempo num sentido absoluto”.9
Esses dias tornam o resto da História cheia de sentido e expectativa. O antes
e o depois somente têm valor porque o evento Cristo aconteceu.
232 Razão da esperança

Deus enviou o seu filho


O título “Filho” está intimamente ligado ao conceito da divindade de
Jesus. Uma das coisas que a expressão “Deus enviou seu Filho” representa
é a própria preexistência do Filho. Isso tornava a criança nascida em Belém
diferente de todas as demais que já nasceram neste mundo. Todas as outras
não existiam antes de sua concepção, mas Jesus não começou a existir em
Belém. Seus dias são eternos, a sua vinda aqui foi tão-somente para cumprir
uma missão que o Pai lhe havia confiado anteriormente. Como diz Berkou-
wer, “longe de ser uma invenção teológica, a fé na preexistência de Cristo
aparece, através de todo NT, como condição decisiva no plano salvífico”.10
Pensar que o Logos pudesse ter passado a existir somente a partir da encar­
nação é minar o plano da redenção. Quem veio aqui foi o herdeiro do
universo; por essa razão, a morte do Filho de Deus é o maior crime da
humanidade. No entanto, paradoxalmente, essa morte foi o maior presente
de Deus para os seres humanos.

M u i l o m a i s do que u m h o m e m
No Novo Testamento, a divindade de Jesus está muito clara. O Novo
Testamento atribui a Jesus uma série de poderes que somente podem ser
atribuídos a Deus. O próprio Jesus usou, em relação a si mesmo, expres­
sões que são conotativamente divinas. Jesus disse aos Judeus: “Antes que
Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8.58). Claramente essa é uma referência à sua
eternidade, e somente Deus é eterno. A própria expressão “Eu Sou”, dessa
passagem, é um eco do que Deus disse a Moisés quando ele se revelou na
sarça ardente: “Eu sou o que sou” (Ex 3.14). Outra declaração surpreen­
dente de Jesus foi: “Assim como o Pai tem vida em si mesmo, também
concedeu ao Filho ter vida em si mesmo” (Jo 5.26). Ele está falando de uma
autonomia com relação à vida, e só Deus pode ter isso. Os homens depen­
dem totalmente de Deus para ter vida, pois eles não têm vida em si mes­
mos. Ao dizer que tinha vida em si mesmo, como Deus, Jesus se equiparou
a Deus. Jesus disse ainda: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”
(Mt 28.18), o que é uma referência clara à sua onipotência. O mesmo pode
ser dito de sua onipresença, pois ele disse: “Eis que estou convosco todos
os dias até à consumação do século” (Mt 28.20). Sua onisciência, por outro
lado, pode ser vista no fato de que ele conhecia os pensamentos dos seres
humanos (Mt 9.4; 12.25; 22.18; Lc 5.22; 6.8).
0 evenlo central da história 233

Somente Deus pode ser adorado. Pedro, Paulo e os anjos recusaram


adoração (At 10.25,26; 14.14,15; Ap 22.8,9), mas Jesus aceitou e até a incen­
tivou, como pode ser visto de suas próprias palavras: “Vós me chamais o
Mestre e o Senhor, e dizeis bem; porque eu o sou” (Jo 13.13; ver Mt 14.33;
Lc 5.8; 24,52; Jo 4.10; 20.27-29). Dele é dito em Hebreus 1.6: “E, novamen­
te, ao introduzir o Primogênito no mundo, diz: E todos os anjos de Deus o
adorem”. Aquele que deve ser adorado pelos anjos não pode ser um mero
homem. A Escritura diz que diante dele todo joelho se dobrará e toda
língua confessará que ele é o Senhor (Fp 2.10,11). Durante o seu ministério,
várias vezes as pessoas, e até os seus discípulos, tiveram atitudes de adora­
ção perante ele e não foram repreendidos (Mt 8.2; 9.18; 15.25; Mc 5.6; Jo
9.38). A passagem mais importante, nesse sentido, é João 20.28, onde Tomé
reconheceu a divindade de Jesus, chamando-o de “Deus meu”, A impor­
tância dessa passagem na estrutura no evangelho de João é muitas vezes
ignorada. R. M, Bowman percebeu claramente que: “O Evangelho segun­
do João começa (1.1) e termina (20.28, excetuando-se o cap. 21, que é um
tipo de epílogo) com a confissão de dois dos discípulos originais de Jesus
de que Jesus Cristo é Deus”,11 E, de fato, a primeira confissão, no primeiro
capítulo, é do discípulo que talvez tenha a fé mais firme no Cristo Deus
(João), enquanto a última, do capítulo 20, do discípulo mais fraco (Tomé).
Tomé adorou a Jesus e lhe chamou de “Senhor meu e Deus meu”. E o mais
impressionante é que Tomé não foi repreendido por Jesus pelo que ele
disse. Se Jesus tivesse considerado isso uma blasfêmia, certamente teria
corrigido o discípulo, assim como Pedro corrigiu Cornélio quando este o
quis adorar (At 10.25,26), e o próprio João, escritor do livro, foi corrigido
pelo anjo quando quis adorá-lo (Ap 22.8,9). Jesus repreendeu Tomé apenas
pela sua incredulidade, mas não por adorá-lo e chamá-lo de Deus.
Somente Deus pode perdoar pecados, e Jesus perdoou pecados, como
no caso do paralítico que foi descido pelo telhado diante dele. Marcos relata:
“Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus pecados estão per­
doados” (Mc 2,5). O mesmo ele fez com a mulher pecadora que lhe ungiu os
pés: “Então disse à mulher: Perdoados são os teus pecados” (Lc 7.48). Aquele
que perdoou pecados, que recebeu adoração, que demonstrou consciência
de atributos divinos, com certeza, era muito mais do que um homem.

R eco nh ecido c o m o "Deus"


O Novo Testamento claramente chama Jesus de Deus (theos). Em João
1.1,2, 18, Jesus é chamado de o Verbo de Deus. Esses versículos dizem que
234 Razão da esperança

Jesus era o Verbo (Lagos) que desde o princípio estava com Deus e era Deus.
A tradução “Novo Mundo” das Testemunhas de Jeová fez uma pequena
modificação na passagem, que causa uma grande falha de tradução, afirman­
do que a palavra theos, no versículo primeiro que é aplicada a Jesus, está sem o
artigo definido e que, portanto, pode e deve ser lida como “um deus”. Desse
modo, os Testemunhas de Jeová referem-se a Jesus como um deus menor do
que o Deus Supremo. Essa argumentação cria muitos problemas, pois há
passagens na Escritura em que theos é aplicado ao “Deus Supremo” sem o
artigo definido, como por exemplo, Lucas 20.38: “Ora, Deus não é Deus de
mortos, e sim de vivos; porque para ele todos vivem” (ver também Mc 12.27;
Jo 8.54; Fp 2.13; Hb 11.16). Também há muitas outras passagens na Escritura
em que theos aparece, no mesmo contexto, tanto com o artigo como sem ele,
mas referindo-se ao mesmo Deus (Jo 3.2; Rm 1.21; lTs 1.9; IPe 4.10-11).
Em Romanos 9.5, Jesus é chamado de “Deus bendito para todo o
sempre”. Paulo está dizendo que, embora Cristo descenda humanamente
do povo judeu, e, portanto é um judeu, ele é também muito mais do que
um judeu. Ainda que tenha uma natureza humana, ele também tem uma
natureza divina. Ele é Deus.12 Em Tito 2.13, a tradução mais comum do
versículo é: “Aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória
do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus”. Claramente, a passagem
chama Jesus de “grande Deus”. Apesar de que alguns têm tentado tradu­
zir o texto como “do nosso grande Deus e do Salvador Cristo Jesus”,
tentando fazer uma distinção, isso não faz sentido, pois a partícula “do”
não se encontra no original, e há apenas um artigo indicando uma única
pessoa. Ainda podemos acrescentar que a manifestação esperada é a Se­
gunda Vinda de Jesus e não do Deus Pai. Em Hebreus 1.8-12, o Pai fala
com o Filho e lhe chama de “Deus”. Todo o início desse capítulo descre­
ve Jesus como “Criador, Sustentador, Dono e Salvador, a quem é atribu­
ída adoração pelos habitantes do céu”.13 Esses atributos somente podem
ser de Deus, e, portanto, aqui está mais uma prova da divindade de Jesus.
O mesmo pode ser visto em 2 Pedro 1.1, que deve ser traduzido por:
“Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco obtive­
ram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus
Cristo”. E, em 1 João 5.20, embora os unitaristas tentem diminuir o im­
pacto dessa passagem que chama Jesus de “o verdadeiro Deus e a vida
eterna”, afirmando que essa frase não pode se referir a Jesus, mas ao Pai,
permanece a evidência gramatical e contextuai de que Jesus é o sujeito
dessas declarações. Não há base para negar, o Novo Testamento catego­
ricamente afirma a divindade de Jesus.
0 evento central da história 235

A divindade de Jesus é um conceito necessário para a redenção. Nin­


guém menos do que o Filho poderia vir para resgatar o homem. Berkhof
lista três razões pelas quais o Messias precisava ser divino: “Era necessário
que (1) ele pudesse apresentar um sacrifício de valor infinito e prestar per­
feita obediência à lei de Deus; (2) ele pudesse sofrer a ira de Deus redento­
ramente, isto é, para livrar outros da maldição da lei; e (3) ele pudesse apli­
car os frutos da Sua obra consumada aos que o aceitassem pela fé”.14 Sua
divindade, além de evidente no Novo Testamento, é absolutamente neces­
sária para a redenção.

Nascido de m u lh er
Se Jesus é o Filho, o que aponta para a sua divindade, por outro lado
Paulo diz que ele nasceu de mulher, o que enfatiza a sua humanidade. Não
só Jesus veio ao mundo realizar a missão de salvar o homem, como a de
tornar-se ele próprio um homem. Também isso estava no plano de Deus.
Paulo aponta para isso com a expressão “nascido da mulher”. A expressão,
por sua vez, nos conduz ao maior mistério desta vida. Por séculos os teólo­
gos têm debatido acerca do mistério cristológico e não têm entendido sufi­
cientemente a essência desse Deus que se fez homem. Esta, porém, é a
essência do Cristianismo: Deus adentrou ao tempo e se fez um de nós. Ao
vir para este mundo, Jesus entrou pela porta comum pela qual todos en­
tram, nascendo de mulher. O autor do quarto evangelho diz: “O verbo se
fez carne” (Jo 1.14). Tudo isso nos aponta para a real e específica encarna­
ção de Cristo, que é o maior de todos os mistérios da teologia e da própria
História. Ele não apenas parecia um homem, ele foi um homem em todos
os sentidos. Não poderia ser diferente, pois se ele veio salvar os homens,
precisava ser também um homem, pois se somente Deus poderia oferecer
um sacrifício de valor infinito, somente um homem poderia pagar como
homem. O adentrar do divino na esfera do humano nos fala da junção do
eterno com o temporal, do especial com o comum. Na plenitude dos tem­
pos, Deus enviou o seu Filho, e ele nasceu de mulher.

N as cim en to virginal

Desde o início, a igreja sustentou que Jesus havia nascido sem a coopera­
ção do homem. Recentemente essa doutrina tem sido atacada, não por falta
de base bíblica, mas porque contraria os princípios modernos e anti-sobre-
236 Razão da esperança

naturalistas da ciência e da filosofia. A Bíblia afirma explicitamente que Maria


era virgem quando Jesus foi concebido: “Ora, o nascimento de Jesus Cristo
foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com José, sem que tivessem
antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito Santo” (Mt 1.18). José, o
esposo prometido, ao tomar conhecimento da gravidez quis abandoná-la,
mas foi aconselhado pelo anjo a não fazer isso. O anjo lhe disse: “José, filho
de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é
do Espírito Santo” (Mt 1.20). E confirmou: “Ora, tudo isto aconteceu para
que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta: Eis
que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome
de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)” (Mt 1.22,23). Um dos motivos
do nascimento virginal de Cristo, segundo o anjo, era justamente para cum­
prir a profecia de Isaías. Desde aquele momento, José acolheu Maria, porém,
não teve relações sexuais com ela até que Jesus nascesse (Mt 1.25). Lucas
acrescenta alguns detalhes importantes à narrativa do nascimento virginal.
Ele diz que quando o anjo Grabriel anunciou a Maria que ela seria a mãe do
Messias, Maria questionou: “Como será isto, pois não tenho relação com
homem algum?” (Lc 1.34). A resposta do anjo foi: “Descerá sobre ti o Espí­
rito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso,
também o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (Lc
1.35). A descida do Espírito Santo sobre Maria, fazendo o poder do Altíssi­
mo envolvê-la, se parece muito com a descrição do primeiro ato criador de
Deus em Gênesis 1.1,2, quando o Espírito de Deus “pairava” sobre as águas.
Deus usou o mesmo poder diretamente sobre Maria, e isso fez de Jesus um
“ente santo”, ou seja, alguém sem pecado. O nascimento de Jesus foi um ato
criador direto de Deus, o que fazia do Jesus homem, um ser especial.15
A grande conseqüência de Jesus ter sido concebido pelo Espírito Santo,
no ventre da virgem Maria, é que ele não herdou o pecado original. Não é
o fato em si de que Maria era virgem que o livra do pecado original, pois o
sexo não é o originador desse pecado. O que garante a impecabilidade ori­
ginal de Cristo é a concepção pelo Espírito Santo. Não sendo um filho de
Adão, Jesus não estava incluído na aliança das obras e, portanto, não foi
atingido pela disseminação do pecado.

 h u m a n i d a d e de Je su s
Hoje, poucos discutem a humanidade de Jesus, pois é a sua divindade que
é posta em xeque. Na verdade, há até mesmo uma ênfase exagerada na sua
humanidade, uma tentativa de torná-lo um homem comum, com vitórias e
0 evento central da história 237

fracassos, erros e acertos. Querem fazê-lo um homem como outro qualquer,


que se diferenciava apenas pela consciência esclarecida, desejo de liberdade
e de justiça. Berkouwer observa, nessa ênfase humanística, uma tentativa de
elevar o ego do ser humano. Ele diz: “Porventura não há um motivo
humanístico secreto, o desejo de fazer surgir a salvação da própria natureza
humana?”115 A consideração da humanidade de Jesus não deve seguir qual­
quer outra influência senão a da sinceridade em relação à Escritura. Pois, se
a Escritura atesta a divindade de Jesus, não é diferente em relação a sua
humanidade. O Verbo (Lagos), que João disse existir desde o princípio, num
dado momento da História, na plenitude, veio aqui fazer sua habitação. João
diz: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,
e vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai” (Jo 1.14).
O homem Jesus não foi constituído de uma nova natureza humana, ele
herdou a natureza humana completa de sua mãe, por isso a Bíblia diz que
ele é “nascido de mulher” (G1 4.4). Mateus começa o seu evangelho com a
seguinte declaração: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi,
filho de Abraão” (Mt 1.1). Ele não poderia ser descendente de Davi e de
Abraão se tivesse recebido uma natureza inteiramente nova. Ele possuía a
natureza humana normal e comum, exceto pela diferença de ter sido con­
cebido sem pecado, e de ser igualmente Deus.
Jesus sentia sede, fome, cansaço, tristeza, e muitos outros tipos de senti­
mentos, necessidades e limitações que são próprios de um homem. E ver­
dade que ele possuía o poder de fazer o que quisesse conforme sua divinda­
de lhe conferia, mas isso não anulava as suas condições humanas. Após os
quarenta dias de jejum no deserto, a Bíblia simplesmente diz que Jesus teve
fome (Mt 4.2). Durante a sua viagem pela Galiléia, João o descreve como
um viajante cansado que se aproxima de um poço com sede (Jo 4.6-8). Em
outra ocasião, o vemos profundamente adormecido na popa da embarca­
ção durante uma tempestade no mar, o que certamente denotava esgota­
mento físico (Mc 4.36-41). A maior prova de suas limitações humanas, e
que comprovam a sua humanidade, foi a sua própria morte. Ele realmente
morreu, tendo padecido dores e privações humanas antes e durante a cru­
cificação (Mt 26.38; Jo 19.28).

Nascido sob a lei


Podemos dizer que Jesus veio a este mundo por causa da lei. A lei con­
dena o pecador, e Jesus veio para salvar o pecador. Para isso, era necessário
238 Razão da esperança

que ele observasse todos os mandamentos e vivesse em absoluta santidade.


Só então poderia oferecer a sua vida como um sacrifício no lugar dos trans­
gressores da lei.

0 c u m p r i m e n t o da lei
Jesus deixou bem claro que não estava revogando a lei e nem mesmo
modificando-a com a sua vinda. Suas palavras foram inequívocas: “Não
penseis que vim revogar a lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim
para cumprir” (Mt 5.17). A pregação e o ministério de Jesus sempre esti­
veram em total acordo com os preceitos da lei e dos profetas. Jesus não
era um revolucionário como muitos imaginavam, pelo menos não nesse
sentido. A lei tinha destaque e função especial no seu ministério. Isso não
quer dizer que Jesus pensasse, como os fariseus, que a rígida observância
da lei era o único modo de salvação existente. Jesus sabia muito bem que
os homens não conseguem cumprir integralmente essa lei, e sabia tam­
bém que o próprio Deus havia estabelecido desde o início um sistema de
sacrifícios, que fazia propiciação pelos pecados cometidos. Ele tanto sa­
bia disso que seria o próprio sacrifício que consumaria todo aquele siste­
ma (Jo 1.29). É nesse sentido, inclusive, que devemos entender a expres­
são: “Não vim para revogar, vim para cumprir”. Ele veio cumprir a lei
tanto ativa quanto passivamente. Ativa no sentido de que obedeceu a
todos e a cada um de seus mandamentos, estatutos e princípios. Passiva
no sentido de que preencheu a exigência penal da lei ao ser executado
como um malfeitor no lugar dos homens. Por isso, ele disse que nem um
“i” ou um “til” passaria até que tudo fosse cumprido. Se o amor de Deus
foi o motivo maior pelo qual Jesus foi enviado ao mundo (Jo 3.16), no
mesmo nível está o zelo pela lei.

A tentação de Je su s
A divindade de Jesus não tornou fácil a tarefa de cumprir a lei, nem
anulou toda possibilidade de tentação. O autor aos Hebreus diz: “Porque
não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fra­
quezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas
sem pecado” (Hb 4.15). Essa passagem diz que Jesus foi tentado “em todas
as coisas, à nossa semelhança”, ou seja, ele foi submetido a todo tipo de
testes nesta vida, do mesmo modo que qualquer ser humano. Isso era abso­
lutamente necessário a fim de que cumprisse sua missão, que não era ape­
0 evento central da história 239

nas a de sofrer no lugar dos homens, mas também de obedecer no lugar


deles. A Bíblia chamajesus de o “segundo Adão” (ICo 15.22,45). A grande
característica do primeiro Adão era representar a humanidade no teste que
enfrentou, e do qual saiu reprovado e, conjuntamente, toda a humanidade.
O segundo Adão também foi submetido a teste, porém saiu-se vencedor, e
assim concede sua vitória a todo o seu povo.
Questiona-se se a tentação de Jesus teria sido mesmo real. Muitos teólo­
gos defendem ardorosamente que Jesus não tinha a menor possibilidade de
pecar, e que, por conseguinte, sua tentação não podia ser real. Se essa posi­
ção estiver correta, teríamos que dizer que a tentação de Cristo não passou
de uma encenação. Alguns defendem a idéia de que a humanidade de Cristo
podia pecar ou não pecar, mas como ela está ligada à divindade de Cristo
que não pode pecar, então, Jesus não pecaria. Sproul se inclina a favor da
possibilidade humana de Cristo pecar. Ele diz: “A tentação de Cristo não
foi uma peça de final previsto, uma imitação vazia. Toda a fo rça do inferno
estava mobilizada contra a natureza humana de Jesus. Em sua natureza
humana, ele sofreu sob o peso da fome, da solidão, e todos os outros peri­
gos do deserto”.17 A declaração é interessante, mas isso quer dizer que
havia alguma chance de o propósito de Deus ir por água abaixo? Talvez,
devêssemos dizer o seguinte: Cristo tinha e não tinha a possibilidade de
pecar em sua pessoa integral.18 Ele tinha a possibilidade porque era huma­
no, e foi submetido a um teste real, e não a uma encenação. Mas Cristo não
pecaria, e isso por três razões: 1) Não tinha uma natureza inclinada para o
pecado. 2) O Espírito Santo o capacitava a não pecar. 3) Não estava no
plano de Deus que ele pecasse. Este último ponto é, sem dúvida, decisivo,
como nos lembra Berkouwer:

Não podia ser de outro modo, não havia outro caminho para evitar a pai­
xão. Mistério dc santidade e dc misericórdia! Cristo não podia cair na tenta­
ção, nem de fato caiu: não por ter-lhe faltado liberdade, mas precisamente
por causa de sua liberdade, que era uma liberdade para as coisas de Deus, para
os planos Divinos dc salvação e libertação dos homens.19

Para resgatar e adotar


Paulo disse que Jesus veio ao mundo porque foi enviado. Isso significa
que ele veio com uma missão, A missão de Jesus é resolver o estado caótico
em que se encontra o mundo. Com a queda e a entrada do pecado, o mundo

\
240 Razão da esperança

se tornou “território” usurpado por Satanás.20 O homem corrompido pelo


pecado, destituído de qualquer capacidade de mudar a sua situação, marcha
para a autodestruição numa vida de completa alienação de Deus. A vinda de
Jesus é a grande intervenção de Deus na História, para recuperar o território
perdido, para reconduzir o mundo ao propósito de Deus. Com isso não se
pretende dizer que, até a vinda de Jesus, Deus ficou sem testemunho ou ação
no mundo. Todas as profecias, tipos e manifestações de Deus ainda no Antigo
Testamento, já apontavam para a vinda de seu Filho, coisa essa que nem sem­
pre os estudiosos da lei conseguiam identificar. A vinda de Jesus é a concreti­
zação do plano divino estabelecido desde a fundação do mundo, assegurado
ainda no Éden (Gn 3.15) e manifestado em Belém da Judéia no tempo do
Imperador César Augusto. O fato de o Pai ter enviado o seu Filho é o desfecho
da história da graça, é o supremo ato de misericórdia, é a manifestação mais
abundante de amor pela sua criação (Jo 3,16), e pelo seu povo (Rm 5.8).
De acordo com Paulo, a grande missão do Filho que veio na Plenitude
dos tempos foi “resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêsse­
mos a adoção de filhos” (G1 4.5). Ele expressa o benefício concedido de
uma maneira negativa: “resgate”, e outra positiva: “adoção”. O resgate da
lei tinha a ver com o assumir a maldição do ser humano (Gn 3.17). Como o
próprio Paulo diz: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele
próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: maldito todo aquele
que for pendurado em madeiro” (G1 3.13). Ao mesmo tempo em que fo­
mos livrados da escravidão por esse ato de Cristo, também fomos elevados
à categoria de filhos por adoção. Tanto o resgate de escravos como a ado­
ção de filhos são aspectos legais comuns no tempo do apóstolo Paulo. O
que a adoção sugere é a maioridade do cristão, que em Jesus deixa de ser
escravo dos rudimentos do mundo, e passa a desfrutar da verdadeira liber­
dade de filho, com todos os seus direitos.
Ao enviar Jesus ao mundo, Deus não só resgatou o homem da escravi­
dão da lei e do mundo e o elevou a categoria de filho, como deu plena
garantia disso com o envio do Espírito Santo. Paulo diz: “E, porque vós
sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que
clama: Aba, Pai! De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo
filho, também herdeiro por Deus” (G1 4.6.7). A certidão de nascimento
do filho de Deus é o Espírito Santo que habita no seu interior e que
clama: “Aba, Pai”. Esta é uma expressão íntima de um filho para seu pai.
O Espírito Santo, também chamado por Paulo de “penhor da nossa he­
rança” (Ef 1.14), é a garantia de que somos herdeiros de Deus e que
certamente receberemos a herança. Portanto, Jesus é o Filho de Deus,
0 evento central da história 241

que nasceu de mulher, cumpriu a lei, e resgatou o seu povo. Esse é o


verdadeiro Jesus histórico.

Conclusão: o m ilagre do en tendim en to


O impacto histórico de Cristo é inigualável. Toda uma civilização foi
construída sobre as bases do Cristianismo. O mundo tem uma dívida
impagável para com o homem de Nazaré mais do que com qualquer líder
religioso. Muitos líderes já passaram por este mundo, como Buda, Maomé,
Confúcio, mas nenhum deles causou tanto impacto na História quanto Je­
sus. Além disso, dá para imaginar um Budismo sem Buda e até um Islamismo
sem Maomé, e muitas outras religiões também passariam muito bem sem
os seus fundadores, pois não dependem deles, e sim dos ensinos deles.
Qualquer um poderia ser o fundador do Budismo ou do Islamismo, basta­
ria ensinar certas doutrinas, mas o Cristianismo não existe sem Jesus. Jesus
é o Cristianismo; como diz Bavinck:

Ele não foi o fundador do Cristianismo em um sentido usual, ele é o Cristo,


o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora
expande-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio Cristianismo. Ele não
está fora, ele está dentro do Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra,
não há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não c aquele que aponta o
caminho para o Cristianismo, ele mesmo é o caminho.21

As vezes, as pessoas se dizem cristãs porque fazem certas obras ou têm


certos comportamentos tipicamente cristãos, mas isso é um equívoco. Nin­
guém é cristão simplesmente por algo que faz ou deixa de fazer, e sim por
sua postura em relação a Jesus. Não somos salvos pelos ensinos de Jesus;
somos salvos por Jesus. De certo modo, ele nunca pretendeu fundar real­
mente uma religião, a não ser que entendamos que esta religião é ele próprio.
Por causa de sua singularidade, Jesus é o personagem mais debatido em
toda a história do mundo. Ninguém é como ele, amado ou odiado, adorado
ou profanado. Uma coisa é certa, ele mexe com todos. Há desde aqueles
que lutam para transformá-lo num simples mito da fé, como os que dese­
jam encontrar suas raízes históricas para provar apenas sua historicidade
como um homem comum. Da mesma maneira, há aqueles que desejam
demonstrar que ele não passa de uma grande fraude. No Brasil, algumas
revistas, supostamente científicas, têm atacado seriamente a credibilidade
242 Razão da esperança

do registro bíblico sobre Jesus. Porém, têm feito isso sempre de maneira
irresponsável, sem provas e com teorias bastante especulativas e superadas,
à base do sensacionalismo. O que permanece é que todos se importam com
ele. O curioso é que, enquanto os mais eruditos e capacitados pesquisado­
res se calam ou falam demais perante o mistério de sua pessoa, pessoas
simples têm a coragem de dizer: Eu o conheço, ele é o Filho de Deus, o
meu Salvador. Até aos dias de hoje o problema ainda é o mesmo que Jesus
já enfrentou em seus dias, quando questionou os seus discípulos sobre a
opinião do povo e deles próprios sobre a sua pessoa. Ele lhes perguntou:
“Quem dizeis que eu sou?” (Mt 16.15). Mateus relata o que os discípulos
responderam: “Uns dizem: João Batista; outros; Elias; e outros: Jeremias,
ou algum dos profetas” (Mt 16.14). A dúvida sempre pairou sobre a verda­
deira identidade do homem de N azaré. Os m esm os conceitos
desencontrados vistos no seu tempo podem ser vistos hoje, nas mais diver­
sas áreas da teologia, das ciências naturais ou dos conceitos populares. Con­
tudo, na passagem de Mateus, o verdadeiro interesse de Jesus não é pela
opinião do povo, mas pela opinião do seu povo. O máximo que lhe interessa
a opinião dos outros é naquela forma que fazia seus discípulos pensarem
sobre o assunto. A pergunta que realmente importa é: “Mas vós, quem
dizeis que eu sou?” (Mt 16.15). Nas palavras de Berkouwer,

Com essa pergunta Cristo não espera ouvir, ao lado dos múltiplos concei­
tos que correm a seu respeito, mais uma opinião à altura das demais; pre­
tende provocar uma decisão de outra índole, existencial, diretamente correlata
com a verdade vista em sua Pessoa; quer uma resposta que supere toda
consideração teórica, resposta real e única, conforme a realidade dele.22

A resposta de Pedro é a única digna de aprovação: “Tu és o Cristo o


Filho do Deus vivo” (Mt 16.16). Em seguida, Jesus revelou a verdadeira
origem dessa resposta: “Não foi carne ou sangue quem to revelaram, mas
meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17). Entender quem é Jesus não é coisa
que se consiga seguindo simplesmente pistas racionais. Entender Jesus é
um milagre concedido somente ao povo de Deus. E um dom de Deus, algo
como um ato de conceder visão ao cego. O mundo nunca entenderá real­
mente quem é Jesus, mas os seus discípulos sempre sabem, não por algo de
si mesmos, e sim por esse tremendo testemunho interior do Espírito Santo
que os leva a proclamar sem medo: Tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo,
ou simplesmente: Jesus, o meu salvador.
19

0 filho de M aria

A oração mais popular do catolicismo diz: “Santa Maria, Mãe de Deus,


rogai por nós, pecadores”. Muitos protestantes discordam desse título con­
cedido à Maria. Eles entendem que ela não pode ser a mãe de Deus, uma
vez que Deus existia antes dela. Para o catolicismo, pelo fato de Maria ter
dado à luz Jesus, e sendo Jesus Deus, então, ela é também a mãe de Deus.
Esta discussão dá origem à outra que diz respeito à pessoa de Jesus —sobre
o modo como se relacionam as duas naturezas (humana e divina) na pessoa
de Cristo. Só podemos responder à pergunta sobre se Deus tem mãe de­
pois de entendermos se Jesus é uma pessoa única, ou se há nele duas pes­
soas. Apesar de esse tema parecer “teológico” demais, e, talvez muitos o
considerem aparentemente sem muita importância, o fato é que as aparên­
cias enganam. Este é um dos temas mais importantes para a fé cristã. A
redenção só é possível porque na pessoa de Cristo há duas naturezas: a
humana e a divina. O sacrifício dele só tem valor porque ambos os aspectos
estão presentes. Jesus veio para transpor o abismo entre Deus e os homens.
Esse abismo foi transposto na sua próprioa pessoa, pois, mesmo que Jesus
fosse Deus e homem ao mesmo tempo, se as duas naturezas não fossem
unidas, então, “mesmo que diminuído, o abismo permanece”.1 E na abso­
luta união das naturezas na pessoa do Redentor que repousa a nossa confi­
ança de que Deus e o homem podem ter paz.

0 gra n d e mistério da teologia


Nenhum outro tema (exceto a Trindade) é tão complexo e extrapola tan­
to a capacidade da razão humana do que o que se refere à encarnação de
Cristo. De certo modo, isso é natural, afinal estamos tratando, como já disse­
mos, do acontecimento central e mais decisivo da história do mundo, a oca­
sião em que o Deus eterno adentrou o mundo dos homens, ou, nas palavras
de João, a ocasião em que “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Paulo reconhece
244 Razão da esperança

o mistério do acontecimento ao escrever: “Evidentemente, grande é o mis­


tério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em
espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo,
recebido na glória” (lTm 3.16). Essa passagem é considerada um fragmento
de algum hino primitivo, um tipo de credo ou confissão de fé dos primeiros
cristãos. Interessante é que Paulo usa a expressão “evidentemente”, que dá
uma idéia de “consentimento comum”,2 o que demonstra que havia um
reconhecimento entre os crentes de que eles estavam lidando com um mis­
tério, “o mistério da piedade”. A primeira declaração do mistério envolve
justamente a encarnação, ou “aquele que foi manifestado na carne”. As seis
declarações de Paulo no versículo demonstram um estilo de poesia muito
comum no mundo hebreu, o quiasmo.3 Podemos ver um contraste claro e
constante entre a sua humanidade e divindade a cada declaração. A primeira
declaração aponta para a terra: “manifestado na carne”. As duas seguintes
para o céu: “justificado em espírito” e “contemplado por anjos”. Em segui­
da, duas que apontam novamente para a terra: “pregado entre os gentios” e
“crido no mundo”. A última aponta novamente para o céu: “recebido na
glória”. Há claramente um jogo poético de palavras, e o objetivo é destacar a
divindade e a humanidade de Jesus numa íntima relação, sem perder a idéia
do mistério da encarnação. E justamente esse relacionamento entre o divino
e o humano em Jesus que compõe o mistério.
De certo modo, a teologia é uma ciência que se esforça por adentrar o
mistério. Porém, devemos sempre lembrar de nossas limitações, especial­
mente ao lidar com a grandeza daquele que é o próprio Deus. Por outro
lado, é muito importante que mantenhamos uma visão equilibrada ao tratar
do assunto, pois quando falamos de “mistério”, ou mesmo quando a Bíblia
o faz, a idéia não é colocar uma placa dizendo “Mantenha distância”. Ber-
kouwer é muito útil nesse ponto:

Quando a igreja proclama a santidade do mistério, ela declara a impossibili­


dade de elucidar o problema mediante o raciocínio e, ainda mais, ela con­
fessa que, mesmo nos pronunciamentos positivos dos concílios e dos cre­
dos, nunca pretendeu superar o mistério nem dar-lhe uma interpretação
racional. Todavia, refugiar-se por detrás do mistério não pode satisfazer;
fechar a porta ao raeionalismo não significa silenciar o que o próprio Deus
revelou, nem subestimar os dados escriturísticos relativos a Cristo, embora
sejam supra-racionais.4

Calvino compreendia bem essa tensão. Depois de advertir contra a vai­


dade especulativa nas coisas da fé e lembrar a limitação do nosso entendi­
0 filh o de M aria 245

mento, ele fala contra a preguiça de quem negligencia o que foi revelado.5 A
encarnação de Cristo é um grande mistério para todos nós, mas ela está
revelada na Bíblia, portanto é nossa obrigação e privilégio estudá-la.

0 credo de Calcedônia
Desde o início, a igreja se preocupou em tomar as decisões importantes
por meio de concílios. A origem dessa prática está descrita em Atos 15.6 Os
concílios eram convocados para solucionar problemas na igreja. O Concí­
lio de Calcedônia foi convocado para solucionar o impasse cristológico, ou
seja, a questão do entendimento a respeito das duas naturezas de Cristo.
Nesse concílio, em 451, foi formulada a principal declaração feita até hoje
sobre a pessoa de Cristo, Em geral, os estudiosos concordam que, de lá
para cá, pouca coisa foi acrescentada às definições desse concílio. Naquela
época, a igreja lutava com dois problemas internos: O “nestorianismo” e o
“eutiquianismo”. O primeiro era a concepção de que em Cristo havia duas
naturezas separadas, a divina e a humana. Assim, o Deus Cristo e o homem
Cristo eram aspectos separados em Jesus. Certas coisas ele experimentava
como homem e certas coisas como Deus. Já o “eutiquianismo” defendia o
“monofisismo”, ou seja, que Jesus tinha apenas uma natureza a partir da
mistura entre o homem e o Deus. Era como se, em Jesus, existisse uma
“terceira natureza”, diferente da humana e da divina, formada a partir da
mistura dessas duas. O credo formulado no Concílio de Calcedônia rejeita­
va ambas as posições:

Portanto, em harmonia com os santos pais, todos nós, unânimes, ensina­


mos que devemos confessar que nosso Senhor Jesus Cristo é o mesmo e
único Filho, o mesmo perfeito na Divindade e o mesmo perfeito na huma­
nidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, o mesmo com
uma alma racional e um corpo, consubstanciai ao Pai na Divindade e
consubstanciai a nós na humanidade, semelhante a nós em todas as eoisas,
exceto no pecado; gerado do Pai antes das eras quanto à Sua Divindade, e,
nos últimos dias, por causa de nós e de nossa salvação, o mesmo gerado da
Virgem Maria, a Mãe de Deus (theotoko) quanto à Sua humanidade; o mes­
mo e único Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, conhecido em duas naturezas
sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação, sendo a diferen­
ça das naturezas de modo algum anulada por eausa da união, mas sendo a
propriedade de cada natureza preservada e reunida em uma só pessoa e em
uma só subsistência, não separado ou dividido em duas pessoas, mas sendo
246 Razão da esperança

o mesmo e único Filho, Unigénito, Palavra divina, o Senhor Jesus Cristo,


conforme os profetas do passado e o próprio Jesus Cristo nos ensinaram a
respeito dEle e o credo de nossos Pais transmitiu.7

O credo confirma que Jesus é “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.


Também declara que ele tem “alma racional e corpo”. Quanto à sua pessoa,
é enfático em dizer que é “uma só pessoa”, porém “duas naturezas sem
confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação”. De acordo com o
credo, em Jesus não há duas pessoas, a humana e a divina, há uma só pes­
soa, mas há duas naturezas que, se por um lado não estão separadas, tam­
bém não estão misturadas.
A expressão mais polêmica do credo é a que chama Maria de “mãe de
Deus”. É uma expressão anterior ao credo, que Nestório, já vinha comba­
tendo numa série de sermões proferidos em 428.8 Essa fórmula seria usada
pouco depois pelo Concílio de Efeso (431), cunhada por Cirilo de Alexan­
dria. O Concílio de Efeso utilizou essa expressão não como uma atribuição
de majestade à Maria, mas como reconhecimento de que o que dela nasceu,
por obra do Espírito Santo, era o Filho de Deus, o Deus encarnado desde
a concepção. Nestório, por sua vez - fugindo do que considerava o extre­
mo oposto, que dizia ser Maria “mãe do homem” (anthropotokòf —entendia
que a expressão correta seria “mãe de Cristo” (Cristotoko), por considerar
distintas as qualidades da divindade e da humanidade. No entendimento
dos participantes desse Concílio (Calcedônia), pelo fato de que em Jesus
não há duas pessoas, mas uma só, Maria pode ser chamada de mãe de Deus.
Ela é a mãe da natureza humana de Jesus, que juntamente com a natureza
divina, compõe a Pessoa única e indivisível de Jesus Cristo. O Credo afir­
mou que Maria é a Mãe de Deus quanto à sua humanidade, portanto, o
Credo não entendeu que Maria tivesse alguma coisa a ver com a geração da
divindade de Jesus. Voltaremos a falar disso mais abaixo.
No século 19, uma nova heresia surgiu como uma tentativa de explicar a
encarnação. Foi a teoria da kenosis (do verbo kenoo: esvaziar). Usando como
base o texto de Filipenses 2.7, que diz que ele se esvaziou, argumenta-se
que ele se esvaziou de sua própria divindade. Ele teria deixado a divindade
no céu e se tornado um homem. Assim, ele não seria simultaneamente, mas
sucessivamente, Deus e homem. O problema dessa teoria é que ela descon­
sidera todos os elementos bíblicos que mostram a divindade e a humanida­
de presentes em Jesus. Nem mesmo a interpretação de Filipenses 2.7 está
correta, pois, nessa passagem, Paulo não diz que Jesus se esvaziou da sua
divindade, mas dos seus direitos como Deus.
0 filho de M aria 247

Base bíblica da unipersonalidade


Por mais que as decisões dos concílios sejam importantes, somente a Bí­
blia pode ser a palavra final a respeito de assuntos teológicos. Para ver a
maneira como a humanidade e a divindade de Jesus se relacionam, precisa­
mos recorrer à Bíblia. A primeira coisa que observamos é que a Bíblia não faz
distinções entre a humanidade e a divindade de Jesus. Para a Bíblia, há só uma
pessoa. Há muitas passagens que comprovam isso. Paulo, ao falar da promes­
sa de Deus com relação ao evangelho disse: “Com respeito a seu Filho, o
qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de
Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mor­
tos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1.3,4). Nessa passagem, Paulo
se refere a Jesus como o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, como o descen­
dente humano de Davi. Homem e Deus estão unidos na pessoa do Redentor.
O mesmo pode ser visto em Gálatas 4.4 que já abordamos anteriormente:
“Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei”. O Filho de Deus foi enviado e nasceu de mulher;
tanto a sua divindade quanto a sua humanidade fazem parte da pessoa única
de Jesus de Nazaré. Paulo diz que a nossa salvação foi possível porque Deus
enviou “o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa” (Rm 8.3).
E a mesma ênfase pode ser vista nas palavras de Paulo sobre a descendência
de Cristo em relação aos patriarcas: “Deles descende o Cristo, segundo a
carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém!” (Rm
9.5). Essa passagem fala da natureza humana e divina de Jesus como uma só
pessoa. Ele é, ao mesmo tempo, o eterno Filho e o homem que tem uma
descendência humana. Não há distinções. Um das passagens que deixam mais
explícita a idéia de que Jesus é visto como uma só pessoa é Hebreus 2.14:
“Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes
também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aque­
le que tem o poder da morte, a saber, o diabo”. Jesus, que é Deus, participou
da carne e do sangue como todos os demais homens, portanto, é inegável
que, ele é uma só pessoa, porém, tem duas naturezas, até porque essas passa­
gens demonstram que ele é Deus e também é homem.
Nas passagens a seguir, podemos observar uma aparente inversão de
atributos. As vezes, Jesus é tratado como homem, mas lhe são atribuídas
coisas da divindade e vice-versa. Isso nos mostra como a divindade e a
humanidade não são aspectos que devem ser vistos separadamente. Elas
estão unidas, formando uma única pessoa, mas não devemos pensar que
248 Razão da esperança

sejam misturadas. Há momentos que os atributos de uma natureza são


atribuídos a Jesus enquanto ele é tratado pelo nome da outra pessoa. Aos
presbíteros de Efeso, Paulo disse: “Atendei por vós e por todo o rebanho
sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a
Igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue”. (At 20.28).
Ele está falando de Jesus, e trata Jesus como Deus, mas diz que ele com­
prou a igreja com o seu sangue. O sangue que seria próprio do homem é
atribuído a Deus. Ele não está fazendo distinção na pessoa de Cristo, antes
a está considerando uma pessoa integral: humana e divina. Do mosmo
modo, ele se dirige os Coríntios: “Sabedoria essa que nenhum dos podero­
sos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam
crucificado o Senhor da glória” (ICo 2.8). Paulo pôde dizer que o Senhor
da glória foi crucificado porque o vê como uma única pessoa, embora
composta de duas naturezas. Por outro lado, às vezes o próprio Jesus, que
chamava a si mesmo de “Filho do homem”, demonstrava a sua divindade:
“Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o
Filho do homem [que está no ce'u]” (Jo 3.13; ênfase acrescentada). O título
Filho do homem enfatiza a sua humanidade,10 mas Jesus disse que o Filho
do homem havia descido do céu e, num certo sentido, ainda estava lá. O
mesmo pode ser visto em João 6.62: “Que será, pois, se virdes o Filho do
Homem subir para o lugar onde primeiro estava?” Como homem, poderí­
amos dizer que Jesus nunca esteve no céu, mas ele não é homem apenas, e
nem a sua humanidade deve ser considerada à parte da sua divindade. Ele
é uma pessoa integral, indivisível e unipessoal. A Bíblia não faz distinção
entre as naturezas de Cristo, elas não devem ser consideradas separada­
mente. Porém, por outro lado, também não devem ser misturadas.

Naturezas Inseparáveis
Em geral, ouvimos as pessoas dizerem que Jesus é cem por cento Deus
e cem por cento homem. Parece uma boa explicação a princípio, mas no
fundo, é um tanto quanto confusa, pois pode sugerir que ele é, ao mesmo
tempo, duas pessoas, o que não é verdadeiro, ou uma pessoa duzentos por
cento, o que soa estranho. Sempre que usamos analogias, corremos o risco
de esconder mais do que iluminar. Entendendo o risco, nos atrevemos
falar de duas analogias que podem lançar alguma luz sobre o tema. A pri­
meira é a da alma humana e a do corpo humano.11 No ser humano há duas
substâncias, a material e a espiritual, que estão unidas, mas não misturadas.
0 filho de M aria 249

O corpo influencia a alma e a alma influencia o corpo de uma maneira


ininteligível para nós. Tudo o que acontece, seja na alma ou no corpo, é
atribuído à pessoa como um todo. Se uma parte do corpo dói, eu digo que
eu estou com dor. Se tenho algum problema espiritual, eu estou com pro­
blema. Não digo que é uma parte separada do meu ser que está com pro­
blema. Essas coisas também podem ser atribuídas à pessoa de Cristo e ao
relacionamento entre as suas duas naturezas. A outra ilustração seria das
duas naturezas no próprio homem, mais especificamente no crente, Se­
gundo o entendimento da maioria dos teólogos, o homem regenerado possui
uma natureza nova e outra velha, uma espiritual e outra carnal.12 Ambas as
naturezas estão no crente; entretanto, não dá para saber até onde vai uma e
até onde vai a outra. Mas sabemos que elas não são misturadas, pois são
distintas.
Ao afirmarmos que Jesus é uma única pessoa com duas naturezas,
estamos dizendo que a pessoa de Jesus possui atributos das duas nature­
zas.13 Assim, não há perigo algum em afirmar que Jesus era uma pessoa
onipotente, onisciente e onipresente, mas que também era sujeita a limita­
ções, sendo um varão de dores, sujeito a fraquezas e deficiências de conhe­
cimento. Ele podia ser tentado, sofrer e até morrer. Como disse Hodge, “a
mesma pessoa, eu, ou ego, que disse ‘tenho sede’, disse: ‘antes que Abraão
existisse, eu sou”.14 Não devemos pensar que, de alguma maneira, as duas
naturezas se misturaram e qualidades da divina foram atribuídas à humana
e da humana a divina, como se o homem fosse divinizado e o Deus
humanizado. Se isso acontecesse, de fato surgiria uma nova e terceira subs­
tância, a qual não seria humana nem divina, mas possuiria as propriedades
de ambas.15 Como diz Hodge, isso “equivaleria a uma extensão não esten­
dida, a uma intangibilidade tangível, a uma invisibilidade visível”.16 Se as
naturezas divina e humana se misturassem, teríamos uma terceira natureza,
uma natureza “teantrópica”.17 Por essa razão, não podemos concordar com
Strong que entende que “a união das naturezas divina e humana torna esta
possuída dos poderes pertencentes àquela”.18 E a pessoa de Jesus que tem
esse poder, e não a sua natureza humana como se fosse separada da divina.
As duas naturezas permanecem distintas; porém, elas se unem para formar
a pessoa completa de Jesus que sofre, fica cansada e é, ao mesmo tempo,
imortal e onipotente. Pe:la união sem confusão das duas naturezas, Jesus
realizou a obra redentora como um todo. Ele resistiu ao pecado, morreu e
ressuscitou, e isso foi possível somente porque era homem e era Deus.
Porém, a obra não é nem do homem nem do Deus, e sim da Pessoa de
Jesus, o Deus-homem.
250 Razão da esperança

Talvez essa seja a chave para interpretar aquela passagem difícil da Escri­
tura em que Jesus confessa não saber o dia nem a hora da sua vinda (Mt
24.36). A resposta de que ele, como Deus, sabia, mas, como homem, não
sabia, é demasiadamente simplista e até mesmo pode ser perigosa, pois pode
fazer uma ruptura na pessoa de Cristo. Precisamos entender que ele fez to­
das as coisas com a sua pessoa como um todo, que era tanto humana quanto
divina. A única coisa que podemos dizer é que, como homem-Deus ele era,
ao mesmo tempo, onisciente e limitado de conhecimento. Sua onisciência
pode ser vista porque ele conhecia até os pensamentos das pessoas (Mt 9.4;
12.25). Por outro lado, ele não sabia que não havia fruto na figueira (Mc
11.23). Assim também, vemos que ele era, ao mesmo tempo, onipotente e
limitado de poder, até porque se cansava e precisava dormir (Jo 4.6; Lc 8.23),
mas em outras ocasiões andava sobre as águas e ressuscitava os mortos (Mt
14.26; Jo 11.43,44). Podemos não entender bem como isso funciona, e tal­
vez o melhor mesmo fosse dizer, “Não sabemos”; porém, o que não pode­
mos é dizer, “Isso ele fez como homem e aquilo como Deus”, pois, desse
modo, estaríamos dividindo a pessoa indivisível de Cristo. Hodge diz:

Como de um homem pode-se afirmar tudo o que é verdadeiro de sua natu­


reza humana, e tudo o que é verdadeiro de sua divindade; como podemos
dizer que uma pessoa é mortal e imortal, que é uma criatura do pó e é filha
de Deus, igualmente podemos dizer que Cristo é finito e infinito; que é
ignorante e onisciente; que é menor que Deus e igual a Deus; que existiu
desde a eternidade e nasceu no tempo; que criou todas as coisas e foi varão
de dores.19

A pessoa de Cristo é indivisível. As duas naturezas estão unidas, e, “nes­


sa união Cristo controla todos os atributos e poderes que são próprios de
ambas as naturezas”.20 Por esse motivo, achamos perigosa a opinião de
Grudem quando ele diz que “Jesus tinha duas vontades distintas, uma von­
tade humana e uma divina, e que as vontades pertenciam às duas naturezas
distintas de Cristo”.21 Isso sugere que poderia haver algum tipo de conflito
na pessoa de Cristo. Porém, Grudem, entende que as vontades são distintas
nas naturezas, mas não na pessoa. Então, haveria duas vontades proceden­
tes de cada natureza, mas uma só vontade procedente da pessoa. De qual­
quer modo, esse tema se torna bastante especulativo, e é melhor pensar,
como diz Bavinck, que a união das naturezas leva Cristo a controlar os
atributos peculiares de cada natureza. Na pessoa de Cristo não há conflito,
há plena harmonia. Afinal ele veio para estabelecer a harmonia entre Deus
e o ser humano.
0 filho de M aría 251

M u ito a lém de Calcedônia


Como vimos no credo formulado pelo Concílio de Calcedônia, Maria foi
chamada de “mãe de Deus” ("Tbeotoko). Entretanto, a concepção dessa ex­
pressão naquela época era muito diferente da de hoje. Ao chamar Maria de
“mãe de Deus” pretendia-se apenas evitar a divisão da pessoa de Cristo,
como queria a heresia nestoriana. Nestorio queria chamar Maria simples­
mente de “mãe de Cristo” (Christotoho). A preferência de Nestorio pelo ter­
mo christotoko originou-se de sua propensão de separar as duas naturezas de
Cristo, falando da natureza humana em si, autônoma e independente da na­
tureza divina, sendo Maria a mãe dessa natureza independente.22 Calcedônia
se posicionou a favor da unipersonalidade de Cristo. Cristo é uma única
pessoa composta da natureza humana e divina, e essa pessoa nasceu de Ma­
ria. Porém, com isso não se pretendia dizer que Maria gerou a divindade.
A posição que Maria ocupa na teologia católica atual é resultado de
séculos de desenvolvimento. E verdade que Calcedônia contribuiu para isso,
pois, se não tinha a intenção de exaltar Maria, pelo menos abriu as portas.
Hoje, no catolicismo, Maria é considerada mediadora da graça e co-reden-
tora. Ela não é mãe apenas no sentido humano de Jesus, mas no sentido
pleno de ser assistente na obra da redenção. Certamente isso é ir muito
além de Calcedônia, e também da Bíblia. Mais longe ainda foi o catolicismo
na sua crença de que Maria nasceu sem pecado, que a sua virgindade foi
perpétua e que ela teve uma ascensão aos céus sem passar pela morte. To­
dos esses conceitos, evidentemente, são extrabíblicos.23
Uma vez que nenhuma dessas posições encontra base ou apoio na Es­
critura, e não passam de decisões de homens, não devem ser aceitas. A
Bíblia nada fala sobre nascimento sem pecado original ou ascensão de Maria,
e mostra claramente que ela não teve virgindade perpétua (Mt 1.25; 13.55;
Mc 3.31), nem possui caráter de mediadora (Jo 2.1-4; lTm 2.5). Com rela­
ção, porém, à expressão “mãe de Deus”, se com ela se pretende manter a
unidade da pessoa de Jesus, não é uma expressão a ser desprezada, mas
precisa ser bem entendida. Se, porém, com isso se pretende exaltar a pessoa
de Maria como mãe do Deus Todo-poderoso, originadora da divindade,
como tendo poder ou autoridade sobre Jesus, ou destacar Maria como al­
guém superior às demais mulheres, não deve ser aceita. De Maria, a melhor
coisa que podemos dizer é o que disse Isabel: “Bendita és tu entre as mu­
lheres” (Lc 1.42). Ela era uma mulher entre tantas outras, mas que recebeu
a graça de ser a mãe do Redentor. Por isso é, e sempre será, bendita entre as
252 Razão da esperança

mulheres. A sua escolha para ser a mãe do Filho de Deus não aponta para
o mérito de Maria, mas para a graça de Deus. Como ela própria entendeu e
disse, “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em
Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva. Pois,
desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada, porque o
Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome. A sua misericórdia vai
de geração em geração sobre os que o temem” (Lc 1.46-50). Maria rendeu
toda a glória a Deus e o reconheceu como seu Salvador.
Concluímos, portanto, que, na pessoa indivisa do Redentor há duas na­
turezas, a divina e a humana. Ele não se esvaziou de nenhuma delas. Essas
naturezas não se misturaram, pois mantiveram as qualidades inerentes de
cada uma, estando em completa unidade. Essa união aponta para o sucesso
da obra redentora de Cristo. Na sua própria pessoa, o Redentor transpôs o
abismo entre Deus e os seres humanos, entre o eterno e o temporal, entre
a justiça e os pecadores. Graças ao verbo que se fez carne (Jo 1.14), pode­
mos ter paz com Deus (Rm 5.1).
20

A morte do M ediador

Desde os tempos do apóstolo Paulo, muitos consideravam a pregação


sobre a morte de Jesus uma loucura: “Certamente, a palavra da cruz é lou­
cura para os que se perdem” (ICo 1.18, 23). Não é apenas nos dias de hoje
que as pessoas se recusam a aceitar que Jesus precisava morrer para salvar o
mundo. A idéia de que Jesus se sacrificou para substituir o pecador é rejei­
tada por muitos como algo inconcebível, animalesco e desprovido de sen­
tido. Eles argumentam, “Como poderia Deus matar o seu próprio Filho
inocente pelos pecados dos outros? Como poderia isso ser aceitável diante
de Deus? Que Deus é esse que se propõe a aceitar tal troca?” Daí o esforço
antigo e moderno por encontrar outros modos de salvação, e outros signi­
ficados para a morte de Jesus.
De acordo com o ensino da Bíblia, o pecado do homem levou Cristo a
morrer para satisfazer a justiça de Deus. Esse tema é vital para a salvação;
entendê-lo bem, portanto, é indispensável. A tendência atual é dizer que
Jesus morreu para dar um exemplo. Alguns vão mais longe ao dizer que foi
apenas o fracasso de um fracassado. Neste capítulo procuraremos demons­
trar que a idéia da morte de Jesus pelos pecados não é algo absurdo, pois
segundo a Escritura, ele morreu para cumprir uma missão que Deus lhe
confiou: salvar o mundo por meio do seu sacrifício expiatório. Como vi­
mos ao estudar a Trindade, o caráter de Jesus como mediador esteve pre­
sente desde o início nas relações entre Deus e a criação. Porém, chegou o
dia em que o mediador realizou a mais difícil das obras: pagar com o seu
próprio sangue a dívida do ser humano perante a lei.

0 M ed ia d o r da aliança
O Cristo humano e divino veio para restabelecer o relacionamento en­
tre Deus e os seres humanos. Um mediador somente é necessário quando
existe algum conflito entre duas ou mais partes. A função de um mediador
254 Razão da esperança

é fazer ligação entre dois oponentes na tentativa de alcançar a paz. Quando


dois oponentes não têm qualquer intenção de fazer as pazes, eles nem pen­
sam em mediador. Isso mostra que o simples fato de existir um mediador
na relação ser humano-Deus demonstra interesse da parte divina em resol­
ver o impasse. Em geral, importa que o mediador seja neutro e tenha aces­
so aos dois lados. Ele precisa buscar o melhor para as duas partes envolvi­
das no conflito, e não pode favorecer uma em detrimento da outra.
A Escritura apresenta Jesus como o único mediador entre Deus e os
homens: “Porquanto há um só Deus e um só mediador entre Deus e os
homens, Cristo Jesus, homem” (lTm 2.5; At 4.12). Como mediador, sendo
Deus e homem ao mesmo tempo, Jesus consegue tratar com os dois lados,
e procura o bem para as duas partes. Como Deus, ele consegue se aproxi­
mar de Deus e, como homem, consegue se aproximar dos homens. O gran­
de conflito a ser resolvido é a questão da transgressão do homem. O
descumprimento humano em relação à lei de Deus que exige que a senten­
ça de condenação seja executada. Jesus se colocou entre essas duas partes
para fazer um acordo de paz. Porém, a paz somente pode ser alcançada se
Jesus conseguir inocentar o ser humano. O modo como Jesus fez isso não
foi negando a existência do pecado ou minimizando a gravidade do mes­
mo, mas morrendo no lugar do ser humano, desviando a ira de Deus do
pecador para si mesmo. Desse modo, os crentes podem ter, nas palavras de
Paulo, “paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1).
Assim, sempre devemos ver a posição de mediador de Cristo em relação à
salvação, pois como diz Hodge, “como o desígnio da encarnação do Filho
de Deus era reconciliar-nos com Deus, e como a reconciliação das partes
inimizadas é uma obra de mediação, Cristo é chamado de nosso media­
dor”.1 Cristo exerce o seu papel de mediador para a nossa salvação como
profeta, sacerdote e rei. No Antigo Testamento, para benefício do seu povo,
Deus concedeu aos seres humanos reis, sacerdotes e profetas. Cristo reúne
os três ofícios na sua pessoa, e, portanto, consuma toda a obra divina de
aproximação com o ser humano.

0 ofício profético de Cristo

A grande função do profeta era anunciar algo da parte de Deus para o


ser humano. O profeta não tinha uma mensagem de si mesmo para trans­
mitir, ele transmitia a Palavra de Deus, a qual precisaria ter recebido de
Deus anteriormente. O profeta comunicava a vontade de Deus ao povo
por meio de admoestações, exortações, promessas ou ameaças. Jesus é o
A morte do M ediador 255

profeta por excelência. Moisés, o grande profeta de Israel anunciou a vinda


de um profeta que devia ser ouvido: “O S e n h o r , teu Deus, te suscitará um
profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás” (Dt
18.15). Quando as pessoas viram os milagres de Jesus, especialmente a
multiplicação dos pães e dos peixes, declararam: “Este é, verdadeiramente,
o profeta que devia vir ao mundo” (Jo 6.14). Não há dúvida de que eles
estavam pensando na promessa de Moisés. Pedro entendeu que o anúncio
de Moisés se referia a Jesus, e deixou isso bem claro no seu primeiro ser­
mão: “Disse, na verdade, Moisés: O Senhor Deus vos suscitará dentre vos­
sos irmãos um profeta semelhante a mim; a ele ouvireis em tudo quanto
vos disser” (At 3.22). O Novo Testamento diz que todos os profetas do
Antigo Testamento eram movidos pelo Espírito de Cristo, ou seja, era o
caráter profético de Jesus que dava aos profetas a revelação, conforme as
palavras de Pedro na sua Primeira Epístola: “Foi a respeito desta salvação
que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da
graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou
quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que
neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referen­
tes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam” (IPe 1.10,11). Ele está
dizendo que os profetas puderam antever as coisas futuras porque o Espí­
rito de Cristo estava neles e lhes concedia a revelação.
Como profeta, Jesus tem a grande função de revelar o caráter do Pai.
João diz: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigénito, que está no seio
do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Jesus revelou o caráter do seu Pai,
especialmente por meio do seu ensino. Suas explicações sobre Deus, bem
como o seu amor, a sua misericórdia, a sua graça, a sua justiça, a sua santi­
dade, o seu propósito, a sua natureza e pessoa, foram manifestações do seu
ofício profético. Cristo é a eterna sabedoria do Pai, ele se tornou o tradutor
de Deus para a raça decaída, que não conseguia falar a linguagem de Deus.
Tentar entender Deus à parte de Cristo é como tentar entender uma nação
estrangeira sem um embaixador. Cristo disse: “Quem me vê a mim vê o
Pai” (Jo 14.9). Jesus precisava ser Deus, para poder falar a verdade sobre o
Pai, e, ao mesmo tempo, precisava ser homem a fim de que entendêssemos
o que ele estava dizendo. Cristo é a ponte que liga o finito ao infinito, a sua
cruz liga os céus à terra, atravessa o imenso abismo entre o bem e o mal,
entre a santidade e a iniqüidade. Lloyd-Jones está certo em assegurar a impor­
tância disso, pois de fato “uma parte de nossa salvação consiste em nossa
recepção desse conhecimento que nosso Senhor nos tem comunicado”.2
Desse modo, o mediador estava fazendo a ponte entre Deus e o ser huma-
256 Razão da esperança

no, revelando-nos um pouco da maravilhosa pessoa do Pai. Toda a revela­


ção está, de certo modo, na pessoa de Cristo como profeta. Assim, de fato,
“desde o início, tanto em seu estado de humilhação quanto de exaltação,
tanto antes quanto depois do seu advento na carne, Cristo executa o ofício
de profeta ao revelar-nos, por meio de sua Palavra e seu Espírito, a vontade
de Deus para nossa salvação”.3 Deus ordenou aos homens, no monte da
transfiguração que ele fosse ouvido (Mt 17.5). Se ele devia ser ouvido é
porque de fato é o portador da revelação. Na pessoa de Cristo, segundo
Paulo, estão escondidos “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimen­
to” (Cl 2.3), e nas sábias palavras de Calvino “fora dele não há nada que
valha a pena conhecer”.4

0 oficio real de Cristo

Em seus três ofícios, Jesus age como mediador entre Deus e os seres
humanos: “Como profeta ele representa Deus para com o homem, como
sacerdote, ele representa o homem na presença de Deus; e como Rei, ele
exerce domínio e restabelece o domínio original do homem”.5 Cristo é rei
supremo sobre todas as coisas desde toda a eternidade, mas isso diz mais
respeito a seus atributos de soberania. Quando pensamos no ofício real de
Cristo, estamos nos referindo ao governo que ele exerce a partir de sua
obra na cruz. Embora Cristo seja rei desde sempre, depois da sua morte e
ressurreição, ele foi mais uma vez coroado, agora como aquele que tem em
suas mãos o destino do mundo para efeitos redentores. Evidentemente,
trata-se de um reino espiritual. João descreve essa cerimônia de coroação
de Jesus nos capítulos 4 e 5 do Apocalipse, quando Jesus, descrito por um
lado como um Cordeiro (Ap 5.6) e por outro como o Leão da Tribo de
Judá (Ap 5.5), toma o livro da mão direita do que está assentado no Trono
(Ap 5.7), e começa a abrir esse livro que contém os acontecimentos que
consumam o plano redentor de Deus para o mundo. Os efeitos dessa coro­
ação levaram Jesus a dizer: “Toda autoridade me foi dada nos céus e na
terra” (Mt 28.18). Aquele que desceu do céu, se fez homem, padeceu a mais
terrível das mortes, agora voltou a seu lugar de glória e assumiu um posto
ainda maior de autoridade (lTm 3.16), Paulo narra toda essa trajetória de
Jesus na sua carta aos Filipenses, numa passagem que bem poderia ser um
cântico dos primeiros cristãos:

Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser
igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo,
A morte do M ediador 257

tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,


a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de
cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que
está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho,
nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo
é Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.6-11).

A humanidade (seu povo) participa dessa glorificação, pois Cristo é o


seu representante, e, por causa dela, ele assumiu o posto mais alto do uni­
verso, para ajudá-la e sustentá-la até a consumação de todas as coisas. E
nesse sentido que Cristo é chamado por Paulo na carta aos Efésios de “ca­
beça da igreja” (Ef 1.22), estando assentado “acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir, não só
no presente século, mas também no vindouro” (Ef 1.21,22). Ele governa
todas as coisas para benefício da sua igreja. Seu governo é a garantia de que
a redenção finalmente se consumará, e de que sua morte não foi em vão.

0 ofício sacerdotal de Cristo

De todos os três ofícios, o sacerdotal é o que se relaciona mais direta­


mente com a expiação. O sacerdote se apresentava perante Deus para inter­
ceder pelo povo. A função do sacerdote era “oferecer tanto dons como sa­
crifícios pelos pecados” (Hb 5.1). No Antigo Testamento, quando os ho­
mens pecavam, precisavam se dirigir ao sacerdote que os ajudaria na oferta
do sacrifício pelo pecado. Como sacerdote, a função de Cristo é nos reconci­
liar com Deus, oferecendo um sacrifício que desvie a ira de Deus de sobre
nós. A diferença de Jesus em relação aos sacerdotes do Antigo Testamento é
que Jesus é o sacerdote e a vítima simultaneamente. Esse sacrifício foi, na
verdade, o único sacrifício aceito, uma vez que todos os sacrifícios do Anti­
go Testamento dependiam dele para terem valor, e que, após isso, nenhum
sacrifício mais deve ser oferecido. Os sacrifícios do Antigo Testamento eram

Tipos dos sofrimentos vicários de Cristo, e só obtinham perdão e aceitação


de Deus quando eram oferecidos com verdadeiro arrependimento, e com
fé no método de salvação usado por Deus. Só tinham significação salvadora
na medida em que levavam a atenção do israelita a fixar-se no Redentor
vindouro e na redenção prometida/’

Jesus consumou sacerdotalmente todo o sistema do Antigo Testamen­


to. O autor aos Hebreus fala de maneira muito clara sobre a função sacer-
258 Razão da esperança

dotal de Jesus e de sua oferta: “Com efeito, nos convinha um sumo sacer­
dote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e
feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como os sumos
sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro, por seus própri­
os pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma vez por todas,
quando a si mesmo se ofereceu” (Hb 7.26,27), A auto-oferta de Jesus tem
um valor incalculável diante de Deus. E o sacerdote perfeito que oferece
um sacrifício perfeito. Isso nunca foi achado no Antigo Testamento e nem
poderia ser. Por isso, o ofício sacerdotal de Cristo torna o seu sacrifício não
só superior a todos os sacrifícios do Antigo Testamento, mas a própria
razão por que aqueles sacrifícios tinham valor.
A obra sacerdotal de Cristo na terra é a base para a sua obra no céu.
Assentado à destra de Deus, Jesus continua intercedendo pelo seu povo
(Rm 8.34). O apóstolo João demonstra claramente esse entendimento: “Fi-
lhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia,
alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (ljo
2.1).7 Os advogados humanos tentam provar a inocência do acusado, mas
Jesus sabe que os seus “clientes” não são inocentes. A defesa se baseia no
fato de que Deus não pode punir um mesmo crime duas vezes. Se Jesus já
pagou com o seu sacrifício o pecado do crente, a justiça divina não poderá
mais condená-lo.

A justiça de Deus e o pecado do ser h u m a n o


A Bíblia não tem ilusões românticas a respeito do ser humano. O ensino
bíblico é que, apesar de o homem ter sido criado em perfeita santidade, ele
corrompeu-se completamente. A primeira descrição bíblica que o próprio
Deus dá sobre o homem depois da queda está registrada em Gênesis: “Viu
o S e n h o r que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era
continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6,5). Essa forte
expressão “continuamente mau todo o desígnio do coração”, não deixa
muita coisa positiva sobre o homem, pelo menos não aos olhos de Deus.8
Como diz o autor do Eclesiastes: “Deus fez o homem reto, mas ele se
meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29). Essa habilidade humana em ser astu­
tamente falso e mentiroso recebe uma ênfase em Jeremias que diz: “Enga­
noso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrup­
to” (Jr 17.9). Olhando sem preconceitos para esse versículo, percebe-se que
ele está dizendo que nenhuma outra coisa do mundo consegue ser tão en-
A morte do M ediador 259

ganosa e desesperadamente corrupta quanto o coração humano. Tão cor­


rupto é o ser humano que ele consegue dizer do seu criador: ele não existe
(SI 14.1). O mesmo salmista diria: “Corrompem-se e praticam abominação;
já não há quem faça o bem. Do céu olha o S e n h o r para os filhos dos
homens, para ver se há quem entenda, se há quem busque a Deus. Todos se
extraviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não
há nem um sequer” (SI 14.1-4). A busca divina por alguém justo apresenta
apenas resultados negativos, pois Deus vê algo comum em todos os seres
humanos: o pecado. Como diz Schaeffer, “esta concepção da universalida­
de do pecado é o maior e mais genuíno ‘nivelador’ da humanidade”.9 To­
dos os homens possuem essa marca terrível na prórpia vida; todos estão no
mesmo nível.
Mesmo quando as pessoas ouvem o que foi exposto acima, muitas ve­
zes elas ainda não se conscientizam da necessidade da morte de Jesus. Elas
pensam: “Por que Deus não poderia simplesmente perdoar o pecador?”
Em geral, se pensa assim: Se nós devemos perdoar os outros sem exigir
nada dessas pessoas, então, por que Deus não poderia simplesmente per­
doar os homens caso visse neles o arrependimento?10 Será que o seu amor
não é suficiente para perdoar? Essa pergunta ignora duas coisas: O quanto
o pecado é terrível e o quanto Deus é justo. Deus não tolera o pecado. Deus
ama a justiça, mas odeia a iniqüidade (SI 45.7). Adão e Eva sabiam muito
bem disso, pois antes que transgredissem, ouviram de Deus que no dia em
que comessem da árvore iriam morrer com certeza (Gn 2.17). O estabele­
cimento da lei no Sinai deixou claro que a transgressão acarretava a morte
(Êx 21.12-29; Lv 20.2-15; Nm 35.16-30), O Novo Testamento é ainda mais
explícito: “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Para que a justiça de
Deus seja mantida, o homem precisa ser condenado pelos seus atos. Esta
condenação não pode ser outra senão a morte, ou seja, sofrer a morte de
um criminoso, como o homem de fato é. Ou o homem morre a morte de
um malfeitor e suporta o fardo de ser separado de Deus, ou Deus deixa de
ser justo.
Só quando temos isso em mente é que podemos entender a necessidade
da morte de Jesus. No plano de Deus, Jesus é enviado ao mundo, nasce
como homem, cumpre integralmente os requisitos da lei de Deus e se ofe­
rece como um substituto para receber a condenação do homem, pois “nos­
sos pecados eram o obstáculo que nos impedia de receber o dom que ele
desejava dar-nos”.11 Como mediador, ele sofre a morte do transgressor que
a lei de Deus exige. Deus não pode passar por cima da sua lei sem ferir a sua
própria justiça e, conseqüentemente, a sua divindade. Deus não pode per-
260 Razão da esperança

doar como nós devemos perdoar, Nós perdoamos porque somos igual­
mente pecadores, e se deixarmos de perdoar estaremos, em última instân­
cia, negando o perdão a nós mesmos (Mt 6.14,15). Isso não ocorre com
Deus. Ele é absolutamente justo e santo, Se ele tolerar o pecado, estará
abrindo uma exceção que por fim o tornaria tão injusto quanto o homem.
Os ímpios perderão o seu tempo implorando pelo amor de Deus no Juízo
Final, pois o seu amor não pode anular a sua justiça. O amor não pode levá-
lo a transgredir a sua própria lei. Porém, foi justamente esse amor que levou
Jesus a morrer na cruz para satisfazer a justiça divina (Jo 3.16). Só a morte
de Jesus faz justiça ao caráter tanto amoroso como justo de Deus. Deus não
quebra a sua justiça por amor; antes, ele cumpre a justiça em amor, pois
como diz Murray: “De fato a graça reina, mas uma graça reinante à parte da
justiça não é apenas inverossímil, mas também inconcebível”.12

A consciência de Jesus
Nos estudos teológicos modernos, às vezes nega-se que Jesus soubesse
que precisava morrer, mas basta observar os Evangelhos para perceber que
ele sempre teve essa consciência. Quando pela primeira vez os discípulos
liderados por Pedro reconheceram que Jesus era o Cristo, o mestre fez
questão de lhes dizer: “E necessário que o Filho do homem sofra muitas
coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escri­
bas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscite” (Lc 9,22, Mt 16.21). E interes­
sante que Jesus tenha dito: “E necessário”. Ele tinha o entendimento de
que precisava morrer pelos pecados dos seres humanos. Pedro, na mesma
ocasião, se ofereceu para dissuadi-lo dessa idéia, conforme Mateus relata:
“E Pedro, chamando-o à parte, começou a reprová-lo, dizendo: Tem com­
paixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá” (Mt 16.22). A
reação de Jesus foi imediata: “Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de
tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens” (Mt
16,23). A resposta de Jesus refletiu o entendimento de que pelo homem
aquilo jamais aconteceria, mas por Deus, sim. Sua morte era necessária, era
coisa de Deus, ele tinha plena consciência disso. Jesus Cristo não veio enga­
nado, ele tinha perfeita consciência do que teria de passar (Is 53). Jesus
sabia que a sua vida de obediência espontânea ao Pai tinha como rota obri­
gatória a cruz. Ele sempre soube que não havia desvios nem atalhos, a cruz
era a sua missão, a única alternativa para a salvação do seu povo. Jesus
conhecia as profecias do Antigo Testamento, que, desde Gênesis 3.15, já
A morte do M ediador 261

indicavam as dores do Messias (ver Lc 24.26,46; Is 53.1-12; At 3.18; Jo


17.1-3; IPe 1.10,11).
Em geral, Jesus falou sobre sua morte nos momentos de maior glorifi­
cação aqui na terra. Ele fez isso quando os discípulos o reconheceram como
Messias. E importante lembrar que eles esperavam um libertador político, e
Jesus fez questão de dizer que a sua morte era necessária. Mesmo quando
anunciava a sua segunda vinda gloriosa sobre as nuvens, (Lc 17.24), ele
advertia: “Mas importa que primeiro ele [o Filho do Homem] padeça mui­
tas coisas e seja rejeitado por esta geração” (Lc 17.25). Ele tinha a noção
clara de que o seu sofrimento precisava acontecer para se cumprir o que
estava determinado: “Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o
que está escrito: Ele foi contado com os malfeitores. Porque o que a mim se
refere está sendo cumprido” (Lc 22.37). Ele não só entendia que precisava
morrer, como também a maneira como morreria e a razão: “E do modo
por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho
do homem seja levantado” (Jo 3.14). A serpente de bronze foi levantada
sobre uma haste, como um antídoto contra a picada das serpentes que
feriam o povo de Deus, por causa da rebelião (Nm 21.4-9). Jesus entendia
que seria levantado como um instrumento de cura para os pecadores; a sua
morte seria um antídoto contra o pecado.
Jesus sabia que a sua morte era necessária para implantar o reino de
Deus no mundo. Por isso, mesmo sentindo a dor da partida e vendo a
tristeza nos olhos de seus discípulos quando anunciava essas coisas, lhes
disse: “Mas eu vos digo a verdade: convém-vos que eu vá, porque, se eu
não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo
enviarei” (Jo 16.6,7). A partida (morte) de Jesus era necessária para que o
Espírito Santo pudesse ser enviado e completasse a obra da redenção.
O momento em que Jesus demonstrou a maior consciência da necessi­
dade de sua morte talvez tenha sido o seu maior momento de dúvida.
Estamos falando do episódio do Jardim do Getsêmani. Nessa noite, todo o
pavor do mundo caiu sobre ele. Jesus estava angustiado, não pelo que mui­
tos gostam de enfatizar - porque estivesse com medo do sofrimento físico,
dos pregos, da agonia da morte ou do ridículo público. Por mais que essas
coisas fossem terríveis, seu temor era por algo muito pior do que todas elas
juntas. Jesus se angustiava pela expectativa de receber sobre si o peso da
maldição dos pecados dos homens e, por causa disso, ser abandonado por
Deus. Em toda a eternidade, nunca houve um instante em que ele não
pudesse contemplar o rosto amoroso de seu Pai, mas agora esse momento
estava muito próximo. Daí suas palavras: “Meu Pai, se possível, passe de
262 Razão da esperança

mim este cálice! Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu quetes”
(Mt 26.39). Ele perguntou a Deus se não haveria alguma outra possibilida­
de de o mundo ser salvo, sem que precisasse enfrentar a cruz, mas ele mes­
mo sabia a resposta, por isso orou novamente: “Meu Pai, se não é possível
passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mt
26.42). É evidente, portanto, que Jesus entendia a sua missão de morrer
pelo mundo, como está claro em todas essas passagens.
Outras passagens dos evangelhos sinóticos demonstram a consciência de
Jesus a respeito de sua morte expiatória. Por exemplo, Marcos 10.45: “Pois o
próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos” (ver Mt 20.28). Se Jesus sabia da necessida­
de da sua morte, é inimaginável que não soubesse o propósito dela. Se ele
falou a seus discípulos do serviço, e falou do seu próprio ministério como
serviço, é natural que ele estivesse pensando no cântico do servo de Isaías, e
pensando no seu próprio chamado à luz disso.13 O mesmo pode ser visto
nas palavras de Jesus em Marcos 14.24 (ênfase acrescentada): “Então, lhes
disse: Isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de
muitos” (ver Mt 26.28). A evocação à questão da aliança é fundamental para
entender o sentido do sangue derramado. O Deus que estabeleceu a aliança,
e que assumiu a responsabilidade por ela diante de Abraão, foi o Deus que
enviou o seu Filho para assumir a maldição da aliança. O próprio Deus assu­
miu a responsabilidade pelo cumprimento ou pelo não cumprimento da alian­
ça.14 Agora, pelo sangue de Cristo, o mediador, a aliança poderia ser renova­
da. E nesse sentido que ela é chamada de nova aliança.
Essas passagens demonstram claramente a consciência de Jesus a res­
peito da sua morte e, como diz Warfield “as questões críticas que têm sido
levantadas sobre essas passagens são negligentes”.15 Jesus sabia da necessi­
dade de sua morte, e do motivo dela.

Ju sto e justificador
A morte de Cristo foi necessária porque somente assim os seres huma­
nos poderiam ser perdoados, sem que Deus deixasse de ser justo. Jesus
morreu para conciliar a justiça e o amor de Deus. Talvez a melhor explica­
ção bíblica a respeito deste tema se encontre no capítulo 3 de Romanos. Há
algo que Paulo deseja provar: Deus somente pode salvar o homem pecador
por meio de Cristo Jesus, independentemente de obras da lei, e isso não
desfaz a sua justiça. Nesse capítulo, Paulo faz questão de enfatizar a realida­
A morte do M ediador 263

de do pecado de todos os homens: “Já temos demonstrado que todos,


tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito:
Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque
a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o
bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). Ele está citando o Salmo 14, que
demonstra que todos os homens, sem exceção, são pecadores. A questão é:
os pecadores devem ser julgados e, como conseqüência, receberão a ira de
Deus sobre si. Deus precisa fazer isso, caso contrário estará deixando de
ser justo. Especialmente os judeus, poderiam argumentar: E os que estão
tentando obedecer à lei? As pessoas pensam que, se buscarem obedecer a
Deus, ao final serão salvas pela misericórdia de Deus, como se a boa inten­
ção fosse suficiente. Paulo diz: Esse caminho é errado. A lei não foi feita
para salvar, mas para apontar o pecado: “Ora, sabemos que tudo o que a lei
diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo
seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele
por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do
pecado” (Rm 3.19,20). Que opção resta então? De acordo com Paulo, a
opção da morte de Cristo. Ele diz: “Mas agora, sem lei, se manifestou a
justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm 3.21). A ex­
pressão “justiça” que Paulo usa, poderia sugerir que Deus iria punir os
homens, mas Paulo está falando de um outro aspecto da justiça de Deus. E
a “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os
que crêem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da gló­
ria de Deus” (Rm 3.22,23; ênfase acrescentada). Ele não está falando de
uma justiça punitiva, mas de uma justiça que absolve, que inocenta. A justi­
ça, porém, só pode inocentar alguém que seja realmente inocente, e não é
esse o caso do ser humano. O argumento de Paulo é que a justiça de Deus
em Cristo, somente é possível “mediante a redenção que há em Cristo Je­
sus” (Rm 3.24). A palavra-chave aqui é “redenção”. Paulo explica como
funciona esta redenção: “A quem Deus propôs, no seu sangue, como pro­
piciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua
tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo
em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo
ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.25,26). Esses
dois versículos são o centro da argumentação de Paulo. O próprio Deus
propôs a morte do seu filho, como uma forma de propiciação. A idéia de
propiciação sugestiona algo que apazigua a ira de Deus. O pecado humano
como quebra da lei despertou a ira de Deus, e o sacrifício de Jesus apazigua
essa ira. A questão da ira de Deus não é bem vista no meio dos estudiosos
264 Razão da esperança

de inclinação liberal, pois eles vêm Deus apenas como amor. Baillie é dessa
opinião: “Sua ira não deve ser vista como alguma coisa que precisa ser pro­
piciada e assim transformada em amor e misericórdia, mas deve ser identifi­
cada com o fogo consumidor do amor inexorável de Deus em relação com
os nossos pecados”.16 Certamente ele tem bastante dificuldade em compre­
ender que Deus possa ficar irado contra os pecadores que ele mesmo criou.17
Porém, é um fato bem visível na Bíblia que a ira de Deus se dirige contra o
homem pecador (verjo 3.36; Rm 1.18; 3.5; 9.22; Ef 5.6; Ap 14.10). O sacri­
fício expiatório de Cristo faz propiciação pelos pecados dos seres humanos
que crêem, porque satisfaz o requerimento da lei de Deus de que o pecado
fosse julgado e condenado, e assim, ele satisfaz a ira de Deus.
Na cruz, o pecado do homem é julgado e condenado na pessoa de Jesus.
Isso cumpre o requerimento da lei de Deus e, segundo Paulo, explica tam­
bém por que de Deus tolerou os pecados “anteriormente cometidos”. Ele
está se referindo aqui aos pecados cometidos na Antiga Dispensação, ou
seja, no Antigo Testamento. Precisamos lembrar que os pecadores do An­
tigo Testamento ofereciam sacrifícios pelos seus pecados. Estamos falando
aqui do povo de Israel. Esses sacrifícios não tinham poder, em si mesmos,
de perdoar pecados (Hb 10.1). O fato é que eles apontavam para Cristo e,
na morte de Cristo, encontravam sua razão de ser e sua eficácia. Por esse
motivo, na explicação de Paulo, os pecadores do Antigo Testamento que os
praticavam não foram punidos, e Deus não deixou de ser justo por causa
disso. Desde o início, Deus tinha “em vista a manifestação de sua justiça no
tempo presente” (3.26). O tempo presente representa o momento do sa­
crifício de Jesus. Grudem argumenta: “Como Jesus carregava sozinho a
culpa pelos nossos pecados, Deus Pai, o poderoso criador, o Senhor do
Universo, derramou sobre ele a fúria de sua ira: Jesus se tornou objeto do
intenso ódio e da vingança contra o pecado que Deus tinha guardado com
paciência desde o início do mundo”.18 Cristo recebeu sobre si toda a ira
acumulada de Deus. Devemos pensar realmente que

A cruz foi o cálice do castigo eterno, destilada da ira que estava sendo
armazenada desde o pecado de Adão, concentrada numa poção terrível. O
Filho bebeu o cálice da ira para que pudéssemos beber o cálice da salvação.
E quando cie terminou seu cálice, não sobrou nenhuma só gota para nós
que, de forma grata, recebemos o benefício da sua morte.19

Paulo continua: “Para ele mesmo ser justo e justificador daquele que
tem fé em Jesus”. Com a morte de Jesus, Deus continua sendo justo ao
mesmo tempo em que justifica o pecador, a cruz não é algo que influencia
A morte do M ediador 265

o amor de Deus; antes, foi o amor de Deus que a produziu.20 Sem a morte
de Jesus, se Deus justificasse o pecador estaria sendo injusto, e se o conde­
nasse, estaria sacrificando o seu amor. A única maneira de estas duas virtu­
des divinas, o amor e a justiça, permanecerem intocáveis é por meio da
morte de Jesus. Por essa razão, a morte de Jesus foi absolutamente necessá­
ria, pois ela é condizente com o caráter de Deus. Como diz Stott:

O modo pelo qual Deus escolhe perdoar os pecadores e reconciliá-los


consigo mesmo deve, acima de tudo, ser totalmente coerente com o seu
próprio caráter. Não é somente que ele deve subverter e desarmar o dia­
bo a fim de resgatar os seus cadvos. Nem é somente que ele deve satisfa­
zer à sua lei, sua honra, sua justiça ou a ordem moral: é que deve satisfazer
a si mesmo.21

Ao morrer na cruz, Jesus estava satisfazendo o caráter santo e justo de


Deus, ao mesmo tempo em que estava dando vazão ao seu amor eterno.
Nada demonstra de modo tão espetacular, e simultaneamente, estes dois
atributos de Deus. A cruz demonstra de modo impressionante a justiça e o
amor de Deus.

Conclusão
Apesar da descrença de muitos, Deus continua salvando os homens pela
loucura da pregação do Cristo crucificado. A dificuldade das pessoas com a
doutrina da morte de Cristo é devida a uma incompreensão do próprio
caráter de Deus. Como diz Lloyd-Jones:

A dificuldade real que as pessoas têm com esta doutrina é geralmente devi­
da ao fato de que todo o seu conceito de Deus é inadequado. Ignoram
alguns aspectos do Seu caráter. Enfatizam só um lado, com a exclusão dos
outros. Se elas tomassem a Deus tal como ele é c compreendessem a verda­
de acerca dele, suas dificuldades se desvaneceriam.22

Concluímos, portanto, que não havia outro modo de o homem ser salvo
sem que Cristo morresse. A morte do mediador é a grande demonstração
do poder, da soberania, da justiça e do amor de Deus. Acima de tudo, cabe
alegria e louvor a Deus por ter estabelecido o plano da salvação por meio
do sacrifício de Jesus. Não devemos questionar o método de Deus, pois ele,
na sua sabedoria, é o único que tem condições de estabelecer o que é certo.
21

0 substituto dos pecadores


^wir-HW5r

Agora que já entendemos a necessidade da morte de Jesus, precisamos


entender um pouco mais profundamente o modo como a sua morte traz a
salvação para o seu povo. E impossível entendermos a necessidade e o signi­
ficado da redenção sem entender o que o pecado significa. As pessoas têm
um conceito equivocado a respeito do pecado. Isso é compreensível, pois o
pecado é algo que faz parte de nós, é algo absolutamente comum em nosso
dia-a-dia. Ele está presente em praticamente todos os nossos momentos, e
isso significa que nos acostumamos com ele. As pessoas têm essa imensa
capacidade de adaptação. Nós nos acostumamos às coisas à nossa volta, e,
então, elas deixam de ter o significado que um dia tiveram. Se uma família se
muda do interior para uma grande cidade, nas primeiras noites não conse­
guirá dormir por causa do barulho, mas uma semana depois estará perfeita­
mente adaptada, exceto por alguns sobressaltos durante a madrugada. De­
pois de alguns meses, dormirá como se estivesse no sítio. Ao longo de uma
vida de acomodação ao pecado, ele não parece mais algo tão assustador. Para
muitos, é inconcebível que pecados cometidos durante uma vida tão curta,
causem uma eternidade de perdição, mas, como diz Schaeffer, “o problema
não está na quantidade de pecados que praticamos, mas em quem ofende­
mos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente santo”.1 A transgressão
não depende apenas do ato em si, mas de quem é o ofendido. Nossos peca­
dos podem até parecer insignificantes em certos momentos, mas o fato é
que eles ofendem a santidade infinita de Deus. Isso os torna terríveis. Por
essa razão, a redenção se reveste de maior importância ainda, ela é o cami­
nho divino para nos tornar aceitáveis diante dele apesar dos nossos pecados.

Teorias a respeito da expiação


O conceito de expiação levou algum tempo para ser desenvolvido na
teologia da igreja cristã. A doutrina da expiação surgiu da mesma maneira
268 Razão da esperança

que as outras doutrinas, pois, como diz Benjamin Warfield, toda doutrina
surge mediante “um processo gradual e ordenado”.2 Os pais da igreja tra­
taram da expiação, porém havia muitas discordâncías entre eles. O conceito
antigo mais difundido sobre a expiação entendia a morte de Cristo como
um resgate pago a Satanás.3 Essa teoria foi muito popular, especialmente
na igreja antiga. Por mais de mil anos, essa foi a idéia mais aceita sobre a
expiação. Como o próprio nome indica, essa teoria sugere que Jesus pagou
um resgate ao diabo para a libertação dos pecadores. A partir do entendi­
mento de que o pecador está sob o domínio de Satanás, sendo este o deus
deste século ou o príncipe deste mundo, Jesus precisou morrer para satisfa­
zer às exigências do diabo. Aos poucos, essa teoria caiu em desuso pela falta
de evidência bíblica. A principal falha dessa teoria é colocar Satanás numa
posição praticamente superior à de Deus, como se Deus tivesse que prestar
contas ao diabo.
Anselmo (1033-1109), um arcebispo da Cantuária, foi o primeiro a dar
um tratamento mais amplo para a doutrina da expiação. Segundo Warfield,
“Anselmo estabeleceu para todos os tempos as linhas gerais sobre as quais
há de ser concebida a expiação, quando se pensa nela como uma obra de
libertação do castigo do pecado”.4 Com base nas relações comerciais de
sua época entre senhores e servos, Anselmo argumentou que o pecado
havia ferido a honra de Deus. Essa honra precisava de reparo. A função de
Cristo é obedecer à lei e morrer para satisfazer a honra de Deus. Ele adqui­
re para si um mérito muito grande, mas o fato é que ele não precisa desse
mérito, então, pede que o mérito seja derramado sobre o povo.5 O único
problema com essa teoria é que ela deixa de lado a questão da justiça de
Deus, enfatizando apenas a honra de Deus que precisava ser satisfeita. A
seu favor, ela tem o fato de que localiza a expiação em relação ao próprio
Deus. Deus precisava ser satisfeito, e não o diabo.
Muitas outras teorias a respeito da expiação foram desenvolvidas ao
longo da História. A seguir veremos algumas:
Teoria da Influência Moral'. Essa teoria foi formulada por Abelardo em
resposta à teoria de Anselmo. Segundo essa teoria, Deus não tem qualquer
dificuldade em perdoar os homens, ele pode perdoá-los até mesmo sem a
cruz. A cruz é apenas uma demonstração do amor de Deus. Na cruz, Deus
está dizendo que não importa o tamanho do pecado, ele pode perdoar até
mesmo o pecado de matar o seu Filho. A morte de Jesus, segundo essa
teoria, é uma tentativa de amolecer o coração do homem, influenciando-o
moralmente, para que mude de atitude e receba o perdão. Essa é uma teoria
muito popular nos dias de hoje, mas é totalmente antibíblica, pois, embora
0 subsliluto dos pecadores 269

enfatize o amor de Deus, falha em reconhecer sua justiça e a seriedade com


que Deus considera sua lei.
Teoria do Exemplo: Segundo essa teoria, Deus pode perdoar a quem ele
quiser sem exigir qualquer satisfação. A vida e a morte de Cristo foram
apenas exemplos, não há qualquer poder objetivo de salvação em seu sacri­
fício. As pessoas podem ser salvas se seguirem o exemplo de amor, fé e
abnegação de Cristo. Não há qualquer idéia de perdão incluída na morte de
Jesus; trata-se apenas de um exemplo de fé a ser seguido. Essa teoria oculta
muitos erros, por exemplo, um grande equívoco a respeito da justiça do
homem e de Deus. Ela não vê o homem como perdido e não faz justiça ao
caráter santo de Deus. Jesus seria apenas um mártir, alguém que deu a vida
por uma causa, e nada mais do que isso. Essa, talvez, seja a idéia mais popu­
lar a respeito da morte de Jesus que se tem hoje.
Teoria do Governo Moral: Segundo essa teoria, Deus poderia perdoar os
homens independentemente das exigências da lei, as quais, se ele quisesse,
poderia até mudar. Deus resolveu aceitar o sacrifício de Jesus porque assim
demonstra que não está contente com o pecado, e assegura o seu governo
moral sobre o universo. Assim, o sacrifício de Jesus é muito mais uma de­
monstração da vontade de Deus do que algum tipo de expiação pelo peca­
do. Essa teoria falha em não considerar a lei como Deus a considera, fazen­
do dela algo secundário e sem importância.
Teoria Mística-. De acordo com essa teoria, a natureza humana de Jesus
não era perfeita, mas pecaminosa. Como Jesus obedeceu perfeitamente à
lei de Deus, essa natureza foi elevada até o nível da divina, especialmente
por causa de sua morte que extirpou todas as impurezas. Desse modo, a
natureza humana é reunida a Deus. Quando essa obra de Cristo é aplicada
ao ser humano, a redenção acontece, pois produz mudança de vida na
pessoa. Essa teoria não faz justiça ao caráter santo de Jesus, nem à sua
divindade.
Teoria do Arrependimento Vicário: Essa teoria afirma que a única coisa que
o homem precisa fazer para ser salvo é demonstrar um arrependimento
autêntico. O problema é que o homem não tem condições de oferecer esse
arrependimento. A obra de Cristo consistiu justamente no fato de ele ofe­
recer esse arrependimento em lugar do homem. Essa teoria falha ao
desconsiderar o sacrifício de Jesus, reduzindo tudo à questão de simples
arrependimento.6
Todas essas teorias falham, pois minimizam a importância do sacrifício
de Cristo, tornando-o supérfluo e desnecessário. A razão disso é um falso
entendimento do pecado do homem, da lei e da justiça de Deus. Na con-
270 Razão da esperança

cepção reformada, a expiação conforme a Bíblia a revela é uma questão de


substituição.

Expiação c o m o substituição
Quando o homem pecou, ele se colocou sob a condenação da lei de
Deus. Ele ficou devendo uma reparação a Deus. Essa reparação é exigida
pela justiça de Deus, que estabeleceu uma lei para ser cumprida e uma pu­
nição para quem a descumprisse. Ao contrário do que diz a maioria das
teorias expostas acima, Deus não poderia ignorar a sua lei, pois se fizesse
isso estaria negando um princípio que ele mesmo estabeleceu e, conse­
qüentemente, estaria negando a si mesmo. O homem somente poderia fa­
zer essa reparação se sofresse eternamente a penalidade fixada pela trans­
gressão. De fato, segundo a Bíblia, muitos passarão a eternidade pagando
pelos seus crimes, mas isso exclui a possibilidade da redenção. Deus pode­
ria exigir isso de todos os homens, mas em sua misericórdia providenciou
uma maneira de salvar o pecador. Deus designou um substituto para tomar
o lugar do homem no ato de receber a punição. Se alguém objetasse que um
homem só, em lugar do mundo inteiro parece desproporcional, diríamos
que de fato é, mas para o lado de Jesus. Ele, sendo Deus-homem, ofereceu
um sacrifício mais valioso do que se todos os homens fossem sacrificados
ao mesmo tempo. Assim como a intensidade da transgressão depende da
dignidade do ofendido, também o valor do sacrifício segue o mesmo prin­
cípio. Não importa a quantidade de sacrifícios, mas o valor deles. O sacrifí­
cio de Jesus, o perfeito Deus-homem, é de valor infinito, e, portanto, am­
plamente suficiente para salvar todos os homens em todos os tempos, ain­
da que, efetivamente não faça isso.

Substituição no Antigo Testamento


Para muitos estudiosos, os sacrifícios do Antigo Testamento possuíam
apenas caráter de “adoração ou culto” e não eram expiatórios. Como apon­
ta Warfield, “a diferença fundamental é que, num caso, o sacrifício descansa
sobre a consciência do pecado e tem a sua referência à restauração por
causa da iniqüidade do ser humano para o favor de um Deus condenador;
no outro, permanece fora de toda relação com o pecado e tem a sua refe­
rência somente na expressão de uma atitude própria de deferência”.7 Nos­
sa defesa é que os sacrifícios do Antigo Testamento eram substitutivos, e,
0 substituto dos pecadores 271

portanto, expiatórios. É certo que havia sacrifícios de louvor ou gratidão,


mas a ênfase central dos sacrifícios era a expiação. A primeira instrução
sobre sacrifícios dada em Levítico já deixa isso bem claro:

Chamou o S e n h o r a Moisés e, da tenda da congregação, lhe disse: Fala aos


filhos de Israel e dize-lhes: Quando algum de vós trouxer oferta ao S e n h o r ,
trareis a vossa oferta de gado, de rebanho ou de gado miúdo. Se a sua oferta
for holocausto de gado, trará macho sem defeito; à porta da tenda da con­
gregação o trará, para que o homem seja aceito perante o S e n h o r , E porá a
mão sobre a cabeça do holocausto, para que seja aceito a favor dele, para a
sua expiação. Depois, imolará o novilho perante o S k n h o r ; e os filhos de
Arão, os sacerdotes, apresentarão o sangue e o aspergirão ao redor sobre o
altar que está diante da porta da tenda da congregação (Lv 1.1-5).

Quando o pecador cometia uma transgressão, oferecia um animal que


era sacrificado em seu lugar. Por mais que escritores de inclinação liberal8
se recusem a aceitar que os sacrifícios eram feitos pelos pecados a fim de
trazer o perdão, a evidência bíblica é imensa nesse sentido. Colocar as mãos
sobre a vítima era um ato de imputar o pecado. O ato mais solene do Anti­
go Testamento apontava claramente para isso: no dia da expiação, um bode
deveria ser trazido diante do sacerdote, e a seguinte instrução deveria ser
seguida:

Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confes­
sará todas as iniqüidades dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e
todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e envia-lo-á ao
deserto, pela mão de um homem à disposição para isso. Assim, aquele bode
levará sobre si todas as iniqüidades deles para terra solitária; e o homem
soltará o bode no deserto (Lv 16.21,22).

A “transferência” de pecados do povo para o bode está claramente es­


pecificada nessa passagem. O bode era o substituto do povo. Toda essa
cerimônia apontava para Cristo, pois como diz Hodge, “o sentido em que
ele foi sacrifício é o mesmo que aquele em que eram sacrifícios as ofertas
pelo pecado do Antigo Testamento”.9 Os sacrifícios pelo pecado no Anti­
go Testamento eram substitutivos ou vicários, e isso demonstra que a subs­
tituição é o método divino para a expiação.
O messias anunciado em Isaías 53, que é uma profecia sobre Jesus de
acordo com o Novo Testamento, seria aquele que sofre e morre pelos peca­
dos do povo. Em quase todos os versículos desse capítulo, a morte substitutiva
272 Razão da esperança

do Messias é anunciada. O versículo 4 diz: “Certamente, ele tomou sobre si


as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputáva­
mos por aflito, ferido de Deus e oprimido”. As enfermidades e dores desta­
cadas na passagem são espirituais e sinônimas do pecado; ele as carregou
sobre si. O versículo 5 continua: “Mas ele foi traspassado pelas nossas trans­
gressões e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz esta­
va sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”. Talvez esse seja o versí­
culo mais claro da Bíblia que fala do sacrifício substitutivo do Messias. Ele
foi transpassado pelas iniqüidades do povo. O castigo que proporciona a paz
com Deus estava sobre ele. O versículo 6 arremata: “Todos nós andávamos
desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Se­
n h o r fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos”. Os seres humanos são os

verdadeiros pecadores, mas Deus fez cair sobre Jesus a iniqüidade do povo.
O versículo 8 ainda diz que ele foi ferido pela transgressão do povo. O ver­
sículo 10 diz que ele deu a sua alma como oferta pelo pecado. O versículo 11
que ele leva as iniqüidades de seu povo sobre si. E o versículo 12 que ele
levou sobre si o pecado de muitos. A obra expiatória substitutiva do Messias
está bem demonstrada nessa passagem profética.

Substituição n o Novo Testamento

Toda essa evidência do Antigo Testamento está em perfeita harmonia


com o ensino do Novo Testamento a respeito da expiação. Pedro afirma
que Jesus, ao morrer na cruz, estava “carregando ele mesmo em seu corpo,
sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos para os pecados,
vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados” (IPe 2.24). Clara­
mente, a referência às chagas de Cristo que saram os pecadores é uma refe­
rência à profecia de Isaías 53. Pedro está aplicando a profecia de Isaías 53,
que falava do sacrifício substitutivo do Messias, a Jesus. Pedro diz que Jesus
carregou sobre o madeiro os nossos pecados. A substituição está muito
evidente nessa passagem, porém, isso não significa que Jesus tenha carrega­
do os nossos pecados literalmente, como se tivesse carregado a nossa natu­
reza pecaminosa, pois não haveria modo de a nossa natureza pecaminosa
ser arrancada de nós e transferida para Cristo. As vezes, as pessoas dizem
que Jesus, na cruz, se tornou o pior dos pecadores porque recebeu os peca­
dos do mundo inteiro sobre si. Isso não é muito exato. Não foram os peca­
dos em si, mas a culpa pelos nossos pecados que ele carregou e, por isso, ele
foi condenado. E ele somente pôde carregar essa culpa porque não era algo
inerente a nós, mas uma conseqüência formal da quebra da lei,10
0 substituto dos pecadores 273

São muitas as passagens do Novo Testamento que apontam para a subs­


tituição. João Batista relacionou Jesus com o sacrifício do Antigo Testamen­
to ao apontar para ele e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo!” Qo 1.29). O sacrifício de Jesus é substitutivo porque consuma os
sacrifícios substitutivos do Antigo Testamento. No capítulo 5 de Romanos,
Paulo também trabalhou bastante com essa idéia. Primeiro ele disse “Porque
Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios”
(Rm 5.6). Essa, de acordo com Paulo, é a prova do amor de Deus, o “fato de
ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Aos Gá-
latas Paulo disse a mesma coisa com palavras diferentes: “O qual se entregou
a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perver­
so, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (G11.4). Por causa dessa entre­
ga, de acordo com Paulo, em Cristo “temos a redenção, pelo seu sangue, a
remissão dos pecados” (Ef 1.7). O sangue que faz remissão de pecados so­
mente pode ser um sangue substitutivo, nos mesmos moldes do sangue der­
ramado no Antigo Testamento (Lv 17.11; Hb 9.22). Dois versículos em
Hebreus são bastante precisos sobre este assunto: “Nessa vontade é que
temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez
por todas” (Hb 10.10). E logo adiante ele complementa: “Jesus, porém, ten­
do oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à
destra de Deus” (Hb 10.12). O sacrifício de Jesus foi pelos pecados e foi
único. A mesma idéia ecoa nos escritos de Pedro que afirma: “Sabendo que
não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resga­
tados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo
precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de
Cristo” (IPe 1.18,19). O resgate dos cristãos acontece pelo pagamento de
algo mais precioso que o ouro ou a prata, o sangue de Cristo. Pedro diz ainda
que “Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos,
para conduzir-vos a Deus” (IPe 3.18), A expressão “o justo pelos injustos”
significa “o justo no lugar dos injustos”. A morte substitutiva de Jesus é que
nos leva a Deus. Ele foi o nosso substituto na cruz,

0 castigo do inferno
Isaías falou sobre a transferência do castigo pelas transgressões do povo
para o Messias. Ele disse: “Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e
moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele”
(Is 53.5). Se o castigo pela quebra da lei é a morte em todos os sentidos: física
274 Razão da esperança

(da carne), espiritual (separação de Deus) e eterna (inferno), como podemos


dizer que Jesus recebeu todo o nosso castigo? A princípio, parece que ele
sofreu apenas a morte física. Normalmente, as descrições da cena da paixão,
sejam no cinema ou no teatro, mostram apenas o sofrimento físico e a morte
física de Jesus. Porém, segundo a Bíblia, Jesus sofreu muito mais do que a
morte física, ele padeceu os horrores da separação de Deus e do próprio
inferno. Também deve ser entendido que a cruz não foi o único lugar èm que
Jesus sofreu pelos pecadores, mas como bem disse Calvino, “Com toda ver­
dade se pode dizer que não somente passou toda sua vida em perpétua cruz
e aflição, senão que toda ela não foi senão uma espécie de cruz contínua”,11
ou seja, “toda a sua vida foi uma cruz perpétua”.12 Isso ecoa na resposta à
pergunta 37 do Catecismo de Heidelberg: “Que entendes pela palavra ‘so­
freu’?” “Que durante toda a sua vida na terra, e especialmente no fim dela, ele
suportou no corpo e na alma a ira de Deus contra os pecados de todo o
gênero humano, de modo que, pelo seu sofrimento, como o único sacrifício
expiatório, ele redimisse o nosso corpo e a nossa alma da maldição eterna, e
para nós conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna.”

Desceu ao infer no ?
Existe uma crença de que, durante o período em que Jesus esteve mor­
to, ou seja, entre a sexta-feira e o primeiro dia da semana, ele desceu ao
inferno. Isso parece ser visto no próprio Credo Apostólico que diz em
certa altura: “Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, mor­
to e sepultado; desceu ao Hades”. O Credo surgiu ainda no início da igreja
e refletia os ensinamentos dos apóstolos.13 Porém, a expressão “desceu ao
Hades (inferno)” é bastante discutida. Primeiramente, é preciso que se en­
tenda que essa expressão não fazia parte do Credo em suas primeiras ver­
sões. A frase “desceu ao inferno” não se encontrava em nenhuma das ver­
sões primitivas (nas versões usadas em Roma, no resto da Itália e na África)
até que ela apareceu em uma das duas versões de Rufino em 390 d.C.14 O
próprio Rufino não entendia que a frase significasse que Jesus desceu ao
inferno literalmente, mas à sepultura. De qualquer modo, é somente a par­
tir de 650 d.C. que outros começaram a usar a expressão. Considerando
isso, será que essa frase pode ser realmente considerada “apostólica”, uma
vez que o Credo é considerado tão antigo quanto os apóstolos?
A igreja católica romana entende que Jesus, após a sua morte foi para o
U mbus Patrum (Limbo dos Pais). Nesse lugar estavam os santos do Antigo
Testamento, à espera de que Jesus completasse a sua obra redentora, para
0 subsliluto dos pecadores 275

que eles pudessem ir para o céu. No entendimento católico, os santos do


Antigo Testamento não estavam no inferno, mas também não estavam no
céu, porque Jesus não havia consumado a obra da salvação. Assim, após a
sua morte, Jesus foi até esse lugar, anunciou a vitória do evangelho para
aquelas almas e as conduziu ao céu. A igreja luterana, por sua vez, defende
que Cristo, após a morte, e talvez até após a ressurreição, foi ao inferno e
proclamou a sua vitória sobre Satanás e sobre todos os poderes das trevas,
e pronunciou a sentença de condenação dessas forças malignas. A igreja da
Inglaterra, por outro lado, defende que Jesus desceu apenas em espírito até
o submundo, enquanto o seu corpo permanecia na sepultura. Nesse esta­
do, ele foi até o lugar da habitação dos justos, e lhes proclamou a vitória e o
plano de Deus por meio do evangelho.15 Percebe-se, portanto, que há mui­
tas opiniões diferentes sobre a questão de Jesus ter descido ao inferno. Para
entender melhor essa questão, precisaremos analisar a Bíblia.
Há algumas passagens bíblicas que parecem dar apoio à idéia de que
Jesus desceu ao inferno depois da sua morte na cruz. Deveremos estudá-las
uma a uma.
A primeira passagem a ser analisada é a da pregação de Pedro logo após
o Pentecostes. Pedro está defendendo que Jesus não permaneceu na morte,
antes ressuscitou para que se cumprisse a Escritura. Pedro cita o Salmo 16
composto por Davi: “Porque não deixarás a minha alma na morte, nem
permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 2.27). A palavra “morte”
usada nesses versículos é a palavra hades na língua grega. A partir dessa
passagem, muitos têm argumentado que Jesus de fato foi até o hades depois
da sua morte, mas saiu de lá na ressurreição. O fato é que Pedro está usando
o Salmo 16 para provar que Jesus ressuscitou, e não para dizer que Jesus foi
fazer uma visita ao inferno. Nessa passagem, a palavra hades significa sim­
plesmente morte, e quer dizer que Jesus não permaneceu morto, antes ob­
teve vitória sobre a morte por meio da sua ressurreição. Aqui, hades é ape­
nas sinônimo de morte ou sepultura.
A próxima passagem que devemos considerar é Efésios 4.8,9: “Por isso,
diz: Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos
homens. Ora, que quer dizer subir senão que também havia descido às regiões
inferiores da terra?” Aqui há um contraste entre a ascensão de Jesus e a sua
descida. Muitos interpretam isso como o ato de Jesus ir até o hades, descrito
aqui como as “regiões inferiores da terra” e, depois disso, ter levado os cativos
de lá para o paraíso, por causa da expressão “levou cativo o cativeiro”. O fato
é que, nessa passagem, a palavra hades nem sequer aparece e “regiões inferio­
res da terra” é uma expressão para contrastar com “às alturas” para onde
276 Razão da esperança

Cristo subiu. Devemos entender isso, portanto, como demonstrando a humi­


lhação e a exaltação de Cristo. Quanto aos cativos libertados do texto, deve
ser uma referência aos salvos por sua obra redentora. Porém, essa passagem
não pretende dizer que eles estavam no inferno e foram levados para o céu;
ela está falando da vinda de Jesus a este mundo e de sua volta para a glória.
A passagem mais usada para defender a descida de Jesus ao inferno é 1
Pedro 3.18-20: “...morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual
também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, fo­
ram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de
Noé, enquanto se preparava a arca”. Há pelo menos quatro interpretações
para esta difícil passagem: 1) A pregação de Cristo no curto intervalo de
tempo entre sua morte e ressurreição numa espécie de “descida ao Infer­
no” para anunciar a vitória aos espíritos dos homens maus dos dias de Noé.
2) O mesmo anúncio de Cristo, mas não a almas de homens e sim aos
espíritos malignos aprisionados que decaíram do céu, os filhos de Deus que
se apaixonarem pelas mulheres conforme interpretação de Gênesis 6.1-4.
3) A proclamação da vitória de Cristo após a ressurreição sobre os espíritos
malignos após a Ascensão. 4) Cristo pré-encarnado pregando no Espírito
através do próprio Noé para a geração maligna do Dilúvio. Todas as op­
ções encontram dificuldades em algum momento, sendo que as duas pri­
meiras nos parecem fora de cogitação. A terceira opção tem alguma vanta­
gem, pois mostraria o domínio de Cristo sobre os principados e potestades
(Cl 2.15), desde que, com isso, não se pretenda dizer que ele foi até o Infer­
no. A quarta opção é provavelmente a mais recomendável, pois vê Jesus
como pregando na própria pessoa de Noé, através do Espírito Santo, aos
contemporâneos do próprio Noé. Talvez isto explique a idéia de que Jesus
pregou “no espírito” (v, 18), aos homens desobedientes dos dias de Noé (v,
20). Os homens dos tempos de Noé eram considerados, na tradição judai­
ca, como os piores de todos os tempos. O argumento de Pedro seria que
mesmo aqueles homens não ficaram sem pregação, pois Noé, foi chamado
pelo próprio Pedro de “pregador da justiça” (2Pe 2,5). Se Jesus fosse anun­
ciar o Evangelho aos mortos estaria sugestionando uma possível salvação
após a morte, o que é totalmente repudiado pelas Escrituras (Hb 9.27). O
texto nada fala sobre o Inferno. Além disso, no Inferno só estariam os
homens do tempo de Noé?
Resta-nos apenas analisar uma última passagem, também dessa mesma
carta: IPedro 4.6: “Pois, para este fim, foi o evangelho pregado também a
mortos, para que, mesmo julgados na carne segundo os homens, vivam no
espírito segundo Deus”. Normalmente os defensores da descida de Jesus
0 substituto dos pecadores 211

ao inferno ligam essa passagem com a anterior, e dizem que Jesus pregou às
almas dos mortos depois da sua morte. Novamente precisa ser dito que se
isso é verdade, então, a Bíblia estaria sugerindo que a salvação depois da
morte é possível. Devemos, no entanto, buscar outra interpretação para a
passagem. O contexto nos ajuda a entender o que Pedro está querendo
dizer. Pedro está dizendo, a partir do versículo primeiro, que os crentes não
deveriam mais viver em luxúrias como os demais homens, ainda que com
isso ofendessem seus contemporâneos que vivem dessa maneira, e fossem
ultrajados por eles (v. 2-4). Os ultrajadores teriam que prestar contas diante
de Deus que é competente para julgar os vivos e os mortos (v. 5). Por essa
razão, o evangelho foi pregado aos mortos, para que mesmo tendo sido
condenados na carne diante dos homens, fossem vivificados no espírito
por Deus. A passagem não está dizendo que Jesus foi até o inferno e pre­
gou aos mortos para salvá-los, mas que os cristãos que estavam mortos, no
momento em que Pedro escrevia aquela carta, ouviram a palavra enquanto
estavam vivos. E que embora tivessem sofrido e até sido mortos na carne,
agora viviam segundo Deus. A frase “foi o evangelho pregado” está no
passado, ao passo que “mortos” está no presente. Eles estavam mortos no
momento em que Pedro estava escrevendo, mas quando a palavra lhes foi
pregada, estavam vivos. Até porque somente poderiam estar vivos para
poderem “ser julgados na carne”. Como poderiam ser julgados na carne se
já estavam mortos? Embora essa seja uma passagem bastante difícil e obs­
cura, não é necessário pensar que ela ensine a salvação depois da morte.

0 inferno fo i à cruz
Duas expressões de Jesus não deixam dúvidas de que ele não foi ao
inferno depois da-sua morte. As duas estão relatadas no Evangelho de Lu­
cas no capítulo 23. Ao ladrão que estava ao seu lado na cruz e que se arre­
pendeu naquele momento ele disse: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc
23.43). E sua última palavra na cruz foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito” (Lc 23.46). Essas passagens parecem sugerir que, se a alma de
Jesus ficou separada do seu corpo enquanto ele estava no sepulcro, certa­
mente ela não foi até o inferno, antes pelo contrário foi até o paraíso, até
Deus.16 Quanto ao que Jesus disse a Maria Madalena, após a sua ressurrei­
ção, que ainda não havia subido ao Pai (Jo 20.17), devemos entender como
uma referência à sua subida física. Com o corpo ressuscitado, naquela ma­
nhã da Páscoa, ele ainda não tinha subido ao céu. Mas nada impede que seu
espírito já tivesse ido até Deus para recepcionar o ladrão convertido.
278 Razão da esperança

Desde João Calvino, os protestantes reformados têm defendido que Jesus


de fato sofreu as angústias do inferno, mas não foi ele quem desceu ao inferno,
e sim o inferno é que foi até ele na cruz e no jardim do Getsêmani. Ele sofreu
os terrores do inferno no momento da sua condenação. A punição do inferno
deve ser entendida como um estado de separação de Deus, e abandono sob a
sua ira. De fato, os condenados no inferno estão separados de Deus e abando­
nados sob a sua ira eterna. Os reformados defendem que Jesus sofreu isso na
cruz. É importante entender que Jesus tinha que sofrer as angústias do infer­
no, pois ele substituiu o homem em todo o processo de condenação que o
pecado acarreta. Num sentido, Jesus experimentou um estado de punição pe­
los pecados durante toda a sua vida.17 O simples fato de ele ter que deixar seu
estado de glória para assumir um corpo de homem já era em si uma punição.
Porém, o momento mais crucial disso tudo aconteceu no Gólgota. É somente
assim que podemos entender o real sofrimento de Cristo ainda no Jardim de
Getsêmani quando sua alma “começou a entristecer-se e a angustiar-se” (Mt
26.37). Nessa ocasião, ele disse: “A minha alma está profundamente triste até à
morte” (Mt 26.38). Em profundo estado de angústia, ele, prostrado sobre seu
rosto, orava ao Pai: “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice!” (Mt 26.39).
Lucas diz que “estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que
o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra” (Lc 22.44).
Jesus estava nesse estado de agonia porque antecipava o sofrimento do infer­
no, o qual se consumaria na cruz. Muito mais do que medo pelo sofrimento
físico, Cristo, naquele momento, passava por um conflito íntimo, pois havia o
“temor muito maior de se tornar tudo o que mais odiava no mais profundo do
seu ser”,18 ou seja, o temor de se tornar um maldito, um condenado do infer­
no. Calvino, falando sobre a necessidade desse sofrimento de Cristo, diz: “Nada
teria acontecido se Jesus sofresse apenas a morte temporal. Pois era necessário
que sentisse em sua alma o rigor do castigo de Deus, para se pôr sob a sua ira
e satisfazer a seu justo juízo. Pelo qual convinha também que combatesse com
as forças do inferno e que lutasse com o horror da morte eterna”.19 A explica­
ção de Calvino para o fato de a declaração “desceu ao hade.r” do Credo Apos­
tólico ter sido posta após a expressão “foi sepultado” é porque está falando da
realidade espiritual da morte de Cristo. Ela foi posta após a descrição da morte
física “para que saibamos que não somente o corpo de Jesus Cristo foi entre­
gue como preço por nossa redenção, como que também pagou outro preço
muito maior e mais excelente, que foi padecer e sentir em sua alma os horren­
dos tormentos que estão reservados para os condenados e réprobos”.20
É importante que fique bem claro que, na visão reformada, Cristo em
momento algum foi ao inferno, nem para sofrer, nem para fazer algum tipo
0 substituto dos pecadores 279

de proclamação. Ele sofreu os tormentos do inferno que precisava sentir


para substituir o seu povo enquanto esteve crucificado. Por isso dizemos:
"O inferno foi até a cruz”. Mas é claro que essa é apenas uma força de
expressão. Bavinck diz, “de fato, não em um sentido espacial, mas em um
sentido espiritual, ele desceu ao inferno”.21 Ou seja, ele não precisou sair da
cruz para ir até o inferno. Sua ida ao inferno não foi física, mas espiritual.
A passagem bíblica que mais demonstra a razoabilidade dessa idéia é a
que relata as palavras de Jesus quando ele estava pendurado na cruz. Ma­
teus diz que “desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a
terra. Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli,
lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me de­
samparaste?” (Mt 27.45,46). A Bíblia não diz o que aconteceu durante aquelas
três horas de escuridão que antecederam o grito desesperado do Senhor.
Mas certamente ele sofria angústias indescritíveis. As trevas do inferno en­
volveram o Calvário, enquanto Deus fazia cair sobre Jesus “as nossas ini-
qüidades” (Is 53.6). Era o momento que ele “estava sendo feito pecado por
nós” (2Co 5.21) e recebia em nosso lugar o pleno “salário do pecado” (Rm
6.23). Como conseqüência, e como real sofrimento do inferno, Jesus se viu
abandonado por Deus, igual ao bode expiatório que recebia sobre si o pe­
cado do povo e então era expulso e enviado solitário ao deserto (Lv 16.21-
22). Contudo, não podemos pensar que houve algum tipo de separação
entre a primeira e a segunda pessoa da Trindade no momento em que Jesus
foi crucificado. Não devemos pensar numa separação definitiva, devemos
pensar numa separação mais em termos de um abandono, ou melhor, um
abandono da graça. O homem Jesus se viu responsabilizado pelos pecados
da raça humana, e se sentiu abandonado por Deus. Naquele momento, o
filho já não podia ver o olhar terno do pai. Tudo o que ele via era o olhar de
ira.22 Essa foi a maior punição que o Filho de Deus recebeu. Essa punição
se igualou aos tormentos do inferno, pois o inferno significa estar separado
da graça de Deus e ser abandonado à ira dele. Nas três horas de trevas
daquela sexta-feira, o inferno foi até a cruz.23 E assim, o substituto do ser
humano recebeu sobre si todo o peso da condenação divina pelo pecado.

Os efeitos da expiação
Os efeitos da expiação são imensos, eles não alcançam apenas o povo de
Deus, mas toda a criação. Todas as coisas existentes, de um modo ou de
outro, foram afetadas pela expiação de Cristo.
280 Razão da esperança

Em relação a Deus

Podemos dizer que a redenção foi feita totalmente em relação a Deus.


Cristo não pagou resgate a Satanás ou a qualquer outro. Ele estava satisfa­
zendo uma exigência do próprio Deus. Isso não quer dizer que algo da
imutabilidade de Deus foi afetada pela expiação. Deus simplesmente dirige,
sobre a base do sacrifício, seu amor e bondade ao homem, ao passo que
sem o sacrifício, somente a ira seria dirigida ao homem. A expiação não
produz o amor de Deus, como muitos imaginam, a expiação é fruto do
amor de Deus. Porque Deus ama as pessoas é que enviou seu Filho a fim de
redimi-las (Jo 3.16). Com relação a Deus, explicitamente a Escritura diz que
a expiação garante que ele seja “justo e justificador daquele que tem fé em
Jesus” (Rm 3.26). Somente por causa da morte de Cristo, Deus pode justi­
ficar o pecador e continuar sendo totalmente justo, ou seja, pode usar o seu
amor sem ferir a sua justiça. A expiação vicária (substitutiva) de Cristo satis­
faz inteiramente o caráter de Deus.

Em relação a o ser h u m a n o
O ser humano, sem sombra de dúvida, foi o grande beneficiado com a
expiação. O homem que por natureza está “morto em delitos e pecados”
(Ef 2.1), que “carece da glória de Deus” (Rm 3.23), a partir da expiação
pode se tornar filho de Deus. Nas palavras de Pedro: “Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de
Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das
trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo,
mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia,
mas, agora, alcançastes misericórdia” (IPe 2.9,10). Essa é a posição que a
expiação de Cristo garante ao povo salvo. Os pecadores, outrora privados
da presença de Deus, agora têm “intrepidez para entrar no Santo dos
Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos con­
sagrou pelo véu, isto é, pela sua carne” (Hb 10.19,20). Para resumir, a
expiação garante aos remidos toda sorte de bênção espiritual (Ef 1.3).
Para aqueles que pensam que a expiação deve garantir a todos os homens
a salvação, a Bíblia é bastante clara ao afirmar que Jesus morreu apenas
pelo seu povo.
0 subslilulo dos pecadores 281

Em relação ao diabo

Satanás foi o grande prejudicado com a obra de Cristo. A expiação de


Cristo não pagou um resgate a Satanás, antes o despojou de tudo o que ele
tinha. Uma das coisas que ele perdeu com o sacrifício de Jesus foi o seu
posto de acusador. Jesus disse de Satanás: “Eu via Satanás caindo do céu
como um relâmpago” (Lc 10.18). Na batalha descrita no Apocalipse, que
simboliza a vitória de Jesus sobre Satanás, é dito dele: “E foi expulso o
grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor
de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos...
pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia
e de noite, diante do nosso Deus” (Ap 12.9,10). Ele perdeu o lugar de
acusador diante de Deus. É sobre isso que o autor aos Hebreus por certo
está falando, quando diz que Jesus derrotou o diabo que detinha o poder da
morte (Hb 2.14). Evidentemente que o poder da morte, que é atribuído a
Satanás, não é o poder de tirar a vida de alguém fisicamente, pois somente
Deus dispõe desse poder. Somente Deus estabelece os limites da vida de
alguém. O poder da morte que Satanás dispunha era o poder de exigir a
morte diante de Deus para os transgressores da lei. Ao morrer pelos peca­
dos, Cristo satisfez a justiça de Deus, e Satanás não tem mais o que exigir, e
nem o que acusar. Ninguém pode intentar “acusação contra os eleitos de
Deus”, pois, “é Deus quem os justifica” (Rm 8.33). Eles não podem ser
mais condenados, pois Cristo Jesus morreu e ressuscitou por eles, e estan­
do à direita de Deus, intercede pelo seu povo (Rm 8.34). O acusador per­
deu o direito de acusar. A expiação não apenas tirou os direitos de Satanás
sobre o homem, como garantiu a própria destruição de Satanás. Na cruz,
Jesus esmagou a cabeça da serpente (Gn 3.15).

Em relação à criação

Todo o universo se beneficia da redenção. A terra que foi posta sob


maldição a partir da entrada do pecado no mundo (Gn 3.17), tem em Cristo
a garantia de sua restauração. Por isso Paulo diz:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.
Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa
daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida
do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angús­
tias até agora (Rm 8.19-22).
282 Razão da esperança

A morte de Cristo não foi somente para salvar as pessoas, mas para
renovar a própria terra e tirá-la da maldição do pecado. Literalmente, para
fazer uma nova terra, afinal, ele é o cordeiro que tira o pecado do mundo
(cosmos; Jo 1.29).
Por mais estranho que possa parecer a princípio, de alguma maneira, o
próprio céu também se beneficia da redenção. Estamos falando aqui de
algumas coisas que não entendemos de todo. Mas o autor aos Hebreus diz:
“Era necessário, portanto, que as figuras das coisas que se acham nos céus
se purificassem com tais sacrifícios, mas as próprias coisas celestiais, com
sacrifícios a eles superiores. Porque Cristo não entrou em santuário feito
por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer,
agora, por nós, diante de Deus” (Hb 9.23,24). De algum modo o pecado
que entrou no mundo, e que se originou primeiramente no Diabo e depois
em Adão, tornou necessária a purificação do tabernáculo celestial (Êx 25.40).
Esse lugar celestial precisava ser purificado e Jesus fez isso com o seu san­
gue. Não sabemos exatamente que tipo de impureza adentrou o céu, mas
sabemos que Satanás estava lá, e foi expulso por causa da morte, ressurrei­
ção e ascensão de Jesus. Pode ser que Paulo tenha isso em mente quando
diz: “E que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele,
reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos
céus” (Cl 1.20). Essa passagem está dizendo que Cristo, por meio do seu
sangue reconciliou não somente coisas na terra, mas também no céu. Tal­
vez seja essa uma das razões porque a Bíblia diz que haverá não só uma
nova terra, mas também “novos céus” (Is 66.22; 2Pe 3.13; Ap 21.1). Tudo o
que o pecado influenciou terá que ser renovado.
Isso nos remete ao assunto da introdução deste capítulo: A seriedade
com que Deus trata o pecado. O fato de os homens estarem acostumados
com o pecado não o torna menos trágico. Diante de Deus, o pecado é
inaceitável porque fere a sua santidade infinita. Por essa razão, Cristo teve
que ser o nosso substituto. Há muita pregação do evangelho nos nossos
dias que não enfatiza o caráter substitutivo da morte de Jesus. Isso é um
grave erro. As pessoas precisam entender a realidade e a gravidade do seu
pecado, bem como o custo da redenção que foi a morte substitutiva de
Cristo. Uma coisa precisa ficar bem clara: “Onde não há expiação não há
evangelho”.24 O evangelho sem cruz pode ser agradável aos homens, mas
em hipótese alguma agrada a Deus.
22

A extensão da expiação de Cristo

Conta-se que, há mais de cem anos, um norte-americano que havia sido


condenado à morte estava para ser executado quando recebeu o perdão do
governador.1 O homem, entretanto, se negou a aceitar o perdão e apelou
para a corte suprema para garantir o seu direito de morrer. A atitude desse
homem pode ter sido uma loucura, mas ele de fato dnha o direito de mor­
rer. Ele era o único culpado por um crime que precisava de reparação. Ele
tinha o direito de morrer porque o perdão do governador não era um ato
de dar vida, mas simplesmente um ato de garantir que não houvesse morte.
Porém, em última instância, a escolha era pessoal.
Todos os cristãos ortodoxos crêem que Cristo morreu para redimir as
pessoas, mas nem todos concordam sobre por quais pessoas ele morreu.
Arminianos, luteranos e calvinistas concordam, por exemplo, que a satisfa­
ção de Cristo é suficiente para salvar todos os seres humanos. Também
concordam que os benefícios da salvação não são aplicados a todos os
seres humanos, mas apenas sobre os que crêem. Eles concordam ainda que
a oferta do evangelho deve ser feita a todos os seres humanos com a real
intenção de que se convertam. Por fim, concordam que todos os seres hu­
manos, mesmo os incrédulos, recebem algum benefício da morte de Cristo.
O grande fato divergente é: A morte expiatória de Cristo foi realizada com
a intenção de salvar somente os eleitos ou todas as pessoas sem exceção?
Cristo morreu pelos pecados, mas isso foi apenas num sentido de “provi­
são” ou foi algo realmente “eficaz”?
Os arminianos crêem que Cristo não morreu por qualquer pessoa em
especial, mas, por todo o mundo. Assim, ele apenas tornou possível a salva­
ção a todos, mas depende exclusivamente de cada um fazer uso, ou não, do
poder redentor que Cristo conquistou. Nesse sentido, a morte de Cristo
teria apenas potencialmente o caráter salvífico, e não objetivamente. Isso
equivale a dizer que a morte de Cristo pode salvar a todos ou a ninguém,
pois depende da resposta de fé que cada pessoa dá. Ela só se torna efetiva
quando alguém a “aceita” demonstrando arrependimento e fé, e então pas­
sa a usufruir dos benefícios salvíficos da morte do Redentor.
284 Razão da esperança

A tradição reformada
A partir do desenvolvimento da doutrina da expiação na tradição refor­
mada (calvinista), que tem a ver com a obra da redenção realizada por Cris­
to na cruz, a pergunta “Por quem Cristo morreu?” começou a ter grande
importância.2 Devido ao entendimento de que o sacrifício de Cristo não
apenas possibilita, mas realmente expia, ou seja, perdoa os pecados, a teo­
logia reformada sustenta que Cristo morreu exclusivamente pelos pecados
do seu povo. Os teólogos reformados começaram a pensar que a morte de
Cristo não poderia de fato se estender a todos os homens sem exceção. O
que a morte de Cristo poderia fazer por um Judas Iscariotes? Qual teria
sido o benefício de Cristo derramar o seu sangue por alguém que já estava
no inferno quando ele morreu? Como diz Louis Berkhof, “a posição refor­
mada é que Cristo morreu com o propósito de real e seguramente salvar os
eleitos, e somente os eleitos. Isso equivale a dizer que ele morreu com o
propósito de salvar somente aqueles a quem ele de fato aplica os benefícios
da Sua obra redentora”.3 Segundo essa interpretação, Cristo não poderia
ter morrido pelos pecados do mundo inteiro, pois, se tivesse feito isso, teria
necessariamente salvo todas as pessoas do mundo inteiro.
A doutrina da expiação limitada ou definida4 é elaborada sobre a doutrina
da eleição ou predestinação. A doutrina da predestinação diz que Deus, desde
toda a eternidade, escolheu para si um número certo e limitado de pessoas, as
quais serão salvas, enquanto preteriu o restante, que deverá pagar pelos seus
próprios pecados. O eminente teólogo reformado Charles Hodge diz:

Deus, em sua infinita misericórdia, havendo determinado salvar uma multidão


que ninguém poderia enumerar, deu-a a seu Filho como herança, providenciou
para que ele assumisse a natureza deles e em seu lugar cumprisse toda justiça.
No cumprimento deste plano, Cristo veio ao mundo e obedeceu e sofreu no
lugar daqueles que lhe foram dados e para a salvação deles. Este foi o objetivo
concreto de sua missão, e por isso sua morte teve uma referência a esses que
não pôde ser feita àqueles que Deus decidiu entregar à justa recompensa por
seus pecados (...) Segue-se, pois, da natureza do pacto da redenção, tal como se
apresenta na Bíblia, que Cristo não morreu igualmente por toda a raça huma­
na, senão que se deu a si mesmo por seu povo e pela redenção deles.5

Essas palavras de Hodge refletem consistentemente o ensino da Con­


fissão de Fé de Westminster, que também identifica a eficácia da morte de
Cristo com os eleitos de Deus:
A cxlcnsão da expiação de Cristo 285

O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si mesmo,


sacrifício que, pelo Eterno Espírito, ele ofereceu a Deus uma só vez, satis­
fez plenamente à justiça de seu Pai, e, para todos aqueles que o Pai lhe deu,
adquiriu não só a reconciliação, como também uma herança perdurável no
Reino dos céus.6

A posição da Confissão de Fé de Westminster é correlata ao que havia


sido desenvolvido no Sínodo de Dort (1619), na Holanda. Nesse sínodo,
foi formulado o sistema que até hoje é conhecido como “Os Cinco Pontos
do Calvinismo”. São eles: Depravação Total, Eleição Incondicional, Expia­
ção Limitada (ou Definida), Graça Irresistível e Perseverança dos Santos.
Esses cinco pontos foram oficialmente reconhecidos a partir desse sínodo,
como um esforço no sentido de rebater os cinco pontos do arminianismo
que são anteriores e afirmam exatamente o oposto.7 Em relação à expiação
definida, os teólogos do Sínodo de Dort fizeram questão de enfatizar o seu
caráter ilimitado em termos de poder: “A morte do Filho de Deus é a
oferenda e a satisfação perfeita pelos pecados, e de uma virtude e dignidade
infinitas, e totalmente suficiente como expiação dos pecados do mundo
inteiro”.8 Porém, ela não se estende eficazmente aos homens de todo o
mundo, como o sínodo explicitou:

Porque este foi o conselho absolutamente livre, a vontade misericordiosa


e o propósito de Deus Pai: que a virtude vivificadora e salvadora da preci­
osa morte de seu Filho se estendesse a todos os predestinados, para, uni­
camente a eles, dotar da fé justificadora, e por isso mesmo levá-los infali­
velmente à salvação; ou seja: Deus quis que Cristo, pelo sangue de sua
cruz (com a qual firm ou o Novo Pacto), salvasse eficazmente, de entre
todos os povos, tribos, linhagens e línguas, a todos aqueles, e unicamente
aqueles, que desde a eternidade foram escolhidos para salvação, e que lhe
foram dados pelo Pai.9

Portanto, o calvinista insiste que a expiação é limitada não em poder,


mas no seu objetivo. A questão aqui não é o poder da expiação, mas o
objetivo dela. Para o calvinista, o poder da expiação de Cristo é ilimitado,
mas o objetivo não é. Ela é uma expiação definida, ou seja, feita com o
propósito específico de salvar os eleitos. A seguir, veremos se a expiação
definida pode ser comprovada pela Bíblia.
286 Razão da esperança

0 ensino de Jesus
Inicialmente, devemos perceber que Jesus fala em morrer pelas suas
ovelhas. Ele disse: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas
ovelhas” (Jo 10.11). Nessa passagem, ele está falando do amor do pastor
em contraste com os interesses do mercenário. O pastor dá a vida pelas
ovelhas, enquanto o mercenário, na hora do perigo, foge. Jesus está afir­
mando que ele, como bom pastor, iria dar a vida pelas ovelhas. A respeito
dessas ovelhas ele disse: “Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem
a mim” (Jo 10.14), Em seguida, ele disse: “Ainda tenho outras ovelhas, não
deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz;
então, haverá um rebanho e um pastor” (Jo 10.16). Mas certamente essas
ovelhas não eram todas as pessoas do mundo sem exceção. Mais à frente
ele disse para um grupo de incrédulos: “Vós não credes, porque não sois
das minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço,
e elas me seguem” (Jo 10.26,27). A conclusão óbvia que podemos chegar a
partir dessa afirmação de Jesus é que, se aquelas pessoas não eram suas
ovelhas, portanto, ele não morreria por elas, pois ele disse que morreria
pelas suas ovelhas. Então, significa que Jesus não morreu por todas as pes­
soas, mas apenas por suas ovelhas. Essa afirmação de Jesus limita o alcance
da expiação. Ele morreu pelo seu povo, pelas suas ovelhas.
Em outras passagens, Jesus deixou claro que morreria não por todos,
mas por muitos: “O Filho do homem, que não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Embora o
seu sacrifício tenha poder para salvar a todos, ele mesmo disse que objetiva­
mente daria a sua vida em resgate por muitos.10 A mesma linguagem pode
ser encontrada em Hebreus 9.28-, “Também Cristo, tendo se oferecido uma
vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez,
sem pecado, aos que o aguardam para a salvação”. Segundo essa passagem,
Cristo se ofereceu objetivamente para “tirar” os pecados de muitos, e é
para esses que ele aparecerá segunda vez. E lógico que ele não poderia tirar
os pecados de todos, senão todos seriam salvos.
Jesus intercedeu apenas por aqueles que considerava seus discípulos. O
capítulo 17 de João transcreve a oração que Jesus fez pouco antes de mor­
rer. Nessa oração, ele faz questão de orar pelos seus discípulos: “Manifestei
o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confi­
aste, e eles têm guardado a tua palavra” (Jo 17.6). Em seguida, Jesus faz
questão de delimitar o escopo de sua oração: “É por eles que eu rogo; não
A exlcnsão da expiação de Crislo 2 87

rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” (Jo
17.9). Ele estava orando apenas pelos seus discípulos. Uma pergunta per­
manece: Por que ele não oraria pelas outras pessoas do mundo, se tivesse
dado a sua vida em resgate delas também? A passagem claramente diz que
ele orou apenas pelos crentes: “Não rogo somente por estes, mas também
por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra” (Jo
17.20). Nesse dia, em Jerusalém, Jesus orou somente pelos seus discípulos
e pelos que ainda viriam a crer nele e se tornariam seus discípulos. Ele não
orou pelo mundo incrédulo. Sua obra de intercessão depende da sua obra
de expiação, pois é só por meio da sua morte que ele pode conceder bene­
fícios aos homens. Se ele não orou pelas demais pessoas do mundo é por­
que não morreria por elas. Se Jesus tinha em mente dar a sua vida por todas
as pessoas do mundo, então não haveria razão em orar apenas pelos que já
eram ou seriam seus discípulos. Ele deveria orar para que os demais se
tornassem discípulos, mas não foi isso o que ele fez.

Objeções à expiação limitada


Existem algumas passagens bíblicas que geralmente são apontadas para
mostrar que Cristo morreu por todos os homens. A mais famosa delas é
João 3.16: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigénito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
(ver Jo 1.29; 6.33, 51; Rm 11.12; 2Co 5.19; ljo 2.2). Essa passagem de fato
diz que Deus amou o “mundo” e, por causa disso, enviou o seu filho. Mas o
próprio texto faz uma restrição em relação à salvação: serão salvos apenas os
que crêem. Será que nessa passagem, e noutras, a expressão “mundo” se
refere a cada pessoa sem exceção? Se conseguíssemos provar que tenha exis­
tido pelo menos uma pessoa que Deus não tenha amado, então, não tería­
mos razão para crer que “mundo” em João 3.16, ou mesmo noutras passa­
gens, diga respeito a cada pessoa sem exceção. O fato é que encontramos
essa pessoa: Esaú. Dele, em contraste com o seu irmão Jacó, a Bíblia diz:
“Ameijacó, porém me aborreci de Esaú” (Rm 9.13). Deus está fazendo uma
comparação entre Jacó, pai da nação de Israel e Esaú, pai da nação de Edom.
Ele amou Jacó, mas não amou Esaú. Isso é suficiente para dizermos que,
quando a Bíblia diz que Deus amou o mundo, ela não está se referindo a
cada pessoa sem exceção. Ele está falando do mundo como a criação, por
quem ele mandou seu Filho a fim de criar um novo mundo, mas nem todas
as pessoas deste mundo serão renovadas. Quando o Novo Testamento fala
288 Razão da esperança

do mundo, a quem a redenção é oferecida, está fazendo uma comparação


entre o exclusivismo nacional do Antigo Testamento, e a abertura para todos
os povos do Novo Testamento. Nesse sentido, devemos entender o amor de
Deus e a morte de Jesus como sendo pelo mundo inteiro. Isso não significa
cada pessoa do mundo sem exceção, mas o mundo visto de uma perspectiva
global. Cristo é o salvador do mundo no sentido de que é o Salvador de toda
a criação. Nesse sentido, ele carrega o pecado do mundo, pois, no fim, todo
o pecado será removido da criação. Pela sua morte, Cristo assegurou a puri­
ficação, não somente de pessoas, mas de toda a criação. Pela sua morte, Cris­
to assegurou a redenção de indivíduos (novas criaturas) tanto quanto a re­
denção da criação (novos céus e nova terra). O mundo caído em Adão será
restaurado em Cristo (Rm 8.19, 21-23).
Existem outras passagens que dizem que Cristo morreu por todos os
homens, por exemplo, Romanos 5.18: “Pois assim como, por uma só ofen­
sa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também,
por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justifi­
cação que dá vida”. O mesmo pode ser dito de ICoríntios 15.22: “Porque,
assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivifica­
dos em Cristo”, E também 2 Coríntios 5.14: “Pois o amor de Cristo nos
constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos morre­
ram”. E ainda 1 Timóteo 2.6: “O qual a si mesmo se deu em resgate por
todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos”. E ainda
Tito 2.11: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens”. O mesmo se vê em Hebreus 2.9: “Vemos, todavia, aquele que,
por um pouco, tendo sido feito menor que os anjos, Jesus, por causa do
sofrimento da morte, foi coroado de glória e de honra, para que, pela graça
de Deus, provasse a morte por todo homem”. O que se pode dizer de todas
essas passagens é que é evidente que não podemos interpretar a expressão
“todos os homens” como se referindo a todos os homens sem nenhuma
exceção. Se fizéssemos isso, estaríamos efetivamente dizendo que todos os
homens serão factualmente salvos. Por causa disso, necessariamente a ex­
pressão “todos” dessas passagens se refere a todos os salvos. Em Romanos
5.18 e ICoríntios 15.22 a expressão “todos” inclui somente os que estão
em Cristo em contraste com os que estão em Adão. O mesmo pode ser dito
de 2 Coríntios 5.14 e Hebreus 2.9. A passagem de Tito 2.11 refere-se a
todas as classes de homens, mas não a cada homem sem exceção. E, por
fim, 1 Timóteo 2.6 fala sobre a inclusão tanto de judeus como de gentios na
salvação. É evidente, portanto, que essas passagens não falam de todos os
homens sem exceção, caso contrário todos os homens teriam que ser sal-
A extensão da expiação de Cristo 289

vos, pois nessas passagens a expiação de Cristo é descrita como um ato real
de conceder a vida.
A passagem que parece afirmar de modo mais claro que a morte de
Cristo foi pelo mundo inteiro é 1 João 2.2: “E ele é a propiciação pelos
nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do
mundo inteiro”. O argumento em favor da expiação definida entende a
expressão “mundo” nessa passagem como uma descrição generalizada,
querendo apontar para um grupo especial, o grupo dos salvos do mundo
inteiro. Não significa cada pessoa do mundo sem exceção, pois caso con­
trário, essa propiciação evidentemente salvaria todas as pessoas. E preciso
lembrar que propiciação significa “apaziguar a ira de Deus”. Se Jesus apazi­
guou a ira de Deus para cada pessoa do mundo, então, Deus não estaria
mais irado com ninguém, e todos poderiam ir para o céu. Devemos enten­
der a expressão “mundo inteiro” como algo que visa fazer um comparativo
com o “filhinhos” do versículo 1: “Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo
para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao
Pai, Jesus Cristo, o Justo” (ljo 2.1). Os “filhinhos” de João eram aqueles
para quem ele escrevia a carta. Jesus era o Advogado desses filhinhos, pois
fez propiciação por eles, e não somente por eles, mas pelos pecados do
mundo inteiro, ou seja, pelos pecados dos crentes do mundo inteiro (os
outros filhinhos). João liga a propiciação de Jesus com sua obra como ad­
vogado diante de Deus. Jesus não pode ser o advogado de todos os ho­
mens, senão todos os homens terão todos os seus pecados perdoados.
Outro argumento bastante usado contra a expiação definida é que, se
Cristo morreu apenas por um número limitado de pessoas, isso tornaria im­
possível o oferecimento livre do evangelho. O questionamento parece lógico:
Se Cristo não morreu por todos, então, por que o evangelho é oferecido a
todos? Além do mais, há passagens que claramente indicam que Deus deseja
que todos sejam salvos, por exemplo, Ezequiel 33.11: “Tão certo como eu
vivo, diz o S e n h o r Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas em
que o perverso se converta do seu caminho e viva. Convertei-vos, convertei-
vos dos vossos maus caminhos; pois por que haveis de morrer, ó casa de
Israel?” Também 1 Timóteo 2.4 fala algo semelhante: “O qual deseja que
todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verda­
de”. E ainda 2 Pedro 3.9: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como
alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco,
não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependi­
mento”. Como harmonizar a noção da expiação definida com essas passa­
gens e com a livre oferta do evangelho? Quanto ao questionamento sobre a
290 Razão da esperança

impossibilidade de pregar o evangelho de modo sincero a todos, uma vez que


Cristo não morreu por todos, podemos dizer o seguinte: Nós não sabemos
por quem Cristo morreu! Sabemos que ele morreu pelos eleitos, mas quem
são os eleitos? Precisamos oferecer a salvação igualmente a todos, e quem
crer será salvo. Não temos o direito de excluir ninguém, porque não sabemos
quem será salvo ou quem será condenado. Qualquer atitude preconceituosa
da nossa parte será pecaminosa. Quanto às passagens bíblicas que dizem que
Deus deseja que todos sejam salvos, o que podemos dizer é que isso é a mais
pura verdade. Não podemos fugir as evidências bíblicas, nem torcer passa­
gens para que elas se encaixem na nossa teologia. Porém, isso não quer dizer
que essas passagens não se encaixem. Precisamos entender que Deus, como
criador de todos, não tem prazer em ver suas criaturas perecendo, antes o seu
prazer é vê-las se convertendo e sendo salvas. A pergunta que precisa ser feita
é: Então quer dizer que ele salvará a todas? A resposta é: Não. A segunda
pergunta é: Por acaso ele não tem poder para salvar a todas? A resposta agora
é: Sim. Poderíamos perguntar então: Se ele deseja que todas sejam salvas e
tem poder para salvar a todas, então, por que não salva a todas? Só há uma
resposta: Porque, num sentido, ele não quer salvar a todas. Então, ele quer, e,
ao mesmo tempo, não quer salvar todas as pessoas? Como entender isso?
Aqui precisamos relembrar a diferença entre a vontade de desejo e a vontade
decretiva de Deus. O primeiro aspecto tem a ver com os desejos íntimos de
Deus. Assim como ele estabeleceu uma lei e é sua vontade que todos obede­
çam, mas ele não obrigará ninguém a fazer isso, do mesmo modo é desejo
seu que todos sejam salvos, mas ele não agirá para que todos sejam de fato
salvos. Porém, quando falamos em vontade decretiva, estamos nos referindo
àquela sua vontade que acontece inevitavelmente (ver Rm 9.19; Is 46.9-11;
Dn 4.35); diz respeito aos seus decretos para este mundo, os quais invariavel­
mente acontecerão, pois se não acontecerem, Deus perderá o controle do
universo. O desejo que todos os homens sejam salvos faz parte de sua vonta­
de de desejo, mas não faz parte de sua vontade decretiva. Ou seja, Deus
deseja que todos sejam salvos, mas não decretou que todos serão salvos.
Portanto, o fato de Deus desejar que todos sejam salvos não obriga Jesus a
morrer por todos os homens, até porque nem todos serão salvos.

Limitada em alcance ou e m p o d er
Apesar de muitos ficarem surpresos com essa declaração, a verdade é que
todo cristão ortodoxo terá que pôr limites à obra salvífica de Cristo. Pois se
.A extensão da expiação de Cristo 291

alguém crê que Cristo morreu por todas as pessoas deste mundo, entretanto,
nem todas as pessoas deste mundo serão realmente salvas, então, a obra de
Cristo é limitada em seu poder, pois ela não salva efetivamente ninguém.
Entretanto, se alguém crê que a obra de Cristo, embora poderosa o suficien­
te para salvar toda e cada pessoa, foi feita apenas em favor do povo escolhi­
do, a igreja, então, essa expiação é limitada no seu escopo ou no seu propó­
sito, mas não em poder, Se Cristo morreu por pessoas que estão no inferno,
então os seus esforços não podem realmente ser chamados de obra salvífica.
Muitos afirmam que Cristo, ao morrer, não salvou ninguém realmente, ele
apenas tornou os homens salváveis, entretanto, se isso é assim, então não há
real “poder no sangue”. Ao contrário, parece que o poder está na vontade da
criatura, como se a criatura conferisse poder ao sangue de Cristo.
Se Cristo de fato tivesse morrido por todos os homens sem exceção,
então, em muitos casos, ele teria sido impotente, porque apesar de ter dado
a vida por alguma pessoa, talvez essa pessoa acabasse no inferno, Com
relação a isso, ainda poderíamos perguntar: Quando Cristo morreu, já ha­
via pessoas no inferno? Sim, todas as pessoas que morreram sem salvação
antes da sua vinda. A pergunta é: Ele morreu por elas também? Parece
ilógico dizer que sim, pois seria um desperdício de um sangue tão precioso.
Teria Cristo morrido por Judas Iscariotes? A Bíblia chama Judas de “o filho
da perdição” (Jo 17.12), e diz que tudo o que aconteceu por meio dele
aconteceu segundo o que as próprias Escrituras haviam profetizado (Mt
26,24). De acordo com a Escritura, Judas não tinha chances de ser salvo,
então, por que Jesus morreria por ele?
A Escritura fala da obra de Cristo em termos definitivos em favor do
salvo. Se ele morreu por todos os homens, então todos os homens precisa­
riam de fato ser salvos. Só há duas opções, ou a redenção é limitada no seu
alcance ou é limitada no seu poder. É preferível pensar que ela seja limitada
no alcance, ou seja, que não foi feita para alcançar todos os seres humanos.
Ela não é limitada em poder, pois pode salvar completamente todos aque­
les a quem foi destinada. Se dissermos que Cristo morreu por todos os
seres humanos, então limitamos a expiação em seu poder, pois, nesse caso,
ela não consegue salvar todos os homens. A Escritura, entretanto, deixa
bem claro o poder e a eficácia da obra de Cristo. Nesse ponto, é importante
rever algumas passagens bíblicas que descrevem a expiação feita por Cristo
como redenção, propiciação, reconciliação e substituição, as quais descre­
vem o que realmente Cristo fez ao morrer na cruz.11
Redenção é provavelmente o principal termo bíblico para descrever a ex­
piação. Significa “comprar de volta”, ou “retornar à possessão de alguém
292 Razão da esperança

mediante o pagamento de um preço”. A morte de Cristo foi o resgate dos


salvos, não um resgate pago a Satanás, mas um resgate exigido pela lei de
Deus e oferecido ao próprio Deus. Agora imagine: Uma pessoa foi seqües­
trada e feita refém pelo pecado, mas, agora é crente, então, Cristo pagou o
resgate para libertá-la, a fim de que se tornasse possessão dele. Que tipo de
redenção seria esta se a maioria dos cativos permanecesse no cativeiro e
nunca fosse libertada? Em Isaías 53.10,11 é dito que Cristo veria o fruto do
seu penoso trabalho e ficaria satisfeito, Porém, como ele poderia estar satis­
feito se visse que a maior parte das pessoas por quem morreu, no fim das
contas, permanecerá condenada? Isso não seria muito mais motivo de de­
sapontamento do que de satisfação?
Propiciação refere-se a interromper a inimizade e a hostilidade de Deus
em relação ao ser humano. Quando propiciação é feita, a ira de Deus é
removida. Se Cristo fez propiciação pelo mundo, então, removeu a ira de
Deus do mundo. Porém, não é isso o que a Escritura ensina, pois Deus
continua irado com o mundo (Rm 1.18). Além disso, se Cristo não “propi­
ciou” a ira de Deus por mim, mais do que por Judas Iscariotes, então, como
eu posso ter certeza que Deus, no final, não irá me consumir com a sua ira?
Alguém diria: “Porque você crê.” Mas, se é só por isso, então significa que
no fim das contas, nós, mais do que Cristo, é que propiciamos a ira de
Deus, e nos tornamos os nossos próprios salvadores. Ou, no mínimo, cola­
boramos para a salvação, e aí, já não poderíamos mais dizer que fomos
salvos pela graça.
Reconciliação define-se por apaziguar oponentes. As pessoas serão desti­
nadas ao inferno por toda a eternidade porque elas estão, e sempre estarão,
opostas a Deus. Porém, as pessoas que são reconciliadas são feitas amigas,
e é a morte de Cristo que efetua essa reconciliação. Mas, então, será que
Deus vai mandar os seus “amigos” para o inferno? E claro que não, pois a
reconciliação é apenas para os eleitos, os reconciliados serão efetivamente
salvos (Rm 5.10).
Substituição é o ato de alguém assumir toda a responsabilidade pela falta
do outro. Suponha que um criminoso esteja no corredor da morte, espe­
rando a execução. Um estranho se encontra com o juiz, e o juiz concorda
em aceitar a execução do estranho (que é inocente) no lugar do verdadeiro
criminoso. Esse estranho se tornou o substituto do criminoso. Então, su­
ponha que, depois de executar o substituto, o juiz execute também o crimi­
noso. O juiz poderia ser acusado de assassinato em pelo menos uma morte.
O ser humano é o criminoso, mas Cristo morreu em seu lugar e, por isso,
Deus não mais condenará essa pessoa, pois ele não pode condenar o Re-
A extensão da expiação de Cristo 293

dentor e o redimido ao mesmo tempo. Se Cristo morreu por todas as pes­


soas, então, todas as pessoas terão que ser salvas.
E preciso que se entenda:que as palavras acima são aplicadas objetiva­
mente à morte de Cristo. Ele não apenas tornou essas coisas possíveis, ele
as realizou na cruz. E se ele realizou essas coisas por todas as pessoas do
mundo, então todas podem se preparar para passar a eternidade no céu, e o
inferno estará absolutamente vazio. Porém, esse ensino não pode ser sus­
tentado pela Bíblia, que fala em muitos chamados, mas poucos os escolhi­
dos. Os escolhidos são todos aqueles por quem Cristo morreu.
Para concluir, de volta à historinha do início, o prisioneiro americano
tinha o direito de morrer, porque ninguém morreu efetivamente em seu
lugar. Porém, um homem por quem Cristo morreu não pode ser condena­
do novamente, porque Deus não pode condenar o mesmo pecado duas
vezes. Se o pecado de alguém foi condenado em Jesus, Deus não o conde­
nará novamente; por essa razão, se Cristo tivesse morrido por todos os
homens, Deus não poderia mais condenar ninguém. Entretanto, Jesus mor­
reu pelas suas ovelhas, e só elas serão salvas. O perdão que Cristo concede
é diferente do perdão que o governador concedeu ao condenado. O gover­
nador apenas possibilitou a possibilidade de salvação, mas Cristo, ao mor­
rer na cruz, concedeu eficazmente a salvação. Ao contrário de isso ser um
problema para nós, deveria ser um motivo de gratidão e louvor, pois se
Cristo tornou tão certa a nossa salvação, então, é porque Deus não está
disposto a abrir mão de nós. Além disso, Deus nos considera individual­
mente. Quando Cristo orou por seus discípulos, e quando morreu na cruz,
ele sabia exatamente por quem estava morrendo. Ele via o fruto do seu
penoso trabalho, e isso o alegrava, apesar de todo o seu sofrimento.
23

Ressurreição: a grande vitória

A ressurreição de Cristo põe um ponto final em todo um sistema até


então invencível: o sistema da morte. A rotina de todos os seres humanos
desde o início do mundo sempre foi: nascer, crescer e morrer. Nenhum ser
humano jamais conseguiu fugir desse sistema. Todos, inevitavelmente, en­
contraram a morte, mais cedo ou mais tarde. Essa indesejada visitante sem­
pre se apresentou, às vezes nos momentos mais inesperados, rompendo
elos, quebrando relacionamentos, destruindo sonhos e arrasando projetos.
Algo que sempre esteve muito claro na mente do ser humano é que tudo
pode ser vencido, menos a morte. Quando ela chega, as esperanças se aca­
bam. Por isso, as pessoas dizem: “Enquanto há vida, há esperança”. Quan­
do a morte chega é o fim. Mas um dia, um homem adentrou as portas da
morte. Pela maneira como tudo aconteceu, parecia ser só mais um. Aquele
corpo maltratado pelos açoites e pelo esforço desumano de carregar a cruz,
se deixou vencer pela velha conhecida dos seres humanos. Ela lançou suas
antigas e inquebráveis cadeias sobre ele e o dominou. A escuridão o engo­
liu. O último sinal de vida desapareceu. A velha inimiga já começava a sua
rotineira tarefa de eliminar completamente quaisquer resquícios da vida,
pois o corpo já começava a se desintegrar, quando, de repente, algo inusita­
do aconteceu, o processo de desintegração se inverteu. Em vez de apodre­
cer, o corpo começou a se recompor. As correntes invencíveis começavam
a ceder, impotentes diante de um poder incomparável, as cadeias da morte
se arrebentaram como se fossem cordas podres. O corpo terrivelmente
maltratado se revelava intacto, radiante, invicto. O terrível sistema
aprisionador era demolido. A morte já não era invencível.
Infelizmente, o mundo moderno tem dificuldade para aceitar esse acon­
tecimento como um fato histórico. Isso se deve à dificuldade moderna em
aceitar a existência dos milagres. Não há mais espaço para a ressurreição na
mente dos homens modernos. Muitos teólogos no século 19, ao olhar para
o progresso da ciência e as maravilhas da tecnologia, chegaram a essa con­
clusão, imaginando não haver mais espaço neste mundo para os conceitos
296 Razão da esperança

sobrenaturais. É incrível pensar que a ressurreição física de Jesus seja nega­


da, não por cientistas ateus, mas por teólogos da igreja. Desde os que ne­
gam a existência do sobrenatural, até os que tentam interpretar os aconteci­
mentos sobrenaturais descritos na Bíblia mais em função de sua mensagem
do que de sua evidência histórica, de um jeito ou de outro, a ressurreição
física de Cristo tem sido desacreditada. E preciso analisar as implicações
dessa lógica: Se a ressurreição física e literal de Jesus não aconteceu, o que
resta do Cristianismo?

Evidências da ressurreição de Cristo


Ao contrário do que possa parecer, há boas e suficientes evidências a
respeito da ressurreição de Jesus. Essas evidências são muito fortes e con­
vincentes, porém, com isso não estamos querendo dizer que elas devem
convencer a todos. Acima de tudo, permanece que se trata de uma questão
de fé. A fé, cuja ausência não pode agradar a Deus, é que determina se
alguém aceitará a veracidade da ressurreição ou não.

0 t e s t e m u n h o da Escritura

No capítulo 15 de 1 Coríntios, o apóstolo Paulo desenvolve uma longa


argumentação em defesa da ressurreição real e histórica de Cristo. Ele co­
meça o capítulo falando sobre os aspectos escriturísticos da ressurreição:
“Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebes­
tes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a
palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de
tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos
pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao tercei­
ro dia, segundo as Escrituras” (ICo 15.1-4). Paulo faz questão de dizer que,
tanto a morte quanto a ressurreição de Cristo, ocorreram de acordo com as
Escrituras. Para os crentes, o testemunho das Escrituras é o maior testemu­
nho da ressurreição de Cristo. Tanto o testemunho do Antigo Testamento,
ao qual Paulo está se referindo, como o próprio testemunho do Novo Tes­
tamento são as provas definitivas para o crente. Observe que são provas
porque eles possuem fé na Escritura como material fidedigno. Infelizmen­
te, nem todas as pessoas vêem a Escritura desse modo.
O Antigo Testamento anunciou que o Messias não seria vencido pela
morte. O Salmo 16 testemunhou: “Alegra-se, pois, o meu coração, e o
Ressurreição: A grande vilória 297

meu espírito exulta; até o meu corpo repousará seguro. Pois não deixarás
a minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”
(SI 16.9,10). Igualmente, o profeta Isaías fala que o Servo Sofredor, após
todo o sofrimento que teria que passar, não seria vencido pela morte:
“Todavia, ao S e n h o r agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der
ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolon­
gará os seus dias; e a vontade do S e n h o r prosperará nas suas mãos” (Is
53.10). O profeta diz que, depois de oferecer a sua alma pelo pecado, o
Messias veria seus dias se prolongarem. Isso só pode ser um anúncio da
sua ressurreição. Como poderia ele ver os seus dias se prolongarem se
estivesse morto? A passagem está sugerindo que, após a morte, o Messias
voltaria à vida.
Para os crentes do Novo Testamento, os registros dos apóstolos e discí­
pulos, que testemunharam a ressurreição de Cristo, são suficientes para a
fé. Marcos relata:

Havendo ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana, apa­


receu primeiro a Maria Madalena, da qual expelira sete demônios. E, partin­
do ela, foi anunciá-lo àqueles que, tendo sido companheiros de Jesus, se
achavam tristes e choravam. Estes, ouvindo que ele vivia e que fora visto
por ela, não acreditaram. Depois disto, manifestou-se em outra forma a
dois deles que estavam de caminho para o campo. E, indo, eles o anuncia­
ram aos demais, mas também a estes dois eles não deram crédito. Final­
mente, apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a
incredulidade e dureza de coração, porque não deram crédito aos que o
tinham visto já ressuscitado (Mc 16.9-14).

E importante que se entenda que esse é um relato que tem a pretensão


clara de ser histórico. Marcos não está contando uma lenda, não está fazen­
do poesia ou qualquer outra coisa, ele está narrando um acontecimento que
acredita ser histórico, o qual possivelmente testemunhou. Assim também
relatam Mateus (Mt 28.1-10) e João (Jo 20.1-18), que foram testemunhas
oculares da ressurreição, e Lucas (Lc 24.1-15), que empreendeu uma exten­
sa pesquisa histórica para apurar e relatar os fatos. O testemunho do Novo
Testamento é uma prova documental que não pode ser ignorada. Por mais
que muitos estudiosos se esforcem para desacreditar o Novo Testamento,
o seu testemunho da ressurreição permanece.
298 Razão da esperança

Testemunhas oculares

Dentre as muitas provas convincentes que Jesus ofereceu aos discípulos


durante aqueles quarenta dias, estão o seu aparecimento dentro da sala com
as portas fechadas (Jo 20.19), a sua permissão para que os discípulos tocas­
sem nele para verem que não se tratava meramente de um espírito (Lc
24.39; Jo 20.27; ljo 1.1-4), além de ter, até mesmo, comido com eles (Lc
24.41-43). Estudos têm demonstrado que as pessoas perdem muito rapida­
mente a memória sobre fatos que ocorreram quando elas estão sob muita
pressão, mas esse não foi o caso dos discípulos que descreveram minucio­
samente os aparecimentos de Jesus, Ou seja, eles devem ter passado muito
tempo com Jesus. E de fato Lucas nos diz que ele apareceu vivo, durante
quarenta dias (At 1.3).
Os discípulos não foram os únicos que tiveram o privilégio de ver o Se­
nhor Jesus ressuscitado. O apóstolo Paulo nos diz que Jesus “foi visto por
mais de quinhentos irmãos de uma só vez” (ICor 15.5,6). Era até possível
que alguns poucos discípulos inventassem uma história com respeito à res­
surreição de Cristo, mas seria difícil mais de quinhentas pessoas confirma­
rem isso. Seria impossível que tantas pessoas tivessem se enganado com res­
peito ao quem viram. Como diz Josh MacDowell, “quando ocorre um acon­
tecimento na História e existem pessoas vivas suficientes que foram teste­
munhas oculares ou participaram do acontecimento, e quando se publica
essa informação, é possível verificar-se a validade de um determinado acon­
tecimento mediante as provas circunstanciais”.1 Num tribunal, o testemu­
nho de tantas pessoas seria amplamente convincente. Além disso, elas ainda
estavam vivas quando Paulo escreveu a carta. Se não fosse verdade, elas pro­
curariam demonstrar a mentira. Se fosse uma invenção e havendo tantas
supostas testemunhas, a fraude não duraria muito tempo. E interessante Paulo
dizer que viu o Senhor ressuscitado, Ele está testemunhando não de algo
que ouviu falar, mas de algo que viu. Ele é mais uma testemunha ocular, e
em qualquer tribunal, o seu testemunho seria considerado uma prova.

0 tes te m u n h o do sep ulcro vazio

Os túmulos daquele período normalmente tinham uma entrada de até


1,5 metro de altura. A construção era feita de tal forma que a pedra ficava
numa vala bem na entrada do túmulo e um tipo de suporte era usado para
fazê-la deslizar e tapar a entrada. Mateus diz que se tratava de uma “grande
pedra” (Mt 27.60). De fato, para cobrir uma entrada de 1,5 metro ela preci-
Ressurreição: A grande vitória 299

saria pesar cerca de duas toneladas. Porém, a pedra não era o único empe­
cilho à saída do túmulo; Mateus diz que foi colocada uma escolta junto ao
sepulcro para impedir que os discípulos roubassem o corpo. A guarda ro­
mana era composta de até dezesseis homens. Além disso, essa guarda selou
a pedra (ver Mt 27.65,66). O selo foi provavelmente fornecido por Pilatos e
demonstrava que o túmulo estava sob a proteção do Império Romano. Não
seria fácil roubar o corpo. Não havia a mínima possibilidade de que o
grupinho de desanimados discípulos fosse enfrentar a escolta romana e
retirar o corpo. A punição para a quebra do selo seria a crucificação. Os
judeus admitiram a evidência do túmulo vazio. Existem evidências históri­
cas de que eles mandaram mensageiros aos quatro cantos do mundo para
desmentir que Jesus tinha ressuscitado, alegando que os discípulos tinham
roubado o corpo, ou seja, admitiram que o corpo havia desaparecido. O
fato histórico permanece: o corpo sumiu, o túmulo está vazio.

0 t e s t e m u n h o de vida dos apóstolos

De onde teria vindo todo o entusiasmo dos discípulos e toda intrepidez


para proclamar a mensagem da ressurreição? A morte de Jesus foi um duro
golpe para eles. O próprio João descreve que eles estavam reunidos às es­
condidas, ainda naquele domingo à tarde, com as portas trancadas “com
medo dos judeus” (Jo 20.19). Que medo era esse? Era o medo natural de
homens que tinham visto os seus planos frustrados e o seu líder morto.
Eles sabiam que, se aparecessem, certamente seriam punidos, e quem sabe
até mortos, até porque os boatos do desaparecimento do corpo estavam se
espalhando e eles eram os principais suspeitos. É claro que eles não esta­
vam dispostos a aparecer. Quem arriscaria a sua vida por um homem mor­
to? Essa pergunta é muito importante, pois ninguém arriscaria a sua vida
desse modo. Dá para perceber que, até aquele momento, eles não estavam
dispostos a isso, pois estavam reunidos secretamente. Muitos até mesmo
voltaram para suas casas, numa demonstração clara de desistência (Lc 24.13).
Mas, de repente, Pedro está pregando com ousadia para uma multidão (At
2.12-41). O que poderia explicar uma mudança tão grande? Da desolação
para euforia em tão pouco tempo? Significativa é a descrição dos capítulos
4 e 5 de Atos. Os apóstolos têm a coragem de proclamar a ressurreição de
Cristo perante as autoridades (At 4.10), e mesmo depois de serem ameaça­
dos (At 4.21), presos e açoitados (At 5.40), não só continuam, como se
regozijam (At 5.41,42), Ninguém colocaria a própria vida em risco por uma
mentira, por isso, o entusiasmo dos apóstolos fala muito acerca da ressur-
300 Razão da esperança

reição de Cristo. E deve ser lembrado que não foi só entusiasmo que eles
demonstraram, foi martírio também. Eles não só colocaram a própria vida
em risco, como realmente morreram pela causa de Cristo, Aparentemente,
o único apóstolo que não foi martirizado foi João,2 todos os demais sofre­
ram a morte de mártir. Se negassem a Jesus antes da execução poderiam ser
perdoados, mas não fizeram isso. Alguém até pode defender uma mentira
para benefício próprio, mas quantos estariam dispostos a morrer por uma
mentira? O martírio dos apóstolos é uma evidência poderosíssima da res­
surreição de Cristo.

0 fa t o m a i s atestado
Como diz Charles Hodge, “pode-se asseverar com segurança que a res­
surreição de Cristo é, ao mesmo tempo, o fato mais importante e mais
autenticado da história do mundo”.3 Esse autor fornece uma série de ra­
zões que confirmam isso:4 1) Ela foi predita no Antigo Testamento. 2) Ela
foi predita pessoalmente por Cristo. 3) Tratou-se de um fato facilmente
verificável. 4) Forneceu evidência abundante, apropriada e reiterada de sua
verdadeira ocorrência. 5) As testemunhas do fato de que Cristo foi visto
vivo depois da sua morte na cruz eram numerosas, competentes e, em to­
dos os sentidos, dignas de confiança. 6) A sinceridade da convicção delas
foi demonstrada pelos seus sacrifícios, inclusive o de suas vidas, em decor­
rência do seu testemunho. 7) Seu testemunho foi confirmado por Deus, ao
dar testemunho juntamente com eles, com sinais e prodígios, com diversos
milagres e com os dons do Espírito Santo. 8) Esse testemunho do Espírito
continua até o tempo atual e é concedido a todos os genuínos filhos de
Deus, porque o Espírito dá testemunho da verdade no coração e na cons­
ciência. 9) O fato de que a ressurreição de Cristo tem sido comemorada
como uma observância religiosa do primeiro dia da semana, desde a sua
ocorrência até hoje. 10) Os efeitos produzidos pelo seu evangelho, e a mu­
dança que ele tem efetuado no estado do mundo, não admitem nenhuma
outra solução racional além da veracidade da sua morte e subseqüente res­
surreição. A igreja cristã é seu monumento desse fato, e todos os crentes
são suas testemunhas.
Josh MacDowell, num excelente livro intitulado A s Evidências da Ressur­
reição de Cristo, narra a história de um importante advogado de Harvard, o
Dr. Simon Greenleaf, que decidiu aplicar as regras do direito para o aconte­
cimento da ressurreição e acabou convencido de sua veracidade.5 Horton,
contando a mesma história, diz que esse advogado, que fundou a Escola de
Ressurreição: A grande vitória 301

Direito de Harvard, começou com a intenção de contestar a alegação da


ressurreição, certo de que, uma atenção simples e constante às alegações do
Novo Testamento, com relação às testemunhas dos evangelhos e aos teste­
munhos externos dos historiadores seculares daquele período, iriam final­
mente extinguir as crenças cristãs remanescentes. Ele queria levar as alega­
ções da Bíblia ao tribunal e verificá-las a partir das técnicas do direito. Que­
ria dem onstrar a m entira in tencional dos escritores a p artir da
improbabilidade dos relatos e suas contradições internas. Qual foi a sua
conclusão? Ao final dos trabalhos, esse homem estava plenamente conven­
cido da veracidade da ressurreição a partir do testemunho do Novo Testa­
mento.6 Ele se tornou um crente.

0 co rp o ressuscitado

Um argumento que, em geral, é levantado contra a idéia da ressurreição


é o da impossibilidade de trazer de volta todas as moléculas de um corpo,
especialmente se ele já tiver se desintegrado, uma vez que as partículas se
espalham e passam a fazer parte de outros corpos. Paulo antevê esse ques­
tionamento: “Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? E em que
corpo vêm?” (ICo 15.35). Ele usa uma ilustração da própria natureza para
explicar isso: “O que semeias não nasce, se primeiro não morrer; e, quando
semeias, não semeias o corpo que há de ser, mas o simples grão, como de
trigo ou de qualquer outra semente. Mas Deus lhe dá corpo como lhe aprouve
dar e a cada uma das sementes, o seu corpo apropriado” (ICo 15.36-38).
Assim como a semente lançada na terra é bastante diferente da planta que
um dia chegará à idade adulta, também o corpo lançado à sepultura fará
nascer um corpo bem diferente. E verdade que, embrionariamente, poderí­
amos dizer que as características principais da planta já estão na semente. O
mesmo, então, poderíamos dizer do corpo atual em relação ao futuro.
Nesse ponto, é interessante a discussão sobre a natureza do corpo res­
suscitado de Jesus. Muitos não entendem que ele possa ser realmente físico.
Porém, o ensino da Escritura nos aponta para o aspecto físico do corpo de
Jesus, sem qualquer possibilidade de dúvida. Jesus apareceu aos discípulos,
comeu e bebeu com eles (At 10.41), disse-lhes: “Vede as minhas mãos e os
meus pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e verificai, porque um espírito
não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Lc 24.39). Como diz
Grudem, “teria sido muito errado ensinar aos discípulos que ele tinha um
corpo físico, se no seu modo normal de existência ele realmente não pos­
suía”.7 Portanto, Jesus possui um corpo físico, embora, como diz o apósto-
302 Razão da esperança

lo Paulo, possa ser chamado também de corpo espiritual. Não temos con­
dições de entender exatamente como é esse corpo, a única coisa que pode­
mos dizer é que ele é “material” e “espiritual” ao mesmo tempo. E um
corpo absolutamente perfeito e sem os limites impostos pela fraqueza ou
pelo pecado. A seguinte definição de Hodge é muito útil: “O corpo ressurecto
de Cristo, portanto, tal como existe agora no céu, ainda que retenha a iden­
tidade com seu corpo enquanto estava na terra, é glorioso, incorruptível,
imortal e espiritual. Continua ocupando determinada porção de espaço e
retém todas as propriedades essenciais como corpo”.8 A definição de
Berkhof é semelhante: “Sua ressurreição consistiu em que nele a natureza
humana, o corpo e a alma, foi restaurada à sua prístina força e perfeição e
até mesmo elevada a um nível superior, enquanto que o corpo e a alma
foram reunidos num organismo vivo”.9
Por mais que os críticos modernos rejeitem a noção histórica da ressur­
reição de Cristo, afirmando ser uma mensagem inventada pelos discípulos,
como diz Ladd, o que deu origem à igreja “foi a crença em um evento
acontecido no tempo e no espaço: Jesus de Nazaré ressuscitou dentre os
mortos. Fé na ressurreição de Jesus é um fato histórico inevitável. Sem essa
evidência não haveria igreja”.10 Foi a certeza da ressurreição que transfor­
mou aqueles homens simples da Galiléia em poderosas testemunhas de
Jesus em todo o mundo. A convicção de que Jesus venceu a morte lhes
dava a certeza de que, mesmo que morressem no testemunho, poderiam
experimentar a mesma experiência do Senhor: a vitória sobre a morte.

0 sign ificado da ressurreição de Cristo


Uma vez que as evidências da ressurreição de Cristo são bastante con­
vincentes, agora é preciso pensar um pouco mais no significado desta res­
surreição.

C o n su m a çã o da redenção
Levando adiante a argumentação do capítulo 15 de 1 Coríntios, Paulo
enfatiza o verdadeiro significado da ressurreição; ele diz: “E, se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã, a vossa fé” (ICo 15.14). Disso
decorre que a ressurreição de Cristo tem um enorme significado para a fé
crista. Em seguida, ele complementa: “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a
vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (ICo 15.17). A ressur­
Ressurreição: A grande vitória 303

reição de Cristo tem um significado crucial para a obra da redenção; pode­


mos dizer que, se a ressurreição não tivesse ocorrido, a redenção não seria
possível. Por isso, Paulo diz que a fé cristã seria vã caso Cristo não tivesse
ressuscitado, pois os pecados não teriam sido removidos como o evange­
lho prega. Paulo diz isso não só porque a fé cristã está profundamente
ligada aos acontecimentos históricos, e que sem esses, ela não tem sentido,
como porque a ressurreição consuma a redenção. Cristo morreu pelos pe­
cados na sexta-feira, se ele tivesse permanecido morto, que esperanças ha­
veria de salvação? Um Deus morto que não consegue salvar a si mesmo,
não poderia salvar toda a humanidade. Sem a ressurreição, o argumento
irônico dos soldados na trágica sexta-feira seria válido: “Salvou os outros, a
si mesmo não pode salvar-se” (Mt 27.42). A ressurreição de Cristo é uma
demonstração majestosa do poder de Deus, ele pode salvar a todos. E uma
proclamação estrondosa de que Deus não está morto, de que ele ainda está
no controle do universo e de que não há impossíveis para ele.
Por essa razão, precisamos discordar inteiramente de Lewis Sperry Chafer
que diz que “pelos teólogos do pacto, não há praticamente importância
doutrinária dada à sua ressurreição”.11 Esse é um entendimento equivoca­
do a respeito do entendimento reformado sobre o pacto e sobre a ressur­
reição. A ressurreição é a consumação do pacto, é o restabelecimento da
vida do pacto. Sem a ressurreição, no entendimento da teologia reformada,
simplesmente não haveria redenção. O teólogo reformado Louis Berkhof
resume o significado da ressurreição da seguinte maneira:

Constituiu uma declaração do Pai de que o último inimigo tinha sido venci­
do, a pena tinha sido cumprida, e tinha sido satisfeita a condição em que a
vida fora prometida. Foi um símbolo daquilo que estava destinado a suce­
der aos membros do corpo místico de Cristo em sua justificação, em seu
nascimento espiritual e em sua bendita ressurreição futura. Relacionou-se
também instrumentalmente com a justificação, a regeneração e a ressurrei­
ção final dos crentes.12

Diante disso, fica absolutamente sem sentido a declaração de que a res­


surreição não tem importância para os teólogos do pacto. Ela é o fato mais
importante que este mundo já vivenciou. Ela consuma a redenção.

Certeza da justificação

A ressurreição está ligada à nossa justificação. Paulo diz que Cristo foi:
“Entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da
304 Razão da esperança

nossa justificação” (Rm 4.25). A justificação que é mediante a ressurrei­


ção nos dá a paz com Deus, conforme Paulo continua: “Justificados, pois,
mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus
Cristo” (Rm 5.1). Sem a ressurreição, não seríamos justificados, pois a
obra de Cristo realizada por meio de sua morte não poderia ser aplicada a
nós. A ressurreição de Cristo deu validade à sua própria morte em nosso
lugar. Se Cristo não ressuscitasse, a justificação não poderia ser aplicada a
nossa vida, e nós, de acordo com as palavras do apóstolo Paulo, permane­
ceríamos nos nossos pecados (ver ICor 15.17). Jesus Cristo foi ressusci­
tado para nos assegurar diante de Deus que estamos livres dos nossos
pecados, ou seja “a ressurreição de Cristo tinha como propósito trazer à
luz o feito de que todos os que reconhecem a Jesus como seu Senhor e
Salvador têm entrado em um estado de justiça diante dos olhos de Deus”,13
pois “o Pai, ao ressuscitar a Jesus de entre os mortos, nos assegura que o
sacrifício expiatório tem sido aceitado; em conseqüência, nossos pecados
são perdoados”.14

Possibilidade do n o v o na sci m en to
Podemos dizer, além disso, que é por meio da ressurreição de Jesus que
Deus opera o Novo Nascimento na nossa vida. 1 Pedro 1.3 diz: “Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita miseri­
córdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de
Jesus Cristo dentre os mortos”. Regenerou significa literalmente “nos fez
nascer de novo”. Pedro diz que isso foi possível mediante a ressurreição de
Cristo. Em várias de suas passagens, a Bíblia fala do novo nascimento como
um tipo de ressurreição, pois o novo nascimento é uma ressurreição espiri­
tual possibilitada pela ressurreição física de Cristo. Paulo diz: “Fomos, pois,
sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi res­
suscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós
em novidade de vida” (Rm 6.4), Esta novidade de vida é a vida que se
origina com o novo nascimento. Também Efésios 2.6 fala que “juntamente
cüm ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo
Jesus” (ver também Cl 2.12). Ou seja, já experimentamos uma ressurreição
na nossa vida: o novo nascimento. Isso só foi possível por causa da ressur­
reição de Cristo.
Ressurreição: A grande vitória 305

Vitória sobre a m orte

Certamente, o maior significado da ressurreição é a vitória sobre a mor­


te. Conforme as palavras do apóstolo: “Mas, de fato, Cristo ressuscitou
dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem. Visto que a
morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição
dos mortos” (1 Co 15.21). Por causa de Adão, a morte entrou no mundo, e,
por causa de Cristo, a ressurreição do mortos entrou no mundo. Por isso
ele é as primícias dos mortos. Em Adão, instalou-se a ordem da morte, em
Cristo instalou-se a ordem da ressurreição. Como diz Paulo: “Porque, as­
sim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados
em Cristo” (ICo 15.22). Porém, o estado de ressurreição somente é aplica­
do aos que “são de Cristo”. A ressurreição de Cristo é o golpe decisivo
contra o último inimigo: a morte. Sem a ressurreição de Cristo, a morte é o
único destino do homem, daí o desabafo de Paulo: “Se, como homem, lutei
em Efeso com feras, que me aproveita isso? Se os mortos não ressuscitam,
comamos e bebamos, que amanhã morreremos” (ICo 15.32). É importan­
te entender que, se não há ressurreição, não existe qualquer vantagem em
ser honesto, justo ou piedoso. Se não há ressurreição, a lei da selva seria a
única válida. Mas Paulo tem certeza de que suas lutas e dificuldades não
foram em vão. Ele sabe que Jesus ressuscitou, e sabe que os crentes ressus­
citarão também (2Co 4.14).

Efeitos da ressurreição de Cristo


O s efeitos da ressurreição de Cristo são inumeráveis. Toda uma nova
ordem se estabeleceu a partir dessa ressurreição.

M u d a n ç a d o dia de d es ca n so
O próprio dia de descanso mudou a partir da ressurreição de Jesus. Sa­
bemos que no Antigo Testamento os israelitas observavam o sétimo dia
como dia de descanso. Porém, a partir da narrativa da ressurreição de Jesus,
acontecida no primeiro dia da semana, ou seja, no domingo, este passou a
ser o dia de culto e adoração do povo de Deus. Isso pode ser visto porque
há centenas de citações sobre o sábado no Antigo Testamento, mas nem
uma única ordenança sobre ele no Novo. Mas encontramos a declaração de
que os cristãos se reuniam e até celebravam a Ceia do Senhor no primeiro
306 Razão da esperança

dia da semana: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o
fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exorta­
va-os e prolongou o discurso até à meia-noite” (At 20.7). Do mesmo modo,
Paulo manda coletar ofertas nesse dia: “No primeiro dia da semana, cada
um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá
juntando, para que se não façam coletas quando eu for” (ICo 16.2). Não foi
preciso um novo mandamento; o acontecimento histórico da ressurreição,
acontecido no primeiro dia da semana, foi suficiente para que a igreja pri­
mitiva passasse a guardar esse dia como o Dia do Senhor (Ap 1.10). Sabe­
mos isso não apenas dos escritos bíblicos, mas também dos escritores pri­
mitivos, dos tempos da igreja pós-apostólica, como Justino,15 Dionísio,
Irineu, e outros que foram inclusive discípulos dos apóstolos. Eles nos di­
zem que os cristãos guardavam o primeiro dia da semana. A ressurreição
mudou o dia de descanso e de adoração. É claro que havia uma diferença na
maneira como os cristãos guardavam o domingo, em relação ao modo como
os judeus guardavam o sábado. Para o judeu era uma obrigação legal, para
o cristão um dia de adoração e serviço voluntário.

Poder na vida do s crentes


A ressurreição de Cristo não traz benefícios apenas para o futuro dos
crentes, mas também para o presente. E por meio da ressurreição de Cristo
que Deus dá vitória para o crente nesta vida. Paulo diz que nós fomos
“sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos
nós em novidade de vida” (Rm 6.4). A conversão introduz duas novas rea­
lidades na vida do crente, uma de morte e outra de vida. O crente é unido
na morte e na ressurreição de Cristo, assim morre juntamente com Cristo
para o pecado, e ressuscita juntamente com Cristo para uma vida totalmen­
te nova. Por isso, Paulo diz: “Assim também vós considerai-vos mortos
para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm 6.11). A partir
da ressurreição de Cristo, o crente é elevado a uma nova posição, pois já
dispõe da posição de ressuscitado, graças à ressurreição de Jesus. E tam­
bém está à sua disposição o mesmo poder demonstrado na ressurreição de
Cristo. Paulo orava para que os crentes de Efeso pudessem compreender
tudo o que estava reservado para eles, especialmente qual era a “suprema
grandeza do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força
do seu poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mor­
tos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais” (Ef 1.19,20).
Ressurreição: A grande vitória 307

Esse poder está disponível para transformar dia a dia a vida dos crentes,
para que eles se tornem progressivamente mais semelhantes a Cristo.

Nossa própria ressurreição fu tura

A ressurreição de Cristo garante que todos os crentes ressuscitarão. O


futuro corpo ressuscitado será nos moldes do corpo de Cristo, e apesar de
ser a partir desse corpo atual, será incomparavelmente mais glorioso: “Pois
assim também é a ressurreição dos mortos. Semeía-se o corpo na corrup­
ção, ressuscita na incorrupção. Semeia-se em desonra, ressuscita em glória.
Semeia-se em fraqueza, ressuscita em poder. Semeia-se corpo natural, res­
suscita corpo espiritual” (ICo 15.42-44). A explicação de Paulo é que, na
ressurreição, acontecerá uma grande transformação: o corpo natural do
crente passará a ser um corpo espiritual. Isso se dará da seguinte maneira,
“Eis que vos digo um mistério: nem todos dormiremos, mas transforma­
dos seremos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao ressoar
da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis,
e nós seremos transformados” (ICo 15.51,52). Os que estiverem vivos na
volta de Cristo não passarão pela morte, mas serão transformados e terão o
mesmo corpo da ressurreição de Jesus. Nosso coração regenerado encon­
tra muita dificuldade em relação ao corpo atual, pois o corpo que temos
agora é, na melhor das hipóteses, instrumento ineficaz para expressar os
desejos e propósitos do coração regenerado. De fato, como Packer coloca
“muitas das fraquezas com as quais os santos lutam - timidez, tempera­
mento agressivo, luxúria, depressão, frieza nos relacionamentos, e outras -
estão intimamente ligadas à nossa constituição atual”,16 mas “os corpos
que se tornam nossos na ressurreição geral serão corpos que harmonizam
com nosso caráter aperfeiçoado e se revelarão instrumentos perfeitos para
santa auto-expressão por toda a eternidade”.17 Tudo isso somente será
possível porque Cristo ressuscitou. Paulo tinha certeza dessa ressurreição,
por isso podia dizer: “Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabalá­
veis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o
vosso trabalho não é vão” (ICo 15.58). A ressurreição de Cristo garante o
presente e o futuro dos crentes.
Graças à ressurreição de Cristo, estabeleceu-se para a humanidade uma
nova ordem, a Ordem da Ressurreição. A morte perdeu pela primeira vez,
e, em breve, será derrotada para sempre. Não há razões para duvidarmos
de que Jesus realmente tenha ressuscitado, e certamente, há espaço para
milagres hoje tanto quanto no passado ou no futuro. A existência de Deus
308 Razão da esperança

garante que os milagres também existam. Jesus Cristo ressuscitou, essa é a


grande proclamação e a grande verdade do Cristianismo. A nossa fé e a
nossa esperança podem ser fortalecidas, pois Cristo ressuscitou. Graças a
ele podemos desfrutar dos benefícios que essa ressurreição nos traz, tanto
para esta vida como para a vindoura. Louvemos ao Cristo ressuscitado, ao
triunfante Rei que venceu a morte, pois um dia também a venceremos.
24

Ascensão: A coroação do Rei

"Pelo que t a m b é m D eus o exaltou sob rem a n eira e lhe deu o n o m e que está a cim a de todo
n o m e , p ara q ue a o n o m e de Jes u s se dobre todo jo elh o , n o s céus, na terra e debaixo da terra,
e toda lín g u a c o n fe s s e q ue Je s u s Cristo é Senhor, p ara g ló r ia d e D eus Pai " (Fp 2 .9 -1 1 ).

Quando o primeiro cosmonauta russo voltou da primeira missão que


lançou um homem ao espaço, ele disse que lá em cima não havia visto Deus
ou o paraíso em lugar algum.1 Infelizmente, as pessoas gostam de brincar
com coisas que não entendem. A ascensão de Jesus não significou que ele
saiu viajando pelo universo até chegar ao céu. O que essas críticas e brinca­
deiras escondem é uma profunda falta de entendimento do que é o céu e,
acima de tudo, do que foi a ascensão de Jesus. A ascensão de Cristo repre­
senta o momento em que ele partiu em definitivo deste mundo, para assu­
mir a sua posição de governo celeste. Apesar de não ser uma doutrina mui­
to considerada pela igreja, ela é fundamental para a fé cristã.
O relato de Lucas em Atos 1.6-11 é um relato histórico. Lucas não está
contando uma lenda ou uma história religiosa. Ele está narrando um acon­
tecimento histórico que pesquisou e apurou minuciosamente (Lc 1.1-4).
Portanto, a ascensão não é uma lenda, é um acontecimento histórico. O
que é bastante criticado no relato de Lucas é a elevação física de Jesus às
alturas. Uma vez que a terra é redonda, não dá para dizer que o céu fica lá
em cima, então, os críticos dizem que esse relato é cheio de primitivismo e
impropriedade terminológica. O fato, porém, é que até hoje dizemos que as
estrelas ficam lá em cima. Se quiséssemos ser científicos, teríamos que dizer
que elas também ficam lá embaixo. A ascensão de Cristo foi uma demons­
tração visível aos apóstolos de que ele estava partindo pela última vez, e que
não mais o veriam como eles já estavam acostumados a ver. Depois da sua
ressurreição, ele se manifestou aos discípulos durante quarenta dias, e, na­
quele dia, ele se elevou da terra, e depois de alguns instantes desapareceu. A
importância desse acontecimento é excepcional, pois marca o fim da obra
de Cristo na terra e o início de sua obra celestial.
310 Razão da esperança

0 retom o do filho
Não existe lugar melhor do que o nosso lar. Isso é o que quase todos
sentem quando retornam de alguma viagem longa. A ascensão marcou a
volta de Jesus para o seu lar, porém isso não quer dizer que o lar de Jesus
seja em algum lugar no espaço acima de nós. E comum a Escritura descre­
ver o céu como acima, mas isso é uma força de expressão. O céu é um lugar
real, mas a sua dimensão é espiritual. Não é só um estado, é um lugar;
porém, não é possível chegar a esse lugar pelo uso de algum meio de trans­
porte criado pelo ser humano. Para chegar ao céu, é preciso mudar da di­
mensão física para a espiritual.
O Evangelho de João narra a trajetória da vida de Jesus como uma via­
gem de ida e de retorno. Ele veio aqui por meio do seu nascimento e voltou
para o seu lugar pela ascensão. Nascimento e ascensão são aspectos opos­
tos da manifestação de Cristo. Em João 17, Jesus falou da posição que
ocupava no céu com Deus antes de sua encarnação: “Eu te glorifiquei na
terra, consumando a obra que me confiaste para fazer; e, agora, glorifica-
me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que
houvesse mundo” ( Jo 17.4,5). E ele completou: “Pai, a minha vontade é
que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que
vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da funda­
ção do mundo” (Jo 17.24). Antes de vir a este mundo, Jesus desfrutava de
uma posição de glória e amor em seu relacionamento com o Pai, porém,
por algum tempo, ele ficou longe disso, embora não totalmente (exceto
talvez no momento da crucificação). O fato é que, ao adentrar o mundo,
Jesus se esvaziou de algumas de suas prerrogativas. Paulo diz aos Filipen-
ses: “Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação
o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de
servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura
humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e
morte de cruz” (Fp 2.6-8). Jesus não se esvaziou da sua divindade quando
adentrou o mundo, ele nunca deixou de ser Deus, ele apenas abriu mão de
seu status divino, pois precisava se humilhar como homem. Paulo não está
dizendo que Jesus se esvaziou de sua divindade, mas que ele se esvaziou de
seus direitos divinos, especialmente da sua glória. E, de fato, o carpinteiro
de Nazaré não foi reconhecido como um dos grandes deste mundo. Ainda
que João tenha dito que sua glória pôde ser vista na Encarnação (Jo 1.14), é
Ascensão: a coroação do Rei 311

justamente a glória do Verbo eterno que se submeteu a ser homem e a viver


como homem. Porém, em momento algum Jesus fez questão de demons­
trar a sua divindade, exigir deferência ou reconhecimento. Depois de sua
morte e ressurreição, ele retornou à posição que sempre foi sua de direito.
Como bom Filho, ele retornava ao lar.
De certo modo, Jesus voltou ao céu para reassumir a sua antiga posição
e, ao mesmo tempo, para assumir uma nova posição. Sua obra redentora
lhe garantiu uma posição ainda maior: a de rei supremo sobre o destino
final do universo. Assentado à destra de Deus, ele está investido dessa posi­
ção. Por isso, Paulo, depois de falar da humilhação de Cristo, fala da sua
exaltação: “Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o
nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre
todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda lingua confesse que
Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.9-11), Essa posição,
de redentor investido de autoridade suprema, Jesus não possuía antes de
sua vinda aqui, pelo simples fato de que ainda não havia morrido pelos
pecados. A ascensão marca o momento em que o Salvador recebeu a coroa
e o direito absoluto de governar o mundo para fins de consumação do
plano de Deus. A ascensão introduz um novo estágio no processo redentor
que é tão importante quanto a ressurreição, que significou a vitória sobre a
morte. Bavinck diz que “sua ascensão é um triunfo, em um sentido mais
forte, que a ressurreição”,2 embora talvez essa frase possa ser entendida
como um exagero. De qualquer modo, a ascensão é o triunfo supremo que
conduz à entronização de Jesus ao posto de governo máximo do universo.
Pela ascensão, Jesus assumiu a sua posição de autoridade nos céus. A
bíblia costuma usar a expressão “sentado à destra de Deus” (Mc 16.19)
para exprimir o significado da posição de autoridade de que Jesus se encon­
tra investido desde a ascensão. Pedro, no seu primeiro sermão após o Pen­
tecostes, depois de relatar a trajetória de Jesus desde sua pregação na Gali-
léia até sua morte e ressurreição, diz que Jesus foi: “Exaltado, pois, à destra
de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo” (At 2.33).
No testemunho seguinte que o mesmo Pedro deu, falando então para as
autoridades judaicas, ele foi ainda mais específico: “Deus, porém, com a
sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o
arrependimento e a remissão de pecados” (At 5.31). Estêvão, pouco antes
de ser apedrejado, teve uma visão da posição de Cristo: “Eis que vejo os
céus abertos e o Filho do homem, em pé à destra de Deus” (At 7.56). Mas
a maior descrição da posição de autoridade que Jesus recebeu ao assentar-
se à destra de Deus depois da ascensão é o próprio Pedro que nos dá em
312 R azão da esperança

sua primeira epístola: “O qual, depois de ir para o céu, está à destra de


Deus, ficando-lhe subordinados anjos, e potestades, e poderes” (IPe 3.22).
Jesus, é, portanto, o comandante supremo de tudo o que existe.

Fim de u m a obra e co m eço de outra


Na ressurreição, Cristo consumou a vitória sobre o pecado e sobre a
morte, e desse modo, cumpriu tudo o que era necessário para a salvação do
seu povo, porém faltava justamente a tarefa de distribuir esses dons e condu­
zir a obra de conversão até aos confins da terra. Para isso, ele precisava subir
à destra de Deus e assumir a posição de autoridade suprema, de onde pode­
ria realizar a obra que ainda faltava. Por esse motivo, podemos dizer que a
ascensão é o fim de uma obra e o começo de outra. E o fim da obra expiatória
terrena e o começo da obra celestial. Lucas relata que, no momento em que
Jesus subiu aos céus, os discípulos ficaram com os olhos como que hipnoti-
2ados, fixos no céu. Naquele momento, anjos apareceram e lhes disseram:
“Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que den­
tre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11). Essa
era uma ordem para não permanecerem parados olhando para o céu. Eles
tinham muito trabalho a fazer. Antes da segunda vinda de Jesus teria que
acontecer uma outra “vinda” e uma outra “ida”. Trata-se da “vinda” do Es­
pírito Santo e a “ida” dos discípulos a todas as nações. Jesus subiu aos céus
exatamente para possibilitar essas coisas. A vinda do Espírito Santo para
capacitar os discípulos na tarefa que precisavam realizar era imprescindível,
pois, sem o Espírito Santo, não havia chances de realizarem a imensa tarefa
de evangelização. Basta ver Pedro, que nega Jesus três vezes, ou Tomé, que
mesmo tendo recebido a notícia dos dez apóstolos sobre a ressurreição de
Cristo, ainda tinha dúvidas, para perceber que eles não estavam prontos.
Além do testemunho da ressurreição de Cristo, era necessário o poder do
Espírito Santo e, para que isso acontecesse, a ascensão precisou acontecer
primeiro. Jesus deixou bem claro que, se não partisse e fosse exaltado, não
poderia conceder o Espírito Santo, e sem o Espírito, o inconstante Pedro, o
duvidoso Tomé e os outros fracos discípulos jamais conseguiriam levar o
evangelho até aos confins da terra.
Horton diz que o nosso Rei Redentor ascendeu ao céu com um duplo
propósito: defender a segurança eterna do seu povo e executar o julga­
mento eterno contra aqueles que não o receberam.3 A fim de defender o
seu povo, a principal obra que Cristo iniciou a partir de sua ascensão foi a
Ascensão: a coroação do Rd 313

de advogado diante do Pai em favor dos crentes. O apóstolo João o chama


explicitamente de nosso advogado junto de Deus (ljo 2.1). A obra sacer­
dotal de Jesus, especialmente a celestial, se iniciou graças à ascensão de
Cristo. O autor aos Hebreus fala bastante sobre o caráter de Jesus como
nosso advogado, e nos encoraja a usufruir os benefícios que Jesus concede
como sacerdote do seu povo: “Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como
grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa
confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-
se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado. Acheguemc nos, portanto, confiadamente,
junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos
graça para socorro em ocasião oportuna” (Hb 4.14-16). Por causa da as­
censão, Jesus “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus,
vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). Assentado à destra de
Deus, ele realiza a sua obra de intercessão, como o autor aos Hebreus
ainda declara: “Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos
tal sumo sacerdote, que se assentou à destra do trono da Majestade nos
céus, como ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo que o Se­
nhor erigiu, não o homem” (Hb 8.1,2).
Mas ele está lá em cima com o objetivo de terminar de destruir os inimi­
gos também. A Bíblia diz que, com a ascensão de Jesus, os exércitos malig­
nos sofreram uma baixa irrecuperável. Paulo diz que quando Deus ressus­
citou a Jesus e o fez sentar-se à sua direita nos lugares celestiais, ele passou
a ocupar uma posição “acima de todo principado, e potestade, e poder, e
domínio, e de todo nome que se possa referir, não só no presente século,
mas também no vindouro” (Ef 1.21). Pedro também fala dessa subordina­
ção forçada: “O qual, depois de ir para o céu, está à destra de Deus, fican­
do-lhe subordinados anjos, e potestades, e poderes” (IPe 3.22). Seria sem
sentido dizer que os anjos bons se subordinariam a Jesus após a ascensão
porque eles já eram subordinados antes. Parece bem evidente que Pedro e
Paulo estão falando dos poderes malignos. Paulo declarou que o fim so­
mente virá quando Jesus “houver destruído todo principado, bem como
toda potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto
todos os inimigos debaixo dos pés” (ICo 15.24,25). Com a sua ascensão,
Jesus assumiu o posto de governo do universo, e sua preocupação principal
é subjugar e eliminar todo o mal da criação de Deus. Evidentemente que
ele faz isso mediante a sua obra na cruz, que lhe deu autoridade para execu­
tar o plano de Deus para este mundo. A partir desse entendimento, pode­
mos interpretar aquela batalha no céu, descrita em Apocalipse 12, entre
314 Razão da esperança

Miguel e os anjos bons contra Satanás e seus anjos decaídos como uma
descrição da vitória de Jesus na ascensão. João descreveu uma mulher radi­
ante que deu à luz um filho varão (Ap 12.1,2). O dragão fez de tudo para
devorar o filho da mulher (Ap 12.3,4), mas o filho foi arrebatado para Deus
até ao seu trono (Ap 12.5). Em seguida, João descreveu a peleja no céu:
“Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o
dragão e seus anjos; todavia, não prevaleceram; nem mais se achou no céu
o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se cha­
ma diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a
terra, e, com ele, os seus anjos” (Ap 12.7-9). Com a entronização de Jesus,
o diabo perdeu o seu lugar e com ele todos os seus anjos. Eles foram expul­
sos em direção a terra, porém, mesmo na terra não poderão ficar muito
tempo (Ap 12.12). Os inimigos já estão debaixo de seus pés, o esmagamen­
to final é apenas questão de tempo.

U m n o v o estado para a h u m a n id a d e
A igreja é a grande beneficiada com a exaltação de Jesus, pois, graças a
essa exaltação, Jesus tem capacitado a sua igreja para a tarefa de evangeliza­
ção, o que, de certo modo, também é uma maneira de fazer os inimigos
baterem em retirada. Os dons que ele distribui para o seu povo são frutos
da sua ascensão. Paulo fala disso na carta aos Efésios: “Por isso, diz: Quan­
do ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos ho­
mens” (Ef 4.8). Os dons que foram dados à igreja para realizar a difícil
tarefa de convencer o mundo e edificar os crentes vêm a nós por causa da
ascensão de Cristo. Sua exaltação era necessária para que pudesse conceder
a seu povo um pouco do seu poder. Paulo tem mais a falar sobre a impor­
tância da exaltação de Cristo para a igreja. Ele diz que Deus fez Cristo
“sentar à sua direita nos lugares celestiais, acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir, não só
no presente século, mas também no vindouro. E pôs todas as coisas debai­
xo dos pés, e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a qual é
o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Ef
1.20-23). Cristo exaltado e assentado à destra de Deus é o governador su­
premo de todas as coisas, mas quem se beneficia com isso é a igreja, de
quem ele é a Cabeça. Sua posição de autoridade garante a segurança e a
eficácia de sua igreja durante a peregrinação dela neste mundo. O fato de
Cristo estar no céu não significa que ele esteja limitado ao céu, pois a sua
Ascensão : a coroação do Rei 315

onipresença garante que ele esteja com seu povo todos os dias até a consu­
mação do século (Mt 28.20).4
A ascensão de Cristo nos fala de um novo estado para a humanidade. A
humanidade, decaída em Adão, agora passa a ser exaltada em Cristo. É
lógico que isso é privilégio somente dos crentes em Jesus. A Bíblia diz que
Deus, juntamente com Jesus, “nos ressuscitou, e nos fez assentar nos luga­
res celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.6). De alguma maneira maravilhosa,
Cristo está no céu assentado à destra de Deus, e nós estamos lá com ele.
Nós não só experimentamos a ressurreição de Cristo, o que foi estudado
no capítulo anterior, como participamos de sua ascensão. O fato de estar­
mos espiritualmente assentados com Cristo nos lugares celestiais nos ga­
rante uma autoridade de que o homem nunca dispôs, exceto, talvez, no
caso de Adão antes da queda. Não só participamos do combate espiritual,
lutando “contra os principados e potestades, contra os dominadores deste
mundo tenebroso” (Ef 6.12),. como somos armados de armas que “não
são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando
nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus,
e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co 10.4). Tam­
bém somos colocados numa posição de juizes deste mundo e até dos anjos
(ICo 6.3). Assim se cumpre em nós aquilo para o que desde o início Deus
nos criou, conforme a Bíblia testemunha do homem: “Fizeste-o, por um
pouco, menor que os anjos, de glória e de honra o coroaste [e o constituíste
sobre as obras das tuas mão?*] (Hb 2.7; ênfase acrescentada). Em Cristo, estamos
exaltados à destra de Deus, fomos elevados a um novo estado, o estado da
ascensão. Essa é uma doutrina maravilhosa e que os crentes precisam apren­
der mais. Ela não tem nada a ver com o triunfalismo da teologia da prospe­
ridade, é apenas o reconhecimento da nossa posição em Cristo, que nos
traz privilégios e também responsabilidades.
Por fim, poderíamos dizer que a ascensão de Cristo garante também a
nossa própria ascensão física futura. Jesus disse a seus discípulos pouco
antes de sua partida: “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não
fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos
preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu
estou, estejais vós também” (Jo 14.2,3). Jesus quer levar os seus discípulos
para o mesmo lugar que ele foi. Isso acontecerá na Segunda Vinda, como
Paulo diz: “Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ou­
vida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos, os que fi­
carmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o
316 Razão da esperança

encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Se­
nhor” (lTs 4.16,17). Do mesmo modo que Jesus foi elevado entre nuvens
para o céu, nós também experimentaremos uma ascensão física. Esse esta­
do de exaltação, Jesus o descreve simbolicamente em Apocalipse 3.21: “Ao
vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também
eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono”. Assim como a ressurrei­
ção de Jesus garante a nossa própria ressurreição, podemos dizer que a sua
ascensão garante a nossa ascensão.

Conclusão
E comum a tendência de se valorizar a obra que Jesus realizou durante
seus dias aqui na terra e minimizar a obra que ele realiza hoje no céu, mas
as duas são igualmente importantes. Por isso, a ascensão é tão importante
quanto o nascimento ou a paixão de Cristo. Na verdade, uma coisa de­
pende da outra. Precisamos ver a obra de Cristo como um todo, e nisso
devemos incluir o nascimento, a vida perfeita, a morte, a ressurreição, a
ascensão, o derramamento do Espírito e a segunda vinda. Todos esses
acontecimentos são igualmente importantes e necessários para a salvação
do povo de Deus. O resumo disso é que tudo o que Jesus realizou foi
absolutamente necessário para que a obra fosse completa, pois todos es­
ses acontecimentos são igualmente necessários para a salvação, e nenhum
poderia faltar.
A ascensão de Jesus ao céu foi um acontecimento de importância indi­
zível. Ela marca de modo definitivo a passagem de Jesus por este mundo, e
demonstra que a encarnação e o esvaziamento do Filho de Deus não foram
em vão. Ela é a evidência de que a expiação foi realizada e que o sacrifício
foi aceito. Ela demonstra que a vida venceu a morte, e que agora, é só uma
questão de tempo até que todos os elementos do plano de Deus se encai­
xem, e conduzam o mundo à consumação.
Assim como sua morte e ressurreição, a ascensão dirige a humanidade
para uma nova posição, para um novo modo de vida. Por meio da sua
ascensão, Jesus assumiu a sua posição de poder e autoridade, de onde go­
verna todas as coisas para o cumprimento do plano de Deus. De onde
também intercede e dirige sua igreja, protegendo-a e fortalecendo-a para
que a missão dela seja cumprida integralmente.
O nosso coração deve se alegrar pela posição que Cristo ocupa à destra
de Deus. Também devemos nos esforçar para viver a vida de pessoas exal-
Ascensão: a coroação do Rei 317

tadas que Cristo nos confere por sua ressurreição e ascensão. Ao cristão,
nenhuma vida é digna, a não ser a que é lá do alto. A verdade é que somos
lá de cima. Lá é nosso lar. Portanto, enquanto estivermos aqui, segundo o
apóstolo Paulo, a nossa vida deve ser assim: “Buscai as coisas lá do alto,
onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto,
não nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa vida está oculta
juntamente com Cristo, em Deus”. (Cl 3.1-4). Nada menos do que uma
vida assim pode agradar a Deus e a nós mesmos.
25

A salvação pela graça1


w w

Se perguntarmos a alguém a respeito de sua salvação pessoal, possivel­


mente essa pessoa se sentirá um pouco desnorteada, e talvez devolva a
pergunta: “Salvo do quê?” Nesses tempos modernos, as pessoas perderam
a noção da necessidade e da importância da salvação. Elas vivem numa
rotina de trabalho, estudos, diversões, etc., que nem lhes passa pela cabeça
a interrogação: “O que será de mim depois desta vida?” O mundo do por­
vir perdeu o interesse para a maioria das pessoas. Enquanto, na Idade Mé­
dia as pessoas chegavam até a “comprar” um lugar no céu (indulgências),
tal era a preocupação delas com a salvação da própria alma, hoje a maioria
das pessoas nem acredita no céu ou no inferno, ou pelo menos, na prática,
não demonstra preocupação. Outras, por outro lado, pensam que um Deus
de amor não as jogaria no inferno, e por isso vivem despreocupadamente.
A alienação das pessoas a respeito deste assunto é algo muito perigoso.
Freqüentemente ficamos sabendo de pessoas que foram levadas de manei­
ra tão imprevista... Todos nós deveríamos constantemente pensar no que
aconteceria se Deus nos chamasse hoje.
Tudo o que o ser humano tem construído neste mundo tende a apontar
apenas para este mundo mesmo. A vida neste mundo tem sido considerada
o início e o fim de toda a existência. Até mesmo a pregação dos nossos dias
tem colaborado para isso. Enfatiza-se a necessidade de vitórias, prosperida­
de e conquistas neste mundo, o que leva naturalmente ao pensamento de
que esse mundo é a única coisa que importa. E impressionante a transposi­
ção de temas que o modernismo evangélico tem feito em relação aos temas
tradicionais da pregação bíblica. Na pregação evangélica histórica, o verda­
deiro problema do ser humano é o pecado e, para resolvê-lo, ele precisa se
arrepender, crer em Jesus, iniciar o processo de santificação por meio de
uma vida de renúncia, esperando o momento final em que entrará no reino
celestial, quando será, etitão, revestido da perfeição. Na pregação moder­
nista, ou talvez devêssemos até dizer, pós-modernista, o problema do ser
humano é a falta de prosperidade (doenças, dívidas, desentendimentos, etc.).
A solução é reconhecer essa situação desesperante, procurar uma determi-
320 Razão da esperança

nada igreja, e tomar parte em algum ritual de quebra de maldição. A partir


daí, a pessoa iniciará um processo de apropriação de bênçãos, em que terá
que ter atitudes de renúncia, fazendo generosas doações para a igreja, até
que alcance a plena prosperidade. Isso leva as pessoas a não ter mais cons­
ciência de que necessitam de salvação. Elas sentem-se seguras em meio ao
sistema de vida que este mundo oferece; não têm consciência de que, se só
este mundo existe, a vida vale muito pouco, e não há diferença entre ser
justo ou ser perverso ou entre o bem e o mal, e nem mesmo entre ser
próspero ou miserável, pois como diz Paulo, “se a nossa esperança em
Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os
homens” (ICo 15.19), e, portanto, seríamos miseráveis de qualquer jeito.

A salvação do S enhor
A Escritura ensina a universalidade do pecado. Depois da queda de Adão,
o ser humano mergulhou no pecado e jamais conseguiu e nem desejou se
livrar dele. Jesus descreveu a pessoa que comete pecado como uma escrava
do pecado (Jo 8.34), pois além de não querer deixar de pecar, ela nada pode
fazer para agir de modo diferente. Depois da queda, a natureza humana se
corrompeu total e intensamente, e a contaminação se estendeu a todas as
áreas da vida. Entre as principais conseqüências do pecado está a quebra da
comunhão com Deus. O pecado gerou a separação entre o homem peca­
dor e o Deus Santo (Is 59.2). A Escritura ensina também que a universali­
dade do pecado trouxe como justo pagamento a morte de todos. Paulo diz
que “o salário do pecado é a morte” (Rm 5.12; 6.23), e Lorraine Boettner
interpreta:

A sentença que foi imposta como resultado do pecado de Adão, inclui mais
do que a decomposição do corpo. A palavra “morte”, usada nas Escrituras
com referência às conseqüências do pecado, inclui toda espécie de mal que é
infligido como castigo desse pecado (...) significa, pois, a miséria eterna do
inferno e, ainda, o antegozo dessas misérias já nos males sofridos nesta vida.2

Portanto, o pecado, deixou o ser humano num estado de absoluta miséria


espiritual. Isso torna todos eles dependentes única e exclusivamente da sal­
vação de Deus. E, de fato, desde o início foi Deus quem tomou a iniciativa
para salvar o homem. Deus agiu e age para salvar o homem baseado exclusi­
vamente na sua graça, por isso dizemos que somos salvos pela graça. Todos
A salvação pela graça 321

os seres humanos se encontram num mesmo estado, o decaído. Cometer um


pecado ou um milhão não faz diferença quanto à condenação ao inferno,
pois quem quebra um mandamento da lei, quebrou todos (Tg 2.10). Porém,
a notícia maravilhosa é que todos poderão ser salvos, sendo que Deus não
faz distinção entre pecadores. Ele não escolhe os mais bonzinhos. A fé sal­
vadora em Jesus Cristo garante a salvação para todos os que crêem.
Antes mesmo do Éden, Deus já havia decidido sobre o modo como
salvaria os homens. Na eleição, ainda na eternidade, Deus visualizou a obra
da salvação. O passo seguinte para a salvação, depois da eleição, foi a En­
carnação. Deus não ficou esperando que nos movêssemos para ele, até
porque nunca faríamos isso; ele veio atrás de nós. O conselho da Trindade
determinou que a Segunda Pessoa seria o mediador, aquele que satisfaria a
justiça divina e daria vazão à misericórdia divina. O mediador se tornaria
um homem, sem, contudo, perder a sua divindade, Jesus Cristo cumpriu o
propósito divino de salvar o homem, ainda que Satanás tenha feito todas as
tentativas para impedi-lo.3 Apesar da gravidade do pecado humano e de
suas conseqüências, Jesus venceu, e a salvação foi providenciada. Cristo fez
o que Adão não pôde fazer, e assim, a maldição de Adão foi vencida e
destruída pela graça de Cristo. A vida de Cristo derrotou a morte de Adão.
O ponto central da salvação que Deus conquistou para nós consiste na
morte de Jesus, muito embora a morte do Senhor não seja o único aconte­
cimento redentor. Precisamos entender que Jesus viveu, morreu e ressuscitou
para nossa salvação. Sua vida nos salva porque ele obedeceu inteiramente a
Deus fazendo o que Adão não tinha feito. Por meio de sua vida de obediên­
cia, ele conquistou a justiça que derrama sobre nós. Sua morte nos salva
porque é a punição que nós deveríamos receber pelos pecados, mas que ele
recebeu no nosso lugar, quando assumiu a nossa culpa e pagou a nossa
dívida. Sua ressurreição nos salva porque por meio dela podemos também
viver em novidade de vida. Além disso, a ressurreição é base para a nossa
transformação e para a ressurreição futura do nosso corpo.

Um atalho para o céu


A salvação é pela graça, mas os seres humanos têm tido dificuldades em
entender o que isso realmente significa. A maioria das pessoas continua pen­
sando que precisa conquistar a salvação. Mas aí, diante das dificuldades que
elas mesmas se impõem, buscam caminhos alternativos. Nunca faltaram he­
resias na história da igreja que oferecessem um caminho mais curto para o
322 Razão da esperança

céu, uma espécie de “atalho”. Se, por um lado, há os que pregam a salvação
pelo legalismo, há, por outro, alguns que têm pavimentado a estrada estreita
que Jesus ensinou, a ponto de torná-la até razoavelmente confortável, quan­
do não extremamente fácil. Na Idade Média, foi criado um sistema que fa­
cilitava bastante a salvação dos pecadores; tratava-se do sistema das indul­
gências. No catolicismo medieval, para se obter o perdão dos pecados era
preciso seguir uma certa ordem. Primeiramente uma pessoa precisava se
arrepender de seus pecados, depois fazer uma confissão perante um sacer­
dote e, por fim, cumprir a penitência, que era uma espécie de reparação pelo
erro cometido e que dependia da gravidade da falta. Entretanto, o perdão se
estendia apenas às conseqüências eternas do pecado, ou seja, a única coisa
que ele conseguia era libertar o culpado do inferno. A absolvição não elimi­
nava as conseqüências terrenas dos pecados; ela dizia respeito ao sofrimento
que alguém poderia receber como retribuição pelos seus erros. Acreditava-
se que, aqueles que não recebessem todas essas conseqüências nessa vida, as
receberiam no purgatório. Assim, o purgatório era um local intermediário
entre o Céu e o Inferno, onde aqueles que não haviam sido maus o suficiente
para irem para o inferno, e nem bons o bastante para irem diretamente para
o céu, ficavam algum tempo até terem sofrido ou “purgado” os seus peca­
dos. A absolvição sacerdotal não eliminava as penas do purgatório, no en­
tanto, era ensinado que a igreja tinha poder sobre essas penas, e que o Papa
poderia liberar alguém do purgatório. Acreditava-se que havia um tipo de
depósito de “méritos” conquistados por Cristo e pelos “santos”, e que o
Papa, como depositário desses tesouros, poderia conceder um pouco dele
para os que necessitassem. As indulgências foram usadas nas Cruzadas, onde
os soldados lutavam em troca da remissão dos seus pecados e também dos
pecados dos seus familiares.4
As indulgências foram uma das causas da Reforma Protestante do século
16. Foi contra elas, especialmente, que Martinho Lutero fixou as suas 95
teses na porta da Catedral de Wittenberg em 31 de Outubro de 1517. Na­
queles dias, um Arcebispo chamado Albrecht, endividado com alguns no­
bres, conseguiu do Papa o direito de vender indulgências na Alemanha. Ele
enviou um dominicano chamado Teztel, que ficou conhecido como um dos
mais hábeis vendedores de indulgências. Esse homem andava pelas ruas das
cidades anunciando que, no momento em que a moeda caía no seu cofre, e
era ouvido o seu tilintar, a alma em favor de quem se havia comprado a
indulgência saía do purgatório. Também eram vendidas indulgências para
pessoas vivas que queriam garantir a própria salvação de sua morte. Emitia-
se até mesmo certificados de garantia, que eram guardados como uma espé-
A salvação pela graça 323

cie de passaporte para o céu. As pessoas da época pensavam que estavam


aproveitando uma excelente oportunidade para garantir o céu. Não é por
acaso que multidões se arrastavam atrás dos vendedores de indulgências,
afinal, na visão do povo, comprar com uma quantia de dinheiro algo que não
tem preço era um excelente negócio. Para a igreja romana, era melhor ainda.
Nada poderia ser mais irônico do que o fato de as pessoas procurarem
um atalho difícil quando o verdadeiro caminho estava muito próximo, ou
desejarem comprar algo que era totalmente gratuito. Porém, foi isso o que
aconteceu no período das indulgências e acontece até hoje. Entretanto, o
fato de a salvação ser de graça, não significa que ela seja fácil. Ainda é o velho
caminho estreito ensinado por Jesus, porém, talvez, seja justamente o fato de
ele ser tão simples que o torna aparentemente tão difícil para as pessoas.

Esforços inúteis
O sistema de indulgências, bem como todos os sistemas antigos ou mo­
dernos que tentam encontrar atalhos para o céu, somente existem por causa
da falta de entendimento de como funciona a salvação, e de qual é a natureza
do evangelho. A igreja da Idade Média não entendia ou não queria entender
que a salvação é pela graça. Em meio às trevas daqueles tempos, Lutero
encontrou na carta aos Romanos a resposta para todas as suas angústias. Ele
redescobriu a salvação pela graça, e teve início a Reforma Protestante. Em
Romanos, Paulo diz que o evangelho é a manifestação da Justiça de Deus: “A
justiça de Deus se revela no evangelho” (Rm 1.17), justiça essa que Lutero,
antes da conversão, tanto temia, pois apesar de cumprir rigorosamente to­
dos os rituais prescritos pela igreja, nunca se sentia perdoado e nem conse­
guia paz de espírito. Quando Lutero entendeu que Deus não exige essa jus­
tiça de nós, ao contrário, ele exige de si mesmo, a paz inundou o coração do
monge, pois compreendeu que “o justo viverá por fé” (Rm 1.17). Em Roma­
nos 3.21 Paulo diz: “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus
testemunhada pela lei e pelos profetas”. Há um imenso contraste nessa de­
claração - a total depravação do ser humano que é incapaz de agradar a
Deus, e a provisão que o próprio Deus preparou para o ser humano e que
tem se manifestado no evangelho. Os que desejam conquistar a sua salvação
por meio das boas obras podem desistir enquanto é tempo, pois Paulo diz
que “ninguém será justificado diante dele por obras da lei” (Rm 3.20; ver G1
2.16). Portanto, a salvação não pode ser conquistada pela simples obediência
à lei de Deus, pelo motivo de que esse não é o caminho proposto por Deus,
324 Razão da esperança

até porque ninguém jamais conseguiria cumprir plenamente a lei (ver Rm


3.10; ver Tg 2.10). A salvação é um presente de Deus, ao contrário do que
pensavam as pessoas da Idade Média, bem como muitas ainda hoje; justiça
não se compra, nem se conquista, justiça se ganha. Paulo diz que a justiça
que se manifestou não é qualquer justiça, algo como uma autojustificação
humana, mas é a “justiça de Deus”, que é concedida “mediante a fé”. Aqui
está o único requisito exigido do ser humano para que ele seja salvo. Quando
o carcereiro desesperado jogou-se aos pés de Paulo e Silas querendo saber
como poderia ser salvo, eles lhe responderam de modo simples: “Crê no
Senhor Jesus, e serás salvo, tu e a tua casa” (At 16.29-31). Na mais famosa
declaração sobre a salvação mediante a fé, Paulo diz “porque pela graça sois
salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Ef 2.8).
Se alguém ainda estiver pensando que tem algum mérito na sua salva­
ção, as passagens acima devem eliminar essa idéia. Alguém poderia dizer:
“Mas a fé sou eu quem sente, logo isso é um mérito meu, algo como uma
obra minha”. Essa declaração está errada porque não fazemos uma troca
com Deus. Não oferecemos a ele a nossa fé, e em troca ele nos dá a salva­
ção. Tudo o que acontece com relação à nossa salvação é regido pela pala­
vra “graça”, que é um sinônimo de “gratuito”. Alguém pode me oferecer
algo vaüosíssimo e me dizer que não preciso pagar nada, mas se eu lhe
oferecer um centavo e ele aceitar, já não é mais de graça. Pode ser muito
barato, mas não é de graça. Para ser de graça, não se pode dar nada em
troca. Paulo deixa bem claro que a salvação é totalmente pela graça na
expressão: “Isso não vem de vós, é dom de Deus”. Ele está se referindo a
todo o conjunto da salvação que inclui a fé. Diríamos então que a fé faz
parte do “pacote” da salvação que recebemos como um presente de Deus.
Como diz McGregor Wright,

A salvação é um dom, e o pecador não contribui com nada, tendo apenas


as mãos vazias estendidas para recebê-la. Mesmo esse simples ato de fé
em si mesmo é da iniciativa divina, e não pela autogeração humana. A fé
salvadora é em si mesma, um dom, não uma capacidade natural pela qual
simplesmente decidimos concentrar em Cristo como um objeto de nossa
confiança.5

Portanto, devemos eliminar da nossa mente toda idéia de que de algum


modo colaboramos com o processo da salvação. Nosso dinheiro não pode
comprar a salvação, e nossas boas obras são tão inúteis quanto ele. Quem
não for salvo pela graça, não será salvo de maneira alguma. Lutero e a
Reforma entenderam que o homem não precisa se tornar justo para poder
A salvação pela graça 325

alcançar a vida eterna, pois isso ele jamais conseguiria, uma vez que nin­
guém jamais cumpriu a lei de Deus (Rm 3.10, 20, G1 3.11), mas que, basea­
do na justiça de Cristo, Deus pode e efetivamente declara o homem como
justo quando ele crê. Esse ato de declarar é algo completamente gratuito,
pois o homem nada fez para merecer isso, uma vez que tudo provêm da
obra e dos méritos do Senhor Jesus Cristo.

O significado da salvação
A fim de entendermos melhor o que é salvação, podemos listar algumas
características práticas dela na nossa vida.

Ter vida verdadeira


A Escritura descreve as pessoas que ainda não encontraram a salvação
como estando mortas espiritualmente por causa dos pecados. O estado de
morte aponta para a completa alienação da vida espiritual a que estão sub­
metidos todos os não-convertidos. Eles estão mortos e não têm consciên­
cia nem de que estão mortos. Um não-convertido não tem qualquer sensi­
bilidade espiritual, pois Paulo diz que “o homem natural não aceita as coi­
sas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las,
porque elas se discernem espiritualmente” (ICo 2.14). A razão pela qual as
pessoas não se importam com a vida eterna é porque estão mortas espiritu­
almente. Salvação significa receber a vida verdadeira. Isso significa que uma
pessoa só começa a viver realmente a partir do momento em que se con­
verte. Por melhor que tenha sido a sua vida antes, a pessoa percebe que ela
não passava de morte.

Receber per dã o co m p le t o

Muitos sabem qual é a experiência de ter uma dívida alta e não ter con­
dições de pagá-la. Vivemos num país em que quase é impossível não se
endividar. A instabilidade da economia, os juros altíssimos e o salário cada
vez menor, podem surpreender a qualquer um. Porém, existe uma dívida
muito pior: a nossa dívida com Deus. Cada ação nossa, cada pecado, tudo
está registrado diante de Deus, e Cristo disse que daríamos conta de cada
palavra frívola que dissermos neste mundo (Mt 12.36). No livro do Apoca­
lipse, na descrição do Juízo Final, é dito que são abertos os livros que con-
32 6 Razão da esperança

têm cada ato que os homens praticaram, pois tudo foi registrado (Ap
20.11,12). Todos esses pecados formam uma grande dívida espiritual, e ela
será cobrada. Porém, quando Cristo entregou a sua vida na cruz, ele pagou
toda a dívida do seu povo. Ser salvo, portanto, significa ser completamente
perdoado por causa da cruz. Por meio do arrependimento e da fé, pode­
mos receber o perdão completo; este perdão é obra de Deus, como Bavinck
assevera: “De fato o perdão de pecados é realizado definitiva e perfeita­
mente em Deus, mas nos é dado e apropriado por nós na nossa vida por
meio da fé e do arrependimento”/’ Quase podemos resumir a salvação
como sendo a libertação do pecado. A verdade é que só precisamos de
salvação porque um dia o pecado entrou no mundo. Chafer fala de sermos
livres do pecado em três tempos: passado, presente e futuro.7 Pensando
nisso, podemos dizer que nossos pecados passados são perdoados na cruz
de Cristo, no presente os nossos pecados atuais continuam sendo perdoa­
dos e, além disso, pela atuação de Deus na nossa vida, somos
ininterruptamente livrados do poder do pecado; e quanto aos pecados fu­
turos, também são perdoados na cruz de Cristo, e um dia, seremos definiti­
vamente livres da presença e de qualquer influência do pecado.

Ser livrado da ira vindoura


João Batista advertiu as multidões que vinham para ser batizadas no rio
Jordão de que não poderiam escapar facilmente da “ira vindoura”. Paulo
também falou sobre um “dia da ira” de Deus em que o seu justo juízo seria
revelado (Rm 2.5), e o Apocalipse descreve em cores dramáticas esse dia
(Ap 6.12-17). Salvação, portanto, consiste em ser livrado da ira vindoura.
Em ITessaloniscenses, Paulo diz que, a partir do momento em que ouvi­
ram a Palavra e se converteram, os crentes podiam servir ao Deus vivo e
esperar dos céus a vinda de Jesus que livra da ira vindoura (lTs 1.8-10).
Naquele dia, todos os verdadeiros crentes serão poupados da manifestação
final da ira de Deus que está determinada para este mundo. Essa promessa
já havia sido dada ao povo de Deus, ainda no Antigo Testamento: “Eles
serão para mim particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o S e ­
n h o r dos Exércitos; poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que

o serve. Então, vereis outra vez a diferença entre o justo e o perverso, entre
o que serve a Deus e o que não o serve” (Ml 3.17,18).
A salvação pela graça 327

Vitória com plet a

Quando Cristo morreu, houve um despojamento, mas não foi Jesus quem
foi despojado, e sim, o inimigo. Despojar é uma linguagem militar, e signi­
fica saquear o acampamento vencido. Paulo diz que quando Cristo foi cru­
cificado, ele removeu o escrito da dívida que era contra nós, e “despojando
os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triun­
fando deles na cruz” (Cl 2.14,15). Esse documento era uma grande força
do inimigo, um tipo de “prova” contra os nossos pecados. O diabo (acusa­
dor) nos acusava diante de Deus, mas, agora já não há documento que nos
acuse, e, portanto, Satanás perdeu a sua arma, perdeu os seus trunfos, foi
derrotado e humilhado pela vitória de Cristo. Os crentes em Cristo desfru­
tam de uma vitória completa sobre as forças malignas, por isso Paulo escre­
ve aos romanos: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É
Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (8.33,34). Cristo derrotou o
nosso inimigo, e nos dá a sua vitória. Nada mais o diabo poderá fazer con­
tra a nossa vida, pois temos a salvação de Cristo e, por essa razão, já somos
mais que vencedores por causa de Jesus (Rm 8.37; Rm 16.20).

Vida eterna
Acima de tudo, salvação significa receber a vida eterna. Não fomos cri­
ados para morrer, a morte entrou na nossa existência por causa do pecado.
De certo modo, toda a ação redentora de Deus tem o objetivo de retirar a
morte de sua criação. Por isso, Paulo diz que a morte é o último inimigo a
ser derrotado, e que Cristo a derrotará na ressurreição final (ICo 15.26).
Nenhuma passagem é mais clara em demonstrar a salvação pela graça re­
presentando a vida eterna do que Romanos 6.23: “Porque o salário do pe­
cado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus,
nosso Senhor”. A morte é conseqüência do (pagamento pelo) pecado, mas
Deus deu um presente ao ser humano, a vida eterna em Cristo Jesus. Em
Jesus está a vida eterna; por isso, João diz que quem tem o Filho tem a vida,
quem não tem o Filho de Deus não tem a vida (ljo 5.12). A vida eterna não
é um dom do futuro, pois segundo a Bíblia, é algo que os crentes já desfrutam
agora. A Bíblia não diz que os crentes terão a vida eterna, mas que eles já a têm
(Jo 3.36).
328 Razão da esperança

Conclusão
Portanto, a salvação é a maior necessidade do ser humano, e não deveria
haver nada neste mundo que fosse mais importante do que a preocupação
com a salvação da própria alma. Não fomos feitos para morrer, pois Deus
nos fez para a eternidade. Em Jesus Cristo, Deus concedeu gratuitamente
salvação a todo aquele que crê. Essa salvação é o maior presente que al­
guém pode receber.
Pregar sobre a salvação pela graça mediante a fé, dentro dos moldes
bíblicos, pode ser muito impopular nos dias atuais. Algumas pessoas não
estão interessadas no assunto, enquanto outras entendem que devem con­
quistar a salvação por elas mesmas. Elas querem poder dizer: Eu sou salvo
porque eu faço isso ou aquilo. E muito difícil para o ser humano reconhe­
cer a sua total incapacidade e descansar em Cristo. Por isso, a salvação é ao
mesmo tempo a coisa mais fácil e a mais difícil de ser obtida. A salvação é
o assunto mais importante a ser considerado pelas pessoas decaídas. Ela
deveria ocupar a nossa mente, os nossos púlpitos, as nossas conversas com
amigos, e até os momentos de insônia. Mais do que bons conselhos sobre
como viver melhor, sobre como ser próspero ou ter saúde, as pessoas pre­
cisam aprender sobre a salvação, pois ninguém vive para sempre, e, muitos
só se darão conta da importância disso quando for tarde demais.
26

Cristo em nós: A união mística


lir^ w lr

Muitas vezes, os cristãos pensam em Cristo mais como um salvador fora


deles do que um salvador que habita neles.1 Geralmente, passa despercebi­
do o profundo e magnífico ensino que existe por detrás da expressão “em
Cristo”, que é tão comum na Escritura. Podemos dizer que a união com
Cristo é simplesmente a verdade central de toda a doutrina da salvação.
Nossa salvação depende absolutamente de nossa união com Cristo, pois
esse foi o método escolhido por Deus para nos salvar. Somos salvos por­
que fomos feitos “um com Cristo”, e permanecemos salvos apenas porque
permanecemos unidos com Cristo. Esse, sem dúvida, é o ponto distintivo
do Cristianismo em relação a todas as demais religiões que existem no mundo.
Todas as religiões apontam para alguma coisa que precisa ser feita ou pre­
enchida pelo fiel, a Bíblia, porém, aponta para uma pessoa: Jesus de Nazaré.
Ela não aponta apenas para os ensinos dele, mas para ele próprio, pois ele
é a salvação de que precisamos. Por isso ele mesmo disse: “Eu sou o cami­
nho, e a verdade, e a vida” (Jo 14.6). Observe que ele não disse: “Eu sei o
caminho, sigam-no”, nem mesmo: “Meu ensino é a verdade, obedeçam a
ele”, ou: “Eu sei como ter vida”. Jesus demonstrou que, ele próprio, em si
mesmo, é o caminho, a verdade e a vida. Somente podemos desfrutar des­
sas coisas nele, por isso, Jesus sempre usou a expressão “eu sou” nos seus
ensinos. Ele disse: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.48), “eu sou a luz do mun­
do” (Jo 8.12), “eu sou o bom pastor” (Jo 10.11), “eu sou a ressurreição” (Jo
11.25), “eu sou a videira verdadeira” (Jo 15.1). Com isso, ele sempre quis
apontar para o seu caráter singular, pois a salvação não é ter algo de Jesus,
mas ter o próprio Jesus. Salvação e Jesus Cristo são sinônimos. Tudo na
salvação depende inteiramente de Jesus, por isso a Bíblia não diz que ser
salvo significa imitar a Jesus, mas “receber” a Jesus e continuar “andando”
em Jesus. João disse de modo inequívoco: “Deus nos deu a vida eterna; e
esta vida está no seu Filho. Aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que
não tem o Filho de Deus não tem a vida” (ljo 5.11,12). Salvação é ter Jesus.
Salvação é o que Paulo disse ao Colossenses: “Como recebestes Cristo Je-
Razão da esperança

sus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados, e edificados, e confirmados


na fé, tal como fostes instruídos, crescendo em ações de graças” (Cl 2.6,7).
Cada passo de um convertido é em Jesus Cristo, desde o ato de recebê-lo,
como o desenvolvimento espiritual que deve ser nele. O entendimento de
Paulo sobre este assunto é tão pleno que ele diz que “viver é Cristo” (Fp
1.21). O ideal de um cristão, portanto, é poder dizer como Paulo: “Logo, já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (G1 2.20). Estar unido a
Cristo significa que Deus não nos vê de modo independente de Jesus; sig­
nifica que a nossa vida é enxertada em Cristo, ou que Cristo foi “formado”
dentro de nós (G14.19). Assim, passamos a fazer parte de tudo o que Cristo
é, como se mergulhássemos nele. Paulo fala que somos ramos que foram
enxertados na oliveira. Antes éramos “oliveira brava”, mas agora fomos
enxertados e passamos a desfrutar do sustento da raiz e da seiva da oliveira
(Rm 11.17). Com certeza Paulo está lembrando das palavras do próprio
Jesus: “Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu,
nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5).
Não poderia haver uma expressão mais perfeita sobre a nossa total depen­
dência de Jesus Cristo do que a relação entre um ramo e a oliveira. Estar
unido a Cristo é vida, é salvação; separados dele, somos ramos que secam e
morrem (Jo 15.6).
A doutrina da “união com Cristo” significa que, em tudo o que é neces­
sário para nossa salvação, Deus nos tornou um com Jesus. Como o nosso
representante diante de Deus, ele viveu uma vida de obediência que passa a
ser nossa, morreu pelos pecados de modo que podemos dizer que também
morremos, ressuscitou e nos fez ressuscitar com ele. Nós nos tornamos
participantes de toda a vida e obra de Jesus, de modo que é como se Deus
olhasse para nós e visse Jesus. A isso os teólogos chamam de “união místi­
ca”, porque é uma união efetivada pelo Espírito Santo de maneira misteri­
osa e sobrenatural, que nos faz ser “um com Jesus”.2

Em Cristo: Na eternidade
A salvação como “união com Cristo” começa ainda na eternidade. Já
estudamos sobre a doutrina da eleição, agora precisamos entender que a
base para a eleição é a união com Cristo. Segundo a Bíblia, Deus nos
escolheu em Cristo. Anthony Hoekema diz: “Enquanto pensamos sobre o
escopo e a abrangência de nossa união com Cristo, precisamos ver essa
união como estendida por todo o caminho, de eternidade a eternidade”.3
Cristo em nós: A união mística 331

Nossa história de união com Cristo não começa no momento em que


fomos convertidos, pois muito antes de Deus criar o mundo, ele já havia
planejado a nossa salvação, e disposto que ela seria em Cristo. Paulo diz:
“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem aben­
çoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cris­
to, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para ser­
mos santos e irrepreensíveis perante ele” (Ef 1,3,4). Todas as bênçãos
celestiais com que temos sido abençoados sobrevêm a nós nele, ou seja
“em Cristo”.
Deus nos escolheu para salvação, não porque ele tenha visto algum mérito
em nós que o motivasse a fazer isso, mas baseado na predeterminada união
com Cristo. Isso significa que a nossa eleição jamais poderá ser vista à parte
de Cristo. A união entre Cristo e o seu povo foi planejada por Deus desde
toda a eternidade. Deus nunca escolheu alguém por si mesmo, ele nunca
olhou qualquer um dos eleitos de modo independente. Ele viu cada eleito
em Cristo, ou seja, na obra que Cristo realizaria pelo eleito.4 Por isso, Jesus é
chamado de o “Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Ap
13.8), E em 1 Pedro 1.18-20 está escrito: “Sabendo que não foi mediante
coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso
fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue,
como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conheci­
do, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim
dos tempos, por amor de vós”. Desde toda a eternidade Deus já havia
escolhido um povo em Cristo e decretado que esse Cristo morresse pelo
povo escolhido.5 E impossível separar a eleição da morte de Cristo; somos
eleitos em Cristo.

Em Cristo: M o rte, ressurreição e ascensão


Se fomos escolhidos em Cristo para sermos salvos antes da fundação do
mundo (união federal), Deus enviou Jesus para ser o nosso substituto em
vida, e assim nos incluiu em Cristo durante o seu ministério neste mundo, a
isso chamamos “união de vida realizada objetivamente em Cristo”, Aqui é
necessário o entendimento de outro assunto, diz respeito à nossa união
natural com Adão. Adào foi o representante da humanidade no teste a que
Deus o submeteu ainda no jardim do Éden, A escolha que Adão fizesse
afetaria toda a sua descendência, pois ele era o cabeça dela. Adão escolheu
a rebelião e a conseqüência é que toda a sua descendência foi envolvida
332 Razão da esperança

nessa rebelião. De nada adianta as pessoas culparem Adão por sua escolha,
pois, diante de Deus, nós estávamos em Adão. Por isso Paulo declara: “Por­
tanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo
pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque
todos pecaram” (Rm 5.12). E Paulo diz em 1 Coríntios 15.22 que “em Adão,
todos morrem”, pois todas as pessoas já nascem com essa realidade de
estar em Adão. Porém, Deus resolveu mandar um segundo Adão, um novo
representante para o seu povo: Jesus Cristo. Do mesmo modo como fomos
incluídos por natureza nas atitudes de Adão, de modo que, suas atitudes
podem ser consideradas como “nossas atitudes”, também espiritualmente
somos incluídos em Cristo, de modo que as atitudes de Cristo passam a ser
“nossas atitudes”. E assim que a Escritura diz, por exemplo, que morremos
e ressuscitamos com Cristo. Paulo diz: “Fomos, pois, sepultados com ele na
morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mor­
tos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida.
Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente,
o seremos também na semelhança da sua ressurreição, sabendo isto: que
foi crucificado com ele o nosso velho homem” (Rm 6.4-6), Como diz
Horton, “é importante perceber que Cristo não vem para melhorar o anti­
go eu, guiar e redirecioná-lo para uma vida melhor; ele vem para nos matar,
a fim de nos ressuscitar em novidade de vida”.6 A morte de Jesus é a nossa
morte e a ressurreição de Jesus é a nossa ressurreição, porque tanto na
morte quanto na ressurreição de Cristo, estávamos nele. E não somente
nisso, mas até mesmo na ascensão, pois em Cristo já estamos assentados
nos lugares celestiais (Ef 2.6). Depois da ressurreição, Jesus ascendeu aos
céus, e agora ele está assentado à destra de Deus. Nossa união mística com
Cristo nos faz estar lá com ele, pois de algum modo estamos assentados
com Cristo nos lugares celestiais. A igreja unida a Cristo foi, como diz
Berkhof, “crucificada com Cristo, morreu com ele, nele ressurgiu dos mor­
tos e foi levada a sentar-se com ele nos lugares celestiais”.7
Devemos sempre lembrar que a “união mística” é misteriosa, pois
estamos falando de algo sobrenatural, que não pode ser completamente
racionalizado ou explicado. Hodge tem palavras muito próprias para isso:

E-nos suficiente saber que Cristo e seu povo são realmente um. São tão
verdadeiramente um como a cabeça e os membros do mesmo corpo, e pela
mesma razão; são envolvidos e animados pelo mesmo Espírito. Não se
trata meramente de uma união de sentimentos, idéias e interesses. Esta é só
a conseqüência da união vital na qual as Escrituras põem tanta ênfase.8
Crislo em nós: Â união mística

De fato, a união do crente com Cristo é uma união vital. Cristo e seu
povo compartilham da mesma vida.

Em Cristo: Todo o p rocesso da salvação


Mais a frente falaremos sobre um tipo de “ordem” ou “caminho” da
salvação. Isso diz respeito aos diversos elementos que compõe a salvação.
Todos esses aspectos são realizados “em Cristo”, e dependem da nossa
união com Cristo. Como disse Calvino, “nós devemos entender que en­
quanto Jesus permanecer exterior a nós, e estivermos separados dele, tudo
o que ele sofreu e fez para a salvação da raça humana permanece inúdl e
sem qualquer valor para nós”.9 John Gerstner usa a ilustração do casamen­
to para demonstrar como os benefícios de Cristo chegam até nós por cau­
sa de nossa união com ele: “Sendo a igreja casada com Cristo, tudo que é
dele passa a ser de sua esposa, o crente. Uma esposa torna-se co-herdeira
de tudo que pertence ao esposo simplesmente por ser sua esposa, por sua
união com ele pelo casamento”.10 Todas as bênçãos espirituais de Cristo
são nossas em nossa união com ele, pois “para ser aceito diante de Deus,
para ser livre de toda culpa e punição e para desfrutar da glória de Deus e
da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo dele, mas o próprio
Cristo”."

Regeneração e m Cristo

A regeneração é também chamada de novo nascimento e deve ser en­


tendida como o ato divino pelo qual ele traz alguém à vida pela união com
Cristo. Assim, alguém que estava espiritualmente morto passa a estar espi­
ritualmente vivo. Paulo diz: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por
causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos
delitos, nos deu vida juntamente com Cristo” (Ef 2.4,). Esse ato de dar vida
ao que estava morto é o que entendemos por regeneração ou novo nasci­
mento. Observe que isso acontece, nas palavras do apóstolo, “juntamente
com Cristo”. Estávamos espiritualmente mortos, mas num dado momen­
to, Deus fez com que nos tornássemos espiritualmente vivos ao comparti­
lharmos a vida de Cristo. A regeneração é em Cristo, e é um tipo de ressurrei­
ção espiritual.
334 Razão da esperança

Ju stificação e m Cristo

Justificação é o ato divino pelo qual ele coloca sobre o crente a justiça de
Cristo. Desse modo, o pecador passa a ser declarado justo diante de Deus.
Paulo diz: “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós;
para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21). A expressão
“nele” da passagem é muito enfática. Em Cristo fomos feitos justos. Nossa
justificação depende inteiramente da nossa união com Cristo (ver Fp 3.8,9).
Como diz Michael Horton, “somente Cristo possuía em si mesmo, em sua
essência tanto quanto em suas ações, a justiça que Deus requer da humani­
dade. Portanto, somente por meio da união com Cristo pode o crente gozar
da identidade de pertencer a Deus”.12 Ou como diz Bavinck, “a justiça que
nos justifica, portanto, não deve ser separada da pessoa de Cristo”,13 embo­
ra sempre deve ser lembrado que Deus nos imputa sua justiça livremente, e
não com base em alguma condição existente.

Adoção e m Cristo
A adoção diz respeito à atitude divina pela qual ele nos adota como
filhos por meio de Cristo Jesus. Isso já estava predestinado, pois Paulo diz
que Deus “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de
Jesus Cristo” (Ef 1.5). Porém, como Paulo declara: “Vindo, porém, a pleni­
tude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a
lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a
adoção de filhos. E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração
o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (G14.4-6). Fomos predestina­
dos para sermos filhos na eternidade, e Deus concretizou isso dentro do
tempo. Somos filhos em Cristo porque temos o Espírito de Cristo em nós.
Isso nos faz também herdeiros, como Paulo declara: “Ora, se somos filhos,
somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se
com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17). So­
mos filhos e herdeiros “em Cristo”.

Santificação e m Cristo

Santificação é a atividade do Espírito pela qual o crente é renovado dia


a dia em conformidade com a imagem de Deus. É o abandono dos pecados
para viver em pureza. Em lCoríntios 1.30 Paulo diz: “Mas vós sois dele, em
Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e
Cristo em nós: A união mística 335

santificação, e redenção”. Além da justiça que temos em Cristo, a passagem


diz que Cristo é nossa santificação. A santificação não é algo que consegui­
mos por nós mesmos, como muitos pensam. A santificação, embora inclua
os nossos esforços, somente pode ser encontrada em Cristo. Jesus deixou
bem claro que dependeríamos dele para podermos fazer qualquer coisa.
Ele disse: “Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós. Como não
pode o ramo produzir fruto de si mesmo se não permanecer na videira,
assim, nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim (Jo 15.4). Em
Cristo podemos ser santos, portanto, Robert Strimple está certo ao dizer
que, “a verdadeira união do crente (embora profundamente misteriosa) com
Cristo produz não apenas a justificação mas também a santificação”.14 E
muito antes, Calvino já disse: “Devido ao caráter de Deus, que é santo, esta
união traz como ingrediente fundamental a santificação, que é o seu víncu­
lo: Quando ouvimos menção de nossa união com Deus, lembremo-nos de
que santidade deve ser-lhe o vínculo”.15

Perseverança e m Cristo

Perseverança é a virtude de permanecer fiel até ao fim, capacitado pelo


Espírito Santo. Podemos perseverar até o fim porque estamos em Cristo.
Paulo diz: “Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida,
nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do
porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer
outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.38,39). Ao longo de todo o capítulo 8 de Ro­
manos, Paulo está falando sobre as dificuldades da vida presente. Parte de
seu argumento é que devemos permanecer fiéis mesmo em meio às tribula­
ções, porque elas não podem nos separar do amor de Deus. Todas as difi­
culdades desta vida não poderão nos separar do amor de Deus que está em
Cristo Jesus. Em Cristo Jesus encontramos o amor de Deus que não vai
permitir que sejamos perdidos, pois desse amor nada poderá nos separar.
A nossa salvação, em todos os sentidos, depende inteiramente da nossa
união com Cristo. Eleitos em Cristo, regenerados, justificados, santificados
e guardados em Cristo. A doutrina da “união com Cristo” é “a roda que une
os aros da salvação e os mantém em perspectiva apropriada”.16
336 Razão da esperança

Em Cristo: Vida cristã


A excelência da nossa vida cristã também depende inteiramente da nos­
sa união com Cristo. Paulo diz: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova
criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17).
A nova vida que o crente desfruta depois da conversão não tem origem ou
desenvolvimento em si mesma, ela depende exclusivamente de estar unida
com Cristo. Paulo diz: “Se alguém está em Cristo é nova criatura”. Em
Cristo, por causa de sua ressurreição, o crente pode desfrutar de uma vida
de ressurreição também, de modo que as coisas antigas somente ficam para
trás porque foram anuladas na cruz de Cristo. Como Paulo declarou, nós
morremos com Cristo, ou seja, a nossa velha vida acabou em Cristo. A
razão da nossa existência hoje já não é a vida da carne e dos pensamentos
humanos, mas a vida do Espírito que nos é dada em Cristo. Bavinck diz que
os crentes que foram crucificados para o mundo, e não vivem mais em si
mesmos, mas naquele que morreu e ressuscitou por eles, “receberam um
novo referencial para todo o seu pensamento e ação, pois eles têm sua vida,
movimento e existência em Cristo”.17
Estar em Cristo é, portanto, a base fundamental da nossa existência
como cristãos. Não existimos mais independentemente, existimos nele, como
se nossa existência e a dele se tornassem uma só. Por isso Paulo disse: “Já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora,
tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo
se entregou por mim” (G1 2.20). Essa é uma das expressões mais ricas da
Escritura. Paulo diz que Cristo está vivendo por meio dele, ou seja, a razão
ou o principio que faz com que a vida continue a se desenvolver, tenha
sentido e propósito, já não parte mais dele, é Cristo.
Nesse sentido, devemos considerar também uma das doutrinas mais
repudiadas pelo mundo e pela pregação moderna: a doutrina do sofrimen­
to. Hoje, os crentes querem ser prósperos, querem ser senhores, querem
ser respeitados e admirados, mas o Senhor dos crentes foi humilhado, es­
carnecido, crucificado e morto. O sofrimento é um ingrediente indispensá­
vel da vida cristã autêntica, pois todo crente verdadeiro sofre. O simples
fato de ainda estarmos na carne, apesar de termos sido regenerados pelo
Espírito, cria um conflito em nós que causa sofrimento. Lutar contra o
pecado é uma tarefa bastante dolorosa, e quando pecamos, sofremos ainda
mais. Jesus descreveu a vida de discípulo como uma tarefa diária de “carre­
gar a cruz” (Lc 9.23; Mt 16.24). Ele ensinou que, para segui-lo, precisamos
Cristo em nós: A união mística 337

renunciar a muitas coisas, como nossos desejos, riquezas, honras, e até a


própria vida (Lc 14.26). De todas essas coisas Jesus abriu mão por nós, e
agora devemos fazer o mesmo por ele. Nossa união com Cristo é bênção
para nós até mesmo na medida em que participamos dos sofrimentos de
Cristo. Paulo tinha esse entendimento e falou muito sobre isso. Devemos
lembrar que Paulo sofreu muito por causa do evangelho. O próprio Jesus,
ao comissioná-lo, disse que ele teria que sofrer pelo seu nome (At 9.16).
Em quase todos os lugares por onde passou, Paulo enfrentou perseguições,
afrontas, dores físicas e sofrimentos espirituais (2Co 11.24-29). Ele enten­
dia que a sua vida de sofrimento nada mais era do que uma bênção de
poder imitar a Cristo, por isso dizia que seu alvo era: “Ser achado nele, não
tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em
Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé; para o conhecer, e o
poder da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, confor­
mando-me com ele na sua morte” (Fp 3.9,10). Ele queria experimentar
cada vez mais a comunhão com Cristo no sofrimento, e por essa razão dizia
se regozijar: “Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preen­
cho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo,
que é a Igreja” (Cl 1.24). Pedro tinha esse mesmo entendimento: “Alegrai-
vos na medida em que sois co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para
que também, na revelação de sua glória, vos alegreis exultando. Se, pelo
nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós
repousa o Espírito da glória e de Deus” (IPe 4.13,14). Todo o sofrimento
que os cristãos tiverem que enfrentar nesta vida, e que não forem em decor­
rência de seus próprios pecados, são para a glória de Deus e motivo de
regozijo. A nossa união com Cristo nos leva também a sofrer como ele
sofreu, e isso é uma bênção para nós, para o nosso crescimento espiritual.
O sofrimento nos torna mais parecidos com ele, nos faz mais submissos e
mais dependentes da vontade de Deus.
Outra conseqüência da nossa união com Cristo é a comunhão com os
irmãos. Na igreja se fala muito no fato de que os crentes devem ter comu­
nhão uns com os outros, mas nem sempre fica claro qual é a base disso.
Muitos não entendem porque devem ter amizade mais com pessoas da
igreja do que com pessoas do mundo. A base da comunhão da igreja é a
união mística. A Bíblia descreve a igreja como um corpo, e esse corpo tem
uma cabeça: Cristo. Paulo diz que, pela ascensão, Cristo foi exaltado ao
posto supremo do universo, sendo que Deus “pôs todas as coisas debaixo
dos pés, e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à Igreja, a qual é o
seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas” (Ef
338 Razão da esperança

1.22,23, ver Cl 1.18). A função do Cabeça da Igreja é unir cada vez mais os
membros no corpo para que todos cresçam juntamente. Paulo fala extensi­
vamente sobre isso em Efésios 4. Ele diz que Jesus, ao subir à destra de
Deus, concedeu dons aos homens, e esses dons foram dados para o
aperfeiçoamente dos santos, para o desempenho do serviço divino, para a
edificação do corpo de Cristo (Ef 4.12). A ordem da edificação da igreja
como corpo de Cristo é a seguinte: “Mas, seguindo a verdade em amor,
cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo,
bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação
de si mesmo em amor” (Ef 4.15,16). Entre cada membro do corpo de
Cristo está a Cabeça, e todo relacionamento precisa ser mediado por ela.
Do que se percebe dessa passagem, a comunhão entre os irmãos é essencial
para o crescimento de cada um e do corpo como um todo.

Conclusão
Por isso dissemos que o Cristianismo não é uma religião, mas uma pes­
soa, uma única pessoa: Jesus Cristo. Para efeitos de salvação, é como se só
Cristo existisse. Deus não olha para nossas obras, olha para as obras de
Cristo. Deus não olha para nossos pecados, olha para a justiça de Cristo.
Quando Deus nos olha, ele vê Cristo. Todos nós agora fazemos parte dessa
pessoa maravilhosa. Jesus vive nos crentes, ele é a vida dos crentes. Viver o
Cristianismo não é questão apenas de fazer o que Cristo mandou ou seguir
o exemplo dele, é questão de ter o Filho (ljo 5.12), de estar nele (Jo 15.5).
Cristo é o tesouro maior que temos. Nada se compara aos benefícios que
temos nele. A pior situação que alguém pode enfrentar é a de estar “sem
Cristo”. O apóstolo Paulo diz que os crentes de Efeso, antes de conhece­
rem a verdade, estavam “sem Cristo, separados da comunidade de Israel e
estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no
mundo” (Ef 2.12). Estar “sem Cristo” é não dispor de nenhuma das bên­
çãos de Deus. Em unidade com Cristo, dispomos de uma nova identidade,
a identidade de Jesus. O Cristianismo não é uma religião, é uma pessoa:
Jesus Cristo,
27

Muitos chamados,
poucos escolhidos

"Porque m u ito s s ã o ch a m a d o s , m a s p o u co s , e s co lh id o s ” (M t 22.14 ).

Por que as pessoas reagem de maneiras diferentes quando ouvem a pre­


gação do evangelho? Muitas vezes, duas pessoas participam de um mesmo
estudo bíblico, entretanto uma diz: “É isso o que eu quero”, enquanto a
outra diz: “Isso não me interessa”. Do mesmo modo, dois meninos crescem
juntos numa mesma casa, recebem a mesma educação cristã, porém, um
ama a Deus e o outro não. Como essas coisas são possíveis? Por que tanta
diferença entre as respostas das pessoas ao chamado do evangelho? O que
faz com que uma pessoa aceite a salvação, enquanto a outra fuja dela? Al­
guém acha maravilhoso participar de um culto, estudar a Bíblia e orar, en­
quanto outra nem sequer consegue se imaginar fazendo essas coisas. Deve­
mos entender essas diferenças à luz do que a Bíblia chama de chamado efi­
caz, ou graça irresistível. Deus chama algumas pessoas de modo que elas não
conseguem fugir, e o outro lado da moeda é que algumas Deus não chama
da mesma maneira. Existem dois tipos de chamados divinos: o chamado
geral e o chamado eficaz. Entender bem essa diferença é a questão-chave
para responder às perguntas acima, e em última instância, entender por que
alguns vivem para Deus, enquanto outros sempre fogem dele. O próprio
Jesus disse: “muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” (Mt 22.14).

M u ito s são ch a m a d o s
Deus estabeleceu que o modo como a salvação que ele providenciou
chegaria às pessoas seria por meio da pregação (ICo 1.21; Rm 10.17). Portan­
to, a pregação do evangelho é a primeira coisa que precisamos analisar
antes de falar sobre os aspectos da salvação. Jesus ordenou que pregásse-
340 Razão da esperança

mos o evangelho a toda criatura, porém, a questão que nos surge é: De que
maneira ele deve ser pregado, e quais serão os resultados dessa proclama­
ção? Uma outra questão que precisa ser esclarecida é: Se acreditarmos que
Deus escolheu antes da fundação do mundo os que serão salvos, qual é a
ra2ao para pregar o evangelho? E ainda: Se as igrejas de tradição reformada
insistem que Jesus morreu apenas pelo seu povo, qual é a base para oferecer
essa salvação a todas as pessoas sem distinção? Neste capítulo, falaremos
sobre o método, o conteúdo, o objetivo e a intenção do chamado geral, que
é o chamado do evangelho.

0 c h a m a d o evangélico: 0 m ét o do

Jesus contou uma parábola que nos ajuda a entender a maneira correta
de pregar o evangelho. Jesus disse: “O reino dos céus é semelhante a um rei
que celebrou as bodas de seu filho. Então, enviou os seus servos a chamar
os convidados para as bodas” (Mt 22.2,3). Jesus contou essa parábola com
a intenção mostrar aos judeus da sua época o terrível erro que eles estavam
cometendo e as conseqüências que sobreviriam por eles rejeitarem o convi­
te da salvação. Na parábola, o rei mandou os servos “chamar os convida­
dos”. Isso é uma referência aos judeus, pois eles já haviam sido convidados
para a festa e agora estava chegando a convocação final, Eles foram convi­
dados durante todo o tempo do Antigo Testamento pela lei e pelos profe­
tas, agora chegava o momento de celebrarem as bodas do Filho de Deus,
pois o Messias prometido, que há tanto tempo eles esperavam, havia chega­
do. A palavra “chamar” pode ser traduzida também como convocar. A
pregação do evangelho não é a apresentação de uma possibilidade, e sim
uma ordem para ir. Nada na passagem sugere a idéia de que devemos dizer
às pessoas: “Meu amigo, hoje você pode escolher entre a vida ou a morte;
qual delas você vai aceitar?” O evangelho não oferece a vida ou a morte, o
evangelho convoca as pessoas para a vida, quem não aceita já está na morte.
Hoekema diz: “O convite do evangelho não é algo que deixa a pessoa livre
para aceitar ou declinar, como alguém que é convidado para o futebol, mas
é uma ordem do soberano Senhor de toda a criação que manda que venha­
mos a ele para salvação - uma ordem que não pode ser ignorada ao custo
de uma eterna perdição”.1 Os que haviam sido previamente convidados
para as bodas se recusaram a ir, e o rei mandou insistir com eles: “Dizei aos
convidados: Eis que já preparei o meu banquete; os meus bois e cevados já
foram abatidos, e tudo está pronto; vinde para as bodas. Eles, porém, não
se importaram e se foram, um para o seu campo, outro para o seu negócio;
M uitos cham ados, poucos escolhidos 341

e os outros, agarrando os servos, os maltrataram e mataram” (Mt 22.4-6).


O que se percebe na passagem é um alto teor de apelo. A pregação
evangelística deve ser extremamente apelativa, como o próprio Jesus de­
monstra quando apelou: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28); ou quando disse: “Se al­
guém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7.37). As pessoas precisam ouvir
esse chamado urgente e dramático para que se arrependam dos seus peca­
dos e confiem em Cristo.
Numa parábola bastante semelhante, que Jesus contou noutra ocasião,
fica ainda mais clara a idéia de convocação como pregação evangélica. Um
homem havia convidado os seus amigos para a festa, mas um a um, todos
se recusaram a ir, inventando desculpas. Então o homem disse: “Sai de­
pressa para as ruas e becos da cidade e traze para aqui os pobres, os aleija­
dos, os cegos e os coxos” (Lc 14,21). A idéia é a mesma de Mateus —Jesus
quer dizer que a festa não deixará de acontecer porque aqueles que foram
previamente convidados (os judeus) se recusaram a participar. Aqui ele
manda “trazer” outros para preencher o lugar. Isso é muito mais do que um
simples convite em que duas opções são oferecidas. Lucas continua narran­
do a parábola, e ficamos sabendo que ainda havia lugar, então o homem
disse: “Sai pelos caminhos e atalhos e obriga a todos a entrar, para que fique
cheia a minha casa” (Lc 14.23). Não resta dúvida, portanto, de que a prega­
ção evangélica é uma convocação formal, um apelo convincente para que
as pessoas abandonem a velha vida e assumam um compromisso com Cris­
to. A apresentação do evangelho não pode ser feita de modo desinteressa­
do, mas deve ser cheia de fervor, convicção e urgência; afinal o que está em
questão é a eternidade.

0 c h a m a d o evangélico : 0 conteúdo

Porém, qual deve ser o conteúdo da pregação do evangelho? Noutra oca­


sião, Jesus disse que os discípulos deveriam ir por todo o mundo e “fazer
discípulos” (Mt 28.19). Originalmente, a palavra “discípulo” combina pelo
menos dois significados: crer e aprender. Contextualmente, portanto, Cristo
quis dizer que aqueles que crêem nele levam uma vida de constante obediên­
cia e aprendizado. Fazer discípulos é praticamente o mesmo que fazer alu­
nos. Um aluno é alguém que está disposto a aprender, e há muito o que
aprender, pois apesar de o evangelho ser simples, ele tem muito conteúdo.
Hoje em dia, percebemos que a apresentação do evangelho é algo sem
profundidade e sem alicerces bíblicos. O conteúdo da proclamação
342 Razão da esperança

evangelística no Brasil, em geral, está muito diluído. Os programas evangé­


licos do rádio e da televisão apresentam um evangelho fácil e até humana­
mente atrativo. O que mais vemos são pregadores oferecendo soluções
para todos os problemas, e o que praticamente não se vê é a proclamação
das boas-novas da morte e da ressurreição de Cristo. Em meio às ofertas de
prosperidade, o conteúdo profundo e revolucionário do evangelho tem sido
esquecido ou diluído. Quando olhamos para a maneira como os discípulos
do Senhor pregavam o evangelho, observamos que eles tinham um grande
conteúdo para passar. Podemos perceber claramente que os discípulos não
apresentavam a Jesus como “a solução para todos os seus problemas”, mas
como o Salvador crucificado e ressuscitado, poderoso para dar a vida eter­
na a todos os que se achegarem a ele com fé. Portanto, pregar o evangelho
não significa dizer qualquer coisa comovedora, agradável ou atrativa, mas
anunciar a obra redentora de Cristo Jesus.
Jesus não iludia seus potenciais discípulos com promessas fantasiosas,
ao contrário, ele fazia questão de deixar bem claro que haveria muitas difi­
culdades em segui-lo. Certo dia, três candidatos a discípulos foram entre­
vistados por Jesus. O primeiro disse: “Seguir-te-ei para onde quer que fo­
res” (Lc 9.57). Era um jovem escriba. Jesus percebeu nele algum motivo
secreto para segui-lo, e, portanto respondeu: “As raposas têm seus covis, e
as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a
cabeça” (Lc 9.58). Era como se ele dissesse: Pense bem, andar comigo não
significa estar livre de dificuldades, ao contrário, pois será necessário dor­
mir muitas noites ao relento, e se privar até do conforto de um lar. O segun­
do candidato recebeu um convite do próprio Jesus: “A outro disse Jesus:
Segue-me! ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai.
Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos.
Tu, porém, vai e prega o reino de Deus” (Lc 9.59,60). Esse jovem tinha
outra prioridade na sua vida e não estava preparado para fazer de Jesus a
sua prioridade, e, portanto, não estava apto para o discipulado. O terceiro
candidato também se ofereceu, mas com uma ressalva: “Outro lhe disse:
Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas
Jesus lhe replicou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para
trás é apto para o reino de Deus” (Lc 9.61,62). De algum modo, Jesus
percebeu que aquele jovem estava vacilante na sua decisão de segui-lo. So­
mente uma decisão integral por Jesus habilita alguém ao discipulado. Esses
três exemplos demonstram claramente que Jesus nunca prometeu facilida­
des, pois a sua preocupação principal não era com o número dos discípu­
los, mas com a qualidade deles. O conteúdo de sua mensagem exigia desa-
M uilos chamados, poucos escolhidos 343

fio, renúncia e submissão, conforme ele costumava dizer: “Se alguém quer
vir após mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lc
9.23). Com isso, percebe-se que a mensagem de Jesus era bem diferente da
mensagem dos tele-evangelistas modernos, e também das pregações de auto-
ajuda que se vê em tantos púlpitos.
Jesus disse ainda que deveríamos ensiná-los a “guardar todas as coisas”
que ele ensinou (Mt 28.20). Portanto, a missão da igreja não é apenas con­
verter alguém, mas ensiná-lo, e este ensino não deve ser qualquer ensino, e
sim o ensino de Jesus. A pessoa deve ser chamada a uma vida de obediência
a Palavra de Deus. Como discipuladores, devemos ser como Paulo que
jamais deixou de “anunciar todo o desígnio de Deus” (At 20.27). Jesus
disse: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e
viremos para ele e faremos nele morada. Quem não me ama não guarda as
minhas palavras; e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai,
que me enviou” (Jo 14.23,24). O objetivo do discipulado é fazer crentes
fiéis ao Senhor, crentes que estejam dispostos a guardar as coisas ensinadas.
Um discípulo deve ser ensinado a crer em Jesus, bem como a obedecer a
Jesus, pois não há como receber a Cristo como Salvador sem que também
ele seja Senhor da nossa vida. Portanto, o conteúdo da pregação evangélica
deve se concentrar nos atos redentores de Jesus - especialmente na sua
morte e ressurreição - , deve chamar as pessoas para o arrependimento e à
fé, e para uma vida de compromisso com Deus e sua Palavra.

O c h a m a d o evangélico: O objetivo
Quem deve ser chamado? Segundo a Bíblia, todas as pessoas. Porém,
como fica a questão da eleição? Qual é a razão para chamar a todos? A
razão para chamar a todos é obedecer a uma ordem de Jesus. Ele disse que
o evangelho deveria ser pregado a toda criatura (Mc 16.15). Percebemos
das parábolas analisadas acima que Deus tem um chamado geral para todas
as pessoas. Isso não significa que todas serão salvas, mas que ele deseja que
todas ouçam esse chamado. No final da parábola, Jesus explicou como isso
funcionava: “Porque muitos são chamados, mas poucos, os escolhidos”
(Mt 22.14). O chamado do evangelho é direcionado a um número muito
grande de pessoas, porém, a resposta correta a esse chamado será obtida
apenas nos escolhidos, cujo número é bem menor. O próprio Jesus disse:
“Vinde a mim, todos...” (Mt 11.28). O convite do evangelho não é direcio­
nado apenas aos eleitos, mas a todos, embora somente os que entenderem
que estão cansados e sobrecarregados, e se dispuserem a ir a Cristo para
344 Razão da esperança

serem aliviados, é que obterão os benefícios do evangelho. Tanto a idéia de


convocação quanto de oferta universal pode ser vista em Atos 17.30: “Ora,
não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica
aos homens que todos, em toda parte, se arrependam”. Numa linguagem
que no português lembra a atuação dos guardas de trânsito, os homens são
“notificados” a se arrependerem. Todos são convocados para isso.
O argumento de que, se Deus escolheu os que serão salvos, então o
evangelho não precisa ser pregado, denota falta de entendimento da Pala­
vra de Deus. Ninguém tem a capacidade de saber quem são os eleitos, não
poderíamos selecioná-los para que ouçam a pregação do evangelho, A elei­
ção não deve ser levada em consideração no quesito para qmm pregar, e sim
a ordem de Jesus de que o evangelho fosse pregado a toda criatura. Por
outro lado, a eleição fará diferença no resultado, pois é a garantia de que a
nossa pregação não será infrutífera, pois os escolhidos responderão ao cha­
mado do evangelho.
Será que as pessoas que não ouviram a pregação do evangelho serão
desculpadas? A Bíblia diz que só há um modo de as pessoas serem salvas:
crendo em Jesus. Pedro foi muito claro no seu sermão: “E não há salvação
em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome,
dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). De
fato, segundo a Palavra de Deus, a famosa expressão popular “todos os
caminhos levam a Deus” está absolutamente errada. Há um só Deus e um
só caminho que leva a esse Deus único, e este caminho é Jesus. Portanto, se
alguém quiser ser salvo precisa receber Jesus como Senhor e Salvador de
sua vida. Disso decorre que, se os pagãos morrerem sem Cristo estarão
para sempre condenados. Porém, alguém dirá: “É justo que sejam conde­
nados aqueles que nada ouviram sobre Jesus?” E justamente aqui que entra
a responsabilidade da igreja de tornar o evangelho conhecido em todas as
nações. Entretanto, ainda que a igreja não consiga fazer isso, de qualquer
modo a Bíblia diz: “Todos os que pecaram sem lei também sem lei perece­
rão; e todos os que com lei pecaram mediante lei serão julgados” (Rm 2.12).
Paulo diz que, mesmo as pessoas que não conhecem a Palavra de Deus,
possuem uma lei gravada dentro delas. Além disso, como está escrito em
Romanos 1.18-20, Deus tem se revelado pela natureza, por meio das coisas
criadas, tornando os homens indesculpáveis. Sem querer discutir se Deus
tem outros métodos para tornar o evangelho conhecido, como, por exem­
plo, por meio de anjos, ou de visões, a verdade é que o método comum é a
proclamação do evangelho por parte dos seus discípulos. O objetivo conti­
nua sendo o mundo, e a igreja não pode se desviar desse objetivo.
M uilos cham ados, poucos escolhidos 345

0 c h a m a d o evangélico : A in len ção

Para muitos, se existe uma predestinação, então, a oferta divina do evan­


gelho não é sincera, pois, por que Deus convidaria sinceramente para salva­
ção alguém que ele não escolheu? Em resposta, se poderia dizer que a oferta
do evangelho por parte de Deus não visa à salvação, mas apenas à condena­
ção das pessoas. Assim, Deus teria determinado a pregação do evangelho a
toda a criatura para ter provas condenatórias contra aqueles que se recusas­
sem a crer no evangelho. Precisamos reconhecer que a Escritura realmente
ensina que não crer no evangelho acarreta condenação (Mt 11.21-24; Hb
10.29), porém, ela não parece ensinar que Deus quer que o evangelho seja
pregado para ter motivos para condenar os homens. Deus não precisa en­
contrar motivos para condenar os seres humanos, ele já os tem de sobra.
Não há razão para crer que a oferta do evangelho por parte de Deus não
seja sincera. Em 2 Coríntios 5.20, Paulo fala do seu papel de embaixador
divino: “De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se
Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos
que vos reconcilieis com Deus”. O papel de um embaixador é representar
o seu Chefe de Estado no país em que se encontra. Nesse país, o embaixa­
dor é a voz do Presidente ou do Primeiro-ministro. Quando o embaixador
se dirige a alguém, ele está falando e representando a vontade do seu sobe­
rano. Paulo está dizendo, portanto, que, como pregador, está fazendo justa­
mente isso, deixando Deus exortar por intermédio dele para que todos se
reconciliem com Deus. A oferta de Paulo é sincera, e a oferta do Deus a
quem Paulo representa também é sincera.
Pedro, no capítulo 3 de sua segunda epístola, dá uma resposta às pessoas
que diziam que Cristo estava demorando, e que não estava cumprindo sua
promessa de voltar logo. Pedro disse: “Não retarda o Senhor a sua promes­
sa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para
convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao
arrependimento” (2Pe 3.9). Embora muitos autores reformados se incli­
nem a pensar que, de acordo com essa passagem, Deus quer que todos os
eleitos sejam salvos, pesa a evidência de que a palavra “eleitos” sempre terá
que ser acrescentada a ela. Calvino preferia não considerá-la, como vemos
no seu comentário sobre essa passagem:

Tão maravilhoso é o seu amor pela humanidade, que ele poderia salvar a
todos, e que ele mesmo está preparado para dar salvação ao perdido. A
ordem é para ser noticiada, que Deus está pronto para receber todos ao
346 Razão da esperança

arrependimento, então que nenhum se perca (...) Pode ser perguntado aqui:
se Deus não quer que ninguém pereça, por que então muitos perecem? Para
isso, minha resposta é que não há menção, aqui, sobre o decreto secreto de
Deus pelo qual os ímpios são condenados à sua própria ruína, mas somente
de sua própria vontade como tornada conhecida para nós no evangelho.
Pois, ali, Deus estende a mão sem distinção a todos, mas só segura, de modo
a conduzi-los a si, aqueles que ele escolheu antes da fundação do mundo.2

Como é uma característica marcante de Calvino, ele não admite pensar


na idéia de que a oferta do evangelho não seja universal, ou que não seja
sincera da parte de Deus. Embora entendendo que Deus tem, no seu secre­
to conselho, o número exato dos que serão salvos, ainda assim, pela evidên­
cia escriturística, o reformador entende que Deus misericordiosamente ofe­
rece o evangelho sinceramente a todos. Ele prefere o paradoxo antes a
repudiar a oferta sincera do evangelho. O sábio reformador de Genebra
ainda declarou sobre essa questão:

Quando as pessoas quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preci­


so que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta ques­
tão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autocon­
fiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Ela entrará num
labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que
Deus quis manter ocultas e das quais ele não concede pleno conhecimento
sejam esquadrinhadas dessa maneira pelos homens. Também não é certo
sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este pene­
tre a sua infinidade eterna. Pois ele quer que a sua altíssima sabedoria seja
mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é).
Os mistérios da vontade de Deus que ele achou bom comunicar-nos, ele
nos testificou na sua Palavra. Ora, ele achou bom comunicar-nos tudo o
que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso.3

Jesus deixou bem claro o desejo divino de salvar as pessoas, mesmo as


não-eleitas. Momentos antes da sua paixão, ele lamentou sobre Jerusalém:
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram
enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta
os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!” (Mt 23.37). A
expressão de Jesus é comovente. Ele disse: “quantas vezes eu quis, e vós
não o quisestes”. Não era o Senhor que não queria a salvação do povo de
Jerusalém, era o próprio povo, e Jesus lamentou sinceramente essa rejeição.
Ele usou a figura dos pintinhos abrigados sob as asas da galinha para dizer
o quanto ele queria proteger as pessoas de Jerusalém e cuidar delas. Não
M uitos cham ados, poucos escolhidos 347

poderia haver uma declaração mais terna e sincera da parte do Senhor a


respeito do seu desejo de salvar a todos.
Ainda no Antigo Testamento, Deus falou a respeito do caminho errado
que o povo de Israel estava tomando ao rejeitar a sua oferta de salvação:
“Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o S e n h o r Deus, não tenho prazer
na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho
e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois por
que haveis de morrer, ó casa de Israel?” (Ez 33.11). Essa é uma declaração
enfática da parte de Deus a respeito do seu desejo de que todos se conver­
tam. Sua oferta de salvação é sincera, pois ele não tem qualquer prazer na
morte do perverso, seu prazer é vê-lo se convertendo e vivendo. Não dá
para afirmar que todas as pessoas de Israel naquele tempo fossem eleitas,
pois isso seria um absurdo e algo frontalmente contrário à Escritura.
Portanto, devemos sustentar duas verdades juntamente: Deus escolheu
um grupo para salvação, mas deseja sinceramente que todos sejam salvos.
São duas verdades que, na nossa mente, parecem irreconciliáveis, porque a
nossa mente é finita e limitada, mas são duas verdades “verdadeiras”. Ape­
sar de muitos não admitirem que isso seja possível, por acharem uma con­
tradição lógica, como diz Hoekema, “não podemos prender Deus na pri­
são da lógica humana”.4 Há duas outras soluções racionais para a questão,
mas ambas são antibíblicas. A primeira é dizer que Deus deseja que todos
sejam salvos e que ele não escolheu ninguém. Esse é o caminho de Armínio
e dos arminianos, porém, nos deixa com um Deus sem uma coroa. A outra
é dizer que Deus escolheu os eleitos, e não deseja a salvação de mais nin­
guém, mas isso contraria as passagens bíblicas analisadas acima. Em respei­
to à Bíblia e à soberania de Deus, devemos manter o paradoxo bíblico de
que Deus oferece sinceramente a salvação a todos, embora tenha escolhido
para salvação apenas os eleitos.
Não poderíamos terminar este tema sem pensar na responsabilidade
que pesa sobre nós, pois pregar o evangelho não é uma opção, mas uma
obrigação de todo crente. Cristo não chamou apenas algumas pessoas para
desempenharem o papel de evangelizar o mundo, ele chamou cada crente.
Todo novo convertido é chamado a testemunhar de Jesus diante dos ho­
mens. De tal modo a vida dos discípulos deve ser influenciada pelo evange­
lho que eles não consigam guardar a maravilhosa mensagem apenas para si
mesmos. A missão de pregar o evangelho não é comissionamento especial
dado a algumas pessoas, mas um modo de vida de cada cristão verdadeiro.
O discípulo de Cristo deve fazer tudo quanto seja possível, pessoalmente,
ou pela oração, para que outras pessoas venham a conhecer a Cristo, pois
348 Razão da esperança

“se negligenciamos este dever, onde está a nossa fé? Onde está o nosso
amor cristão? Se uma pessoa não tem o desejo de fazer o evangelho conhe­
cido no mundo inteiro, bem se pode questionar se essa pessoa conhece
mesmo o valor do evangelho”.5

Poucos escolhidos
Jesus disse: “Muitos são chamados, mas poucos, escolhidos” (Mt 22.14).
Agora precisamos meditar na segunda parte desse versículo, e passaremos
a falar sobre o que os teólogos têm chamado de Graça Irresistível, ou Vo­
cação Eficaz. E verdade que muitos não gostam do termo “irresistível”,
exatamente porque pensam que pode dar a idéia de que o Espírito Santo
força as pessoas a se converterem. A doutrina da Graça Irresistível nos fala
do modo em que Deus chama as pessoas para a salvação e aplica a obra de
Cristo na vida delas. Segundo essa doutrina, somente as pessoas que foram
chamadas eficazmente serão salvas. Quando falamos, por exemplo, em “cha­
mado eficaz”, estamos justamente querendo fazer diferenciação com o cha­
mado geral do evangelho, como foi visto acima. Todas as pessoas são cha­
madas para ouvir o evangelho, mas nem todas são chamadas eficazmente,
de modo que o aceitarão.
A doutrina da graça irresistível fundamenta-se na Palavra de Deus e nas
doutrinas que já foram estudadas, como a da pecaminosidade humana (morte
espiritual), a da eleição incondicional e a da expiação limitada. A pecamino­
sidade humana, também chamada de “Depravação Total”, nos fala da im­
possibilidade de o ser humano responder positivamente ao chamado de
Deus. Porém, a eleição diz que alguns deles foram escolhidos para serem
salvos. A expiação limitada (ou definida) diz que Cristo morreu por estes e,
por isso, eles precisam ser chamados de maneira eficaz, para que recebam a
salvação preparada para eles.

0 c h a m a d o gr acio so

A origem da formulação da doutrina da graça irresistível ou vocação


eficaz pode ser encontrada em Agostinho. Hodge diz: “Segundo a doutrina
agostianiana, a eficácia da graça divina na redenção não depende de sua
congruidade, nem da cooperação ativa, nem da não-resistência passiva de
seu sujeito, mas de sua natureza e do propósito de Deus. É o exercício do
“grande poder de Deus”, que ordena e é feito”.6 Essa definição clássica da
M uitos cham ados, poucos escolhidos 349

doutrina aponta para a onipotência divina, e de fato, essa é a grande base da


doutrina.
O chamado eficaz é a aplicação da obra de Cristo na nossa vida. Ele é um
chamado absolutamente gracioso, pois ninguém faz nada para merecer este
chamado. Não somos chamados porque Deus viu algo de bom em nós, mas
tão-somente porque o seu amor condescendeu em nos chamar. Quando di­
zemos que o chamado eficaz é gracioso, estamos dizendo que não havia
nada em nós, absolutamente nada, que motivasse Deus a nos chamar. A
história de Zaqueu é bastante instrutiva nesse sentido. Em Lucas 19.1-10
ficamos sabendo da conversão de Zaqueu. Algumas coisas nessa passagem
são muito interessantes para serem analisadas. Zaqueu não era o tipo de
pessoa que se esperava que se convertesse. Ele morava numa cidade ruim e
sua profissão era bastante desonrosa, pois os publicanos eram os odiosos
cobradores de impostos da época e Zaqueu era o chefe deles. O emprego de
publicano era muito próspero, alguém poderia enriquecer com extrema faci­
lidade cobrando impostos. Roma dominava a nação israelita, e para arreca­
dar impostos da nação dominada, indicava pessoas do próprio povo para
cobrar impostos dos patrícios. Roma fixava um valor determinado de im­
postos que lhe pertencia, e o que fosse cobrado acima podia ficar com os
cobradores. Para mantê-los satisfeitos, Roma fazia vista grossa para as fre­
qüentes extorsões. Porém, quem diria, Zaqueu começou a interessar-se por
Jesus. De onde veio esse interesse? E o interesse aumentou a tal ponto que
ele se sujeitou a subir numa árvore para ver o Senhor passar. Entretanto, não
foi Zaqueu quem se ofereceu a Jesus, mas foi Jesus quem parou diante da
árvore em que Zaqueu estava e o chamou pelo nome. Isso é um “chamado
eficaz”. O Espírito Santo trabalhou na vida de Zaqueu, convencendo-o a
receber a Cristo. Quem tomou a decisão de receber Cristo em sua casa foi o
próprio Zaqueu, mas ele não conseguiria fazer isso se o Espírito Santo não
estivesse trabalhando na sua vida, e se Jesus não o chamasse eficazmente.
Provavelmente havia pessoas bem “melhores” do que Zaqueu naquela cida­
de, mesmo naquela rua e quem sabe até naquela árvore, mas a verdade é que
Jesus escolheu chamar Zaqueu. Não sabemos o que motivou o amor de
Jesus por Zaqueu, apenas sabemos que esse amor existiu.

0 c h a m a d o per su asivo
Algumas pessoas são contra a doutrina da graça irresistível ou do cha­
mado eficaz porque dizem que se for assim, então, o Espírito Santo violen­
ta a vontade de uma pessoa ao obrigá-la a aceitar algo que ela não quer.
350 Razão da esperança

Esse é um entendimento equivocado, pois no chamado eficaz, o Espírito


Santo não violenta a vontade de uma pessoa, antes a persuade. Por nature­
za, nós somos indispostos a aceitar a salvação de Deus, a verdade é que não
queremos nenhum relacionamento com ele. Nosso desejo é fugir da sua
presença como nossos primeiros pais fizeram, quando sucumbiram à ten­
tação e comeram do fruto proibido. A queda lançou o homem num estado
de “morte espiritual”, ou seja, o homem foi separado de Deus. E, nesse
estado, ele não tem vontade ou disposição de voltar para Deus, ele está de
fato “morto em seus delitos e pecados” (Ef 2.1). Um morto não consegue
voltar à vida por suas próprias forças, e por isso, por natureza todos os
homens são surdos ao chamado divino. Cristo disse que era necessário “nas­
cer de novo” para poder ver o reino de Deus (Jo 3.3). Primeiramente, a
expressão “nascer de novo” significa “nascer do alto”. O fato é que nós
não causamos ou iniciamos a nossa regeneração, nós não nascemos de novo
porque cremos, ao contrário, nós cremos porque Deus nos fez nascer de
novo, até porque todo nascimento é um acontecimento passivo.
Voltemos a falar sobre esse ato de persuadir que é obra do Espírito
Santo quando nos chama eficazmente. Por natureza, o pecado tem intoxi­
cado todo o nosso ser, e nós não podemos agradar a Deus de jeito algum.
O pecado impede que possamos tomar uma decisão de servir a Deus, e nos
faz tomar decisões pecaminosas. Quando o Espírito Santo desce e age em
nós colocando novos desejos, mudando a nossa disposição íntima, nós
podemos voltar para Deus. Negar ou aceitar a Cristo são decisões nossas, a
diferença é que uma é sob a influência da carne e a outra é sob a influência
do Espírito Santo.7 O ponto principal dessa argumentação é que o Espírito
Santo não violenta a nossa vontade, ele influencia e amorosamente conven­
ce-nos a aceitar o chamado de Deus. Deus não violenta a vontade do ser
humano para que ele aceite a salvação; Deus muda a sua vontade e a sua
disposição amorosamente. Como diz Bavinck, “a vocação interna (eficaz)
consiste geralmente no fato de que ela restaura o vínculo de relacionamen­
to entre Deus e o homem, de forma que o homem possa ouvir a Palavra de
Deus e entendê-la”.8 O passo seguinte será responder a essa Palavra com a
conversão. Foi isso o que aconteceu na vida de Zaqueu. O Espírito Santo
estava trabalhando na vida de Zaqueu mesmo antes de ele conhecer a Jesus.
E a obra do Espírito se completou na vida de Zaqueu quando ele ouviu
Jesus chamá-lo pelo nome. Nesse momento, a vontade de Zaqueu foi mu­
dada, e ele foi persuadido a descer da árvore e receber Jesus na sua casa.
Jesus disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o
trouxer” (Jo 6.44). Há uma incapacidade inerente ao ser humano de res­
M uitos cham ados, poucos escolhidos 351

ponder ao chamado da Palavra. Por natureza, temos a mesma propensão


de responder ao chamado da Palavra como tem o rato de responder ao
chamado do gato. É somente quando a graça de Deus vem junto com a
pregação da Palavra, que a nossa indisposição é removida. O problema
conosco não é que não podemos tomar uma decisão por Cristo; o verda­
deiro problema é que possuímos uma natureza que é oposta a Deus. Nós
rejeitamos a Cristo por nossa própria livre vontade, porque a nossa vontade
naturalmente não deseja Cristo. E, se aceitamos a Cristo, foi porque Deus
mudou a nossa natureza e então a nossa vontade pôde responder livremen­
te à graça de Deus. Strong diz que “a operação de Deus não é um constran­
gimento externo sobre a vontade humana, mas que concorda com as leis da
nossa constituição mental”.9 Isso nos impede de pensar em coerção, pois
se fosse coerção, não seria “vocação”.

A eficácia do c h a m a d o

Quando, naquela manhã, Zaqueu saiu determinado a ver quem era Jesus,
não imaginava o que aconteceria na sua vida. Ele não imaginava que horas
mais tarde seria uma pessoa completamente diferente. Praticamente todo
mundo foi tomado de surpresa naquele dia, pois todos devem ter se espan­
tado quando Jesus disse: “Hoje me convém ficar em tua casa". A casa de
Zaqueu não era uma casa comum, era a casa de um rico cobrador de impos­
tos. Muitas pessoas haviam sido exploradas dentro daquelas quatro paredes.
Muitos banquetes imorais haviam sido oferecidos pelo anfitrião. Mas Jesus
estava decidido a entrar naquele lugar, e ele não daria apenas uma passadinha,
pois disse “hoje me convémfica r e m tua casa” (ênfase acrescentada). Espiri­
tualmente, Jesus nunca mais sairia de lá. Quanta transformação aconteceu na
vida de Zaqueu em apenas uma noite! O texto diz que: “Entrementes Za­
queu se levantou e disse ao Senhor: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade
dos meus bens; e, se nalguma cousa tenho defraudado alguém, restituo qua­
tro vezes mais” (v. 8). Essas não foram palavras da boca para fora; a transfor­
mação que ocorreu na vida de Zaqueu quando Jesus o encontrou foi uma
transformação radical. Uma transformação que atingiu a raiz da sua vida, o
centro da sua vontade: o coração. Agora as suas palavras não eram mais
obscenas, ou cheias de extorsão, pois o seu coração havia sido transformado.
Seus lábios não proferiam mais impiedade, porque o seu coração estava lim­
po dessas coisas, e agora estava cheio de Jesus (Mt 12,34).
Essa transformação maravilhosa é o que acontece na vida de todo aque­
le que Cristo chama. E por isso que pessoas que perseguiam o evangelho,
352 Razão da esperança

como o apóstolo Paulo, transformaram-se em ardentes pregadores. É por


isso, também, que muitos que não tinham qualquer interesse por Deus, e
viviam de maneira despreocupada, debochando dos fiéis, de repente se des­
cobrem orando, lendo a Bíblia, e adorando o Senhor, e com uma alegria
que certamente não pode ser explicada. Deus tem muitos meios para cha­
mar eficazmente uma pessoa. Ele é o único que pode levar as pessoas até
Jesus, e não falha nessa tarefa (Jo 6.44). Como disse McGregor Wright, “os
muitos meios para o fim de salvar cada um dos eleitos são tão eficazes que
terminam sempre em resultados bem-sucedidos. Os meios são infalíveis
porque Deus é infalível”.10 Aqui é interessante, mais uma vez, relembrar a
distinção entre a vocação do evangelho e a vocação eficaz. O simples cha­
mado do evangelho não possui o poder necessário para converter uma
pessoa. Como diz Bavinck, “independente do real poder e mérito dessa
vocação externa, ela não é suficiente para mudar o coração do homem e
efetivamente movê-lo à aceitação do evangelho”.11 E claro que Bavinck
não acha que a insuficiência esteja no evangelho em si, mas no ser humano
que não tem condições de responder, e que precisa de uma obra da graça
para despertá-lo e fazer com que o seu interior seja mudado. Essa obra da
graça é a vocação eficaz. Nas lendas dos navegantes, fala-se do canto das
sereias. A música delas atraía os marinheiros. Sempre houve muitas músicas
no mundo, mas somente aquela música fazia com que eles seguissem a
melodia. Há muitos tipos de pregação, mas somente a pregação que vem
acompanhada pela graça irresistível leva as pessoas a uma verdadeira deci­
são por Cristo.
Concluímos, portanto, que o motivo pelo qual as pessoas respondem de
modos diferentes ao chamado do evangelho é porque umas são capacitadas
por Deus para aceitarem, enquanto outras não. Por inclinação natural, ne­
nhum ser humano está disposto a se converter. Se a conversão ocorre, é
porque, antes dela, Deus já trabalhou no coração do homem, persuadindo-
o, mudando sua vontade, e tornando-o inclinado a aceitar a obra da graça
divina. É somente depois dessa obra no coração do ser humano que ele
poderá livremente responder com fé à mensagem da graça, e mesmo esta fé
não pode ser considerada uma obra dele, pois a Escritura diz que ela é um
“dom de Deus” (Ef 2.8). O chamado do evangelho e a vocação eficaz
explicam por que muitos são chamados, mas poucos, escolhidos.
28

Regeneração:
Da morte para a vida
w ilF

Para que uma pessoa seja salva, a primeira coisa que deve acontecer
dentro dela é a regeneração. Segundo a Escritura, os crentes foram escolhi­
dos em Cristo antes da fundação do mundo, e são chamados pela pregação
do evangelho, mas, até que Deus lhes abra o entendimento, eles são cegos
para Deus, pois estão mortos para a vida de Deus. Por isso, é preciso que
Deus realize uma obra neles antes mesmo da conversão. Essa obra é cha­
mada de regeneração. Por meio dela, nós nos tornamos vivos para Deus, e
somos habilitados à conversão. Na Bíblia, a palavra regeneração pode ser
entendida como a implantação da vida espiritual naqueles que estavam es­
piritualmente mortos. É um ato exclusivo de Deus. Essa vida implantada,
de acordo com a Escritura, se manifestará em arrependimento e fé, produ­
zindo transformação na pessoa (Jo 3.3; Tg 1.18; IPe 1.23).1
No capítulo anterior falamos sobre a vocação (ou chamado) eficaz. Num
certo sentido, vocação eficaz e regeneração são sinônimas, Esse é o enten­
dimento, por exemplo, de Anthony Hoekema, entre muitos outros teólo­
gos reformados.2 Realmente, se não são exatamente a mesma coisa, são
difíceis de ser distinguidas. A regeneração dá vida e possibilita a conversão,
conduzindo a uma vida de santificação. A vocação eficaz é um chamado
irresistível a uma vida de comunhão com Cristo, Talvez a diferença seja
que, quando falamos em vocação eficaz, estamos focalizando mais no cha­
mado divino, e quando falamos em regeneração estamos falando de algo
que acontece dentro do ser humano.3 Porém, as duas coisas devem ser
vistas como lados de uma mesma moeda. As palavras de Berkhof podem
nos ajudar a entender isso:

A regeneração, no sentido mais estrito da palavra, isto é, como nova gera­


ção, tem lugar na vida subconsciente do homem, e independe por comple­
to de qualquer atitude que ele possa assumir com referência a ela. A voca­
ção, por outro lado, dirige-se à consciência e implica certa disposição da
354 Razão da esperança

vida consciente. Isso decorre do fato de que a regeneração age de dentro,


enquanto que a vocação age de fora.4

Porém, como entender a relação entre vocação do evangelho, vocação


eficaz, regeneração e conversão? Seguiremos aqui a distinção feita por
Berkhof, que é mais ou menos a seguinte: (1) A vocação externa, o chama­
do do evangelho, que ocorre na pregação da Palavra, geralmente precede a
operação regeneradora do Espírito Santo, ou coincide com ela, sendo que,
por essa operação, a vida espiritual é produzida na alma do homem. (2) Em
seguida, por uma palavra criadora de Deus, ele gera a nova vida, mudando
a disposição interior da alma, iluminando a mente, incitando os sentimen­
tos e renovando a vontade. E nesse momento que o ser humano recebe
ouvidos para entender o chamado para a salvação da sua alma. Isso é rege­
neração no sentido mais estrito da palavra. (3) A partir do momento que o
ser humano recebe os ouvidos espirituais, o chamamento de Deus por meio
do evangelho é agora ouvido pelo pecador que pode recebê-lo e compreen­
dê-lo. O desejo de resistir é transformado em desejo de obedecer, e o peca­
dor se rende à influência persuasiva da Palavra pela operação do Espírito
Santo. Essa é a vocação eficaz. (4) Finalmente, essa vocação eficaz assegura
que haverá transformação por causa da vida implantada que resulta no novo
nascimento. Essa é a consumação da obra da regeneração, no mais amplo
sentido da palavra, e o ponto em que ela passa a ser conversão.5 Portanto,
uma possível seqüência seria a seguinte: vocação do evangelho - regenera­
ção - vocação eficaz - conversão/’ Porém, essa seqüência deve ser vista
apenas como distinção teológica e não necessariamente cronológica.

A ordem da salvação
Esta discussão, necessariamente, nos leva a pensar na ordem em que a
salvação é aplicada ao crente. Em teologia, fala-se numa “ordem da salva­
ção” (em latin ordo salutis). Com isso se pretende estabelecer e distinguir os
vários elementos que compõem a salvação. Alguns estudiosos se esforçam
por estabelecer uma ordem cronológica, isto é, apontando os aspectos da
salvação que se sucedem um a um. Em geral, a ordem mais aceita no meio
reformado é a seguinte: vocação, regeneração, fé e arrependimento, justifi­
cação, santificação, perseverança e glorificação. E inegável que a Bíblia apre­
senta alguma ordem no que se refere à salvação. Com isso, se quer dizer que
há coisas que realmente vêm antes que outras. Por exemplo, antes de a
Regeneração: Da morte para a vida 355

pessoa experimentar a fé, ela precisa ouvir a Palavra, pois a Escritura diz
que “a fé vem pela pregação” (Rm 10.17). Porém, é um erro pensar que
exista um esquema fixo que possa ser estabelecido de modo cronológico.
Como diz Strong, a “ordem não é cronológica, mas lógica”.7 Quando pen­
samos na ordem da salvação, é preciso lembrar das palavras de Berkhof:

Quando falamos de uma ordo salutis, não nos esquecemos de que a ação de
aplicar a graça de Deus ao pecador individual é um processo unitário, mas
simplesmente ressaltamos o fato de que é possível distinguir vários movi­
mentos no processo, que a obra de aplicação da redenção segue uma ordem
defmida e m o ável, e que Deus não infunde a plenitude da sua salvação ao
pecador num único ato.8

Essa explicação é muito importante, pois não podemos perder de vista


o fato de que a salvação é uma obra indivisível. A expressão “processo
unitário” nos ajuda a entender isso, pois sugere que há algum desenvolvi­
mento, mas que se trata de um único processo. Além disso, é preciso enten­
der que todo o processo de salvação é obra de Deus. Ele é o responsável
pela efetivação de cada aspecto da nossa salvação. Como diz McGregor
Wright, “Deus salva. Deus não faz meramente o suficiente para tornar a
salvação possível, deixando para nós o trabalho de abrir o caminho, ‘para
merecer os méritos de Cristo’, fazendo a nossa parte, para tornar o mera­
mente possível uma realidade. Cada elo na corrente da redenção é forjado
na bigorna de Deus do começo ao fim”.9 A salvação pertence, em todos os
seus aspectos, ao Senhor, ele é o dono da roda e a põe em movimento.
A passagem da Escritura que mais claramente mostra que existe uma
ordem da salvação é Romanos 8.29,30: “Porquanto aos que de antemão
conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu
Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que
predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou”. Ele estabelece
uma ligação entre uma seqüência de acontecimentos redentores para de­
monstrar que Deus já agia na vida dos crentes desde o princípio e continu­
ará até o fim, conduzindo-os à salvação completa. Essa é sua base para
continuar a argumentação nos versículos seguintes dizendo que “nada po­
derá nos separar do amor desse Deus” (Rm 8.31-39).
Primeiramente ele diz “aos que predestinou, a esses também chamou”.
A predestinação é o primeiro ato da salvação de alguém. Na predestinação,
Deus escolheu alguns para salvação e deixou outros para receberem a puni­
ção pelos seus pecados. O ato de escolha se deu antes da fundação do
35 6 Razão da esperança

mundo. A vocação deve ser identificada com o momento do chamado divi­


no. Em geral, ela está ligada ao ouvir a Palavra de Deus. E o momento em
que o pecador ouve a pregação do evangelho e responde positivamente a
ele. Assim, a predestinação está antes do tempo, e a vocação é o momento
em que a escolha divina se concretizou por meio da resposta do ser humano
ao chamado do evangelho. Todo predestinado será eficazmente chamado.
Na seqüência Paulo diz: “E aos que chamou, a esses também justificou”.
A justificação deve ser entendida como o ato pelo qual Deus declara justo o
pecador. Isso somente é possível por causa dos méritos de Jesus que, com o
seu sangue, satisfez a justiça divina, e resgatou o ser humano do pecado,
substituindo-o na cruz. Com base no mérito de Cristo, Deus declara justo o
pecador. Do chamado à justificação estão inclusos: a regeneração, o arre­
pendimento, a fé e o selo ou batismo do Espírito. E preciso lembrar que não
devemos imaginar uma ordem temporal, pois que todas essas coisas podem
ser simultâneas. A regeneração é a única que tem alguma prioridade, porém,
não uma prioridade temporal. Como diz Hoekema, “mesmo essa prioridade
da regeneração não pode ser entendida como indicando uma ordem crono­
lógica ou temporal. A relação entre regeneração e, digamos, fé é como a que
existe entre apertar o comutador da energia e inundar o quarto de luz - as
duas ações são simultâneas”.10 Assim, ele entende que a regeneração tem
prioridade causal sobre os outros aspectos do processo da salvação.11
Na seqüência, Paulo declara: “E aos que justificou, a esses também glo­
rificou”. Essa é a parte final da salvação. Da justificação à glorificação pre­
cisam estar incluídas necessariamente a santificação e a perseverança. No­
vamente, não como cronologicamente distintas, pois que são simultâneas,
mas como essencialmente distintas. Pois de fato, embora a santificação e a
perseverança caminham na mesma direção, elas são diferentes. Santificação
é o ato de abandonar o pecado e viver para a justiça, e perseverança é o ato
de permanecer firme na graça de Deus até o fim. O último acontecimento
da ordem da salvação é a glorificação. Isso deve ser entendido como o
momento em que Jesus voltar e os mortos em Cristo ressuscitarem
incorruptíveis e os vivos serão transformados (lTs 4.16,17).
Portanto, nessa passagem, estão claramente expostos os vários aspectos
da salvação. Porém, ela é uma coisa só, tanto é que todos os verbos estão no
passado. Isso sugere uma ordem inquebrável. Perante Deus, o crente já
passou por todos esses estágios. O resultado dessa idéia é segurança. E
segurança é justamente o tema de todo o capítulo 8 de Romanos.
O esforço feito acima não é para separar, mas apenas de distinguir as
experiências provocadas pelo Espírito Santo. Ao longo deste trabalho, to-
Regeneração: Da morte para a vida 357

maremos uma a uma essas várias experiências e as consideraremos separa­


damente, porém, precisamos lembrar que elas nunca acontecem separada­
mente. Falaremos num momento sobre justificação e noutro sobre santifica­
ção, porém, não devemos esquecer que elas sempre acontecem juntamente.
Apesar de parecer bem claro que há aspectos subseqüentes na ordem da
salvação, que não podem ser separados, pois a salvação é um acontecimen­
to unitário de Deus, há algo ainda que precisa ser considerado e que revo­
luciona o nosso modo de pensar a respeito da salvação. Estamos falando
do “conflito” bíblico-teológico doj á e do ainda não. De certo modo, o cren­
te j á desfruta de todos os aspectos da salvação, os quais lhe foram dados
instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo, muitos desses aspectos só se­
rão plenos na segunda vinda de Jesus. A santificação é um exemplo disso.
Sabemos que ela é algo que precisa ser desenvolvida e que somente estará
plena no dia da ressurreição. Porém, há um sentido em que já somos san­
tos, pois fomos santificados em Cristo Jesus, por isso, o Novo Testamento
chama os crentes de santos. Eles j á são santos, porém ainda não totalmente
santos. O mesmo pode ser dito da justificação, da adoção, e da própria
regeneração.

Despertando os m ortos
Voltemos agora a tratar da regeneração e sua prioridade sobre os demais
aspectos da ordem da salvação. Para entender a regeneração, antes precisa­
mos entender a situação do ser humano por natureza. Em Efésios 2.1-3,
Paulo a descreve da seguinte maneira: “Estando vós mortos nos vossos
delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mun­
do, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos
filhos da desobediência; entre os quais também todos nós andamos outro­
ra, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos
pensamentos; e éramos, por natureza, filhos da ira, como também os de­
mais”. Nessa passagem, há várias expressões importantes para a nossa dis­
cussão. Primeiramente, precisamos observar a declaração de que estáva­
mos “mortos”; chamamos isso de morte espiritual, pois embora fisicamen­
te vivo, espiritualmente o ser humano está morto. E importante que perce­
bamos que Paulo não diz que o ser humano está “doente”, mas morto.
Mortos nos delitos e pecados se refere à corrupção natural do ser humano,
que nasce sob a servidão do pecado e passa toda a vida nessa situação,
cometendo pecado e sendo escravo do pecado (Jo 8.34). Nesse estado, o
358 Razão da esperança

homem é absolutamente incapaz de mudar a situação e produzir vida em si


mesmo. Ele não tem forças para dar um passo em direção a Deus, nem
vontade para isso. Ele não pode se inclinar em direção a Deus porque já
está naturalmente inclinado para três coisas: “o curso deste mundo”, “o
príncipe da potestade do ar”, e “as inclinações da carne”. Nessa passagem,
Paulo demonstra que, para salvar os homens, Deus precisa dar vida a eles, e
não apenas oferecer o evangelho. Se não houver a implantação de vida,
pregar o evangelho é o mesmo que falar às paredes.
A Escritura tem outras expressões que nos ajudam a entender o estado
de morte espiritual. Jeremias 17.9 diz: “Enganoso é o coração, mais do que
todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” Na
Escritura, o coração se refere ao centro da vontade humana de onde proce­
dem os pensamentos e as atitudes (Mt 15.18,19). E a própria fonte da exis­
tência moral do ser humano. Essa fonte está corrompida. Não apenas par­
cialmente corrompida, mas desesperadamente corrompida. Como pode essa
fonte ser mudada? Jeremias diz que isso é impossível ao ser humano: “Pode,
acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Então,
poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal” (Jr 13.23). As­
sim como o leopardo não consegue mudar a sua pele, o ser humano tam­
bém não consegue mudar a sua natureza pecaminosa, por isso a regenera­
ção precisa ser uma obra divina. Por natureza, o ser humano é oposto a
Deus, como o apóstolo Paulo declara: “Por isso, o pendor da carne é inimi­
zade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode
estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus” (Rm
8.7,8). E evidente que o ser humano não consegue dar vida espiritual a si
mesmo, como um cadáver também não pode dar a si mesmo vida biológi­
ca. Quando é dito que, para ser salvo basta crer, é preciso que se entenda
que ninguém crê por si mesmo, pois “a menos que Deus dê vida, os peca­
dores nunca podem verdadeiramente crer. Simplesmente não temos as con­
dições requeridas para isso”.12
Quando falamos em morte espiritual não estamos pensando em inércia
ou falta de ação. O homem está continuamente agindo, porém, buscando
os seus próprios interesses, agindo sempre em conformidade com a sua
natureza pecaminosa, cometendo pecado e gostando do que faz. Ele busca
o seu próprio “bem-estar”, embora jamais o consiga, pois isso não é possí­
vel longe daquele que o criou. Nessa busca pelo seu próprio bem-estar ele
é completamente cego para as coisas de Deus (2Co 4.4).
Então, o que é a regeneração? E o ato divino pelo qual ele implanta vida
na pessoa que estava espiritualmente morta. Hodge define: “Por um con-
Regeneração: Da morte para a vida 359

senso quase universal, a palavra regeneração é empregada hoje para desig­


nar não toda a obra de santificação, nem as primeiras etapas dessa obra
incluída na conversão, mas a mudança instantânea da morte espiritual para
a vida espiritual. Portanto, regeneração é uma ressurreição espiritual: o co­
meço de uma nova vida”,13 A expressão “ressurreição espiritual” é muito
própria para descrever a regeneração,14 Por um ato exclusivo de Deus, o
morto passa a viver espiritualmente. A regeneração é o ato divino de nos
dar vida por meio da nossa união com Cristo, por eausa do seu amor e de
sua misericórdia. Algo que nos ehama a atenção quando lemos a passagem
de Efésios é que a expressão “nos deu vida” é uma ação simples realizada
no passado (Ef 2,1), Isso significa que é algo que aconteee instantanea­
mente, A regeneração não é um processo, é um ato instantâneo de Deus de
dar vida a alguém que estava morto. Os frutos da conversão podem apare­
cer aos poucos, mas a regeneração não acontece aos poucos, ela acontece
de uma vez por todas. Assim como alguém não pode estar “meio-vivo”,
também não pode estar “meio- regenerado”. Ou ele está morto ou está
vivo, ou está regenerado ou não está, “assim como na natureza, na Graça
não ocorre uma transição gradual da morte para a vida, ou das trevas para
a luz”.15 A regeneração é um ato instantâneo pelo qual Deus concede vida
ao que estava morto; isso significa que nesse exato instante ele não está
mais morto, O easo de Lázaro pode ser útil para ilustrarmos essa idéia.
Lázaro estava morto há quatro dias. Seu sepultamento incluía uma pedra, a
mortalha, e muito pranto por parte dos parentes e amigos, Jesus se aproxi­
mou do túmulo de Lázaro e gritou: “Lázaro, vem para fora!”, e, no mesmo
instante, o morto não estava mais morto e saiu do túmulo. João relata: “Saiu
aquele que estivera morto, tendo os pés e as mãos ligados com ataduras e o
rosto envolto num lenço. Então, lhes ordenou Jesus: Desatai-o e deixai-o
ir” (Jo 11,44). Esse homem instantaneamente voltou à vida. Num instante,
pelo poder da Palavra de Deus, ele passou do estado de morte para um
estado de vida. Uma eoisa é clara em relação à regeneração: “Não existe um
estado intermediário entre a vida e a morte. Se a regeneração é a vivificação
dos que estavam mortos, então ela tem de ser tão instantânea quanto a
vivificação de Lázaro”.16
A regeneração é quando Deus coloca a vida espiritual em nós, e assim
podemos ouvir o chamado e segui-lo. Jesus explicou como isso funciona
em outra passagem: “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a mi­
nha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, não entra em
juízo, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo
que vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de
360 Razão da esperança

Deus; e os que a ouvirem viverão” (Jo 5.24,25). Só Jesus tem essa voz que
consegue penetrar nos ouvidos de um morto e fazê-lo reviver.

A regeneração e a palavra
Como acontece a regeneração? Em Atos há o relato de um caso que nos
ajuda a entender esse processo. Na cidade de Filipos, Paulo encontrou um
local de oração para pregar a Palavra. Lucas relata: “No sábado, saímos da
cidade para junto do rio, onde nos pareceu haver um lugar de oração; e,
assentando-nos, falamos às mulheres que para ali dnham concorrido. Certa
mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente
a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas
que Paulo dizia” (At 16.13,14). Enquanto Lídia ouvia a pregação de Paulo,
Deus lhe abriu o coração para atender, ou seja, aceitar as coisas que Paulo
dizia. Isso é regeneração e, geralmente, é assim que ela acontece. Enquanto
alguém está ouvindo a Palavra de Deus, Deus faz a sua voz penetrar nos
ouvidos mortos e implanta a vida espiritual. Então, surge a fé, pois a fé é um
resultado da regeneração. E preciso que se entenda que a fé é fruto da rege­
neração, não a sua causa.17 Porque o Senhor abriu o coração de Lídia, ela se
converteu, e a obra do Senhor prosperou em Filipos. Isso nos fala da imensa
importância da pregação da Palavra, pois é geralmente no momento da pre­
gação da Palavra que Deus implanta a vida espiritual nas pessoas (Rm 10.17).
Contudo, é comum que duas pessoas ouçam a mesma mensagem, e ape­
nas uma se converter. Uma explicação convincente disso só pode estar em
Deus. E nesse sentido não está nem mesmo na Palavra. Já dissemos que,
geralmente, Deus regenera alguém enquanto essa pessoa está ouvindo a Pa­
lavra, contudo não podemos dizer que a Palavra pregada seja, estritamente
falando, o instrumento da regeneração. Deus opera a regeneração sem o uso
de meios, ela é um “ato da onipotência imediata de Deus”.18 Para efetuar a
implantação da vida, o Espírito não precisa de nada, mas a Palavra geralmen­
te está presente no momento da regeneração. Até porque a conversão, que
logicamente segue a regeneração, precisará da Palavra para que haja fé e arre­
pendimento. Nesse sentido, Tiago fala da regeneração pela Palavra: “Pois,
segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôsse­
mos como que primícias das suas criaturas”. A expressão “gerar”, nesse caso,
pode ser entendida como todo o processo inicial da salvação, e fica evidente
que Deus usa a Palavra da Verdade para realizar isso. Pedro tem uma expres­
são semelhante: “Pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas
Regeneração: Da morte para a vida 361

de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente”


(IPe 1.23). A regeneração acontece “mediante” ou seja, por meio da Palavra
de Deus. Isso não significa que Deus “precise” da Palavra para implantar
vida nas pessoas, mas que, ordinariamente, é assim que Deus age: enquanto
a Palavra é pregada, o Espírito Santo age na vida do ouvinte, fazendo com
que ele entenda a Palavra e, então, implanta o princípio de vida que se desen­
volverá até se expressar em conversão e mudança de atitude.
A importância da pregação, portanto, é muito grande. Embora alguns
questionem sobre a razão de pregar para pessoas que não podem ouvir,
respondemos que elas não podem ouvir enquanto Deus não lhes abrir os
ouvidos. Quando Jesus curou um paralítico de nascença, lhe deu uma or­
dem para que se levantasse, tomasse o seu leito e fosse para casa (Mt 9.6).
Como aquele homem poderia fazer isso se era paralítico? Justamente aque­
la ordem de Jesus era a própria cura. As palavras de Jesus carregavam o
poder de cura para o paralítico. Ao ouvir aquelas palavras ele estava ao
mesmo tempo recebendo o poder para se levantar, carregar o leito e ir para
casa. Isso serve para ilustrar que, do mesmo modo, conjuntamente à prega­
ção, Deus pode conceder ao pecador morto a capacidade de viver e deixar
os seus pecados para trás, como ele concede ao surdo a capacidade de ouvir
ao falar com ele.
Regeneração também pode ser sinônimo de novo nascimento. Em João
3 está relatado um encontro de Jesus com um importante líder religioso da
nação judaica chamado Nicodemos. Jesus pregou para Nicodemos: “Em
verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode
ver o reino de Deus” (Jo 3.3). O papel do ser humano nesse nascimento é
totalmente passivo. Deduzimos isso tanto porque a expressão “nascer” no
texto é passiva, como porque todo nascimento é passivo. Ninguém pede
para nascer. O nascimento a que Jesus está se referindo é do alto, ou seja,
do céu, ao contrário do nascimento natural, que é da terra. Porém, mesmo
o nascimento terreno é passivo. Os pais, às vezes decidem a hora do filho
nascer, mas quem nasceu não tem qualquer participação na escolha. Assim
como os pais geram os filhos, algo precisa gerar o crente. Jesus indica quem
tem essa responsabilidade: “Em verdade, em verdade te digo: quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3.5). A
água pode ser uma referência ao batismo, à pregação ou simplesmente ao
sentido de purificação do Antigo Testamento. O Espírito é o agente da
regeneração, ele é o autor divino do nascimento espiritual. Portanto, o novo
nascimento é uma obra divina realizada pelo Espírito Santo no interior do
crente. Nesse sentido de concepção espiritual, o novo nascimento é sinôni-
362 Razão âa esperança

mo de regeneração. Embora no sentido de nascer como dar à luz ele seja


mais sinônimo de conversão, como veremos depois.

A prioridade da regeneração
Devemos entender a regeneração como a primeira coisa que acontece
no processo em que se evidencia a salvação de uma pessoa. Vimos que a
origem do processo está na eternidade, na eleição. A regeneração acontece
no momento do chamado, quando Deus resolve cumprir na vida de alguém
o seu propósito estabelecido na eleição. Nesse momento, geralmente asso­
ciado ao ouvir da pregação da Palavra, Deus implanta um princípio de vida,
que se desenvolverá capacitando a pessoa a responder com arrependimen­
to e fé. Regeneração não deve ser confundida com conversão, embora uma
não aconteça sem a outra. A regeneração é o que possibilita a conversão. A
conversão é a manifestação visível (em arrependimento e fé) de que a rege­
neração aconteceu. Quando dizemos que uma pessoa convertida é uma
pessoa regenerada, o que se tem em mente é que, para se converter, ela
precisa ser regenerada.
A regeneração é uma obra sobrenatural de Deus que o homem não
consegue produzir, participar, e de certo modo, nem mesmo verificar.
McGregor Wright diz que “a regeneração é um ato instantâneo, que acon­
tece de um modo bem profundo, na região subconsciente do mais íntimo
do coração, e é, portanto, não-experiencial”.19 De fato, nunca poderemos
ter certeza do momento em que ela acontece. Conseguimos ver com algu­
ma acuracidade quando a conversão ocorre, pois a conversão se revela em
arrependimento e fé, e às vezes produz efeitos emocionais. Porém, a rege­
neração é uma experiência impossível de ser sentida ou percebida. Só sabe­
remos dela depois que ela já tiver acontecido, pelos frutos que sobrevirão.
Os frutos se demonstrarão em todo o processo da salvação.
Quando entendemos o nosso estado decaído, e a situação de morte
espiritual na qual naturalmente todos estávamos, podemos perceber a obra
maravilhosa que é a regeneração em nós. Quando lembramos que muitos
de nós fomos relutantes em aquiescer ao evangelho, que fomos rebeldes e
quem sabe até perseguidores, vemos quanta misericórdia Deus demons­
trou em abrir os nossos olhos, curar a nossa cegueira espiritual e nos fazer
levantar de nossa morte para uma vida junto dele. Devemos louvar a Deus
pelo fato de nos ter dado vida, estando nós mortos espiritualmente. Se ele
não fizesse isso, ficaríamos mortos para sempre.
Conversão:
Uma guinada na existência

Hoje, quando se fala em conversão, muitos imaginam o ato de “mudar


de religião”. Há uma relutância natural em algumas pessoas quanto a isso.
Por outro lado, muitos mudam facilmente de religião, mas não mudam de
vida. E aquela velha história que diz que não adianta tirar as pessoas de
dentro da favela se não tirar a favela de dentro das pessoas. Conta-se que,
certa vez, um famoso pregador inglês do século 19, chamado Charles
Spurgeon, foi chamado a atenção por um homem bêbado que estava caído
na sargeta. O bêbado disse: “Spurgeon, eu sou um dos seus convertidos”.
Meio desconcertado, o pregador respondeu: “Realmente você é um dos
meus convertidos, pois se você fosse de Jesus, não estaria aí nessa sargeta”.
Em João 3.1-15 há um diálogo entre Jesus e um importante líder judeu
chamado Nicodemos. Esse homem procurou Jesus com o intuito de co­
nhecer melhor o Mestre. Jesus o confrontou, demonstrando que, apesar de
ele ser Mestre em Israel, precisava passar por uma verdadeira experiência
de conversão. Jesus disse que a conversão é uma transformação total, é
abandonar completamente a antiga vida para começar uma nova. Ele enfa­
tizou que isso somente era possível por meio da atuação do Espírito. Acima
de tudo, demonstrou o significado da conversão que é um passar da morte
para a vida, demonstrando arrependimento e fé. A experiência do novo
nascimento pode ser aplicada tanto à regeneração quanto à conversão. Numa
ilustração, poderíamos dizer que a regeneração é o momento da concep­
ção, e a conversão é o momento de dar à luz. Nessa passagem, podemos
ver o que c a conversão da perspectiva de Jesus.
Agora falaremos do que acontece depois da vocação eficaz e da regene­
ração, que é justamente a conversão. E importante ter em mente a distinção
teológica que existe entre regeneração e conversão. Regeneração é o que
acontece dentro da pessoa, é o ato divino de dar vida, ou seja, de despertar
a pessoa para a realidade espiritual. A conversão deve ser vista como uma
conseqüência da regeneração, pois é o resultado esperado da regeneração.
364 Razão da esperança

Se a regeneração é uma experiência que não pode ser sentida, a conversão,


ao contrário, tende a ser uma experiência visível. A regeneração é algo to­
talmente independente da vontade da pessoa, mas a conversão é realizada
por ela, é a resposta humana ao estímulo divino. A conversão é a vontade
do ser humano que se inclina para Deus em arrependimento e fé.

Transformação com pleta


Nicodemos começou a conversa com uma troca de genülezas. Suas pa­
lavras são favoráveis a Jesus, num reconhecimento de sua autoridade (Jo
3.1,2). Conhecemos bem a história de Nicodemos, sabemos de sua impor­
tante posição religiosa e social em Israel. João nos diz que ele era um Mes­
tre, um especialista da lei; porém, o que às vezes não percebemos, é que
esse encontro com Jesus mudou completamente a vida desse homem. Jesus
não se deixou levar pela “conversa mansa” de Nicodemos. Ele parece ter
pressa em falar sobre algo que considera mais importante do que uma troca
de gentilezas. Jesus tem algo de suprema importância para a vida de Nico­
demos, pois está interessado na salvação dele. Por isso, a sua afirmação
corta o assunto anterior e insere um novo: “Em verdade, em verdade te
digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo
3.3). Jesus disse que para ver o Reino de Deus, é necessária uma transfor­
mação completa. Geralmente nos inclinamos a acreditar que Nicodemos
não entendeu as palavras de Jesus. E possível que ele não tenha entendido,
porém, talvez não devêssemos subestimar Nicodemos. Ele era um mestre
em Israel, um homem acostumado ao uso de metáforas para ilustrar um
ponto importante. A maneira como ele responde a Jesus, também usando
uma metáfora, indica que estamos no caminho certo. Sua pergunta é retó­
rica: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, vol­
tar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (Jo 3.4). Se olharmos as coi­
sas por essa ótica, não diríamos que ele está cometendo um erro grosseiro,
mas que está resistindo à idéia de ter que desconsiderar a sua vida toda até
esse momento. Ele está se desculpando, pois acha que é muito tarde, mas,
no fundo, acha que não precisa e não deve mudar. Isso representa um ape­
go ao conformismo. Nicodemos acha que já viveu e experimentou muitas
coisas na vida, e que todas as experiências pelas quais passou, todo o seu
aprendizado, toda a sua posição, não são coisas que se jogue fora assim tão
facilmente. Além disso, ele já foi muito longe na sua trajetória de Mestre em
Israel, não está disposto a abandonar tudo e começar do zero.
Conversão: Uma guinada na existência 365

Nascer de novo ou converter-se, como o próprio nome indica, significa


morrer e renascer. E abandonar a velha vida e iniciar uma nova. Significa
deixar tudo para trás, especialmente aquilo que, carnalmente, mais valoriza­
mos. Significa que a vida se redireciona completamente, pois tudo o que era
centralizado no homem, agora passa a ser centralizado em Jesus. Para trás
ficam os méritos humanos, a auto-suficiência humana, e todo tipo de coisas
das quais normalmente nos orgulhamos. Renascer é começar uma vida nova
e diferente.

Experiência espiritual gen u ín a


Diante da questão levantada por Nicodemos, sobre a dificuldade de re­
alizar o que Jesus exigia, o Senhor argumentou que aquela experiência não
dependeria apenas da vontade de Nicodemus. Havia alguns elementos ain­
da mais importantes. Jesus disse: “Em verdade, em verdade te digo: quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus”. A
referência à água e ao Espírito provavelmente sejam figuras do batismo de
João (com água) e do batismo de Jesus (com Espírito). Acima de tudo, o
que prevalece é que o novo nascimento é uma experiência possível somen­
te por uma ação do Espírito. Não é o homem quem nasce de novo por si
mesmo, ele precisa ser gerado pelo Espírito Santo. A conversão ou novo
nascimento é uma experiência espiritual genuína. As pessoas hoje, como
naquele tempo, estão ávidas por experiências espirituais. Querem ver sinais,
folhas brilhando, revelações, mas não têm tanta aspiração por uma vida
realmente transformada. Não têm muito desejo de levar uma vida santifica­
da, mas desejam muito se dar bem na vida. A verdadeira conversão, na
perspectiva de Jesus, é a experiência mais espiritual que existe. E uma inter­
venção direta do poder de Deus sobre a vida das pessoas que as capacita a
abandonar a velha vida. E algo que produz uma mudança real e duradoura,
não só de atitudes, mas de caráter.
Jesus disse que o Novo Nascimento é um nascimento do Espírito. O
Espírito esteve ativo desde a criação do mundo. No início ele pairava sobre
as águas, e possibilitou o surgimento da vida (Gn 1.1,2). Também foi esse
Espírito que envolveu Maria com a sua sombra, fazendo com que ela con­
cebesse o menino Jesus (Lc 1.35). Isso nos ajuda a perceber que, desde o
início, a função do Espírito foi fazer surgir a vida. Assim, ele é o que dá vida
ao convertido que estava morto em delitos e pecados (Ef 2.1). Ele o rege­
nera e possibilita que venha a responder com arrependimento e fé. Portan­
366 Razão da esperança

to, o nascimento do Espírito é um ato de criação ou, talvez, seja melhor


dizer, de recriação. A Bíblia diz: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova
criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17).
Esse imenso poder do Espírito Santo que trouxe o mundo à existência, que
fez Jesus ser concebido no ventre da virgem, é o que age na vida do homem
para regenerá-lo, a fim de convertê-lo. Não existe experiência mais podero­
sa do que essa. A conversão é, portanto, a mais genuína experiência espiri­
tual que existe.
Jesus tinha mais coisas ainda para falar sobre a conversão. Ele disse: “O
que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito. Não
te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de novo. O vento sopra onde
quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim
é todo o que é nascido do Espírito” (Jo 3.6-8). O que está contido nessas
palavras é a idéia de uma transformação radical da própria essência da pes­
soa, Jesus está falando aqui de coisas que, de certo modo, comprovam a
conversão, pois ela precisa necessariamente assumir essa mudança radical.
O nascido da carne é carne, ou seja, sua dimensão de vida é a comum de
todos os homens. A aspiração máxima de sua vida é apenas a vida da carne.
Ele nasceu na carne, vive na carne e morre na carne, pois esse é o seu
máximo, e não pode ir além disso. Esse mundo é tudo o que lhe resta.
Porém, o que é nascido do Espírito é espírito. Ele não tem mais as caracte­
rísticas inerentes da carne, pois recebeu uma nova essência, a espiritual. Por
conseqüência, tem uma nova expectativa e uma nova existência. O que
impulsiona e motiva a sua vida não são mais as coisas da carne, sua vida
agora é impulsionada pelo Espírito, e pode ser cheia de novidade, frescor e
superação. Portanto, a mudança de essência que acontece na vida de um
verdadeiro convertido é algo impressionante. Toda a sua vida se redireciona.
Ele não pensa mais do mesmo jeito, não age mais do mesmo jeito, nem
sequer sente do mesmo jeito. A sua mente, o seu coração e as suas atitudes
foram profundamente transformadas porque Deus irrompeu na sua vida.
A vida divina foi implantada nele, a vida do Espírito está no seu corpo e
alma, de modo que ele não é mais apenas carne.

A rrependim ento verdadeiro


Jesus tinha mais uma figura para usar, a fim de ilustrar o que ele queria
dizer por conversão ou novo nascimento. Segundo Jesus, conversão é pas­
sar pela experiência da serpente de bronze. Ele disse: “E do modo por que
Conversão: Uma guinada na existência 367

M oisés levantou a serpente no deserto, assim im porta que o Filho do h o ­


m em seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” (Jo
3 ,14 ,15 ). Q uando Jesus disse essas palavras, N icodem os certam ente se lem ­
brou da história de M oisés e da serpente de bronze. A história está contada
no L ivro de N úm eros (21.4-9). A E scritura diz que depois que o p o vo saiu
do E gito e andou algum tem po no deserto, com eçou a se sentir im paciente
e a m urm urar con tra Deus. Eles estavam cansados do m aná e da rotina
dura do deserto. E stavam ávidos p o r novidades, e inclusive cogitavam a
possibilidade de vo lta r para o Egito. A m urm uração do p o v o desagradou a
D eus que m andou serpentes abrasadoras. O veneno m ortal das serpentes
com eçou a dizim ar o povo. Então, o povo se arrependeu e clam ou p o r so­
corro. M oisés intercedeu, e D eus m andou confeccionar a serpente de b ro n ­
ze, com o um a espécie de antídoto contra as picadas. Assim , quando um
israelita picado p o r uma serpente olhava para a de bronze, ficava curado.
Jesus queria dizer ao ilustre m estre N icodem os que ele tinha que enten­
der a sua situação desesperadora p o r causa do pecado. E le não era em nada
diferente aos israelitas desse episódio. Ele, com o todos os demais seres
hum anos, tam bém dnha no seu sangue o veneno m ortal do pecado. Ele
precisava sentir o desespero de m orte que é o requisito fundam ental para a
salvação. E m contrapartida, o levantam ento do Filho do hom em é a solu­
ção providencial de D eus, pois basta um olhar de fé e a cura acontece. Jesus
crucificado é a cura para as chagas do pecado, mas é preciso que esse estado
desesperador seja reconhecido para que a pessoa possa desfrutar do antí­
doto divino. Se N icodem os continuasse a pensar que era m uito tarde para
m udar de vida, se pensasse que era b o m demais para recom eçar, estaria
perdido para sem pre. Será que a im agem da serpente de bronze levantada
sobre a haste passou pela m ente de N icodem os quando, posteriorm ente,
ele viu o S en h o r levantado na cruz? E m uito provável.
Portanto, nascer de n o vo implica, prim eiram ente, arrependim ento. N i­
codem os precisava se colocar no lugar daqueles pecadores que foram pica­
dos pelas serpentes abrasadoras, e se reconhecer com o um pecador que
necessita da graça de Deus. Aquelas pessoas som ente foram curadas quan­
do se arrependeram de sua atitude errada e se voltaram para Deus. O arre­
pendim ento é um dos temas mais im portantes e freqüentes do N o vo Tes­
tam ento. Jo ã o Batista e Jesus com eçaram seus m inistérios conclam ando ao
p o v o que se arrependesse (M t 3.2; 4.17). O arrependim ento não é algo
essencialm ente negativo, com o em geral se pensa. N o arrependim ento verda­
deiro, está tanto a tristeza pelo pecado quando a esperança em relação ao
futuro. Para exem plificar isso, basta que pensem os em dois casos bíblicos:
368 Razão da esperança

o caso de Pedro e o caso de Judas. Ambos pecaram e traíram o Senhor


Jesus. Judas entregou o Senhor por trinta moedas de prata e Pedro o negou
três vezes. Se pensarmos no ensino bíblico de que, a quem muito é dado
muito será exigido (Lc 12.48; Tg 3.1), poderíamos imaginar que a transgres­
são de Pedro foi até pior que a de Judas, Porém, vemos uma diferença
substancial na reação desses dois homens depois de cometido o ato. De
Pedro, a Escritura diz que “chorou amargamente” (Mt 26.75), porém per­
maneceu junto com os outros discípulos, e foi o primeiro a se dirigir ao
túmulo quando ouviu sobre a suspeita da ressurreição (Lc 24.11,12). Al­
gum tempo depois, ele foi restaurado pelo Senhor (Jo 21.15-17). A reação
de Judas foi bem diferente, embora ele também tenha sentido algum pesar
pelo que cometeu, Mateus diz: “Então, Judas, o que o traiu, vendo que
Jesus fora condenado, tocado de remorso, devolveu as trinta moedas de
prata aos principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo-. Pequei, traindo san­
gue inocente. Eles, porém, responderam: Que nos importa? Isso é contigo.
Então, Judas, atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se e foi
enforcar-se” (Mt 27.3-5). Ele sentiu remorso pelo que havia feito, que é
uma sensação de pesar pelo ato comeddo. Ele teve consciência de que pe­
cou e até mesmo admitiu isso. Até fez algo para consertar o ocorrido, pois
devolveu o dinheiro, mas o fato é que ele não tinha esperança de perdão,
não tinha esperança em relação ao futuro e, por isso, enforcou-se. O arre­
pendimento de Pedro é verdadeiro, porque tem esperança de perdão; o de
Judas é falso, pois é desesperado. Isso se encaixa nas palavras de Bavinck:

A verdadeira conversão e arrependimento não consistem de tal remorso


que se desgosta com as conseqüências do pecado, mas consistem de um
quebrantamento interno do coração (Sl 51.19; A t 2.37), de uma tristeza
causada pelo pecado em si mesmo, por causa de seu conflito com a vontade
de Deus e pela provocação da ira de Deus por ele causada, e de um sincero
arrependimento e ódio ao pecada1

Quem quiser nascer de novo, precisa sentir o verdadeiro arrependimen­


to que realmente sofre pelo pecado cometido, mas tem esperança de res­
tauração. Isso pôde ser visto na vida dos israelitas que pecaram; eles recebe­
ram a punição, mas buscaram em Moisés alguma solução para o pecado
deles. O arrependimento, segundo a definição de Hoekema é o “retorno
consciente da pessoa regenerada, para longe do pecado e para perto de
Deus, numa completa mudança de vida, manifestando-se numa nova ma­
neira de pensamento, sentimento e vontade”.2 Geralmente, esses três ele­
mentos devem ser encontrados no arrependimento: os aspectos intelec­
Conversão: Uma guinada na existência 369

tual, emocional e volitivo. O aspecto intelectual envolve o conhecimento da


santidade e da justiça de Deus e das próprias faltas, conduzindo ao entendi­
mento de que, sem o arrependimento, não se pode subsistir na presença de
Deus. O aspecto emocional representa a tristeza sincera por causa do peca­
do em si, não somente pelas conseqüências dele, mas pelo que ele represen­
ta diante de Deus, como algo ofensivo a Deus. O aspecto volitivo tem a ver
com a devida reação que se espera da pessoa, que é o afastamento do peca­
do, numa mudança interior e exterior.

Fé salvadora
O outro aspecto fundamental da conversão ou novo nascimento é a fé.
Os israelitas que haviam sido picados pelas serpentes precisavam olhar para
a serpente de bronze para serem curados. Essa era uma atitude de fé, pois
eles precisavam acreditar que, ao olhar para a serpente de bronze, seriam
curados, ou seja, eles precisavam acreditar na provisão de Deus. Ao mesmo
tempo, a situação lhes dava consciência de que nenhuma outra solução era
possível, exceto a que Deus estava providenciando. Jesus falou sobre essa
necessidade de crer na provisão de Deus, quando continuou: “Porque Deus
amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Deus
providenciou uma salvação para a humanidade, mas a humanidade não será
salva enquanto não crer nessa provisão. Por essa razão, a fé é absolutamen­
te necessária para a salvação (Rm 3.28; Hb 11.6; Jo 6.29; Rm 10.9; Ef 2.8).
Segundo a definição de Hodge, há três tipos de fé: fé morta ou especula­
tiva, fé temporal e fé salvífica,3 Fé morta é uma expressão de Tiago que diz “a
fé sem obras é morta” (Tg 2.26). Devemos entender esse tipo de fé como
uma certeza sobre fatos da salvação, mas que não produz real mudança de
vida. E uma fé que consiste de um mero assentimento intelectual oriundo de
uma tradição familiar, ou mesmo de um convencimento por causa das evi­
dências divinas da Bíblia, mas como diz Hodge, é uma fé “perfeitamente
compatível com uma vida mundana ou perversa”.4 Alguém que tem esse
tipo de fé nunca sente a necessidade de mudar de vida. Tanto é assim que
Tiago diz que essa fé pode ser encontrada até nos demônios, pois eles acre­
ditam na existência de Deus, e até tremem por isso, mas não mudam de
condição (Tg 2.19). Porf é temporal devemos entender a impressão que o evan­
gelho causa em algumas pessoas, de modo a deixá-las interessadas por algum
tempo, mas que, como Jesus disse na parábola, “não têm raiz em si mesmo,
370 Razão da esperança

sendo, antes, de pouca duração” (Mt 13.21). Calvino entendia que essa fé
não poderia ser verdadeira, em bora fosse chamada de fé pela Escritura, mas
era fru to do pró p rio coração do hom em . Ele disse: “Tem o coração do h o ­
m em tantos resquícios de vaidade, tantos esconderijos de m entira, está co­
b erto de tão vã hipocrisia, que muitas vezes se engana a si m esm o” .5 Essa fé
não passa de u m autoconvencim ento, e ainda que produza algumas tran sfo r­
mações na vida da pessoa, não são transform ações duradouras. A princípio,
um a pessoa assim pode parecer realm ente convertida, mas, a longo prazo,
não aparecerão os frutos duradouros da fé. O terceiro tipo é a f é salvífica ou
salvadora. D e certo m odo, essa é a única que pode realm ente ser chamada de
“fé”. H oekem a define fé salvadora com o “uma resposta ao chamado de Deus
pela aceitação de Cristo pela pessoa toda - isto é, com convicção firm e da
verdade do evangelho e com dependência confiante em D eus, em Cristo,
para a salvação, junto com com prom isso autêntico com Cristo e seu servi­
ço”.6 E o ato de olhar para Jesus, e saber lá no fundo do ser que ele é o único
e suficiente salvador, e se entregar a ele para viver nele.
G eralm ente se pensa que a fé verdadeira envolve três conceitos: co n he­
cim ento, aceitação e confiança. N ão existe fé verdadeira sem conhecim en­
to, pois para que alguém creia em Jesus, ele precisa ter conhecim ento de
Jesus. P regar o evangelho é anunciar fatos com respeito à vida, m orte e
ressurreição de Jesus, ou seja, é dar conhecim ento às pessoas sobre quem é
Jesus e o que ele realizou. A s pessoas precisam ter conhecim ento disso para
que possam verdadeiram ente crer (Rm 10 .13 -17 ). Inclusive existe a necessi­
dade de um conhecim ento m ínim o para que alguém possa crer e ser salvo.
O m ínim o que alguém deve conhecer é a sua situação pecam inosa, sua
incapacidade de se salvar p o r si m esm o, o fato de que C risto m o rreu pelos
pecados, e a certeza de que o fato de crer nele pode fazer com que seja
perdoado e salvo. C om o diz H odge, com isso não se pretende dizer que os
m istérios, ou verdades que não se podem com preender, não possam ser
objetos apropriados da fé, o que está em questão não é o entendim ento
com pleto de algo, mas o conhecim ento desse algo, pois “só podem os crer
no que conhecem os, ou seja, no que inteligentem ente aprendem os” .7 O
aspecto de aceitar refere-se à necessidade de concordar com os ensinos da
E scritura a respeito do pecado e da m aneira com o D eus decidiu salvar o
hom em , con cordan do que esse é o único m eio de salvação e aceitando-o
para si. O aspecto de confiança envolve a certeza de que, a partir do m o m en ­
to que se aceitou a Cristo, a salvação está garantida. Significa descansar na
obra consum ada de C risto e aceitar o que ele fez com o tendo sido feito p o r
nós, e absolutam ente suficiente para a nossa salvação.
Conversão: Uma guinada na existência 371

Como o arrependimento, a fé igualmente é obra de Deus e obra do


homem. E obra de Deus porque ele é o doador da fé (Ef 2.8; Fp 1.29). Ele
a concede aos eleitos (At 13.48), que a recebem pela operação do Espírito
Santo (ICo 12.3). Jesus é chamado de o autor e o consumador da fé (Hb
12.2). Ao mesmo tempo, é tarefa do ser humano porque é ele quem deve
ter fé. Deus exige isso do ser humano (Mc 1.15; Jo 14.1). Porém, deve ser
entendido que a fé não é realmente uma obra, ela é o “primeiro resultado
identificável” da regeneração,8 ou como diz Hodge, “o primeiro exercício
consciente da alma renovada é a fé; assim como o primeiro exercício cons­
ciente de um cego de nascença, cujos olhos tenham sido abertos, é ver”.9
Ainda deve ser entendido que o que salva realmente não é a fé, mas
Cristo. A fé é simplesmente o instrumento para receber o benefício de
Cristo. Não era o “olhar” dos israelitas para a serpente de bronze que
salvava, mas o poder que Deus localizou naquela serpente de bronze. Ela
era a provisão salvadora de Deus para o povo, assim como Cristo é a pro­
visão salvadora para nós. Como diz Warfield, “o poder salvador da fé resi­
de, então, não em si mesma, mas no Poderoso Salvador em quem ela re­
pousa,.. Não é estritamente falando, nem mesmo a fé em Cristo que salva,
mas Cristo que salva por meio da fé. O poder salvador reside exclusiva­
mente, não no ato da fé ou na atitude da fé ou na natureza da fé, mas no
objeto da fé”.10

Conclusão
Portanto, o significado da conversão, de acordo com Jesus é uma trans­
formação completa realizada pelo Espírito que muda a essência das pes­
soas, manifestando vida onde havia morte, produzindo verdadeiro arre­
pendimento e verdadeira fé.11 Quem passa por essa experiência dá uma
verdadeira guinada na existência. Não é simplesmente o fato de mudar de
religião, ou seguir preceitos ensinados pelos homens, mas é ser transforma­
do pelo Espírito, para uma nova e superior vida. Por isso, a conversão é sem
sombra de dúvida a experiência mais espetacular que pode existir. Quanto
a Nicodemos, embora no início ele tenha resistido às palavras de Jesus,
sabemos que o seguiu depois (Jo 19.39).
Cabe aqui uma palavra final para muitos que talvez se sintam como
Nicodemos. Talvez já sejam mestres da doutrina, mas percebem que são
inexperientes em relação à graça. Ainda não experimentaram esta vida como
algo que é mais do que a carne. O que Jesus disse para Nicodemus é válido
372 Razão da esperança

também nesse caso. É preciso desistir de tudo. Enquanto nos apegarmos às


nossas conquistas, nada teremos de Deus. E preciso cair aos pés do Salva­
dor e clamar por misericórdia, como os israelitas picados pelas serpentes
fizeram. E preciso levantar os olhos com fé, e contemplar o Salvador cruci­
ficado, que é o antídoto para todas as nossas chagas.
30

Justos pela fé

Lutero conta que um príncipe alemão chamado Duque George, ao con­


fortar seu agonizante filho, Duque John, falou-lhe sobre a doutrina da jus­
tificação. “Filho, você deve olhar somente para Cristo e para os méritos
dele e esquecer completamente as suas obras.” A esposa do Duque John,
ao ouvir isso, perguntou para o sogro: “Pai, porque essas verdades não são
pregadas publicamente?” Ele respondeu, “Porque elas só devem ser ditas
para pessoas que estão morrendo, e não para aquelas que estão bem”.1 O
motivo: confiança excessiva na graça pode ser uma atitude perigosa. Nos
dias de hoje, muitas pessoas continuam tendo medo de que, se os outros
confiarem na graça de Deus, irão desleixar na sua vida de fé e prática, mas
isso é um grande erro.
A doutrina da justificação pela f é somente anda meio esquecida no nosso
evangelismo moderno, pois há uma grande ênfase no conceito medieval da
justificação. Na Idade Média, a igreja católica cria que a justificação basea-
va-se na obra que o Espírito Santo realizava no interior das pessoas, capaci­
tando-as a viver uma vida piedosa que pudesse ser aceita por Deus. Isso, de
várias maneiras está sendo enfatizado hoje novamente. As pessoas relutam
em aceitar que Deus justifique uma pessoa que continue pecadora. Neste
estudo, veremos que só poderemos dizer que deixamos de pecar se dimi­
nuirmos drasticamente, à exemplo dos fariseus, o conceito de pecado. Se o
pecado é realmente como a Bíblia o explica, então, será difícil nos vermos
livres dele nesta vida. Porém, a grande notícia do evangelho é que, embora
continuemos pecadores, em Cristo também somos justos e podemos viver
uma vida livre das pressões e da angustiante sensação de não cumprir a lei.
Porém, novamente para surpresa de muitos, esse conceito não nos leva a
uma vida de libertinagem, ao contrário, de compromisso.
Ao contrário do que se pensa, na igreja medieval era ensinado que as
pessoas seriam salvas pela graça, mas não uma graça que as tornava instan­
taneamente aceitáveis diante de Deus, e sim uma graça que operava no
interior das pessoas transformando-as para serem aceitáveis. Obviamente,
374 Razão da esperança

a Reforma Protestante não via as coisas dessa maneira. A grande pergunta


da Reforma não foi “Como1eu posso ser uma pessoa melhor?”, e sim, “Como
pode uma pessoa má como eu ser aceita por um Deus justo e santo?”
Romanos 3.21-28 é uma das passagens que expõem a doutrina da justi­
ficação pela fé de modo muito claro. Aliás, em toda a Bíblia, o livro de
Romanos é o que contém a melhor exposição dessa doutrina, Antes de
escrever essas palavras, Paulo já havia declarado que Deus odeia o pecado e
não o deixa sem punição (Rm 1.18-32). Também havia deixado claro que
todas as pessoas, com lei ou sem lei, quer judeus, quer estrangeiros, pecam
(Rm 2.1-3.8). De fato, ele disse que “não há justo, nem sequer um” (3.10).
Diante disso, fica claro que ninguém poderá ser justificado diante de Deus
pelo cumprimento da lei, em primeiro lugar porque ninguém cumpre a lei,
e, em segundo lugar, porque salvar ou justificar não é a função da lei, A lei
quer apenas apontar o pecado (Rm 3.19,20). Por isso, a justiça de Deus, não
a justiça condenatória, mas a salvadora, se manifestou pela graça por meio
da obra de Cristo, que justifica todos os pecadores que crêem (3.21-24),
Desse modo, Deus pode salvar os pecadores, tornando-se um justificador,
e ainda assim ele permanece justo (3.26). Deus não poderia justificar um
pecador e continuar sendo justo à parte da obra de Cristo, pois sem a obra
de Cristo, Deus precisaria condenar o pecador. O que Deus fez foi conde­
nar Cristo e, assim, pode absolver os pecadores e continuar sendo justo. O
resultado é que não sobram motivos para ser humano algum se orgulhar da
salvação, pois não fomos nós quem a conquistamos, antes a herdamos pela
fé, independentemente das obras da lei (3,27,28).

Declarados justos
A Confissão de Fé de Westminster define justificação como um ato da
livre graça de Deus, por meio do qual ele perdoa todos os nossos pecados
e nos aceita como justos a seus olhos, com base na justiça de Cristo a nós
imputada e recebida pela fé. No entendimento reformado, não seremos
aceitos por Deus porque de algum modo conseguiremos alcançar a santi­
dade perfeita, mas porque, embora continuemos pecadores, Deus decla­
rou-nos justos. Portanto, pela fé, somos justos diante de Deus, ainda que
continuemos pecadores. A graça não é um poder introduzido em nós para
nos ajudar a nos tornarmos bons, é Deus nos aceitar como bons, embora
ainda sejamos maus. Como diz Hodge, “Deus não declara que o ímpio é
santo; ele declara que, não obstante a sua pecaminosidade e indignidade
Justos pela fé 375

pessoal, ele é aceito como justo com base no que Cristo fez por ele”.2
Estamos falando aqui de termos jurídicos, ou seja, da maneira como uma
pessoa é aceita num tribunal, no caso, o tribunal de Deus, pois como diz
Sproul, trata-se da questão do julgamento diante do supremo tribunal de
Deus.3
Como já dissemos, a igreja católica também concordava que a salvação
era pela graça; entretanto, para ela, essa era uma graça transformadora, ou
seja, a sua função era tornar as pessoas dignas do reino dos céus. A graça,
segundo Roma, transforma injustos em justos, impuros em puros, desobe­
dientes em obedientes. Dependendo de como alguém se apropriava e fazia
uso dessa graça, no entendimento de Roma, poderia ser realmente aceito
por Deus. Porém, a Reforma não podia aceitar isso, pois mesmo em um
bom dia, um cristão comum é também ruim, e comete muitas falhas. Ape­
sar disso, o cristão não precisa viver cada dia aterrorizado esperando a con­
denação, pois ele foi declarado justo por Deus e, por isso, vive cada dia
como se tivesse satisfeito todos os requerimentos da lei de Deus. O concei­
to reformado de justificação recebe o nome de justificação forense, que tem
a ver com o ato declarativo de Deus em relação a nós. Sproul o define da
seguinte maneira: “A visão reformada da justificação forense se fundamen­
ta no princípio de que, pela imputação da justiça de Cristo, o pecador é
agora feito formalmente, mas não materialmente, justo aos olhos de Deus”.4
Somos justos e somos pecadores, uma coisa “no papel”, outra na prática.
Por imputação, segundo Hodge, devemos entender o ato de “adscrever,
contar a, pôr na conta de alguém”,5 ou seja, o crente é justo, mas ainda é
pecador, ou, como Lutero dizia, “Simultaneamente justo e pecador”. A
igreja católica romana, desde o Concílio de Trento, rejeita essa noção fo­
rense de justificação como sendo uma “ficção legal”.6 Roma não consegue
aceitar que uma pessoa possa ser justa e pecadora ao mesmo tempo. Para a
igreja católica romana, ou ela é justa ou é pecadora, mas é óbvio que ela
mantém essa afirmação à custa do evangelho revelado pela Palavra de Deus.
Como diz Sproul, “o evangelho da Bíblia se mantém ou cai mediante o
conceito de imputação”.7 Afinal de contas, a Bíblia é muito clara ao afirmar
que Deus declara o homem justo, embora ele continue pecador. A Escritu­
ra diz que “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça” (Rm
4.3), e Paulo continua: “Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado
como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê na­
quele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rm 4.4,5).
Claramente a justiça que Abraão, e todos os crentes, recebem, é uma justiça
forense, ou seja, declarativa. Eles são declarados justos porque são revesti-
376 Razão da esperança

dos da justiça de Cristo, pois “Cristo nos dá sua justiça diante do tribunal de
Deus”,8 e “assim nós podemos permanecer na sua presença como se nós
não tivéssemos pecado, como se nós tivéssemos alcançado a obediência
que Cristo alcançou para nós”.9
Somos declarados justos, porém ainda somos pecadores. Pela falta de
entendimento desse ponto, muitas igrejas contemporâneas se aproximam
bastante da igreja medieval. Muitos crentes modernos são ensinados que
podem amar a Deus perfeitamente e que podem ser justos neste mundo
assim como Cristo é justo. Como na igreja medieval, a graça é novamente
taxada como uma assistência do Espírito Santo a fim de nos ajudar a viver
uma “vida cristã vitoriosa”, o que nos garantirá a salvação. É claro que esse
ensino não é bíblico, e é uma volta ao catolicismo. Não precisamos cumprir
os requerimentos da lei para sermos salvos, até porque ninguém os conse­
guiria cumprir plenamente. E se quiséssemos ser salvos pela lei, teríamos
que cumpri-la integralmente, pois Deus não está disposto a nos aceitar com
apenas parte do cumprimento da lei. Nesse sentido, não temos escolha, ou
cumprimos toda a lei ou morremos como culpados. Porém, há um outro
caminho: a justiça de Cristo. Não alcançamos a salvação porque a graça nos
capacitou a cumprir a lei, somos salvos porque Deus decidiu nos salvar
mediante a morte do seu Filho, pois “todos pecaram e carecem da glória de
Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção
que há em Cristo Jesus” (Rm 3.23,24). Antes de continuarmos a falar sobre
a justificação, precisamos considerar mais um pouco a Lei de Deus.

0 p a p el da lei
Uma das grandes dúvidas dos crentes hoje é: Para que serve a lei? Uma
vez que fomos justificados pela graça de Cristo mediante a fé (Rm 3.21),
haverá ainda qualquer necessidade de obedecer a ela? Se Paulo fala que o
“fim da lei é Cristo”, então devemos entender que Cristo aboliu a lei?
O fato de haver tanta discussão hoje em dia sobre o uso da lei não é
novidade. Desde o início, os cristãos tiveram esse tipo de dificuldade. O
primeiro concílio da história da igreja, que aconteceu em Jerusalém, e está
relatado em Atos 15, foi justamente por esse motivo. Quando os gentios
começaram a se converter ao evangelho, um problema teológico surgiu no
meio da igreja: Deveriam eles se submeter aos requisitos da lei de Moisés,
especificamente à circuncisão? Devido a divergências de entendimento, os
apóstolos e os presbíteros reuniram-se em Jerusalém para examinar a ques­
Justos pela fé 377

tão (At 15.6). Depois de muita discussão, eles chegaram à conclusão de que
não era certo impor sobre os gentios convertidos todo o peso da lei judaica.
A circuncisão foi abolida, e apenas algumas normas cerimoniais foram man­
tidas para dar bom testemunho perante os demais judeus (At 15.20,21).10
Nada foi dito sobre a questão dos mandamentos, por exemplo, porque não
havia dúvidas a respeito disso. Os mandamentos morais de Deus estavam
lá para serem obedecidos. O concílio de Atos 15 se pronunciou sobre uma
situação específica de uma época específica. Era muito importante que os
gentios convertidos dessem um bom testemunho perante os judeus, por
isso aquelas exigências cerimoniais foram mantidas. Seria um erro querer
aplicá-las aos dias de hoje.
Entretanto, o grande problema que o Novo Testamento faz questão de
combater é a noção de que a lei salva. Para o Novo Testamento, Cristo
salva, e somente ele, por isso Paulo diz: “Ora, sabemos que tudo o que a lei
diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo
seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele
por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do
pecado” (Rm 3.19,20). Paulo está apontando para o fato de que, a função
da lei não é, nem nunca foi, salvar. Por isso, escrevendo aos gálatas ele diz:
“De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de
que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanece­
mos subordinados ao aio” (G13.24,25). A função da lei é nos levar a Cristo.
Por isso, Paulo argumenta que Cristo tornou os crentes livres, e se eles
quiserem basear sua salvação na obediência a lei, estarão se tornando escra­
vos, e se metendo debaixo de um jugo que ninguém jamais suportou (G1
2.16). Por esse motivo, Paulo diz com drasticidade: “Eu, Paulo, vos digo
que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará” (G1 5.2).
Se quisessem ser salvos pela lei, estariam pondo de lado o sacrifício de
Cristo, conseqüentemente teriam que guardar toda a lei e não tropeçar
em nenhum ponto (Tg 2.10). Nesse sentido, realmente era a lei ou Cristo,
pois, no sentido de salvação, Cristo é o “fim da lei para justiça de todo o
que crê” (Rm 10.4).
Como uma “preparação para a salvação”, a lei tem o seu primeiro uso
identificado na teologia reformada. Mas há mais dois. O segundo uso é o da
lei como fator de contenção. Este é chamado de “uso político ou civil”.11
Nesse sentido, a lei atende ao propósito de restringir o pecado e promover
a justiça. Essa lei age como refreadora do pecado dos homens. Ela inspira a
formação das próprias leis gerais que regem a maioria das nações do mun­
do, e age no interior das pessoas, sob a forma da “consciência”, impedindo
378 Razão da esperança

que os homens pequem tanto quanto poderiam pecar (Rm 2.15). O tercei­
ro uso da lei, do modo como é entendido na teologia reformada, é como
“instrumento de santificação”. Nesse sentido, ela seria a norma de vida
para os crentes, um fator de contribuição para a santificação. E claro que
em nada ela contribuiria para a salvação, mas quem já está salvo pode fazer
uso da lei de Deus para se aperfeiçoar cada vez mais no caminho da santi­
dade. A lei foi dada desde o início para revelar o caráter e a vontade de
Deus. Sem dúvida, esse é um uso legítimo da lei, mas, nesse caso, não deve­
mos pensar apenas nos dez mandamentos e sim na lei moral como um
todo, incluindo os escritos dos profetas, as palavras de Jesus e os ensinos
dos apóstolos.
O que precisa ficar claro desses três usos propostos para a lei é que nada
disso tem a ver com a salvação. A salvação é um dom de Deus. A lei serve
ou para conduzir a Cristo, ou para ajudar quem já está em Cristo, mas a
justificação é pela fé.
Em conexão com o assunto da lei sempre está a questão das obras.
Uma tendência que sempre existiu dentro do Cristianismo provém de
grupos que ensinam a necessidade de observar certos ritos, cerimônias,
costumes ou abstinências como meio de se alcançar a salvação. O homem
nunca se satisfez em confiar somente na graça para a salvação, e por isso
sempre tentou arranjar meios de dar uma “ajudinha” a Deus. Assim, é
ensinado que é preciso crer em Jesus, mas, além disso, se submeter a um
tipo especial de batismo em que a água é o que mais conta. Ou que preci­
sa vestir-se de um determinado jeito, não comer certos alimentos, guar­
dar este ou aquele dia, etc. Tudo é colocado como sendo uma contribui­
ção para a salvação. O que mais se ouve é: Não faça isto, não faça aquilo,
e a religião se torna legalista ao extremo. Isso se deve à falta de entendi­
mento bíblico de como a salvação é obtida. O apóstolo Paulo diz: “Pela
graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus”
(Ef 2.8). Qual é, então, a função das obras? A mesma passagem diz que a
salvação é dom de Deus e “não de obras, para que ninguém se glorie”, e
acrescenta “pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas
obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”
(Ef 2.9,10). Então, não somos salvos p o r causa das boas obras, antes por
causa da graça de Deus, mediante a fé na obra redentora de Cristo, mas
somos salvos para boas obras, e por isso elas são importantes, porque são
demonstrações de que somos salvos. Elas são os frutos da regeneração e
da verdadeira conversão.
Justos pela fé 379

Justificados pela fé som en te


Como estudamos anteriormente, a fé é o instrumento pelo qual pode­
mos ser justificados, mas a nossa justiça é Cristo. Bavinck faz um bom
resumo da justiça da fé: “Em resumo, a justiça que Deus revela no evange­
lho consiste em uma concessão de uma justiça de fé que, como tal, está em
posição diametralmente oposta à justiça das obras da lei, à justiça do pró­
prio homem. Essa é a justiça de Deus por meio da fé em Cristo”.12 Isso
equivale a dizer que as obras da lei jamais poderiam nos justificar, e que há
uma justiça diferente, uma justiça de fé e não das obras.
Já vimos que a descoberta de Lutero da justificação pela fé não foi algo
tão novo assim, porque em parte a igreja romana já admitia isso. Entretan­
to, Lutero e Calvíno insistiam que a graça era algo mais do que simples­
mente um poder capacitador ou transformador, pois nunca poderíamos
ser tão interiormente transformados pelo Espírito Santo nesta vida a pon­
to de poder viver sem pecado. Por isso, a justificação pela transformação
interior não é o caminho da salvação. Deus requer seu melhor e não o nosso.
Ele agiu para trazer esse melhor, e isso se deu na pessoa de Jesus, na sua
vida, morte e ressurreição que são a base da nossa justificação. A fé na obra
de Cristo garante a nossa justificação diante de Deus, pois a “justificação
está relacionada com uma ação jurídica e legal, um veredicto pronunciado
pelo juiz celestial sobre o pecador que, segundo a norma da lei, é ímpio,
mas que pela fé aceitou a justiça dada por Deus em Cristo. Julgado pela fé,
ele é justo”.13
É verdade que há uma graça derramada sobre a nossa vida que nos
capacita a viver uma vida de obediência; chamamos isso de “santificação”
(conceito que ainda estudaremos neste trabalho). Entretanto, no sentido
exato, não é essa graça que nos salva, não porque seja uma graça fraca, mas
porque nós nunca poderemos erradicar nossa natureza pecaminosa de modo
completo enquanto ainda estivermos neste corpo. Paulo disse: “Bem sabe­
mos que a lei é espiritual; eu, todavia, sou carnal, vendido à escravidão do
pecado. Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir,
pois não faço o que prefiro, e, sim, o que detesto” (Rm 7.14,15). Por causa
disso, como afirmavam os reformadores, nós precisamos de uma graça
externa, ou seja, uma graça que está fora de nós. Precisamos reconhecer a
nossa falência espiritual, pois a nossa conta está totalmente negativa. So­
mos pecadores desde o nascimento e por toda a vida continuamos pecan­
do. Por nossas forças, e mesmo capacitados pelo Espírito Santo, nunca
380 Razão da esperança

conseguiremos reverter esse quadro, ou seja, nunca conseguiremos que as


nossas boas ações superem o montante das nossas más ações, E mesmo
que conseguíssemos isso, ainda assim, precisaríamos ser julgados pelas más,
porque as boas ações não podem encobrir as más. De fato, um assassino
não pode ser absolvido apenas porque fez uma oferta para um orfanato.
Nós precisamos de algo que cubra os nossos débitos, e não apenas isso,
mas que ainda nos dê crédito diante de Deus, pois, para sermos salvos,
Deus exige isto de nós: por um lado, absoluta ausência de débitos ou peca­
dos, e por outro, uma completa justiça, sanddade e perfeição como o pró­
prio Deus é. Ou seja, para sermos salvos, precisamos nunca pecar, e ainda
amar a Deus e ao próximo de maneira perfeita durante toda a vida. E claro
que ninguém jamais conseguiu ou conseguirá isso. E podemos até dizer
que, por causa do evangelho, Deus não espera isso realmente de nós. Não
de nós, porque essa justiça, tanto de modo negativo (ausência de débitos),
como de modo positivo (abundância de créditos), pode vir a nós por meio
de Cristo Jesus. Ele não só morreu por nós, como também viveu uma vida
santa em nosso lugar. Sua morte quita a nossa dívida e a sua vida de obedi­
ência nos provê de justiça suficiente para podermos agradar a Deus. Em
Adão, todos morremos, mas em Cristo, todos somos justificados. Este é o
resumo do evangelho: “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus,
sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que
há em Cristo Jesus” (Rm 3.23,24). Observe a expressão “que há em”. Há
uma redenção em Cristo Jesus, assim como há uma condenação em Adão.
Um aspecto fundamental no entendimento da justificação pela fé é o
caráter instrumental da fé. A salvação é pela graça por causa de Cristo. A fé
é apenas o instrumento. Nesse sentido, não podemos dizer que a salvação é
pela fé, mas pela instrumentalidade da fé. Isso não faz da fé um fim em si
mesmo. Um outro aspecto importante dajustificação p ela fé somente diz respei­
to à natureza da fé. De acordo com a Escritura, a fé é um dom de Deus.
Paulo diz: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de
vós; é dom de Deus” (Ef 2.8). A fé não é algo que pode ser produzido
livremente de acordo com a vontade da pessoa. A fé é um dom de Deus
concedido pelo Espírito Santo. Para entendermos o que é fé, precisamos
entender o que é salvação. Salvação é Jesus Cristo em nós. Sua justiça, seus
méritos, sua vida em nós. Portanto, salvação é estarmos unidos com Cristo.
Fé é quando abandonamos tudo o que temos e confiamos inteiramente em
Cristo, e somente nele. E, por fim, e isso foi a própria essência do solafide
dos reformadores, devemos considerar a suficiência da fé. No entendimen­
to dos reformadores, a fé que é um dom de Deus é o único instrumento para
Justos pela fé 381

que a justificação nos seja imputada. A igreja católica romana dizia que era
uma mistura de fé e obras; os evangélicos legalistas dizem que é a fé mais
ordenanças específicas; os evangélicos neopentecostais dizem que é a fé
mais a contribuição, mas nós devemos dizer: E só a fé. As obras de qual­
quer natureza não passam de um fruto da fé. Um fruto é uma conseqüência
e não um requisito.

0 p eca d o e a vida cristã


Uma pergunta que normalmente surge quando tratamos da justificação
que nos faz ser simultaneamente justos e pecadores, é: “Se somos e sere­
mos pecadores por toda a nossa vida, e se de qualquer modo continuare­
mos justificados, qual é a vantagem de termos uma vida piedosa?” Paulo
bem previa que essa pergunta poderia surgir após ter explicado como fun­
cionava a justificação. Ele disse: “Que diremos, pois? Permaneceremos no
pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como
viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” (Rm 6.1,2). A
explicação lógica do apóstolo para essa pergunta decorre mais uma vez do
entendimento da nossa união com Cristo. Ele diz que nós fomos unidos
com Cristo, tanto na sua morte como na sua ressurreição (Rm 6.5). Assim,
o pecado que nos foi imputado por causa da transgressão de Adão foi
carregado por Cristo, e a justiça de Cristo foi imputada a nós, por meio da
fé, que é o único requisito para que essa justificação venha sobre nós. Pela
fé, nós somos batizados na vida de obediência, morte sacrifical e ressurrei­
ção vitoriosa de Cristo. Diante de Deus, isso é tão real que, embora ainda
sejamos pecadores, possuímos uma nova e completa identidade no céu.
Segundo Paulo, não podemos continuar vivendo no pecado pelo simples
fato de que já morremos para ele. Em resumo, não podemos mais ser o que
já deixamos de ser. Deus nos declarou justos, somos aceitos desse modo;
agora, essa justiça terá que se manifestar na nossa vida, até porque Cristo é
a nossa justiça e ele está em nós. De fato, “pela justificação de Cristo, os
crentes passam legalmente a ter vida; pela santificação, são tornados espiri­
tualmente vivos; pela primeira eles recebem o direito à glória; pela segunda,
são tornados dignos da glória”.14
A mesma fé que, por um lado credita à nossa vida a justiça de Cristo,
também derrama sobre a nossa vida o fruto dessa justiça. A fé que justifica
- que é a fé somente em Cristo como Salvador - inevitavelmente produz
obras. Diretamente de Adão, nós pecamos porque somos pecadores; entre-
382 Razão da esperança

tanto, por causa de Cristo, nós fazemos coisas justas porque somos justos
em Cristo. O fruto do Espírito é o resultado da regeneração operada pelo
Espírito na nossa vida, por causa da nossa união com Cristo. Nele fomos
justificados, nele estamos sendo santificados, neles seremos glorificados.
Somos livres em Cristo para obedecer a Deus, pois como diz Bavinck, “o
crente que é justificado em Cristo é a mais livre de todas as criaturas do
mundo. Pelo menos deveria ser”.15
A graça de Deus que nos salva não é uma graça que transforma a nossa
vida com o intento de sermos aceitos diante de Deus. Essa graça nos justi­
fica instantaneamente, agora, no tempo presente, pois a justificação ocorre
no início da salvação e não no fim dela. Por isso, não precisa ser relegada
apenas às pessoas moribundas, mas a todos quantos se aproximam de Cris­
to. Todos precisam saber que, em Cristo, são aceitos por Deus. Deus vê nos
seus eleitos a justiça de Cristo. Eles, por causa disso, não possuem qualquer
dívida, e ainda por cima, possuem uma inesgotável linha de crédito diante
de Deus. Porém, é verdade que continuam pecando, pois a sua natureza
pecaminosa ainda não foi erradicada; entretanto, já podem realizar boas
obras, pois em Cristo possuem uma nova natureza. Não há risco de que
abusem dessa graça e vivam no pecado, pois se fizessem isso, estariam de­
monstrando claramente que jamais conheceram verdadeiramente a graça
de Deus.
31

Santificação: As alturas da fé

Desde que Adão fez a sua escolha, a humanidade mergulhou no abismo


do pecado. O pecado, como transgressão da vontade de Deus, é a coisa
mais comum na raça humana inteira. A Escritura diz: “Todos pecaram”
(Rm 3.23). O pecado é um imenso rolo compressor que nivela todos os
seres humanos, quer sejam pobres, ricos, pretos, brancos, famosos ou des­
conhecidos. E a realidade mais presente e mais forte deste mundo. O peca­
do é o grande agente destruidor da vida, do bem e da existência. Deus criou
o homem sem pecado; isso significa que a realização do ser humano depen­
de de uma extinção do pecado. Enquanto o pecado habitar a nossa carne,
nunca conseguiremos desenvolver plenamente a nossa humanidade. Desde
que esse vírus maligno entrou no nosso sistema, nunca mais pudemos ser
aquilo para o que fomos feitos. Quando falamos em santificação, estamos
nos referindo à obra divina, da qual participamos, pela qual somos liberta­
dos da influência do pecado e possibilitados a viver uma vida para Deus. É
a maneira pela qual, dia após dia, Deus vai retirando o apego do pecado em
nossa vida até aquele dia em que, na glorificação, seremos definitivamente
livres dele. Viver em santidade é viver na contra-mão do mundo. O Catecis­
mo Maior de Westminster define a santificação como sendo

Uma obra da graça de Deus, pela qual os que Deus escolheu antes da fun­
dação do mundo, para serem santos, são, nesta vida, pela poderosa opera­
ção de seu Espírito e pela aplicação da morte e ressurreição de Cristo, ple­
namente renovados, segundo a imagem de Deus, tendo as sementes do
arrependimento que conduz à vida, e de todas as outras graças salvíficas
implantadas cm seus corações, e tendo essas graças de tal forma dinamiza­
das, aumentadas e fortalecidas, assim eles morrem cada vez mais para o
pecado e ressuscitam para a novidade de vida.1

Essa definição é completa e aborda todos os aspectos do ensino bíblico


sobre santificação. A Confissão dá destaque especial ao poder do Espírito
Santo na obra da santificação, e de fato, é preciso muito poder para que
384 Razão da esperança

criaturas acostumadas a ceder ao pecado consigam vencê-lo. A sanddade é


o propósito principal de Deus para os seres humanos nesta vida. Como diz
Packer, “é um processo educacional, planejado e programado por Deus
com o propósito de nos refinar, purificar, animar, firmar e amadurecer.
Por meio dele, Deus nos leva, progressivamente, à forma moral e espiritual
que ele quer que alcancemos”.2 A vida de santidade reflete a conformida­
de ao alto padrão divino estabelecido para o regenerado. E viver nas altu­
ras da fé. O profeta Isaías falou sobre o Deus que renova as forças: “Faz
forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os
jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que
esperam no S e n h o r renovam as suas forças, sobem com asas como águias,
correm e não se cansam, caminham e não se fatigam” (Is 40.29-31). As
águias preferem os lugares altos, e somente esse poder divino em atuação
na nossa vida pode nos fazer viver nas alturas, acima dos tropeços da vida
terrena. A santificação precisa ser entendida à luz do ensino sobre a nossa
união com Cristo. A Bíblia diz: “Portanto, se fostes ressuscitados juntamente
com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita
de Deus. Pensai nas coisas lá do alto, não as que são aqui da terra; porque
morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus” (Cl
3.1-3; ênfase acrescentada). A vida “do alto” é a única aceitável para aque­
les que morreram, ressuscitaram e subiram com Cristo para os lugares
celestiais.

Santificação definitiva e progressiva


Antes de vermos o ensino bíblico sobre o desenvolvimento da nossa
santificação, precisamos fazer uma distinção importante. Num sentido, o
crente, quando é regenerado e convertido torna-se definitivamente santo.
Nesse ponto, devemos entender “santo” como separado, uma vez que em
Cristo, o crente é separado do mundo e passa a pertencer a Deus. Nesse
sentido, a santificação é um ato instantâneo de Deus, simultâneo à regene­
ração, à conversão e sinônima da justificação. Em 1 Coríntios 1.2, Paulo
fala dos crentes como estando “santificados em Cristo Jesus”. Quando so­
mos regenerados e respondemos com arrependimento e fé, Deus nos de­
clara justos, isso é justificação. Se somos justos, somos também santos,
então, no momento de nossa conversão, diante dos olhos de Deus e por
causa da justiça e da santidade de Cristo, passamos a ser completamente
santos, pelo menos da ótica do julgamento divino.
Sanlificação: As alluras da fé 385

A m orte do velho h o m e m

A santificação definitiva também pode ser vista no sentido de que, na


conversão, rompemos definitivamente com o mundo e passamos a perten­
cer integralmente a Deus. Na nossa união com Cristo, experimentamos
uma santificação que significa morte para o pecado e vida para Deus. As
palavras de Paulo nesse sentido em Romanos 6 são: “Assim também vós
considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Je­
sus. (Rm 6.11). A conversão, portanto, é um rompimento instantâneo e
definitivo com o pecado, é um ato de santificação definitiva. Hoekema de­
fine santificação definitiva como: “Não só um rompimento com o pecado,
mas uma definitiva e irreversível união com Cristo na sua ressurreição -
uma ressurreição por meio da qual o crente é habilitado a viver em novida­
de de vida (Rm 6.4) e por causa da qual ele se tornou uma nova criatura
(2Co 5.17)”.3 Uma nova criatura, de acordo com Paulo, é alguém que “está
em Cristo” e que, portanto, “as coisas antigas já passaram; eis que se fize­
ram novas” (2Co 5.17). A partir do momento em que alguém se encontra
nessa união com Cristo, deixou de ser uma “velha criatura”. O “velho ho­
mem” morreu dentro dele, pois as coisas antigas ficaram para trás. Há uma
novidade que permeia toda a vida da pessoa, pois, durante toda a vida o
convertido será, diante de Deus, uma nova criatura. Não haverá um mo­
mento em que ele voltará a ser uma “velha criatura”, pois ele foi santificado
e continuará santo diante de Deus, Isso é santificação definitiva.4

A re no va çã o do n o v o h o m e m
Porém, a santificação também é progressiva. O aspecto progressivo deve
ser visto como uma demonstração visível da realidade invisível. Já somos
santos em Cristo Jesus, agora precisamos evidenciar no dia a dia essa reali­
dade de santidade. Hoekema define santificação progressiva como: “A gra­
ciosa operação do Espírito Santo, que envolve a nossa participação respon­
sável, pela qual ele nos livra da poluição do pecado, renova toda nossa
natureza segundo a imagem de Deus, e habilita-nos a viver de forma a
agradá-lo”.5 E Hodge diz: “Portanto, a santificação consiste em duas coi­
sas: primeira, a eliminação progressiva dos princípios do mal que ainda
infectam a nossa natureza, e a destruição de seu poder; e, segunda, o cresci­
mento do princípio espiritual até controlar os pensamentos, sentimentos e
atos, e conformar a alma segundo a imagem de Cristo”.6 Fomos santifica­
dos em Cristo Jesus, mas o pecado ainda habita no nosso corpo e, por isso,
386 Razão da esperança

precisamos vencê-lo. Isso quer dizer que somos santos e pecadores ao


mesmo tempo? Sim, do mesmo modo como já dissemos que somos justos
e pecadores ao mesmo tempo. Um modo de entender isso é pensar no que
Bavinck diz a respeito da diferença entre posição e condição.7 Uma vez
justificados, dispomos da posição de santificados, mas como o pecado ainda
habita em nós, nossa condição ainda é de pecadores. O ponto é que “quem
comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34), mas o verdadeiro crente já
não é mais escravo do pecado, pois foi liberto pela verdade de Jesus (Jo
8.32; Rm 6.14). Porém, o pecado ainda está nos nossos membros, pois de
fato, “todos tropeçamos em muitas coisas” (Tg 3.2). João diz: “Se disser­
mos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a
verdade não está em nós” (ljo 1.8). Isso pode levar a uma dúvida: Se somos
unidos com Cristo, se Cristo é santo, mas nós continuamos pecadores, a
vida de Cristo dentro de nós não se corrompe? A resposta é não. Strong
está certo ao afirmar que “a vida de Cristo não se corrompe pela corrupção
dos seus membros como o raio de luz não se contamina na imundície com
a qual ele entra em contato”.8
Geralmente, a Bíblia, nas passagens em que ensina a santificação defini­
tiva, nos conclama à santificação progressiva, por isso dissemos que santi­
ficação é tornar visível uma graça invisível. Em Romanos 6, Paulo manda
os crentes se considerarem “mortos para o pecado” (Rm 6.11), e em segui­
da ele diz: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de ma­
neira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros do
seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a
Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus,
como instrumentos de justiça” (Rm 6.12,13). A realidade da santificação
definitiva precisa se manifestar progressivamente por meio da vitória sobre
o pecado. Como já vimos, em Colossenses 3.1-3 Paulo demonstrou clara­
mente a realidade do crente como morto e ressuscitado em Cristo, porém,
em seguida ele insiste: “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prosti­
tuição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria”
(Cl 3.5). Logo adiante, ele volta a misturar os assuntos: “Agora, porém,
despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade, maledicên­
cia, linguagem obscena do vosso falar. Não mintais uns aos outros, uma vez
que vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do
novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem
daquele que o criou” (Cl 3.8-10). Os crentes não devem viver em pecado
porque se despiram do velho homem. A realidade do velho homem já não
existe mais, o que existe é o novo homem; porém, esse novo homem preci-
Santificação: As alturas da fé 387

sa se desenvolver, A santificação definitiva é o ato de se despojar do velho


homem; a santificação progressiva é essa renovação contínua do novo ho­
mem, o qual se desenvolve para alcançar a semelhança de Deus.
Podemos falar da santificação definitiva como o aspecto legal pela qual
somos declarados santos, e da santificação progressiva como o efeito visí­
vel, pelo qual o crente se torna santo. Nossa salvação depende do aspecto
legal, porém, o aspecto legal não acontece sem que se desenvolva o aspecto
visível. Nesse ponto, é válida a discussão sobre as “boas obras”. Evidente­
mente não somos salvosp o r e las, mas também não somos salvos sem elas. A
salvação é pela graça mediante a fé e não por obras, como Paulo deixa bem
claro em Efésios 2.8,9. Porém, o versículo 10 diz que fomos criados para
boas obras. Deus nos criou, ou melhor, nos recriou para andarmos em
boas obras que ele mesmo preparou. Somos salvos pela fé, porém, essa fé
transforma a vida das pessoas. Se uma pessoa diz que crê, mas não muda de
vida é porque não crê, afinal, a fé sem obras é morta (Tg 2.26). Ou como
disse Jesus: “Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se, porventura, uvas
dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz
bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore
boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons” (Mt
7.16-18). Jesus sempre demonstrou que a realidade interior se manifesta
exteriormente.

Obra de Deus e do h o m e m
Deus é o autor da santificação. A Escritura é muito clara ao afirmar isso:
“O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e
corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Se­
nhor Jesus Cristo” (lTs 5.23). Como diz Bavinck, “a santificação, portanto,
é uma obra de Deus, uma obra tanto de sua Justiça, quando de sua Graça.
Ele atribui Cristo e todos os Seus benefícios a nós, e depois ele compartilha
conosco toda a plenitude que está em Cristo”.9 Portanto, Deus é o respon­
sável pela santificação do homem, por isso Jesus orou ao Pai: “Santifica-os
na verdade, a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17).
Ao mesmo tempo, porém, a santificação é nossa responsabilidade. Pri­
mariamente é um dom divino, secundariamente é nossa obrigação. A Bíblia
nos manda aperfeiçoar a santidade: “Tendo, pois, ó amados, tais promessas,
purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito, aper­
feiçoando a nossa santidade no temor de Deus” (2Co 7.1). O autor aos He­
breus coloca as coisas nestes termos: “Segui a paz com todos e a santifica­
388 Razão da esperança

ção, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14). É nossa responsabilida­
de buscar a santificação, pois como já demonstramos anteriormente, ela é
necessária porque demonstra que realmente houve conversão. Se alguém
não foi santificado, não foi convertido, e, portanto, não pode ser salvo.
Em Filipenses 2.12,13, encontramos os dois aspectos da santificação
(obra divina e obra humana): “Assim, pois, amados meus, como sempre
obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na mi­
nha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua
boa vontade”. Os crentes são chamados a continuar obedecendo e desen­
volvendo a salvação com temor e tremor. A frase “desenvolvei a salvação”
só pode se referir ao aspecto da santificação. Eles devem desenvolver algo
que já receberam. Já foram santificados, mas agora precisam evidenciar a
santidade. O aspecto de temor e tremor aponta para a diligência com que
essa tarefa deve ser encarada. Um crente deve fazer todos os esforços ne­
cessários para viver em santidade. Ao mesmo em que aponta para isso,
Paulo também explica a origem divina da santificação, dizendo que Deus
opera tanto o querer quanto o realizar. O “querer” é a vontade, e o “reali­
zar” é a materialização da vontade. Esses dois aspectos somente acontecem
porque Deus os possibilitou por meio de sua operação, portanto, santifica­
ção é obra de Deus e obra do homem.

Falsos m eios de santificação


Precisamos agora pensar nos instrumentos que podem nos ajudar a aper­
feiçoar a nossa santificação. Inicialmente falaremos dos falsos meios, aque­
les que a pessoa usa de maneira deturpada.

Distorcendo a lei

Como os fariseus do tempo de Jesus, também nos dias de hoje as pessoas


usam a lei no sentido de usos e costumes. Na teologia reformada, a lei tem
seu uso na santificação, como um meio de revelar a vontade de Deus para a
nossa vida. Porém, quando a lei, ou qualquer outra regulamentação, é usada
no sentido de “usos e costumes”, e se torna instrumento que desvia a aten­
ção das pessoas da centraüdade do Senhor Jesus, é algo que não provém de
Deus, e por mais que tenha uma aparência de piedade, religiosidade ou boa
intenção, deve ser considerado como mundana, perversa e demoníaca.
Santificação: As alturas da fé 389

Nesse sentido, o apóstolo Paulo enfrentou sérios problemas com os


cristãos da cidade de Colossos. Parece que os crentes de Colossos estavam
sendo assediados por algumas pessoas que estavam se esquecendo da cen-
tralidade absoluta de Cristo. Paulo fala dessas pessoas como tendo “raciocí­
nios falazes” (Cl 2.4), e como sendo portadoras de uma filosofia cheia de
vãs sutilezas, que era “conforme a tradição dos homens, conforme os rudi­
mentos do mundo e não segundo Cristo” (Cl 2.8), Da carta aos colossenses,
entendemos que essas pessoas ensinavam que os crentes deveriam obser­
var certas práticas, sem as quais não seriam salvas. Entre as muitas coisas
exigidas, estava a abstinência de alimentos, a participação em cerimônias
religiosas, a observação do sábado (Cl 2.16), e muitas outras práticas que
Paulo não relata detalhadamente (Cl 2.21). O grande problema dessas prá­
ticas é que elas não tinham valor algum (Cl 2.23), e ainda desviavam a aten­
ção das pessoas da centraüdade e da suficiência de Cristo para a salvação.
Tratavam-se de obras humanas que seriam usadas para complementar a
obra de Cristo. Por isso, o apóstolo Paulo explicou aos colossenses o valor
infinito e suficiente da pessoa e da obra de Cristo. Ele diz que Jesus “é a
imagem do Deus invisível” (Cl 1.15), em quem “reside toda plenitude” (Cl
1.19), e onde “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão
ocultos” (Cl 2.3). Assim, o apóstolo incentiva os cristãos de Colossos a
permanecer em Cristo (Cl 2.6), e a não se deixar enredar pelas mentiras e
invenções dos homens. E, principalmente, não se deixar desviar da pessoa
de Jesus como “único” e “suficiente” Salvador. Cristo é suficiente para a
salvação e para a santificação.

S o m b r a s pa ssag eir as

Paulo dá os motivos pelos quais os costumes que os colossenses eram


incentivados a observar não tinham qualquer valor. Primeiramente, ele diz
que eram apenas sombras (Cl 2.17). Nesse ponto ele está falando do uso
dos rituais do Antigo Testamento. Qual é a utilidade da sombra? Ela dá
uma vaga idéia de como o objeto que a reflete é. Por exemplo, quando
alguém está se aproximando e não podemos vê-lo, mas apenas a sua som­
bra, podemos ter uma idéia de quem se trata. Nesse caso, a sombra é útil.
Porém, quando podemos ver a própria pessoa, que importância tem a som­
bra? Assim eram os ritos e cerimônias do Antigo Testamento. Eram som­
bras de Jesus, que forneciam uma noção para os crentes daquela dispensa-
ção sobre como seria o Messias e qual seria a sua obra. Porém, agora que
Cristo já veio, por que voltaríamos a observar as sombras? Paulo diz: “Nin-
390 Razão da esperança

guém vos julgue por causa de...”. As pessoas que acham necessária a obser­
vação de certas práticas, costumam julgar os outros. Essas pessoas colocam
ênfase numa série de regulamentações nas quais a observância rígida é ab­
solutamente necessária para a salvação, ou pelo menos para a plenitude da
vida cristã. Quando a passagem fala em comida, bebida, dia de festa, lua
nova ou sábados, está se reportando principalmente às práticas do Antigo
Testamento, em que havia regulamentações para todas essas coisas. É pro­
vável que, em Colossos, houvesse uma mistura de práticas do Antigo Testa­
mento e novas práticas ascéticas, às quais falsos mestres estavam querendo
obrigar os colossenses a obedecer.
Segundo a argumentação de Paulo, as coisas do Antigo Testamento eram
apenas sombras da realidade que já existe e que é Cristo. Assim, não havia
motivos para ordenanças com respeito aos alimentos, uma vez que o pão
da vida já havia vindo (Jo 6.35,48). Não havia necessidade da observância
da páscoa como meio para o aperfeiçoamento espiritual porque “Cristo
nosso Cordeiro pascal já foi imolado” (ICor 5.7). Nem mesmo havia moti­
vo para se impor sobre os novos convertidos a observância do sábado
judeu, pois aquele que veio trazer o descanso definitivo já veio (Mt 11.28,29,
Hb 4.8,14). A sombra, ou seja, aquelas práticas do Antigo Testamento que­
riam apenas apontar para Cristo, mas agora já se podia ver o próprio “cor­
po de Cristo” (v. 17), e por isso elas já não tinham mais razão de ser. E,
como disse Hendriksen “se isso era verdade em relação às regulamentações
do Antigo Testamento, certamente o era muito mais no que tange às regu­
lamentação humanas, de caráter ascético que estavam sendo sobrepostas,
acrescentadas e em alguns casos até substitutivas da lei de Deus”.10 Tudo
isso era um grande erro porque, ao ser enfatizada a necessidade dessas
coisas, a plena suficiência de Cristo estava sendo negada.

Falta de base bíblica


O segundo argumento de Paulo para a inutilidade das práticas legalistas
e ascéticas é que elas não têm base verdadeira (Cl 2.18,19). Não há apoio
algum na Escritura para a prática dessas exigências. Porém, então, em que
se baseiam os defensores dessas práticas? O apóstolo Paulo diz: na falsa
humildade, no culto dos anjos, em visões, no vazio da sua mente carnal.
Novamente Paulo diz, “que ninguém vos julgue”, o sentido é, “que nin­
guém vos desqualifique”. Ou seja, Paulo quer que os crentes não se sintam
abatidos quando alguém lhes diz: “Já que vocês não querem obedecer ao
que nós estamos exigindo, então vocês não estão qualificados para o Cris-
Santificação: As alturas da fé 391

tianismo, vocês não são crentes verdadeiros”. O curioso é que eles argu­
mentam que esses costumes são um sinal de humildade, mas Paulo diz:
Essa humildade é apenas um pretexto, ela é falsa, pois ela quer fazer você
inferior a eles. Um outro argumento usado para convencer os colossenses
era o culto dos anjos. Os anjos eram, na crença dos povos que moravam
próximos dos colossenses, os governadores astrais e operadores de mila­
gres. Assim, o nome dos anjos era usado para tentar convencer os crentes a
obedecer àquelas práticas. Um outro argumento eram as visões. Eles dizi­
am que haviam recebido aquelas ordens em visões, e assim todos deveriam
obedecer. Se alguém ousasse contradizer, diriam: “Mas tivemos tal e tal
visão”. Isso se parece muito com o sistema de “revelações” em moda atu­
almente entre os evangélicos. Segundo Paulo, na verdade estas pessoas eram
“enfatuadas, sem motivo algum, na sua mente carnal”. Enfatuado quer di­
zer cheio de si, mas Paulo diz: “cheio de si sem motivo algum”. Essa pessoa
não é espiritual, pois não retém a cabeça (v.19), ou seja, não tem nada a ver
com Cristo. Seus motivos são carnais, não são os motivos de Cristo. Em
Cristo sim, há crescimento para todo o corpo, somente nele, e por meio
dele pode existir o verdadeiro crescimento espiritual que procede de Deus.

0 p e r i g o do retrocesso

Paulo ainda argumenta que essas práticas representam um retrocesso


(Cl 2.20-22). Por isso ele insiste: “Se morrestes com Cristo para os rudi­
mentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitai a
ordenanças: não manuseies isso, não proves aquilo, não toques aquiloutro,
segundo os preceitos e doutrinas dos homens?” Se Paulo já havia dito que
a própria lei de Deus, como um modo de alcançar a salvação havia sido
cancelada e encravada na cruz (Cl 2.14), que se dirá então desses preceitos,
que eram verdadeiros “rudimentos do mundo”, coisas pueris, inventadas
pelos homens? E como se Paulo dissesse: “Vocês já morreram para o mun­
do, mas agora estão querendo voltar para ele? Ao prestar obediência a essas
coisas vãs, vocês estão retrocedendo. Quando viviam no mundo, vocês eram
preocupados em não fazer isto ou aquilo, querendo agradar aos deuses,
pensando que pelas suas próprias forças conseguiriam benefícios. Porém,
agora que vocês já entenderam que a salvação é pela graça, por causa do
sacrifício de Jesus, não tem sentido ficar correndo atrás dessas coisas sem
valor”. Esse tipo de religião baseada em regras, em costumes, em observân-
cias, é uma religião mundana, uma religião terrena, ela não se baseia na
Bíblia, mas nos costumes dos seres humanos, às vezes sob pretexto de
392 Razão da esperança

humildade, revelações, etc. O apóstolo Paulo diz: Não retrocedam, não


voltem para traz. Sigam crendo que apenas Cristo é suficiente para a salva­
ção e progresso na fé, pois esta é a verdadeira religião espiritual.

S em resultados

E por fim, o último argumento de Paulo contra estas práticas ascéticas e


legalistas é que elas não produzem resultado benéfico algum (Cl 2.23). Elas
em nada colaboram para a santificação. O único resultado que produzem é
o de deixar as pessoas orgulhosas, pensando que somente elas estão certas,
e que todos os que não seguem os seus costumes estão errados. Paulo diz:
“Estas coisas, com o uso, se destroem” (v. 22). Não há valor algum em
seguir mandamentos exigidos pelos homens, pois que não são exigidos pela
Palavra de Deus. Como disse Hendriksen: “O ponto de todo este ensina­
mento não é apenas mostrar que tais ordenanças feitas por homens e as
doutrinas das quais se derivam são sem valor, mas também e enfaticamente
são piores do que sem valor, isto é, são na realidade prejudiciais”.11 Tudo o
que essas coisas têm é apenas aparência. Elas parecem sabedoria, mas de
fato não são. São apenas “culto de si mesmas”, ou seja, não visam à glória
de Deus, apenas à glória das pessoas. Não passam de um rigor ascético, sem
qualquer valor, e não produzem qualquer efeito contra a sensualidade. Elas
não vão ajudar ninguém a ser mais santo. A única vantagem que algo assim
teria, uma vez que não pode contribuir para a salvação, seria ajudar na san­
tificação, entretanto, a Bíblia diz que elas não ajudam nisso, então, realmen­
te são completamente sem valor.

M ú o s indispensáveis de santificação
Usos e costumes para nada colaboram na santificação, mas no processo
de nos santificar, Deus faz uso de alguns meios. Os principais são: a Pala­
vra, a fé, a oração e a disciplina.

A Palavra de Deus
O principal meio divino para a nossa santificação é a verdade. Jesus
orou: “Santifica-os na verdade” (Jo 17.17; ênfase acrescentada). A verdade,
segundo Jesus, é a própria Palavra de Deus. E por meio da Palavra que
Deus nos santifica. Daí a importância crucial da pregação para o cresci­
Santificação: As aliaras da fé 393

mento, edificação e santificação do povo de Deus. Por isso, na teologia


reformada, a pregação da Palavra é considerado um meio de graça, ou seja,
uma maneira pela qual Deus concede a sua graça ao seu povo. O salmista já
tinha plena consciência da função da Palavra na área da santificação, pois
ele diz: “De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho?
Observando-o segundo a tua palavra” (SI 119.9). E disse ainda: “Firma os
meus passos na tua palavra, e não me domine iniqüidade alguma” (SI
119.133). O conhecimento e a firmeza na Palavra de Deus conduzem natu­
ralmente à santidade. Paulo também entendia a plena importância da Pala­
vra para a santificação: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o
ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim
de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda
boa obra” (2Tm 3.16,17). Tudo o que precisamos a fim de que sejamos
repreendidos, corrigidos, educados e habilitados está na Palavra de Deus.
Tudo o que um crente precisa para se aperfeiçoar, ele encontra na Bíblia.
Ela é o grande instrumento de santificação que Deus nos deu.

A fé
Outro meio apropriado para a nossa santificação é a fé. Muitos podem
pensar que a fé apenas nos conduz à justificação, mas, a verdade é que ela é
necessária para a nossa santificação também. De fato, “o evangelho nada
exige de nós além de fé, a confiança de coração na Graça de Deus em
Cristo. A fé não apenas nos justifica, mas também nos santifica e nos sal­
va”.12 Isso equivale a dizer que santificação não é necessariamente questão
de esforço pessoal, mas de fé. Quanto mais fé, mais santos, pois quanto
mais fé, mais desfrutamos dos benefícios de Cristo. A passagem de Atos
26.18 fala dos crentes como sendo “santificados pela fé” em Jesus. Embo­
ra, nesse aspecto, a passagem se refira à santificação definitiva que acontece
juntamente com a nossa justificação, também é verdade que pela fé somos
santificados diariamente. O motivo não é difícil de entender. Todo pecado
que o cristão possa cometer, em última instância, é por falta de fé. Jesus
costumava advertir as pessoas com respeito a essa questão de ter fé peque­
na. Ele disse que se preocupar primordialmente com questões de comida,
bebida e vestuário era evidência de fé pequena (Mt 6.25-30). Também nos
momentos em que os discípulos estavam desesperados por alguma situa­
ção, como quando enfrentavam a tempestade no mar da Galiléia, Jesus
disse que só estavam amendrontados porque eram homens de pequena fé
(Mt 8.26; 14.31). É difícil pecarmos quando a nossa fé e confiança no Se-
394 Razão da esperança

nhor estão no nível máximo. A nossa fé no Senhor é o instrumento pelo


qual o Senhor evidencia a sua vida em nós. Quando Paulo disse que já não
era ele quem vivia, mas que Cristo vivia nele, complementou: “E esse viver
que, agora, tenho na carne, vivo p ela fé no Filho de Deus, que me amou e a si
mesmo se entregou por mim” (G1 2.20; ênfase acrescentada). É pela fé que
experimentamos a mais íntima união com Cristo que nos habilita a confiar
nele, de maneira que ele manifeste a sua vida em nós e, conseqüentemente,
a nossa santificação aparecerá, pois ele é santo. Precisamos sempre nos
lembrar de nossa união com Cristo, pois “a morte de Cristo tem poder não
apenas para justificar, mas também para santificar”.13 Uma pessoa pode se
esforçar sobremaneira, mas nunca vencerá o pecado se não tiver suficiente
fé em Jesus.

A oração
Um outro aspecto fundamental na santificação é a oração. A oração é o
momento mais íntimo de comunicação com Deus que o homem pode ter.
E o momento em que o ser humano tem uma audiência com Deus, e o
Todo-poderoso condescende em ouvir as suas súplicas. Ela é a chave para
o crescimento espiritual e para a santificação. Porém, infelizmente, o modo
como as pessoas normalmente oram prejudica bastante esse crescimento.
Os discípulos temiam orar de maneira errada, por isso procuraram o mes­
tre e lhe pediram que os ensinasse a orar. Jesus ensinou: “Portanto, vós
orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão
nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como
nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tenta­
ção; mas livra-nos do mal pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém\”
(Mt 6.9-13; ênfase acrescentada). Ao contrário do que às vezes se pensa,
essa não era uma oração que deveria ser decorada e repetida. E um molde,
um modelo eficaz de oração, ao qual as orações dos crentes devem se con­
formar. Por trás desses princípios está o segredo do poder espiritual. Clas­
sicamente, a oração que Jesus ensinou tem sido dividida em uma introdu­
ção, uma conclusão e sete petições. As três primeiras petições dão toda a
prioridade para a glória de Deus. Isso é no mínimo impressionante, posto
que, freqüentemente, nossas orações se ocupam apenas conosco mesmos.
Quando Jesus ensina a orar pela santificação do nome de Deus, pela vinda
do Reino, e pela consumação da vontade de Deus para o mundo, está de­
monstrando que um crente precisa entender que essas coisas têm priorida­
Santificação: As alluras da fé 395

des sobre todas as demais. É incrível que, praticamente metade da oração se


ocupe somente dessas coisas. Quando temos acesso às listas de orações nas
igrejas, percebemos que os pedidos que monopolizam essas listas são to­
dos de ordem física, econômica ou familiar. De fato, como os discípulos,
precisamos que Jesus nos ensine a orar. Alguns crentes em suas orações
fazem uso de métodos estranhos à Palavra de Deus. Fazem muito barulho
e não dizem nada. Ou, pior, tentam dar ordens para Deus. As vezes, se ouve
algo assim: “Senhor, eu determino que essa bênção me seja dada”, “Eu não
aceito essa enfermidade”, ou “Eu exijo essa cura”, etc. Enquanto isso, Jesus
ensinou a orar: Seja feita a tua vontade... A quarta petição da oração domi­
nical é a que trata das questões físicas. Há apenas um pedido: “O pão nosso
de cada dia nos dá hoje”. O pão representa as nossas necessidades básicas,
aquilo de que realmente precisamos. O pedido diário denota absoluta de­
pendência da provisão divina e um reconhecimento disso. Embora Deus
esteja interessado em nossas necessidades, o fato é que geralmente as nos­
sas orações são muito desequilibradas, pois há muito para nós e pouco para
Deus. Por fim, os últimos três pedidos se voltam para as coisas do Espírito.
A primeira preocupação é com o perdão dos pecados, uma preocupação
que cada vez mais a igreja tem menos. A segunda preocupação é com segu­
rança espiritual para evitar quedas em tentação. E a última suplica livramen­
tos dos ataques diretos do maligno. Esse modelo de oração é vital para uma
vida de santidade, pois se preocupa com a glória de Deus em primeiro
lugar, e dá mais ênfase ao aspecto espiritual da vida, do que ao aspecto
físico. O modo como os crentes têm orado traz pouco benefício espiritual
para eles, pois geralmente, as preocupações principais são físicas. Como
disse Calvino, nessa oração, “o Senhor nos deu uma forma conveniente de
orar, na qual compreendeu brevemente tudo o que eonvém pedir a Deus, e
o dispôs em poucas petições”.14

A disciplina
Uma das maneiras que Deus usa para nos santificar é sua disciplina.
Hebreus 12.10 diz: “Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a
fim de sermos participantes da sua santidade”. A expressão “disciplina”
tem a ver com a provisão divina para o nosso crescimento, incluindo as
repreensões, a dor e o sofrimento. Deus permite que isso nos sobrevenha
para que sejamos santos como ele é santo (Lv 20.7; IPe 1.16), Quando
enfrentamos lutas, sofrimentos ou momentos de repreensão, achamos isso
doloroso, e ansiamos pelo momento em que seremos livres dessas coisas.
396 Razão da esperança

O autor aos Hebreus entedia isso: “Toda disciplina, com efeito, no mo­
mento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entre­
tanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de
justiça” (Hb 12.11). Quando na igreja, a disciplina é exercida sobre a vida
das pessoas que cometeram faltas graves, isso pode parecer ofensivo para
muitos que estão poluídos pelo espírito moderno liberal, mas, sem a disci­
plina, a pessoa terá grandes dificuldades em se recuperar espiritualmente. A
ausência da disciplina demonstra falta de amor, pois o próprio Deus diz:
“Eu repreendo e disciplino a quantos amo” (Ap 3.19). E o autor aos He­
breus lembra: “Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado
participantes, logo, sois bastardos e não filhos” (Hb 12.8). Como Pai amo­
roso, Deus disciplina seus filhos para que mudem de atitudes, para que
sejam santificados.

0 propósito divino na santificação


Por que Deus quer que sejamos santos? A resposta é: Porque ele é santo
(IPe 1.16). Essa resposta simples contém uma verdade imensa. Primeira­
mente devemos pensar que é desejo de Deus nos reconduzir à sua imagem
e semelhança. Sabemos que o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus (Gn 1.26), e que, depois da queda, essa imagem se deturpou. Deus
deseja, a partir de sua obra redentora, santificar-nos a tal ponto que essa
imagem seja inteiramente restaurada em nós. E verdade que essa tarefa só
estará plenamente realizada na vida do mundo por vir. Porém, ainda nesta
vida, pela influência do Espírito Santo, podemos experimentar uma reno­
vação que gradualmente nos transforma e nos assemelha a Cristo. Paulo
disse que esse, inclusive, era o objetivo pelo qual Deus concedeu dons aos
homens: “E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas,
outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao
aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edi­
ficação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do
pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da
estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.11-13). Deus concedeu dons à sua
igreja para que os membros do corpo de Cristo cresçam a ponto de chega­
rem à semelhança máxima com Jesus. Tornar os crentes semelhantes a Je­
sus era algo que já estava incluído na própria eleição, como podemos ver de
Romanos 8.29: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele
Sanlificação: As alluras da fé 397

seja o primogênito entre muitos irmãos”. E em 2 Coríntios 3.18, encontra­


mos a declaração de que “Todos nós, com o rosto desvendado, contem­
plando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de
glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito”. A
idéia de imagem é justamente a idéia de reflexo. Podemos dizer que Adão e
Eva antes da queda refletiam perfeitamente o criador. Agora, pelo processo
da santificação, somos transformados de glória em glória, para refletirmos
cada vez mais e melhor a imagem do Senhor.
Deus quer que sejamos santos porque isso tem a ver com seu supremo
propósito para este mundo. Deus tem um propósito estabelecido para este
mundo que inclui a eliminação do pecado, a extinção da morte e a recriação
dos céus e da terra. Ou seja, Deus deseja que uma nova era se instale. A
Bíblia a chama de “a era vindoura”, ou “mundo vindouro” (Lc 20.35; Ef
1.21; Hb 6.5). O que sabemos é que nesse lugar habitará plenamente a
santidade. E nós já estamos experimentando na vida aqui a posição desse
mundo futuro. Já experimentamos a realidade desse novo mundo ainda
dentro deste velho mundo, assim como já experimentamos a realidade do
novo homem dentro de um corpo velho. Santificar-se é viver a vida da era
vindoura, é viver para o que realmente fomos chamados. Santificação é
viver muito acima da mediocridade deste mundo, é viver nas alturas da fé.
32

A bênção da perseverança

'Aquele, p o r ém , q u e persevera r até o fim , esse será salvo" (M l 2 4 .1 3 )

A cristandade não tem uma visão unânime com respeito à segurança da


salvação do cristão. Uma parte acredita que, alguém que foi salvo por Cris­
to será salvo para sempre e jamais perderá esta salvação. Outra parte acha
que é possível que alguém que se converteu, depois de algum tempo, se
desvie, morra e vá para o inferno. Estes últimos entendem que tanto a
salvação como a condenação dependem apenas do homem. Ao longo des­
te trabalho, já vimos o quanto essa posição é falha. Muitos têm medo da
Certeza da Salvação (Perseverança dos Santos) por acharem que a doutrina
conduz as pessoas ao desleixo e à inércia espiritual, mas isso só acontece se
alguém, de fato, não a entender bem. Queremos provar a biblicidade da
doutrina da Perseverança dos Santos, bem como a sua utilidade para a vida
cristã. Ela é, ao contrário do que se pensa, um grande incentivo para a vida
de santidade e de compromisso com Deus, com a sua Palavra e com a sua
obra. Esta maravilhosa doutrina bíblica nos mostra o quanto o nosso Deus
é confiável, comprometido e poderoso. A obra que ele começou na nossa
vida não é uma obra qualquer, indefinida, sem previsão de acabamento,
mas a obra de um arquiteto que planejou tudo com antecedência, e que tem
todo o poder e toda a condição para completá-la. Nas palavras de Paulo:
“Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há
de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).

U m slo ga n m a l c o m p r e e n d id o
Dentre aqueles que crêem que a salvação não se perde, desenvolveu-se
um slogan para definir bem a posição, que diz “Uma vez salvo, sempre sal­
vo”. Estamos convictos de que esse slogan é verdadeiro, mas percebemos
que ele é muitas vezes mal entendido. Ele pode sugerir que uma vez que a
40 0 Razão da esperança

pessoa tomou uma decisão por Cristo, ela pode viver a sua vida irresponsa­
velmente, e ao mesmo tempo, plenamente confiante de que jamais poderá
ser condenada. Alguém pode dizer, “Eu tomei uma decisão, Cristo é meu
Salvador, e todos os meus pecados - passado, presente, e futuro - estão
perdoados e esquecidos. Então, eu não tenho que me preocupar mais com
os momentos de fraqueza”. Um famoso teólogo americano, Robert Godfrey,
sarcasticamente caracterizou essa tendência dizendo: “Deus ama perdoar;
eu amo pecar, então isso coopera para um bom relacionamento”,1 E claro
que isso simplesmente não é bíblico.
Para que uma pessoa seja salva, é necessário que aconteça dentro dela
algo grande que Jesus chamou de “novo nascimento” (Jo 3.3). O novo nas­
cimento acontece no momento em que o Espírito Santo cria uma nova vida
na nossa alma e, em resposta a isso, demonstramos arrependimento e fé
(conversão). Porém, a salvação é ainda mais do que isso. De fato, no instante
em que Deus efetuou o novo nascimento no nosso ser, somos capacitados a
responder com fé à pregação do evangelho e, então, somos instantaneamen­
te justificados. Entretanto, a salvação é um processo, um ato contínuo de
Deus em nos tornar santos, Como vimos, esse processo recebe o nome de
santificação. Para que alguém seja salvo, é necessário que esse processo tenha
sido iniciado na sua vida. Ninguém pode ser justificado sem ser também
santificado. Isso é um bom resumo de tudo o que já vimos até aqui sobre
salvação. A perseverança nada mais é do que levar esse processo até ao fim.
Portanto, para que alguém diga “uma vez salvo, sempre salvo” é preciso
que tenha sido realmente salvo. E, para ser realmente salvo, é preciso que
haja uma transformação, e é necessário que a santificação fique evidenciada
na sua vida. Alguém que não evidencia essas coisas será condenado, não
porque perdeu a salvação, mas porque, na verdade, nunca foi salvo. Todo
tipo de orgulho que a expressão “uma vez salvo, sempre salvo” possa pro­
duzir é incompatível com a humildade que é a marca de quem recebeu a
salvação de graça.

Selo de garantia
A partir do próximo capítulo, começaremos a tratar do Espírito Santo. O
Espírito Santo é fundamental para a nossa salvação, mas uma das coisas que
nem sempre entendemos é que o Espírito Santo tem um papel vital na per­
severança. Primeiramente, devemos lembrar o ensino bíblico de que o Espí­
rito é o selo de garantia do crente. Paulo disse aos Efésios: “Em quem tam­
A bênção da perseverança 401

bém vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa


salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da
promessa; o qual é o penhor da nossa herança, ao resgate da sua proprieda­
de, em louvor da sua glória” (Ef 1.13,14). Quando alguém se converte, rece­
be um selo divino. Nos tempos do Novo Testamento se selavam cartas ou
objetos. Lembramos que o túmulo de Jesus foi selado (Mt 27.66). Ao colo­
car o selo, a intenção era demonstrar que aquele objeto pertencia a alguém, e
assim, o objeto deveria estar sob a proteção máxima. Do mesmo modo, o
selo do Espírito Santo na vida do crente indica que ele pertence a Deus e
será protegido de todas as ameaças. O selo, de acordo com Paulo, continuará
sobre o crente até o dia da redenção final. Assim, também, Paulo usa a pala­
vra “penhor”. O penhor, nos tempos do Novo Testamento, era um acordo
de negócio em que uma pessoa dava um primeiro pagamento, algo como
uma entrada, a fim de garantir o negócio. E essa entrada era uma garantia de
que o restante também seria pago. Assim, pois, o Espírito Santo em nós é a
garantia de que o resto será pago, ou seja, de que Deus completará a sua obra
em nós até o dia de Cristo Jesus. Deus não colocaria esse selo se não tivesse
a intenção firme de completar a obra, portanto, o Espírito em nós é a garan­
tia de que Deus nos guardará até ao fim. Deus não colocaria o seu selo de
garantia em nossa vida se não estivesse disposto a nos guardar.
Por outro lado, o Espírito Santo ativamente proporciona a própria per­
severança. No momento da conversão, o crente é batizado com o Espírito
Santo. A partir desse momento, a sua casa já não está mais vazia. O Espírito
Santo não fica ocioso, ele tem uma função. Paulo fala bastante sobre isso
em Romanos 8. Ele diz que a função do Espírito é nos “assistir em nossa
fraqueza” (Rm 8.26). Paulo está pensando primordialmente na oração, mas
é óbvio que o Espírito nos ajuda em todas as nossas fraquezas. No caso
específico da oração, é um fato que não sabemos orar como convém, ou
seja, não sabemos orar de acordo com a vontade de Deus. Porém, quando
oramos, Deus ouve a voz do Espírito Santo dentro de nós. As vezes, ele
geme, porque alguma coisa não está certa em nós. O Espírito Santo é a
grande ajuda divina para a nossa vida de santificação, e conseqüentemente,
de perseverança. Até porque ele é o Espírito Santo.

Elo de a m o r inquebrável
Depois de falar da atuação do Espírito, Paulo amplia ainda mais o en­
tendimento da nossa segurança. Ele diz: “Sabemos que todas as coisas co-
402 Razão da esperança

operam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chama­
dos segundo o seu propósito” (Rm 8.28). A prosperidade e a adversidade, a
felicidade e o sofrimento, as intenções maldosas das pessoas contra os cren­
tes, os anjos bons e os anjos maus, as nações, os governos, a chuva, as
montanhas, as nuvens, as estrelas, etc., tudo o que acontece, ainda que seja
mau a princípio, será transformado em bem para aqueles que amam a Deus.
Na sequência da passagem de Romanos, Paulo diz: “E aos que
predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.30), Como
já estudamos, há uma ordem no processo da salvação. São os vários acon­
tecimentos que compõe a totalidade da salvação. Esses acontecimentos são
interligados. Não faz sentido alguém ser predestinado, chamado, justifica­
do e, depois, perdido. Essa passagem ensina que, quando Deus começa
alguma coisa, ele termina (Fp 1.6). Como já dissemos anteriormente, todos
os acontecimentos de Romanos 8.30 estão no passado. Deus vê o crente
como já tendo passado espiritualmente por todos os estágios (lembrar do
contraste entre o j á e o ainda não). Portanto, é impossível que essa cadeia
seja rompida. Os crentes predestinados foram objeto do amor de Deus
desde toda a eternidade. Este amor não pode se extingüir.
Por essa razão, Paulo declara com toda a convicção: “Que diremos,
pois, à vista dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
(Rm 8.31). O que Paulo quer dizer é que se Deus fez o mais difícil, por
que não faria o mais fácil? Se Jesus já morreu em nosso lugar, por que
Deus não terminaria a obra da salvação na nossa vida? Por isso, Paulo
entende que nada pode nos separar do amor de Cristo. Das sete experiên­
cias que Paulo relatou (Rm 8.35), ele já tinha experimentado seis até aque­
le momento (2Co 11.23-27) e, pela sétima, foi executado mais tarde. Como
Paulo, somos mais que vencedores em meio a essas coisas, ainda que nem
sempre sejamos livrados delas. E o motivo é o seu amor; somos vencedo­
res porque o seu amor por nós permanece. Paulo diz: “Nem a morte”:
Depois da morte, estaremos com Deus. “Nem a vida”: Apesar das distra­
ções da vida, podemos estar com Deus. “Nem anjos”: Os anjos bons têm
a função de nos ajudar. “Nem principados”: Os anjos maus tentam, mas
não podem nos afastar. “Nem presente, nem futuro”: Os acontecimentos
não nos fazem perder o amor de Deus e a salvação. “Nem poderes”:
Podem ser poderes de espíritos ou de pessoas, mas não são mais fortes
que o amor de Deus. “Nem altura, nem profundidade”: Acima ou abaixo,
estamos seguros. “Nenhuma outra criatura poderá nos separar do seu
amor”: Nem nós mesmos.
A bênção da perseverança 403

Uma vez salvos, sempre salvos. Nada pode fazer com que percamos a
salvação, pois nada pode nos separar do amor de Deus, Nós somos vence­
dores na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza,
na guerra e na paz. Só os crentes são mais que vencedores, pois somente
eles possuem a obra do Espírito Santo na sua vida, somente para eles todas
as coisas cooperam para o bem, somente eles receberam uma salvação per­
feita, e nada neste mundo poderá fazer com que percam isso.

A verdadeira segu ra n ça
Muitos acham que depende apenas de si mesmos a tarefa de manter a
salvação. Para estes, bem cabe a repreensão que Paulo fez aos Gálatas: “Sois
assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aper­
feiçoando na carne?” (G1 3.3). De fato, essas pessoas vêem a sua salvação
em termos de uma decisão que fizeram, e baseiam a certeza de sua salvação
sobre a areia inconstante da vontade humana, Imagine que vida terrível é
essa. Ter o seu desdno eterno pendurado no fino cordão da vontade huma­
na, que pode se romper a qualquer momento, pois a vontade humana pode
seguir um curso num minuto e mudá-lo no seguinte. Porém, é bom saber
que as coisas não precisam ser dessa maneira, É bom saber que o nosso
destino eterno não depende apenas da nossa vontade inconstante. E bom
saber que Deus tem um programa e um projeto para a nossa vida e um
interesse todo especial por ela, e que vai executá-lo, e isso depende da von­
tade dele e não apenas da nossa.
Não devemos jamais buscar a certeza da nossa salvação nas nossas habi­
lidades ou na nossa vida, mas no selo que Deus pôs sobre a nossa vida, o
selo do Espírito Santo que funciona como um penhor da nossa salvação
(Ef 1.13-14). Para que perdêssemos a salvação, teríamos que voltar à antiga
condição de morte espiritual. Mas imagine que tipo de regeneração seria
essa que o Espírito Santo realizaria na vida de alguém, ressuscitando-o e
dando-lhe vida eterna, a qual a pessoa poderia de alguma maneira perder e
voltar a morrer. Então, não seria de fato vida eterna. Será que nós podemos
cometer suicídio espiritual? Certamente que não, pois Pedro diz que nós
fomos “regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível”
(lPd 1.23). A Bíblia fala em “nascer de novo”, mas graças a Deus, não fala
em “morrer de novo”. Do mesmo modo, a Bíblia diz que Deus “nos liber­
tou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu
amor” (Cl 1.13). O verbo “libertou” está num tempo verbal grego que
404 Razão da esperança

representa uma ação simples e definitiva realizada no passdo; trata-se de


uma ação feita de uma vez por todas. Fomos libertados desse império amal­
diçoado e transportados para o reino de Jesus. Se pudéssemos nos conver­
ter e nos desconverter a cada momento, é como se ficássemos o tempo
todo saindo do império das trevas e voltando a ele.
Os crentes, por meio de Jesus foram feitos filhos de Deus (Jo 1.12; G1
4.6). Se Deus é nosso Pai, e se nós fomos legalmente adotados na sua famí­
lia por seu desígnio e vontade, como é que isso pode ser quebrado? Certa­
mente eu posso até viver algum tempo longe da minha família, mas seria
possível eu dizer um dia para o meu pai ou a minha mãe: Eu decidi que a
partir de hoje não sou mais filho de vocês? Mãe, você não me deu à luz, e
pai, você não me gerou. Ainda que dissesse algo assim, não mudaria o fato
de que sou filho deles. Que situação terrível se fosse possível num dia ser
filho de Deus, e no outro, do diabo.

0 cuidado do p a stor
A Palavra de Deus chama os crentes de ovelhas. Uma ovelha possui um
pastor e esse pastor tem a função de cuidar da ovelha. Ele trabalha para
impedir que ela se perca. Cristo disse: “Eu sou o bom pastor; conheço as
minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim... e dou a vida pelas minhas
ovelhas” (Jo 10.14-16). Já dissemos que a função de um pastor é defender e
buscar a ovelha perdida. Cristo havia dito que o mercenário não fazia isso,
pois diante do lobo, o mercenário fugia. Um pastor verdadeiro não fugiria,
antes enfrentaria o lobo. Cristo é ainda mais do que um pastor verdadeiro,
ele é de fato o “supremo pastor” (lPd 5.4), pois deu a própria vida pelas
suas ovelhas. Pensar que ele poderia deixar que alguma delas perecesse é
um absurdo. De fato o próprio Jesus já declarou: “E a vontade de quem me
enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu” (Jo 6.39). O
relacionamento de Cristo com suas ovelhas funciona do seguinte modo:
“Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da
minha mão” (Jo 10.28). A segurança eterna do crente não é algo que depen­
de dele próprio, mas do pastor que cuida dele. Aqueles que consideram a
possibilidade de uma verdadeira ovelha de Cristo se perder para sempre,
desconsideram a capacidade do pastor de cuidar de suas ovelhas.
E possível que, como ovelhas de Cristo, em algum momento nos afaste­
mos dele, e nos tornemos ovelhas perdidas. Isso será terrível para nós, mas
ele nunca deixará de nos vigiar; nunca permitirá que nos afastemos para
 bênção da perseverança 405

longe do alcance do seu braço. Todos podem ter um momento de fraqueza


na vida, mas uma coisa é pecar, outra é cometer apostasia. João disse que
muitas pessoas haviam deixado a igreja em seu tempo, porém, segundo o
apóstolo: “Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos;
porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia,
eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos”
(ljo 2.19). Um apóstata é alguém que nunca se converteu. Quando ele
comete apostasia fica evidente que “não era dos nossos”. A ovelha verda­
deira sempre volta aos braços do seu pastor, ou porque o pastor foi atrás
dela (Lc 15.4-6), ou porque ela própria percebeu o erro e voltou (Lc 15.11-
24). Na parábola do filho pródigo que se afasta do pai e anda por caminhos
tortuosos, está muito clara a idéia de que tudo conspira para que ele volte à
casa do pai. É preciso lembrar que um filho verdadeiro sempre volta à casa
do pai, pois se ele é filho jamais poderá deixar de ser.

0 d o m da perseverança
A Escritura diz que “aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será
salvo” (Mt 24.13). Berkhof diz que a Perseverança dos Santos tem o “sentido
de que aqueles que Deus regenerou e chamou eficazmente para um estado
de graça não podem cair nem total nem definitivamente, mas certamente
perseverarão nele até o fim e serão salvos para toda a eternidade”.2 A
perseverança é uma bênção, pois é Deus quem a concede. Mesmo que o
crente peque, ele sempre encontrará o perdão em Deus. Segundo a Escri­
tura, há apenas um pecado que não tem perdão, o “pecado contra o Espí­
rito Santo”.3 Jesus disse que quem blasfemasse contra o Espírito não po­
deria ser perdoado (Mt 12.31). João também fala de um pecado a respeito
do qual não se deve sequer orar: “Se alguém vir a seu irmão cometer peca­
do não para morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para
morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que rogue” (ljo 5.16). O
pecado que João tem em mente só pode ser o pecado contra o Espírito
Santo, pois é o único que não pode ser perdoado. João continua: “Toda
injustiça é pecado, e há pecado não para morte” (ljo 5,17). Embora toda
injustiça seja pecado, todos os pecados podem ser perdoados, porém João
continua tendo em mente um pecado que não tem perdão, e por isso de­
clara: “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em peca­
do; antes, Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não lhe toca”
(ljo 5.18). Literalmente, João disse que quem nasceu de Deus não peca. Os
406 Razão da esperança

tradutores da Bíblia entenderam que se traduzissem assim estariam fazen­


do a Bíblia se contradizer, e o próprio João, pois ele havia dito antes que os
crentes pecavam (ver ljo 1.8; 2.1). Por isso, interpretaram o tempo presen­
te do verbo para dar a idéia de continuidade, o que é correto. O caso, po­
rém, é que parece que João está falando de um pecado que, se alguém
cometer, estará condenado e longe até mesmo do alcance da oração. João
quer dizer que, aqueles que são verdadeiramente nascidos de Deus não
pecam, ou seja, não cometem esse pecado. E a razão não está em si mesmos,
mas pelo fato de que Deus os guarda e o maligno não pode tocá-los. Isso
confirma a idéia de que a nossa perseverança é um dom de Deus. Judas diz
que Deus é aquele que é poderoso para nos guardar de tropeços e para nos
apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória (Jd 24).
Apesar de todo esse ensino sobre a segurança da nossa salvação, não
devemos pensar que não temos nenhuma responsabilidade, e que seremos
salvos de qualquer jeito, independentemente das nossas atitudes. Para que
sejamos salvos, precisamos de perseverança. Foram os puritanos que cu­
nharam a expressão “perseverança dos santos”. Eles fizeram isso justa­
mente para não deixar a impressão de que alguém poderia estar seguro
eternamente de sua salvação se não perseverasse. Uma pessoa precisa per­
severar até o fim para que fique evidenciado que é de fato salva. Como diz
McGregor Wright, “uma pessoa que abandona a fé apenas proporciona ao
observador a evidência de que ela não era regenerada”.4. E preciso perse­
verar até o fim, mas isso não significa que uma pessoa não possa ter certeza
da própria salvação. Ela pode, e sua maior certeza é o testemunho interior
do Espírito Santo. Paulo diz em Romanos 8:16: “O próprio Espírito testifica
com o nosso espírito que somos filhos de Deus”. A certeza da nossa salva­
ção vem primariamente de dentro, porém, há mais elementos que ajudam:
são as evidências ou frutos da salvação. Nesse sentido, vida transformada,
coração regenerado, constante arrependimento e fé são evidencias bem
conclusivas a respeito da salvação. Embora exista a possibilidade de que
uma pessoa seja salva mesmo sem evidenciar os frutos, como no caso do
ladrão na cruz que nem teve tempo para isso, nunca devemos nos esquecer
da nossa responsabilidade. Jesus disse: “Aquele, porém, que perseverar até
o fim, esse será salvo” (Mt 24.13; ver Lc 21.19; Hb 10.36). Do mesmo
modo, confiar numa suposta conversão acontecida no passado, mas que
não produz resultado no presente é, como diz Strong “confiar no valor da
apólice do seguro de vida para o qual não foram pagos os prêmios por
vários anos”.5 E verdade que a apólice pode ser paga por causa da graça de
Deus, mas desleixo não combina com graça.
 bênção da perseverança 407

Não somos fatalistas. Uma vez salvo sempre salvo somente tem valor se
alguém se tornou um filho de Deus. E, para ser salvo, é preciso que eviden­
cie na sua vida os frutos dessa salvação. Devemos confiar que somos sal­
vos, e enquanto trabalhamos, somos capacitados, pelo Espírito que está em
nós, a permanecer fiel. E verdade que o pecado sempre estará à nossa por­
ta, entretanto, sua graça sempre nos ajudará, e por mais endurecidos que
possamos estar em certas situações, se formos de fato “ovelhas do seu
pasto”, Jesus não desistirá de nós (SI 79.13; Ez 34.31). A certeza da salvação
é uma bendita esperança, é algo que, como diz Schaeffer, nos “enche de
alegria, de modo que não tenhamos que ir para a cama todas as noites
repassando os acontecimentos do dia e perguntando-nos ‘será que eu ainda
continuo salvo, ou será que eu me perdi?”6 Poderemos repassar os aconte­
cimentos para agradecer as bênçãos e pedir perdão pelos pecados, e depois,
dormir em paz, seguros na mão poderosa do pastor celeste Qo 10.28).
33

0 batismo com o Espírito Santo

Jesus disse: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes
donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito”
(Jo 3.8), Ele destacou a existência do Espírito como análoga ao vento, de­
monstrando a sua invisibilidade, a sua imprevisibiüdade c, ao mesmo tem­
po, a sua existência real e abençoadora. A palavra vento e a palavra Espírito
são exatamente a mesma na língua grega,1 e, portanto, nessa passagem Je­
sus está fazendo um jogo de palavras. Quando pensamos no Espírito como
alguém semelhante ao vento, entendemos um pouco sobre quem ele é.
Jesus disse: “O vento sopra onde quer”. Quem pode controlar o vento?
Também ninguém pode controlar o Espírito. Em seguida, ele disse: “Ou­
ves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai”. De alguma
maneira, podemos senti-lo, embora não possamos vê-lo, nem entendê-lo.
Todos os crentes sabem quem é o Espírito Santo. Ninguém precisa descrevê-
lo para eles, até porque ninguém conseguiria. Todo crente sabe o que é esse
maravilhoso sopro de vida e de paz que preenche a vida e eleva o nosso
cotidiano. Essa “doce presença” inunda a existência do filho de Deus, e o
leva a ter um relacionamento tão íntimo com Deus quanto uma criancinha
pode ter com o seu pai (Rm 8.15).
Por outro lado, percebe-se que há, dentro do Cristianismo, muitas
distorsões a respeito da pessoa e da obra do Espírito Santo. Se, durante
séculos, o Cristianismo pouco falou a respeito do Espírito,2 o século 20 foi
um verdadeiro despertar para o Espírito. Isso aconteceu basicamente por
causa dos movimentos carismáticos que surgiram no início do século e se
estenderam em sucessivas renovações até o fim do século 20. Hoje, as igre­
jas pentecostais e neopentecostais são maioria absoluta em vários países do
mundo, inclusive no Brasil. O termo “pentecostal” é uma referência aos
acontecimentos do dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo desceu
sobre os discípulos e eles passaram a falar em línguas estranhas (At 2).
Supostos movimentos espirituais têm causado divisões e esfacelamento em
denominações cristãs que tinham o peso de séculos de existência. Na “onda
do Espírito” as pessoas têm tido as mais diversas e até aberrantes manifes-
410 Razão da esperança

tações supostamente espirituais. No outro extremo, muitos cristãos evitam


todo tipo de manifestação espiritual, afastando-se completamente de tudo
o que possa ter conotação carismática, e às vezes, vivem uma vida de frieza
e indiferença em relação às coisas de Deus.
Neste capítulo, consideraremos a personalidade divina do Espírito, o
significado da sua vinda, o batismo realizado por ele, e a diferença que ele
produz na vida das pessoas. O objetivo é resgatar o ensino bíblico e o
equilíbrio sobre a pessoa e a obra do Espírito Santo na teoria e na prática da
vida cristã.

A p essoa divina do Espírito Santo


É impossível entendermos quem é o Espírito Santo se não o conside­
rarmos como uma pessoa. A Escritura demonstra claramente que o Espíri­
to Santo é uma pessoa, mas não faltaram hereges na história da igreja que
negaram isso. Desde os tempos mais primitivos, pessoas relutantes em aceitá-
lo como Deus, e também como a terceira pessoa da Trindade, têm negado
a sua personalidade. Preferem pensar nele como uma “força” ou uma “ener­
gia” de Deus, como algo impessoal que Deus emite para cumprir os seus
planos no mundo. Embora o Espírito Santo realmente seja aquele que rea­
liza os planos de Deus no mundo, negar a sua personalidade é negar o
ensino bíblico.

A per son a li d a d e do Espírilo

Em seguida, analisaremos algumas passagens que demonstram que o


Espírito Santo é uma pessoa, com habilidades próprias de uma personali­
dade. Como disse Sproul “uma personalidade inclui inteligência, vontade,
individualidade. Uma pessoa age por intenção. Nenhuma força abstrata pode
tencionar fazer qualquer coisa. Boas ou más intenções são limitadas aos
poderes de seres pessoais”.3 Todas essas coisas podem ser vistas nas descri­
ções que a Bíblia faz do Espírito Santo. Vaiar é propriedade da personalida­
de, pois uma força não fala. O Espírito falou com Filipe, conforme Lucas
registrou: “Então, disse o Espírito a Filipe: Aproxima-te desse carro e acom­
panha-o” (At 8.29). O Espírito queria que Filipe pregasse o evangelho ao
eunuco, e o levou até ele e ordenou que falasse com ele. Uma força não
faria isso. Do mesmo modo, o Espírito falou com Pedro: “Disse-lhe o Es­
pírito: Estão aí dois homens que te procuram; levanta-te, pois, desce e vai
0 Batismo com o Espírito Santo 411

com eles, nada duvidando; porque eu os enviei” (At 10.19,20). Nesse caso,
ele não só falou como deu instruções claras e precisas. E também Paulo e
Barnabé foram chamados pela ordem do Espírito: “Disse o Espírito Santo:
Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado”
(At 13.2). Aqui ele chama e demonstra preferência, como também faz nou­
tra ocasião quando eles tentavam “ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus
não o permitiu” (At 16.7). Ter a capacidade de ensinar também é obra de
alguém que tem personalidade. Jesus disse: “Mas o Consolador, o Espírito
Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas
e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26). Também disse
que ele testemunharia: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará
testemunho de mim” (Jo 15.26). Mais à frente, Jesus reiterou: “Quando
vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque
não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará
as coisas que hão de vir” (Jo 16.13). Todas essas capacidades de ensinar,
testemunhar e guiar são exclusivas de uma personalidade, Imaginar que
uma força impessoal fosse capaz de realizar essas coisas não faz sentido.
O Novo Testamento fala ainda sobre a questão de não pecar contra o
Espírito Santo (Mt 12.31), do perigo de resistir ao Espírito Santo (At 7.51),
e do dever de não entristecer o Espírito Santo (Ef 4.30). Como diz Sproul:
“ele nos é apresentado como uma pessoa a quem podemos agradar ou
ofender, que pode amar e ser amado e com quem podemos ter comunhão
pessoal”.4 Todas essas coisas são próprias apenas de uma pessoa. Portanto,
o Espírito Santo não é uma força ou uma energia, ele é uma pessoa, uma
pessoa divina,

A div in dad e do Espírito


Algumas passagens poderão nos dar uma breve descrição do que a Es­
critura considera ser a divindade do Espírito Santo. A divindade do Espíri­
to Santo fica demonstrada pela Bíblia no fato de que ele possui atributos
divinos. Ele desempenhou papel importante na criação (Gn 1.2), e desem­
penha na providência (SI 104.30). Isso nos fala de sua onipotência. Tam­
bém percebemos sua onisciência, pois Isaías pergunta: “Quem guiou o
Espírito do S e n h o r ? O u , como seu conselheiro, o ensinou? Com quem
tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão? Qüem o instruiu na
vereda do juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe mostrou o caminho de en­
tendimento?” (40.13,14). E Paulo diz que o Espírito “a todas as coisas pers-
412 Razão da esperança

cruta, até mesmo as profundezas de Deus” (ICo 2.10). Sua onipresença


pode ser vista no Salmo 139:7,8 “Para onde me ausentarei do teu Espírito?
Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha
cama no mais profundo abismo, lá estás também”. O fato ainda de que o
nome do Espírito Santo apareça junto com o nome do Pai e com o nome
do Filho na fórmula batismal (Mt 28.19), e na bênção apostólica (2Co 13.13),
demonstra a igualdade entre as três pessoas da Trindade, e nos leva a con­
siderar a divindade do Espírito Santo.
De todas, a passagem que mais claramente aponta a divindade do Espí­
rito Santo é Atos 5.3,4: “Então, disse Pedro: Ananias, por que encheu Sata­
nás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, reservando parte do
valor do campo? Conservando-o, porventura, não seria teu? E, vendido,
não estaria em teu poder? Como, pois, assentaste no coração este desígnio?
Não mentiste aos homens, mas a Deus”. Na conhecida história em que
Ananias e Safira vendem o seu campo, mas resolvem entregar apenas meta­
de do preço, Pedro disse que eles estavam mentindo “ao Espírito Santo”, e
desse modo, não mentiram aos homens, “mas a Deus”. Se mentir ao Espí­
rito Santo é mentir a Deus, então, o Espírito Santo é Deus.

A era do Espírito
A vinda do Espírito marcaria uma nova era para o mundo, e especial­
mente para a igreja. Há muito tempo Deus vinha anunciando por intermé­
dio dos profetas a chegada de uma era espetacular. Essa era foi identificada
como um derramamento especial do Espírito Santo. Apesar de o Espírito
já estar em atividade durante todo o período do Antigo Testamento, como
disse Stott, “mesmo assim, alguns profetas predisseram que nos dias do
Messias, Deus concederia uma difusão liberal do Espírito Santo, nova e
diferente, bem como acessível a todos”.5 Isaías profetizou que depois de
um tempo de muita destruição para o povo de Israel, em que os palácios
seriam abandonados, as cidades ficariam desertas, as torres seriam destruí­
das, finalmente, Deus derramaria o “Espírito lá do alto”; então, toda uma
renovação aconteceria (Is 32.14,15). Esse derramar do Espírito passou a
ser uma das grandes expectativas escatológicas do povo de Deus. Isaías fala
ainda: “Porque derramarei água sobre o sedento e torrentes sobre a terra
seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção,
sobre os teus descendentes” (Is 44.3). Ezequiel foi ainda mais específico
sobre esse derramamento: “Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis
0 Batismo com o Espírito Santo 413

purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos


purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo;
tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro
de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os
meus juízos e os observeis” (Ez 36.25-27). E Joel fala da amplitude desse
derramamento: “E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito so­
bre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos
sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e sobre as servas
derramarei o meu Espírito naqueles dias” Q1 2.28,29). Toda a expectativa
sobre o derramamento do Espírito pode ser vista nas palavras de João Ba­
tista no início do seu ministério: “Eu vos tenho batizado com água; ele,
porém, vos batizará com o Espírito Santo” (Mc 1.8). João Batista anunciou
que a profecia do Antigo Testamento, sobre o derramar do Espírito Santo,
logo se cumpriria na pessoa daquele a quem ele anunciava, o Senhor Jesus
Cristo. E o próprio Senhor, após a sua ressurreição, disse aos apóstolos:
“Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai; permanecei, pois, na
cidade, até que do alto sejais revestidos de poder” (Lc 24.49). Jerusalém
seria o local onde finalmente o Espírito prometido viria. Bruner enfatiza a
importância de Jerusalém nesse ponto: “Para receberem o Espírito Santo,
os apóstolos são ordenados a não se ausentarem de Jerusalém. Jerusalém,
no conceito de Lucas, será o local do penúltimo acontecimento da história
da salvação antes do último: a volta de Cristo”.6 Jerusalém é a cidade esco­
lhida para que a antiga profecia se cumpra, e assim, o Espírito prometido
venha sobre o povo escolhido. Por isso, no dia do Pentecostes, Pedro clara­
mente entendeu que a promessa havia se cumprido. Percebemos isso pelas
suas palavras: “Mas o que ocorre é o que foi dito por intermédio do profeta
Joel: E acontecerá nos últimos dias, diz o Senhor, que derramarei do meu
Espírito sobre toda a carne” (At 2.16,17). Sobre essa base, ele teve a cora­
gem de proclamar à multidão que o ouvia: “Arrependei-vos, e cada um de
vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos peca­
dos, e recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós outros é a promes­
sa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para
quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2.38,39). O perdão dos peca­
dos e o dom do Espírito eram promessas divinas que haviam acabado de se
cumprir naquele dia. A última expressão de Pedro de que a promessa era
para todos os que “Deus chamar”, aponta para o aspecto universal da pro­
messa do Espírito. Joel já havia dito que o derramamento seria sobre todo
tipo de pessoas, incluindo jovens, velhos, homens, mulheres, servos e ser­
vas Q12.29). Independentemente de idade, sexo, raça e classe social, o dom
414 Razão da esperança

incluía todos os que se arrependessem e cressem.7 Agora Pedro começa a


alargar ainda mais a tenda, pois começa a antever a possibilidade de que
outros povos sejam incluídos.
Percebemos, portanto, que desde o Antigo Testamento, sempre houve
uma promessa divina de enviar o Espírito Santo a fim de iniciar uma era
diferente, a Era do Espírito. O Espírito viria habitar de modo mais pleno e
universal entre o povo de Deus, que não mais seria limitado a uma nação,
pois englobaria pessoas de todas as tribos, raças, línguas e nações. O mo­
mento quando aquela promessa fosse cumprida seria um momento ímpar,
um momento único na história da salvação.

0 Espírito no A ntigo Testamento


Se os profetas anunciaram um tempo especial quando o Espírito seria
derramado, isso significa que o Espírito não estava em atuação no Antigo
Testamento? No dia de Pentecostes Deus enviou o Espírito do céu, e ele
encheu os discípulos de Jesus e os capacitou para a tarefa de pregar o evan­
gelho em todo o mundo. Sabemos que a partir daí a igreja cristã começou a
se desenvolver, e também que o Novo Testamento passou a ser proclama­
do. Porém, onde estava o Espírito Santo durante o tempo do Antigo Testa­
mento? Qual foi a atuação dele desde o início do mundo? Sendo o Espírito
Santo a terceira pessoa da Trindade, não devemos pensar que ele estivesse
inativo durante todo esse tempo. Contudo, Jesus disse aos discípulos que
enviaria o Espírito Santo (Lc 24.49), e que eles deveriam esperar essa vinda.
Precisamos entender em que sentido a vinda do Espírito caracterizaria uma
novidade em relação à atuação do Espírito no Antigo Testamento.

Capacitações especiais

O Espírito Santo atuava nos seres humanos no Antigo Testamento. Uma


das tarefas específicas do Espírito Santo era capacitar o homem para reali­
zar certas tarefas. Assim, um homem chamado Bezalel foi capacitado por
Deus para fabricar os objetos que seriam postos no Tabernáculo. Deus
disse: “E o enchi do Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência e de
conhecimento, em todo artifício para elaborar desenhos e trabalhar em
ouro, em prata, em bronze, para lapidação de pedras de engaste, para enta­
lho de madeira, para toda sorte de lavores” (Ex 31.3-5). Do mesmo modo,
Sansão foi cheio desse Espírito para realizar prodígios, como está relatado
0 Batismo com o Espírito Santo 415

em Juizes 14.6, quando ele matou um leão: “Então, o Espírito do S e n h o r


de tal maneira se apossou dele, que ele o rasgou como quem rasga um
cabrito, sem nada ter na mão”.
O Espírito também dava “força” num outro sentido. Os profetas Ageu
e Zacarias encorajaram o povo na obra da reconstrução de Jerusalém e do
templo, falando sobre a presença do Espírito Santo. Ageu disse em nome
do Senhor: “O meu Espírito habita no meio de vós; não temais” (Ag 2.5).
Esse Espírito era a garantia de que a obra seria realizada, conforme Zaca­
rias também profetizou: “Esta é a palavra do S e n h o r a Zorobabel: Não por
força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o S e n h o r dos Exércitos”
(Zc 4.6). Do mesmo modo, os juizes e os reis governaram sobre Israel pela
unção do Espírito Santo (ver Nm 27.18; Jz 3.10; ISm 16.14), que fazia com
que homens simples pudessem desempenhar ofícios de governantes. Po­
rém, como diz Hodge,

Todas essas operações são independentes das influências santificadoras do


Espírito. Quando o Espírito veio sobre Sansão ou sobre Saul, não foi com
o intuito de torná-los santos, mas para dotá-los com extraordinário poder
físico e intelectual; e, quando lemos que o Espírito se afastou deles, isso
significa que eles foram privados dos dons extraordinários.8

Não devemos confundir essas manifestações do Espírito com a obra da


conversão.

0 Espírito e a co nve rsã o

Mas será que isso quer dizer que o Espírito não agia para a salvação das
pessoas no Antigo Testamento? A esse respeito, um dito de Jesus é bastan­
te discutido. Jesus disse certa vez aos apóstolos: “E eu rogarei ao Pai, e ele
vos dará outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o
Espírito da verdade, que o mundo rião pode receber, porque não no vê,
nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em
vós” (Jo 14.16,17). Essas palavras de Jesus têm dado margem para muitos
imaginarem que o Espírito Santo não habitasse dentro dos crentes no An­
tigo Testamento, especialmente quando consideradas em conjunto com as
palavras de Jesus registradas em João 7.38,39: “Quem crer em mim, como
diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com
respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o
Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido
416 Razão da esperança

ainda glorificado”, Essas passagens parecem indicar que os crentes do An­


tigo Testamento não tinham o Espírito, mas isso é uma impossibilidade. A
opinião de Grudem é muito útil nesse ponto: “Ambas as passagens devem
ser maneiras diferentes de dizer que a obra mais poderosa, mais plena do
Espírito Santo, característica da vida após o Pentecostes, ainda não havia
começado na vida dos discípulos”.9 Não significa que o Espírito Santo não
habitasse os crentes no Antigo Testamento (ver Lc 1.15; 1.67; 2.26-27; ISm
10,6; Is 4.4; 11.2), mas que ele seria derramado de maneira mais abundante
a partir do Pentecostes. Bavinck dá duas razões para a diferença entre o
Espírito antes e depois do Pentecostes:

Em primeiro lugar, pelo fato de que a Velha Dispensação sempre olhava para
a frente, para o dia em que surgiria o Servo do Senhor, sobre quem o Espírito
repousaria em toda a sua plenitude (...) Em segundo lugar, o Antigo Testa­
mento prediz que, embora houvesse já naquele tempo uma certa operação do
Espírito Santo, que esse Espírito seria derramado sobre toda a carne.10

Não há sentido em pensar que o Espírito não agisse nos crentes para
salvá-los antes do dia de Pentecostes, pois como diz Stott, “no tempo do
Antigo Testamento, ele estava incessantemente ativo - na criação e na pre­
servação do universo, na providência e na revelação, na regeneração de
crentes, e na capacitação de pessoas especiais para tarefas especiais”.11 A
regeneração é impossível sem a atuação do Espírito Santo, então, se havia
crentes no Antigo Testamento, essas pessoas precisavam ter o Espírito.
Encontramos no Salmo 51 uma importante declaração de Davi sobre isso.
Consciente do seu pecado com Bate-Seba, Davi ora a Deus: “Não me
repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito” (v.l 1). Como
diz Lloyd-Jones, “aqui estava um homem sob a velha dispensação, um ho­
mem anterior ao Pentecostes, e orou para que Deus não retirasse dele o Seu
Espírito”.12 Se Davi tinha o Espírito Santo, devemos também pensar que
todos os demais crentes, como Abraão, Isaque, Jacó, José, etc., tinham o
Espírito Santo, pois como diz Calvino, “tudo o que o Senhor tinha feito e
sofrido para adquirir salvação para o gênero humano pertencia tanto aos
crentes do Antigo Testamento quanto a nós. E, de fato, eles tinham um
mesmo espírito que nós temos, pelo qual Deus regenera os Seus para a vida
eterna”.13 Porém, há diferença no sentido de que, o derramar do Espírito
era mais restrito. Após o Pentecostes, vemos um derramar generalizado,
especialmente incluindo outros povos.
0 Batismo com o Espírito Santo 417

0 outro Consolador
Para que o Espírito fosse enviado, Jesus precisaria primeiro consumar a
sua obra. Jesus esteve com os discípulos por cerca de três anos. Ele precisa­
va partir para o santuário celestial onde continuaria sua obra de intercessão
pelo seu povo até o último dia, mas os discípulos não ficariam sozinhos
nesse ínterim, pois Jesus disse: “Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
Consolador” (Jo 14.16). Jesus foi o grande consolador dos seus discípulos.
A palavra grega para consolador é parakletos, e significa literalmente “aquele
que está ao lado de”. Porém, agora, ele precisava partir, e não poderia mais
permanecer ao lado de seus discípulos. Entretanto, não deixaria os seus dis­
cípulos sozinhos, pois mandaria um companheiro para eles: o Espírito San­
to. A partir desse momento Jesus seria o consolador (parakletos) no céu (ljo
2.1), intercedendo pelos seus discípulos de lá, enquanto o Espírito seria o
consolador (parakletos) na terra, também intercedendo e cuidando dos dis­
cípulos aqui (Rm 8.26). Não poderia haver bênção maior para o povo de
Deus do que ter, não um, mas dois “consoladores”.
Por várias vezes, Jesus advertiu seus discípulos de que precisava partir.
Um dos motivos principais é que somente depois da sua partida ele poderia
enviar o outro Consolador (ver Jo 7.38,39). Enquanto Jesus não fosse glo­
rificado, o Espírito Santo não poderia ser enviado, por isso Jesus disse aos
discípulos: “Mas eu vos digo a verdade: convém-vos que eu vá, porque, se
eu não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-
lo enviarei” (Jo 16.7). Era necessário que Cristo subisse aos céus e se assen­
tasse à direita do trono de Deus, e assim glorificado, enviasse o Espírito
Santo aos discípulos. E assim iniciasse a obra mundial de conversão e de
consumação dos propósitos de Deus. Este é o sentido principal em que há
diferença entre o Espírito antes e depois do Pentecostes.
Era muitíssimo necessário que o Espírito viesse. Além de substituir Jesus,
ele teria funções extras. Seria sua função lembrar aos discípulos as coisas que
Jesus havia dito (Jo 14.26). Também fazia parte da sua obra convencer o
mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 18.8). Em tudo isso, o Espírito
não agiria de modo independente, pois a sua função era glorificar o próprio
Jesus, exaltando a sua pessoa, o seu poder e a sua obra (Jo 16.14). Esse é um
ponto de máxima importância, pois é comum, hoje, as pessoas enfatizarem
mais a pessoa e a obra do Espírito Santo do que a do Pai e a do Filho. E
verdade que o Espírito Santo não foi considerado como devia ao longo da
história da igreja, porém, é um erro querer enfatizar a obra do Espírito acima
418 Razão da esperança

da obra de Jesus. A função do Espírito seria a de testemunhar de Jesus. Jesus


disse: “Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de
anunciar” (Jo 16.14). A esse respeito, Lloyd-Jones tem algumas palavras inte­
ressantes: “Ao meu ver, esta é uma das coisas mais espantosas e extraordiná­
rias acerca da doutrina bíblica sobre o Espírito Santo. Ele parece esquivar-se
e ocultar-se. Ele está sempre, por assim dizer, focalizando o Filho”.14 De fato,
a obra do Espírito Santo não é glorificar a si mesmo. Ele é como um holofo­
te, sua função é iluminar, mas não a si mesmo, e sim a pessoa de Jesus. Ele
quer glorificar o Senhor Jesus, nos dando conhecimento dele e de seu amor
por nós. Por essa razão, Lloyd-Jones está certo em afirmar que podemos
saber o quanto temos do Espírito de acordo com o quanto consideramos o
Senhor Jesus.15 Como as pessoas não têm olhado para essa obra do Espírito,
e têm focalizado excessivamente nele como um “fim em si mesmo”, pode­
mos dizer que ele continua esquecido, muito embora as livrarias estejam cheias
de livros a respeito do poder e da influência vencedora do Espírito.
Jesus disse que o Espírito Santo seria enviado para estar sempre com os
discípulos, ou seja, eles não poderiam viver sem este Espírito. Isso nos fala
da importância do Espírito Santo para a vida do crente. Não dá para conce­
ber um crente sem o Espírito Santo, pois ele é absolutamente vital para que
o crente conheça Jesus e receba a salvação. Um crente sem o Espírito Santo
em hipótese alguma pode ser crente verdadeiro, pois a presença do Espírito
Santo na vida dos discípulos é a garantia de que, de fato, conhecem a Jesus
e pertencem a ele (ver Rm 8.9, Ef 1.13,14).

0 pentecostes e a redenção
Como já vimos, o Espírito Santo habitava os crentes antes do Pentecos­
tes, porém, ele seria dado de modo mais pleno a partir de então. Veja que
Jesus diz que os discípulos já conheciam o Espírito Santo, enquanto o mun­
do ainda não o conhecia (v. 17). Isso é mais uma prova de que eles já possu­
íam o Espírito Santo. Porém, já vimos que somente depois da partida de
Jesus é que o outro Consolador viria para assumir definitivamente a função
de guiar os discípulos a toda a verdade.

Babel invertida
Para que o derramamento do Espírito acontecesse, Jesus precisava ser
exaltado por meio da sua ascensão. Foi na ascensão, quando se assentou à
0 Batismo com o Bspírilo Sanlo 419

destra de Deus que Cristo recebeu o título de “Cabeça da igreja” (Ef. 1.20-
23). Então, somente depois da sua ascensão ele pôde mandar o Espírito
Santo para ligar os membros a fim de formar um só corpo. Alguém dirá:
Mas, então, não havia igreja no Antigo Testamento? Havia, porém não nos
mesmos termos do Novo Testamento. No dia do Pentecostes aconteceu
algo novo que jamais havia acontecido antes. Nesse dia, a unidade foi esta­
belecida. Podemos ver o Pentecostes como um tipo de Babel invertida.
Naquele dia, a igreja composta de todas as nações se reuniu num único
corpo. Foi por isso que o dom de línguas foi concedido. As línguas de todos
os povos foram unidas no dia do Pentecostes, simbolizando a unidade da
igreja em todas as nações, e não mais apenas dentro dos limites de Israel.
As línguas haviam sido divididas por ocasião da torre de Babel como um
juízo de Deus contra a soberba humana, mas no Pentecostes foram reuni­
das, demonstrando a unidade do povo de Deus. No Pentecostes, os discí­
pulos receberam o Espírito do Cristo glorificado, e assim foram batizados
no corpo de Cristo, ou seja, na igreja. A vinda do Espírito Santo no dia do
Pentecostes foi para a instituição da igreja do Novo Testamento.

0 que é ser pen te cos tal ?


O termo pentecostal está definitivamente incorporado ao dicionário
da igreja cristã. Desde o início do século 20, quando um grupo de crentes
começou a falar em línguas numa missão evangélica em Los Angeles, o
movimento pentecostal se espalhou pelos quatro cantos do planeta. Hoje,
estima-se que as igrejas pentecostais e neopentecostais sejam mais nume­
rosas que as tradicionais, O termo “pentecostal” é tirado do episódio que
ocorreu no dia de Pentecostes em Jerusalém quando os discípulos do
Senhor Jesus foram batizados com o Espírito Santo. Os pentecostais di­
zem que receberam uma experiência igual àquela. Eles raciocinam: os
discípulos eram crentes, mas receberam o batismo depois, e falaram em
línguas, então, há uma conversão operada pelo Espírito Santo, mas o ba­
tismo é uma segunda bênção, uma segunda experiência pós-conversão.
Desse modo, para o pentecostalismo, há duas classes de crentes na igreja,
os que já chegaram lá e os que ainda não conseguiram. Quem já foi bati­
zado faz parte da elite dos crentes, enquanto que, quem não foi batizado
faz parte de uma categoria inferior de crentes. Estes últimos, freqüente­
mente recebem alguma discriminação por parte dos mais “adiantados”, e
se vêem ameaçados pela pergunta tradicional: “Você ainda não foi batiza­
do no Espírito Santo?”
420 Razão da esperança

0 p e n ú l t i m o a c o n t eci m en t o redentor

Os crentes pentecostais e neopentecostais afirmam que Atos 2 é a nor­


ma para os crentes de todas as épocas, mas Atos 2.1-4 é a narrativa histórica
a respeito do cumprimento da promessa de Jesus de enviar o Espírito San­
to, selando as profecias do Antigo Testamento e completando o último
acontecimento da história da redenção, antes da segunda vinda de Cristo.
Dois grupos de pessoas foram batizados com o Espírito Santo no capítulo
2 de Atos: os 120 discípulos reunidos no cenáculo e a multidão de três mil
pessoas que se converteram com a pregação de Pedro. Os 120 já andavam
com Jesus, e eram convertidos. Os três mil não eram crentes, mas se con­
verteram naquele dia e com certe2a também receberam o batismo com o
Espírito Santo. Qual deveria ser a norma para nós hoje? Os 120 que preci­
saram aguardar até o dia determinado, ou os três mil que não precisavam
mais aguardar a descida do Espírito Santo, uma vez que ele já havia desci­
do? Parece óbvio dizer que o segundo grupo é padrão, pois também nós
vivemos na era após a descida do Espírito.
E preciso fazer uma distinção entre a descida do Espírito Santo e o dia
do Pentecostes. Podemos até dizer que, num certo sentido, uma coisa nada
tem a ver com a outra. O Pentecostes era uma festa dos judeus ordenada
desde o Antigo Testamento. Literalmente, Pentecostes significa qüinquagé-
simo, pois acontecia cinqüenta dias depois da Páscoa. Também era chama­
da de festa das semanas, por acontecer sete semanas depois da Páscoa.
Porém, a comemoração mais comum era por causa das colheitas, A única
relação entre o Pentecostes e o batismo com o Espírito Santo foi que Deus
resolveu enviar o Espírito Santo naquele dia sobre os discípulos, provavel­
mente aproveitando a ocasião em que haveria pessoas de várias partes do
mundo em Jerusalém,16 Os judeus celebravam o Pentecostes como o ani­
versário da dádiva da lei no Sinai, dada, segundo criam, no qüinquagésimo
dia depois do êxodo.17 Aquele foi o momento sublime em que Deus selou
a aliança com a nação de Israel, mas agora, no Pentecostes, algo de propor­
ções ainda maiores estava acontecendo, Deus estava selando a sua aliança
com a igreja de todos os povos. Mas diante disso, será que o termo “pente-
costal” aplicado hoje tem algum sentido?

C u m p r im en t o Histórico
Atos 2.1-4 tem a sua importância não por causa da festa do Pentecostes
em si, mas pelo fato de que Deus cumpriu mais um acontecimento da
0 Batismo com o Espírito Santo 421

história da redenção nesse dia. O nascimento de Jesus foi o primeiro


acontecimento histórico da redenção. O acontecimento seguinte foi a sua
morte, depois a sua ressurreição, por fim a sua ascensão e, então, a descida
do Espírito Santo. Depois disso, só resta a segunda vinda. Portanto, o
acontecimento do dia de Pentecostes foi o último da atividade salvadora
histórica de Jesus. Assim como a morte de Jesus e sua ressurreição são
impossíveis de serem repetidas, também o acontecimento da descida do
Espírito Santo não se repete. Porém, do mesmo modo que os efeitos da
morte e da ressurreição de Jesus estão presentes em todas as épocas, tam­
bém os efeitos da descida do Espírito Santo estão presentes em todas as
épocas, e disponíveis a todas as pessoas. Sem a descida do Espírito Santo,
a obra redentora de Jesus não estaria acabada, e sua promessa não teria
sido cumprida. E mesmo a promessa do Antigo Testamento do derrama­
mento do Espírito Santo passaria em branco. Tudo, porém, se cumpriu no
dia do Pentecostes, e como cumprimento, podemos dizer que se cumpriu
de uma vez por todas. Os efeitos da vinda do Espírito Santo permanecem
na igreja; assim, não precisamos pedir ao Pai que nos dê o Espírito Santo,
ou que faça o Espírito descer, pois ele já desceu. Pedir que Deus nos dê o
Espírito Santo, seria algo semelhante a pedir que Deus faça Jesus morrer
de novo.

0 a con tecim en to do pentecostes se repetiu?


Alguém poderia objetar que, em pelo menos três ocasiões, o aconteci­
mento do Pentecostes aparentemente se repetiu na forma de uma segunda
bênção. Isso teria acontecido com os samaritanos, com os gentios em Ce-
saréia, e com os discípulos de João em Efeso. Será importante analisar esses
três acontecimentos.

Pentecostes s a m a r i t a n o ?

Em Atos 8.5-17 está descrita a conversão dos samaritanos.18 Muitos


samaritanos haviam crido no evangelho por meio da pregação do evange­
lista Filipe e, como conseqüência, foram batizados. Há poucas dúvidas de
que realmente aquelas pessoas haviam se convertido. A única coisa estra­
nha é a descida de Pedro e João para lá, Pelo que se sabe, não era comum
que os apóstolos inspecionassem a obra dos evangelistas. Então, por que
eles foram até lá? Não é difícil descobrir. Aquela era a primeira vez que o
422 Razão da esperança

evangelho tinha sido aceito fora de Jerusalém, e Lucas, que escrevia para
um grego chamado Teófilo, estava querendo mostrar como o evangelho
saiu da exclusividade do ambiente judeu, sob a supervisão dos apóstolos e
com todas as bênçãos do Espírito Santo (Ver At 1.8), e alcançava justamen­
te os samaritanos. A ocasião era realmente crucial. Os samaritanos eram
inimigos históricos dos judeus. Será que os crentes judeus iriam aceitá-los?
Ou será que a divisão entre os judeus e os samaritanos permaneceria na
igreja? Certamente foi por esse motivo que Deus reteve, talvez não o batis­
mo com o Espírito Santo, mas a manifestação visível dele, até que os após­
tolos pudessem verificar a veracidade do acontecimento. Não foi identifi­
cado nenhum problema com os samaritanos em si. Nenhuma condição foi
requerida deles, como orar ou buscar o Espírito. O problema também não
está com Filipe, que logo em seguida prega ao eunuco etíope e não foi
necessário que os apóstolos fossem verificar (ver At 8.26-40).19 O proble­
ma está no relacionamento entre Jerusalém e Samaria. Está no fato de que
Deus desejava transpor oficialmente uma inimizade histórica. Deus reteve
a manifestação visível do Espírito Santo para que os apóstolos testificassem
que a fé também estava sendo encontrada em Samaria, e assim, autenticas­
sem a obra entre os samaritanos. Deus quis que os apóstolos vissem com
os seus próprios olhos a obra no meio deles, para que nunca se dissesse que
os samaritanos não haviam sido incluídos oficialmente na igreja apostólica.
Portanto, não há razão para pensar num segundo Pentecostes, e nem o
acontecimento samaritano deve ser aceito como norma para os crentes em
todos os tempos, pois a sua diferença explica-se perfeitamente por causa da
sua situação histórica.

0 que acon tec eu e m cesaréia?


No capítulo 10 de Atos é narrada a conversão de um gentio (estrangei­
ro) ao Cristianismo, um homem chamado Cornélio, Deus direcionou Pe­
dro até esse homem, demonstrando que não fazia acepção de pessoas. Pe­
dro entrou na casa de Cornélio e começou a pregar o evangelho, A certa
altura da pregação de Pedro, precisamente quando falava sobre a remissão
dos pecados por meio do nome de Jesus (At 10.43), o Espírito Santo “caiu
sobre todos os que ouviam a palavra” (At 10.44). Depois dos samaritanos,
agora os gentios eram incorporados à igreja. A manifestação visível
intencionava autenticar a conversão deles perante as autoridades da igreja,
como havia acontecido em Samaria. Esse não é um terceiro Pentecostes, é
o batismo do Espírito a que todos os crentes têm direito e recebem quando
0 Batismo com o Espírito Santo 423

se convertem, exatamente como aqueles homens se converteram e recebe­


ram o Espírito enquanto ouviam a Palavra. Uma coisa está por demais clara
na passagem: não houve segunda benção. Bruner diz que “o propósito do
episódio de Cornélio é ensinar a igreja, de modo tão dramático quanto a
iniciação samaritana lhe ensinara, que Deus aceita todos os homens à parte
da guarda de quaisquer disposições legais, ao dar gratuitamente o dom do
Espírito Santo à fé”.20 Nesse caso, não foi preciso esperar, pois um apósto­
lo estava no comando da obra desde o início.
Algo que geralmente passa despercebido no relato ligado à conversão
da casa de Cornélio é o testemunho do apóstolo Pedro que pode ter impli­
cações muito sérias para a doutrina da Segunda Bênção. Lucas diz que che­
gou ao conhecimento dos apóstolos e dos irmãos que estavam na Judéia
que os gentios haviam recebido a Palavra de Deus (ver At 11.1). Quando
Pedro chegou em Jerusalém, os defensores da circuncisão quiseram saber a
razão de ele ter se relacionado com incircuncisos (At 11.2,3). Pedro, então,
lhes explicou como desde o princípio fora guiado por Deus, mediante a
visão do lençol, em que Deus lhe mostrou que não deveria fazer acepção de
pessoas, pois os gentios também estavam nos planos de Deus (At 11.4-10).
Ele disse que o Espírito mandou que ele acompanhasse os homens que
tinham vindo da casa de Cornélio para buscá-lo, o qual havia recebido essa
ordem de um anjo (At 11.11-13). O anjo disse a Cornélio que Pedro lhe
diria palavras mediante as quais ele e a casa dele seriam salvos (At 11.14). E
Pedro relata: “Quando, porém, comecei a falar, caiu o Espírito Santo sobre
eles, como também sobre nós, no princípio. Então, me lembrei da palavra
do Senhor, quando disse: João, na verdade, batizou com água, mas vós
sereis batizados com o Espírito Santo. Pois, se Deus lhes concedeu o mes­
mo dom que a nós nos outorgou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu
para que pudesse resistir a Deus?” (At 11.15-17; ênfase acrescentada). Algo
nessa declaração de Pedro é de grande importância. Ele diz: “Deus lhes
concedeu (aos gentios) o mesmo dom que a nós (apóstolos) nos outorgou
quando cremos no SenhorJesuf’ (ênfase acrescentada). Ele diz que a conversão
dos gentios foi semelhante à conversão dos apóstolos. Porém, quando os
apóstolos se converteram? Como diz Bruner,

Pedro aqui compara a fé dos de Cesaréia com a fé dos apóstolos no Pentecos-


te - “quando [nós] cremos” - então aqui temos a informação significante que
os apóstolos consideravam o Pentecoste como o terminus quo (ponto inicial)
da sua fé, e, portanto, a data da sua conversão. Foi somente quando recebe­
ram o Espírito que eles se sentiram capazes de dizer que acreditavam”.21
424 Razão da esperança

Portanto, nem os apóstolos receberam realmente uma segunda bênção.


Eles receberam o Espírito Santo quando se converteram, assim como to­
dos os crentes. Porém, será que isso quer dizer que os apóstolos não eram
crentes antes? Como, então, eles foram chamados por Jesus? Uma análise
da vida dos apóstolos antes e depois do Pentecostes revela muitas coisas
interessantes. A vida deles mudou radicalmente depois do Pentecostes. Ames
eles tinham muita dificuldade em entender quem era Jesus, não conseguiam
aceitar a idéia da sua morte, e esperavam que ele fosse um libertador da
nação. Depois do Pentecostes eles se tornaram fiéis defensores do reino de
Deus, não físico, mas espiritual. Entenderam realmente o significado da
redenção e foram martirizados pela causa. É impossível não perceber essa
mudança. Um modo de explicar essa diferença decorre do entendimento
do momento crucial que esses homens viviam. Eles viveram entre duas
épocas, pois passaram do Antigo para o Novo Testamento. Geralmente se
resume a diferença entre ser “crente do Antigo Testamento” e “crente do
Novo Testamento”, pela expectativa em relação à vinda de Jesus. Os cren­
tes do Antigo olhavam para o futuro, para quando o Messias viria, enquan­
to isso ofereciam sacrifícios pelos pecados. Os crentes do Novo Testamen­
to olham para trás, para o Messias que já veio, e seus pecados são perdoa­
dos no sacrifício definitivo de Cristo. De algum modo, os apóstolos passa­
ram pelas duas experiências. Foram crentes do Antigo Testamento, e de­
pois crentes do Novo Testamento. De qualquer modo, eles não tiveram
uma segunda bênção, pelo menos não como se exige hoje nos movimentos
carismáticos.

E q u an to ao s discípulos de Éfeso?

Esse incidente está descrito em Atos 19.1-7. Paulo, na sua terceira via­
gem missionária, encontrou alguns supostos discípulos na cidade de Éfeso.
Ele logo lhes perguntou se haviam recebido o Espírito Santo quando cre­
ram. Isso já é suficiente para perceber que Paulo vincula o recebimento do
Espírito Santo com o ato de crer. O apóstolo achou que havia algo estra­
nho naqueles homens, e logo a sua suspeita veio a se confirmar. Eles res­
ponderam que nunca tinham ouvido falar da existência do Espírito Santo.
Eram discípulos de João Batista e não conheciam a verdade plena a respei­
to de Jesus. Provavelmente, eles tinham sido ensinados por Apoio, o qual
passou um tempo em Éfeso. O próprio Apoio precisou ser ensinado a
respeito das verdades fundamentais do evangelho, pois conhecia apenas os
ensinos de João Batista (ver At 18.24-28). É difícil imaginar que aquelas
0 Batismo com o Espírito Santo 425

pessoas fossem realmente convertidas. Elas não sabiam que Jesus já tinha
se manifestado, e nada sabiam sobre a vinda do Espírito Santo. Não eram
convertidas, mas tornaram-se com a pregação de Paulo e receberam o dom
do Espírito Santo no mesmo instante. Portanto, o que aconteceu nesse
episódio, longe de ser uma segunda bênção, confirma que o Espírito Santo
é dado no momento da fé.

A qu estão da n o r m a
Precisamos ainda dizer uma palavra a respeito de quão normativos para
formulações doutrinárias são os escritos históricos como, por exemplo, o
livro de Atos. Lucas, ao narrar os acontecimentos daqueles dias, não estava
querendo dizer que tudo aquilo seria norma para todos os tempos. Ele
simplesmente estava narrando as coisas como haviam acontecido e do modo
como tudo podia ser visto. Se tudo o que Lucas escreveu em Atos fosse
norma, então, precisaríamos lançar sortes quando escolhêssemos um novo
pastor (ver At 1.26), e se alguém mentisse para o pastor na entrega dos
dízimos, cairia morto no chão (ver At 5.1-10). Precisamos entender que
certas coisas que a Escritura relata como tendo acontecido a outros não
precisa necessariamente acontecer conosco. Porém, há coisas, por exem­
plo, que a Escritura afirma explicitamente como sendo para todos. Entre­
tanto, essas coisas podem ser encontradas mais nas cartas, nos sermões de
Jesus, ou nas formulações doutrinárias da Bíblia, e não nas descrições dos
acontecimentos históricos. Portanto, é norma para nós o que a Bíblia nos
ensina diretamente ou de modo proposicional, e não o que ela narra sem
fazer qualquer comentário a respeito. Sempre que a Bíblia narra uma histó­
ria sem fazer qualquer comentário, devemos ir às outras partes da Bíblia
que ensinam diretamente para entender o significado desse evento. Caso
contrário, provavelmente estaremos usando a Palavra de Deus de modo
errado. Portanto, não é possível, a partir do acontecimento de Atos 2, dizer
que é a norma para todas as épocas. Até porque poucos insistiriam na ne­
cessidade das línguas de fogo ou no som do vento impetuoso. Tudo o que
Lucas colocou no livro de Atos estava dentro do seu plano de demonstrar
o crescimento da igreja desde Jerusalém até Roma, mostrando que esta
igreja impulsionada pelo Espírito Santo não podia ser detida, e seu cresci­
mento continuaria apesar de toda a oposição. A intenção de Lucas não era
narrar cada acontecimento como sendo a norma para a igreja em todas as
épocas mas, por meio do todo, mostrar como uma igreja verdadeira é vito­
riosa pelo poder do Espírito Santo.
426 Razão da esperança

Todos batizados em u m Espírito


Podemos ver os ensinos normativos a respeito do batismo com o Espírito
Santo nos escritos do apóstolo Paulo, pois em muitas passagens ele trata
doutrinariamente dessas questões. Em 1 Coríntios 12.13, o apóstolo fez uma
declaração muito importante para a consideração desse assunto: “Pois, em
um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer
gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só
Espírito”. Para entendermos bem o que Paulo está querendo dizer nesse
versículo, precisamos considerar todo o capítulo 12 de 1 Coríntios, pois nesse
capítulo, Paulo concentra o seu ensino a respeito dos dons espirituais. Seu
ponto alto é que, embora os dons sejam variados, manifestando-se de várias
maneiras, há apenas um originador deles, que é o Espírito Santo. Paulo diz:
“Ora os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo” (v.4). Entre os versí­
culos 8-10 ele exemplifica alguns dons que podem ser dados à igreja visando
à edificação, entretanto enfatiza: “Um só e o mesmo Espírito realiza todas
estas coisas, distribuindo-as como lhe apraz, a cada um, individualmente”
(v.l 1). Ou seja, ele está querendo demonstrar a unidade da igreja em meio à
diversidade de dons, exatamente porque todos esses dons são concedidos
pelo mesmo Espírito, E isso que ele enfatiza no versículo 13 ao dizer algo
como: “Somos diferentes tanto em serviços, como em dons e até mesmo em
raça, mas numa coisa todos nós, crentes, somos iguais: todos fomos batizados
pelo mesmo Espírito, portanto somos um mesmo corpo”. Certamente a re­
ferência do apóstolo ao batismo nessa passagem nada tem a ver com o batis­
mo com água, e nem mesmo com o que aconteceu no dia de Pentecostes,
pois nem Paulo nem os coríntios estavam presentes naquele dia. Mas, então,
quando Paulo e todos os crentes da cidade de Corinto foram batizados? Ne­
nhuma outra resposta pode ser coerente a não ser: No dia da conversão deles.
Não havia duas classes de crentes dentro da igreja de Corinto. Todos os que
pertenciam ao corpo de Cristo foram batizados com o Espírito Santo.

A fo rç a do "nós"
Na língua original em que o Novo Testamento foi escrito, há uma grande
ênfase na palavra “nós”. Paulo poderia ter escrito a mesma passagem sem
usá-la, e o significado seria o mesmo, mas ele fez questão de dizer “todos nós
fomos batizados em um só Espírito”. Com essa expressão, ele não admite
exceções. Todos os verdadeiros crentes foram batizados no Espírito Santo.
0 Batismo com o Espírito Sanlo 427

E esse não é o único lugar em que isso fica claro. Em Romanos 8.9
Paulo escreveu igualmente “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espí­
rito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, se alguém não tem o
Espírito de Cristo, esse tal não é dele”. A passagem é clara: se alguém não
tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo. Paulo não diz que se al­
guém não tem o Espírito é crente de segunda classe, mas que não é de
Cristo, ou seja, não é crente. Não há duas classes de crentes dentro de uma
igreja, todos os verdadeiros crentes foram batizados com o Espírito Santo;
se alguém ainda não foi batizado, não é crente, não pode fazer parte da
igreja, não pertence ao corpo de Cristo, e ainda precisa se converter. Um
outro dado que precisa ser comentado é que nenhum escritor do Novo
Testamento, em lugar algum, manda que o batismo do Espírito Santo seja
buscado. Não há uma única passagem que exorte qualquer cristão a buscar
a experiência do batismo com o Espírito Santo depois da conversão. Isso
não acontece porque é entendimento comum dos escritores bíblicos que
todos os crentes já foram batizados. Devemos considerar seriamente que
seria um grande lapso esquecer de mandar os crentes buscarem esse batis­
mo, se de fato ele devesse ser buscado. Porém, não há qualquer método,
ordem, ou mesmo sugestão para buscar ou receber o batismo com o Espí­
rito Santo. O motivo é simples: ninguém pede ou busca algo que já possui.

A fo rç a do "todos"
Voltando a 1 Coríntios, Paulo enfatiza que todos já puderam beber do
mesmo Espírito (ICo 12.13). Observe a conexão entre beber em 1 Corín­
tios 12.13 e o que foi dito em joão 7.37,38: “No último dia, o grande dia da
festa, levantou-se Jesus e exclamou: Se alguém tem sede, venha a mim e
beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios
de água viva. Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber
os que nele cressem”. Quem fosse até Jesus e bebesse receberia o Espírito
Santo quando cresse. Todos os que creram já beberam do Espírito Santo,
ou seja, já foram batizados. Isso demonstra que as palavras de Jesus não são
um desafio para que os incrédulos busquem o Espírito Santo. Elas são um
desafio para que os incrédulos busquem Jesus. Se eles têm sede, Jesus mata
a sede, e o que João e Paulo nos acrescentam é que Jesus mata a sede das
pessoas com o Espírito. Se Paulo entendesse que nem todos os crentes
tinham bebido deste Espírito, não teria usado a palavra todos, pois teria
perdido uma incrível oportunidade de mandar os que ainda não tinham
bebido de buscar esta água.
428 Razão da esperança

A fo rç a d o "um"
Do mesmo modo que a palavra “todos” traz grande ênfase sobre o
batismo como uma experiência comum de todos os crentes, também a
palavra “um” fala de uma experiência única. O ponto central de Paulo em 1
Coríntios 12.13 é que o batismo com o Espírito Santo faz a igreja ser um
corpo. Se houvesse diferentes batismos com o Espírito Santo, poderia ha­
ver mais que uma igreja. E Paulo está usando exatamente a doutrina do
batismo com o Espírito Santo para demonstrar a unidade de todos os cren­
tes no mesmo corpo, ainda que sejam membros diferentes, individuais e
com funções próprias. Logo, para Paulo, o batismo com o Espírito Santo
era um fator unificador na igreja e, em hipótese alguma, um fator
diferenciador. Ou seja, em total oposição à noção atual de que existem duas
classes de crentes separados pelo batismo com o Espírito Santo, na visão
de Paulo há uma única classe, unida justamente pelo batismo. O batismo
une ao invés de separar. Não existe uma elite e uma periferia espiritual na
igreja. Existe um corpo, que embora possua muitos membros, inclusive
com funções diferentes, tem por princípio que nenhum é superior ou infe­
rior. Todos têm a sua importância dentro do corpo (ver 12.14-26), no qual
foram ligados pelo batismo do Espírito.
Jesus batizou em um único Espírito todos os crentes num único corpo,
quer judeus, quer gregos, quer escravos quer livres. Nada poderia ser mais
enfático. De fato não há classes distintas de crentes. Em um Espírito foi
estabelecida uma só igreja. Não há crentes parciais, assim como não há
membros parciais do corpo de Cristo. Gálatas 3.26-28 afirma: “Pois todos
vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos
fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode
haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mu­
lher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”. Todos os crentes em
Cristo se tornaram membros plenos do seu corpo, que é a igreja, no exato
momento em que foram salvos, pois “há somente um corpo e um Espírito,
como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há
um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual
é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.4-6). Graças a
Deus porque a igreja dele não está dividida. Não há divisões ou classes
distintas de crentes dentro da igreja, pois todos os crentes já foram batizados
no mesmo Espírito.
0 Batismo com o Espírito Santo 429

B u sc an do o que já t em ?

Uma grande confusão tem sido causada nas igrejas por líderes que ensi­
nam a necessidade de uma segunda obra da graça. Por todos os lados, po­
demos ver a frustração e o desapontamento na vida de muitos que ainda
não conseguiram chegar a essa segunda bênção. O problema é que, quando
alguém acha que precisa buscar algo que não tem, certamente deixa de dar
importância ao que já tem. Ora, todos os crentes já possuem a obra da
graça na sua vida e também os meios para alcançar a verdadeira santidade,
mas literalmente abandonam o pássaro na mão para perseguir os que estão
voando. Deixam de valorizar o que Deus já lhes deu para buscar o que não
existe. Assim, rejeitam o maior dom que Jesus nos deu, que foi a vinda do
“outro” Consolador.

0 Espírito e o testem un ho
Finalmente, devemos considerar a missão do Espirito Santo. Ele foi
enviado para capacitar a igreja a desempenhar a tarefa de propagar o Reino
de Deus. Quando lemos o Novo Testamento, percebemos que, até o Pente­
costes, os discípulos nunca haviam entendido realmente qual era a ligação
entre Jesus e o reino de Deus. Durante todo o ministério público de Jesus,
eles esperaram pela manifestação física, política-institueional desse reino.
Lembramos que a nação de Israel era dominada pela poderosa Roma, e
freqüentemente apareciam “libertadores” que arrastavam um pouco de povo
para enfrentar suicidamente os poderosos exércitos romanos. A maior es­
perança de Israel estava na vinda do Messias, o prometido desde os tempos
mais remotos do Antigo Testamento. Todos esperavam que ele libertasse a
nação da escravidão e a estabelecesse como um reino próspero diante de
quem todos os reinos da terra teriam que se prostrar. Os discípulos acredi­
tavam que Jesus fosse o Messias, e, portanto, esperavam que ele, de alguma
maneira tomasse o poder, se assentasse no trono e restabelecesse a monar­
quia absoluta de Israel. Todas essas esperanças dos discípulos se acabaram
com a morte de Jesus, entretanto se reacenderam extraordinariamente com
a ressurreição. Em Atos 1.6, os discípulos se dirigem a Jesus e pedem: “Se­
nhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” Jesus respondeu
que a eles não seria dado conhecer tempos (cronos) e épocas (kairós) que o
Senhor havia reservado exclusivamente para ele, mas, promete mandar o
Espírito Santo que faria deles testemunhas cheias de poder em todo o mun­
430 Razão da esperança

do. Ele capacitaria a igreja a desempenhar o seu papel no mundo. A igreja


seria o instrumento para o estabelecimento do Reino de Deus, porém, seria
um reino diferente, pelo menos, até a segunda vinda de Jesus.
Ao dar essa resposta aos discípulos, Jesus estava lhes ensinando algo
muito importante. Em primeiro lugar, a restauração do reino (se é que ha­
veria alguma restauração do modo como eles esperavam) não era assunto
para aquele momento. Aproximava-se o instante da partida de Jesus, mas
ele tinha planos grandiosos para os seus discípulos, entretanto eles precisa­
vam entender o caráter do Reino de Deus que se manifestava naquele mo­
mento. Em várias ocasiões, quando interrogado, Jesus explicou que o Rei­
no de Deus já estava no meio do povo. Entendemos que ele se fazia presen­
te na pessoa, na obra e no ensino do Messias. Assim, o reino poderia estar
dentro de cada um (Lc 17.21). A expansão do reino espiritual era matéria
para aquele momento e não de um reino físico. O reino físico ficaria para o
futuro, e seria a consumação do reino espiritual. Os discípulos seriam res­
ponsáveis pela tarefa de expandir o reino espiritual, e para garantir que ela
teria êxito, lhes seria mandado o Espírito Santo como fonte de poder.
Entre os benefícios poderosos que o Espírito Santo concederia àqueles
homens estava o entendimento, a ousadia e a garantia de resultados. Basta
comparar a vida deles antes do Pentecostes com a depois, para ver como
isso fez diferença. O entendimento pode ser visto pela mudança que ocor­
reu neles. Eles não entendiam bem como funcionava a questão do Reino
de Deus naquele momento, porém, mais tarde escreveram cartas que fo­
ram e continuam sendo o fundamento teológico da igreja. Porém, não foi
apenas entendimento que o Espírito Santo concedeu aos discípulos, ele
lhes deu também ousadia. Sabemos que os discípulos foram inconstantes
durante a vida de Jesus e principalmente durante a sua prisão e execução,
Eles temiam por suas próprias vidas e preferiam se esconder dos sacerdo­
tes a enfrentá-los (ver Jo 20.19). Entretanto, que mudança poderosa se
operou na vida daqueles amedrontados discípulos! Basta dar uma olhada
no livro de Atos para ver o quanto eles foram transformados e com que
ousadia falavam sobre Jesus, a ponto de não temerem os castigos, as afron­
tas, ou a própria morte (ver At 2.14-36; 4.1-22; 5.17-42). Porém, de nada
adiantaria os discípulos receberem entendimento e ousadia, se o Espírito
Santo não autenticasse a obra deles conferindo resultado. Quando falamos
em resultado, estamos dizendo que a obra do Reino alcança resultados
visíveis. Para exemplificarmos isso, basta lembrarmos que, até o dia do
Pentecostes havia 120 pessoas que se denominavam discípulos, e naquele
mesmo dia foram acrescentadas mais três mil (At 2.41), Pouco tempo de­
0 Batismo com o Espírito Santo

pois o número subiu para cinco mil (At 4.4). Deus autenticou a obra deles
conferindo resultados.
Dessa mesma perspectiva, Jesus disse que a vinda do Espírito Santo
faria dos discípulos testemunhas dele. Quando pensamos numa testemu­
nha, precisamos ter três coisas em mente. Em primeiro lugar, diz respeito
a alguém que presenciou fatos. Uma testemunha é alguém que esteve pre­
sente e pode testificar da exatidão de certos acontecimentos. Os discípulos
possuíam essa característica. Haviam presenciado tudo o que havia aconte­
cido e, por mais extraordinário que pudesse parecer, eles tinham certeza
absoluta de que tudo era verdade. Em segundo lugar, uma testemunha é
alguém que fala a respeito do que viu. Alguém que testemunhou, mas que
não se manifesta por medo ou falta de vontade, não é uma testemunha
verdadeira. O Espírito os capacitou para testemunharem. Porém, em ter­
ceiro lugar, e talvez seja a maior característica da testemunha, ela sustenta
seu testemunho até o fim. A própria palavra “testemunho” na língua grega
é martyres da qual vem o significado moderno de mártir. O mártir está
disposto a morrer pelo que sustenta. Nada menos do que isso pode ser
chamado de testemunha, e somente a presença do Espírito Santo poderia
habilitar os amedrontados discípulos a se tornarem valorosos mártires (tes­
temunhas) do Senhor Jesus. Em resumo, para ser testemunha é necessário
experimentar, falar e sustentar o testemunho até o fim. O Espírito é a
grande testemunha de Cristo, e tornou os discípulos testemunhas também
(Jo 15.26,27).
Jesus ampliou grandemente o horizonte dos discípulos. Eles estavam
pensando num reino restrito a Israel, mas Jesus disse que pretendia que
esse reino se estendesse até aos confins da terra. E essa expansão seria feita
por meio deles. É certo que eles começariam em Jerusalém e nas circunvi­
zinhanças da Judéia, mas depois iriam até a desprezada Samaria e por fim
alcançariam os lugares mais longínquos da terra. A responsabilidade dessa
obra e a eficácia do Espírito Santo não foram outorgadas apenas aos discí­
pulos que estavam reunidos naquele dia em Jerusalém, pois se estendem a
todos os crentes até a vinda de Jesus. Esse mesmo Espírito está presente na
vida das pessoas, regenerando-as, guiando-as à verdade, dando poder para
viverem uma vida fiel, sendo poderosas testemunhas de Cristo. É muito
discutível que o Espírito esteja realmente presente nos lugares em que há
divisões, concorrência espiritual, aberrações e outras coisas semelhantes
que têm se tornado tão comuns entre os evangélicos, Essas pessoas deve­
riam voltar à Palavra de Deus, e desenvolver uma vida equilibrada, com um
objetivo de santidade e testemunho de Jesus. Por outro lado, também aque-
432 Razão da esperança

les que evitam toda manifestação espiritual deveriam reconsiderar se não


estão perdendo tempo em discussões de importância secundária, e se, por
tanto medo do falso, não estão fechando as portas para o verdadeiro Espí­
rito, que age onde quer e como quer (Jo 3.8).
34

Plenitude espiritual

A plenitude do Espírito Santo é a vida idealizada por Deus para todos


os crentes; ela é o segredo do sucesso espiritual e a garantia da vida de
santidade. Quando Deus criou o homem à sua imagem, idealizou um rela­
cionamento íntimo com ele. Esse relacionamento se quebrou por causa do
pecado, mas em Jesus Cristo o homem é restaurado ao relacionamento
pessoal com Deus, no nível mais elevado que poderia existir: passa a ser
habitação do Espírito de Deus. Assim, o homem pode desfrutar do maior
benefício que poderia ser imaginado. E é só dessa maneira que o homem
pode se sentir plenamente realizado e feliz. Sem essa plenitude, embora
convertidos, podemos ser bem pouco diferentes da maioria dos homens
que vivem neste mundo. A plenitude nos torna pessoas verdadeiramente
diferentes.
Muitas vezes, as pessoas confundem batismo do Espírito com plenitude
do Espírito. Como já vimos no estudo anterior, o batismo é uma obra única
que acontece no momento da conversão e que nunca mais se repete. Po­
rém, o batismo dá direito a um enchimento contínuo do Espírito Santo, e a
uma ação do Espírito sobre a vida do crente que pode ser aumentada ou
diminuída ao longo da vida. Chamamos o enchimento do Espírito de pleni­
tude do Espírito. De acordo com a Bíblia, essa plenitude deveria ser a vida
cristã normal, mas o pecado causa o esvaziamento espiritual. Esse esvazia­
mento, ainda que não seja definitivo, faz com que não tenhamos forças
para resistir ao mal e nem vontade de servir ao Senhor. Em contrapartida,
Deus nos dá a opção contínua desse enchimento, e isso significa que pode­
mos ser cheios tantas vezes quantas precisarmos, e de fato, sempre precisa­
mos. Ao contrário do batismo do Espírito que é uma obra realizada por
Deus, independentemente da nossa própria vontade, a Bíblia nos ensina a
orar e buscar a plenitude do Espírito Santo.
434 Razão da esperança

Uma obra co n tin u a m en te necessária


Ser cheio ou pleno do Espírito Santo deve ser a maior busca do cristão
nesta vida. A plenitude do Espírito é uma obra diferente das demais obras
do Espírito por ser condicional, experimental e repetida. O batismo, a rege­
neração e o selo do Espírito são coisas não experimentais; elas ocorrem no
momento da conversão, e de uma vez por todas. O “enchimento” do Espí­
rito, ao contrário, pode ser experimentado e repetido muitas vezes. Como
diz Stott, “quando falamos do batismo do Espírito estamos nos referindo a
uma concessão definitiva; quando falamos da plenitude do Espírito, estamos
reconhecendo que é preciso apropriar-se contínua e crescentemente deste
dom”,1 Portanto, reconhecer que o batismo é uma experiência da qual não
participamos, não faz de nós pessoas inativas, pois temos a responsabilida­
de da plenitude do Espírito. Isso leva ao entendimento de que é possível
que alguém que foi batizado com o Espírito se esvazie desse Espírito e
precise encher-se novamente. Não significa que ele será batizado outra vez,
pois o batismo é único, nem mesmo que ficará “totalmente” vazio desse
Espírito, pois Deus nunca retira totalmente o Espírito dos regenerados.

Cheios n o v a m e n t e

No dia do Pentecostes, os discípulos receberam o batismo com o Espí­


rito Santo e também receberam a plenitude do Espírito. O batismo nunca
mais se repetiu, mas a plenitude sim. Em Atos 4 está registrado o momento
em que a igreja enfrentou a primeira perseguição. Os sacerdotes prenderam
os apóstolos e os lançaram na prisão (At 4.1-3). Depois de interrogá-los,
exigiram que não falassem mais no nome de Jesus (At 4.18), e lhes fizeram
ameaças (At 4.21). Quando foram soltos, os crentes se reuniram e começa­
ram a orar. Na oração, clamaram pela soberania de Deus, e pediram: “Ago­
ra, Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que anun­
ciem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão para
fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do nome do teu santo Servo
Jesus” (At 4.29,30). Lucas relata a resposta de Deus à oração da igreja:
“Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos ficaram
cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus”
(At 4.31). Eles já haviam sido batizados com o Espírito, mas precisaram de
um novo enchimento do Espírito para poder realizar a obra de Deus, e
enfrentar os desafios ainda maiores que surgiram.
Plenitude espiritual 43 5

“Enchei-vos d o Espírito Santo"


Em Efésios 5.18 Paulo diz: “E não vos embriagueis com vinho, no qual
há dissolução, mas enchei-vos do Espírito”. A primeira coisa que notamos
na passagem é a expressão “enchei-vos”. O verbo está no imperativo, o que
significa que é uma ordem que deve ser obedecida. Como diz Stott, “a pleni­
tude do Espírito Santo não é opcional, mas obrigatória para o cristão”.2
Temos a obrigação e a responsabilidade de sermos cheios do Espírito. Outro
aspecto importante é que o verbo está no plural., o que indica que a ordem é
direcionada a todos os crentes, assim, todos têm a obrigação de serem cheios
do Espírito Santo. Não existe uma classe de crentes que tenha esse privilé­
gio, pois todos podem e devem ser cheios. Além disso, o verbo está na voz
passiva, o que demonstra que a ação de encher é do Espírito e não nossa.
Uma boa tradução poderia ser: “Deixai o Espírito vos encher”. Mas isso
não significa que sejamos passivos, pois a nossa participação é significativa,
cabe a nós buscarmos esse enchimento. E por fim, e talvez mais importan­
te de tudo, a ordem está no tempo presente, o que representa uma ação
contínua, e isso significa que devemos estar continuamente sendo cheios
do Espírito Santo. Hoekema observa que, “o imperativo presente ensina-
nos que ninguém pode, jamais, reivindicar ter sido cheio do Espírito de
uma vez por todas. Estar sendo continuamente cheio do Espírito é, de fato,
o desafio de uma vida toda e o desafio de cada dia”.3
Já dissemos que o enchimento do Espírito é algo que, por um lado é
passivo, pois o Espírito nos enche, e por outro ativo, pois temos a responsa­
bilidade de buscar esse enchimento, Algo que ainda precisa ficar claro é como
podemos ser cheios. Jesus nos dá a resposta: “Se alguém tem sede, venha a
mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior flui­
rão rios de água viva. Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de
receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora
dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (Jo 7.37-39). Jesus apro­
veitou um ritual da Festa dos Tabernáculos para ilustrar algo de imenso valor
para as pessoas. No ritual, um sacerdote saía com uma procissão e trazia
num jarro de ouro um pouco de água da piscina de Siloé, Aquela água seria
derramada no altar, e provavelmente simbolizasse o próprio derramamento
futuro do Espírito Santo, que Ezequiel e os profetas haviam anunciado (Is
44.3; Ez 39.29; J1 2.28). Talvez Jesus tenha observado aquele ritual, e, então,
aproveitando o momento, se levantou e falou de uma água melhor. Ele já
havia oferecido essa água à mulher samaritana ao lado do poço de Jacó (Jo
4.10-15). Aquela água que podia matar a sede dos sedentos era o Espírito
436 Razão da esperança

Santo. Jesus nos explica aqui como essa água pode ser conseguida. Ele dÍ2:
“Quem tem sede venha a mim e beba”, ou seja, o que é necessário é tão
somente, ir a Jesus e beber. O método divino pelo qual podemos ser cheios
do Espírito Santo é o mais simples de todos: basta ter sede, ir a Jesus e beber.
Jesus é o responsável por nos encher do Espírito, isso pode ser feito a qual­
quer momento, em qualquer lugar, e em qualquer situação, Uma vez que o
Deus onipresente está sempre conosco, não há qualquer empecilho prático
para que a nossa sede seja saciada agora mesmo. Porém, é preciso ter sede...

M a tu r i d a d e e serviço

Devemos pensar ainda no “porquê” de sermos cheios do Espírito. Basi­


camente são duas razões: maturidade e serviço. O enchimento do Espírito Santo
representa a maturidade cristã. Quando somos convertidos, a Bíblia diz que
passamos pela experiência de um “novo nascimento”. Extendendo a analo­
gia, podemos dizer que no momento da conversão somos “crianças” ou
mesmo “bebês” em Cristo. Louis Berkhof usa uma figura para ilustrar a
nossa nova condição: “Uma criança recém-nascida é, salvo exceções, perfeita
em suas partes, mas não está no grau de desenvolvimento ao qual foi destina­
da. Justamente assim, o novo homem é perfeito em suas partes, mas, na pre­
sente vida, continua imperfeito no grau de desenvolvimento espiritual”.4 O
fato é que precisamos crescer. Esse crescimento vem pelo enchimento do
Espírito Santo. Certa ocasião, Paulo teve que dizer aos Coríntios: “Eu, po­
rém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais,
como a crianças em Cristo” (ICo 3.1). Paulo havia detectado uma série de
problemas dentro da igreja de Corinto. Essa igreja estava cheia de divisões,
orgulho espiritual, fornicação e uso impróprio dos dons espirituais. Essas
atitudes demonstravam que os crentes de Corinto era crianças em Cristo.
Paulo fez uma distinção entre alguém “espiritual” e alguém “carnal” ou “cri­
ança”. Infelizmente, essa distinção existe. Devemos pensar que o espiritual é
aquele que, por meio da plenitude do Espírito, experimenta o verdadeiro
crescimento em fé, esperança e amor, enquanto o carnal é aquele cujo reser­
vatório quase sempre está muito baixo. O enchimento do Espírito nos torna
espirituais, ou seja, maduros na fé. A falta desse enchimento nos torna débeis,
e presa fácil do mundo, da carne e do diabo. Porém, não devemos entender a
expressão “carnal” no sentido de um crente de segunda classe, alguém dividi­
do entre a carne e o Espírito. Os crentes verdadeiros deixaram de ser carnais
nesse sentido, pois são novas criaturas, e não podem ser meio-novas meio-
velhas. Paulo deixou bem claro que o verdadeiro crente é aquele que já “cru-
Plenitude espiritual 437

cificou” ou “se despojou” do velho homem (Rm 6.6; Cl 3.9). O crente verda­
deiro, nesse sentido, não está na carne, mas no Espírito (Rm 8.8,9). Carne
aqui deve ser entendida como a velha natureza pecaminosa herdada de Adão.
Não é a carne no sentido de corpo humano, mas carne no sentido de escra­
vidão do pecado. Mas apesar de estar no Espírito, muitas vezes os crentes
têm atitudes carnais, e cedem à tentação da carne, pois ainda estão na carne,
no sentido de “corpo carnal decaído” (ver Fp 1.22,24).
Além da maturidade, o enchimento do Espírito Santo é necessário para
o serviço cristão. Neste ponto, é importante atentarmos para o fato de que,
desde o Antigo Testamento, o Espírito capacitava pessoas para funções
especiais na obra de Deus, como Bezalel, Sansão, Davi e outros. Lembra­
mos também que João Batista foi cheio do Espírito Santo desde o ventre
materno para realizar a tarefa de ser o precursor de Cristo (Lc 1.15-17). Os
diáconos escolhidos em Atos 6, para servir às mesas, também eram cheios
do Espírito Santo (At 6.3-5). Barnabé, que serviu junto com Paulo era ho­
mem cheio do Espírito Santo (At 11.24). Paulo não poderia ser diferente;
somos informados que, quando ele se converteu e ficou cheio do Espírito
Santo, imediatamente começou a pregar que Jesus era o Filho de Deus (At
9.17, 20). E houve momentos em que, muitos destes foram novamente
enchidos, de acordo com as necessidades da ocasião. Como já vimos, a
igreja ficou cheia do Espírito após as ameaças e, então, com mais intrepidez
anunciou o evangelho (At 4.31,32). Antes disso, Pedro já estava cheio do
Espírito Santo quando encarou o Sinédrio que o julgava (At 4.8). Estêvão
também estava cheio do Espírito Santo no momento em que foi martiriza­
do (At 7.55). E Paulo, quando repreendeu Elimas o mágico, estava nova­
mente cheio do Espírito (At 13.9). Tudo isso nos aponta para a imensa
necessidade de ser cheio do Espírito Santo para realizar o serviço na obra
de Deus, e nos lembra que o sucesso nessa obra não é “por força, nem por
poder, mas pelo meu Espírito” (Zc 4.6). E impossível realizar a obra de
Deus sem esse enchimento do Espírito, mas a grande notícia é que pode­
mos ser cheios a qualquer momento. Quem tem sede, beba.

O fru to do Espírito
A maior consequência da plenitude do Espírito é o desenvolvimento
natural do “fruto do Espírito”. Na igreja, os dons do Espírito são muito
mais populares do que o fruto do Espírito. E fácil vermos as pessoas oran­
do por dons, mas raramente vemos alguém orando pelo fruto. O motivo
438 Razão da esperança

disso também não é difícil de saber, pois os dons nos falam de algo extraor­
dinário, sugerindo poder e feitos magníficos. O fruto, por outro lado, fala
da dura rotina de evidenciar um caráter transformado. Por causa disso, como
diz Sproul, “os diversos frutos do Espírito parecem estar condenados à
obscuridade, ocultos na sombra dos dons mais preferidos”.5 Porém, se­
gundo a Bíblia, a grande evidência de que alguém está cheio do Espírito é o
fruto, e não necessariamente os dons. Isso nos lembra as palavras de Jesus:
“Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir
frutos bons. Toda árvore que não produz bom fruto é cortada e lançada ao
fogo. Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.18-20). O pró­
prio Jesus disse que a evidência de “poder” na vida das pessoas não signifi­
ca necessariamente conversão, pois, conforme ele completou: “Muitos,
naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em
teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente:
nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade” (Mt
7.22,23). Para Jesus, o critério da verdadeira conversão não é o “poder” que
alguém manifesta, mas a obediência, a vida realmente transformada. Isso
nos ensina que, mais do que manifestações espirituais, deveríamos buscar a
real transformação de vida que se demonstra por meio de atitudes práticas
de obediência à Palavra de Deus, mediante a plenitude do Espírito.
Gálatas 5.16-25 é a grande passagem da Escritura sobre as obras da
carne e o fruto do Espírito. Paulo faz importantes declarações sobre as
duas coisas e nos dá o segredo para que o fruto do Espírito seja produzido
em nós, que, como já vimos, é andar no Espírito, A palavra “andar” é um
hebraísmo que significa viver continuamente na prática de algo. A figura
bíblica do “andar” é significativa, pois aponta para a nossa realidade diária
de caminhar, deparando com novas e desafiadoras situações, para as quais
o Espírito nos conduzirá de modo seguro conforme a Escritura. Assim, a
Bíblia diz que Enoque e Noé andaram com Deus (Gn 5.24, 9.6). Isso deno­
ta toda uma vida de dedicação e fiel cumprimento aos princípios divinos.
Esse apego contínuo ao Espírito Santo que está em nós é a garantia de que
a carne perderá a guerra contra o Espírito. Por sua vez, isso indica que
quando não vivemos dessa maneira, a carne ganhará.

Guerra s e m Irégua
Uma das realidades mais vívidas do crente é a do conflito. Quando nos
convertemos, caímos de pára-quedas em meio a um imenso combate que já
Plenitude espiritual 439

vem sendo travado há muito tempo, o combate do bem contra o mal, do


Reino de Deus contra o Império das Trevas. Paulo dÍ2 que estamos em
meio a uma guerra que não é contra “o sangue e a carne, e sim contra os
principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso,
contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes” (Ef 6.12), Não há
como fugir dessa guerra. Uma vez que fomos tirados do império das trevas
(Cl 1.13), agora todo aquele império é nosso inimigo. Por isso, só nos resta
vestir a armadura, empunhar a espada e orar até não poder mais (Ef 6.11-
18). Alguém poderia esperar que a luta fosse apenas externa, mas o proble­
ma é que há uma luta dentro de nós também. Paulo diz: “Porque a carne
milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos
entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (G1
5.17). Essa é uma batalha terrível que acontece dentro de nós. O que ainda
resta da “carne” em nós se arma até os dentes a fim de resistir ao Espírito.
Como diz Sproul, “embora essa guerra seja interna e invisível, há claros
sinais externos da carnificina provocada pela batalha”.6 Ele está se referin­
do especialmente ao que acontece quando a carne vence, pois aparecem as
obras da carne. Não devemos ignorar a realidade desse combate e, nessa
batalha, somos chamados para tomar o lado do Espírito.
Paulo diz: “Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição,
impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, dis­
córdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas seme­
lhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos
preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam” (G1
5.19-21). Evidentemente, essas obras caracterizam a vida de uma pessoa
não-regenerada. Não significa que um crente não possa cair em algum des­
ses pecados ocasionalmente, porém, se essas coisas forem evidências con­
tínuas na vida de alguém, como Jesus disse, isso caracteriza natureza de
árvore má, ou seja, ausência de conversão. A lista parece falar de pecados
que têm relação com o sexo (prostituição, impureza, lascívia), com a reli­
gião (idolatria, feitiçarias), com relacionamentos (inimizades, porfias, ciú­
mes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas), e por fim com pecados
relacionados aos apetites (bebedices, glutonarias). Porém, alista não é exaus­
tiva, pois Paulo diz: “E coisas semelhantes a essas”. Quatro áreas proble­
máticas ficam bem enfatizadas: sexo, religião, relacionamentos e apetites.
São quatro áreas em que a carne gosta de se manifestar. As armas da carne
são poderosas, elas atuam em todos os nossos pontos mais fracos, e, como
Paulo diz, são conhecidas, na verdade são nossas conhecidas íntimas. São
as coisas mais comuns que encontramos no mundo, quando ligamos a TV,
440 R azão da esperança

abrimos o jornal, ou conversamos informalmente com os amigos. Até mes­


mo na igreja elas podem se manifestar. Mesmo no recanto de nossa mente,
e inclusive até nos sonhos elas tramitam e fazem guerra contra o Espírito.
Deus engrandeça o seu Espírito dentro de nós!

Tríplice re la cio nam en to

Em contrapartida, o fruto do Espírito apresenta as virtudes da vida cris­


tã autêntica. Stott vê uma tríplice divisão nesse fruto, que é composto de
nove elementos, classificando-o como: relacionamento com Deus, relacio­
namento com os outros, e relacionamento conosco mesmos.7
Em relação a Deus estão o amor, a alegria e a paz. O amor é o único que
figura tanto na lista do fruto quanto dos dons do Espírito. E o primeiro e o
mais importante nas duas listas. Paulo diz que o amor de Deus é derramado
em nosso coração pelo Espírito (Rm 5.5). Ele diz que o amor é “do Espíri­
to” (Rm 15.30) e “no Espírito” (Cl 1.8). De certo modo, exibir esse amor é
evitar todas as obras da carne (ICo 13.4-7). A alegria do Espírito é uma
marca fundamental do crente, e é uma das características principais do pró­
prio reino de Deus (Rm 14.17). Ela está relacionada à posição que o crente
tem diante de Deus. Não é uma simples euforia por alguma conquista pes­
soal, mas uma alegria sincera e profunda oriunda da certeza da salvação, e
que não diminui em meio às dificuldades e provações da vida (Fp 4.4). A
pa% que é fruto do Espírito também é bastante diferente da “paz” que o
mundo almeja. Essa paz não significa apenas ausência de conflito. O crente
pode estar em paz mesmo em meio às guerras e tribulações da vida, afinal,
a vida cristã é uma guerra externa e interna. Essa paz “excede todo o enten­
dimento” (Fp 4.7). Como diz Stott, amor, alegria e paz são características
fundamentais do cristão, “tudo o que ele faz é concebido com amor, inici­
ado com alegria e executado com paz”.8
Em relação aos outros, estão longanimidade, benignidade e bondade.
Um temperamento longânimo é caracterizado pela demora em se irritar e por
uma ausência completa de “pavio curto”, conseguindo suportar as ofensas
dos outros e evitando o ato de julgar. A característica principal da longani­
midade é a capacidade de esperar. O crente espera que as coisas mudem a
longo prazo. Ele não deseja tudo para hoje, pois consegue esperar o mo­
mento certo. A benignidade é uma virtude que tem a ver com o devido con­
trole da força. E uma característica própria de Deus que não usa a sua força
além do necessário. Alguém benigno sabe ser bondoso com os que estão
errados. A bondade tem em Deus o seu próprio padrão, pois somente Deus
Plenitude espiritual 441

é realmente bom. Quando somos convertidos, o Espírito transforma a nossa


essência má, tornando-nos imitadores de Deus. Assim, podemos demons­
trar bondade uns com os outros sem esperar nada em troca.
Em relação a nós mesmos, estão fidelidade, mansidão e domínio próprio.
Afidelidade é uma graça que o convertido recebe. Ele não é fiel aos outros, ele
é fiel a si mesmo, pois em última instância a sua fidelidade é para com Deus.
Sua preocupação não é com o que os outros vão pensar, mas sim, com o que
Deus pensa dele, e com o que ele pensa de si mesmo. Ele deseja agir coeren­
temente com o que recebeu de Deus. Não devemos confundir mansidão
com fraqueza, pois alguém que tem o poder e até o direito de revidar, mas
abre mão disso por uma questão de fé, não é um covarde, é um corajoso. E
domínio próprio é a virtude do autocontrole. Tem domínio próprio quem
recebeu o poder de controlar a língua, os apetites e até os pensamentos.

Há u m só fr u t o do Espírito
Precisamos observar que, apesar de termos listado várias características,
há na verdade, apenas um fruto do Espírito. Ainda que, geralmente falemos
em “frutos do Espírito”, a palavra em Gálatas 5.22 está no singular. Os
dons do Espírito são muitos porque caracterizam a diversidade de mem­
bros no corpo de Cristo, e, por conseguinte, ninguém tem todos os dons,
mas o fruto não tem essa função, e por isso, cada crente verdadeiro deve
produzir todo o fruto do Espírito. Todo crente tem pelo menos um dom
que lhe foi concedido soberanamente pelo Espírito, além de ter a responsa­
bilidade de buscar outros (ver ICo 12.3), porém, como diz Hoekema, “po­
demos ser salvos sem muitos dos dons do Espírito, mas não podemos ser
salvos sem o fruto do Espírito”.9 A unidade do fruto do Espírito, portanto,
nos diz que não podemos escolher virtudes, devemos evidenciá-las todas.
Uma pessoa não pode ser apenas “longânima” sem ser “fiel”. Do mesmo
modo, ela não pode evidenciar “amor” sem “domínio próprio”, A plenitu­
de do fruto do Espírito é a evidência principal da plenitude do Espírito.

Característica orgâ nica do fr u to

Uma vez que estamos falando de “fruto” também devemos pensar em


seu crescimento orgânico. Isso nos sugere duas coisas: Primeiro que ele pre­
cisa crescer, e segundo que ele cresce em certas circunstâncias. Não deve­
mos esperar que uma pessoa recém-convertida demonstre o fruto do Espí­
rito em sua forma plena, pois ele será desenvolvido gradualmente. Isso nos
442 Razão da esperança

leva à segunda observação, pois para que algo se desenvolva, precisa ser
alimentado. Usando a analogia da natureza, sabemos que uma árvore não
precisa fazer força para produzir frutos, ela precisa dispor dos elementos
necessários, como chuva, boa terra, sol, etc. Do mesmo modo, o crente não
produz fruto forçadamente, mas quando dispõe dos elementos necessários
para isso, como a pregação da Palavra, a comunhão entre os irmãos, a ora­
ção, a meditação, etc., essas santas influências do Espírito Santo produzirão
na vida do crente o bendito fruto do Espírito. Esse é o segredo do “andar no
Espírito”. E quem anda no Espírito tem a garantia de não satisfazer as con-
cupiscências da carne (G1 5.16; 25). O segredo do fruto do Espírito é andar
no Espírito. Quando vivemos sob a influência do Espírito Santo que nos é
oferecida por meio da Palavra de Deus, da oração, da comunhão e da igreja,
o fruto do Espírito crescerá e amadurecerá naturalmente em nós. O Espírito
nunca é estéril naquele em que habita, contudo, há um processo gradativo de
maturidade espiritual. O fruto do Espírito não é algo eventual ou esporádi­
co, mas gradativo e sistemático. Somos conduzidos dia a dia a frutificar no
Espírito, pois como diz Hoekema: “Se andarmos continuamente no Espíri­
to, estaremos continuamente abundando no fruto do Espírito”.10

A ilu m in a ção do Espírito


Uma vida cheia do Espírito Santo, além de ter como característica a pro­
dução do “fruto do Espírito”, será também uma vida dirigida pelo Espírito.
Uma das principais obras do Espírito dentro dos crentes é a iluminação.
Iluminação refere-se basicamente à atuação do Espírito Santo em capacitar
os homens a entenderem a Palavra de Deus. A iluminação não provê infor­
mações ou revelações além das encontradas na Bíblia; a iluminação esclarece
a Bíblia para nós. O Espírito Santo nos convence da verdade da Palavra de
Deus, e então, nos ajuda a entender e a aplicar essa verdade à nossa vida. Sem
essa iluminação do Espírito, jamais poderíamos entender a Palavra de Deus.
Calvino diz, “a carne não é capaz de tão alta sabedoria como é compreender
a Deus e o que a Deus pertence, sem ser iluminada pelo Espírito Santo”.11 A
Escritura já é luz por si mesma (SI 119.105), porém, precisamos de uma luz
adicional, porque, por natureza, estamos em trevas. Sproul diz: “O mesmo
Espírito Santo que inspira a Palavra, age para iluminar a Palavra em nosso
benefício. Ele derrama luz sobre a luz original”.12 Palmer diz: “Para adquirir
conhecimento verdadeiro não basta, pois, possuir a clara revelação de Deus;
o homem precisa também poder ver. E precisamente aqui é onde entra o
Plenitude espiritual 44 3

Espírito Santo. Dá ao homem não somente um livro infalível, mas também


olhos para que o possa ler”.13 Paulo deixa isso bem claro na sua primeira
carta aos Coríntios. Ele diz: “Mas, como está escrito: Nem olhos viram, nem
ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus
tem preparado para aqueles que o amam” (ICo 2.9). Ao contrário do que
geralmente se supõe, Paulo não está falando aqui do paraíso, mas do evange­
lho de Cristo. Esse evangelho foi revelado pelo Espírito, conforme ele decla­
ra: “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as
coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus” (ICo 2.10). Segundo
essa passagem, o Espírito nos revela o que está na mente de Deus. Ele “pers­
cruta”, no sentido de iluminar ou tornar claro para nós, o que está na mente
de Deus. O que os olhos humanos não conseguem contemplar, o Espírito
revela, “para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente”
(ICo 2.12). Obviamente, ele está se referindo à salvação pela graça. Porém,
“o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”
(ICo 2.14). Aqui está a declaração de que o homem natural, ou seja, o ho­
mem não-convertido não consegue aceitar e entender essas coisas do Espí­
rito. Falta-lhe a iluminação do Espírito, e como diz Spurgeon, “nós nunca
conheceremos nada enquanto não formos ensinados pelo Espírito Santo,
que fala mais ao coração do que ao ouvido”.14
A mesma idéia pode ser encontrada em 2 Corintios 4. Paulo diz que
rejeitava as formas astuciosas de pregação, mantendo a integridade da Pala­
vra de Deus (2Co 4.2). Ou seja, sua pregação consistia da exposição precisa
da Palavra de Deus, e não de recursos de oratória ou sabedoria secular.
Entretanto, nem todos estavam crendo na mensagem da graça, e Paulo
sabe a razão: “Mas, se o nosso Evangelho ainda está encoberto, é para os
que se perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou o
entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evan­
gelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.3,4). Aqui está
a explicação sobre por que a maioria das pessoas simplesmente não conse­
gue entender o evangelho. A razão é que estão cegas, pois Satanás as cegou.
Elas não conseguem entender o evangelho da Palavra de Deus porque lhes
falta um dispositivo interior chamado entendimento ou iluminação. A mente
delas está obscurecida (Ef 4.17,18), e só podem crer se forem iluminadas
(2Co 4.6). Essa tarefa de iluminar pertence ao Espírito Santo.
Quando o Espírito Santo age na vida de uma pessoa incrédula, ele abre
os olhos e os ouvidos espirituais dessa pessoa para que ela consiga ver e
ouvir a revelação de Deus na Escritura. Desse modo, a pessoa passa a ter
444 Razão da esperança

convicção dos seus pecados, e entenderá que a salvação somente é possível


por meio da pessoa de Cristo. Porém, a obra da iluminação não pára por aí.
Durante toda a vida, o crente terá à disposição essa obra iluminadora do
Espírito Santo que o ajudará a entender a Escritura e a discernir a vontade
de Deus. Esse fator de iluminação é de imensa ajuda para que desenvolva­
mos uma vida de sabedoria e obediência à sua vontade. Uma das coisas que
Paulo mais desejava para seus filhos espirituais era esse fator de iluminação,
pois ele disse ao Efésios que orava frequentemente por isso: “Não cesso de
dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o
Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de
sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos
do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento,
qual a riqueza da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grande­
za do seu poder para com os que cremos” (Ef 1.16-19). Mediante a ilumi­
nação do Espírito, podemos compreender as grandezas de Deus para a
nossa vida e desfrutar delas. Nesse sentido, João chamava a iluminação de
“unção que vem do Santo”, a qual é responsável pelo conhecimento que os
cristãos têm da verdade (ljo 2.20,21). João apela a essa unção a fim de
evitar que os crentes sejam enganados por falsos ensinos. Evidentemente,
precisamos dizer mais uma vez que esse conhecimento está sempre ligado
à Palavra de Deus, que é a Palavra da Verdade Qo 17.17).
Portanto, a plenitude do Espírito é a vida ideal do crente. Nada menos
do que isso deve nos satisfazer. Essa vida está acessível a todos os conver­
tidos, pois Jesus continua acessível a todos dizendo: venha e beba. Paulo
disse que, se andássemos no Espírito, nunca satisfaríamos os desejos da
carne (G1 5.16). Quando estamos cheios tio Espírito, o mundo não brilha
tanto para nós. Satanás já não é tão ameaçador, e nossa carne fica bastante
enfraquecida. Ser cheio do Espírito é a garantia de uma vida cristã autênti­
ca. Quando deixamos o pecado avultar na nossa vida, perdemos o que
temos de mais precioso, que é a comunhão com Deus mediante a plenitude
do Espírito dentro de nós. A vida do crente deve ser uma vida plena. O
fruto do Espírito e a iluminação do Espírito devem ser coisas contínuas no
processo de aperfeiçoamento. Viver abaixo desse padrão é viver uma vida
esvaziada de significado e propósito, e isto é simplesmente trágico.
35

Mantendo a plenitude

Quando olhamos para a vida da maioria dos crentes, percebemos que


eles estão bastante longe do ideal proposto pelo Novo Testamento. Uma
das objeções mais comuns, por parte daqueles que defendem que o batis­
mo do Espírito é uma segunda bênção, é que se todos os cristãos foram
batizados com o Espírito Santo, a maioria não parece ter sido.1 De fato,
especialmente nesses tempos modernos, o testemunho dos crentes tem
sido bastante negativo. Ouvimos freqüentemente falar mais de escândalos
por parte de pessoas evangélicas do que de testemunhos dignos perante a
sociedade. São jogadores de futebol crentes que brigam na frente das câmeras,
atores e atrizes de comportamento promíscuo que se declaram membros
de alguma igreja evangélica, e até mesmo pastores que fogem para o exte­
rior levando grandes quantias de dinheiro dos fiéis.
De nada adianta uma pessoa ficar cheia do Espírito, se logo perder essa
plenitude. O apóstolo Paulo diz: “E não entristeçais o Espírito de Deus, no
qual fostes selados para o dia da redenção” (Ef 4.30). Quando o Espírito
Santo é entristecido significa que o crente está resistindo à sua atuação (At
7.51) e isso é apenas um passo para que ele seja apagado (lTs 5.19). O
Espírito é apagado quando ele não produz mais efeitos na nossa vida, no
nosso comportamento, nas nossas atitudes e palavras. Isso significa que já
não temos nada de bom para oferecer às pessoas, e quem se aproximar de
nós não sentirá o gosto do sal ou o brilho da luz (Mt 5.13-16), O Espírito se
entristece quando estamos cedendo ao pecado, No contexto de “não en­
tristecer o Espírito”, Paulo está falando sobre abandonar a mentira (4.25),
refrear a ira (4.26), não dar lugar ao diabo (4.27), trabalhar em vez de furtar
(4.28), evitar palavras torpes (4.29), bem como amargura, cólera, ira, grita­
ria, blasfêmias e malícia (4,31). Esses são tipos de pecados que entristecem
o Espírito, e fazem com que percamos a plenitude. No contexto de “não
apagar o Espírito” Paulo está falando sobre o ministério pastoral (5.12,13).
Ele fala sobre a necessidade de ajudar uns aos outros (5,14,15), de estar
sempre alegre na obra de Deus (5.16), de orar sempre e ser agradecido a
446 Razão da esperança

Deus por tudo (5,17,18), de não desprezar as profecias, mas julgá-las, com
o critério da Palavra de Deus, abstendo-se de toda forma do mal (5.20,21).
Portanto, apagar o Espírito é deixar de fazer essas coisas, é não dar a devida
importância ã obra dele, esfriar na prática das virtudes cristãs, da oração e
da Palavra de Deus.

Crentes vazios?
Parece realmente que muitos daqueles que se dizem crentes nos dias de
hoje, na verdade não são. Há um excesso de pessoas nas igrejas que pare­
cem ter apenas um conhecimento exterior de Cristo. Calvino dizia que “o
conhecimento externo de Cristo é só uma crença perigosa, não importan­
do o quão eloqüentes possam ser as pessoas que o têm”.2 Quando pensa­
mos sobre isso, devemos sempre ter uma coisa em mente: Jesus ensinou
que o número dos verdadeiros convertidos não é grande. Ele disse: “Entrai
pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz para
a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta, e
apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam
com ela” (Mt 7.13,14). Esperar que, como no caso do Brasil, esse imenso
número de pessoas que freqüenta igrejas evangélicas seja todo de converti­
dos é ser demasiado crédulo e ir muito além do ensino bíblico. A Bíblia e a
História demonstram que Deus nunca ficou sem um povo, porém, igual­
mente demonstram que nem sempre, necessariamente, esse povo foi muito
grande. Quando Elias reclamou a Deus dizendo que era o último dos fiéis,
Deus lhe respondeu dizendo que havia mais sete mil que não haviam do­
brado os joelhos perante Baal (lRs 19.18). Sete mil era um número consi­
derável, mas perto da maioria apóstata, era um número pequeno.
Por outro lado, há verdadeiros convertidos que não dão o testemunho
que deveriam dar. Isso em hipótese alguma desculpa aqueles que vivem
uma vida medíocre. Aqueles que nasceram de novo herdarão a vida eter­
na, apesar de que, muitas vezes, permaneçam como crianças em Cristo,
não obstante o longo tempo de conversão que possuem. Isso não signifi­
ca que eles não foram batizados com o Espírito Santo, mas que vivem
uma vida num nível bem inferior de enchimento ao qual o batismo que
receberam lhes possibilita. De certo modo, esses crentes são os que mais
sofrem, pois ao entristecer o Espírito Santo não estão fazendo bem para
si mesmos. Ao viver uma vida medíocre, eles estão “forçando” a sua nova
natureza a um estilo de vida para o qual ela não foi criada, ou melhor,
M antendo a plenitude 447

recriada. O resultado disso só pode ser sofrimento, angústia, vergonha e


consternação, pois como diz Provérbios 8.36 “o que peca contra mim
violenta a própria alma”.
Uma coisa que deve ser observada é que falhas de caráter podem ser
achadas mesmo nos mais consagrados, E nem estamos pensando aqui na­
quele imenso número de pessoas que possui uma aparência de espirituali­
dade, mas que são os primeiros a cair em pecados grosseiros. Evidente­
mente, muitas pessoas disfarçam sua vida ímpia com uma capa de espiri­
tualidade. Percebe-se que toda evidência exagerada de espiritualidade ten­
de a esconder um comportamento impróprio. Estamos pensando aqui na­
queles que são verdadeiramente consagrados, embora nem sempre tenham
toda essa aparência de consagração. Mesmo esses podem cair em trans­
gressões, o que não significa que suas experiências não foram válidas. E
normal lembrar aqui do rei Davi. A Bíblia diz que Davi era um homem
“segundo o coração de Deus” (At 13.22). Poucos homens foram tão ínti­
mos de Deus e tão usados por ele quanto Davi. Mas Davi caiu num pecado
extremamente grave. Ele adulterou com uma mulher chamada Bate-Seba,
e ainda providenciou que o marido dela fosse morto. Quando o profeta
Natã o conscientizou do seu pecado, ele orou: “Cria em mim, ó Deus, um
coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável. Não me
repulses da tua presença, nem me retires o teu Santo Espírito. Restitui-me
a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito voluntário” (SI
51.10-12). Consciente de que havia entristecido o Espírito, ele clama ao
Senhor para que não deixe o Espírito se retirar dele, esvaziando-o. E justa­
mente com relação a esse perigo de esvaziar-se que devemos estar cons­
tantemente atentos. Não estamos dizendo que o Espírito possa se retirar
totalmente da vida de um crente verdadeiro, mas não é difícil entristecer o
Espírito dentro de nós, por isso devemos ser vigilantes. Infelizmente, há
crentes vazios, embora não totalmente, pois o Espírito nunca vai total­
mente embora, mas há crentes que vivem muito abaixo do padrão que
Deus estabeleceu para eles. Todas as vezes que agimos de maneira contrá­
ria aos ensinamentos da Palavra de Deus, entristecemos o Espírito que em
nós habita. Porém, isso não significa que o perdemos, e nem mesmo que
perdemos sua afeição, pois como diz Billy Graham: “Podemos magoar ou
irar alguém que não nos tem afeição, mas entristecer podemos só quem
nos ama”.3
448 Razão da esperança

Honrar a santidade do Espírito


A melhor maneira de evitarmos o entristecimento do Espírito é hon­
rando a santidade dele. Estamos tão acostumados ao nome “Espírito San­
to” que muitas vezes nem percebemos a presença de um adjetivo nesse
nome, o adjetivo “santo”. A palavra santo não é apenas um título, mas de
fato demonstra que antes de qualquer coisa este Espírito é santo. Se o Espí­
rito é santo, então, uma maneira de o entristecermos é não honrando a sua
santidade. Não honramos a santidade do Espírito quando a nossa própria
vida não é santa. A santidade nos fala de uma vida consagrada, separada do
mundo, absolutamente dedicada ao Senhor. Paulo diz que este Espírito nos
selou para o dia da redenção. O selo nós recebemos no instante em que
cremos (Ef 1.13,14), e é algo sinônimo ao batismo com o Espírito Santo
que já foi estudado neste trabalho. Um selo é uma marca de propriedade.
Quando um fazendeiro quer identificar o seu gado, ele coloca nos animais
uma marca, e desse modo, o gado dele se torna diferente do gado de outros
fazendeiros. O Espírito Santo é a marca que garante que somos separados
do mundo e que pertencemos a Deus. Porém, como marcados ou selados
devemos viver uma vida de separação do mundo, em busca constante pela
santidade que o Espírito pode nos conceder. Até porque, quando Paulo
chama o Espírito de “penhor” (Ef 1.13,14) está dizendo que recebemos
algo do futuro no presente. Hoje nós já temos uma amostra do que será a
nossa vida com Cristo naquele dia bendito quando ele voltar. Portanto,
Deus já coloca à nossa disposição a possibilidade de viver um pouco da­
quela vida. Nada pode ser pior para o crente do que deixar a vida do Espí­
rito para viver a “vida” do mundo.
A palavra “entristecer” vem carregada de conotação de afeição e até mes­
mo dor. Isso nos fala também da pessoalidade do Espírito Santo, pois so­
mente alguém pessoal poderia sentir algo assim, Devemos sempre lembrar
que aquele que habita em nós não é uma força impessoal, algo como uma
energia insensível, mas é uma pessoa divina. Como pessoa, ele tem senti­
mentos e vontades. Lembrar que ele é o companheiro que está conosco,
presente em todos os nossos atos, se alegrando conosco em nossas conquis­
tas e sofrendo em nossas derrotas, pode ajudar a resistir às tentações que lhe
causarão tristeza. De fato, quando não vivemos uma vida santa, estamos
causando um grande crime contra este Espírito tão santo e puro que habita
em nós e que é a fonte de todas as bênçãos de Deus para a nossa vida.
M antendo a plenitude 449

M a n t e r a unidade do Espirito
A falta de unidade ou de comunhão também entristece o Espírito Santo,
pois “sendo ele ‘um só Espírito’ (2.18; 4.4), a desunião também lhe causará
tristeza”.4 E interessante que, na bênção apostólica, a parte que cabe ao
Espírito Santo é a comunhão. Paulo diz “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o
amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós” (2Co
13.13). O Espírito Santo foi enviado para transformar a igreja num corpo,
sendo que é a sua atuação no meio da igreja que une os diferentes membros
em um só corpo. Por isso, quando a unidade ou a comunhão é quebrada, o
Espírito Santo é entristecido, pois o seu objetivo maior não é alcançado. E
nossa função nos esforçar “diligentemente por preservar a unidade do Espí­
rito no vínculo da paz” (Ef 4.3). Devemos nos esforçar por manter a unida­
de uns com os outros, pois assim não estaremos entristecendo o Espírito
Santo que habita em nós. No contexto da afirmação para não entristecer o
Espírito, Paulo estava falando sobre o mau uso da língua: “Não saia da vossa
boca nenhuma palavra torpe, e sim unicamente a que for boa para edifica­
ção, conforme a necessidade, e, assim, transmita graça aos que ouvem” (Ef
4.29). Muitas vezes, o modo como conversamos com as pessoas causa divi­
sões sérias na igreja. A palavra “torpe” era usada para frutos ou mesmo
árvores podres. Assim, se aplicada às palavras, refere-se a palavras corruptoras.
Se a nossa boca está deixando sair coisas corruptas, literalmente “podres”,
devemos nos preocupar, pois Jesus disse que a boca fala do está cheio o
coração (Mt 12.34). Mas não é só por meio de palavras que podemos causar
divisões na igreja; isso acontece também por meio de atitudes diretas ou
indiretas, tanto atos como omissões. Todas essas coisas entristecem o Espí­
rito Santo, pois ele é o Espírito da unidade e seu único interesse é fazer de
nós um corpo bem estruturado que funcione em perfeita harmonia. Ele
sabe que desse modo estaremos glorificando ao Senhor Jesus, e glorificar ao
Senhor sempre foi a principal atividade do Espírito Santo.
E impressionante ver na Palavra de Deus quantas referências existem
sobre a necessidade de unidade dentro da igreja. E, talvez, hoje este seja o
maior problema dela. Por todos os lados, vemos disputas, conflitos, pessoas
que não “se dão”. E estranho que muitas delas se digam “cheias do Espírito
Santo”, mas na prática se envolvam em todo tipo de competição, discussão e
se demonstrem tão vazias de misericórdia. O padrão do “fazer ao outro o
que deseja que faça a si mesmo” não parece ser muito respeitado nos dias
atuais, apesar de toda a euforia e busca por manifestações espirituais.
450 Razão da esperança

Preferir a verdade do Espírito


Talvez o único título comparável ao “Santo” que o Espírito possui foi o
que o próprio Jesus lhe deu, pois Jesus disse que ele é o Espírito “da verda­
de” (Jo 14.17; 15.26). Ele disse: “Quando vier, porém, o Espírito da verda­
de, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas
dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jo
16.13). A grande função do Espírito da verdade é guiar os crentes a toda
verdade, e por isso sempre que a verdade é deixada de lado, o Espírito
Santo é entristecido. Em Efésios 5.25, Paulo recomendou: “Por isso, dei­
xando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo, porque so­
mos membros uns dos outros”. A mentira fere a atuação do Espírito da
verdade em nós. Não devemos mentir uns para com os outros porque
somos membros do mesmo corpo, e assim estaremos mentindo a nós
mesmos. Se um membro prejudica o corpo, que esperanças ele tem de não
ser atingido também? Quando não honramos a verdade fazemos mal a nós
mesmos.
Sempre que a mentira é honrada, o Espírito Santo é entristecido. A men­
tira é algo próprio de Satanás, pois ele é chamado de o “pai da mentira” (Jo
8.44). Também por causa do pecado que entrou no mundo, a mentira se
tornou algo inerente à humanidade. Romanos 1.25 diz que os homens “mu­
daram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em
lugar do criador”. Mentir é uma das características mais comuns da huma­
nidade decaída, mas não deve ser da igreja, pois a igreja se compõe de
pessoas que receberam uma nova natureza, pessoas que foram revestidas
do “novo homem” e, portanto, não devem mais viver como outrora. A
verdade deve ser o objetivo de todos aqueles que foram revestidos com o
Espírito da verdade.
Entretanto, a mentira pode se apresentar de muitas formas; às vezes ela
aparece só pela metade, nas chamadas “meias-verdades”, mas quanto há
realmente de verdade numa “meia-verdade”? Sempre que não damos crédi­
to à verdade estamos preferindo a mentira. O simples fato de deixar a ver­
dade de lado já é uma posição a favor da mentira. Nesse sentido, a maior
manifestação da mentira se faz visível quando a Palavra de Deus é atacada
ou simplesmente ignorada. Jesus disse que a Palavra de Deus é a verdade
(ver Jo 17.17), e nós vivemos tempos em que, de muitas modos, esta Pala­
vra tem sido abandonada. O que está em moda nos dias atuais é um evan­
gelho destituído de Bíblia, por mais incrível e absurdo que isso possa pare-
M an kn d o a plenitude 451

cer. Existe por aí um evangelho cheio de mensagens de auto-ajuda, de en­


corajamento, de pensamento posidvo, de prosperidade, ete. Esse é um evan­
gelho sem cruz, sem arrependimento de pecado, sem desafio a uma vida
santa. Esse tipo de pregação não está de acordo eom a verdade e, por con­
seqüência, não pode agradar o Espírito da verdade, antes com toda certeza
o entristece. O Espírito Santo que inspirou a Escritura é entristecido quan­
do a Escritura não é honrada, pregada e obedecida.
A grande verdade que o Espírito Santo veio consolidar no mundo é a
verdade a respeito da salvação que há em Cristo Jesus. A melhor maneira,
portanto, de alegrarmos o Espírito é proclamarmos esta verdade como
testemunhas fiéis dela. Podemos esperar que desse modo o Espírito Santo
nos capacitará para que cumpramos com muita eficácia essa missão. Este
também é o maior interesse do Espírito Santo, e para essa finalidade ele nos
foi dado.

Andar no Espírito
Talvez o principal requisito para manter a plenitude do Espírito é o que
Paulo diz em Gálatas 5.16: “Andai no Espírito e jamais satisfareis à concu­
piscência da carne”. As vezes, pensamos que precisamos lutar contra a car­
ne para poder vencer o pecado e as tentações. A verdade é que essa luta não
é nossa. Paulo não diz “lutai contra a carne”, porque a luta é do Espírito.
Paulo diz: “Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a
carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura,
seja do vosso querer” (G1 5,17). A luta é bastante real, mas não somos
chamados para entrar nela, somos chamados para “andar no Espírito” e ele
fará o resto. Uma ilustração importante disso pode ser tirada de um conhe­
cido episódio do Antigo Testamento. Os filhos de Moabe e os filhos de
Amon se uniram contra Judá. O rei Josafá foi avisado da situação, ficou
amedrontado, e se pôs a buscar ao Senhor, ordenando que todo o povo
fizesse o mesmo (2Cr 20.1-4). Josafá se pôs em pé no meio da congregação
e invocou ao Senhor, pedindo que se lembrasse de suas antigas promessas
(2Cr 20.5-11). Josafá reconheceu sua incapacidade de vencer os inimigos
dizendo: “Porque em nós não há força para resistirmos a essa grande mul­
tidão que vem contra nós, e não sabemos nós o que fazer; porém os nossos
olhos estão postos em ti” (2Cr 20.12). A resposta do Senhor foi a seguinte:
“Dai ouvidos, todo ojudá e vós, moradores de Jerusalém, e tu, ó rei Josafá,
ao que vos diz o S e n h o r . Não temais, nem vos assusteis por causa desta
452 Razão da esperança

grande multidão, pois a peleja não é vossa, mas de Deus. Amanhã, descereis
contra eles; eis que sobem pela ladeira de Ziz; encontrá-los-eis no fim do
vale, defronte do deserto de Jeruel. Neste encontro, não tereis de pelejar;
tomai posição, ficai parados e vede o salvamento que o S e n h o r v o s dará, ó
Judá e Jerusalém. Não temais, nem vos assusteis; amanhã, saí-lhes ao en­
contro, porque o S e n h o r é convosco” (2Cr 20.15-17). No dia da batalha,
Josafá animou o povo com essas palavras: “Ouvi-me, ó Judá e vós, mora­
dores de Jerusalém! Crede no S e n h o r , vosso Deus, e estareis seguros; crede
nos seus profetas e prosperareis” (2Cr 20.20). Em seguida, ele ordenou ao
povo que se pusesse a louvar ao Senhor, e isso foi a única coisa que o povo
fez naquele dia. Enquanto o povo louvava ao Senhor, Deus destruiu seus
inimigos (2Cr 20.21-24). Não queremos alegorizar a passagem, até porque
Judá teve que lutar em outras ocasiões, e a própria vida cristã é uma luta
contras as trevas (Ef 6.12), mas essa é uma ilustração muito simples de
como funciona a batalha contra a carne. A carne é mais forte do que nós, e
por nós mesmos, jamais a venceremos. O que temos que fazer é nos colo­
car ao lado do Espírito, confiar nele, andar com ele, e ele vencerá a carne
em nosso lugar.

Bebendo da fo n te e com pa rtilha n d o dela


Jesus disse que quem bebesse da água que ele tinha para dar saciaria sua
sede, e do seu interior fluiriam rios de água viva (Jo 7.38). Quando vamos até
Jesus e bebemos dele, uma fonte começa a jorrar dentro de nós. Aqui está a
diferença que Jesus estabeleceu para a mulher samaritana, entre a água do
poço e a água que ele poderia dar. Uma pessoa que bebe da água do poço
precisa sempre voltar, pois a fonte está do lado de fora. Mas, como Jesus
disse: “Aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá
sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a
vida eterna” (Jo 4.14). Podemos dizer que todas as “águas” que esse mundo
tem para nos oferecer são “águas” que nos obrigam a beber outra vez, e
sempre precisamos estar em busca delas, pois elas não nos satisfazem defini­
tivamente, mas da água de Jesus (Espírito Santo) a própria fonte se estabele­
ce dentro de nós, então, é só uma questão de estar continuamente bebendo.
Se bebermos continuamente dessa fonte, evitaremos o esvaziamento.
Essa fonte transbordará, ou seja, estará disponível para outras pessoas
também. Como diz Stott, “nós não conseguimos conter o Espírito que rece­
bemos”.5 O fato é que a plenitude do Espírito Santo nos leva a uma vida de
M antendo a plenitude 453

dedicação e serviço ao Senhor, motivado por um desejo intenso de glorificar


a Deus e ajudar o próximo. Essa é a fonte que, quanto mais compartilhar­
mos dela, mais ela estará à nossa disposição. Portanto, a plenitude é mantida
quando bebemos da fonte, e também quando compartilhamos dessa fonte
com os outros. Quanto mais compartilharmos, mais água pura nascerá dela.
Paulo disse para não nos embriagarmos com vinho, mas nos enchermos
do Espírito e, em seguida, listou quatro conseqüências desse enchimento.
Ele fala de bênçãos espirituais desenvolvidas no relacionamento com os
outros irmãos (Ef 5.19-21). A primeira conseqüência é a de estar “falando
entre vós com salmos”. Isso nos aponta para a comunhão. Pessoas cheias
do Espírito “falam entre si”, ou seja, mantêm um relacionamento de amor
e edificação mútua. E interessante que elas não falam qualquer coisa entre
si, mas “salmos”, ou seja, algo da Palavra de Deus, a fim de edificar um ao
outro. A segunda conseqüência é o louvor do Senhor: “Entoando e louvan­
do de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais”. A passagem
nos aponta para a sinceridade, a dedicação e o modo variado como deve­
mos cantar ao Senhor, exaltando o seu nome. A pessoa que está cheia do
Espírito gosta muito de fazer isso. A terceira conseqüência é ser agradecido
a Deus: “Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de
nosso Senhor Jesus Cristo”. Alguém cheio do Espírito Santo não vive mur­
murando, mas consegue achar, mesmo nas situações mais difíceis, motivos
legítimos para agradecer ao Senhor. E a última conseqüência é a submissão:
“Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo”. Exaltação própria não
combina com plenitude do Espírito Santo. Já dissemos em outro estudo
que o Espírito não glorifica a si mesmo, então, podemos dizer que em hipó­
tese alguma ele glorifica aquele que está cheio dele. Como diz Stott, “a
marca registrada no cristão cheio do Espírito não é a auto-afirmação, mas a
auto-submissão”.6 Para ilustrar isso, Paulo continua falando da submissão
da esposa diante do marido, dos filhos perante os pais e dos empregados
perante os patrões (Ef 5,6).
Todos os crentes são tentados nesta vida, e muitos deles, em muitas
ocasiões caem e entristecem o Espírito Santo. Talvez não tenha existido um
único crente em toda a História que não tenha feito isso várias vezes ao
longo da sua vida. O Espírito Santo que está em nós é um Espírito de graça
e misericórdia. O seu convívio conosco lhe dá experiência suficiente para
conhecer a nossa estrutura e saber que, no fundo, somos pó (SI 103.14). De
certo modo, Deus não espera de nós mais do que ele próprio nos oferece.
Essa regra vale inclusive para a tentação, pois está escrito: “Não vos sobre­
veio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que
454 Razão da esperança

sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a
tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (ICo
10.13). Muito mais do que esforços humanos, na luta contra a carne, preci­
samos do pleno poder do Espírito. Portanto, não deveríamos parar de orar
enquanto Deus não nos encher dessa plenitude espiritual, especialmente se
a dvermos perdido por causa de algum pecado. Novamente nos vem à
memória o exemplo de Davi. Depois do grave pecado que cometeu, ele
incessantemente orou ao Senhor clamando pelo perdão (SI 51.1,2), confes­
sou o seu pecado, áliás, confessou sua vida de pecado (SI 51.3-5), pediu por
purificação (SI 51.7-10), implorou pela permanência do Espírito (SI 51.11),
e pela restituição do testemunho perante os outros (SI 51.12-19). A exem­
plo de Davi, nenhum de nós deveria descansar antes que Deus nos restitua
todas essas coisas.
36

Os dons do Espírito
< m m >

Deus capacitou a sua igreja com poderes extraordinários para que ela
desempenhasse, em unidade, a sua missão de proclamação e testemunho
perante o mundo, além do seu próprio crescimento espiritual. A essa
capacitação a Escritura chama de “dons do Espírito Santo”. Tristemente,
porém, a questão dos dons do Espírito tem causado divisões dentro da
igreja de Cristo. Concepções muito diferentes em relação à natureza e ao
uso desses dons causam rupturas, escândalos e confusão em muitas igrejas.
Desse modo, o que Deus deu para servir, e, por conseguinte, para unir as
pessoas, acaba sendo causa de divisões e escândalos. Essa é uma constatação
que não pode ser ignorada, porém isso não deve impedir que estejamos
interessados e que conheçamos bem o assunto dos dons espirituais. De
acordo com a Bíblia, os dons do Espírito foram dados a fim de ajudar a
igreja na tarefa de evangelização e edificação. Eles são as armas mais pode­
rosas e variadas que Deus deu à sua igreja a fim de capacitá-la para a missão
que precisa realizar neste mundo. Os capítulos 12 a 14 de 1 Coríntios nos
fornecem a compreensão a respeito deste tema. Paulo trata extensivamente
do assunto porque o mau uso dos dons era um dos grandes problemas da
igreja de Corinto (ICo 1.7). O apóstolo lista uma série de distinções e regu­
lamentações para esses dons que, interpretadas a partir do contexto histó­
rico, servem de base para a igreja em todos os tempos.

0 que são os dons


Paulo está muito interessado em que os crentes de Corinto tenham co­
nhecimento verdadeiro sobre os dons, por isso ele diz: “A respeito dos
dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes” (ICo 12.1). Tra­
ta-se de uma séria advertência. A ignorância, que literalmente significa falta
de entendimento, a respeito dos dons espirituais, pode complicar seriamen­
te o ministério e a vida cristã. Paulo deseja que os crentes sejam esclareci-
4 56 Razão da esperança

dos no que se refere ao assunto dos dons, e esse também é o nosso esforço
aqui. O primeiro princípio que aprendemos sobre os dons espirituais, por­
tanto, é que devemos ser esclarecidos e não ignorantes quanto a eles. O
melhor meio de que dispomos para isso é a Palavra de Deus; devemos,
portanto, estudá-la.
O segundo princípio que está claro na passagem é a questão da diversi­
dade dos dons e da unidade do Espírito. Paulo diz: “Ora, os dons são diver­
sos, mas o Espírito é o mesmo” (ICo 12.4). Aí encontramos a base para a
unidade e a diversidade da igreja, pois: “A igreja é uma, porque o Espírito
habita em todos os crentes. A igreja é multifaceada, porque o Espírito dis­
tribui diferentes dons aos crentes. De forma que o dom do Espírito (que
Deus nos dá) cria a unidade da igreja, e os dons do Espírito (que o Espírito
dá) diversificam o ministério da igreja”.1 Essa é uma afirmação muito im­
portante. De fato, todos os crentes são batizados no Espírito Santo, e isso
faz deles um corpo (ICo 12.13), ou seja, uma igreja única e unida. Por outro
lado, o Espírito que habita em todos os crentes distribui dons variados,
criando a diversidade de membros que, não obstante, pertencem ao mesmo
corpo. Nos versículos 4-6 (ICo 12) Paulo usa três palavras diferentes para
os dons, e também lista cada uma das três pessoas da Trindade. A primeira
palavra é charismata (v. 4), que significa “dom da graça de Deus”. A segunda
palavra é diakoniai (v. 5) que representa serviço, ou maneiras de servir. A
terceira palavra é energemata (v. 6) que significa “energias” ou poderes do
Espírito. Isso nos aponta para a origem sobrenatural dos dons, e impede
que pensemos neles como talentos naturais.
O terceiro princípio que a passagem nos ensina é a atividade soberana
do Espírito na distribuição desses dons. Paulo diz: “A manifestação do Es­
pírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso” (ICo 12.7). O
dom espiritual não é algo que conquistamos, mas algo que nos é dado ten­
do em vista um objetivo. Logo adiante Paulo conclui: “Mas um só e o
mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz,
a cada um, individualmente” (ICo 12.11). Dom não é questão de escolha
pessoal, pois o Espírito distribui a cada um como é do seu desejo. Isso
certamente tem a ver com a necessidade da igreja. Se os dons são dados
visando a um fim proveitoso, então o Espírito concede soberanamente os
dons mais úteis a um determinado lugar, e a um determinado tempo.2
O princípio seguinte que aprendemos da passagem é que os dons são
distribuídos soberanamente pelo Espírito a cada um. Significa que todos os
crentes necessariamente possuem pelos menos um dom do Espírito. Isso
fica ainda mais óbvio porque Paulo usa o corpo humano como uma analo-
Os dons do Espírito 457

gia da igreja. Ele fala da diversidade de membros que um corpo possui. Um


membro tem que ter uma função, então ter um dom e ser um crente são
coisas sinônimas. E impossível fazer parte do corpo de Cristo sem ser mem­
bro, e, portanto, é impossível ser crente sem ter pelo menos um dom.
A próxima asseveração importante é que cada pessoa tem um dom dife­
rente. Isso também parece óbvio a partir da analogia do corpo. O corpo é
composto de vários membros, e Paulo sugeriu que um corpo com apenas
um membro seria algo monstruoso (ICo 12.17). Ele faz questão de listar os
dons distinguindo entre pessoa e pessoa: “Porque a um é dada, mediante o
Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a
palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, a fé; e a outro, no
mesmo Espírito, dons de curar; a outro, operações de milagres; a outro,
profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e
a outro, capacidade para interpretá-las” (ICo 12.8-10). Hoje, certas pessoas
afirmam que, a não ser que possuamos um dom particular, no caso especí­
fico, o dom de línguas, não fomos batizados com o Espírito Santo. Como
diz Lloyd-Jones, “qualquer leitura destes três capítulos (ICo 12-14) direta­
mente condena como mentira qualquer ensino deste tipo”.3
O próximo princípio que deve ser aprendido é que os dons possuem
valores variados. Neste ponto é importante que fique claro que a diferença
de valor é entre os dons, e não entre as pessoas. Paulo claramente estabele­
ce uma relação de valor entre os dons ao dizer: “A uns estabeleceu Deus na
igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro
lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar, so­
corros, governos, variedades de línguas” (ICo 12.28). Interessantemente, o
dom que é o mais valorizado e buscado por tantas pessoas figura na lista
em último lugar. Aliás, o problema da igreja de Corinto era justamente que
estava dando um valor excessivo ao dom de línguas. Por essa razão, Paulo
precisou ensinar que esse dom não era o mais importante. No capítulo 14,
ele diz explicitamente que o dom de profecia é superior ao dom de línguas
(ICo 14.5). O que fica claro é que os dons sempre funcionam para o bem
dos outros. Como diz Calvino, “Todas as bênçãos de que gozamos são
depósitos divinos que temos recebido com a condição de distribuí-los aos
demais”.4 Qualquer que seja o dom, todos têm valor dentro do corpo de
Cristo (Ver ICo 12.21-25).
O último princípio, que é também o mais importante, é que o uso dos
dons deve ser regido pelo amor. Por essa razão, após listar os dons e dar
explicações sobre eles, Paulo diz: “Entretanto, procurai, com zelo, os me­
lhores dons. E eu passo a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo exee-
458 Ram o âa esperança

lente” (ICo 12,31). Ele introduz a realidade do amor no uso dos dons espi­
rituais, pretendendo dizer que sem o amor, por mais espetaculares que se­
jam os dons, eles de nada servirão (ICo 13.1-3).

0 d o m su p rem o
Em muitas congregações, existe uma verdadeira guerra entre os crentes
para um ser mais “espiritual” do que o outro. Todos querem demonstrar a
sua espiritualidade, contando experiências pessoais e buscando sempre al­
guma “novidade espiritual”. Quando o apóstolo Paulo listou os dons mais
comuns na igreja de Corinto, ele demonstrou que nem todos tinham o
mesmo dom (ICo 12.29,30). No entanto, enfatizou que todos têm a res­
ponsabilidade de buscar os melhores. No entendimento de Paulo, o melhor
dom não era o de línguas. Paulo preferia profecia a línguas, mas entendia
que havia algo ainda mais importante, Ele diz que o caminho do amor seria
a experiência mais espiritual que os corintios poderiam ter. Seu entendi­
mento é que, se devemos buscar os melhores dons, há um que sobrepassa
a todos: o amor - o dom supremo. O capítulo 13 de 1 Corintios geralmente
não é bem entendido pelos crentes. É comum que ele seja usado em casa­
mentos ou noivados. Porém, a intenção de Paulo, ao colocá-lo entre os dois
capítulos que tratam dos dons espirituais, é justamente demonstrar que to­
dos os dons devem ser regidos e mediados pelo amor, e que, sem o amor,
os dons se tornam coisas nulas e perigosas. Portanto, mais do que buscar
dons, Paulo deseja que os crentes busquem o amor, pois desse modo, não
correrão o risco de usarem os dons indevidamente.

O a m o r dá va lor aos do ns
O primeiro argumento de Paulo para demonstrar que o amor é o dom
supremo é que, sem ele, os demais dons são totalmente sem valor. Paulo
diz: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver
amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine. Ainda
que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a
ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montes, se
não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens
entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queima­
do, se não tiver amor, nada disso me aproveitará” (ICo 13.1-3). Ele diz que,
sem amor, alguém pode falar todas as línguas existentes, ter todo o conhe­
Os dons do Espírito 459

cimento, ter uma fé inigualável, ser o mais abnegado dos homens, mas será
tudo em vão. Percebemos que ele usa intencionalmente o exagero a fim de
demonstrar que o amor é mais importante até do que um dom elevado à
categoria máxima. Ao todo, ele lista cinco dons: línguas, profecia, conheci­
mento, fé e serviço. Porém, ele exagera esses dons ao máximo. Por isso, ele
eompara “línguas dos homens com línguas dos anjos1 profecia/conhecimento
com todos os mistérios e toda ciêncicr, fé com transportar montes; serviço com
distribuir todos os bens e morrer pelo próximo. As expressões em itálico represen­
tam o exagero que Paulo faz de cada dom. Ele quer dizer que ainda que um
dom normal fosse elevado à categoria máxima, sem amor ele seria inútil.
Porém, isso não significa que essa categoria máxima dos dons exista real­
mente. Até porque ninguém conhece todos os mistérios e toda a ciência,
ninguém realmente move montes, e ninguém fala a língua dos anjos.
O entendimento errôneo dessa passagem tem levado muitos a dizer que
as línguas que são faladas hoje nas igrejas são “línguas dos anjos”. Como
vimos, Paulo usou a expressão “línguas dos anjos” c o m o um exagero do
dom de línguas normal que é “dos homens”. Ainda deve ser observado que
as línguas descritas em Atos 2.5-11 são de povos ou nações deste mundo.
Se fosse nos nossos dias, seria o alemão, o italiano, o inglês, o russo, o
japonês, etc. A Bíblia não diz que alguém falou língua de anjos no dia de
Pentecostes, e do mesmo modo, a Bíblia não diz que o dom de línguas do
Pentecostes (nações) se transformou num dom angelical. Por fim, ainda
teríamos que fazer a seguinte pergunta: mesmo que houvesse a possibilida­
de de falar línguas dos anjos, a passagem também fala nas línguas dos ho­
mens, então, por que ninguém fala nas línguas dos homens (outras nações)
nos dias de hoje? Por que só se fala na suposta língua dos “anjos”?
Voltando ao aspecto do amor, isso basta para nos demonstrar o quanto
o amor é fundamental nessa questão dos dons. É muito fácil alguém se
ensoberbecer quando tem algum dom, e usá-lo para benefício de si mesmo
e, por essa razão, ainda que tivesse “superdons”, estes seriam totalmente
inúteis, pois estariam sendo usados sem amor. A expressão que Paulo usa
para amor no texto é ágape. Todos sabem que isso representa um amor
altruísta e totalmente desinteressado cm termos de retornos ou vantagens
pessoais. Porém, o que geralmente as pessoas não sabem é que esse amor
não diz respeito apenas a um tipo de sentimento abstrato. Como diz o Dr.
Augustus N. Lopes, “o apóstolo não está falando aqui de emoções, embora
elas, sem dúvida, possam estar presentes quando esse amor entra em ação;
ele não está falando aqui de sentimentos, mas de um estilo de vida, de uma
atitude que as pessoas decidem tomar com relação à vida, às outras pessoas
460 Razão da esperança

e a Deus”.5 Essa atitude deve ser de respeito e de não de superioridade ou


menosprezo.

0 a m o r un e os d o ns

Em seguida, Paulo fala das características desse amor enquanto atitudes.


Ele faz um tipo de personificação do amor, como se estivesse falando de
uma pessoa. Ele diz: “O amor é paciente, é benigno” (ICo 13.4). Paciência
e benignidade são as duas primeiras características do amor verdadeiro.
Calvino diz que “o objetivo primordial (de Paulo) é mostrar quão necessá­
rio ele é (o amor) na preservação da unidade da igreja”.6 E, de fato, nenhu­
ma qualidade é mais necessária na igreja para manter a unidade do que
paciência e benignidade. Quando existe amor, as pessoas são pacientes em
relação às outras; isso significa que elas não irão retrucar ou retribuir na
mesma moeda. Também não esperarão que os outros sejam perfeitos, mas
pacientemente esperarão que Deus transforme a vida deles. No uso dos
dons espirituais essa característica é necessária, porque quem trabalha espe­
rará que o resultado venha no tempo certo. Do mesmo modo, a benignida­
de levará a pessoa a usar o seu dom para benefício dos outros, desejando
carinhosamente ajudar os que precisam.
Em seguida, Paulo dá uma longa lista sobre coisas que o amor não faz.
Ele diz: “O amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece,
não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se
exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozi-
ja-se com a verdade” (ICo 13.4-6). A solução para todos os problemas que
existiam na igreja dos corintios, e para as nossas, é o amor. Ciúmes (1 Co
1.12; 3.3), ufanismo (ICo 3.18), soberba (ICo 3.21; 4.6-8), comportamento
inconveniente (ICo 5.1-13), egoísmo (ICo 11.17-22), exaltação (ICo 6.7),
ressentimento (ICo 3.3) e alegria diante da injustiça (ICo 5.1-3) eram coi­
sas extremamente comuns nessa comunidade. O amor era o remédio para
a situação trágica em que eles se encontravam. O fato mais dramático é que
eles estavam naquele estado devido ao uso indevido dos dons espirituais.
Todo tipo de competição, exaltação ou benefício próprio desaparecem quan­
do existe o amor.
O amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (ICo 13.7).
Aqui certamente está o aspecto mais altruísta do amor. Ele está disposto a
“sofrer tudo”, cuja conotação é suportar as ofensas e os ataques. Ele está
disposto a “crer em tudo”, referindo-se provavelmente ao ato de acreditar
nas pessoas, no que elas dizem, nas suas promessas de mudança ou protes-
Os dons do lispírito

tos de inocência, Ele “espera tudo”, ou seja, “confia no próximo, espera dele
o melhor”,7 E, por fim, “tudo suporta”, no sentido de que agüenta todas as
cargas, e enfrenta todas as dificuldades. O resumo disso é que o amor sem­
pre está disposto a sofrer em vez de fazer os outros sofrerem. Por isso, ele é
a grande característica do próprio Deus (ljo 4.8). Para salvar os homens,
Deus preferiu ele próprio sofrer, de modo que a Segunda Pessoa encarnou-
se e foi sacrificada na maior prova de amor que este mundo já viu (Rm 5.8).

0 a m o r p e r m a n e c e para s em p r e

Paulo ainda tem algo a dizer a fim de demonstrar que o amor é o “cami­
nho sobremodo excelente”. Seu argumento é que o amor jamais desapare­
cerá. Ele diz: “O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparece­
rão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará” (ICo 13.8), Os
dons espirituais, por mais importantes que sejam, são temporários, ou seja,
eles cumprem a uma função determinada por Deus. Quando essa função
estiver cumprida, os dons desaparecerão. Mas isso não acontecerá com o
amor, pois mesmo depois da consumação de todas as coisas e do estabele­
cimento pleno do Reino de Deus, o amor continuará existindo e sendo o
grande elo entre Deus e os seres humanos, entre estes e Deus, e entre os
próprios seres humanos. Nesse contexto, Paulo cita três dons. Ele fala do
dom de línguas, do dom de profecia, e do dom de conhecimento. Esses três
dons, como todos os demais, um dia deixariam de existir, mas o amor ja­
mais deixará de existir, por isso, o amor é mais importante do que todos
eles.8 Os dons são como os andaimes na construção de um prédio; enquan­
to o prédio está em construção, eles são necessários, mas quando o prédio
estiver concluído, eles serão removidos; do mesmo modo, quando a igreja
estiver pronta, os dons serão retirados,9 mas o amor permanecerá para
sempre, pois ele é a própria razão da existência da igreja.
Diante das evidências bíblicas e históricas, podemos dizer que o dom de
línguas teve um propósito na história da igreja, e Deus o fez desaparecer
quando esse propósito se cumpriu. Ele foi usado na implantação da igreja e
cessou com a era apostólica. Primeira Coríntios é uma das primeiras cartas
do Novo Testamento, e é a única que traz referência ao dom de línguas.
Nenhuma outra carta diz qualquer coisa sobre línguas, e isso nos leva a
pensar que, quando elas foram escritas, provavelmente o dom já tivesse
cessado. Muitos escritos pós-apostólicos dizem que o dom cessou na era
apostólica. Se acrescentarmos o fato de que não vemos nos dias de hoje as
pessoas falando línguas de outros povos, sem as terem aprendido, pode-
462 Razão da esperança

mos chegar à conclusão de que o dom de línguas realmente cessou. De


qualquer modo, se o dom for visto nos dias de hoje, no caso de alguém falar
numa língua estrangeira sem nunca a ter estudado, e sob a direção do Espí­
rito, teríamos que dizer que o dom ainda existe, porém, no momento não
temos comprovação disso.
Por fim, em defesa da superioridade do amor, Paulo faz uma compara­
ção entre a fé, a esperança e o amor. Ele diz: “Agora, pois, permanecem a
fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor” (ICo
13.13). Basta ver quantas vezes a Bíblia fala dessas três virtudes juntas (Rm
5.1-5; G1 5.5,6; Ef 1.15-18; Cl 1.4,5; lTs 1.13; 5.8; IPe 1.21,22), para perce­
ber o quanto elas são importantes. Fé é o instrumento pelo qual somos
salvos (Ef 2.8) e, sem ela, Deus não pode ser agradado (Hb 11.6). A espe­
rança fala da vida de expectativa que o crente deve ter em relação à segunda
vinda de Jesus, estando sempre preparado para ela. Porém, Paulo entende
que o amor é ainda maior, então, é porque a sua importância excede o
próprio entendimento.
Portanto, ser espiritual no nível máximo é viver e demonstrar o amor de
Deus para com os outros por meio dos nossos dons. De nada adianta ser­
mos agraciados com dons, se o amor não temperá-los. Ao final, eles serão
coisas bastante indigestas. O amor é o tempero da vida, é o dom supremo,
é aquilo que mais devemos desejar e buscar. Ele garantirá que usaremos os
outros dons da maneira devida.

Cessaram ou não cessa ra m ?


Paulo disse que os dons cessariam, mas agora precisamos pensar em quan­
do isso deve acontecer. Para muitos, todos os dons cessaram, e hoje a igreja
age pela pregação do evangelho sem sinais extraordinários. Essa posição diz
que os dons não existem mais, mas não diz necessariamente que Deus não
realiza milagres. Essa posição pode ser chamada de cessacionista. Outros de­
fendem que todos os dons estão em plena atividade no mundo, e os mesmos
dons dos apóstolos, inclusive o de ser um “apóstolo”, podem ser obtidos
pelos crentes, Essa posição é sustentada pelos carismáticos pentecostais e
neopentecostais. Primeiramente, precisamos entender que Paulo disse que
pelo menos alguns dons somente seriam removidos com a vinda de Cristo
(ICo 13.10),10 Além disso, de acordo com a Bíblia, a distribuição dos dons é
uma atividade soberana do Espírito, pois “um só e o mesmo Espírito realiza
todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individual-
Os dons do Espírito 463

mente” (ICo 12.11). Portanto, não devemos limitá-lo, nem dizendo que o
Espírito não pode mais conceder dons aos homens, nem dizendo que ele tem
que conceder todos os dons aos homens. Na linha da nossa argumentação
neste trabalho, Deus se serviu dos dons para desempenhar funções específi­
cas em épocas específicas. E só ele sabe quais são as capacitações mais ne­
cessárias para a sua igreja ao longo da História. Como os dons foram dados
para a edificação da igreja, não faz sentido que Deus os removesse antes de
a igreja estar completamente edificada. Por outro lado, Deus não é obrigado
a agir sempre da mesma maneira. Assim, entendemos que alguns dons ces­
saram e outros não, mas é difícil dizer com certeza quais são eles, cxceto
alguns que parecem bem evidentes. Também é preciso fazer alguma distin­
ção entre dom e ofício. Alguns dons foram oficializados na igreja primitiva,
como apóstolos, presbíteros e diáconos. O oficial necessariamente tinha o
dom, e, em alguns casos, eram escolhidos diretamente por Deus (apóstolos),
enquanto em outros, eram escolhidos pela igreja (presbíteros). Entendemos
que os ofícios que permanecem são aqueles que a igreja escolhe, como é o
caso de presbíteros e diáconos, e é natural pensar que, para que desempe­
nhem esses ofícios, eles precisam ter os dons correspondentes.

Breve descrição dos dons


Não podemos saber quantos dons espirituais foram dados, pois a Bíblia
não diz. Sabemos apenas que eles são bastante diversos. Toda tentativa de
fixar um número fracassa porque o Espírito concede tantos dons quantos
lhe apraz. A seguir, listaremos alguns dons que são descritos pela Bíblia,
porém, como é óbvio, a lista não é exaustiva. Talvez seja possível agrupar
todos eles em dois grandes grupos. Parece que Pedro faz isso ao dizer:
“Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons
despenseiros da multiforme graça de Deus. Se alguém fala, fale de acordo
com os oráculos dc Deus; se alguém serve, faça-o na força que Deus supre”
(IPe 4.10,11). Ele diz: “Se alguém fala”, e “se alguém serve”. Parece real­
mente que todos os dons podem ser agrupados como “dons de fala” e
“dons de serviço”.

Apóstolo ( E f 4 . l l ; ICo 12.28).


Duas vezes Paulo disse que os apóstolos ocupavam o primeiro lugar na
lista dos dons (Ef 4.11; ICo 12.28). De fato, eles foram o fundamento da
464 Razão da esperança

igreja (Ef 2.20). Os apóstolos foram chamados pessoalmente por Jesus (Lc
9.1), e lhes foram dados poderes especiais como uma confirmação do seu
apostolado (2Co 12.12; Mc 16.14-18). As qualificações para o ofício estão
listadas em Atos 1.21,22, que diz que a principal característica era a de ter
sido testemunha ocular dos feitos de Jesus desde o batismo de João até a
ascensão. O caso de Paulo é único. Ele foi um apóstolo “fora de tempo”
(ICo 15.8,9), porém, foi comissionado pessoalmente pelo Senhor (At 26.14-
16). Certamente, o dom de apóstolo não existe mais, pois foi usado por
Deus como “fundamento da igreja” (Ef 2.20). Os apóstolos eram portado­
res da revelação de Deus e foram responsáveis pela escrita do Novo Testa­
mento, e, nesse sentido, foram os sucessores dos profetas do Antigo Testa­
mento. Desde que a igreja foi estabelecida, não havia mais necessidade de­
les, até porque ninguém mais conseguiria preencher os requisitos de Atos
1.21,22. Apesar de muitos hoje se autodenominarem apóstolos, não deve­
mos aceitar as suas reivindicações, pois essas pessoas não preenchem os
requisitos bíblicos. A igreja primitiva não promoveu a eleição de sucessores
para os apóstolos à medida que eles foram morrendo. A igreja católica, por
exemplo, baseia suas doutrinas extrabíblicas na sua suposta “autoridade
apostólica”. Desse modo, doutrinas que não são encontradas na Bíblia,
como a da imaculada conceição ou a da mediação de Maria, são considera­
das verdadeiras porque os bispos dizem ter a mesma inspiração dos apósto­
los.11 Se aceitarmos que os evangélicos podem ter novas revelações, como
afirmar que os católicos estão errados? Se a Bíblia cede lugar ao subjetivis-
mo pessoal como regra, tudo é permitido. Porém, como diz Stott, “hoje,
Deus não ensina mais a igreja por meio de revelação nova, mas pela expo­
sição de sua revelação que foi completada em Cristo e na Bíblia”.12

Profeta (Rm 12.6; E f 4 . l l ; ICo 12.28).


Depois da ascensão de Jesus, principalmente no período de Atos dos
Apóstolos, enquanto o Novo Testamento ainda não havia sido escrito, Deus
se revelou por meio de dois ministérios: o ministério dos apóstolos e o
ministério dos profetas. Esses profetas devem ser considerados profetas do
Novo Testamento e, nesse sentido, distintos dos profetas do Antigo Testa­
mento, até porque não foram sucessores daqueles, pois essa tarefa coube
aos apóstolos. Os profetas do Novo Testamento foram um grupo especial
que, aparentemente falava sob a inspiração do Espírito Santo, e que recebe­
ram revelação divina a respeito do evangelho (Ef 3.5). Podemos citar Agabo
(At 11.27,28; 21.10,11), Judas, Silas (At 15.32) e outros (At 13.1). Também
Os dons do Espírito 4 65

não há mais profetas hoje como não há apóstolos, pois esses dois ofícios
foram usados por Deus na formação da igreja. Eles foram o fundamento da
igreja (Ef 2.20), num tempo em que a Bíblia ainda não estava completa. Até
a complementação do cânon, o dom de profecia foi importante para a edifi­
cação da igreja, pois o profeta recebia revelação direta de Deus e ensinava o
povo, edificando, exortando e consolando (ICo 14.3). Entretanto, mesmo
naquele tempo essas profecias deveriam ser amplamente analisadas e julgadas
(ICo 14.29; lTs 5.20,21; ljo 4.1), porque sempre havia o risco de falsos
profetas aparecerem e falarem coisas do próprio coração, para granjear o
respeito, a admiração e outras vantagens pessoais. Portanto, não é possível
dizer, à luz do Novo Testamento, que esses profetas dispunham da mesma
posição dos apóstolos.13 Parece que a função deles era interpretar o Antigo
Testamento à luz dos acontecimentos mais recentes envolvendo a vida de
Jesus, e também trazer palavras de conforto e direcionamento para a igreja.
Em alguns casos, anunciavam acontecimentos futuros (At 11.28; 21.10,11).
Uma vez que o cânon se completou, não há mais necessidade de reve­
lação direta da parte de Deus, e, portanto, não há mais necessidade de pro­
fecia. Porém, pergunta-se se não podemos falar em profecia nos dias de
hoje a partir da Palavra de Deus. Nesse ponto, devemos nos lembrar que a
palavra de Deus é a palavra profética. Ainda devemos nos lembrar que João
disse que o “testemunho de Jesus é o Espírito da Profecia” (Ap 19.10), ou
seja, o coração da profecia é anunciar a Jesus. Sempre que pregamos a Pala­
vra e anunciamos a Jesus, estamos profetizando. A profecia divina continua
em atuação no mundo por meio da Palavra de Deus, e o Espírito Santo
continua iluminando a nossa mente e o nosso coração para que possamos
discernir a vontade do Senhor,

Evangelista ( Ef 4 . l l ) .

Em Efésios 4.11 Paulo fala do dom de evangelista. Aparentemente, ha­


via uma classe de evangelistas como a dos apóstolos e profetas na igreja.
Sabemos que Filipe era um evangelista (At 21.8), e parece que Timóteo
também (2Tm 4.5), E possível, portanto, que naqueles tempos houvesse
um ofício de evangelista, o que certamente não há mais hoje. E de se espe­
rar que o dom de evangelizar continue existindo, pois o Senhor nos orde­
nou que evangelizássemos (Mt 28.18-20). Mas também esse dom deve ser
exercido mediante a Palavra de Deus, pois ela é a portadora das “boas-
novas”. De qualquer modo, evangelizar não é uma opção, uma vez que
todos têm essa responsabilidade.
466 Razão da esperança

Pastor (Ef 4.11).

Também citado em Efésios 4.11, o dom de pastorear é uma obra espiri­


tual análoga ao trabalho que o pastor tem, o de cuidar das ovelhas. Sua
função é conduzir o rebanho, cuidar dele, alimentá-lo e curá-lo (At 20.28;
lP d 5.2-5). Na passagem de Efésios, Paulo liga a obra do pastor à do mes­
tre; isso significa que o pastor deve ter também a habilidade de ensinar. E
impossível alguém ser pastor sem saber ensinar o rebanho. Esse dom to­
mava a forma de ofício quando nas igrejas eram escolhidos bispos ou pres­
bíteros (At 14.23; lTm 3.2; Tt 1.5, 7). Isso nos faz pensar que tanto o dom
quanto o ofício permanecem até os dias de hoje, uma vez que o oficial não
era escolhido diretamente por Deus, como os apóstolos, mas pela igreja,
desde que evidenciasse o dom.

M estre (E/4.11; Rm 12.7; ICo 12.28).

Se um pastor necessariamente precisa ser um mestre, aparentemente,


um mestre não precisa ser um pastor. Esse dom seria a habilidade de uma
pessoa de tornar clara e aplicar a Palavra de Deus para os outros, discernindo
as profundas verdades teológicas. Porém, essa pessoa nem sempre está en­
volvida diretamente com o trabalho de conduzir um rebanho particular,
embora é claro que isso seja altamente desejável. Certamente é um dom
extremamente necessário em todas as épocas da igreja, pois a igreja sempre
necessita entender a Palavra de Deus.

M i la g r e s ( I Co 12.10).

A Bíblia tem muitas coisas a dizer sobre milagres. Percebemos que eles
aconteceram de modo mais concentrado durante três períodos da História:
nos dias de Moisés e Josué; nos dias de Elias, Elizeu e os profetas; nos dias
de Cristo e os apóstolos. O que essas três épocas têm em comum é o fato
de que elas concentraram as maiores porções da revelação divina. Deduzi­
mos, a partir disso, que os milagres foram dados para autenticar a mensa­
gem em cada um dos períodos mencionados acima. No tempo do Novo
Testamento, os milagres aconteceram para autenticar a mensagem apostó­
lica, e assim, conseqüentemente, apontar para a autoridade da Palavra de
Deus. Alguns milagres foram execuções diretas do poder de Deus sobre a
vida de pessoas, como no caso do julgamento de Ananias e Safira (At 5.9-
11) e do julgamento de Elimas o mágico (At 13.8-11). Naqueles dias, algu­
Os dons do Espírito 467

mas pessoas tinham o dom de milagres, ou seja, podiam realizar milagres


freqüentemente. Devemos pensar que nos dias de hoje ninguém mais tem
esse dom, até porque até onde tenho conhecimento, ninguém realizou as
mesmas façanhas que os apóstolos; porém, isso não significa que Deus não
faça milagres.

Curas ( i Co 12.9)

O dom de curar é muito parecido com o dom de milagres, porém é mais


específico. O dom de curar envolvia a habilidade de uma pessoa para curar
outras pessoas de qualquer doença. A partir da atividade de Cristo e dos
apóstolos no início da pregação evangélica, percebemos que as curas eram
instantâneas (Mc 1.42); completas (Mt 14.36); permanentes (Mt 14.36); incondicio­
nais (Jo 9.25); e ilimitadas (Jo 11.44; At 9.40). Nos dias de hoje, apesar de
muitas pessoas reivindicarem o dom de cura, as características acima não
são encontradas. Uma pessoa que tem o dom de curar teoricamente pode­
ria curar sempre. Atualmente, não parece que esse dom esteja em operação,
pelo menos não dessa maneira, porém certamente Deus responde à oração
da igreja e cura os enfermos. Aparentemente, o dom de curar esteve em
atividade por um período relativamente curto, no início da igreja. Naqueles
dias, Pedro e Paulo curavam e até ressuscitavam mortos (At 9.40). Seu po­
der era tanto que a sombra de Pedro (At 5.15,16) e os aventais de Paulo
eram instrumentos de cura e libertação (At 19.12). Porém, anos mais tarde,
parece que essa operação especial do Espírito havia cessado, pois Paulo
não curou Timóteo das enfermidades do estômago, antes o mandou beber
um pouco de vinho como remédio (lTm 5.23); e até mesmo deixou um
companheiro doente em Mileto (2Tm 4.20). Isso nos leva a pensar que o
dom de curas esteve em atividade durante algum tempo, mas que cessou
depois. Deus agiu de modo extraordinário a fim de implantar a igreja, prin­
cipalmente no início, quando a necessidade era premente. Com o passar do
tempo, deixou as conversões a cargo da pregação, esperando que as pes­
soas cressem mesmo sem ver sinais e maravilhas (Jo 20.29; Hb 11.1).

Línguas ( l Co 12.28)

O livro de Atos estabelece que o dom de línguas consistia em falar idio­


mas de outros povos (At 2.6,8,11). Quando judeus estrangeiros estavam
em Jerusalém no Pentecostes, eles ouviram os discípulos proclamar as ma­
ravilhas de Deus nas suas línguas nativas (ver At 2.8-11). As línguas de Atos
468 Razão da esperança

e dos Coríntios são necessariamente as mesmas, pois a Bíblia não dá qual­


quer evidência de que o dom tenha mudado de Atos 2 para 1Coríntios 12-
14. O dom de línguas é uma capacidade de falar idiomas das nações, e é um
dom de menor importância (ICo 12.28). Além disso, nem todos os crentes
possuíam esse dom (ICo 12.29,30). Logo, a exigência para que se fale em
línguas a fim de comprovar o batismo com o Espírito Santo, como se vê
nos dias atuais, é completamente sem sentido e antibíblica. Pessoas falaram
em línguas naqueles dias quando foram batizadas com o Espírito para de­
monstrar a unidade étnica da igreja. Não apenas Israel, mas todos os povos
tinham direito à benção do Espírito Santo. Apesar de que muitos dos
batizados com o Espírito no livro de Atos falaram em línguas, isso não
aconteceu com todos (ver At 4.31; 8.17; 9.17-19). Como os dons de mila­
gres, o dom de línguas foi usado para autenticar a mensagem apostólica, e
também para facilitar o entendimento dos estrangeiros. No dia do Pente­
costes, os judeus estrangeiros ouviram os apóstolos falar sobre as grande­
zas de Deus e puderam entender cada um na sua própria língua nativa.
Línguas foram usadas como um sinal para os judeus incrédulos e, nesse
sentido, foram usadas no evangelismo. Paulo diz: “Na lei está escrito: Fala­
rei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos,
e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas constituem
um sinal não para os crentes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é
para os incrédulos, e sim para os que crêem” (ICo 14.21,22). Quando um
judeu incrédulo entrasse na igreja e ouvisse alguém falando numa língua
estrangeira, seria um sinal de que Deus estava fazendo uma obra no meio
deles (Is 28.11,12). Esse sinal poderia levar o judeu a crer no Messias.
Alguns argumentam que hoje existe um dom de línguas extáticas, base­
ados em 1 Coríntios 14.2 que diz: “Pois quem fala em outra língua não fala
a homens, senão a Deus, visto que ninguém o entende, e em espírito fala
mistérios”. Porém, essa passagem diz apenas que a pessoa que está falando
em línguas está dizendo algo misterioso para aquele que está ouvindo, por­
que essa pessoa não entende a língua, Não é um mistério para Deus pela
simples razão de que Deus entende todas as línguas. Por isso, essa pessoa,
ao falar em línguas, fala somente a Deus e não aos homens. O fato de 1
Coríntios 14,4 dizer que quem fala em línguas “a si mesmo se edifica” levou
muitos a pensar que esse dom foi dado para benefício próprio. Entretanto,
claramente a Bíblia diz que a edificação da igreja deve ser preferida à pes­
soal (14.12; Ef 4.11,12), pois os dons não são para uso próprio.
Paulo diz que falar em línguas na igreja não traz qualquer proveito (ICo
14.6), pois é como se alguém tocasse instrumentos sem saber tocar (ICo
Os dons do Espírito 46 9

14.7-9). Ele diz ainda que, quando alguém orava em outra língua, apenas o
seu espírito estava participando, e isso não era desejável, pois a mente tam­
bém precisava ser edificada (ICo 14.14-17). Essa última colocação sugere
que a pessoa que falava em línguas não tinha o entendimento do que estava
dizendo. Pensa-se que isso não se encaixe com a descrição do Pentecostes,
mas não há nada na passagem de Atos 2 que sugira que os discípulos enten­
diam o que estavam dizendo. Eram os estrangeiros que entendiam, pois
ouviram os discípulos falar nas suas línguas maternas. Também deve ser
dito que essa é a razão pela qual em Atos 2 não havia a necessidade de
intérprete, como Paulo exige em 1 Coríntios 14.27,28. Essa última ocasião
era dentro da igreja, com pessoas da mesma nacionalidade, enquanto a pri­
meira foi diante de estrangeiros que já conheciam aquelas línguas (At 2.8).
Por fim, Paulo diz que falava em muitos idiomas, porém, preferia falar na
igreja, em língua compreensível, cinco palavras do que dez mil em língua
incompreensível (ICo 14.18,19). A comparação é bastante sugestiva.
O ataque mais frontal ao uso de línguas sem interpretação na igreja é sua
afirmação de que, falar em línguas denigre o evangelho causando escândalo
entre os incrédulos (ICo 14.23). Porém, como o dom ainda estava em opera­
ção naqueles dias, Paulo o regulamenta dizendo: “No caso de alguém falar
em outra língua, que não sejam mais do que dois ou quando muito três, e isto
sucessivamente, e haja quem interprete. Mas, não havendo intérprete, fique
calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus” (ICo 14.27,28). Esta
é uma ordem que não admite objeção. Em hipótese alguma mais do que três
pessoas poderiam falar em línguas no culto. Além disso, deveriam falar uma
após a outra, e nunca simultaneamente. E ainda um terceiro requisito era
necessário: a necessidade de tradução. Sem tradução, sem línguas.

Interpretação das lí ngu as ( ICo 12.10)


Quando o dom de línguas fosse exercido dentro da igreja, ele necessita­
va de interpretação, pois não estava sendo usado com estrangeiros e sim
com compatriotas. Nesse caso, a tradução era exigida, pois desse modo a
palavra falada numa língua estrangeira poderia ser compreendida por todos
(ICo 14.27,28).

Disc ern imento de Espíritos ( ICo 12.10)


Esse dom foi dado por Deus especialmente quando, na igreja primitiva,
a revelação era direta da parte de Deus por intermédio dos profetas. Como
470 Razão da esperança

havia sempre o perigo de haver falsa profecia, o dom de discernimento


fazia com que, quando a profecia não viesse de Deus, ela pudesse ser des­
mascarada (ver ljo 4.1; ICo 14.29; lTs 5.20,21). Uma profecia poderia ter
origem carnal e até maligna, por isso, era necessário o dom de discernimen­
to, evidentemente, subserviente à Palavra de Deus.

Serviços (Rm 12.7)

Em Romanos 12.7, a palavra serviço é diakonia, uma palavra que geral­


mente é traduzida como “ministério”. Ela dá a idéia de oferecer algum
serviço aos outros a fim de ajudá-los. Nesse sentido, Timóteo e Erasto
serviram a Paulo em Efeso (At 19.22). Paulo também serviu aos crentes de
Jerusalém levando-lhes ajuda financeira (Rm 15.25). Isso sugere que o dom
de serviço tem a ver com ajudar os outros nas suas necessidades físicas.
Certamente, esse dom se tornou um ofício da igreja, pois os diáconos eram
reconhecidos nas igrejas como oficiais, e também escolhidos pela congre­
gação (lTm 3.12; Fp 1.1).

Socorros ( ICo 12.28, Rm 12.8)

A palavra “socorro” denota assistência. O significado básico da palavra é


ajudar alguém que está numa necessidade extrema. Essa ajuda pode ser dada
a pobres, doentes, viúvas, órfãos, estrangeiros, viajantes, etc. E possível que
em Romanos esse dom seja chamado de “mostrar misericórdia” (Rm 12.8),
pois “os diáconos representam Cristo no seu ofício de misericórdia, e o exer­
cício da misericórdia está vinculado ao consolo dos aflitos”.14

Fé ( ICo 12.9)

Esse dom deve ser diferenciado da fé salvadora que também é um dom.


A fé salvadora todos os crentes têm. O dom extraordinário da fé basica­
mente refere-se a um dom pelo qual a pessoa demonstra tanta fé em Deus,
que Deus realiza o desejo da pessoa (ver Mt 9.2; At 14.9). Estêvão exibia
esse dom, pois era um homem “cheio de fé” (At 6.5).

Exortação (Rm 12.8)


A pessoa que tem o dom de exortar é aquela que tem a habilidade de
animar alguém a realizar alguma coisa. Esse dom pode ser exercido a fim de
Os dons do Espírito 471

fazer alguém mudar de conduta (Jd 3), ou consolar alguém que está numa
situação difícil (At 4,36; 9,27; 15.39).

Contribuição (Rm 12.8)

Esse dom, não tão desejado pelos crentes, refere-se ao ato de dar di­
nheiro. Isso pode ser tanto no sentido de contribuir com a obra de Deus,
como ajudar pessoas individualmente que estejam em necessidade. Paulo,
pessoalmente, organizou uma campanha de doações para ajudar os crentes
de Jerusalém (ICo 16.2; 2Co 8,9; Fp 4.10-16),

A dm in is traç ão (Rm 12.8; ICo 12.28)

Na carta aos romanos, Paulo fala de “presidir” e em 1 Coríntios de


“governar”. Certamente isso se refere à capacidade que Deus dá a algumas
pessoas de dirigirem eventos e organizações religiosas, conduzindo os tra­
balhos com ordem, disciplina e objetivo, sob a direção de Deus.

Sabedoria ( I Co 12.8)
Esse é um dos dons mais importantes para a igreja, e deve ser ligado à
obra de iluminação do Espírito Santo. Tem a ver com a capacidade de dis­
cernir os tempos e as épocas, e de agir e falar de maneira sábia, de modo a
conduzir as pessoas para o entendimento da Escritura, e, conseqüentemen­
te, da vontade de Deus. Também nisso deve estar incluída a capacidade de
antever problemas e evitar erros.

C onhec im en to ( ICo 12.8)


O dom de conhecimento difere do dom de sabedoria por ser mais
empírico, e ter mais a ver com a análise cuidadosa de um assunto. Deve ser
aquilo que serve de base para o mestre quando ensina. O dom de mestre
seria o dom de ensinar, enquanto o conhecimento seria a capacidade de
conseguir o conteúdo para o ensino. Evidentemente, uma vez que a Bíblia
está completa, esse dom é exercido a partir da Bíblia.
472 Razão da esperança

0 propósito dos dons


Já vimos que o Espírito Santo concedeu dons visando a um fim provei­
toso (ICo 12.7). Algo que parece óbvio, mas que nem sempre é devida­
mente entendido, é que os dons são dados para benefícios dos outros. Eles
servem para “a edificação da igreja” (ICo 14.12). Assim, não temos a me­
nor indicação de que o Espírito Santo conceda um dom a alguém para
benefício da própria pessoa. Se o Espírito concede um dom a alguém, não
é por causa dessa pessoa em si, e nem para benefício pessoal, mas, por
causa da igreja. Por essa razão, ninguém deve usar seu dom como benefício
pessoal. Todo tipo de orgulho ou exaltação são coisas inconcebíveis no
exercício dos dons. Quando Paulo explica aos romanos como eles devem
usar os seus dons, faz questão de dizer: “Porque, pela graça que me foi
dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que
convém; antes, pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus
repartiu a cada um” (Rm 12.3). O dom nunca deveria servir para que al­
guém se ostentasse perante a congregação. O dom foi dado por causa da
congregação e para benefício dela.
Essa idéia fica muito clara também em Efésios 4. Paulo diz que, de­
pois da sua ressurreição e ascensão, o Senhor distribuiu dons aos ho­
mens, referindo-se a sua igreja (Ef 4.7-11). O Senhor fez isso “com vistas
ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a
edificação do corpo de Cristo” (Ef 4.12). Três coisas são listadas como
objetivo dos dons nesse versículo: aperfeiçoamento, serviço e edificação
dos crentes. Ou seja, Deus concedeu os dons para eliminar as imperfei­
ções, para realizar as tarefas da igreja e para fazer a igreja crescer (ser
edificada). O objetivo máximo dos benefícios que os dons trazem é levar
todos os crentes a serem semelhantes a Jesus (Ef 4.13). Significativa é a
declaração dos versículos 15,16: “Mas, seguindo a verdade em amor, cres­
çamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo,
bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação
de si mesmo em amor”. Novamente é evocada a imagem de um corpo.
Esse corpo tem uma cabeça que o governa, e todos os membros realizam
funções individuais, fazendo com que o corpo aumente a si mesmo. Essa
é uma idéia espetacular. Ela sugere que, para o bom andamento da igreja,
cada crente deve fazer a sua parte, fazendo uso do seu dom. Não é ir
longe demais imaginar que, como no corpo, se algum órgão deixa de fa-
Os dons do Espírilo 473

zer a sua parte, haverá complicações para os demais membros, isso tam­
bém acontece na igreja. Quando vemos irmãos errarem e caírem em pe­
cado, às vezes ficamos irritados com eles, mas será que nós mesmos não
temos alguma parcela de culpa? Anomalias no corpo surgem quando al­
gum órgão não realiza a função que lhe é devida, ou seja, a nossa omissão
pode ser a causa da queda de outrem.
Todos os dons do Espírito foram concedidos aos seres humanos para
benefício da obra de Deus. Os dons são variados e não precisam existir
todos ao mesmo tempo. Deus usa os dons mais necessários conforme as
épocas exigem, mas acima de tudo, conforme a sua soberania determina.
Cada crente tem um dom. Temos, portanto, a responsabilidade de saber
qual é o nosso, e usá-lo para benefício dos outros. Se os dons causam divi­
são ou competição, então, das duas uma: Ou eles são falsos, ou as pessoas
estão muito atrasadas na graça. O amor é o ponto de equilíbrio entre os
dons. A existência do amor garantirá um exercício verdadeiro e proveitoso
dos dons espirituais para a igreja de Cristo. O amor garante que a poderosa
locomotiva, que são os dons, nunca saia dos trilhos.
37

0 pecado contra o Espírito


j i i ,j i i ,
t !Ir i i P

Todos os pecados são detestáveis a Deus, mas há um mais que todos.


Deus perdoa todos os pecados, mas há um que ele não perdoa: o pecado
contra o Espírito Santo. Jesus disse: “Por isso, vos declaro: todo pecado e
blasfêmia serão perdoados aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito
não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do
homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito
Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir” (Mt
12.31,32). Segundo Marcos, o Senhor chamou esse pecado de “pecado eter­
no” (Mc 3.29). João lembra dele ao dizer: “Se alguém vir a seu irmão come­
ter pecado não para morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam
para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que rogue” (ljo
5.16). Portanto, quem comete esse pecado se coloca além do alcance da
oração e da graça de Deus. Deus estabeleceu uma lei para esse pecado:
Quem cometê-lo jamais poderá ser salvo, pois as portas do céu estarão
definitivamente trancadas para essa pessoa. Então, nada pode ser mais ter­
rível do que cometer esse pecado; e nenhuma outra atitude deverá ser mais
evitada do que essa. O caráter divino garante que ele não tem perdão. Quem
blasfemar contra o Espírito ultrapassou a fronteira até aonde vão a miseri­
córdia e a paciência divina. Porém, qual será essa atitude humana que Deus
considera uma blasfêmia contra o Espírito Santo?

0 que esse peca do não é


Antes de analisarmos o ensino bíblico sobre o que caracteriza esse peca­
do, será interessante fazermos algumas observações sobre o que esse peca­
do não é. Isso é de suprema importância, porque há muitos equívocos e
temores desnecessários entre os crentes a respeito do pecado sem perdão,
Primeiramente, precisamos dizer que o pecado sem perdão não é neces­
sariamente negar a Cristo em alguma ocasião sob pressão, Por mais estra-
476 Razão da esperança

nho que isso possa parecer, o fato de alguém, em determinado momento,


negar a Cristo, não caracteriza o pecado imperdoável, pois se fosse assim,
pessoas que negaram a Cristo no passado não poderiam se converter. E
temos o caso do próprio Pedro, que já era convertido e negou a Jesus,
porém o Senhor o restaurou. Se negar o Senhor fosse o pecado imperdoá­
vel, Pedro estaria perdido para sempre. Todos passam por muitas pressões
nesta vida, e às vezes cedem à tentação. Deve ser lembrado ainda que qual­
quer pecado é, num certo sentido, um ato de negar a Cristo. Pelo menos
naquele momento não nos importamos com Cristo, é como se não acredi­
tássemos na existência dele, ou como se não nos importássemos com o que
ele pensa. O pecado sem perdão não é um ato isolado de negar a Cristo em
nosso testemunho ou em nossas palavras, mas de rejeitá-lo para sempre.
Apesar de Jesus dizer que o pecado consiste em “blasfemar contra o
Espírito”, não devemos, contudo, pensar que isso significa fazer alguma
ofensa verbal ao Espírito. As vezes, os satanistas são ensinados a dizer pa­
lavras ofensivas ao Espírito Santo, como se assim estivessem cometendo o
pecado imperdoável. Apesar de que alguém que faz isso pode estar no ca­
minho certo para cometer o pecado, evidentemente o ato em si de ofender
o Espírito não é o pecado imperdoável. Se fosse assim, os blasfemos jamais
se converteriam ao Senhor, e Paulo disse que muitos dos crentes haviam
sido “maldizentes” antes de se converter (ICo 6.9-11), tendo sido, ele mes­
mo, anteriormente, um blasfemo (lTm 1.13).
Somos advertidos na Bíblia a não entristecer o Espírito (Ef 4.30). O
Espírito Santo pode ser entristecido por causa dos nossos pecados. Porém,
isso não é cometer o pecado imperdoável. Os pecados que cometemos
podem ser perdoados, somente a blasfêmia contra o Espírito não pode.
Vemos na Bíblia o exemplo de grandes homens de Deus como Abraão,
Davi e Moisés que pecaram e certamente entristeceram o Espírito, porém,
eles não pecaram contra o Espírito Santo, pois foram restaurados e não
perderam a salvação.
Nem mesmo o suicídio é o pecado imperdoável. Por mais que o suicídio
seja um pecado sério contra Deus, ele não é o pecado contra o Espírito Santo.
Isso quer dizer que um suicida pode ser salvo? Se o único pecado que não
tem perdão não é o suicídio, então, mesmo o suicídio pode ser perdoado por
Deus. Devemos nos lembrar que tirar a própria vida não é algo tão difícil.
Uma pessoa pode, num momento de extremo desespero, fazer o que ela
certamente não faria em outra situação. Temos um exemplo bíblico de um
suicida que aparentemente foi salvo. Trata-se de Sansão. Seu último ato neste
mundo foi derrubar uma coluna que destruiu os inimigos de Israel (Jz 16.27-
0 pecado contra o Espírito 477

30), mas esse foi um ato suicida, pois ele morreu junto. No entanto, Hebreus
o coloca entre os heróis da fé (Hb 11.32). Há casos em que deve ser dito que
o suicídio pode ser o último ato de alguém que realmente pecou contra o
Espírito Santo, como é o caso de Judas (Mt 27.5). Porém, nesse caso, o peca­
do foi cometido antes do suicídio, e não foi o suicídio em si. De qualquer
modo, o suicídio de Judas foi a consumação do pecado contra o Espírito.

O que esse pecado é


Passemos agora a considerar o que caracteriza o pecado contra o Espí­
rito Santo. No contexto em que Jesus declarou que a blasfêmia contra o
Espírito não tinha perdão, ocorreram algumas coisas bastante sugestivas
para o nosso entendimento do assunto. Jesus manifestou a si mesmo para
a nação da Israel por meio dos seus ensinos (Mt 5-7); e de seus milagres
(Mt 8-10), de modo que exibiu sinais claros de que era o Messias prometi­
do. Apesar disso, os líderes religiosos da nação não acreditavam nele, e
foram espreitá-lo a fim de investigá-lo. Eles objetivavam apanhá-lo em al­
guma falta religiosa para que pudessem acusá-lo perante as autoridades.
Mateus 12.22 narra que foi levado até Jesus um homem possesso e ele o
curou. Em resposta a isso, a multidão se perguntou: “E este, porventura, o
filho de Davi?” (Mt 12.23). A estrutura gramatical da pergunta já antecipa­
va uma resposta negativa, ou seja, a multidão não estava disposta a acredi­
tar que ele fosse o Messias, pois estava influenciada pelos líderes religiosos.
Esses líderes fizeram questão de reprovar a atitude de Jesus, conforme
Mateus relata: “Mas os fariseus, ouvindo isto, murmuravam: Este não ex­
pele demônios senão pelo poder de Belzebu, maioral dos demônios” (Mt
12.24). Nesse momento, Jesus respondeu que expulsava demônios pelo
poder do Espírito Santo (Mt 12.28). Os religiosos atribuíram ao diabo a
obra que Deus estava realizando. Foi nesse contexto que Jesus declarou
que a blasfêmia contra o Espírito não seria perdoada. Os fariseus tinham
testemunhado, visto e experimentado o ensino e os milagres de Jesus. Eram
evidências fortes demais para serem ignoradas. O Espírito lhes testemu­
nhava a verdade, mas eles mais uma vez resistiam ao Espírito (At 7.51).
Eles tinham todas as razões para crer, porém, ainda assim se recusavam.
Esse pecado não teria perdão. Portanto, a blasfêmia contra o Espírito San­
to que os fariseus estavam cometendo foi uma recusa consciente e delibe­
rada de aceitar que Jesus fosse o Messias, apesar do poderoso testemunho
do Espírito Santo.
478 Razão da esperança

Em conexão, precisamos considerar a passagem de Hebreu 6.4-6. O


texto diz: “É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados,
e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo,
e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e
caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto
que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expon­
do-o à ignomínia”. A passagem está falando de pessoas que não podem ser
renovadas para o arrependimento, ou seja, que não podem ser perdoadas,
Apesar de muitos argumentarem que esse é um caso de “perda da salva­
ção”, percebe-se que não se trata disso. Aqui também está uma explicação
sobre o pecado contra o Espírito, Como sabemos que essas pessoas não
eram convertidas? Primeiramente, porque não há qualquer referência à con­
versão delas na passagem, pois nada se fala sobre regeneração ou novo
nascimento. Em segundo lugar, porque, na continuação da passagem, o
autor declara: “Porque a terra que absorve a chuva que freqüentemente cai
sobre ela e produz erva útil para aqueles por quem é também cultivada
recebe bênção da parte de Deus; mas, se produz espinhos e abrolhos, é
rejeitada e perto está da maldição; e o seu fim é ser queimada” (Hb 6.7,8).
Ele está fazendo uma analogia entre a terra que recebe a chuva e as pessoas
que recebem as influências do Espírito. Existem pessoas que são como a
terra que recebe muita chuva, absorve a água e produz bons frutos, en­
quanto há outras pessoas que são como a terra que igualmente recebe a
chuva, absorve a água, mas produz frutos inúteis. Essa última é amaldiçoa­
da. Como a passagem está falando de frutos, convém lembrar que Jesus
disse que pelos frutos poderíamos conhecer as pessoas. Ele disse que a
árvore boa produz fruto bom e a árvore má produz fruto mau (Mt 7.16-
20), A árvore má é a pessoa não-convertida. Portanto, o autor aos Hebreus
está falando de pessoas não-convertidas, pessoas que receberam muitas
bênçãos de Deus, mas que não se converteram, pois não produziram frutos
verdadeiros. E a terceira razão para crermos nisso é porque o próprio autor
continua o texto dizendo que, em relação aos seus leitores, tinha certeza de
que eles possuíam a salvação (ver Hb 6.9). Então, até esse momento, ele
estava, evidentemente, falando dos “não-salvos”.
Essas pessoas que não podiam se arrepender foram pessoas que experi­
mentaram muito da graça de Deus. As expressões “foram iluminadas”,
“provaram o dom celestial”, “se tornaram participantes do Espírito San­
to”, “provaram a boa palavra de Deus”, e “os poderes do mundo vindou­
ro”, por certo se referem à iniciação que essas pessoas tiveram na graça de
Deus. Há pessoas que freqüentam a igreja durante muito tempo, e, conse-
0 pecado conlra o Espírito 479

qüentemente começam a desfrutar dos benefícios que Deus reparte nesse


lugar. Elas sentem a influência do Espírito Santo, recebem até curas mira­
culosas, e suas vidas começam a mudar, mas, de repente, largam tudo e
nunca mais voltam. Eram crentes? João diz: “Eles saíram de nosso meio,
entretanto não eram dos nossos, porque se tivessem sido dos nossos, te­
riam permanecido conosco” (ljo 2.19). São como a semente da parábola
que Jesus contou. Ela foi semeada, mas o diabo a roubou do coração (Mt
13.19). Talvez, tenha ido ainda mais longe, pois foi semeada, nasceu logo,
porém, não teve raiz e morreu em meio às provações (Mt 13.20-21). Ou
talvez, foi ainda mais longe, pois nasceu, cresceu, e parecia que ia vingar,
mas os espinhos da fascinação das riquezas e do cuidado deste mundo
finalmente a sufocaram (Mt 13.22). Nenhuma dessas sementes sobreviveu
para produzir frutos. Não houve conversão autêntica em nenhum dos ca­
sos, apesar de haver indícios dela. Do mesmo modo, as pessoas que o autor
aos Hebreus tem em mente no capítulo 6, experimentaram as influências
do Espírito, mas não se converteram verdadeiramente, e ao renegarem a fé,
pecaram contra o Espírito Santo.
Há ainda mais uma passagem a ser considerada. Hebreus 10.26-29 diz:
“Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos rece­
bido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos peca­
dos; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes
a consumir os adversários. Sem misericórdia morre pelo depoimento de
duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés, De quanto
mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou
aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o qual foi
santificado, e ultrajou o Espírito da graça?” Nessa passagem, encontramos
o mesmo roteiro do texto anterior: a pessoa conheceu a verdade - despre-
zou-a - jamais será salva - pecado sem perdão. Portanto, o pecado contra o
Espírito Santo é uma rebeldia que vai contra todos os fatos, uma indescul­
pável indisposição contra Deus, apesar de tudo o que viu de Deus e ouviu
dele. Como diz Berkhof, “o pecado mesmo consiste, não em duvidar da
verdade, nem numa simples negação dela, mas, sim, numa contradição dela
que vai contra a convicção da mente, a iluminação da consciência, e até
mesmo contra o veredicto do coração”.1 Como no caso dos fariseus, e do
próprio Judas Iscariotes, a pessoa tem todos os motivos para crer em Jesus,
mas ainda assim se recusa. Como ainda diz Berkhof;

É imperdoável, não porque a sua culpa transcende os méritos de Cristo, ou


porque o pecador esteja fora do alcance do poder renovador do Espírito
480 Razão da esperança

Santo, mas sim, porque há também no mundo de pecado certas leis e orde­
nanças estabelecidas por Deus e por ele mantidas. E no caso desse pecado
particular, a lei e que ele exclui toda a possibilidade de arrependimento,
cauteriza a consciência, endurece o pecador e, assim, torna imperdoável o
pecado.2

Portanto, o pecado contra o Espírito Santo é uma rebeldia total contra


Jesus que somente é possível depois de tê-lo conhecido.

A segu ra n ça do verdadeiro crente


As considerações acima nos levam indubitavelmente a concluir que o
crente verdadeiro nunca cometerá o pecado contra o Espírito Santo. De
fato, o crente desfruta da segurança da salvação, pois Deus o levou até
Jesus, e Jesus não deseja perdê-lo (Jo 6.37-40, 44). Ele é uma ovelha de
Jesus, a qual o Senhor diz que ninguém pode arrebatar da sua mão (Jo
10.27-29). Deus lhe preparou uma salvação com início, meio e fim (Rm
8.29,30). Nada pode separá-lo do amor de Deus (Rm 8.31-39). O Senhor
que começou boa obra nele vai completá-la (Fp 1.6), confirmá-lo e guardá-
lo do maligno (2Ts 3.3). O Senhor guardará o depósito dele até o último dia
(2Tm 1.12), o livrará de toda obra maligna e o levará a salvo para o reino
celestial (2Tm 4.18). Afinal, ele é guardado pelo poder de Deus (IPe 1.5).
Esta úldma expressão pode estar ligada à idéia de ser guardado para não
pecar contra o Espírito Santo. João disse que o crente é guardado para não
cometer o pecado para morte (ljo 5.17-19), como vimos no capítulo que
trata sobre a perseverança dos santos. Portanto, o crente nascido de Deus
não pode cometer o pecado imperdoável porque Deus o guarda e o livra
desse mal.
Assim, esse crente que tem medo de cometer esse pecado é o que está
mais longe de cometê-lo. Ele precisa apenas continuar vivendo a sua vida
em obediência à Palavra e na dependência de Deus, pois, como diz Palmer,
“quando uma pessoa recebe a Cristo e estuda sua Palavra, pode ter a segu­
rança de que é um filho de Deus, salvo por Jesus e que nunca se perderá”.3
Não devemos pensar, portanto, que esse pecado signifique uma perda
de salvação. Ele é muito mais um ato de apostasia. Um apóstata é alguém
que experimentou em alguma medida a fé, mas que não se firmou nela, e
depois de algum tempo abandona e irremediavelmente não deseja mais
viver com Deus. Essa pessoa nunca foi verdadeiramente salva. Esteve mui­
to perto de ser, porém, não foi. Talvez, como Judas, que esteve muito perto
0 pecado conlra o Espírito 481

do Salvador, mas longe da salvação, O pecado contra o Espírito Santo é


uma rebeldia total contra a verdade, que algumas pessoas demonstram de­
pois de conhecê-la e até experimentar muito do seu poder. Essas pessoas se
rebelam contra Deus e nunca mais voltam e nem desejam voltar para a
comunhão com ele. Os crentes verdadeiros não precisam temer cometer o
pecado contra o Espírito Santo, porque são guardados por Deus. Porém,
isso não deve nos levar ao desleixo espiritual, porque é a continuidade e a
firmeza da fé que evidenciarão a nossa salvação. As palavras de Calvino
sempre serão consoladoras para os crentes em relação ao pecado sem per­
dão: “Os eleitos se acham fora do perigo da apostasia final, porquanto o Pai
lhes deu Cristo, seu Filho, para que sejam por Ele preservados”.4
38

A igreja verdadeira

A igreja cristã que surgiu em meados do século Io é a maior e mais


duradoura instituição que este mundo já viu. São quase dois mil anos de
história e representatividade em todos os países do mundo. E impressio­
nante como, de um pequeno grupo de pescadores da Galiléia, em cerca de
quarenta anos, a igreja estava estabelecida em todas as principais cidades do
Império Romano, e inclusive na própria capital. Jamais se viu um cresci­
mento tão rápido de qualquer outra organização em toda a História, e sem
precisar levantar uma arma sequer. Evidentemente que há razões para isso,
pois “nenhuma comunhão humana pode subsistir na História sem ordem
da vida comunitária”.1 Sem dúvida, a ordem e a organização da igreja de­
sempenharam papéis importantes nesse sentido, mas apenas organização
não garante estabilidade. Algo mais deve ser encontrado atrás dessa dura­
bilidade. Somente o propósito divino pode explicar a perpetuidade da igre­
ja ao longo dos séculos. Somente o poder de Deus pôde fazer com que, do
nada, surgisse uma instituição tão firme e duradoura.
Jesus foi o primeiro a falar sobre a igreja. Em resposta à confissão de
Pedro, Jesus disse: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado
nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt
16.18,19). As palavras de Pedro, como porta-voz dos discípulos, em reco­
nhecimento do caráter de Jesus como Messias fizeram com que Jesus dis­
sesse a ele (e aos demais apóstolos) que seria o fundamento sobre o qual ele
construiria a sua igreja (cf. Ef 2.20),
Apesar da origem e do desenvolvimento grandioso da igreja, hoje vive­
mos dias difíceis. Com certeza, o Cristianismo enfrenta uma de suas piores
crises desde os dias da sua fundação. Se, por um lado, o Cristianismo nunca
foi tão famoso, poderoso e numeroso, por outro ele nunca foi tão desfacelado
e tão descaracterizado como é hoje. Em meio às revoluções e inovações
dos movimentos liberais, neo-ortodoxos, pentecostais e neo-pentecostais,
484 Razão da esperança

como saber qual é o rumo a seguir? Diante de milhares de novas igrejas que
surgem a todo momento, como saber qual é a igreja verdadeira? Neste
capítulo, queremos investigar os elementos bíblicos que compõem a igreja
verdadeira.

Definição de igreja
A igreja é o povo que pertence ao Senhor, e que tem sido resgatado pelo
sangue de Cristo. Na Bíblia, são usadas várias imagens e expressões para
definir ou descrever a igreja. Ela é o “Corpo de Cristo”, a “família de Deus”,
o “povo de Deus”, “os eleitos”, a “noiva de Cristo”, a “companhia dos
redimidos”, a “comunhão dos santos”, o “novo Israel”, entre outros no­
mes.2 Nossa palavra portuguesa - “igreja” - é praticamente uma translite-
ração do termo grego ekklesia que era usado para uma assembléia popular
(ver At 19.32, 39,40). No Novo Testamento, a grande maioria das ocorrên­
cias da palavra aparece nas cartas de Paulo (46 vezes de um total de 114).
Foi especialmente Paulo quem formou esse conceito, embora João o use
amplamente no Apocalipse (vinte vezes).
Berkhof define o termo “igreja” da seguinte maneira:

A palavra serve para denotar a totalidade do corpo, no mundo inteiro, da­


queles que professam exteriormente a Cristo e se organizam para fins de
culto, sob a direção de oficiais para isso designados. Porém, em seu sentido
mais compreensivo, a palavra se refere a todo corpo de fiéis, quer no céu
quer na terra, que se uniram ou se unirão a Cristo como seu Salvador.3

Nessa definição, há uma distinção entre o aspecto local e o aspecto uni­


versal da igreja. Há, por certo, também uma distinção entre a igreja visível e
a igreja invisível. A primeira consiste daqueles que fizeram uma pública
profissão de fé, foram batizados e arrolados como membros de uma igreja
organizada. Porém, nem todos os que estão nessa igreja fazem parte da
igreja de Cristo. Jesus disse que o joio cresceria junto com o trigo (Mt 13.24-
30), e compara a igreja dentro do Reino de Deus a uma rede que arrasta
toda classe de peixes, os quais não são separados até que estejam na praia.
Nunca será possível encontrar uma igreja visível que seja totalmente pura,
limpa e sem nenhuma falta. A igreja invisível, no entanto, é totalmente
pura, limpa e sem falta. Esta é a igreja como Deus a vê, a Noiva de Cristo.
E composta de todos os eleitos que são verdadeiros crentes, independente-
A igreja verdadeira 485

mente de denominação. Na Confissão de Fé de Westminster, “a igreja Ca­


tólica ou Universal, que é invisível, consiste do número total dos eleitos que
já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só
corpo, sob Cristo, seu Cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele
que enche tudo em todas as coisas”.4
No Novo Testamento, muitos títulos são dados à igreja. Ela é chamada
de “igreja de Deus” (ICo 1.2), “lavoura de Deus” (ICo 3.9), “edifício de
Deus” (ICo 3.9), “santuário de Deus” (ICo 3.16), Corpo de Cristo” (Ef
1.22,23), “coluna e baluarte da Verdade” (lTm 3.15).5 Essas expressões
apontam para o significado e para a missão da igreja. Uma coisa não pode
ser vista separada da outra. A igreja é uma instituição “comissionada”.

A igreja e o Antigo Testamento


Um problema que sempre existe quando se estuda o surgimento da igreja
é quanto ao seu papel em relação a Israel e às promessas do Antigo Testa­
mento. Mesmo na igreja primitiva, o papel da igreja em relação às promessas
do Antigo Testamento talvez não tenha ficado tão claro a princípio, mas, aos
poucos, a comunidade primitiva começou a entender que as promessas refe­
rentes a Israel estavam se cumprindo na igreja. No início, a igreja era reco­
nhecida como um grupo distinto dentro da religião maior que era o Judaís­
mo. Porém, logo as coisas começaram a mudar. As diferenças em relação ao
Judaísmo começaram a se acentuar e, à medida que o grupo crescia, havia
necessidade de uma organização maior, Foi o Pentecostes que começou a
mostrar que as promessas de Deus se cumpririam na igreja, e não no Israel-
nação. Como já estudamos, os profetas tinham previsto um dia em que Deus
derramaria de seu Espírito amplamente sobre as pessoas. No Antigo Testa­
mento, essa “unção” era prerrogativa daqueles que desempenhavam os três
ofícios como agentes mediadores: reis, profetas e sacerdotes. Porém, como
Joel anteviu, o derramamento generalizado do Espírito resultaria num reavi-
vamento do espírito profético e da revelação (J12.28,29)/' Essa promessa do
Espírito se cumpriu não na nação toda, mas sobre um grupo de pessoas que
creram que Jesus era o Messias. A ekkksia nasceu no Pentecostes, quando o
Espírito Santo foi derramado sobre o pequeno grupo de discípulos judeus
de Jesus. Porém, o que é mais impressionante é que esse grupo recebeu o
Espírito da maneira como os profetas, os sacerdotes e os reis recebiam no
Antigo Testamento. A implicação disso é que, agora, a comunidade desem­
penhará os ofícios perante a sociedade, profetizando a Palavra de Deus, in-
486 Razão da esperança

tercedendo pelas pessoas e proclamando o reino e a soberania de Deus,


enquanto demonstra esse reinado nela mesma (Ap 1.6, IPe 2.9). Ou seja,
agora ela é o Israel de Deus (G16.16).
Pedro interpretou que as promessas de Deus feitas a Abraão estavam se
cumprindo na igreja. No seu segundo sermão, ele disse aos judeus: “Vós
sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com vossos
pais, dizendo a Abraão: Na tua descendência, serão abençoadas todas as
nações da terra. Tendo Deus ressuscitado o seu Servo, enviou-o primeira­
mente a vós outros para vos abençoar, no sentido de que cada um se aparte
das suas perversidades” (At 3.25,26). A igreja cumpre a promessa da alian­
ça de abençoar as nações. Do mesmo modo, a igreja cumpre a aliança do
governo davídico. Tiago entendeu que a própria promessa da restauração
da influência do reino de Davi estava se cumprindo na igreja. No Concílio
de Jerusalém, ele citou a profecia de Amós 9.11,12, que falava sobre a res­
tauração do tabernáculo caído de Davi que seria levantado para alcançar as
nações com o seu governo (At 15.13-18). Tiago viu na inclusão dos gentios
na igreja o cumprimento dessa profecia, pois, por meio da missão da igreja
entre os gentios, o governo estava se estabelecendo numa área ainda mais
ampla, pois havia homens e mulheres gentios que se apressavam a render
lealdade voluntária e agradecida ao Filho de Davi.7
Logo, a igreja estava tendo “vida própria” e, apesar de existir dentro de
Israel, já era uma instituição à parte. Os dois principais sinais da antiga
aliança, a circuncisão e a páscoa, passaram a encontrar substitutos dentro
da igreja —o batismo e a Ceia do Senhor, chamados “sacramentos”.8 O
batismo substituiu a circuncisão e a Ceia do Senhor a celebração da Páscoa.
Desse modo, quando batizava ou quando participava da Ceia, a igreja esta­
va demonstrando o cumprimento da aliança e das promessas de Deus. Por­
tanto, a igreja do Novo Testamento é a continuação do Israel do Antigo
Testamento.9 A diferença básica é que Israel era uma “igreja” nacional, e
agora a igreja se tornou internacional.

As m arcas da verdadeira igreja


A própria internacionalização da igreja fez com que surgissem centenas
ou até milhares de denominações cristãs com práticas bastante contraditó­
rias. Diante disso, como saber qual é a igreja verdadeira?
Nenhuma igreja está isenta de erros ou pecados, pois todas são com­
postas por seres humanos, e seres humanos falham. Porém, é preciso saber
 igreja verdadeira 487

identificar entre impureza e apostasia. Por essa razão, é necessário que saiba­
mos identificar quando uma igreja é verdadeira e quando ela é apóstata. Evi­
dentemente que, nesse ponto, estamos falando da igreja local, pois a igreja
innvisível de Cisto é sempre perfeita. Assim, historicamente algumas marcas
têm sido sugeridas a fim de indicar a verdadeira igreja. Classicamente, desde
a Reforma, as marcas da verdadeira igreja são: 1) a pregação da Palavra de
Deus, 2) a administração dos sacramentos, e 3) a disciplina eclesiástica.

A p r e g a ç ã o da Palavra de Deus
Aqui estará sempre a principal marca diferenciadora da igreja verdadeira
e da apóstata.10 A maneira como a igreja considera e prega a Palavra é o
sentido mais preciso em que podemos identificar sua fidelidade a Deus. A
verdadeira igreja honra a Palavra de Deus e a considera sua única regra de
fé e prática. Ela não usa de recursos adicionais, nem substitui a Palavra por
técnicas humanas. Ela se apega à Bíblia como um todo, considerando o
ensino bíblico completo, defendendo todas as doutrinas da Escritura. Isso
significa que, sempre que as igrejas negam que a Bíblia seja infalível e
inerrante, estão falhando em exibir uma das marcas de veracidade. Isso
também pode ser visto quando doutrinas fundamentais da Palavra de Deus
como a Trindade, a divindade de Cristo, a justificação pela fé, ou a expiação,
são negadas ou distorcidas. E também quando a Palavra não ocupa o lugar
central que deve ter no culto e na vida da igreja. Sempre que a Palavra cede
espaço ao subjetivismo, a principal marca de autencidade da igreja está sen­
do violada. Para sabermos se uma igreja é verdadeira, portanto, basta ouvir
a sua pregação. E lógico que não deveremos esperar perfeição em nenhu­
ma igreja quanto à pregação, pois sempre haverá erros e imprecisões dou­
trinárias mesmo na igreja mais perfeita deste mundo. Porém, há um limite
além do qual a igreja não poderá ir. Berkhof diz que esse limite é ultrapas­
sado quando “artigos fundamentais de fé são negados publicamente, e a
doutrina e a vida já não estão sob o domínio da Palavra de Deus”.11 A
pregação correta da Palavra de Deus é a principal marca da igreja de Jesus.

A a d m in is t ra çã o do s sa c ra m en to s
A administração dos sacramentos está intimamente ligada à pregação au­
têntica da Palavra. Os sacramentos não existem separados da Palavra de Deus,
pois sem a Palavra “os sacramentos não são sacramentos”.12 Para a igreja
reformada, eles são “meios de graça” em pé de igualdade com a Palavra de
488 Razão da esperança

Deus, no sentido de que são instrumentos de bênçãos semelhantes, ainda que


tenham propósitos diferentes.13 A fidelidade aos princípios bíblicos quanto
ao significado e ao modo em que os sacramentos devem ser administados
diferenciam a igreja verdadeira da falsa. Várias coisas podem ser consideradas
nesse sentido. Primeiramente, devemos falar do apego aos sacramentos insti­
tuídos pela Palavra de Deus. O acréscimo de sacramentos não autorizados
pela Bíblia indica má administração. Da Bíblia somente podemos extrair dois
sacramentos, a Ceia do Senhor e o batismo. Todo tipo de rituais inventados
pelos seres humanos e sacramentalizados na prática da igreja denotam má
administração. Também a administração desses sacramentos para pessoas
que não estão habilitadas a recebê-los é uma evidência de má administração.
As regulamentações da Palavra a respeito de quem deve receber o batismo e
quem pode participar da Ceia devem ser seguidas e evidenciam a veracidade
da igreja. Teremos mais a falar sobre sacramentos neste trabalho.

A disciplina eclesiástica
Essa prática é necessária para a manutenção da pureza da igreja. Sempre
que uma igreja se descuida da disciplina está admitindo publicamente que
não tem preocupação com a pureza. Apesar de que sempre haverá o risco da
disciplina ser exagerada ou complacente, o fato de ela não existir autoriza o
pecado, portanto a igreja que quiser se manter dentro do padrão bíblico
deverá dar atenção conscienciosa ao exercício da disciplina. A disciplina
mantém a pureza doutrinária e a santidade dos sacramentos. Quando a igreja
relaxa a sua disciplina, ela está minimizando a sua esfera de influência no
mundo. A santidade nos torna relevantes. A disciplina eclesiástica é uma
instituição bíblica que tem sido muito pouco observada em nossos dias. A lei
do “não atirar a primeira pedra” utilizada erroneamente, faz com que as
pessoas deixem de observar a palavra de Deus, que ordena que a Igreja seja
um lugar de disciplina. E preciso, portanto, que o conceito bíblico a respeito
da disciplina eclesiástica seja retomado na igreja, não como um meio de esta­
belecer a tirania ou a acepção de pessoas, mas como um modo de manter a
pureza da Igreja e de promover a restauração dos caídos. A disciplina deve
ser aplicada porque ela efetivamente recupera as pessoas. Quando o pecado
não é tratado, a tendência é que ele aumente cada vez mais. A disciplina é o
instrumento de Deus para trazer crescimento espiritual para as pessoas, e
uma forma de garantir um futuro melhor para o pecador. O autor aos He­
breus diz que Deus “nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos
participantes da sua santidade” (Hb 12.10). A Igreja deve seguir este exem­
A igreja verdadeira 48 9

plo. A disciplina sempre traz aproveitamento para o povo de Deus, tanto no


caso da pessoa ser recuperada, como no caso dela ter que ser excluída. Neste
último caso, a ordem e a decência são mantidas, e ainda, pelo próprio exem­
plo, pode se evitar que outros sejam induzidos ao erro. Portanto, a disciplina
salvaguarda a pureza da Igreja. E sempre melhor perder o fruto podre do
que a bandeja de frutos. Exercer a disciplina é um ato de amor. A Bíblia diz
que Deus “corrige a quem ama” (Hb 12.6). Não disciplinar o pecador equi­
vale a não se importar realmente com ele, pois significa que a igreja está
satisfeita em deixá-lo entregue a seu próprio pecado.
Todas essas três marcas precisam estar presentes numa igreja para que
ela possa ser considerada verdadeira e incólume a despeito das pretensões
malignas de pervertê-la. Evidentemente, o grau com que esses elementos
apareceram pode variar de uma igreja para outra. Por essa razão, na Refor­
ma já se falava em igreja mais pura e menos pura.

Evidências de u m a igreja cheia do Espírito


Uma maneira prática de ver essas marcas da igreja é considerar o livro
de Atos, Atos dos Apóstolos descreve a fundação e o desenvolvimento da
igreja cristã. O capítulo 2 é de suprema importância nesse sentido. Naquele
dia, o Espírito Santo foi enviado por Deus, como Jesus prometera a seus
discípulos (Lc 24.49; At 1.4), a fim de capacitá-los para a obra tremenda de
levar a mensagem da salvação a todas as gentes. Encontramos no relato de
Lucas que, logo depois da descida do Espírito Santo, quando uma grande
multidão foi atraída pelos sinais (At 2.1-13), Pedro, cheio do Espírito Santo,
levantou-se e pregou um sermão. Nesse momento, cerca de três mil pes­
soas receberam a salvação, o batismo, e passaram a fazer parte da igreja. O
Espírito Santo havia acabado de ser derramado, e, portanto, nunca uma
igreja foi tão cheia do Espírito como aquela. Hoje se fala muito que a igreja
precisa ser cheia do Espírito, mas nem sempre se tem idéia do que isso
significa. Para muitos significa barulho, imprevisibilidade, manifestações
estranhas, etc. No final do capítulo 2 de Atos, Lucas nos mostra como
estava a situação da igreja em Jerusalém logo após a descida do Espírito
Santo: ‘E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no par­
tir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e
sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram esta­
vam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e
bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha neces­
49 0 Razão da esperança

sidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de


casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de cora­
ção, louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquan­
to isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At
2.42-47). Essa passagem nos dá as verdadeiras evidências de uma igreja
cheia do Espírito Santo.14

Doutrina

A passagem diz: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos”. Uma das


palavras que mais causam repulsa aos crentes hoje é “doutrina”. Muitos
têm apregoado que não há como conciliar doutrina com vida no Espírito.
Dizem que estudar causa esfriamento espiritual, e que a letra é morta, etc.
Isso é uma tremenda falta de compreensão, pois o Espírito Santo inspirou
a Palavra de Deus, a fim de que ela fosse “lâmpada para nossos pés e luz,
para o caminho” (SI 119.105). E por ela que temos acesso à vida de Deus e
a vida de santidade. Há um outro grupo dentro do Cristianismo que tem
uma terminologia toda especial para doutrina. Para estes, doutrina repre­
senta usos e costumes que são impostos sobre a comunidade como sendo
marcas de espiritualidade. Doutrina é usar determinada roupa, se abster de
certos alimentos e obedecer a certos rituais. Evidentemente, essa não era a
“doutrina” da igreja primitiva.
Podemos perceber que o ensino sempre foi uma das características
marcantes da igreja naqueles tempos primitivos. Jesus havia ensinado muito
durante o seu ministério terreno a ponto de o povo reconhecer que ele ensi­
nava como quem tem autoridade e não como os escribas (Mc 1.22). Poste­
riormente, ele ordenou que os apóstolos ensinassem àqueles que fossem
evangelizados (Mt 28.20). E impressionante que no versículo que contém a
ordem expressa para evangelização, a palavra que mais se destaque seja justa­
mente “ensino”. Ele diz: “fazei discípulos”, “ensinando-os...”. Não poderia
ser diferente, pois o evangelho é ensino em sua essência. Para que alguém seja
salvo, precisa entender a mensagem do evangelho. Precisa entender o seu
conteúdo doutrinário. Jamais foi ensinado pelo Senhor, ou por seus discípu­
los, que o crente precisa colocar de lado a sua capacidade mental para crer no
evangelho. Aliás, nada poderia ser tão contrário ao ensino de Jesus. O evange­
lho é essencialmente ensino, há uma mensagem, há um conteúdo, não um
amontoado de palavras sem sentido. Há um perfeito encaixe, um ensino har­
monioso e sublime que foi planejado pelo próprio Deus, e que se desenvolve
ao longo de todos os livros da Escritura com uma perfeição maravilhosa.
A igreja verdadeira 491

Foi sem dúvida nesses ensinos que os crentes cheios do Espírito Santo
perseveravam naqueles dias primitivos. Os novos convertidos não estavam
atrás de uma experiência mística tão-somente. Eles queriam exercitar a pró­
pria mente, queriam entender todas aquelas coisas maravilhosas que haviam
acontecido em seus dias e que estavam preditas pelos profetas. Eles queriam
aprender o que os apóstolos tinham para lhes ensinar. Por isso, podemos
afirmar que cuidado doutrinário é uma das características marcantes, uma das
principais evidências de que uma igreja está cheia do Espírito Santo. Pois a
igreja primitiva perseverava em aprender doutrina, mas não qualquer doutri­
na, e sim a doutrina verdadeira, a doutrina bíblica, pois “o Espírito de Deus
leva o povo a se submeter ã Palavra de Deus”.15 Não há igreja verdadeira sem
a verdadeira pregação bíblica. A igreja que ignora a exposição e aplicação da
Escritura está correndo o mesmo risco de acontecer com ela o que aconteceu
com o povo de Deus no Antigo Testamento, e que Oséias descreve: “O meu
povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento” (Os 4.6). Como
diz MacArthur, “A igreja não pode operar na verdade se ela não é ensinada;
crentes não podem praticar princípios que não aprenderam”,16

Comunhão

E interessante que o relato diz que, da mesma maneira que eles perseve­
ravam na doutrina, também perseveravam na comunhão. A comunhão não
é algo assim tão fácil de ser mantida. Aprendemos da passagem que comu­
nhão, seja com Deus, seja com os irmãos, é uma coisa para ser mantida pela
perseverança, e que isso é uma evidência da plenitude do Espírito. Porém,
será que Lucas está descrevendo que a igreja cristã primitiva vivia um tipo
de “comunismo”? Devemos lembrar que ali perto, a alguns quilômetros a
leste de Jerusalém, em Qumram, havia uma comunidade dos chamados
essênios, que viviam realmente num tipo de comunismo primitivo. Mas,
será que a igreja cristã seguiu o exemplo dessa seita? Não somos incentiva­
dos a crer que uma das regras para se entrar na igreja cristã era vender tudo
o que possuía e distribuir aos outros. A passagem não sugere isso. Está
escrito que eles partiam o pão de casa em casa, logo, muitos permaneciam
com suas casas. Em Atos 5, no relato sobre a morte de Ananias e Safira,
Pedro diz a eles: “Conservando-o, porventura não seria teu? E vendido,
não estaria em teu poder?” (v.4), Ou seja, eles eram livres para doar ou
não.17 O próprio fato de Lucas citar o caso de Barnabé que tinha um cam­
po e o vendeu, vindo a depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos (4.36,37),
indica que este não era um acontecimento tão corriqueiro, pelo simples
492 Razão da esperança

destaque que lhe foi dado.’8 Qual a conclusão que devemos chegar a partir
da passagem? Que Lucas está querendo enfatizar a generosidade dos con­
vertidos. Ou seja, eles não deixavam ninguém passar necessidades, colo­
cando os seus bens à disposição daqueles que precisassem. Portanto, a ven­
da e a partilha eram ocasionais, e em resposta a necessidades específicas.
Quando era realmente necessário, os crentes estavam dispostos a abrir mão
dos seus bens para que os irmãos não perecessem. O amor que eles senti­
am por Deus e pelos outros não era um amor só de palavras, mas de atos e
de verdade (ljo 3.18). Quando uma igreja está cheia do Espírito Santo, ela
está cheia do que existe de mais precioso, por isso, ela não tem dificuldade
em se doar. Porém, quando ela não tem o Espírito Santo, os seus valores
são todos materiais, e então ela não quer se desfazer deles. Cristianismo é
essencialmente dar. A igreja cheia do Espírito Santo tem comunhão com
Deus e com os irmãos de maneira prática e com atos específicos, pois isso
evidencia o seu enchimento. Portanto, ação social também é uma evidência
de uma igreja cheia do Espírito.

Adoração
Lucas continua a narrativa dizendo que “em cada alma havia temor; e
muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos”. O
temor evidencia a sincera reverência que os novos convertidos tinham com
relação a Deus. Já vimos bastante sobre sinais neste livro, e sabemos que
esse tempo foi um tempo de revelações, e os sinais autenticavam a revela­
ção. Nessa igreja havia o mover do Espírito Santo em confirmação à pala­
vra dos apóstolos. Precisamos encarar o fato de que há certas igrejas em
que nada acontece, ninguém se converte, ninguém é desafiado a uma vida
de compromisso. Uma igreja assim está muito longe do padrão da igreja
apostólica. Numa igreja cheia do Espírito Santo, há um mover deste mes­
mo Espírito e a conseqüência disso é a adoração contínua e sincera. A
igreja de Jerusalém era uma igreja preocupada com ensino, com a comu­
nhão, mas era principalmente uma igreja que adorava ao Senhor em espíri­
to e em verdade.
Lucas diz: “Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam
pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de
coração, louvando a Deus...”. Além do aspecto de comunhão, isso também
pode ser tomado como parte da adoração. O partir do pão refere-se prova­
velmente à Ceia do Senhor, que nesse tempo era uma verdadeira refeição
pública. No caso deles, percebemos duas formas de culto. O culto
A igreja verdadeira 493

institucionalizado, que acontecia no templo, e do qual todos participavam,


e o culto de casa em casa, informal. Ambos eram feitos com alegria e singe­
leza de coração. E eram contínuos, ou seja, para eles, o Cristianismo não era
vivido somente aos domingos, mas era uma edificante experiência diária.
Todo o seu modo de viver era alegre e singelo. Eles tinham pleno conheci­
mento de que haviam recebido o melhor presente do mundo. Precisamos
encarar o fato de que, às vezes, nossas igrejas são tristes porque os nossos
crentes são tristes. Por que o culto tem que ser sisudo, melancólico e triste?
Alguns dizem: Porque esse é o culto reformado. Quem diz isso nunca leu
sobre o quanto Calvino foi influenciado pela alegria dos crentes da cidade
de Estrasburgo. O reformador se impressionou com a alegria que aqueles
crentes demonstravam quando cantavam salmos de adoração.19
Com isso não se quer dizer que um culto alegre tenha que ser barulhen­
to. Cada culto de adoração deve ser uma alegre celebração dos atos podero­
sos de Deus por meio de Jesus. O culto público deve ser majestoso, e é
imperdoável que seja enfadonho. Um culto alegre é aquele em que os cren­
tes estão felizes porque os seus corações vibram em pensar no que o seu
Salvador fez por eles. Eles sentem-se realmente as pessoas mais felizes do
mundo, e por isso não faz a menor diferença se estão em segurança ou em
meio à perseguição; se têm alimento sobrando ou se lhes falta tudo; para
eles o que importa é Jesus, o Salvador que é tudo para eles. Se quisermos
entender o que isso representa em relação ao que nós muitas vezes enten­
demos como culto, devemos, como nos diz Lloyd-Jones, comparar um cul­
to solene numa catedral protestante hoje, com um culto com Jesus assenta­
do dentro de um barco à beira da praia, com uma multidão ouvindo atenta­
mente cada palavra que Jesus dizia, tendo seus corações vibrando, inflama­
dos pelo poder do Espírito Santo.20 E vida muito mais do que formalismo,
alegria muito mais que ritualismo, fé muito mais do que conformismo. Como
dizia Tozer, “Deus salva os homens para fazê-los adoradores”.21

Crescimento

Lucas completa o relatório: “...e contando com a simpatia de todo o


povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sen­
do salvos”. Uma igreja pode ter muitas coisas: um grande número de mem­
bros, um louvor maravilhoso, e até mesmo um excelente pregador, mas se
ela não se preocupa em levar pessoas aos pés da cruz, ela não é uma igreja
completa. Todos os aspectos que vimos até agora dizem respeito à vida
interna da igreja. Porém, a igreja não se relaciona apenas internamente. Ela
494 Razão da esperança

foi instituída por Deus para cumprir os propósitos dele no mundo, Se a


igreja não toma consciência dessa responsabilidade que tem, e não se sub­
mete à vontade de Deus, certamente, está desagradando o seu fundador.
O que a igreja primitiva representava para o mundo? Qual era a sua in­
fluência sobre as pessoas daquela época? Lucas diz que a igreja contava com
a simpatia de todo o povo, ou seja, era uma igreja em certo sentido atrativa.
Muitos crentes têm a idéia de que, para ser uma igreja verdadeira, as pessoas
do mundo não podem ver nada em nosso meio que lhes seja agradável. Esse
é um extremo sem sentido, As pessoas precisam ver que somos diferentes,
que temos algo de bom que o mundo não pode oferecer. Aqueles crentes
primitivos testemunhavam que algo maravilhoso havia acontecido na vida
de cada um deles. Com um testemunho assim, a tarefa de acrescentar pes­
soas à comunidade ficava por demais simplificada. Por outro lado, Lucas não
diz que a igreja trazia as pessoas pelo uso do marketing ou de técnicas de
crescimento, mas que Deus acrescentava os que iam sendo salvos (At 2.47).
Era ele quem realizava essa tarefa suprema. Por isso, podemos dizer que
mais uma evidência de uma igreja cheia do Espírito Santo é o crescimento
natural. Não é preciso forçar, não é preciso criar situações, uma igreja cheia
do Espírito cresce naturalmente e de modo saudável, porque tem ensino,
comunhão e adoração. Um aspecto importante dessa atividade soberana de
Deus é que ele acrescentava e salvava ao mesmo tempo. As duas coisas acon­
teciam simultaneamente. Não havia crentes sem igreja, nem não-crentes na
igreja. Essa é uma das nossas maiores deficiências no evangelismo contem­
porâneo. Muitas vezes, tal é o apelo dos crentes para os ímpios a que venham
para a igreja, que eles acabam adentrando sem serem realmente convertidos,
mas convencidos. Por outro lado, quando crentes hoje em dia preferem vi­
ver fora das igrejas, percebemos que algo está terrivelmente errado. Tam­
bém isso não condiz com o ensino Bíblico. Os crentes devem estar na igreja,
em comunhão com Deus e uns com os outros para que o mundo reconheça
que realmente são filhos de Deus.

Conclusão
A igreja verdadeira é a igreja de Deus que existe desde a fundação do
mundo, e que, após o Pentecostes se tornou internacional. Em cada lugar
em que ela se estabeleceu, ela é uma igreja da Palavra, é uma comunidade de
crentes que estão sendo santificados pela disciplina e pela atuação do Espí­
rito. Ela utiliza intensamente os meios de graça, cumprindo a sua tarefa
A igreja verdadeira 495

primordial de adorar ao Senhor, além de servir de testemunho para o mun­


do e instrumento de salvação. No aspecto internacional, ela não é uma
denominação, embora denominações inteiras possam estar incluídas nela,
ou às vezes inteiramente excluídas dela. Nem sempre ela é muito grande ou
numerosa, e às vezes parece realmente que ela fica bem pequenina. Porém,
essa igreja é a instituição mais duradoura e poderosa do planeta. Afinal,
dela o próprio Jesus disse: “Edificarei a minha igreja, e as portas do Inferno
não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18).
39

Os sacramentos e a espiritualidade

Se fizéssemos uma lista de quatro ou cinco passos para o crescimento


espiritual, o que ocuparia o topo da lista? Oração, retiro espiritual, estudo
bíblico, jejum, devocional, cantar num coral? Quantos colocariam os sa­
cramentos no topo dessa lista?1 Neste capítulo, abordaremos um tema que
não é muito considerado pela maioria dos crentes: os meios de graça. Meio
de graça representa uma maneira de se obter a graça de Deus, não a graça
salvadora, mas a graça sustentadora. De modo geral, considerando que
todas as coisas contribuem para o bem dos eleitos, podemos dizer que
todas as coisas, até mesmo as aflições (Fp 1.27) se constituem em meios de
graça para nós,2mas neste ponto estamos falando de “meios de graça”
num sentido mais restrito, aquilo que o Catecismo Menor de Westminster
chama de “meios exteriores e ordinário pelos quais Cristo nos comunica as
bênçãos”, ou seja, a Palavra, os sacramentos e a oração (p. 88). Em nossa
época, muitas são as práticas estranhas à Palavra de Deus que os crentes
empregam com o intuito de obter maior comunhão e espiritualidade. Em
contrapartida, os meios de graça que o próprio Jesus instituiu são tidos em
baixa consideração. A diferença é que certas experiências podem trazer
graça para a vida das pessoas, mas não faz delas meios de graça em si. A
Palavra e os sacramentos são meios de graça em si, pois a sua eficácia
depende unicamente da atuação do Espírito.3 E dos sacramentos que que­
remos tratar agora.
Na Idade Média, os cristãos possuíam muitas técnicas não-bíblicas para
aprimorar o crescimento espiritual. Uma das mais praticadas era a chamada
Penitência. Para a igreja católica, a penitência é um sacramento. Ela era
chamada de uma “tábua depois do naufrágio”. Significava o retorno do
homem para Deus. A penitência era cumprida quando um homem mostra­
va sinais externos de sofrimento pelo pecado, fazia confissão verbal a um
sacerdote, era absolvido por ele, e, então, fazia satisfação por seus pecados
de acordo com o julgamento do sacerdote. Esse sacramento era requerido,
segundo Roma, porque de acordo com o livre-arbítrio, a graça pode ser
possuída e também pode ser perdida. Por isso, a penitência podia ser repe-
498 Razão da esperança

tida várias vezes. Cumprida a penitência, um católico deveria se sentir ab­


solvido de seus pecados. Ao todo, são sete sacramentos para Roma: Batis­
mo, Eucaristia, Crisma, Penitência, Ordem (Sacerdócio), Unção dos Enfer­
mos e Casamento. Todos esses seriam instituições divinas que promovem a
obra da graça de Deus na vida das pessoas. No entendimento reformado,
Crisma, Penitência, Ordem, Unção dos Enfermos e Casamento não foram
instituições de Jesus, não desfrutam de caráter perpétuo, nem estão estrita­
mente ligados ao evangelho como a Ceia e o Batismo estão. Portanto, a
Reforma não aceitou essas cerimônias como sacramentos.
Entre os crentes, também existem muitos “sacramentos evangélicos”
sem base bíblica. Existem práticas estranhas como “fogueiras para queimar
pecados”, passar sal grosso ao redor da casa, amarrar uma fita de libertação
no braço, ungir objetos com óleo, e até o apelo final do culto, em que uma
pessoa repete uma oração e instantaneamente se torna perdoada e aceita. O
que percebemos é que essas práticas evangélicas acabam virando um fim
em si mesmas, são maneiras de atrair a atenção das pessoas, visam apenas
“segurar” o crente na igreja. Nesses tempos modernos, é sempre preciso
inventar uma novidade para trazer mais pessoas ou manter as que já se
achegaram à igreja. Os participantes das igrejas se parecem muito com cli­
entes enjoados. Eles querem sempre alguma “comida” diferente.

0 sa cra m en to do batism o
Jesus só estabeleceu dois sacramentos: o Batismo e a Ceia. Ambos têm
o caráter de ser “meio de graça”, porque, pelo que eles simbolizam, e me­
diante a operação do Espírito Santo, transmitem a graça de Deus para as
pessoas. Dissemos que um sacramento é um sinal visível de uma graça
invisível. Encontramos uma referência a isso na circuncisão do Antigo
Testamento.

Famílias c o m o alvo

A circuncisão separava os filhos dos crentes dos filhos dos incrédulos e


os colocava sob as asas protetoras do pacto (Gn 17.10-12). Quando Deus
estabeleceu o seu pacto com Abraão, ele ordenou: “Esta é a minha aliança,
que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós
será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por
sinal de aliança entre mim e vós” (Gn 17.10,11). Deus não trabalha apenas
Os sacramentos e a espiritualidade 499

com indivíduos, mas com famílias, Para “você e sua casa” é uma frase co­
mum em ambos os testamentos. No caso de Abraão, Deus estabeleceu um
sinal pactuai que fizesse separação entre os filhos dos crentes e os filhos
dos incrédulos. Observe que a circuncisão não apenas representava a sepa­
ração, ela era a separação. Deus ordenou que os infantes (de oito dias) em
Israel fossem circuncidados. Abraão creu em Deus e por isso foi justifica­
do, Circuncidar o seu filho era uma atitude de fé na promessa de Deus. Por
que será que Deus não esperou que o filho de Abraão tivesse idade sufici­
ente para tomar uma decisão por si mesmo? A resposta é simples: “Porque
a salvação não é centrada no homem, mas em Deus’5.4 O foco não é a
nossa escolha, mas a escolha divina. Deus vem para nós e para nossos
filhos em amor e graça e coloca a sua marca de posse no povo do seu pacto.
Para aqueles que argumentam que a pessoa precisa se arrepender e crer
para depois ser batizada, podemos dizer que é assim para os adultos, pois
Deus exigiu isso de Abraão para que fosse circuncidado, mas Deus não
exigiu isso de Isaque. Isaque foi circuncidado porque era um filho do pac­
to.5 A fé que Abraão demonstrou era suficiente para que Isaque também
recebesse a marca do pacto,
No Novo Testamento, o interesse de Deus pelas famílias continua. Quando
Pedro pregou um sermão evangelístico no templo após o dia de Pentecostes,
ele declarou: “Pois para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para
todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus,
chamar” (At 2.39), E interessante que Pedro destaque a questão da promes­
sa, Ele próprio identificou a promessa do derramamento do Espírito como
se cumprindo naquele dia, Agora ele fala da promessa de Deus aos filhos em
termos bem parecidos com aqueles que o próprio Deus usou ao estabelecer
a aliança com Abraão. A orientação aqui não está no fato de que Deus espera
que os nossos filhos queiram ter um compromisso com ele, mas no fato de
que é ele quem os chama. O apóstolo Paulo assegura-nos que um pai crente
pode santificar um filho mesmo que o outro cônjuge seja incrédulo, pois
como ele mesmo diz: “Doutra sorte, os vossos filhos seriam impuros; po­
rém, agora, são santos” (ICo 7,14). Por que Paulo usa a mesma distinção
veterotestamentária de “puro” e “impuro” para os filhos, se não há diferen­
ça entre os filhos dos crentes e os filhos dos incrédulos? Porque certamente
existe uma distinção, Não se pode negar que todos, para que sejam salvos,
precisam crer em Jesus, porém, é um grande erro tratar de modo igual um
filho de crente e um filho do mundo,6 pois a Bíblia demonstra que há dife­
rença entre eles, e há uma marca que torna essa distinção clara, e essa marca
é o batismo. A marca da aliança é a própria distinção que existe.
500 Razão da esperança

A igreja primitiva seguia fielmente essa orientação bíblica. Os mais anti­


gos documentos pós-apostólicos demonstram uma imutável prática do ba­
tismo infantil. O que isso significa? Significa que os apóstolos batizavam
crianças.7 E o fato de não haver nenhuma indicação no Novo Testamento
de quem deve ser batizado pesa ainda mais a favor do batismo infantil, pois,
então, permanece a base do Antigo Testamento. Para aqueles que argumen­
tam que o silêncio do Novo Testamento a respeito das crianças impossibilita
que elas sejam batizadas, teríamos que dizer que, se fosse assim, então, as
mulheres não poderiam participar da Ceia, pois o Novo Testamento não as
autoriza explicitamente. Porém, todos entendem, por implicação, que a mu­
lher deve participar, e é esse mesmo entendimento que leva os reformados a
defender o batismo das crianças. No Antigo Testamento, as crianças recebi­
am o sinal da aliança aos oito dias de vida (Gn 17.12). Se, no Antigo Testa­
mento, os pais não esperavam as crianças crescerem para decidirem por si
mesmas se queriam a marca da aliança, por que deveríamos esperar hoje?
E preciso que fique claro, portanto, que a base para batizar as crianças é
a doutrina do pacto da graça. Se os pais fazem parte do pacto, então, os
filhos também fazem. Porém, isso não significa que eles estão automatica­
mente salvos. Não somos salvos pelo nascimento, mas pela graça por meio
da fé. Deus não prometeu que cada filho de pais crentes será salvo, antes,
ele prometeu perpetuar a sua obra de graça na descendência dos crentes
(ver Gn 17.7; SI 103.17,18; 105.6-11; Is 59.21; At 2.39).8 Sobre essa base, os
pais crentes devem batizar os seus filhos, confiando que Deus desenvolverá
a sua obra pactuai com eles, enquanto eles próprios esforçam-se por ensi­
nar à criança o caminho certo para que não se desvie quando adulta (Pv
22.6). Quanto ao argumento de que seria inútil batizar as crianças sem ter
certeza de que serão salvas, podemos contra-argumentar que não temos
certeza se todos os adultos que se batizam são realmente salvos. O batismo
dos adultos também não garante a salvação. Porém, é uma atitude de fé
consagrar os filhos ao Senhor e administrar sobre eles o símbolo da aliança.
Ao contrário de desagradar a Deus, essa prática somente o agradaria, pois
ele próprio exigiu essa atitude de fé no fato de Abraão circuncidar o seu
filho Isaque. O batismo das crianças que são filhas de pais crentes simboli­
za a realidade de que elas são separadas aos olhos de Deus. Nesse batismo,
pais que vivem na aliança se comprometem a criar os seus filhos conforme
a Palavra do Senhor. Por outro lado, como diz Calvino, “devemos temer
sempre o perigo que nos ameaça, se desprezarmos o privilégio de assinalar
os nossos filhos com o selo da aliança, de que o Senhor nos castigue por
termos renunciado à bênção que nos é oferecida no batismo (Gn 17.14)”.9
Os sacramentos e a espiritualidade 501

Ainda que o Novo Testamento não diga explicitamente que as crianças


devam ser batizadas, há bons indícios de que isso acontecia. Há relatos de
várias “casas” que receberam o batismo por meio dos apóstolos. Por exem­
plo, Lídia e toda a sua casa (At 16.15), bem como o carcereiro e todos os
seus (At 16.33; ver ainda At 18.8). E verdade que essas passagens não di­
zem explicitamente que havia crianças nas casas, mas negar essa possibili­
dade é uma presunção que se aproxima muito do preconceito.

Aspersão ou Im er sã o?

Como estamos considerando a questão do batismo, também precisamos


falar sobre o seu modo de administração. Só o fato de a Bíblia incluir o
batismo de crianças, já é um argumento muito forte a favor da aspersão. A
idéia de afundar um recém-nascido dentro de um rio não é muito aceitável.
A circuncisão era um sinal de limpeza. Uma das razões pelas quais se
cortava o prepúcio era por questões higiênicas. Na Bíblia, incircunciso equi­
vale a imundo. O batismo, que é o selo de entrada na igreja cristã, também
tem um significado de fazer purificação, por isso é usada a água, pois a água
nos fala de purificação.
A Bíblia fala em dois tipos de batismo. O batismo com água e o batismo
com o Espírito. E natural pensar que ambos sejam parecidos. O Novo
Testamento diz que o Espírito desceu sobre as pessoas no dia de Pentecos­
tes (At 2.1-4). E o Antigo Testamento conecta o derramamento do Espíri­
to com um derramamento de água: “Então, aspergirei água pura sobre vós,
e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos
ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espí­
rito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne.
Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos,
guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez 36.25-27). Portanto, na Bíblia,
batismo é derramamento. Se o Espírito é “aspergido” sobre os crentes por
que a água não poderia ser?
No Antigo Testamento, as cerimônias de purificação com água eram
por aspersão.10 Números 8.7 diz: “Assim lhes farás, para os purificar: asper­
ge sobre eles a água da expiação”. Há descrições minunciosas sobre como
deveria ser a cerimônia de purificação: “Um homem limpo tomará hissopo,
e o molhará naquela água, e a aspergirá sobre aquela tenda, e sobre todo
utensílio, e sobre as pessoas que ali estiverem” (Nm 19.18). Quando João
Batista começou a batizar no Jordão, ele chamou a atenção dos estudiosos
do Antigo Testamento. As multidões se dirigiam ao Jordão para serem
502 Razão da esperança

batizadas, e até mesmo os religiosos se submetiam ao batismo de João. O


próprio Jesus foi batizado. Mateus relata: “Batizado Jesus, saiu logo da água,
e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como
pomba, vindo sobre ele” (Mt 3.16). Esse versículo tem dado margem para
bastante discussão sobre a forma de batismo com a qual Jesus foi batizado.
Para os defensores do imersionismo, não resta dúvidas de que ele foi bati­
zado por imersão. Para surpresa de muitos, a passagem nada diz a respeito
de imersão. O argumento baseado na construção “saiu da água” não acres­
centa nada, pois uma pessoa pode sair da água sem que, com isso, precisas­
se estar inteiramente imersa nela. Bastaria estar com os pés dentro da água
e a frase já seria válida. Igualmente em relação ao argumento de que a pala­
vra batismo somente significa “afundar”, pode ser dito que ela também
significa “aspergir”, como a maioria dos léxicos indica. O mesmo pode ser
visto na palavra batismo na língua grega que é traduzida em alguns versícu­
los para o português como lavar ou mesmo aspergir (Mc 7.4; Lc 11.38).11
Porém, certamente o que mais impressiona no episódio do batismo de João
é a decisão dos fariseus em se submeter a ele (Mt 3.7). A seita dos fariseus
era famosa por sua rigidez com relação à obediência do Antigo Testamen­
to. Os fariseus estavam sempre procurando algum motivo para acusar Jesus
de quebrar da lei. Eles levantavam questões como curar no sábado, comer
sem lavar as mãos, ou pagar impostos. E curioso que eles nada tinham para
acusar João quanto ao seu batismo. Isso parece ter pouco significado, po­
rém, quando pensamos que todas as cerimônias de purificação do Antigo
Testamento eram por aspersão, é significativo que eles não acusem João de
estar rompendo com a tradição do Antigo Testamento. O motivo deve ser
porque, na verdade, ele não estava rompendo com esses preceitos. Ou seja,
ele batizava por aspersão. Se João estivesse inventando um ritual de purifi­
cação por imersão, que era estranho ao Antigo Testamento, os fariseus não
perderiam tempo em acusá-lo.
Há casos bíblicos de batismo em que a idéia de imersão fica ainda mais
difícil de ser mantida. Em Atos 2, cerca de três mil pessoas se converteram e
foram batizadas dentro da cidade de Jerusalém (At 2.41). Daria bastante tra­
balho batizar todas elas num único dia, e num local em que não há rios. É
bem mais plausível a idéia de que os apóstolos, a exemplo do Antigo Testa­
mento, utilizassem ramos de árvores e aspergissem a água sobre as pessoas.
O batismo de Paulo, que segundo a Bíblia, foi realizado dentro de casa, é
outro fator complicador para a idéia da imersão. Inclusive a Bíblia diz que ele
“levantou-se e foi batizado” (At 9.18), o que sugere que ele foi batizado de
pé, mas isso somente é possível em caso de aspersão ou efusão. Outro caso
Os sacramentos e a espiritualidade 503

está em Atos 16, em que o carcereiro convertido e toda a sua família foram
batizados de noite, provavelmente dentro da prisão, ou na casa deles (At
16.33). E muito difícil sustentar o modo por imersão nesses casos.12
Pedro compara o batismo com a experiência do dilúvio quando oito
pessoas foram salvas das águas (lPd 3.20,21). Essas pessoas em hipótese
alguma foram imersas. E Paulo o compara com a experiência dos israelitas
no deserto quando foram “todos batizados, assim na nuvem, como no mar”
(ICo 10.2). A nuvem era a presença de Deus que guiava e seguia os filhos
de Israel (Ex 33.8-11), e o mar era o Mar Vermelho no qual eles atravessa­
ram com pé enxuto. Não há qualquer referência à imersão nessas passa­
gens, antes como diz Landes, “não se pode dizer que os hebreus foram
imersos na nuvem e no mar, dos egípcios sim, pode-se dizer que foram
imersos no mar e até mesmo submersos, para não mais sair”.13
A passagem mais usada pelos imersionistas é a do badsmo do eunuco
realizado por Filipe: “Então, mandou parar o carro, ambos desceram à água,
e Filipe batizou o eunuco. Quando saíram da água, o Espírito do Senhor
arrebatou a Filipe, não o vendo mais o eunuco; e este foi seguindo o seu
caminho, cheio de júbilo”. Porém, será que essa passagem diz explicita­
mente que Filipe afundou o eunuco na água? Ele simplesmente diz que
Filipe batizou o eunuco dentro do rio, mas não diz que Filipe o afundou.
“Descer à água e sair da água” não exigem um “afundar na água”, até por­
que ambos fizeram isso, e não parece que os batizadores mergulhassem
juntos com os batizados.14 Significa apenas que Filipe usou a água do rio
para batizar o eunuco.
Geralmente, os imersionistas usam os termos bíblicos que falam da morte
e da ressurreição de Cristo como um batismo para os crentes, para dizer
que é preciso afundar na água para ressurgir para uma nova vida. As passa­
gens usadas são Romanos 6.3,4: “Ou, porventura, ignorais que todos nós
que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fo­
mos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cris­
to foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também ande­
mos nós em novidade de vida”. E também Colossenses 2.12: “Tendo sido
sepultados, juntamente com ele, no batismo, no qual igualmente fostes res­
suscitados mediante a fé no poder de Deus que o ressuscitou dentre os
mortos”. Inicialmente precisamos dizer que o batismo que essas passagens
apresentam não é o batismo com água. Esses textos nada falam a respeito
de água. Esse batismo é o batismo espiritual, é o ato de ser unido a Cristo
(união mística). Até porque o sepultamente de Jesus não se parece com um
afundamento nas águas. Jesus mesmo falou a respeito desse batismo pelo
504 Razão da esperança

qual ele teria que passar: “Tenho, porém, um batismo com o qual hei de ser
batizado; e quanto me angustio até que o mesmo se realize!” (Lc 12.50).
Quando Tiago e João pediram que Jesus os colocasse nos primeiros lugares
no seu reino, Jesus lhes respondeu: “Não sabeis o que pedis. Podeis vós
beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batiza­
do?” (Mc 10.38). Evidentemente Jesus estava falando de sua morte. Nesse
momento, os discípulos responderam: “Podemos”. E então Jesus retrucou:
“Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o batismo com que eu sou
batizado” (Mc 10.39). Tiago realmente foi morto, mas João não. Porém, os
dois foram batizados na morte e na ressurreição de Jesus. Isso se deu por
meio da união mística, e também da vida de consagração e sofrimento a
que os discípulos se submeteram. Portanto, não há nada na Bíblia que diga
que o batismo com água é o passar da morte para a vida, até porque isso é
algo próprio da regeneração e não do batismo. Senão, teríamos que dizer,
como os católicos, que é o batismo que salva.

O b a tism o e a aliança

Porém, em que sentido o batismo colabora para a espiritualidade? Ele é


um exercício de fé. Quando uma pessoa se submete ao batismo, ou quando
leva os seus filhos para serem batizados, ela está fazendo uma declaração
solene de que faz parte do povo de Deus, e de que se submete à aliança de
Deus. Ela está confirmando o pacto com Deus, e desse modo atraindo
bênçãos para a sua vida e para a sua casa.
Nos dias de hoje, quando muitos, seguindo falsos ensinos rejeitam o
batismo que receberam, e vão atrás de seitas, heresias e movimentos “espi­
rituais”, estão renegando a aliança de Deus, estão quebrando o pacto. Quando
Deus estabeleceu o pacto com Abraão, ele disse: “Eu sou o Deus Todo-
Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito. (...) Estabelecerei a minha
aliança entre mim e ti e a tua descendência no decurso das suas gerações,
aliança perpétua, para ser o teu Deus e da tua descendência. (...) Guardarás
a minha aliança, tu e a tua descendência no decurso das suas gerações. Esta
é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência:
todo macho entre vós será circuncidado. Circuncidareis a carne do vosso
prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós. O que tem oito dias
será circuncidado entre vós.(...) O incircunciso, que não for circuncidado
na carne do prepúcio, essa vida será eliminada do seu povo; quebrou a
minha aliança” (Gn 17. 1,2, 7, 9, 10,11,14). Deus se apresentou como o El
Shaday (Todo-poderoso), cuja tradução literal é: “O Deus que é suficiente”.
Os sacramentos e a espiritualidade 505

Ele chamou Abraão para andar na presença dele, o que era um privilégio
sem igual. Deus chamou Abraão e ordenou que ele fosse “perfeito” (heb:
tamini). Essa expressão não significa necessariamente ausência de defeitos,
mas plenitude, integridade, vida completa. Evidentemente que isso seria
uma conseqüência de andar na presença do “Deus que é suficiente”. Deus
estabeleceu a aliança que era um pacto de fidelidade. A promessa de Deus
foi: Eu te abençoarei, serei o teu Deus. O que Abraão deveria fazer era
guardar a aliança. Ele deveria ter uma atitude de fé ao marcar a sua descen­
dência. Caso não fizesse isso, estaria quebrando a Aliança de Deus. Hoje
quando as pessoas renegam o batismo ou não o desejam, não estariam
quebrando a aliança de Deus?

0 sa cra m en to da ceia do S enhor


O outro sinal visível de uma graça invisível no Antigo Testamento era a
Páscoa. Essa festa era um memorial da libertação israelita do cativeiro egíp­
cio. No momento da saída do Egito, o sangue aspergido nas portas marca­
va aqueles que confiavam em Deus, sendo que, na casa em que não houves­
se a marca, o primogênito era morto pelo anjo. Nesse caso, o símbolo visí­
vel tornava-se intimamente e inseparavelmente ligado com a salvação
significada e selada.

Graça que renova

Já vimos que, na justificação, Deus imputa a sua graça a nós, de modo


que somos declarados justos, embora ainda pecadores. Já dissemos que,
nesse momento, começa o processo da santificação, que é o ato de Deus
impartir a sua graça sobre nós, uma graça que irá nos transformar, a ponto
de mudar completamente a nossa vida. A Ceia do Senhor é um instru­
mento de graça porque nos sustenta e renova as nossas forças espirituais.
Se ficarmos bastante tempo sem alimentos, nos sentiremos fracos e logo
adoeceremos. Quando nos alimentamos, permanecemos fortes e mais imu­
nes a doenças. A Ceia é o nosso alimento espiritual; participar dela é garan­
tia de sustento e renovação espiritual. Por isso, a nossa visão da santa co­
munhão é muito diferente da visão da igreja católica. Para ela, a comunhão
possui graça salvadora, ou seja, se alguém cometeu um pecado mortal, por
meio da comunhão pode receber o perdão e ser salvo novamente. Entre­
tanto, cremos que a graça que encontramos na comunhão não é a graça que
506 Razão da esperança

nos salva, mas a que confirma que somos salvos. A Ceia do Senhor não é
uma cerimônia importante apenas porque simboliza algo grande, mas por­
que é algo grande.15 Por meio dela, o Senhor nos alimenta espiritualmente,
pois oferece o seu corpo e sangue como um alimento espiritual. A Ceia do
Senhor é a garantia de que somos um povo continuamente perdoado e
alimentado.16

A ceia de Je su s
O s evangelistas relatam a última ceia do Senhor Jesus com seus discípu­
los. Jesus sabia que aquela seria a última noite em que poderia estar a sós
com os seus amigos, e escolheu aquela ocasião para conceder um dom
maravilhoso à sua igreja antes da sua partida.
A primeira coisa que percebemos na maneira como o Senhor dirigiu
aquela reunião foi a sua disposição de que todos participassem daquele
momento. Ele ordenou que seus discípulos “comessem e bebessem”. Em
outra ocasião ele já havia declarado: “Em verdade, em verdade vos digo: se
não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue,
não tendes vida em vós mesmos. Quem comer a minha carne e beber o
meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.53,54).
Obviamente, nessa ocasião, Jesus não estava ensinando nenhum tipo de
canibalismo, ele falava de ter um relacionamento com ele, um relaciona­
mento tão íntimo que só poderia ser possível se participássemos dele, se ele
estivesse dentro de nós. Nessa noite, na última ceia, em palavras memorá­
veis, ele ordenou que o seu povo participasse da união com ele, que é a
maneira como todas as bênçãos de Deus vêm sobre nós.
O significado dessa cerimônia está intimamente ligado à obra de Jesus.
Jesus disse: “Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice
e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; por­
que isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de
muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.26-28). Poucas expressões têm
sido mais controversas na História do que a expressão de Jesus “isto é o
meu corpo” e “isto é o meu sangue”. Infelizmente, aquilo que foi dito para
unir os crentes, até ao dia de hoje continua separando. Jesus não estava
querendo dizer que aquele pedaço de pão e aquele pouco de vinho eram
fisicamente o corpo e o sangue dele, pois do mesmo modo, muitas vezes
ele disse que era “uma porta”, “a luz”, “o caminho”, e nem por isso estava
dizendo que fisicamente era essas coisas. Ele escolheu dois elementos para
que simbolizassem o que, por meio do seu corpo e do seu sangue, ele rea-
Os sacramentos e a espiritualidade 507

lizaria pelo mundo.17 O seu corpo seria crucificado e o seu sangue derra­
mado para poder providenciar redenção para o seu povo. O pão e o vinho
simbolizavam o seu sacrifício. Deve ser dito que apenas simbolizavam, eles
não eram, em si, um sacrifício, pois o sacrifício de Jesus é único e não pode
ser repetido (Hb 10.14), Jesus destacou também o aspecto do sangue ser o
“sangue da aliança”. Desde o início do mundo, Deus estabeleceu uma aliança
com o seu povo. Por várias vezes, Deus renovou essa aliança ao longo das
gerações. Um dos elementos centrais dessa aliança era justamente o sangue.
O sangue simbolizava a expiação, o modo em que os pecados podiam ser
perdoados (Hb 9.22). Quando Jesus disse que o sangue dele era o sangue da
aliança, estava apontando para o modo em que as pessoas foram salvas
desde o início. Os sacrifícios oferecidos no Antigo Testamento eram ape­
nas sombras do sacrifício de Jesus e só tinham valor porque, no plano de
Deus, chegaria o momento em que Jesus viria e derramaria o seu sangue
para cumprir a aliança.
O objetivo da ceia é para fins de memória e bênção. O aspecto memo­
rial do seu sacrifício pode ser percebido pela expressão que Paulo usa na
sua primeira carta aos Coríntios: “Fazei isto, todas as vezes que o beberdes,
em memória de mim. Porque, todas as vezes que comerdes este pão e
beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (ICo
11.25,26). Devemos entender essas palavras à luz do que o próprio Jesus
disse: “E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da
videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de
meu Pai” (Mt 26.29). O memorial da Ceia do Senhor nos aponta para o
passado e para o futuro. Para o passado, ao se referir à obra que o Senhor
realizou na cruz ao oferecer o seu corpo e o seu sangue como sacrifício que
perdoa definitivamente os nossos pecados. Mas a Ceia do Senhor também
aponta para o futuro, como um tipo de proclamação e expectativa do retor­
no de Jesus. Ele disse que só voltaria a participar dessa Ceia quando do seu
retorno. E Paulo, com certeza tendo isso em mente, disse que, ao participar
da ceia, anunciamos a morte do Senhor até que ele venha. Porém, a Ceia
não é apenas memorial, ela é também meio de graça. Quando participamos
dela, estamos espiritualmente unidos ao Senhor, e por meio dessa união,
Deus nos concede suas bênçãos.

O cálice âa ira e o cálice da salvação

A Páscoa é para a Ceia do Senhor o que a circuncisão é para o batismo.


Os judeus comemoravam a Páscoa como o dia da libertação. Eles comiam
50 8 Razão da esperança

pão e tomavam vinho na Páscoa para lembrar que os seus antepassados


haviam comido o pão da aflição e bebido o cálice da ira no Egito, mas que
eles, pela libertação divina estavam livres daquilo, e podiam comer o pão e
beber o vinho em paz e segurança. É isso o que fazemos na Ceia. Levanta­
mos o cálice que simboliza a nossa salvação, mas devemos lembrar que
alguém pagou o preço dela. A santa comunhão é um símbolo e um selo de
que a ira de Deus passou sobre nós. Cristo experimentou o cálice da ira de
Deus, e por isso nós podemos beber o cálice da salvação. Ele bebeu o cálice
da ira divina, e como resultado, nós podemos matar a nossa sede no cálice
da salvação.18 É muito interessante que Jesus, em seu maior momento de
angústia, antes da Cruz, no jardim de Getsêmani orou a Deus: “Meu Pai, se
possível, passe de mim este cálice” (Mt 26.39). E significativo que o relato
do Getsêmani esteja justamente depois do relato da última ceia. Na ceia o
Senhor ofereceu ao seu povo o cálice da bênção, no Getsêmani assumiu o
cálice da ira em lugar de seu povo. O cálice que Jesus relutava em beber era
o cálice da Ira de Deus, acumulada desde o pecado de Adão. Mas ele o
bebeu inteiramente, para que nós possamos beber o cálice da salvação. Ele
bebeu inteiramente o cálice da ira de Deus e nos oferece agora o cálice do
seu sangue, que simboliza a libertação definitiva da ira de Deus.
Porém, há o perigo de que as pessoas bebam um cálice pelo outro. Pau­
lo, pensando nas próprias palavras da instituição da Ceia, acrescenta: “Por
isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente,
será réu do corpo e do sangue do Senhor” (ICo 11.27). Ou seja, a comu­
nhão pode ser tornada em sacrilégio, como os coríntios estavam fazendo
com todas as suas divisões e orgulho, demonstrando que possuíam uma
visão distorcida do sacramento. Assim, eles estavam atraindo para si a ira
divina, pois comiam o pão e bebiam o vinho sem discernimento. O “cálice
da salvação” tornou-se para eles como as águas do Mar Vermelho para os
egípcios, um cálice de ira.19

A pa rtici pação na ceia


Isso dá origem a uma pergunta importante: Quem deve participar da
Ceia? Em 1 Coríntios 11, Paulo estabelece os requisitos. Ele diz que a Ceia
pode ser um ajuntamento não para melhor e sim para pior, de acordo com
o comportamento das pessoas (ICo 11.17). No caso dos coríntios, as divi­
sões internas acarretavam uma participação hipócrita na Ceia, o que se tor­
nava uma maldição (ICo 11.18). Tal era a situação de irregularidade, que
Paulo diz que aquela cerimonia nem poderia ser chamada de “ceia do Se-
Os sacramentos e a espiritualidade 509

nhor” (ICo 11.20). Os exageros eram marcantes no momento da cerimô­


nia, quando alguns comiam demais e até se embriagavam (ICo 11.21). Em
seguida, Paulo restabelece os elementos fundamentais da ceia. Ele diz: “Por­
que eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus,
na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e
disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de
mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cáli­
ce, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as
vezes que o beberdes, em memória de mim” (ICo 11.23-25). Por causa da
seriedade da instituição, sendo o próprio Jesus o instituidor, e pelo signifi­
cado da cerimônia, Paulo argumenta que “aquele que comer o pão ou be­
ber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do corpo e do sangue do
Senhor” (ICo 11.27). Por causa disso, todos deveriam fazer um auto-exa-
me antes de participar da ceia (ICo 11.28). Não fazer esse auto-exame im­
plicaria estar sujeito ao juízo de Deus (ICo 11.29). Esse é o significado da
expressão “discernimento”. A pessoa que participa da ceia precisa enten­
der a sua situação pecaminosa e a necessidade absoluta do sacrifício de
Jesus para a sua salvação, que está simbolizada nos elementos da Ceia. Parti­
cipar da Ceia sem esses requisitos é garantia de fraqueza, doença e até mor­
te (ICo 11.30). Isso claramente exclui da ceia os incrédulos e todos os que
não estão sinceramente arrependidos de suas faltas.
A partir desse ensino de Paulo, a participação das crianças na ceia tam­
bém não se justifica. Deve ser entendido que, nessa passagem, Paulo não
está tratando da questão das crianças, ele está falando sobre os abusos da
igreja de Corinto. Porém, se ele diz que é preciso discernimento, então esse
princípio pode ser aplicado a todos. Se alguém argumentar que, então, não
poderíamos batizar as crianças, deve ser lembrado que para o batismo não
é exigido discernimento. A criança só deverá participar da ceia a partir do
momento em que puder fazer uma auto-análise, bem como entender a im­
portância do sacrifício de Jesus e também quando já souber distinguir apro­
priadamente entre os elementos utilizados na ceia do Senhor e o pão e o
vinho comuns, reconhecendo esses elementos como símbolos do corpo e
do sangue de Cristo.20 O argumento de que as crianças participavam da
Páscoa não torna a participação das crianças automática na Ceia. Para par­
ticipar da Páscoa, não havia a exigência de que elas entendessem plenamen­
te o significado dela, como é o caso da Ceia.
510 Razão da esperança

Conclusão
É necessário que resgatemos a centralidade e a importância dos sacra­
mentos instituídos por nosso Senhor na nossa vida pessoal e na vida da
nossa igreja. Cristo pretendeu que o baüsmo e a Ceia do Senhor fossem
elementos poderosos colocados à nossa disposição para o nosso cresci­
mento. Em vez de ficarmos inventando técnicas não-bíblicas para crescer­
mos na graça, deveríamos nos aprofundar mais no conhecimento do que o
próprio Cristo nos ordenou que fizéssemos, a fim de que a nossa fé fosse
fortalecida, a nossa esperança renovada e o nosso amor encorajado. Os
sacramentos são meios de graça para o nosso crescimento espiritual. Por
isso, devemos tomar cuidado para nunca nos privarmos do que ele provi­
denciou para a nossa vida. Muitos crentes não vêem qualquer coisa interes­
sante ao participar da ceia, ou quando assistem a batismos, pois conside­
ram-nos rituais destituídos de sentido. Poucos se preparam antes de tomar
do pão e do vinho, e a maioria não faz uso do discernimento. Não admira
que a situação em muitos lugares seja parecida com a de Corinto, havendo
também muitos fracos e doentes e não poucos que dormem (ICo 11,30).
Por fim, devemos eliminar os nossos próprios “meios de graça”. O que
o Senhor providenciou para nós é suficiente. Não devemos ser como as
pessoas que nunca estão satisfeitas com nada, pois o alimento espiritual
que Deus proporcionou para nós deve ser suficiente para saciar as nossas
necessidades espirituais. Ele pode ser simples, mas é o alimento que real­
mente sustenta. Todos os novos e sofisticados “sacramentos” que têm sido
inventados pelos homens são, afinal, alimentos prejudiciais à nossa saúde
espiritual. Participar deles pode trazer prazer ou euforia a princípio, mas, a
longo prazo, os efeitos colaterais e as doenças sérias aparecerão. Negligen­
ciar os verdadeiros meios de graça que Deus nos concedeu é uma atitude
trágica. Deus exige de nós, os crentes, “o uso diligente de todos os meios
exteriores pelos quais Cristo nos comunica as bênçãos da salvação”.21 Por­
tanto, não deixemos de ler, meditar e viver a Palavra de Deus. Devemos
cultivar a prática sincera, fervorosa e submissa da oração, e participar de
modo consciente, alegre e piedoso do culto e da Santa Ceia, extirpando
toda “rotina” ou sentido de obrigação.
40

Adoração: A grande prioridade

Em meio ao excesso de ativismo da igreja dos dias atuais, parece haver


uma despreocupação com relação ao propósito primordial da existência da
igreja. Talvez muitos até se perguntem sobre qual é esse propósito. Para
muitos, a igreja funciona como um grande pronto-socorro, e desde que as
pessoas estejam sendo socorridas, as demais coisas, inclusive a adoração,
ficam em segundo plano, ou até são completamente ignoradas. Os cultos
modernos têm sido apenas instrumentos para que as pessoas consigam
bênçãos para a sua vida. Do início ao fim, das músicas à pregação, tudo gira
em torno do tema: como obter as bênçãos de Deus. As pessoas têm dado
muito mais importância aos seus desejos pessoais do que à glória de Deus.
Esses têm sido os verdadeiros deuses que estão ditando as regras no culto
e no modo de ser da igreja dos nossos dias.
Deus estabeleceu um povo para adorá-lo, e este povo é a igreja. A maior
função da igreja neste mundo é adorar a Deus. Todas as demais coisas
devem ser subservientes a esse princípio básico. Por isso, o culto, como
expressão solene dessa adoração, tem uma importância tremenda, pois é
uma resposta obediente ao convite, ou melhor, à própria ordem de Deus, a
qual ele expressou na sua Palavra escrita, na criação, e até mesmo dentro de
cada um dos seres humanos criados, cujos sentimentos mais íntimos ane­
lam por Deus. E pelo culto que a igreja vive, “é nele que pulsa a vida da
igreja”.1 Isso nos sugere a importância com que devemos tratar este assun­
to. Em primeiro lugar, porque o culto é a Deus, e ele é digno de toda a
nossa reverência; e, em segundo lugar, porque o culto afeta consistente-
mente as pessoas que participam dele. Por isso, precisamos ter cuidado;
Spurgeon estava certo ao dizer que:

Muitos gostariam de unir igreja e palco, baralho e oração, danças e orde­


nanças. (...) Quando a antiga fé desaparece e o entusiasmo pelo evangelho é
extinto, não é surpresa que as pessoas busquem outras coisas que lhes tra­
gam satisfação. Na falta de pão, se alimentam com cinzas; rejeitando o ca­
minho do Senhor, seguem avidamente pelo caminho da tolice.2
512 Razão da esperança

Quando se perde o verdadeiro significado da igreja e da adoração, é


natural que as coisas fiquem misturadas, e que o que deveria ser secundá­
rio, ou mesmo inexistente, assuma formas agigantadas, enquanto o que
realmente importa fique esquecido. O que Spurgeon dizia que era desejo
de alguns fazer, ainda no século 19, já é uma plena realidade no início do
século 21.
O tema da adoração desenvolve-se por toda a Bíblia e culmina no
Apocalipse, de modo escatológico, em que a igreja é descrita como uma
comunidade adoradora, porém, agora na presença do seu Senhor (Ap
19.1-8). Por isso, podemos concluir que a adoração é algo central para a
vida, tanto na terra quanto no céu (Ap 4.8-11; 7.9-17; 15.2-4, etc.). E
evidente que adoração é um estilo de vida, é algo que ultrapassa as dimen­
sões do culto, envolvendo uma postura constante em relação a Deus.
Embora muitas das abordagens expostas neste capítulo sejam próprias da
adoração no sentido mais pleno da palavra, é o culto que é a nossa preo­
cupação fundamental.
Em geral, podemos dizer que a adoração envolve uma postura de reve­
rência a Deus e uma homenagem prestada a ele. O conceito de adoração é
expresso pelo tema “servir”. Isso, é claro, envolve muito mais do que algo
que toma uma forma meramente externa. Para verdadeiramente honrar a
Deus, é necessário obediência às suas leis. Está claro na Escritura que,
muito mais do que simplesmente aparecer diante de Deus com sacrifícios
ou ofertas, Deus quer que o seu povo se apresente puro (SI 15; 24.3,4) e
obediente (Is 1.11-17; Am 5.21,22). O fato é que Deus não tem nenhuma
necessidade (SI 50.12,13), mas ele quer toda a vida, todo o corpo, e todo o
ser (Rm 12.1,2).

Deus ch a m a o ser h u m a n o para a adoração


Deus chama o ser humano para adorá-lo de duas maneiras: primeiro,
pelo desejo íntimo que colocou nele quando o criou, e, segundo quando o
renova espiritualmente.
Deus deseja ser adorado. Quando Satanás tentou fazer com que Jesus o
adorasse, recebeu a seguinte resposta: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e
somente a ele darás culto” (Mt 4.10 - Dt 6.13). A adoração é uma ordem,
um mandamento divino. O próprio Jesus disse à mulher samaritana que
Deus “procura” verdadeiros adoradores que o adorem em espírito e em
verdade (Jo 4.23). Deus quer ser adorado porque isso faz parte da sua pró­
A oração: A grande prioridade 513

pria essência. Quando Deus nos chama para adorá-lo, isso não é, como
seria nos seres humanos, uma verdadeira megalomania, mas o reconheci­
mento preciso de que ele é, de uma maneira simples, pura e verdadeira, o
soberano do universo, digno de toda a adoração, Quando dizemos que ele
é digno, não é simplesmente porque ele fez algo por merecer, mas porque
ele é digno em sua própria essência. De modo que, quando o homem não
adora a Deus comete um gravíssimo pecado, porque tudo no universo cons­
pira para que Deus seja adorado. Quando o homem se aproxima de Deus,
mas a sua única preocupação é consigo mesmo, comete um dos piores
pecados possíveis. De certo modo, está adorando a si mesmo, está adoran­
do a criatura em lugar do criador.
O desejo de adoração está presente em todos os seres humanos, mas
eles têm distorcido esse sentimento. É um fato comprovado que esse
desejo não precisa ser adquirido. Isso tem sido suficientemente evidenci­
ado pela Antropologia, pela Sociologia, pela Arqueologia, pela Filosofia,
etc. Não existiu nenhuma cultura, ao longo de toda a história do mundo,
que não tenha deixado vestígios de religiosidade. Calvino notou que Cíce­
ro já havia afirmado: “Não há povo tão bárbaro, não há gente tão brutal
e selvagem, que não tenha arraigada em si a convicção de que há Deus”.3
E de fato, o culto como conseqüência dessa religiosidade é a atividade
humana mais universal que existe. Esse instinto religioso deve-se à natu­
reza comum do homem como criatura de Deus. Deus colocou no ho­
mem o desejo de adoração, porque o próprio Deus deseja ser adorado.
Como disse Agostinho: “Criaste-nos para Vós e o nosso coração vive
inquieto, enquanto não repousa em Vós”.4 Porém, muito antes de Agos­
tinho, Salomão, o sábio rei de Israel já havia dito: “Tudo fez Deus formo­
so em seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do ho­
mem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princí­
pio” (Ec 3.11). Ou seja, há algo dentro do ser humano que o dispõe a
buscar o eterno. Porém, por causa do pecado, ele tem fracassado comple­
tamente em todas as tentativas de adoração, e tem transformado essa
adoração em idolatria. Por isso, o desejo natural de adorar não é suficien­
te, pois é uma tentativa decaída e separada de Cristo, a qual Deus não
pode aceitar (Jo 14.6; At 4.12; Hb 10.19-22). Portanto, é preciso que haja
um novo chamado de Deus para a adoração, capacitando o ser humano
para isso, justificando-o, por meio dos méritos de Jesus, e purificando-o,
para que tenha “mãos limpas e coração puro” e assim possa permanecer
diante da sua presença (SI 24.4).
514 Razão da esperança

Deus dita as regras para a adoração


Embora o ser humano tenha um desejo inato de adorar, devido à queda,
ele não tem a menor condição de oferecer uma adoração aceitável a Deus,
portanto é necessário que Deus dite as regras para a sua própria adoração.
Não é somente a idolatria que irrita a Deus; a própria adoração ao Deus
verdadeiro, quando feita com uma atitude errada, não pode agradá-lo. Uma
das características dos cultos pagãos na antigüidade era o sacrifício huma­
no. Deus não poderia aceitar esse tipo de sacrifício mesmo em honra da sua
divindade. Entretanto, existem coisas muito mais sutis do que sacrifícios
humanos que precisam ser consideradas, a fim de que não seja oferecido
“fogo estranho”, na presença do Senhor, como fizeram Nadabe e Abiú (Lv
10.1,2). Esses dois insensatos foram punidos, em primeiro lugar pela deso­
bediência, porque o Senhor não havia ordenado o que eles fizeram, e, em
segundo lugar, conforme o contexto nos sugere (v. 3), porque careciam de
santidade.

Ofertas inaceitáveis

Na Escritura, encontramos muitos exemplos que nos advertem quanto


ao perigo de oferecer uma adoração distorcida. E o caso de todo o primeiro
capítulo de Isaías, em que é relatado que o povo desobedecia abertamente
a Deus, mas continuava a oferecer sacrifícios e ofertas. Deus disse que aqui­
lo era “abominável”, porque ele não podia “suportar iniqüidade associada
ao ajuntamento solene” (Is 1.13). Ele ainda disse que a sua alma “aborre­
cia” as solenidades do povo (v. 14), e os conclamou ao arrependimento e
correção de vida (vs. 16-20). Já em Malaquias 1.7-10 Deus reprovou a qua­
lidade das ofertas porque o povo não dava o melhor que podia, e, por isso,
repreendeu-os severamente: “Eu não tenho prazer em vós, diz o Senhor
dos Exércitos, nem aceitarei da vossa mão a vossa oferta” (v. 10). E em
Amós, Deus exigiu justiça e não sacrifícios (Am 5.21-27). Ele disse: “Abor­
reço, desprezo as vossas festas, e com as vossas assembléias solenes não
tenho nenhum prazer... afasta de mim o estrépito dos teus cânticos; porque
não ouvirei as melodias das tuas liras, antes corra o juízo...” (vs. 21,23). Em
Oséias 6.6 está escrito: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o co­
nhecimento de Deus mais do que holocaustos”. Paulo acusou os Corintios
de se ajuntarem “não para melhor e sim para pior” (ICo 11.17). Assim, o
que foi estabelecido para ser bênção, pela atitude errada dos participantes
A oração: A grande prioridade 51 5

transformava-se numa verdadeira maldição. Dessas passagens, entendemos


que não basta ao ser humano querer adorar ao Deus verdadeiro, se ele não
estiver disposto a seguir as orientações divinas a respeito da adoração.
Se o culto é a resposta do ser humano a Deus, então, está claro que Deus
é quem dá o primeiro passo. Na verdade, o ser humano nunca seria capaz
de fazê-lo por si só, por causa da sua situação decaída. Embora em todos as
pessoas exista um senso da divindade, como por um “instinto natural”,5
esse “senso” não o habilita a prestar um culto aceitável, antes o ser huma­
no, de uma maneira corrompida pelo pecado produzirá sempre deuses fal­
sos para si mesmo (Rm 1.23). Por isso, Deus precisa capacitá-lo por meio
do seu Espírito Santo, suprindo as suas falhas, pois que em seu estado
decaído ele nem mesmo poderia sobreviver por um só instante na presença
de Deus, Por essa razão, a conversão é um pré-requisito indispensável para
a verdadeira adoração. Todos os que se achegam a Deus, precisam ser antes
procurados por ele, e justificados pelo sangue de Jesus, e assim, habilitados
a comparecer diante da sua face gloriosa. O fato é que “nenhum homem
jamais buscaria ao Deus vivo se o Deus vivo primeiro não buscasse o ho­
mem”.6 Por isso, Deus tem a primazia na adoração, porque ele chama e
define os termos dela.

Regras claras
Deus dita as regras para a adoração, e o lugar em que estas regras estão
claras é a Escritura, Podemos dizer que a igreja tem autoridade para estabe­
lecer a ordem da adoração, mas não tem a liberdade de introduzir novos
elementos além dos que Deus ordenou, Como está escrito em Deuteronô-
mio 4.2: “Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis
dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos
mando”. A passagem de Deuteronômio 12.32, também adverte: “Tudo o
que eu te ordeno, observarás; nada lhe acrescentarás nem diminuirás”. Como
MacArthur observou, tanto a passagem anterior quanto essa de Deutero­
nômio “aparecem no contexto de leis dadas para regulamentar o culto e
limitam todas as formas de culto a que é expressamente ordenada na lei”.7
O culto, portanto, deve se derivar de elementos que estão na Palavra de
Deus, nada pode ser acrescentado, nem diminuído.
Aqui, deparamos com um problema sério. Como atrairemos pessoas
para o culto? Para muitos, isso deve ser feito tornando-o agradável para
aqueles que participarem dele. Evidentemente que nada na Bíblia contraria
a idéia de que o culto seja agradável, mas a questão mais importante é:
516 Razão da esperança

Quem realmente deve ser agradado? É quem presta o culto, ou aquele a


quem o culto é dirigido? É claro que é aquele a quem o culto é dirigido. Para
tornar o culto mais agradável para quem dele participa, muitos têm intro­
duzido elementos oriundos do mundo. Precisamos entender que o gosto
pessoal não é o critério final para o culto, embora seja um dos instrumen­
tos, mas o critério final é a Palavra de Deus. Ela é a norma que Deus nos
deu para que o culto seja de acordo com a sua vontade.

Deus rejeita a falsa adoração


Um dos grandes problemas no que concerne ao culto é a idolatria, ou
seja, o desvio da adoração para qualquer outra coisa que não o verdadeiro
Deus. Porém, mesmo quando o verdadeiro Deus é adorado, podem existir
problemas que tornam essa adoração desagradável e mesmo inaceitável
para Deus. Isso é o que podemos chamar de “cultuar de maneira errada o
Deus verdadeiro”. Há muitos exemplos bíblicos que elucidam bem este
ponto. Quando Moisés estava no alto do monte Sinai, na presença de Deus
(Êx 32), o povo, já cansado de esperar por ele, resolveu fazer para si dois
bezerros de ouro. “Então, Deus ordenou a Moisés: Vai desce; porque o teu
povo, que fizeste sair do Egito, se corrompeu, e depressa se desviou do
caminho que lhes havia eu ordenado; fizeram para si um bezerro fundido, e
o adorou, e lhe sacrificou, e diz: São estes, ó Israel, os teus deuses, que te
tiraram da terra do Egito” (Ex 32.7,8). Na verdade, talvez a única coisa que
o povo queria era adorar o Deus que os havia tirado do Egito, mas fizeram
isso de uma maneira errada, fundindo um bezerro de ouro, o que não po­
deria, em absoluto, agradar a Deus. Portanto, apenas boa intenção não é
suficiente,

Distorcendo ele m en tos verdadeiros

Um perigo sempre presente é o de usar elementos, que em si são apro­


vados, de maneira corrupta. Trata-se da tendência de corromper o uso de
alguma coisa que em si mesma é legal, mas que, por causa do uso, se torna
pecaminosa. Por exemplo, podemos citar o uso supersticioso da estola sa­
cerdotal por Gideão, como nos diz a passagem de Juizes 8.27: “Fez Gideão
uma estola sacerdotal, e a pôs na sua cidade, em Ofra; e todo o Israel se
prostituiu ali após dela; a qual veio a ser um laço para Gideão e à sua casa”.
O princípio usado por Gideão era válido, pois ele mandou que todos entre­
A oração: y\ grande prioridade 517

gassem suas argolas de ouro, que os identificavam como ismaelitas, para


fazer uma estola (Jz 9.24). Essa estola havia sido ordenada pelo próprio
Deus em Êxodo 39.1-31; entretanto, ela tinha um lugar específico no culto,
e deveria ser usada pelo sacerdote. O que Gideão fez foi usar um princípio
lícito de maneira ilícita. Também temos o caso do culto à serpente de 2 Reis
18.4. A serpente havia sido feita por Moisés por ordem do próprio Deus,
como um antídoto contra as picadas das serpentes enviadas como juízo
contra o povo (Nm 21.9). Entretanto, os israelitas passaram a lhe queimar
incenso, chamando-a de Neustã.8 Essa atitude foi algo deplorável diante de
Deus. Por isso, na adoração é necessário cuidado para que coisas legítimas
não sejam usadas de maneira ilegítima.
Outro caso de distorção pode ser visto na seita dos fariseus. Os fariseus
eram homens religiosamente rigorosos. Eles se preocupavam em guardar
as tradições aprendidas dos antepassados, bem como em viver uma vida
fiel aos princípios da Torá. Entretanto, muitas vezes tentavam cultuar a
Deus por meio de um sistema que eles mesmos haviam concebido. Isso é o
que MacArtur chama de “cultuar à nossa própria maneira o Deus verdadei­
ro”.9 Quando cultuamos a Deus à nossa própria maneira, sem levar em
conta o que ele ordenou, tão-somente por causa de costumes ou tradições,
e ainda forçamos os outros a que se submetam aos nossos gostos pessoais,
certamente o desagradamos, e não podemos esperar outra coisa de nosso
culto a não ser que Deus o considere uma abominação.

0 p r o b l e m a da falta de sinceridade
John MacArtur Jr. ainda cita um outro tipo sutil, mas falso, de cultuar a
Deus. Ele diz que é “cultuar o Deus verdadeiro com atitude interior erra­
da”.10 Essa é a forma de culto falso mais difícil de ser identificada. MacArthur
diz o seguinte: “Mesmo com a eliminação de todos os deuses falsos, de
todas as imagens do Deus verdadeiro e de todos os modos individuais con­
cebidos, o culto ainda será inaceitável se a atitude do coração não for a
correta”.11 O culto, ou a adoração, é a expressão máxima de fé por parte do
crente. Por isso, o culto que não é oferecido de todo o coração só pode ser
abominável ao Senhor. Assim, o Senhor condenou o povo de Israel pela
boca do profeta Isaías: “Este povo só se aproxima de mim, e com a sua
boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim
e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que
maquinalmente aprendeu...” (Is 29.13). Quando o que está nos lábios não
está no coração, nossas palavras são vazias, e Deus não pode aceitar, ainda
51 8 Razão da esperança

que a aparência exterior seja correta. A palavra “temor”, na passagem, pode


ser tomada em sentido de adoração, ou seja, uma adoração que consiste
somente em mandamentos aprendidos maquinalmente, que não podem de
maneira alguma agradar a Deus. Deus quer toda a nossa vida diante dele. Se
quisermos viver segundo a lei dele, deveremos amá-lo “de todo o coração,
de toda a alma alma, de todas as forças e de todo o entendimento” (Lc
10.27). Essas características precisam estar presentes na adoração. Entre­
tanto, a sinceridade é, como já foi dito, uma das coisas mais difíceis de ser
identificada. Tanto os adoradores verdadeiros quanto os falsos possuem
uma mesma aparência e uma mesma confissão externa, mas a diferença
está no interior. E Deus é o único que conhece o interior. Por isso, a since­
ridade profunda de coração, aliada a um conhecimento claro da Palavra de
Deus, bem como submissão a ela, são coisas necessárias para que, no nosso
culto, não adoremos o verdadeiro Deus com uma atitude íntima errada.

Deus rejeita influências seculares


Muitos autores têm percebido que há influências filosóficas e seculares
no culto cristão dos nossos dias. A postura dos crentes têm sido influenciada
por essas correntes de pensamento, embora talvez, muitos nem saibam dis­
so.12 Antes de considerarmos mais detalhadamente que influências são es­
sas, será interessante lembrarmos de um exemplo bíblico que mostra como
é terrível quando a adoração aceita influências seculares. Estamos falando
do caso de Davi e Uzá. No livro de 1 Samuel está registrado um dos aconte­
cimentos mais impressionantes de todo o Antigo Testamento. Davi, depois
de ter conquistado Jerusalém, resolveu levar para a sua cidade a arca da alian­
ça. A arca foi colocada num carro novo e levada da casa de Abinadabe, sen­
do que Uzá e Aiô eram os responsáveis pelo transporte. A certa altura, le­
mos: “Quando chegaram à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de
Deus, e a segurou, porque os bois tropeçaram. Então a ira do Senhor se
acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta irreverência; e morreu ali
junto à arca de Deus” (2Sm 6.6,7) Ao ver isso, Davi ficou muito amedronta­
do (6.9), e desistiu temporariamente de levar a arca para Jerusalém. O princi­
pal erro de Davi foi copiar a “inovação” dos filisteus e transportar a arca
num carro de boi. A arca devia ser transportada pelos levitas, isso estava
claro na Bíblia (lC r 15.15), mas Davi deve ter achado mais prático e interes­
sante levar a arca num carro novo. Ao imitar os filisteus, Davi trouxe a tragé­
dia para perto de si. Imitar as técnicas dos ímpios nunca foi uma atitude
A oração: A grande prioridade 519

sábia do povo de Deus. Deus não só advertiu ao povo de Israel para que não
imitasse os pagãos, como ordenou que destruísse todos os lugares de culto
pagão (Dt 7.5; 12.2,3). E claro que isso é uma ordem que deve ser entendida
dentro do seu contexto, mas que, de qualquer modo, deixa claro que o cami­
nho do crente passa longe do caminho do mundo em termos de adoração.
Por mais que as técnicas mundanas pareçam ajudar a igreja a crescer, ou
tornem o culto mais agradável para os homens, elas não garantem a bênção
de Deus, ao contrário. Vamos considerar agora as principais influências
seculares que podem ser identificadas no culto dos nossos dias.

0 existencialismo

O existencialismo é um sistema filosófico que se opõe ao racionalismo,


rejeitando o poder da razão para determinar a conduta humana. Para o
existencialismo, a vida não tem significado em si mesma, mas depende da
maneira como a vontade humana age para atingir algum significado. O ser
humano ocupa lugar central, sendo o único responsável pelo seu futuro.
Há muitas divergências sobre quem criou o existencialismo. Uns o atribu­
em a Heidegger, outros a Kierkegaard. O certo é que esses dois, mais
Nietzche e Sartre, são os grandes expoentes dessa filosofia, apesar das dife­
renças consideráveis que há entre eles. Entre os teólogos, os mais indicados
são Barth e Bultmann, que foram bastante inflenciados pelo existencialis­
mo e encontraram nele uma resposta para o frio liberalismo racional do
século 19. E muito difícil fazer uma avaliação precisa do sistema por causa
de sua complexidade, entretanto, uma de suas características principais cer­
tamente é a ênfase nos sentimentos, ou seja, no que traz satisfação pessoal.
Essa ênfase no emocionalismo, sem sombra de dúvida produz uma in­
fluência tremenda dentro do movimento evangélico, e mais especialmente
na liturgia, na qual a busca pelo “sentir-se bem”, norteia toda a ordem do
culto. As pessoas procuram o culto a fim de conseguirem “algo” para elas
mesmas. Acima de tudo, elas querem “sentir-se bem”.13 O movimento
neopentecostal encaixa-se nessa categoria, principalmente por causa da sua
ênfase na “teologia” da prosperidade, em que um poder mágico é atribuído
aos rituais. A partir dessa concepção, o culto se torna um instrumento de
“auto-ajuda”, de “auto-aceitação”, e mesmo de “auto-reconciliação”. O
futuro tem pouca importância, o que importa é o presente que precisa ser
vivido plenamente, pois, como diz o existencialismo, “Aproveite a vida”. O
céu e o inferno perdem a importância, o que importa é ser abençoado aqui,
e o culto deve servir a esse propósito.
520 Razão da esperança

0 hum anism o
O humanismo é um sistema de pensamento no qual o ser humano e os
seus interesses ocupam o centro. O ser humano é o objetivo de toda a
existência, é a medida padrão de todas as coisas, como já afirmava Protágoras.
Assim, todas as decisões éticas e práticas dependem do ser humano, e não
de Deus.14 O ser humano é o único objeto digno de adoração, pois cada
pessoa um tem um “deus dentro de si”. Uma palavra que pode ser sinôni­
ma de “humanismo” é “egocentrismo”, ou seja, tudo deve ser centralizado
no ser humano e nos seus desejos. Esse é o modo pelo qual o humanismo
tem influenciado o culto cristão, fazendo com que o ser humano tenha
toda a importância, e, portanto, tudo deve estar voltado para ele. As pes­
soas esperam que cada parte do culto satisfaça algum desejo particular seu.
O que importa é a busca pela felicidade, e o que menos tem importância é
a santidade. O sentir-se bem é elevado à mais alta categoria, enquanto o
comprometimento desce à mais baixa. A lei da satisfação pessoal predomi­
na, c cada indivíduo pensa mais em si mesmo do que no grupo, e muito
menos em Deus. Se Deus existe, ele tem a obrigação de satisfazer os nossos
desejos, pois é como se Deus existisse por nossa causa e não nós por causa
dele. O culto humanista dos nossos dias não pensa primeiro em Deus, ou
em como ele deseja ser adorado, mas no ser humano, e em como ele pode
se sentir melhor no culto.

0 pragmatismo

O pragmatismo ensina que pensamentos, idéias e ações só têm valor em


termos de conseqüências práticas. Assim, não há qualquer conjunto fixo
teórico de valores. Todos os valores são testados de acordo com o seu
resultado prático. Assim, a verdade não é fixa, nem imutável, mas depende
da circunstância, sendo determinada pela sua praticidade em termos de
resultados. Em alguns casos, o pragmatismo cai num “utilitarismo”, que
consiste na busca do útil, no sentido do que traz prazer. Uma das caracterís­
ticas fundamentais do pragmatismo é o relativismo, ou seja, que a verdade
de alguém não precisa ser, necessariamente, a verdade de outrem. O que
funciona em cada caso é a verdade naquela situação. A liturgia cristã sofre
influência dos conceitos pragmáticos, principalmente em se tratando de
suas formas. Se algo “funciona” é verdadeiro. Se a igreja enche, o meio
utilizado é validado, sem importar se é biblicamente lícito ou não. Não é a
vontade de Deus quem decide o que deve ser feito. A Escritura não é o
A oração: A grande prioridade 521

princípio regulador, mas o que, do ponto de vista humano, funciona. Daí o


uso de amuletos, rituais de origem ocultista, e todo tipo de práticas estra­
nhas que foram introduzidas no culto brasileiro. Essas coisas sempre atra­
íram os brasileiros. Os inteligentes líderes de várias denominações, tendo
entendido isso, se utilizam largamente dessas práticas. E, de fato, eles têm
colhido muitos frutos, não em termos de conversões verdadeiras, mas na
forma de adeptos, e principalmente, de contribuintes ou associados,

0 hedonismo
A expressão “hedonismo” vem da palavra grega hedone, que quer dizer
“prazer”, ou “deleite”. Nesse sistema, o principal, ou mesmo único objeti­
vo da vida humana é a obtenção do prazer, paralelamente à tentativa de
evitar a dor ou o sofrimento. Assim, todos os recursos são usados para que
a dor seja evitada e o prazer, que representa ou é o objetivo da felicidade,
seja alcançado. Existe uma relação direta entre essa maneira de pensar e a
prática comum em muitas liturgias. O prazer e o sentir-se bem são almeja­
dos. Muitas igrejas são decoradas como se fossem o céu, em que todo tipo
de enfeite sugere paz e tranqüilidade, e todo tipo de sensação ruim, como
por exemplo, a tristeza pelo pecado, é totalmente expurgada, tanto do am­
biente como da mensagem. A vitória e a realização pessoal são os ingredi­
entes apelativos desse tipo de culto. O hedonismo se manifesta também na
falsa asseveração teológica de que o crente não pode passar por dificulda­
des, não pode ter doenças, pois essas coisas são ruins, causam dor, e os
crentes são mais que vencedores em Cristo, e por isso merecem uma vida
melhor. Nada que possa levar as pessoas a se sentirem mal deve ser evoca­
do. Não se fala em pecado ou santidade de vida.

0 r a cion a li sm o

Os sistemas filosóficos citados acima são na maioria anti-racionalistas,


mas isso não significa que o racionalismo filosófico seja a melhor solução
para o culto. De certo modo, o culto que oferecemos a Deus é um culto
racional (Rm 12.2), pois existe uma necessidade indiscutível de se usar a
mente no culto. Somente o culto inteligente, como disse Stott “é aceitável a
Deus”.15 Entretanto, o que denominamos aqui de racionalismo é caracteri­
zado pela crença de que é possível obter a verdade contando unicamente
com a razão. Nesse caso, a razão é o recurso mais poderoso para tomarmos
conhecimento da verdade religiosa. Assim, os princípios do racionalismo
522 Razão da esperança

são muitas vezes aplicados ao culto cristão, quando se exclui toda possibili­
dade de manifestação sobrenatural, ou mesmo de sentimentos e sensações
que contrariem a razão. Muitos dos cultos cristãos são tão racionaüstas que
não deixam espaço para a presença de Deus.
A verdade é que nossas liturgias estão cheias de existencialismo,
humanismo, pragmatismo, hedonismo, racionalismo e diversas outras
distorções advindas do secularismo. A igreja tem imitado o mundo em qua­
se tudo. Copiamos as músicas, as vestes, o linguajar, as práticas, etc. E im­
pressionante como estamos longe do padrão estabelecido por Jesus. Ele
disse que deveríamos ser “sal” e “luz” (Mt 5.13,14). A principal caracterís­
tica desses dois elementos é que eles influenciam o ambiente em que se
encontram. Isso faz parte da própria essência deles. Porém, hoje a igreja
influencia bem menos o mundo do que é influenciada por ele. O resultado
de tudo isso é óbvio: não há adoração. E quando não há adoração, estamos
sozinhos no templo. E como o templo fica vazio quando Deus não está lá
com sua presença santa e abençoadora, ainda que milhares de pessoas este­
jam naquele lugar! Perdemos a presença de Deus, e todos os benefícios
dela, como a capacidade de nutrir, edificar, desafiar e iluminar os membros
da igreja no que diz respeito à espiritualidade. São incalculáveis as bênçãos
que perdemos e o prejuízo espiritual que sofremos quando oferecemos um
culto distorcido, influenciado pelo secularismo.

Deus quer estar ju n to do seu p o v o


O culto é um encontro entre o Senhor e o seu povo. Logo, não pode
haver culto sem a presença do Senhor. A certeza dessa presença nutre o
adorador de todo o respeito e dedicação. Foi o próprio Jesus quem pro­
meteu a sua presença. Quando estabeleceu a Ceia, ele disse: “Isto é o meu
corpo”, de maneira que a teologia reformada entendeu que ele estaria
espiritualmente presente durante a ministração da Ceia. Ele disse aos dis­
cípulos que estaria com eles até o fim do mundo (Mt 28.20). Ele prome­
teu de modo ainda mais significativo a sua presença quando dois ou três
se reunissem no nome dele (Mt 18.20). Embora essa última promessa
tenha sido feita num contexto de disciplina, por que ela não poderia se
estender ao culto?
Desde o Antigo Testamento, a presença de Deus era a grande esperança
de Israel. O tabernáculo da antiga dispensação era conhecido como taber­
náculo de reunião porque o próprio Deus havia dito: “Ali, virei aos filhos
A oração: A grande prioridade 523

de Israel, para que, por minha glória, sejam santificados” (Êx 29.43). Entre­
tanto, é na Nova Dispensação que o povo de Deus tem muito maior acesso
à presença de Deus. No tabernáculo e no templo, somente uma vez ao ano,
no dia da expiação, o sumo sacerdote podia entrar no Santo dos Santos,
que era o lugar em que estava a presença de Deus. Porém, quando Cristo
morreu na cruz do Calvário, o véu que separava o Santo dos Santos do
Santo Lugar se rasgou ao meio (Mt 27.51), demonstrando que agora, os
crentes purificados pela expiação que há no sangue de Jesus têm o privilé­
gio de, a qualquer hora, entrar na presença do Santo Deus (ver Hb 10.19-
22). Ou seja, a igreja pode ter a certeza de que, quando se reúne em nome
de Cristo não está vivendo de ilusões,16 pois Cristo está presente.
A. W. Tozer, há muitos anos chamou o culto de “a jóia perdida da igre­
ja”.17 Parece que, até hoje, essa jóia ainda não foi achada. Muitas coisas nos
nossos tempos modernos têm sido enfatizadas, mas o verdadeiro culto está
meio fora de moda. Vivemos no tempo das chamadas “células bíblicas”,
que em si, são um bom meio de pregar o evangelho, mas que, quando mal
dirigidas, levam as pessoas a pensar que o culto público comunitário não é
necessário. Também vivemos nos tempos das inovações, no tempo das “es­
colhas”, em que cada um escolhe o tipo de igreja que lhe seja conveniente,
de acordo com a melhor oferta. Nos últimos anos, aconteceu uma grande
mudança na sociedade que afetou a igreja. O mundo passou da “Era da
Exposição”, onde as pessoas comuns se reuniam com o fim de dialogar,
ponderar e trocar idéias, para a “Era do Show Business, em que o que impor­
ta é o entretenimento. A dramatização, os filmes e a televisão colocaram o
show business no centro da nossa vida. Nesse show, a verdade é irrelevante, o
que realmente importa é se estamos sendo ou não entretidos.18 Deus já não
é o centro, e a sua Palavra já não é mais autoridade máxima. A presença de
Deus está esquecida. Essa presença é o bem maior que alguém pode rece­
ber. Quando as pessoas vão às igrejas com a intenção de apenas obter al­
gum benefício particular, e se esquecem que adorar a Deus na beleza da sua
santidade é a razão do culto (SI 29.2), não estão apenas desagradando a
Deus, estão também perdendo a melhor de todas as bênçãos.
41

A ordem do culto

No capítulo anterior falamos das questões teológicas a respeito do cul­


to cristão. Agora queremos enfatizar os seus aspectos práticos. O objetivo
é entender quais são os requisitos, os elementos e as características indis­
pensáveis do culto. E fácil perceber que este é um tema a respeito do qúal
há muitas dúvidas. Dificilmente encontramos duas igrejas que tenham exa­
tamente a mesma formulação litúrgica, ainda que pertençam a uma mesma
denominação. Em muitas igrejas, o culto é uma cerimônia cheia de pompa
e ritual; em outras, a marca principal é a simplicidade e a curta duração. Em
algumas igrejas, parece não haver qualquer ordem para o culto, pois, do
início ao fim, tudo acontece na base do improviso, procurando estar sob a
“direção do Espírito”, Em outras, há uma rígida prescrição litúrgica, às
vezes preparada com semanas ou meses de antecedência, e nada pode ser
mudado. Algumas igrejas se caracterizam pelo chamado “louvorzão”, em
que a música e os cânticos emotivos ocupam a maior parte do culto, e, à
pregação, é reservado um tempo bastante reduzido. Em outras, a pregação
domina o culto inteiramente, e o máximo que se faz é cantar poucos hinos
tradicionais ao som do órgão. Em algumas, há dramatização, coreografia,
apresentações, danças; em outras, nem sequer se pode dizer “boa noite”.
Diante de todas essas diferenças, surge a pergunta: Qual é o modelo de
culto que agrada a Deus?

Requisitos indispensáveis
Antes de tratar dos elementos propriamente ditos, falaremos ainda de
alguns conceitos que tomam a forma de requisitos para o culto. Ou seja,
são requisitos básicos que Deus requer do adorador para que ele possa
aceitar o seu culto, Sem eles, o culto não será aceito, independentemente de
sua ordem. Não pretendemos listar todos os requisitos indispensáveis, ape­
nas aqueles que entendemos ser os mais urgentes para a presente época.
526 Razão da esperança

A necessidad e de santidade
O primeiro requisito é a santidade. No Antigo Testamento, a questão da
santidade como pré-requisito fundamental à adoração se expressa princi­
palmente a partir da questão do termo “impuro”. A impureza desqualificava
o adorador para se encontrar com Deus, significando que ele não estava
preparado para se apresentar diante do Senhor.1 E interessante que muitas
práticas, no caso de Israel, deixavam o povo “impuro”. E muitas delas eram
inevitáveis, como, por exemplo, cuidar dos mortos, dar à luz, etc. Entretan­
to, nem por isso as pessoas tinham desculpas para se aproximar de Deus.
Deus queria que o povo entendesse que ele é completamente diferente dos
seres humanos, e exige santidade de quem se aproxima dele, uma santidade
não meramente de intenções. O povo precisava entender a exigência de
santidade por dois motivos. Como já foi dito, em primeiro lugar, para que o
povo entendesse que não poderia se aproximar de maneira irreverente ou
presunçosa diante do Senhor. E, em segundo lugar, para que Israel enten­
desse que era um povo completamente diferente de todas as outras nações.
Isso porque somente um povo separado para Deus poderia prestar adora­
ção ao Deus Santo.
Assim, não há como chegarmos à sua presença se os nossos motivos e
também os nossos atos externos não são santos e puros. E inútil argumen­
tarmos que a única coisa importante é a atitude interior do coração, pois
Deus exige santidade completa. Portanto, a nossa postura deve ser santa,
tanto quanto os nossos pensamentos; toda a nossa vida deve ser santa. A
santidade de Deus precisa nos afetar de tal modo que não nos apresente­
mos diante dele descuidadamente, mas que sejamos tomados de tal reve­
rência a ponto mesmo de confessar como Jó: “Eu te conhecia só de ouvir,
mas agora os meus olhos te vêem. Por isso me abomino, e me arrependo
no pó e na cinza” (Jó 42.5,6). Diante da santidade de Deus e da nossa
condição pecaminosa, não nos resta outra atitude a não ser demonstrar
toda reverência e suplicar a sua graça, a fim de que ele nos habilite a lhe
prestar um culto aceitável.2 Definitivamente, Deus não está disposto a acei­
tar “iniqüidade associada ao ajuntamento solene” (Is 1.13).

A necessidad e da m ediaç ão de Je su s Cristo


O tema da santidade nos leva naturalmente a pensar no mediador. Nun­
ca alcançaremos o padrão de santidade exigido, embora isso não deva nos
levar a desleixar da busca. O próprio Deus providenciou um mediador. A
Á ordem do a d io 521

condição decaída do ser humano é tal que ele não pode permanecer nem
um instante sequer na presença de Deus, sem alguém que sirva de interme­
diário.3 Deus estabeleceu Jesus Cristo como o único mediador entre si e os
seres humanos (lTm 2.5). Jesus é o mediador porque ele representa tanto
Deus quanto os próprios seres humanos, uma vez que, na sua pessoa con­
vivem tanto a natureza humana na sua perfeição, quanto a divina. Somos
aceitos por Deus “em Jesus”, e não podemos, portanto, nos apresentar
diante de Deus “sem Jesus”.
Uma das passagens que melhor expressam a mediação de Jesus com
respeito ao culto é Hebreus 13.15-21. O versículo 15 diz: “Por meio de
Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto
dos lábios que confessam o seu nome”. E os versículos 20,21 dizem: “Ora,
o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor,
o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe
em todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em vós o que é
agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o
sempre. Amém!” O ensino implícito na passagem é bem perceptível: o
verdadeiro culto precisa ser oferecido a Deus por meio de Jesus Cristo, pois
é somente por meio de Cristo que algo pode ser agradável a Deus.
A mesma idéia da passagem acima se encontra em 1 Pedro 2.5: “Tam­
bém vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual
para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais
agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. O próprio termo “sa­
cerdote” implica oferecer culto; logo, essa passagem passa a idéia da obri­
gatoriedade do culto. A função do sacerdote é oferecer sacrifícios, entre­
tanto, já não há sacrifício a ser oferecido, uma vez que Jesus ofereceu um
sacrifício completo, mas resta algo que pode ser agradável a Deus, que
são os sacrifícios espirituais oferecidos por intermédio de Jesus Cristo.
Por isso, nem toda adoração é aceitável diante de Deus, somente aquela
que é feita por meio de Jesus. O nosso culto, que em si mesmo não teria
qualquer valor, se torna algo grandioso e sublime quando mediado por
Jesus Cristo.

A nec essidade de preparo

Como entendemos que a adoração não é uma atividade meramente sub­


jetiva ou especulativa, mas um encontro real de Deus com o seu povo, e
como entendemos a singularidade do caráter de Deus, preparar-se para o
culto é essencial. Como disse o Dr. Van Groningen: “É necessário separar
528 Razão da esperança

tempo para cultuar a Deus. Expressar amor toma tempo. Expressar devo­
ção toma tempo. E necessário tempo para expressar adoração e para nos
colocarmos sob completa submissão a Deus, como é expresso em vários
atos de adoração”.4 Esse tempo precisa ser separado tanto antes quanto
durante o momento da adoração pública. E preciso que as pessoas se aper­
cebam da necessidade que têm de se achegar até a presença de Deus e dos
benefícios recebidos por meio disso. E certo que Deus quer ser louvado,
entretanto, ele não é o maior beneficiado na adoração, uma vez que não
acrescentamos nada que ele já não possua. Nós somos grandemente bene­
ficiados porque recebemos coisas que necessitamos em grandíssima escala.
Por isso, as pessoas honram a Deus quando chegam para a adoração famin­
tas e em atitude de expectativa, cônscias da sua necessidade, esperando a
ação de Deus. Como afirmou John Owen:

Pretender aproximar-se de Deus, mas não com a expectativa dc receber


boas e grandes coisas da parte dEle, é desprezar a Deus (...) Muitos daque­
les que melhor professam a religião são por demais negligentes a essa ques­
tão. Não anelam, nem suspiram, no homem interior, por renovadas pro­
messas do amor de Deus; não consideram sobre o quanto carecem disso...
não preparam as suas mentes para receber tal bênção, nem se achegam com
a expectativa de que elas lhes serão comunicadas; não fixam corretamente a
sua fé sobre essa verdade, a saber, que essas santas administrações e deveres
foram determinados por Deus, antes de qualquer coisa, como o caminho e
o meio de transmitir o seu amor e o senso desse amor às nossas almas. Daí
origina-se a mornidão, a frieza e a indiferença para com os deveres da santa
adoração, que vão aumentando entre nós.5

Lloyd-Jones entendeu muito bem o espírito da nossa época, em que as


pessoas não se preparam para o culto; ele diz:

Não há nada vital na religião e na adoração de tais pessoas. Elas nada espe­
ram, nada recebem, e nada acontece com elas. Vão à casa de Deus, não com
o propósito de terem um encontro com Deus, não com o desejo de espera­
rem nEle, isso nem passa por suas mentes, nem entra em seus corações que
algo possa acontecer num culto. Dizem: É que sempre fazemos isso no
domingo de manhã. E nosso costume. E nosso hábito. É uma coisa certa a
fazer. Mas a idéia de que Deus possa subitamente visitar seu povo c descer
sobre ele, a emoção de estar na presença de Deus e sentir sua proximidade,
e seu poder, nunca entra em sua imaginação,

E ele continua, agora advertindo seus leitores:


A ordem do culto 529

Devemos examinar-nos a nós mesmos. Será que vamos à casa de Deus


esperando que algo aconteça? Ou será que vamos simplesmente para ouvir
um sermão, cantar nossos hinos, e encontrar amigos? Com que freqüência
pensamos em termos de nos reunirmos para encontrar com Deus, para
adorá-lo, estar em sua presença e escutar o que ele tem a nos dizer? Não
estamos correndo o incrível risco de nos contentarmos simplesmente por­
que nossas crenças são corretas? Nossas crenças podem ser corretas, e ain­
da assim podemos perder a vida, a parte vital, o poder, aquilo que realmente
faz da adoração o que ela deve ser - algo no Espírito e na verdade.6

Isso realmente pode acontecer. As coisas podem se tornar tão rotineiras


a ponto de, domingo após domingo, estarmos na igreja, mas nada aconte­
cer conosco. Não há preparo, não há expectativa e não há bênção.7

A necessidad e de c o m u n h ã o
O culto público é apresentado pela igreja como corpo de Cristo. A ca­
racterística marcante do corpo é que ele é constituído de membros que
fazem parte um do outro, e que são todos submissos à Cabeça, que é Cris­
to. Logo, tudo no culto envolve comunhão. E se não houver comunhão
entre os membros e a Cabeça, e também em relação aos próprios membros
entre si, não há culto. A comunhão dos crentes na Bíblia é acentuada pelo
uso da expressão “uns aos outros”. Por causa da comunhão em Cristo,
Paulo incentiva os crentes a acolher “uns aos outros” (Rm 15.7), amar e
suportar “uns aos outros” (Ef. 4.2, 15, 16; 5.2), a não julgar “uns aos ou­
tros” (Rm 14.3,13), a edificar “uns aos outros” (Rm 14.19).8 Sem dúvida o
culto é vertical, pois ele é prestado a Deus e não às pessoas, mas sem uma
vida de comunhão e serviço feito “uns aos outros”, a adoração não vai
subir muito alto.
Em Romanos 15.1-7 encontramos a seguinte admoestação de Paulo:

Ora, nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e
não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próxi­
mo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a
si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram
sobre mim. Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi
escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenha­
mos esperança. Ora, o Deus da paciência e da consolação vos conceda o
mesmo sentir de uns para com os outros, segundo Cristo Jesus, para que
concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus c Pai de nosso Senhor
530 Razão da esperança

Jesus Cristo. Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo
nos acolheu para a glória de Deus.

Embora a passagem não esteja falando especificamente do culto públi­


co, fala de algo necessário para que Deus seja glorificado: o culto deve ser
uníssono. Como MacArtur afirma: “É somente quando seu povo está ‘em
acordo’ na adoração dEle, e com ‘uma voz’ que verdadeiramente glorifica o
Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo”.9 Por isso, entendemos que a
comunhão com Deus, e com os irmãos é fundamental para que um culto
seja aceitável a Deus.

Elementos indispensáveis
Agora devemos pensar nos elementos que são indispensáveis ao culto
verdadeiro. Precisamos buscar isso na Palavra de Deus; porém, o Novo
Testamento não nos fornece um modelo específico de liturgia no qual pos­
samos identificar os elementos que compõem uma liturgia bíblica. Entre­
tanto, a partir do estudo de diversas passagens da Palavra de Deus, pode­
mos chegar a quatro elementos que são comuns, ou básicos na liturgia bí­
blica. São eles: Instrução, Oração, Louvor e Ceia do Senhor. Precisamos
ainda considerar as atitudes por meio de gestos e posturas na adoração que
são descritas pela Bíblia.

Instr ução

Desde o começo, a instrução foi um elemento vital para a vida da igreja


cristã. Deus havia dado a Escritura com o propósito de ensinar o povo e
levá-lo à maturidade (2Tm 3.16,17). O ensino é um antídoto contra a falsa
doutrina (lTm 1.3), produz amor entre os crentes (lTm 1.4) e nutrição
espiritual (lTm 4.6). Entre todas as atividades realizadas no culto, o ensino,
ou a pregação da Palavra é a mais necessária. Em todas as atividades do
culto, como louvor, oração e ordenanças, é certo que Deus vem ao encon­
tro do seu povo que se reúne no nome do seu Filho, mas de um modo
especial isso acontece durante a pregação. Os puritanos defendiam que, “a
pregação na igreja é a suprema ministração do Espírito”.10 Entretanto, é
necessário que o expositor da Palavra de Deus seja fiel ao que a Palavra
ensina. Além da obra iluminadora do Espírito Santo, faz-se necessário o
conhecimento das línguas originais e dos recursos da hermenêutica que
A ordem do cullo

abrem o horizonte bíblico do intérprete, de maneira que ele tenha todas as


condições de extrair o verdadeiro significado bíblico, a fim de repassá-lo e
aplicá-lo aos seus ouvintes. Infelizmente, no mundo moderno, a pregação
tem perdido o fascínio que exercia no passado.11 Muitos a consideram ul­
trapassada, especialmente depois da invenção da televisão e da multimídia.
O número de bons pregadores diminui cada vez mais, juntamente com o
espaço reservado para a pregação no culto. As pessoas têm esquecido que
o método divino é salvar as pessoas pela loucura da “pregação” (ICo 1.21).
Elas deveriam atentar às palavras de MacArthur:

Não ousemos menosprezar o principal instrumento de evangelismo: a pro­


clamação direta e cristocêntrica da genuína Palavra de Deus. Aqueles que
trocam a Palavra por entretenimento ou artifícios descobrirão que não pos­
suem um meio eficaz de alcançar as pessoas com a verdade de Cristo (...)
Os que desejam colocar a dramatização, a música e outros meios mais sutis
no lugar da pregação deveriam levar em conta o seguinte: Deus, intencio­
nalmente, escolheu uma mensagem e uma metodologia que a sabedoria
deste mundo considera como loucura.12

Oração

John Bunyan, com excelência, definiu oração como: “Derramar de modo


sincero, consciente e afetuoso o coração e a alma diante de Deus, por meio
de Cristo, no poder e com a ajuda do Espírito Santo, buscando as coisas
que Deus prometeu, ou que sejam conforme a sua Palavra, para o bem da
igreja, com fiel submissão a sua vontade”.13 A oração é uma das práticas
mais comuns enfatizadas pela Bíblia. Jesus orou muitas vezes durante o seu
ministério (Mc 1.35; Lc 3,21,22; 5.16; 6,12; 9.18ss; 21.37ss.; 22.39ss; Jo 17,
etc). A igreja primitiva adotou o modelo de Jesus (At 1.14, 24; 2.42, 46;
5.20,21, 42; 6.4, 6; 10.9; 12.5ss.; 16.25; 20.7ss). A oração do Senhor foi o
modelo de oração instituído por Jesus (Mt 6.9-13; Lc 11.2-4). Essa oração
enfatiza o relacionamento entre nós e Deus (Pai nosso), preocupa-se com a
glória de Deus em primeiro lugar (nome, reino, vontade), reserva espaço
para as necessidades físicas (o pão de cada dia), contempla as nossas neces­
sidades espirituais (perdão, tentação, mal) e reconhece a absoluta soberania
de Deus (reino, poder e glória para sempre...). Um culto autêntico não omite
qualquer uma dessas partes nos seus momentos de oração, e procura man­
ter o equilíbrio entre petições e agradecimento. Portanto, a oração deve ter
um papel preponderante na adoração, sendo o meio pelo qual agradece­
mos, pedimos, intercedemos e exaltamos o nome do Senhor.
532 Razão da esperança

Louvor

Tudo o que é feito no culto é um louvor ao Senhor. Porém, podemos


identificar na Bíblia o louvor como “cantar ao Senhor” (ver Ne 12.46; Jó
35.10; SI 40.3; SI 66.2,8; SI 100.4; SI 106.12; SI 147.1; SI 149.1; Is 42.10). O
louvor, no sentido de cantar ao Senhor, é uma das características mais
marcantes que enfatizam a piedade na bíblia. Já muito cedo encontramos
os cânticos de Moisés (Ex 15.1-19). Entretanto, é atribuída a Davi a siste­
matização do “louvor” em Israel. O livro de 1 Crônicas nos dá detalhes da
instituição do serviço levítico no templo dedicado à música (lC r 23.1-26.32
principalmente 23.5,30 e o cap. 6). Além disso, Davi compôs muitos sal­
mos, no que foi seguido por Asafe, pelos filhos de Coré, Hemam, Jedutum
e outros. No Novo Testamento, encontramos muitos fragmentos de hinos
que descrevem a redenção em Cristo (Lc 1.46-55, 68-79; 2.13ss; Ef 1.3-14;
Cl 1.18-20; Ap 5.9-14; 7.10-12). Também há cânticos que falam do Ser de
Deus e de sua vinda (Ap 4.8), bem como de sua obra criadora (Cl 1.15-17;
Ap 4.11). Portanto, a Bíblia mostra claramente que os crentes sempre gos­
taram muito de cantar. As principais passagens encontradas no Novo Tes­
tamento para cânticos são Colossenses 3.16: “Habite, ricamente, em vós a
palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sa­
bedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com
gratidão em vossos corações”; e seu paralelo em Efésios 5.19: “Falando
entre vós com salmos, entoando e louvando de coração ao Senhor, com
hinos e cânticos espirituais”. Portanto, é ponto pacífico que o Novo Testa­
mento apóia o uso de canções na igreja. Entretanto, que tipo de canções?
Existirá alguma diferença entre “salmos e hinos e cânticos espirituais”?
Quando pensamos em “salmos” é natural que nos lembremos do saltério
do Antigo Testamento. Quanto a hinos, a palavra só aparece nas passagens
de Efésios e Colossenses. Entretanto, as características de um hino bem
podem ser as de um salmo. Existem hinos que não pertencem ao saltério,
como por exemplo, o magnificai de Lucas 1.46-55, e o Benedictus de Lucas
1.68-79. Mesmo partes das cartas de Paulo podem conter fragmentos de
hinos, como já vimos anteriormente. A palavra “cânticos” refere-se a “um
poema escrito para ser cantado”.14 Assim sendo, é provável que quando
Paulo se refere a esses três termos, ele está, em alguma medida, diferenci­
ando-os. Salmos são principalmente os salmos do Antigo Testamento. Hinos
são principalmente os cânticos do Novo Testamento que louvam a Deus e
a Cristo; e os cânticos espirituais são qualquer outro tipo de canção sagra­
da que trate de temas que não estão relacionados com louvor direto a Deus
A ordem do culío 533

ou a Cristo.15 Porém, não devemos exagerar nessas distinções, pois todos


têm que ter algo em comum: o louvor de Deus. Porém, o que chama a
atenção em ambas as passagens é o ambiente alegre em que essas canções
são entoadas. A passagem de Efésios vem logo depois da advertência para
não se embriagar com vinho. O vinho produzia alguma alegria, mas era
uma alegria falsa que levava à ruína. Ao contrário, os crentes devem en­
cher-se do Espírito, cuja alegria é verdadeira e incomparável. E algo bas­
tante evidente que os cânticos espirituais são deleitosos tanto para quem
canta quanto para Deus que os ouve, desde que eles sigam as orientações
da Palavra.
Algo interessante de se observar é a expressão empregada na passagem
de Efésios 5.19: “falando entre vós com salmos”. Essa expressão “entre
vós”, decorre do pronome reflexivo grego que significa literalmente “uns
aos outros”.16 Stott, ao comentar essa expressão, afirma:

Sempre que os cristãos se reúnem, gostam muito de cantar tanto a Deus


quanto uns aos outros. Às vezes, cantamos em antifonia, conforme os ju­
deus faziam no templo e na sinagoga, e como também faziam os cristãos.
Além disso, alguns dos salmos que cantamos são, na realidade, não adora­
ção a Deus mas, sim, mútua exortação.17

Há muitos exemplos disso nos salmos do Antigo Testamento. Um deles


é o Salmo 95, que é um convite à adoração: “Vinde, cantemos ao Senhor,
com júbilo, celebremos o Rochedo da nossa salvação. Saiamos ao seu en­
contro com ações de graça, vitoriemo-lo com Salmos” (v. I).18
O que queremos enfatizar por último não é a existência dos cânticos na
liturgia, mas a sua qualidade no que se refere à biblicidade. A passagem de
Colossenses diz: “Habite ricamente em vós a palavra de Cristo; instruí-vos
e aconselhai-vos mutuamente em toda sabedoria, louvando a Deus...”. O
pré-requisito para o louvor é o conhecimento da Palavra, porque somente
quando se conhece a Palavra é que se pode louvar a Deus como ele quer ser
louvado. Todo cântico que é composto sem fundamentar-se na Palavra de
Deus pode ter arte, simetria ou profissionalismo, mas certamente não é
adoração, e, por conseguinte, não tem lugar no culto. Isso vale tanto para
corais como para os populares “conjuntos” ou “grupos” de louvor. O mais
importante não é se a música é tocada e dirigida por um organista apenas
ou por um conjunto de duzentas vozes, o que importa é se há consagração,
santidade e biblicidade.
534 Razão da esperança

 ceia d o Sen h or
Da igreja primitiva nos vêm o ensino de que os crentes “perseveravam
na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações”
(At 2.42). No grego, o artigo definido precede o substantivo “pão” o que
indica que os cristãos participavam de “o pão” separado para o sacramen­
to da comunhão (ver 20,11; ICo 10.16)”.19 Isso significa que a ceia era
celebrada regularmente. Em Trôade, os cristãos estavam reunidos no pri­
meiro dia da semana com o fim de partir o pão (At 20.7), sendo que o texto
parece demonstrar um vínculo quase automático entre o “dia do Senhor”
e o “partir do pão”.20 Na Primeira Carta aos Coríntios, quando Paulo os
admoesta sobre os cuidados que eles deveriam ter com respeito à Ceia do
Senhor, ele dá a entender que eles faziam isso sempre. Ele diz: “Nisto,
porém, que vos prescrevo, não vos louvo, porquanto vos ajuntais, não para
melhor; e sim para pior” (ICo 11.17). E, no versículo 20, ele acrescenta:
“Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que
comeis”. A pressuposição básica era de que sempre que a igreja se reunia,
eles participavam da Ceia.
O relato mais completo e antigo que temos de uma reunião cristã foi
feito por Justino, no século 2o, e nos mostra que a Ceia era servida domini-
calmente:

No dia que se chama sol, celebra-se uma reunião de todos os que moram
nas cidades ou nos campos, e aí se lêem, enquanto o tempo permite, as
Memórias dos Apóstolos ou os escritos dos profetas. Quando o leitor ter­
mina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos
exemplos. Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos as preces.
Depois de terminadas, como já dissemos, oferece-se pão, vinho e água, e o
presidente, conforme suas forças, faz igualmente subir a Deus suas preces e
ações de graças e todo povo exclama, dizendo: Amém! Vem depois a distri­
buição e participação feita a cada um dos alimentos consagrados pela ação
de graças e seu envio aos seus ausentes pelos diáconos.21

Calvino cria que a Ceia deveria ser celebrada pelo menos uma vez por
semana. Ele escreve na sua obra magna: “Deixando, pois, de lado todo este
sem fim de cerimônias e pompas, a Santa Ceia poderia ser administrada
santamente, com freqüência, ou ao menos uma vez na semana...”.22 Porém
sabemos que ele não fez disso uma regra, tanto que, por decisão do
Consistório de Genebra, a Ceia não pôde ser realizada dominicalmente, mas
apenas quatro vezes ao ano: no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e no pri­
A ordem do culto 535

meiro domingo de setembro.23 Calvino se submeteu à decisão do Concílio,


porém, tanto Lutero como a Igreja Anglicana mantiveram a Ceia do Senhor
todos os domingos. Por isso, a Ceia poderia fazer parte de todos os cultos
públicos da igreja. De qualquer modo, realizada uma vez por mês, a Ceia
deve ser um momento muito especial de comunhão com Deus, e de renova­
ção de forças espirituais. Ela tem o seu lugar no culto como o momento
mais especial, pois por meio de uma cerimônia bastante simples, o Senhor
demonstra a nós suas insondáveis riquezas e nos transmite a sua graça.

Gestos e posturas

Gestos e posturas não são elementos essenciais ao culto como os ele­


mentos expostos acima. Porém, eles sempre fizeram parte do culto desde o
Antigo Testamento, e, portanto, devem ser considerados. A cultura do ho­
mem oriental sempre foi rica em gestos pelos quais os sentimentos são
expressos e força é acrescentada às palavras, Nós temos abundante teste­
munho disso na Bíblia. Neste momento nos interessam os gestos e as pos­
turas ligados diretamente com a adoração pública.
1) Prostrar-se. Denotava, entre os orientais, uma expressão comum de
humildade e profunda reverência diante de um superior ou benfeitor. Foi
usada na adoração ao Senhor (Gn 17.3; Nm 16.45), e foi a mais intensa
maneira de mostrar ênfase numa petição. Moisés e Arão freqüentemente se
colocavam nessa postura (Nm 14.5; 16.4, 45).
2) Curvar-se. Eleazar curvou-se diante do Senhor, quando encontrou a
esposa escolhida para Isaque (Gn 24.26). Os hebreus, ao deixarem o Egito,
foram convidados a se curvar diante do Senhor (Ex 11.8). Deus disse por
intermédio de Isaías diz: “Diante de mim se dobrará todo joelho” (Is 45.23).
Essa parece uma postura intermediária. E um abaixar do corpo, mas não
até o chão.
3) Ajoelhar-se. Um substituto do “prostrar-se”, sendo uma atitude co­
mum na adoração, freqüentemente mencionada no Antigo e no Novo Tes­
tamento (lRs 8.54; SI 95.6; Is 54.23; Lc 22.41; At 7.60; Ef 3.14). Salomão se
ajoelhou diante do altar na ocasião da dedicação do templo. Esdras ajoe­
lhou-se e dirigiu-se ao Senhor em oração (Ed 9.5). Daniel ajoelhava-se e
orava três vezes ao dia (Dn 6.10).
4) Permanecer em pê. Essa foi a mais postura de oração mais comum, espe­
cialmente na adoração pública. Abraão “permaneceu diante do Senhor”
quando intercedeu por Sodoma (Gn 18.22, também ISm 1.26; Lc 18.11).
Salomão “permaneceu” em oração diante do Senhor quando da dedicação
536 Razão da esperança

do templo (lRs 8.22). Numerosas alusões à oração no Novo Testamento


provam que “permanecer” foi uma postura comum nos tempos bíblicos
(Mt 6.5; Mc 11.25; Lc 18.11). Em geral, entende-se que essa expressão sig­
nifica “ficar em pé”.
5) Levantar as mãos. Movimentos de mãos e outras partes do corpo, cons­
cientes ou não, expressam atitudes ou sentimentos. A Bíblia emprega pala­
vras e frases para possibilitar que os leitores visualizem gestos, posturas e
expressões faciais. E durante a oração que a Bíblia mais evidencia o uso de
gestos. E o gesto mais comum é o de “estender as mãos” e levantá-las
como que em direção ao Senhor. Salomão “estendeu as mãos para o céu”
para orar quando da dedicação do templo (IR 8.22, 38, 54). Esdras se pôs
“de joelhos e ergueu as mãos para o Senhor” (Ed 9.5; ver Jó 11.13; SI 44.20;
Is. 1.15; Jr 4.31; SI 28.2; 134.2).
6) Bater palmas. Muitas passagens na Escritura falam sobre “bater pal­
mas”. Vamos tentar enquadrá-las por tópicos, conforme o significado: 1)
ira: “Então, a ira de Balaque se acendeu contra Balaão, e bateu ele as suas
palmas” (Nm 24.10; ver Ez 21.14; 21.17). 2); desprezo: “Com desprezo,
bate ele palmas” (Jó 34.37;verLm 2.15;N a3.19). 3); desaprovação: “Assim
diz o S e n h o r Deus: Bate as palmas, bate com o pé e dize: Ah! Por todas as
terríveis abominações da casa de Israel!” (Ez 6.11; 22.13); aprovação: “Tal
proceder é estultícia deles; assim mesmo os seus seguidores aplaudem o
que eles dizem”. (S I 49.13); exaltação: “Então, Joiada fez sair o filho do rei,
pôs-lhe a coroa e lhe deu o Livro do Testemunho; eles o constituíram rei, e
o ungiram, e bateram palmas, e gritaram: Viva o rei!” (2Rs 11.12; Is 55.12;
Ez 25.6); júbilo: “Batei palmas, todos os povos; celebrai a Deus com vozes
de júbilo” (S I 47.1; 98.8). Assim percebemos que não há um significado
uniforme para “bater palmas” na Bíblia. Ela tanto pode significar aprova­
ção como reprovação, pois depende da atitude íntima de quem está prati­
cando. No contexto de adoração, talvez a única passagem que pudesse ser
usada é o Salmo 47.1 que manda todos os povos baterem palmas e celebra­
rem a Deus com vozes de júbilo. Esse é um salmo chamado “de entroniza­
ção”, em que Israel e as nações estrangeiras são chamadas a cantar louvores
ao reinado de Deus.24 Nessa passagem, bater palmas é uma atitude de lou­
vor, porém, não dá para dizer com certeza se é para acompanhar a música
com palmas, embora as duas coisas estejam juntas no mesmo versículo, e
também no Salmo 98: “Os rios batam palmas, e juntos cantem de júbilo os
montes, na presença do S e n h o r , porque ele vem julgar a terra” (vs. 8,9).
7) Danças. No Antigo Testamento há referências ocasionais a danças
como motivo exclusivo de diversão e comemoração com significação reli-
A ordem do cullo 537

giosa. Grupos de mulheres dançavam em ocasiões de celebração nacional.


Miriã e um grupo de mulheres dançaram depois da travessia do Mar Ver­
melho (Ex 15.20). As mulheres saíram “cantando e dançando com tambo­
res, com júbilo e com instrumentos de música” depois da vitória de Davi e
Saul sobre os filisteus (ISm 18.6). As mulheres “dançavam nas rodas” em
Juizes 21.19-21 quando os benjamitas escolhiam suas esposas. Com respei­
to a homens, há somente o caso de Davi que dançava diante da arca da
aliança, quando finalmente a levou para Jerusalém (2Sm 6.14). Alguns Sal­
mos falam em dançar como um ato de louvar ao Senhor. O Salmo 87, ao
falar sobre a glória de Jerusalém, fala do louvor dos cantores: “Todos os
cantores, saltando de júbilo, entoarão: Todas as minhas fontes são em ti”
(v.7). Outros salmos mandam dar louvor ao Senhor por meio de dança:
“Louvai-o com adufes e danças; louvai-o com instrumentos de cordas e
com flautas” (SI 150.4).25 Deve ser dito que os Salmos 148,149 e 150 estão
falando que tudo deve louvar ao Senhor. E, de fato, tudo o que existe, de
algum modo é para o louvor do Senhor, mas nem tudo cabe no culto sole­
ne. A partir desses salmos, não é possível argumentar que as danças devam
fazer parte do culto público. No Novo Testamento há poucas referências a
danças, entretanto, sabe-se que era algo muito comum na vida do povo (Lc
15.25), a ponto de fazer parte de jogos infantis (Mt 11.17; Lc 7.32).26 Na
Bíblia, a dança tem, exceto no caso de Herodíades, pouco relacionamento
com a sensualidade, sendo mais associada com a alegria devido a circuns­
tâncias favoráveis, ou por gratidão a Deus. Sabemos que a situação de nos­
sos dias é oposta, pois é praticamente impossível dissociar sensualidade de
dança, e, portanto, é difícil estabelecer relação entre “dança” e “culto”.
8) Tocar Instrumentos. A música em Israel teve um grande desenvolvimen­
to depois do estabelecimento da monarquia. Com a construção do templo,
apareceu a “música profissional” para os rituais religiosos (lRs 1.34; 39,40).
Davi foi um grande compositor de cânticos (ISm 16.16-18), e um inventor
de instrumentos (Am 6.5). A estrutura de alguns salmos nos dá uma idéia
de como a música vocal era executada. Percebe-se a existência de refrões e
aclamações (Aleluia), divisões em estrofes, e sobre tudo a comum divisão
de paralelismo poético, responsorial e antífono. Muitos desses salmos fo­
ram feitos para serem cantados ao som de instrumentos selecionados.
Muito do que é conhecido sobre os instrumentos da Bíblia vem da pró­
pria evidência literal dela, embora haja também muitas evidências arqueo­
lógicas. Esses são alguns instrumentos citados pela Escritura: trombeta,
cítara, flauta (Dn 3.5,7.10; SI 150.3-5); címbalo sonoro e retumbante (SI
150.5); suave arpa (SI 81); instrumentos de cordas (SI 150.4); harpa (SI 150.3);
538 Razão da esperança

saltério (SI 81.2); tamboril (SI 81.2); lira (Is 5.12), etc. Portanto, não há nada
que impeça o uso de instrumentos variados no louvor do Senhor, porém,
não se deve pensar que o simples fato de haver instrumentos é suficiente
para que haja verdadeiro louvor. Devemos lembrar que o verdadeiro lou­
vor não precisa de instrumentos, nem de muitos gestos, mas simplesmente
de um coração sincero, afinal, Jesus disse que Deus pode tirar um “perfeito
louvor da boca de pequeninos e crianças de peito” (Mt 21.16).
Nessa questão dos elementos do culto, a igreja precisa colocar em práti­
ca o exercício do amor cristão que ajuda a solucionar as divergências que
não são tão importantes. Divergências sempre surgirão enquanto gostos
pessoais estiverem envolvidos, e muitas vezes é difícil identificar quando
nós mesmos estamos querendo ser bíblicos ou apenas defendendo as nos­
sas preferências pessoais. Por isso, o critério do amor se faz necessário.
João Calvino percebeu isso muito bem:

Como o Senhor na Escritura tem reunido fielmente, e tem declarado plena­


mente todo o conjunto da verdadeira justiça e de seu culto divino, e todo o
necessário para a salvação, com respeito a essas coisas, somente ele é o Mes­
tre a quem se deve escutar. Mas, como ele não quis prescrever em particular
o que devemos seguir na disciplina e nas cerimônias —porque sabia muito
bem que isto depende da condição dos tempos, e que uma só forma não
convém a todos - é preciso acolhermos aqui as regras gerais que ele deu,
para que em conformidade com elas, se regule e ordene tudo quanto exigir a
necessidade da igreja, no tocante à ordem e ao decoro. Finalmente, como
não deixou expressa nenhuma coisa, por não tratar-se de algo necessário
para nossa salvação, e porque devem adaptar-se diversamente para edifica­
ção da igreja conforme os costumes de cada nação, convém, segundo exigir
a utilidade da igreja, mudar e abolir as passadas, e ordenar outras novas. Ad­
mito que não devemos nos apressar a fazer mudanças temerariamente a cada
passo e sem motivo sério. O amor decidirá perfeitamente o que prejudica e o
que edifica; se permitirmos que ele governe, tudo irá bem.27

O amor visa à edificação e não à divisão, e Paulo já dizia que o amor não
busca o proveito próprio (ICor 13.5), antes o bem comum. Desse modo,
em questões que não são essenciais, que não estão explícitas na Bíblia, e que
não envolvem a majestade de Deus ou o próprio caráter do cristão, como
Calvino sugere, não precisamos ser excessivamente rígidos. Calvino, no es­
tabelecimento da ordem do culto, realmente não foi dogmático, pois enten­
dia que muitos detalhes poderiam ser modificados a critério da congrega­
ção, mas jamais esteve disposto a tolerar abusos.28
 ordem do culto 539

Características indispensáveis
Já falamos de requisitos e elementos indispensáveis à adoração pública,
agora falaremos de suas características indispensáveis,29 A adoração que a
igreja oferece a Deus é sublime na sua essência, No encontro entre Deus e
seu povo, Deus fala com o seu povo a verdade eterna e imutável, e o seu
povo responde com adoração. Todos os elementos que compõem esse acon­
tecimento majestoso são sublimes em sua essência, e tornam todo o ato do
culto algo maravilhoso.

H um ild ad e

Na presença do “Alto e Sublime que habita a Eternidade, o qual tem o


nome de Santo” (Is 57.15), outra característica não poderia ser mais própria
do que humildade por parte dos que se achegam a ele. Essa característica é
muito própria pelo “senso de grandeza” que os adoradores devem ter em
relação ao Adorado, sabendo que ele ultrapassa o próprio entendimento.
Entretanto, há algo mais que deve nos levar à devida humildade na presen­
ça do “altíssimo”, que é o conhecimento da nossa situação miserável se
estivermos separados de Jesus Cristo, Que direito temos de entrar na sua
presença? Quais são as nossas credenciais? Não nos apresentamos diante
de Deus confiados nos nossos próprios méritos, mas no nome dele, pelo
sangue dele que nos incentiva a ter “intrepidez para entrar no Santo dos
Santos” (Hb 10.19). O adorador precisa ter consciência disso. Distanciados
da graça de Cristo, que nos habilita, não podemos oferecer adoração a Deus.
Por isso, a humildade é essencial no culto. Na verdade, nada temos para
oferecer que ele não nos tenha dado. Nesse ponto, algo interessante deve
ser dito a respeito das ofertas. Quando o povo de Deus oferece seus dízi­
mos ao Senhor, na verdade está apenas devolvendo uma parte daquilo que
o próprio Deus já lhe concedeu. Quando oferecemos o nosso louvor a
Deus, não temos do que nos orgulhar, pois estamos apenas cumprindo a
nossa função.

Espiritualidade
Jesus disse: “Deus é Espírito, e importa que seus adoradores o adorem
em espírito e em verdade”. (Jo 4.24). Por isso, todo “formalismo” no senti­
do pejorativo da palavra é condenado na adoração. Cultuar a Deus de modo
540 Razão da esperança

rotineiro, apenas porque se tornou um costume, não é adoração de modo


algum, antes é uma abominação diante do Senhor. Por ser espiritual, a ado­
ração glorifica grandemente a Deus porque realmente reconhece quem ele
é. Por isso, o que importa no culto não são meramente as fórmulas, mas o
verdadeiro conteúdo da adoração que é de acordo com a Bíblia e que glori­
fica a Deus de todo o coração e com toda a alma. Talvez, quando Jesus
disse que a adoração era em “espírito”, possivelmente estivesse se referindo
ao próprio Espírito Santo. O Espírito capacita a igreja a adorar de uma
maneira espontânea, Kuiper coloca algo no mínimo interessante no seu
livro sobre eclesiologia: “O Espírito já operava na igreja da antiga dispensa-
ção, entretanto, na nova dispensação foi derramado como nunca antes. E
por isso que, por um lado, o Novo Testamento contém muito menos deta­
lhes acerca da adoração coletiva que o Antigo Testamento”.30 O autor en­
tende que isso acontece porque o Espírito Santo nos ajuda nessa função, e
a Bíblia diz: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Cor 3.17).
Porém, se a adoração é “em Espírito” também é “em verdade”, ou seja, o
princípio regulador do culto é nada menos do que a verdade. Isso, além de
significar o elemento de sinceridade que é requerido dos adoradores, tam­
bém significa que a adoração deve estar de acordo com o que o próprio
prescreveu.

Formosura
Sem dúvida, a partir dos tempos do Novo Testamento, o que menos
importa na adoração pública é o local. A preocupação é com a qualidade
dessa adoração. O nome de Deus já foi adorado de modo perfeitamente
satisfatório nas catacumbas pela igreja primitiva, e em outros lugares igual­
mente provisórios ao longo dos séculos. Na adoração pública não há espa­
ço para arte por amor à arte. Todo ornamento que cause distração deveria
ser evitado na igreja. Nunca deve um sentido de satisfação estética, obtida
pelo ritmo de instrumentos, ou pela entonação perfeita de algum coral, ou
ainda por qualquer outro recurso estético como uma luz colorida que se
infiltra por algum vitral, ser confundido com o verdadeiro espírito de ado­
ração. Porém, isso não significa que se deva excluir da igreja todo e qual­
quer objeto que seja belo, ou ornamentado, ou mesmo simbólico. Os san­
tuários do Antigo Testamento e seus mobiliários foram feitos segundo o
modelo dado pelo próprio Deus (Nm 8.4), e sem dúvida eles eram belíssimos,
como também eram belas as roupas dos sacerdotes. Por isso, entendemos
que o lugar e os acessórios de adoração da igreja cristã, de acordo com as
A ordem do cullo 541

possibilidades, devem ser belos, entretanto, este belo deve se caracterizar


pela dignidade, sensibilidade e simplicidade. Porém, o que queremos enfa­
tizar em termos de “formosura” não é o aspecto estético visível da adora­
ção. Estamos falando de sua beleza inerente. A Escritura ordena ao povo
de Deus para adorá-lo “na beleza da sua santidade” (SI 29.2). O salmista
diz: “Uma coisa peço ao S e n h o r , e a buscarei: que eu possa morar na Casa
do S e n h o r todos os dias da minha vida, para contemplar a beleza do S e ­
n h o r e meditar no seu templo” (SI 27.4). Ele reconhece toda a formosura

divina, pois “Glória e majestade estão diante dele, força e formosura, no


seu santuário” (SI 96.6). A adoração é formosa por causa da formosura
daquele que é adorado. Quando a igreja entende a santidade de Deus, bem
como a obra divina da restauração oferecida ao ser humano decaído, está
preparada para contemplar a formosura da adoração.

Festividade
A alegria é uma das marcas da verdadeira adoração. E claro que pode
haver cultos especiais de humilhação e confissão de pecados, principal­
mente em tempos de calamidades e guerras, entretanto, mesmo nesses
momentos, a igreja não pode deixar de demonstrar a sua alegria. A alegria
do cristão independe das circunstâncias externas. Essa alegria se baseia ape­
nas no Senhor (Fp 4.4). Há uma passagem bíblica que ilustra bem essa
questão de alegria incondicional. Em Atos 16, na cidade de Filipos, Paulo e
Silas foram aprisionados, açoitados e lançados no cárcere. Com os pés pre­
sos no tronco, “por volta da meia-noite, oravam e cantavam louvores a
Deus” (At 16.25), Eles conseguiam louvar a Deus mesmo em meio a gran­
de sofrimento. Essa idéia bíblica com respeito à alegria é o próprio espírito
da adoração que realmente agrada a Deus. Não o adoramos apenas quando
tudo está bem. Nós o adoramos pelo que ele é, e pelo que nós somos por
sua graça. No momento do culto, não nos aproximamos de um Deus irado,
mas de um Deus gracioso. Somos como um filho que se aproxima de um
pai e não como um criminoso diante do juiz, pois todos os nossos pecados
foram levados por Jesus. A consciência dessas coisas deve nos acompanhar
durante o culto. O reconhecimento sincero disso torna alegre o nosso espí­
rito, enche-nos de gozo, e Deus se agrada grandemente dessa disposição.
No culto, como disse Karl Barth, a igreja “troca sua roupa de trabalho pela
roupa de festa”.31 No momento da adoração pública, todas essas coisas
precisam estar patentes na nossa mente, e o desejo de adorar ao Senhor
com alegria precisa permear toda a comunidade. Como disse o psicólogo
542 Razão da esperança

cristão Larry Crabb, “os portadores da imagem (de Deus) precisam mudar
de uma forma que os capacite a uma alegria de Deus, mais profunda, mais
adoradora, mais íntima...”32 Certamente, todo benefício será nosso, e Deus
se agradará do nosso louvor, como de um aroma suave.

Conclusão - Equilíbrio
Para que o culto seja aceito por Deus, ele precisa ter as características
que a Bíblia diz que ele tem. Porém, a Bíblia não deixou claro como deve
funcionar cada detalhe. No Antigo Testamento isso estava muito claro, pois
os rituais realizados no templo estavam prescritos detalhadamente. O fato
de Deus não prescrever como deve ser o culto no Novo Testamento já
indica que ele deseja algo muito simples. Todo tipo de rituaüsmo ou exces­
so deve ser deixado de lado. Deve-se priviligiar a clareza, a espiritualidade, a
alegria e a reverência. O fato de que as igrejas tenham liturgias diferentes
umas das outras não significa que apenas uma esteja certa. Porém, os prin­
cípios básicos devem ser seguidos. O Novo Testamento ensina uma tensão
que deve ser mantida para que a adoração seja bíblica. Há duas passagens
que devem ser consideradas conjuntamente. A primeira é: “Não apagueis o
Espírito” (lTs 5.19). A segunda é: “Tudo, porém, seja feito com decência e
ordem” (ICo 14.40). Pelo contexto das passagens, percebe-se que Paulo
está falando sobre o culto. A tensão entre esses dois conceitos pode nos
levar ao tão desejado equilíbrio na adoração. Primeiramente, devemos to­
mar cuidado para não apagar o Espírito. Há o perigo de controlarmos a
adoração de tal modo que não sobra espaço para o Espírito se manifestar.
Assim, o culto se torna tão-somente uma obra humana. Porém, o culto que
agrada a Deus e que faz diferença na vida das pessoas precisa ter muito
mais do que simplesmente a participação humana. No nosso culto, o Espí­
rito precisa ter liberdade para agir. Porém, isso não significa que o Espírito
vai trazer confusão, pois a decência e a ordem são igualmente característi­
cas do culto verdadeiro. O Espírito não vai produzir coisas indecentes e
desordenadas no culto, até porque Deus não é Deus de confusão, mas de
paz (ICo 14.33). Se, no nosso culto, ao Espírito for dada a liberdade de agir
e a Palavra for respeitada, tudo será agradável ao Senhor e profundamente
edificante para as pessoas. Não ocorrerão abusos nem irracionalidade; por
outro lado, haverá o verdadeiro fervor e a devoção que são próprios de
redimidos.
42

Esperança escatológica1
l4RM =-

Às vezes, pensamos que o Àpocalipse é o único livro escatológico da


Bíblia, mas a Bíblia como um todo é um livro escatológico. Do início ao
fim, a Bíblia aponta para uma esperança e uma realidade futuras. Israel
desenvolveu a sua fé pensando num futuro glorioso. O Cristianismo, de
certo modo, retomou essa fé, apesar de que já estavam acontecendo muitos
dos eventos escatológicos preditos pelos profetas. Podemos concordar com
Moltmann quando ele diz que “o Cristianismo é total e visceralmente esca-
tologia, e não só a modo de apêndice; ele é perspectiva e tendência para
frente, e, por isso mesmo, renovação e transformação do presente”.2 E
acrescentaríamos que não apenas o Cristianismo que brota do Novo Testa­
mento é escatológico, como toda a mensagem da Bíblia do Antigo e do
Novo Testamento é escatológica. Desde que a primeira palavra da Bíblia, o
“no princípio” foi declarada, o fim já foi evocado, porque na própria idéia
de “princípio” há a idéia de “fim”, uma vez que “existe uma profunda e
inseparável conexão entre criação e consumação, o começo e o fim”.3
Escatologia é uma palavra composta de duas palavras gregas: escaton (fim)
e logia (estudo). Ela tem sido definida como a disciplina que estuda os acon­
tecimentos referentes ao fim dos tempos e à consumação do plano de Deus
para este mundo. Apesar de estudarmos a escatologia apenas no final do
curso de teologia sistemática, devemos nos acostumar a ver a mensagem
escatológica em todos os acontecimentos redentores, bem como em todo
o processo de revelação divina. Do mesmo modo, a escatologia deve mol­
dar a expectativa de vida das pessoas no tempo presente. A escatologia nos
ajuda a ver que o mundo tem mais propósito do que o que é possível ver
diariamente nos jornais, na televisão ou nas conversas com os amigos. O
mundo e os seres humanos foram criados com um propósito. Este propó­
sito será executado porque aquele que está por detrás é suficientemente
poderoso e confiável para executar o que ele mesmo estabeleceu. Por essa
razão, a Bíblia diz que uma das maiores virtudes que o crente pode ter é a
esperança. Paulo disse que as três maiores virtudes eram “a fé, a esperança
544 Razão da esperança

e o amor” (ICo 13.13). Sabemos muito sobre a fé e falamos muito sobre o


amor, mas o que sabemos sobre a esperança? Se ela é tão importante a
ponto de figurar entre as três maiores virtudes que alguém pode ter, então
ela deveria ter mais crédito entre nós. Mas o que é esperança? Paulo diz que
esperança é algo que não se vê (ver Rm 8.24). Nesse sentido, ela se parece
bastante com a fé, que também é a convicção de algo que não pode ser
visto (Hb 11.1). Porém, a esperança está mais ligada à escatologia. Ela é a
chave e a razão da própria escatologia. Ao mesmo tempo, a escatologia
serve para manter viva a esperança. A esperança tem implicações futuras e
presentes, pois ela nos faz fixar os olhos tanto no futuro como no presente.
Ao olhar para o futuro, percebemos que ele será muito melhor que o pre­
sente. Por outro lado, sabemos que para chegar lá precisaremos viver plena­
mente o presente. Estudar escatologia não significa se esquecer do presente
tentando perscrutar o futuro. Para aqueles que gastam a própria vida em
especulações sobre o escaton vale a mesma advertência dos anjos no dia da
ascensão: “Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse
Jesus que dentre vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir”
(At 1.11). A função da igreja hoje, como naquele tempo, não é ficar olhan­
do para as alturas tentando adivinhar o dia da vinda de Jesus. A função da
igreja é, tendo a absoluta certeza de que o Redentor virá, desempenhar a
sua tarefa de testemunha (At 1.8), mantendo “firme a confissão da esperan­
ça, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel” (Hb 10.23). Essa esperança
é o instrumento que nos manterá fiéis até a segunda vinda de Jesus. Ela nos
ajudará a não dormirmos, antes vigiarmos, porque ele vem como o ladrão
na noite (Mt 24.43,44; lTs 5.2; Ap 16.15). Portanto, a esperança é um ins­
trumento para manter viva a fé.

O A ntigo Testamento e a esperança escatológica


Se quisermos entender a esperança escatológica do povo de Deus no
Antigo Testamento, precisamos voltar às primeiras páginas da Bíblia. Ainda
no Jardim do Éden, encontramos a primeira promessa escatológica para o
povo de Deus, uma promessa que lhes garantia um futuro junto com Deus.

A s e m e n t e da m u l h e r

Ao pecar, Adão e Eva perderam todo o direito diante de Deus. Só lhes


restava receber a maldição divina por sua transgressão. Porém, naquele
Esperança escalológica 54 5

momento, Deus demonstrou que seus planos para a raça humana não esta­
vam acabados. Dirigindo-se a Satanás, o grande causador da queda, Deus
disse: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu
descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).
Essa promessa ecoa por todas as partes subseqüentes da Bíblia. Como diz
Hoekema, “a partir deste ponto, tudo na revelação do Antigo Testamento
olha para a frente, aponta para a frente, e ansiosamente aguarda o redentor
prometido”.4 Desde o início, Deus prometeu para Satanás que chegaria o
dia em que um descendente da mulher lhe esmagaria a cabeça. Essa foi a
espera mais angustiante para o inimigo de Deus. A cada bebê que nascia em
Israel, o seu medo aumentava, pois no rosto de cada criança que nascia, a
ameaça de seu fim poderia estar desenhada. A cada nova promessa trazida
por algum profeta sobre o nascimento do Messias, Satanás se revolvia pen­
sando que o seu dia finalmente havia chegado. Por isso, o seu desespero e a
sua fúria em tentar impedir a vinda do Messias. João descreve esse desespe­
ro de Satanás em tentar impedir a vinda do Messias em Apocalipse 12. Ele
descreve um grande sinal no céu, em que uma mulher vestida de sol tinha a
lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. A mulher
estava grávida, e sofria tormentos para dar à luz. João em seguida descreve:
“Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho,
com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas. A sua cauda
arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou para a terra; e o
dragão se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe
devorar o filho quando nascesse” (Ap 12.3,4). Quem é essa mulher que
João viu? E a igreja. Mais especificamente a igreja do Antigo Testamento
(Israel), mas também é a igreja do Novo Testamento, embora isso somente
fique claro em Apocalipse 12.13-18. A descrição que João faz da mulher é
algo que vai além da própria imaginação. Ela é radiante e gloriosa. Deve­
mos lembrar que Deus vê a igreja dessa maneira. A mulher está grávida. Ela
vai dar à luz a um filho. Sabemos que esse Filho é o próprio Senhor Jesus, e
que esta gravidez da mulher é uma referência às várias profecias a respeito
do nascimento do Messias, feitas desde o início do mundo. Em seguida,
entra em cena um monstro de proporções titânicas. É um dragão, uma
imensa serpente alada. Logo imaginamos um monstro terrível, cruel, feroz,
maligno, cheio de garras e de aparência assustadora. Quem é esse monstro?
E a mesma serpente que se apresentou no Éden com aparência bem menos
terrível. É Satanás, o grande inimigo do povo de Deus. Agora, ele se apresenta
como um dragão vermelho com sete cabeças coroadas e dez chifres, sim­
bolizando o seu vasto poder e a autoridade que ele usurpou. Ele é tão
546 Razão da esperança

grande e tão poderoso que um movimento da sua cauda arrasta um terço das
estrelas do céu. Este é o inimigo que a igreja enfrenta. Mas o que ele está
fazendo ali diante da mulher? Ele quer devorar o filho que vai nascer. Trata-
se de uma referência a todas as vezes que Satanás tentou impedir que Jesus
viesse ao mundo. Ele sempre esteve diante da mulher num esforço titânico
para impedir que o menino nascesse e crescesse, pois ele sabia que o nasci­
mento desse menino significaria o seu fim. A mulher representa Israel que
deu à luz o Senhor Jesus. Agora entendemos que a luta do dragão começou
ainda no jardim do Éden, desde a primeira promessa divina dirigida ao pró­
prio Satanás de que um descendente da mulher esmagaria a cabeça da ser­
pente (Gn 3.14,15). O maligno empreendeu todos os seus esforços para
impedir a vinda desse descendente. Ao longo da Bíblia, encontramos deze­
nas de ocasiões em que esse monstro terrível agiu fazendo de tudo para
impedir a vinda do Messias (2Rs 11.1-3). Seu último ato desesperado foi por
meio de Herodes, no extermínio dos inocentes em Belém (Mt 2.16-18). Po­
rém, o prometido já havia nascido e estava longe dali (Ap 12.5).
Se Satanás esperava a vinda do Prometido com propósitos obscuros,
Israel tinha outros propósitos nessa espera. A expectativa de Israel foi se
aguçando a respeito da vinda de alguém que os libertaria. São centenas de
profecias do Antigo Testamento que falam sobre a vinda desse Libertador
(Gn 22.18; 26.4; 28.14; Dt 18.15; SI 110.4; Is 7.14; Zc 9.9; etc). Em Gênesis
49, Deus indicou uma das tribos como a escolhida para a realização do seu
propósito. O velho Jacó abençoou seus filhos, mas tinha uma bênção espe­
cial para um deles. Ele disse: “Judá, teus irmãos te louvarão; a tua mão
estará sobre a cerviz de teus inimigos; os filhos de teu pai se inclinarão a ti.
Judá é leãozinho; da presa subiste, filho meu. Encurva-se e deita-se como
leão e como leoa; quem o despertará? O cetro não se arredará de Judá, nem
o bastão de entre seus pés, até que venha Siló; e a ele obedecerão os povos”
(Gn 49.8-10). Posteriormente, João identificou o cumprimento dessa pro­
fecia na pessoa de Jesus, chamando-o de “Leão da tribo de Judá” (Ap 5.5).
Muitos anos depois de Jacó ter abençoado Judá, o Senhor identificou a
família da tribo de Judá da qual nasceria o Salvador. Isso aconteceu.quando
Davi estava muito angustiado porque não havia no reino um local próprio
onde Deus pudesse ser adorado e sua arca guardada. Davi se dispôs a fazer
uma casa, um templo para Deus. Naquele momento o Senhor não aceitou
que Davi construísse, porém, lhe fez uma promessa: “Quando teus dias se
cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o
teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará
uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu
Esperança escatológica 547

reino” (2Sm 7.12,13). Apesar de essa promessa ter sido cumprida parcial­
mente na pessoa de Salomão, ela se estende para muito além dele, até che­
gar ao tempo em que um homem assumisse um reino eterno. Por trás dessa
promessa pessoal a Davi estava uma promessa escatológica. Portanto, como
diz Hoekema, “em resumo, podemos dizer que o crente veterotestamentário
aguardava um redentor, de maneiras diversas e pelo sentido de várias figu­
ras, que deveria vir em algum tempo futuro (ou nos últimos dias, para usar
uma figura de linguagem comum ao Antigo Testamento) para redimir o seu
povo e, também, para ser uma luz aos gentios”.5 Deus anunciou de várias
maneiras a vinda do Redentor. Ele fez isso de forma especial, indicando a
tribo e a família da qual esse descendente viria.

A no va aliança
Vários elementos foram aos poucos sendo acrescentados e desenvolvi­
dos dentro da expectativa escatológica de Israel. Um deles foi o da renova­
ção da aliança numa nova e eterna aliança. O tema da aliança é central à bíblia
toda, pois estrutura a própria mensagem bíblica. Percebemos que, do início
ao fim do mundo, a aliança é sempre levada em conta por Deus, e é seu modus
operandi. A aliança estabelecida com Adão, e renovada com Noé, Abraão,
Moisés e Davi, era a base do relacionamento de Israel com Deus. Porém, a
dificuldade dos homens de se manterem fiéis à aliança fez com que Deus
indicasse a idéia de uma nova aliança. Uma aliança perfeita que não pudesse
ser quebrada. Esta nova aliança é evocada especialmente por Jeremias:

Eis aí vêm dias, diz o S e n h o r , em que firmarei nova aliança com a casa de
Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no
dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles
anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o S e n h o r .
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias,
diz o S e n h o r : Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração
lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo (Jr 31.31-33).

A característica principal dessa nova aliança testemunhada por Jeremias,


Isaías e Ezequiel é seu caráter perpétuo e eterno. Isaías disse: “Inclinai os
ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei
uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a Davi”
(Is 55.3; ver Is 61.8; Jr 32.40; Ez 16.60; Ez 34.25; 37.26). Uma aliança nova
e eterna, acompanhada de renovação interior e perdão de pecados, foi o
que Deus prometeu a Israel, e isso se tornou uma esperança escatológica.
548 Razão âa esperança

Assim, Israel sonhava com o dia em que o Senhor estabelecesse essa nova
aliança, e conseqüentemente, um novo tipo de relacionamento com Deus.

A restauração de Israel
A idéia da aliança restaurada sugeria também a restauração da nação de
Israel. Uma coisa estava ligada à outra. Se Deus restaurasse a aliança e a
fizesse etema, então, a nação de Israel também seria transformada e glorificada.
Precisamos lembrar que, desde o início da formação da nação, Deus havia
prometido que ela seria uma bênção para todas as famílias da terra (ver Gn
12.1-3). Porém, toda a apostasia de Israel levou fatalmente o povo a receber
de Deus a maldição da aliança. Esta maldição, que se consumou no exílio,
quando a nação perdeu o direito a terra, não veio de uma hora para outra.
Durante um tempo muito longo, Deus advertiu o povo por intermédio dos
profetas que diziam que, se o povo não se arrependesse e mudasse de atitu­
de, Deus mandaria o juízo sobre eles. Porém, percebe-se que, nas próprias
advertências desses profetas, sempre esteve incluída uma promessa de res­
tauração para o remanescente fiel. Um exemplo disso vem do chamamento
de Isaías. Naquele momento, Deus demonstrou que o profeta teria um mi­
nistério de condenação, pois ele profetizaria até que a nação fosse de todo
destruída (Es 6.9-12). Porém, Deus já antevia a salvação de um remanescen­
te, pois disse: “Mas, se ainda ficar a décima parte dela, tornará a ser destruí­
da. Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda
fica o toco, assim a santa semente é o seu toco” (Is 6.13). O “toco” que
permaneceria, como permanece depois que uma floresta é queimada, era a
“santa semente”, o povo escolhido, o remanescente fiel. Este remanescente
seria salvo. Um aspecto importante a respeito desse remanescente é que ele
é chamado de f i e l ? Deus nunca prometeu restaurar toda a nação, apenas a
parte fiel (Is 10.22). A nação renovada seria elevada à categoria de líder das
nações. Por intermédio de Isaías, Deus fez uma promessa fantástica: “Nos
últimos dias, acontecerá que o monte da Casa do S e n h o r será estabelecido
no cimo dos montes e se elevará sobre os outeiros, e para ele afluirão todos
os povos” (Is 2.2; Ver Mq 4.1). Portanto, Israel esperava a restauração como
um dos aspectos de sua esperança escatológica.
Ainda é preciso que entendamos o alcance da promessa divina de res­
taurar Israel. A luz do Novo Testamento, essas promessas escatológicas
feitas ao Israel remanescente devem ser identificadas com a igreja. Paulo
diz: “Mas, relativamente a Israel, dele clama Isaías: Ainda que o número dos
filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”
Esperança escalológica 549

(Rm 9.27). Logo adiante, ele diz que esse remanescente é a parte de Israel
que faz parte da igreja, e que é salvo pela graça: “Assim, pois, também
agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da
graça” (Rm 11.5). Os demais teriam uma chance, mas precisariam se arre­
pender: “Eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão en­
xertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo” (Rm 11.23). No
final, todo o Israel (crentes de todas as épocas) será salvo (Rm 11.26). Per­
cebemos assim, como Manson nesse ponto, acertadamente conclui, “que a
escatologia profética está já no caminho de se tornar mais individual do que
nacional visto como cada um pode tornar-se um dos que pertencem ao
Remanescente - o verdadeiro Israel - pelo seu ato de arrependimento e
pela sua vida de fidelidade a Jeová e obediência à Palavra do Senhor”.7

0 d e r r a m a m e n t o do Espírito
Aos poucos, a restauração de Israel passou a estar ligada à idéia de que o
Espírito de Deus seria derramado naquele momento. Seria por meio desse
Espírito que o Senhor levaria Israel à sua posição idealizada. Desse modo,
um derramamento do Espírito passou a fazer parte da expectativa escatoló-
gica de Israel. Isaías fala de um tempo de muita destruição para o povo de
Deus, mas que duraria, segundo ele, “até que se derrame sobre nós o Espíri­
to lá do alto; então, o deserto se tornará em pomar, e o pomar será tido por
bosque; o juízo habitará no deserto, e a justiça morará no pomar. O efeito da
justiça será paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para sempre” (Is
32.15-17). Joel é o profeta que liga de maneira mais clara o derramamento
do Espírito com os acontecimentos escatológicos. Ele profetiza: “E aconte­
cerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos fi­
lhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens
terão visões; até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito
naqueles dias. Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas
de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que
venha o grande e terrível Dia do S e n h o r ” Ql 2.28-31). O derramamento do
Espírito sobre toda a carne refere-se ao caráter universal desse derramamen­
to que não mais seria restrito ao povo de Israel. Os prodígios no céu e na
terra demonstram de maneira clara que ele está falando do fim dos tempos.
Tudo isso aconteceria antes do “dia do Senhor”. Não é difícil entender por­
que o derramamento do Espírito estava ligado à esperança escatológica de
Israel. O Espírito de Deus sobre alguém sempre significou capacitação Qz
6.34; 14.6; 2Cr 15.1; Is 42.1). Na reconstrução do templo depois do exílio,
550 Razão da esperança

Deus encorajou e prometeu ao povo: “ S ê forte, diz o S e n h o r , e trabalhai,


porque eu sou convosco, diz o S e n h o r dos Exércitos; segundo a palavra da
aliança que fiz convosco, quando saístes do Egito, o meu Espírito habita no
meio de vós; não temais” (Ag 2.4,5). E por meio de Zacarias ele disse: “Não
por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o S e n h o r dos Exérci­
tos” (Zc 4.6). Assim, a expectativa de um derramamento do Espírito Santo
significava uma verdadeira inundação do poder e da capacitação divina, o
que faria de Israel uma nação superior a todas as demais.

0 dia do S enhor

Essa manifestação escatológica em forma de irrupção divina sobre a


história do mundo passou a ser chamada de “dia do Senhor”. A princípio,
a expressão indicava qualquer tipo de socorro divino contra os inimigos,
especialmente referindo-se à libertação de Israel do jugo da Babilônia (Jr
46.10). Porém, a expressão também indicava um evento escatológico de
proporções cósmicas. Assim, Isaías profetiza:

Eis que vem o Dia do S e n h o r , dia cruel, com ira e ardente furor, para con­
verter a terra em assolação e dela destruir os pecadores. Porque as estrelas e
constelações dos céus não darão a sua luz; o sol, logo ao nascer, se escurece­
rá, e a lua não fará resplandecer a sua luz. Castigarei o mundo por causa da
sua maldade e os perversos, por causa da sua iniqüidade... Portanto, farei
estremecer os céus; e a terra será sacudida do seu lugar, por causa da ira do
S e n h o r dos Exércitos e por causa do dia do seu ardente furor (Is 13.9-13).

Há duas perspectivas nessa profecia, uma imediata e outra futura. Cha­


mamos isso de perspectiva profética. Em muitos casos, uma única profecia
aponta para um acontecimento próximo e outro distante. As vezes, para
ilustrar isso, é usado o exemplo das montanhas. Quando alguém olha de
longe uma cadeia de montanhas, ele as vê próximas umas das outras, mas,
quando se aproxima delas, percebe que pode haver grandes distâncias entre
elas. Assim, as profecias proferidas antecipadamente parecem indicar um
único acontecimento, porém, podem indicar acontecimentos que tenham
considerável distância temporal entre si. Na profecia de Isaías citada acima,
o acontecimento presente é a destruição da Babilônia, e o acontecimento
futuro é a destruição do mundo. Eles estão muito longe um do outro em
relação ao tempo, embora sejam simbolicamente sinônimos.
Um aspecto importante desse “dia do Senhor” é o seu caráter negativo
a princípio. Israel esperava apenas bênçãos no “dia do Senhor”, porém, os
Esperança escatológica

profetas trataram de alertar que esse dia poderia ser “amargo”. Amós disse:
“Ai de vós que desejais o Dia do S e n h o r ! Para que desejais vós o Dia do
S e n h o r ? É dia de trevas e não de luz” (Am 5.18). Desejar o “dia do Se­
nhor” sem estar preparado para esse dia não é uma atitude inteligente. De
qualquer maneira, sempre havia a esperança de que um remanescente fosse
salvo. Esse remanescente seria a coroa das nações. Não deve ser ignorado
que, da perspectiva da maioria das pessoas do Israel do Antigo Testamento,
a escatologia estava ligada ã restauração da nação de Israel, e, por essa ra­
zão, mais um conceito foi sendo adquirido, o de que Deus estabeleceria seu
reino em toda a terra.

0 reino de Deus
A idéia do “Reino de Deus” é mais desenvolvida no Novo Testamento,
porém, percebemos que o Antigo Testamento também fala sobre o Reino.
Num sentido, o Reino de Deus no Antigo Testamento é identificado com a
soberania de Deus, pois ele é o grande rei que reina sobre todos (SI 29.10;
47.2; 97.1; Is 6.5; Jr 46.18). Porém, juntamente com o Messias prometido
viria um reino prometido. Isaías profetizou:

Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre
os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte,
Pai da Eternidade, Príncipe da Paz; para que se aumente o seu governo, e
venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabe­
lecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre. O
zelo do S e n h o r dos Exércitos fará isto (Is 9.6,7).

Jeremias também liga a existência de um reino à pessoa do Messias: “Eis


que vêm dias, diz o S e n h o r , em que levantarei a Davi um Renovo justo; e, rei
que é, reinará, e agirá sabiamente, e executará o juízo e a justiça na terra. Nos
seus dias, Judá será salvo, e Israel habitará seguro; será este o seu nome, com
que será chamado: S e n h o r , Justiça Nossa” (Jr 23.5,6). Mas, de todos, é Da­
niel quem tem a visão mais espetacular. Ao interpretar o sonho de Nabuco-
donosor, ele fala sobre um dia em que “Deus do céu suscitará um reino que
não será jamais destruído” (Dn 2.44). Este reino “subsistirá para sempre”.
Daniel foi o primeiro a atribuir o título de “Filho do homem” ao Messias.
Esse título está intimamente ligado ao domínio real dele, conforme Daniel
relata em sua visão: “Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que
vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem, e dirigiu-se ao
Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e
552 Razão da esperança

o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem;


o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será
destruído” (Dn 7.13,14). Aos poucos, essa idéia de reino foi se expandindo
até alcançar um caráter universal, aquilo que Isaías chamou de “novo céu e
nova terra”, e que englobaria uma restauração de todas as coisas.

Novos céus c nova terra

Talvez a promessa mais escatológica de todas para Israel tenha sido dada
por Isaías. Falando sobre a futura restauração de Israel a partir de um rema­
nescente, Deus diz que pouparia uma parte de Israel (Is 65.8), e que faria a
descendência de Jacó e o herdeiro de Judá possuir os montes de Deus onde
os eleitos habitariam (Is 65.9). Porém, a transformação seria muito maior do
que simplesmente o estabelecimento de um reino temporal no qual habitasse
a paz. Ele diz: “Pois eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá
lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas” (Is 65.17).
Evidentemente, as proporções descritas pela passagem são cósmicas, porém,
ainda assim são descritas em termos que a mente humana possa conceber:

Mas vós folgareis e exultareis perpetuamente no que eu crio; porque eis que
crio para Jerusalém alegria e para o seu povo, regozijo. E exultarei por causa
de Jerusalém e me alegrarei no meu povo, e nunca mais se ouvirá nela nem
voz de choro nem de clamor. Não haverá mais nela criança para viver pou­
cos dias, nem velho que não cumpra os seus; porque morrer aos cem anos
é morrer ainda jovem, e quem pecar só aos cem anos será amaldiçoado.
Eles edificarão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão o seu
fruto. Não edificarão para que outros habitem; não plantarão para que ou­
tros comam; porque a longevidade do meu povo será como a da árvore, e
os meus eleitos desfrutarão de todas as obras das suas próprias mãos. Não
trabalharão debalde, nem terão filhos para a calamidade, porque são a pos­
teridade bendita do S e n h o r , e os seus filhos estarão com eles. E será que,
antes que clamem, eu responderei; estando eles ainda falando, eu os ouvi­
rei. O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi;
pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o
meu santo monte, diz o S k n h o r ( I s 65.18-25).

Não há dúvida de que essa é uma transformação impressionante que vai


muito além do que os sentidos podem captar. Apesar das expressões huma­
nas, o propósito divino que ultrapassa toda possibilidade de compreensão
pode ser em alguma medida visualizado nessa promessa escatológica. Ela
Esperança escalológica 553

descreve em linguagem acessível às pessoas daquele tempo uma paz e uma


prosperidade perfeitas.
Assim, percebemos que a esperança escatológica de Israel era vasta e
desenvolvida em diversos aspectos. Deus já havia revelado muito do seu
plano eterno para o cosmos. Como diz Hoekema, “a fé do crente
veterotestamentário era completamente escatológica. Ele aguardava a in­
tervenção de Deus na História, tanto no futuro próximo como no distante,
Foi, na verdade, esta fé-esperança que concedeu ao santo do Antigo Testa­
mento a coragem necessária para percorrer o caminho posto perante ele”.8
Segundo as promessas de Deus, o futuro de Israel seria glorioso. Não o
futuro da nação inteira, mas do remanescente fiel, do “restante” que seria
salvo. A seguir, veremos como essas promessas se cumprem na igreja e no
Novo Testamento.

0 Novo Testamento e a esperança escatológica


Quando adentramos as páginas do Novo Testamento, precisamos ter
em mente que estamos vendo o cumprimento de grande parte da esperan­
ça escatológica de Israel. A simples existência do Novo Testamento já é
uma confirmação de que Deus cumpriu grande parte de suas promessas
feitas no Antigo Testamento. Todos os aspectos estudados anteriormente
já alcançaram, em alguma medida, um grau de cumprimento. O descenden­
te prometido já veio, pois o dragão não conseguiu impedir o nascimento e
a manifestação do Filho. A Nova Aliança foi estabelecida e o corpo e o
sangue do Senhor a simbolizam (Mt 26.28). Israel como remanescente es­
tava sendo restaurado desde aqueles dias (Rm 11.5). O Espírito foi derra­
mado no dia do Pentecostes (At 2.1-4). O Reino de Deus estava estabeleci­
do entre os homens (Lc 17.21). Parece apenas que o “dia do Senhor” e os
“novos céus e nova terra” ainda não tinham chegado. Entretanto, Pedro
disse que a profecia de Joel que falava dos “últimos dias” havia se cumprido
no dia de Pentecostes (At 2.16-21), ou seja, os “últimos dias” já estavam
sendo inaugurados. E Paulo diz que, a partir do momento que alguém está
em Cristo “é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram
novas” (2Co 5.17), ou seja, a nova criação de Deus já está presente neste
mundo na pessoa de seus cidadãos renovados. Os “novos céus e nova ter­
ra” ainda não foram criados, mas os habitantes desse lugar já foram. Os
crentes nascidos de novo não são mais deste mundo (Jo 15.19), pois devem
viver aqui como peregrinos e forasteiros (IPe 2.11). Eles são cidadãos da
554 Razão da esperança

pátria celestial (Fp 3.20; Hb 11.16), e sua nação fica no mundo vindouro.
Desse modo, percebemos que todos os elementos escatológicos que confi­
guravam a esperança de Israel encontram, em algum grau, cumprimento no
Novo Testamento. Porém, faltam detalhes de todos eles. Nesse ponto, pre­
cisamos nos lembrar de um dos conceitos mais importantes da escatologia,
que é a tensão entre o j á e o ainda não. Toda a nossa vida cristã se desenvolve
à luz dessa tensão. De todas as bênçãos conquistadas por Jesus, por um
lado podemos dizer que j á dispomos delas, porém, por outro, que ainda não
totalmente. Assim, j á somos salvos, porém ainda não desfrutamos da salva­
ção completa no sentido de ter um novo e perfeito corpo. Do mesmo modo,
j á somos santos (Ef 1.11), porém, ainda não totalmente santificados. Pen­
sando em escatologia, de fato todas as promessas de Deus feitas a Israelj á
foram cumpridas na pessoa e na obra de Jesus e da igreja, porém, ainda não
totalmente, porque os planos completos de Deus para a igreja não foram
de todo realizados.
A escatologia do Novo Testamento é construída, portanto, sobre a es­
catologia do Antigo Testamento. Por essa razão, livros como o Apocalipse
são em grande parte baseados no Antigo Testamento, e nem sequer podem
ser entendidos sem ele. A escatologia do Novo Testamento não surge do
nada, ela assume a escatologia do Antigo Testamento, entendendo que boa
parte das predições escatológicas antigas já foram cumpridas, porém, olha
para o futuro para a consumação do plano de Deus para o Israel na igreja.

Os últi m o s dias

O Antigo Testamento é repleto de profecias sobre os últimos dias. Na


esperança de Israel, seria nesses dias que Deus restauraria a nação à posição
idealizada. Segundo o entendimento do Novo Testamento, esses “últimos
dias” se iniciaram com a vinda de Jesus, quando se consolidou o plano da
redenção. (At 2.16-21; J1 2.28-32). Portanto, o mundo começou a viver os
“últimos dias” ainda nos tempos do Novo Testamento. Percebemos que os
escritores do Novo Testamento freqüentemente fazem alusão às profecias
do Antigo Testamento que encontraram cumprimento na manifestação de
Jesus e da igreja. Essas profecias eram geralmente de caráter escatológico,
quando foram proferidas pelos profetas do Antigo Testamento. Entre os
acontecimentos que são identificados no Novo Testamento com profecias
do Antigo Testamento, podemos citar: o nascimento virginal de Jesus (Mt
1.20-23; Is 7.14), seu nascimento em Belém (Mt 2.4-6; Mq 5.2), sua fuga
para o Egito (Mt 2.14-15; Os 11.1), sua pregação (Mt 4.13-16; Is 9.1,2), seu
Esperança escatológico 555

ministério de cura (Mt 8.16,17; Is 53.4), sua rejeição por parte de seu povo
(Jo 1.11; Is 53.3), sua entrada triunfal em Jerusalém (Mt 21.4-5; Zc 9.9), sua
venda por trinta moedas de prata (Mt 26,15; Zc 11.12), sua crucificação (Jo
19.34; Zc 12.10), suas roupas sendo sorteadas pelos soldados (Mc 15.24; SI
22.18), seu sepultamento no túmulo de um rico (Mt 27.57-60; Is 53.9), sua
ressurreição (At 2.24-32; SI 16.10) e sua ascensão (At 1.9; SI 68.18),9
Porém, há muitas outras evidências de que o Novo Testamento inaugura
os últimos dias. A pregação de Jesus no início do seu ministério (e também
João Batista) já apontava para a instalação dessa nova era, Mateus relata que:
“Passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
reino dos céus” (Mt 4.17). E, do mesmo modo, Marcos relata as palavras de
Jesus: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-
vos e crede no evangelho” (Mc 1.15), Devemos pensar que, nos evangelhos,
as expressões “reino dos céus” e “reino de Deus” são sinônimas, Ladd diz
que “a maior parte da escatologia de Jesus, conforme registrada pelos sinódcos,
tem a ver com os acontecimentos relacionados à vinda do Reino de Deus
escatológico”.10 E, de fato, como vimos acima, o estabelecimento do Reino
de Deus era uma das expectativas escatológicas de Israel, Jesus disse que, em
sua pessoa, o Reino de Deus estava sendo estabelecido, e, portanto, o tempo
do fim já estava presente com a sua vinda. Paulo tinha esse mesmo entendi­
mento. Ele escreveu aos Gálatas: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus
enviou seu Filho” (G1 4.4). Por “plenitude do tempo” Paulo refere-se ao
momento escatológico que foi a vinda de Jesus. O autor aos Hebreus con­
corda com essa idéia, pois diz que Jesus “ao se cumprirem os tempos, se
manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o
pecado” (9.26). E Pedro evoca a mesma idéia: “Pelo precioso sangue, como
de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com
efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos,
por amor de vós (IPe 1.19,20). A vinda de Jesus e sua manifestação é a
chegada do “fim dos tempos”. Paulo usa ainda a expressão “fim dos sécu­
los” para a era que se iniciou no Novo Testamento. Ele diz: “De nós outros
sobre quem os fins dos séculos têm chegado” (ICo 10.11). João usa outra
expressão para indicar o momento escatológico vivido; ele fala sobre a últi­
ma hora: “Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticris-
to, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos
que é a última hora” (ljo 2.18). Todas essas expressões apontam para a mes­
ma realidade: o caráter de cumprimento escatológico do Novo Testamento
em relação ao plano de Deus fixado no Antigo Testamento. Os últimos dias
começaram com a vinda de Jesus.
556 Razão da esperança

0 últim o dia
O entendimento de que o Novo Testamento já é um cumprimento
escatológico do Antigo Testamento levou alguns estudiosos a falarem
sobre uma “escatologia realizada”. Porém, como diz Hoekema, é preferí­
vel falar numa “escatologia inaugurada”," pois ela não está totalmente
realizada. H. Berkhof diz que “o Novo Testamento nada sabe de uma
escatologia futurista ou de uma escatologia realizada, senão de uma esca­
tologia em realização”.12 Nesse ponto, é necessário entender que, segun­
do o Novo Testamento, “os últimos dias” já começaram, porém nem
tudo está cumprido, ainda falta o “úldmo” desses “últimos dias”. A ex­
pressão “ultimo dia” não pode ser encontrada no Antigo Testamento,
pois ela é própria do Novo Testamento. Jesus disse: “E a vontade de
quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu;
pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.39). Nessa passa­
gem, Jesus une o último dia à ressurreição (ver Jo 11.24). Em outra passa­
gem, ele ligou o último dia ao julgamento: “Quem me rejeita e não recebe
as minhas palavras tem quem o julgue; a própria palavra que tenho profe­
rido, essa o julgará no último dia” (Jo 12.48). O “último dia” será o último
deste mundo como o conhecemos, mas será o primeiro do mundo por­
vir. Sobre este “mundo porvir”, a Bíblia usa expressões como “mundo
vindouro” ou “era vindoura”. Em Efésios, Paulo fala do “século vindou­
ro” como um tempo da demonstração do poder e da glória de Deus (Ef
1.21; 2.7). Sobre a “era vindoura”, Jesus diz que somente os “dignos” a
alcançarão (Lc 20.35).
O último dia deve ser entendido ainda em termos de consumação do
que já foi inaugurado. Nesse sentido, Jesus ordenou que seus discípulos
pregassem o evangelho em todo o mundo, garantindo-lhes que estaria
com eles “todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20). Essa
consumação do século é o último dia, o momento em que Deus comple­
tará a sua obra. Jesus também descreveu esse momento como uma ceifa:
“A ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos” (Mt 13.39).
Ele se referia ao momento em que os santos seriam separados dos ímpios
(Mt 24.3).
Podemos resumir essa questão da seguinte maneira:

A escatologia do Novo Testamento, portanto, olha para trás, para a vinda


de Cristo, que tinha sido predita pelos profetas do Antigo Testamento, e
afirma: nós estamos agora nos últimos dias. Mas a escatologia
neotestamentária também olha para frente, para uma consumação final ain­
Esperança escalo lógica 557

da por vir, e por isso também diz: o último dia ainda não está chegando; a
era final ainda não chegou.13

Num resumo: Já, mas ainda não.

0 Espírito escatológico

Um outro aspecto muito importante ligado à escatologia do Novo Tes­


tamento é a vinda do Espírito Santo. Já vimos que o Antigo Testamento
tinha uma grande expectativa em relação ao derramamento do Espírito (Is
32.15-17; 44.2-4; J1 2.28-31), e Pedro disse que isso se cumpriu no Pente­
costes (At 2.16,17). Jesus também disse que a manifestação do Espírito de
Deus caracterizava a chegada do próprio Reino de Deus. Quando acusado
de expulsar demônios pelo poder dos próprios demônios, Jesus se defen­
deu: “Se, porém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus, certamente é
chegado o reino de Deus sobre vós” (Mt 12.28). O poder do Espírito Santo
como capacitador já se demonstrava na pessoa de Jesus, o que evidenciava
a chegada do Reino de Deus, segundo a expectativa do Antigo Testamento.
A Escritura descreve dois significados do Espírito que nos dão uma idéia
escatológica. O Espírito é chamado de “selo” e “penhor” (Ef 1.13,14; 2Co
1.22; 5.5). Essas expressões indicam que o Espírito é uma espécie de “garan­
tia” divina de que completará a obra começada na vida dos crentes. O selo é
uma marca de propriedade e de inviolabilidade. O penhor é uma espécie de
depósito antecipado que garante o arremate final. O selo e o penhor do
Espírito são elementos escatológicos presentes na vida do crente.
O autor aos Hebreus diz que certos “poderes do mundo vindouro” já
podiam ser experimentados agora no presente. Ele diz que algumas pes­
soas haviam sido iluminadas, tinham provado o dom celestial, feitas partici­
pantes do Espírito Santo, provado a boa palavra de Deus e os poderes do
mundo vindouro (Hb 6.4,5). E interessante que os poderes do mundo vin­
douro estão ligados à manifestação do Espírito Santo. A atuação do Espíri­
to na igreja hoje é uma antecipação do mundo vindouro. Falando sobre o
entendimento de Paulo sobre o Espírito, Geerhardus Vos diz que “o Pneuma
(Espírito) era, na mente do apóstolo, antes de tudo, o elemento da esfera
escatológica ou celestial que caracteriza o modo de vida e existência no
mundo porvir e, conseqüentemente, daquela forma antecipada na qual o
mundo porvir é mesmo agora realizado”.14 Aqui é muito instrutivo enten­
dermos o ensino de Paulo no capítulo 8 de Romanos. Paulo diz que o
crente em Cristo passou a fazer parte de uma nova realidade: “A vida no
558 Razão da esperança

Espírito”. Por causa disso ele foi justificado, não pode mais ser condenado,
e o preceito da lei já se cumpriu nele (Rm 8.1-4). Daí a sua insistência para
que os crentes vivam uma vida “no Espírito”, uma vez que não são mais
devedores à carne (Rm 8.5-13). No versículo 14, Paulo introduz um detalhe
de máxima importância em termos de escatologia: “Pois todos os que são
guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus”. E ele continua: “Porque
não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemoriza­
dos, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba,
Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de
Deus” (Rm 8.15,16). E a habitação do Espírito em nós que configura a
nossa “adoção” como filhos de Deus. E o testemunho interior desse mes­
mo Espírito que nos dá a certeza da nossa filiação. Em seguida, Paulo con­
tinua de modo lógico: “Ora, se somos filhos, somos também herdeiros,
herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8.17). Um filho é logi­
camente também um herdeiro. A habitação do Espírito em nós faz com
que sejamos herdeiros de Deus. Isso se parece bastante com a idéia de
“selo” e “penhor” que já citamos. Porém, Paulo tem mais coisas a dizer:
“Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente
não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós” (Rm 8.18).
Esse versículo aponta para o fato de que, apesar de sermos herdeiros, ainda
não recebemos a herança, pois ainda vivemos num tempo de sofrimento, e
a glória permanece no futuro. Dos versículos 19-22 ele fala que toda a
criação deseja experimentar essa glória, e que ela não está satisfeita com a
atual situação, e então, continua: “E não somente ela, mas também nós, que
temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguar­
dando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23). Digno de
nota nesse versículo é a expressão “primícias”. No Antigo Testamento, ela
significava os primeiros frutos do campo ou dos rebanhos que eram ofere­
cidos a Deus (Dt 18.4; 26.2; Nm 10.35-37).15 No seu comentário desse
versículo, Dunn conclui: “Novamente a clara nota escatológica não pode
ser ignorada: a colheita final (Is 27.12; Joel 3.13; Mt 3.12; Lc 3.17; G1 6.8),
iniciada pela ressurreição (ICo 15.20, 23) de Cristo já está a caminho”.16
Ou seja, Jesus ressuscitou dos mortos e a sua ressurreição é reconhecida
como “as primícias” (ICo 15.20). Assim, nós que ainda não ressuscitamos
corporalmente, desfrutamos das primícias porque o Espírito está em nós e
nos dá uma pequena demonstração do que será a vida da ressurreição. Nes­
sa vida, ele nos ajuda a vencer o pecado (Rm 8.12), nos auxilia em nossas
fraquezas (Rm 8.26,27), e nos aponta para uma realidade muito superior,
quando a colheita for efetuada. Calvino tem palavras muito edificantes so­
Esperança escalológica 559

bre este assunto para os crentes: “Ele deseja que se ergam pela expectativa
da bem-aventurança futura e superem todos os seus atuais sofrimentos,
tendo sua mente posta acima de sua imediata condição, de maneira que não
considerem o que são agora, e, sim, o que serão depois”.17 A habitação do
Espírito no crente é uma realidade escatológica, é o poder do futuro que
irrompeu no presente. E a certeza do futuro que transforma o presente.
Não poderíamos deixar de considerar ainda a questão do elemento
capacitador. Como vimos, o Espírito no Antigo Testamento representava
primordialmente capacitação divina sobre a vida das pessoas. Depois da
ressurreição, Jesus ordenou a seus discípulos: “Eis que envio sobre vós a
promessa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto sejais
revestidos de poder” (Lc 24.49). Em Atos, o próprio Lucas descreve outra
vez esse evento, com palavras ainda mais específicas: “Recebereis poder, ao
descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em
Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (At
1.8). Este mesmo Espírito é dado a todos aqueles que se convertem e pas­
sam a pertencer a Cristo (Rm 8.9). Assim, o poder de Deus para o cumpri­
mento da missão divina de expandir o Reino de Deus é concedido a cada
crente. Quando desenvolvemos a nossa missão como igreja, pregando a
Palavra de Deus, batizando ou celebrando a Ceia do Senhor, estamos pro­
clamando uma mensagem escatológica e vivendo no presente algo do escaton.

Conclusão
A esperança escatológica é a base da nossa fé. A Bíblia é um livro de
escatologia do início ao fim. Infelizmente, nos dias atuais, a pessoas têm se
esquecido de quão maravilhosa é essa esperança. O secularismo e o materi­
alismo que invadiram as igrejas impedem a maioria das pessoas de pensar no
futuro, de ansiar pela libertação final. Estamos estabelecidos demais nesta
terra, a ponto de esquecermos que somos “estrangeiros e peregrinos” aqui
(IPe 2.11). Por outro lado, para muitos a escatologia é realmente apenas um
apêndice no estudo da teologia. E apenas uma tentativa especulativa de olhar
para os eventos do futuro, como se fosse possível “adivinhar” o que vai
acontecer depois. A escatologia bíblica sugere muito mais do que isso. A
esperança do futuro se manifesta poderosamente no presente, de maneira
que o “porvir” já pode ser experimentado, em alguma medida, agora.
43

Imortalidade

E depois da morte, o que há? Essa sempre foi e continuará sendo a


grande pergunta da humanidade. O ser humano jamais conseguiu se
conformar com a perspectiva da não-existência após a morte. Todo o seu
anseio, e de certo modo, todas as suas atitudes, se dirigem para o além,
para o “algo mais”, e todas as suas esperanças demonstram que esta vida
não basta. Desde os tempos mais remotos tem sido assim. Os antigos
egípcios embalsamavam os seus líderes mortos na expectativa de que eles
vivessem além da morte. Eles colocavam os cadáveres mumificados em
pirâmides, na esperança de conservá-los para o mundo além. O morto
recebia um exemplar do Livro dos Mortos, uma oração que devia recitar
e o mapa da viagem através do mundo invisível, a qual era realizada por
meio de embarcações. Essa expectativa de vida além-morte pode ser en­
contrada em praticamente todas as civilizações do mundo. Vemos isso
nos babilônios, persas, indus, chineses e gregos. Os babilônios criam no
mundo inferior e na região das sombras, Na índia, há a crença na
transmigração da alma, o que também acontece na Pérsia, onde podem
ser encontradas histórias sobre o julgamento, o paraíso e o inferno. Os
gregos criam na existência do Hades; eles colocavam uma moeda de prata
na boca do cadáver para que ele pudesse pagar o barqueiro que o trans­
portaria para o outro lado. As almas boas iam para os Campos Elísios,
enquanto as más para o Tártaro. Os chineses e os japoneses cultuavam os
antepassados, e os índios americanos colocavam arcos com flechas no
túmulo dos falecidos que seriam levados para os campos de caça no além.
Percebemos, portanto, que a crença na vida além da morte é um fenôme­
no universal. Mesmo o homem moderno, armado de todo tipo de teorias
e invenções científicas, não consegue se “livrar” do anseio pela vida de­
pois da morte. A brevidade e o caráter efêmero da vida levantam a suspei­
ta de que a vida não acaba no túmulo; essa suspeita por fim torna-se um
desejo angustiante de que isso seja verdadeiro.
562 Razão da esperança

A necessidade da vida a lém da morte


Todas essas civilizações sentiam-se impelidas a crer na vida após morte
a partir da compreensão das limitações da própria vida atual. Não é somen­
te o pavor da morte que leva à crença da imortalidade. O fato é que a vida
atual é muito incompleta por si mesma, especialmente no que se refere à
retribuição e condenação pelos atos realizados. A violência e o mal impe­
ram neste mundo, e raramente as pessoas recebem a devida punição pelo
mal que fizeram, assim como não recebem a retribuição pelo bem que pra­
ticaram. A não existência de uma vida além da morte tornaria a vida atual
algo completamente desprezível da perspectiva da moral e da justiça. Seri­
am bem-aventurados aqueles que vivem sem nenhuma lei, exceto a de satis­
fazer suas paixões e seus apetites, pois jamais haveria algum julgamento
pelo que fizeram. Tolos seriam os que quisessem viver uma vida sóbria e
equilibrada, pois jamais receberiam nada por esse esforço. Como diz
Boettner, diante da situação deste mundo, “é absurdo pensar que aqueles
que escapam, nesta vida, a um justo castigo, hão de escapar para todo o
sempre, ou que as boas obras dos justos nunca serão recompensadas”.1
Mas essa seria a realidade se não houvesse vida após a morte. A ordem
presente de todas as coisas se torna irrelevante, animalesca e desprovida de
todo sentido. A educação, a religião e a própria sociedade como um todo,
passam a ser elementos da conveniência, desprovidos de validade intrínse­
ca, aprisionadores, condicionadores e ilusórios.
Caso não existisse vida além da morte, a filosofia mais apropriada a essa
situação presente seria aquela dos tempos do profeta Isaías. O profeta des­
creve a situação e a opinião do povo de maneira bem pouco sutil: “Porém é
só gozo e alegria que se vêem; matam-se bois, degolam-se ovelhas, come-se
carne, bebe-se vinho e se diz: Comamos e bebamos, que amanhã morrere­
mos” (Is 22.13; ver ICo 15.32). Sem a vida além morte, não teríamos qual­
quer razão para fazer outra coisa neste mundo além de saciar os nossos
apetites. Todos os projetos, todos os sonhos, todos as aspirações humanas
não passariam de pó. A realidade nua e crua desta vida seria pior do que o
inferno. O inferno é um estado extremamente ruim, mas ele existe por um
senso de justiça. O inferno é a merecida retribuição. Porém, se considerar­
mos este mundo como a realidade única e final da existência, teríamos que
admitir que seria um lugar totalmente desprovido de justiça. Terríveis e
consoladoras ao mesmo tempo, por essa razão, são as palavras que Deus
dirigiu ao profeta Isaías após aquela ponderação do povo: “Mas o S enhor
Imortalidade 563

dos Exércitos se declara aos meus ouvidos, dizendo: Certamente, esta mal­
dade não será perdoada, até que morrais, diz o Senhor, o S enhor dos Exér­
citos” (Is 22.14). Essa é a garantia de que as nossas atitudes fazem diferen­
ça. Essa é a garantia de que este mundo tem sentido, e a vida não é vazia e
ilusória. Deus declara que não deixará as coisas passarem despercebidas.
Ele é o Senhor do destino, é o justo e final retribuidor, e pode nos encher
de esperança e paz. A justiça existe; ainda que seja uma justiça que pode, no
final, causar dano, ela é melhor do que se não existisse nenhuma. Essas
foram as palavras do Juiz: “Digo-vos que de toda palavra frívola que profe­
rirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo” (Mt 12.36). A lei máxi­
ma dessa vida é: “Aquilo que o homem semear isso também ceifará” (G1
6.7), ainda que não ceife nesta vida. Só isso pode dar sentido à existência.

A rgu m en tos a fa v o r da imortalidade


Alguns argumentos gerais, não bíblicos, mas retirados do senso comum,
podem ser deduzidos a favor da existência após a morte. Em seguida, ana­
lisaremos a perspectiva bíblica a respeito da imortalidade.

F enôm en o universal

O primeiro argumento advém do fato de que a crença na imortalidade é


um fenômeno universal. Berkhof chama esse argumento de “argumento
histórico”, pois é um “consenso dos povos” que a alma vive depois da
morte.2 E verdade que isso é conseqüência da indisposição em relação à
morte, porém, o fato de que todas as civilizações têm acreditado nessa vida
além-morte é uma confirmação das palavras do Eclesiastes: “Tudo fez Deus
formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do
homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o prin­
cípio até ao fim” (Ec 3.11). A existência desse sentimento em toda a raça
humana é, em si mesmo, uma prova de que a eternidade deve existir. Como
diz Boettner,

Da mesma maneira que a constituição do peixe implica a existência da água


como o elemento em que vai viver e movimentar-se, e da mesma maneira
que a ave implica a existência do ar, também a existência da capacidade
espiritual e moral do homem, implica um meio ambiente em que ele possa
estar livre para desenvolver e aperfeiçoar essas capacidades (...). Somos cri­
564 Razão da esperança

aturas temporais, mas fomos destinados à eternidade. Suspiramos por essa


santidade superior, essa visão mais abundante, essa capacidade de ouvir
mais perfeita, e esses meios de transporte e comunicação mais rápidos.3

Portanto, a nossa própria constituição física, mental e espiritual é uma


evidência da necessidade e da existência da vida além da morte.

Existência co ntin u ad a

Outro argumento advém do entendimento da nossa existência atual.


Como ainda diz Boettner,

O fato de tornarmos a viver, não é, nem mais maravilhoso, nem mais mis­
terioso do que o fato de estarmos agora a viver. A verdadeira maravilha
será, antes, o fato de agora existirmos, depois de não termos tido qualquer
espécie de existência durante uma eternidade passada. Muito mais incrível
do que o fato de, existindo atualmente, continuarmos a existir é o de, não
tendo existido, agora existirmos.4

Se hoje existimos e não temos evidência de termos existido antes, por


que seria impossível que continuássemos a existir depois desta vida? Pela
lógica, a existência posterior a partir desta existência é muito mais plausível
do que a atual que veio do nada. A continuação da existência é algo bastan­
te natural, sendo que a descontinuação parece mais estranha.

A na logia da natureza
Outro argumento é tirado a partir de uma analogia com a natureza.
Nesta, há um ciclo de morte e renascimento. No outono, as folhas caem e
morrem, mas na primavera elas reaparecem. As mesmas plantas que pareci­
am mortas sob o gelo, ressurgem esplendorosamente verdes e floridas.
Quando nos lembramos que a natureza também revela Deus e seus atribu­
tos (SI 19.1-4; Rm 1.20), percebemos que essas analogias tiradas da nature­
za têm o seu valor. Não estaria Deus, por meio dessa renovação da nature­
za, dando uma demonstração ao homem da renovação da vida após a mor­
te? Outra idéia que tiramos das coisas naturais, e que nos ajuda a entender
essa questão da continuidade da vida, é a própria concepção científica de
que, na natureza nada se perde, tudo se transforma. Nenhum elemento
desaparece completamente, apenas deixa de existir de uma forma para rea­
parecer de outra. Quando queimamos um pedaço de madeira, os elemen­
Imortalidade 565

tos da madeira continuam existindo, porém, são transformados em energia


e somente parte deles vira cinza. De qualquer modo, os elementos continu­
am existindo. Após a morte, corpo humano se deteriora e seus mais de
trinta elementos se misturam com os elementos da natureza, mas continu­
am existindo. Nossa crença é que o Espírito também continua existindo
depois da morte, pois, como poderia se extinguir? Quanto ao Espírito, por
não ser matéria, não se dissolve em outros elementos, mas continua a exis­
tir na sua forma normal. Berkhof fala disso como o argumento “metafísi­
co”.5 Esse argumento se baseia na simplicidade da alma humana. Ela não é
composta de elementos diversos como o corpo, e, portanto, ela é indissolúvel,
Isso nos leva a pensar que a destruição do corpo não acarreta necessaria­
mente a destruição da alma.

Ordem e pr op ós ito
Berkhof fala ainda do argumento “teleológico”/1A palavra “teleológico”
se refere à questão do “propósito” para a existência das coisas. De modo
geral,o mundo demonstra um senso de organização e propósito. Isso, inclu­
sive, é um argumento a favor da existência do próprio Deus, pois a existência
de “metas” ou “objetivos” pressupõe um planejador. O fato é que a vida
humana sempre parece incompleta. As maiores realizações sempre parecem
ficar no meio do caminho. O homem jamais consegue chegar ao ideal de
coisa alguma. A partir disso, pensa-se que a alma não poderia deixar de exis­
tir, pois, caso contrário, essas aspirações nunca se completariam, e o propó­
sito que parece existir para todas as coisas simplesmente não existiria.

A Escritura e a imortalidade
Os argumentos citados acima são úteis, porém, a prova máxima para o
cristão a respeito da imortalidade é o que a Escritura diz. O Espírito Santo
testemunha no interior de cada crente sobre a veracidade e a confiabilidade
da Escritura, de modo que o crente se sente seguro ao meditar nas promes­
sas e no ensino da Bíblia.

Conceito de imortalidade
Como vimos, a imortalidade é uma crença comum da humanidade, e
como diz Berkhof, “esta idéia de imortalidade da alma está em perfeita
566 Razão da esperança

harmonia com o que a Bíblia ensina acerca do homem, mas a Bíblia, a


religião e a teologia não estão interessadas primariamente nesta imortalida­
de puramente quantitativa e incolor - a pura e simples existência continua­
da da alma”.7 A Bíblia conceitua a imortalidade, coisa que a simples crença
na imortalidade não faz, ou seja, a Bíblia demonstra padrões diferentes de
imortalidade. O padrão máximo é o divino. Nesse sentido, a Bíblia diz que
Deus é o único que possui imortalidade (lTm 6.16). Evidentemente deve­
mos entender essa expressão como imortalidade não derivada. Deus possui
vida em si mesmo (Jo 5.26), sendo eterno tanto em relação ao passado
quanto em relação ao futuro. Ele é o único assim. Os seres humanos, entre­
tanto, possuem uma imortalidade derivada de Deus. Deus é a base da imor­
talidade do ser humano. Podemos dizer que todos os seres humanos são
imortais no sentido de que continuarão a existir após a morte, em direção
ao futuro, mas não em relação ao passado. O ser humano, assim como toda
a criação, teve uma origem. Somente o Deus Triúno é eterno e sem origem.
A imortalidade do ser humano precisa ser vista a partir de dois concei­
tos diferentes: os conceitos de bem-aventurança eterna e maldição eterna.
Os salvos serão eternamente bem-aventurados e desfrutarão da presença
de Deus e de todas as suas delícias, e os perdidos serão eternamente maldi­
tos e sofrerão a punição pelos seus erros. A Bíblia usa dois termos para
diferenciar essa existência contínua após a morte. O primeiro é chamado
“vida eterna” (Rm 2.7; Jd 21) e o segundo, “destruição (morte) eterna” (2Ts
1.9). Ambos são existências ou estados eternos, mas a qualidade dessa exis­
tência eterna é muito diferente.

0 Antigo Testamento e a imortalidade

Geralmente se questiona que o Antigo Testamento nada diz sobre a


vida depois da morte. Quanto a isso, primeiramente, devemos entender
que a revelação é progressiva. Como diz Hodge, “a revelação de todas as
doutrinas que tratam do destino e da salvação dos homens tem sido segura­
mente progressiva. Portanto, não deve surpreender-nos que a questão do
estado futuro esteja muito menos desenvolvida no Antigo Testamento do
que no Novo. No entanto, está ali”.8 Com menos ênfase do que o Novo, o
Antigo ainda assim fala sobre a imortalidade. Sabemos de um homem que
nem sequer viu a morte, tendo passado diretamente para a vida além, Seu
nome era Enoque. No Gênesis está escrito: “Andou Enoque com Deus e já
não era, porque Deus o tomou para si” (Gn 5.24; ver Hb 11.5). Depois que
partiu deste mundo, ele continuou existindo de algum modo. O mesmo,
Imortalidade 567

provavelmente, aconteceu com Elias (2Rs 2.11). O próprio Jó que, a certa


altura, parece desacreditar na vida depois da morte (ver Jó 14.14), depois de
meditar sobre a brevidade da vida declara: “Porque eu sei que o meu Re­
dentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu
corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mes­
mo, os meus olhos o verão, e não outros” (Jó 19.25-27). Aqui está um
homem do Antigo Testamento demonstrando plena convicção de ver Deus
depois da morte. E ele tem esperança de ver a Deus na carne, o que aponta
para a ressurreição. A mesma expectativa pode ser vista em Davi, que can­
tava: “Alegra-se, pois, o meu coração, e o meu espírito exulta; até o meu
corpo repousará seguro. Pois não deixarás a minha alma na morte, nem
permitirás que o teu Santo veja corrupção. Tu me farás ver os caminhos da
vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetu­
amente” (SI 16.9-11). Em outra passagem ele demonstra essa mesma confi­
ança: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal
nenhum, porque tu estás comigo; (...) e habitarei na Casa do S enhor para
todo o sempre” (SI 23.4,6). E impossível negar a convicção de Davi na vida
após a morte. O salmista Asafe também acreditava que os ímpios pagariam
pelos seus atos no fim, enquanto ele seria recebido na glória (SI 73.17,24). E
Salomão entendia que Deus havia colocado a eternidade dentro do homem
(Ec 3.11), e que um dia o corpo voltaria ao pó, mas o espírito voltaria a
Deus (Ec 12.7). Os profetas Isaías e Daniel também acreditavam na vida do
além. Isaías disse: “Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e
ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orva­
lho, ó Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus
mortos” (Is 26.19), e Daniel disse: “Muitos dos que dormem no pó da terra
ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eter­
no. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamen­
to; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e
eternamente” (Dn 12.2,3). Portanto, o Antigo Testamento demonstra a
existência da vida após a morte,

0 Novo Testamento e a imortalidade


Mas certamente é o Novo Testamento que contém a revelação mais com­
pleta e definitiva sobre a vida depois da morte. Mais de quarenta vezes o
Novo Testamento usa a expressão “vida eterna”. Na verdade, o Novo Testa­
mento está totalmente impregnado desse sentido. Cada página se desenvol­
ve numa expectativa dessa vida superior e plena que Deus dará ao seu povo.
568 Razão da esperança

Jesu s prometeu a seus discípulos que ao segui-lo, abandonando muitas coi­


sas desta vida, eles ganhariam outras, e por fim a vida eterna (Mt 19.29). Ele
mesmo esclareceu que havia sido enviado por Deus para dar a vida eterna
aos que cressem nele (Jo 3.16). Ele disse que a vontade do seu Pai era que
todo o que cresse nele tivesse a vida eterna e fosse ressuscitado no último dia
0o 6.40). Disse que era sua tarefa dar a vida eterna às suas ovelhas 0o 10.28).
Explicou que a vida eterna consistia em conhecer o Deus verdadeiro e a
Jesus Cristo o enviado 0o 17.3). Jesus tinha uma consciência muito clara de
que a vida não termina com a morte e, sobre essa base, os demais escritores
do Novo Testamento falaram. Paulo disse que a vida eterna era um dom
gratuito de Deus (Rm 6.23), e que Deus havia prometido essa vida antes dos
tempos eternos (Tt 1.2). Lucas disse que a vida eterna era para aqueles que
haviam sido destinados para ela (At 13.48). João disse que Deus nos deu a
vida eterna e que essa vida está no seu Filho (ljo 5.11).E Judas diz que a vida
eterna, afinal, é alcançada pela misericórdia de Deus 0d 21). O Novo Testa­
mento tem sua base na ressurreição de Cristo que é a grande confirmação de
que existe vida após a morte. E quase uma redundância, portanto, falar de
vida eterna e Novo Testamento, Porém, a vida eterna do Novo Testamento
é a vida da ressurreição. O Novo Testamento tem sua própria base no fato
de que a vida atual não é a única do ser humano. Sem a vida eterna, a mensa­
gem do Novo Testamento é totalmente desprovida de sentido.

Conclusão: A vida é eterna


A certeza da eternidade não é um absurdo ou uma especulação teológi­
ca, mas um conceito absolutamente necessário para que a vida atual faça
sentido. Quando é dito que a crença na eternidade é apenas uma maneira de
se consolar as pessoas, pode ser contra-argumentado que o oposto tam­
bém é verdadeiro. Muitos se recusam a crer na vida eterna justamente por
temor da punição, uma vez que suas próprias consciências os acusam. Po­
rém, não há consolo no túmulo. Ele não é o fim. Consolo verdadeiro há nas
palavras de Jesus: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede
também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não
fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos
preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu
estou, estejais vós também” 0o 14.1-3). Jesus demonstrou que a existência
continua no mundo além, pois foi o primeiro a voltar dele. A morte não é o
fim. A vida é eterna.
44

Sinais do fim

Durante séculos os israelitas aguardaram a vinda de um libertador. A


cada geração que se levantava, acentuava-se a expectativa pela chegada do
Messias. Em meio às tribulações, às perseguições e à opressão dos inimi­
gos, o povo de Deus levantava suas mãos para o alto e implorava que o
Grande Rei viesse para livrá-los de todos os seus algozes. Os profetas, por­
ta-vozes de Deus, anunciavam a vinda desse salvador, apresentando indíci­
os ao povo sobre onde, como e quando ele finalmente nasceria. Poucas
coisas foram tão anunciadas como a vinda do Redentor. De repente, ele
veio. Mas por que, naquele dia em Belém, tão poucas pessoas foram vê-lo?
Herodes e os religiosos até mesmo sabiam o local do nascimento, pois o
anunciaram aos magos (ver Mt 2.3-5). Será que os estudiosos da lei tinham
coisas mais importantes para fazer do que ir conferir o nascimento do
Messias? Na verdade, o fato é que eles não criam mais nos sinais. Eles
estavam cansados de esperar. Talvez já tivessem visto tantos se fazerem
passar pelo Messias, que simplesmente não estavam mais dispostos a ouvir
falar sobre o assunto. Do mesmo modo, Jesus prometeu voltar uma segun­
da vez, e deixou certos sinais que ajudam a identificar quando essa vinda
estará próxima. Já faz muito tempo que esses sinais foram anunciados. Muitos
já não crêem neles, outros já se cansaram de esperar. Por essa razão, Jesus
disse que a sua vinda será como a do ladrão na noite. Como a primeira, a
sua segunda vinda também pegará muitos de surpresa. Outros, porém, sim­
plesmente não estão interessados nela, pois se sentem confortáveis neste
mundo. Um dia será preciso dizer novamente: “De repente, ele veio”.
Deus resolveu deixar algumas marcas no mundo que servissem como
indicadores de que a segunda vinda do seu Filho está próxima. Esses
sinais não têm a pretensão de indicar com exatidão o dia da vinda de
Jesus, mas apenas fornecer recursos às pessoas para que elas consigam
discernir a época em que estão vivendo, e a proximidade da vinda do
Senhor. São sinais para os fiéis, somente para os fiéis, para que renovem
as suas esperanças.
570 Razão da esperança

Dicernindo os tem pos


Num certo dia, os fariseus e saduceus - curiosamente unidos com a
finalidade de tentarem ao Senhor - se aproximaram de Jesus e lhe pediram
que lhes mostrasse um sinal vindo do céu (Mt 16.1). Eles não acreditavam
que Jesus fosse um enviado de Deus e, por isso, estavam exigindo que Jesus
lhes desse uma prova, um sinal da sua autoridade. Parece que eles haviam
formulado uma maneira de desmascarar falsos profetas. Quando estives­
sem na dúvida, simplesmente exigiriam uma comprovação do profeta, um
sinal da sua autenticidade. A resposta de Jesus foi a seguinte: “Chegada a
tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu está avermelhado; e, pela
manhã: Hoje, haverá tempestade, porque o céu está de um vermelho som­
brio. Sabeis, na verdade, discernir o aspecto do céu e não podeis discernir
os sinais dos tempos?” (Mt 16.2,3). Jesus chamou a atenção para uma defi­
ciência deles. Jesus disse: Vocês conseguem olhar para o “tempo” e saber se
vai chover ou fazer sol pelo aspecto dele, mas vocês não conseguem olhar
para o outro “tempo” (kairós) e perceber que vários sinais já foram dados, e
que demonstram a importância desta época que estão vivendo, Desde o
Antigo Testamento Deus havia prometido a vinda do Messias, e que vários
sinais acompanhariam essa vinda. Jesus quis demonstrar aos fariseus que os
sinais dos tempos já estavam presentes, mas eles se recusavam a ver. Por
certo, eles sabiam da multiplicação dos pães e dos diversos milagres realiza­
dos por Jesus. Ao que parece, eles queriam insinuar que aqueles feitos eram
obras malignas (como dos magos do Egito qüe enfrentaram a Moisés). Até
mesmo João Batista teve dificuldade de ver os sinais. O grande profeta do
Jordão havia anunciado que, quando Jesus se manifestasse, iria exercer uma
atividade julgadora sobre a nação. Ele proclamou: “Eu vos batizo com água,
para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso
do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar. Ele vos batizará com o
Espírito Santo e com fogo. A sua pá, ele a tem na mão e limpará completa­
mente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em
fogo inextinguível” (Mt 3.11,12). Porém, quando Jesus se manifestou, essa
atividade julgadora aparentemente não entrou em atuação, por isso, o pró­
prio Batista, da prisão, mandou seus discípulos perguntarem a Jesus: “Es tu
aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Mt 11.3). Prova­
velmente João Batista não conseguia entender a razão de Jesus não estabe­
lecer imediatamente o juízo. Jesus respondeu: “Ide e anunciai a João o que
estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são
Sinais do fim 571

purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres


está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar
em mim motivo de tropeço” (Mt 11,4-6). João havia invertido os eventos
que aconteceriam nas duas vindas de Jesus. Sua primeira vinda não foi para
julgar o mundo, mas para oferecer e providenciar a salvação ao mundo. O
juízo é a atividade da segunda vinda.
Portanto, os sinais dos tempos não são coisas reservadas somente para
o fim. No fim os sinais deverão aumentar grandemente, mas em todas as
épocas, os homens devem estar atentos para entender o que Deus está
fazendo no mundo. Por essa razão, Paulo diz aos Romanos: “E digo isto
a vós outros que conheceis o tempo: já é hora de vos despertardes do
sono; porque a nossa salvação está, agora, mais perto do que quando no
princípio cremos, Vai alta a noite, e vem chegando o dia. Deixemos, pois,
as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13.11,12).
Quem conhece o tempo deve viver conforme a vontade do Senhor. A
vinda de Jesus trouxe um novo tempo para este mundo, Ele foi a luz que
veio ao mundo, como João explicou (Jo 1.9). Sua partida não nos deixou
no escuro, porque a luz da vida está dentro de nós. E sua segunda vinda é
como o amanhecer, como se pudéssemos olhar para o horizonte e já ver
a luz inundando as trevas da noite. O mundo ainda está em trevas, mas lá
ao longe já podemos ver a luz surgindo, pois Jesus está voltando. Logo o
Sol vai nascer e as trevas não mais existirão, Se somos filhos da luz, deve­
mos viver em conformidade com isso, rejeitando as obras das trevas e
revestindo-nos do que é próprio da luz. Não somos mais criaturas da
escuridão e, por isso, a escuridão não deve nos atrair e nem devemos mais
viver da maneira que é própria da escuridão (Rm 13.13,14). A luz escato-
lógica já começa a brilhar no horizonte. Cada geração precisa estar prepa­
rada para ver essa luz. Ela é a garantia de que as coisas não são o que
parecem ser. E a garantia de que as trevas não dominarão o mundo para
sempre. E é a garantia de que um dia todo o mal será finalmente extirpa­
do, e que a luz do Senhor resplandecerá em cada vida, e em toda a criação.
Discernir os tempos é a qualidade suprema de pessoas que desejam viver
e agradar a Deus.

As categorias de sinais
Portanto, os sinais dos tempos são indicações divinas para que a vinda
de Jesus não nos pegue de surpresa, Jesus disse:
572 Razão da esperança

Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e


as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando
virdes todas estas coisas, sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos
digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça. Passará o céu
e a terra, porém as minhas palavras não passarão (Mt 24.32-35).

Ou seja, Jesus disse a seus discípulos que quando eles vissem certas
coisas acontecerem, deveriam ficar de sobreaviso, porque o Senhor poderia
voltar a qualquer momento. Com relação à expressão de Jesus de que tudo
aconteceria “naquela geração”, muitas dificuldades têm surgido. Aqueles
que se esforçam por achar contradições na Escritura vêem aqui um prato
cheio para as suas especulações, Eles ousam afirmar que Jesus se enganou,
pois pensava que o reino se consumaria logo.1 Por outro lado, MacArthur
e os pré-milenistas não hesitam em afirmar que a palavra “geração” se refe­
re ao povo de Israel, assim o povo, ou geração de Israel continuaria existin­
do até o fim.2 Essa é uma interpretação confessional, mas parece ser um
tanto quanto artificial. Apesar do fato de Jesus ter anunciado coisas que
extrapolam em muito à destruição do templo, devendo realmente ser con­
sideradas próprias de sua segunda vinda, não há razão para não interpretar
o versículo 34 como uma referência à destruição de Jerusalém, que aconte­
ceu cerca de quarenta anos depois que ele proferiu essas palavras.3 Esse
evento evocava o maior de todos os eventos, que seria a segunda vinda de
Jesus. A destruição de Jerusalém simbolizava a destruição do mundo. Por­
tanto, geração seria uma referência àquela geração.4
Quando consideramos todos os tipos de sinais que estão profetizados
pela Bíblia, podemos organizá-los em três categorias.

Sinais que d e m o n s t r a m a gr aça de Deus

Os sinais que demonstram a graça de Deus são dois: a pregação do


evangelho e a conversão da plenitude de Israel. Jesus disse: “E será pregado
este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as
nações. Então, virá o fim” (Mt 24,14). A pregação do evangelho a todos os
povos, portanto, é uma condição que precisa ser preenchida para que Jesus
retorne. Duas questões que precisam ser consideradas em conexão com
essa idéia referem-se à maneira como a pregação precisa ser feita, bem
como a sua eficácia. Não sabemos se Jesus quer dizer que todas as nações
organizadas do mundo precisam ouvir o evangelho, ou se todas as etnias
do mundo (entendendo que há muitas etnias dentro de uma única nação).
Sinais do fim 573

De qualquer modo, esse sinal não foi dado para ajudar a datar a vinda de
Jesus, ele funciona muito mais como um incentivo à própria pregação do
evangelho. Quanto mais pregamos o evangelho no mundo, é como se esti­
véssemos “apressando” a vinda de Jesus (2Pe 3.12), pois estaremos de­
monstrando um desejo intenso de que ele venha, envolvendo a idéia de
diligenciar com zelo, solicitude, urgência, etc. Isso revela uma pressa
prazerosa daquilo que terá de ocorrer. Não é que adiantaremos o dia da
vinda, pois esse dia está marcado por Deus, mas para nós, ele ficará cada
vez mais perto.
Importante também é a eficácia dessa pregação. Jesus diz que ela serve
de testemunho para o mundo. No contexto, Jesus estava falando sobre apos­
tasia, portanto, isso nos leva a crer que essa pregação talvez não redunde
em grandes efeitos, no sentido de conversões em massa. De qualquer ma­
neira, ela servirá de testemunho para o mundo, pois deixará as pessoas
rebeldes ainda mais indesculpáveis.
O outro grande sinal da graça de Deus como evidenciando o fim dos
tempos é a restauração de Israel, Paulo trata disso nos capítulos 9-11 de
Romanos. A passagem central para a discussão é Romanos 11.25,26: “Por­
que não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que não sejais pre­
sumidos em vós mesmos): que veio endurecimento em parte a Israel, até
que haja entrado a plenitude dos gentios. E, assim, todo o Israel será salvo,
como está escrito: Virá de Sião o Libertador e ele apartará de Jacó as impi­
edades”, Por causa dessa promessa e de muitas outras do Antigo Testa­
mento, muitos esperam um momento final em que a nação de Israel se
converterá totalmente a Cristo. Os defensores de uma corrente teológica
chamada dispensacionalismo acreditam que, depois da vinda de Cristo e o
arrebatamento da igreja, Deus voltará a sua atenção novamente para Israel.
O povo de Israel, naquele momento, se converterá a Cristo que reinará de
Jerusalém sobre o mundo durante mil anos, Há muitos outros estudiosos
que, embora não sejam dispensacionalistas, aguardam que Deus conceda
uma chance futura para a nação de Israel. Antes de qualquer coisa, é evi­
dente que Deus pode conceder uma chance especial a Israel se ele quiser,
porém, entendemos que Paulo não está falando sobre isso em Romanos 11.
Desde o capítulo 9, Paulo está tentando explicar por que nem todos os
israelitas se converteram a Cristo. Parecia estranho aos estrangeiros que se
converteram, o fato de os judeus permanecerem em oposição ao Senhor
Jesus. A resposta de Paulo é: “E não pensemos que a palavra de Deus haja
falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por
serem descendentes de Abraão são todos seus filhos” (Rm 9.6,7). Paulo
57 4 R azão da esperança

está dizendo que ser um verdadeiro israelita não significa necessariamente


ser descendente de Abraão. Ele demonstra que depende da escolha divina,
pois entre dois descendentes de Abraão, que foram Esaú e Jacó, Deus esco­
lheu a Jacó (Rm 9.8-13), portanto, o verdadeiro israelita é aquele que Deus
escolhe. Deus deixou claro que apenas uma parte da nação de Israel seria
salva: “Mas, relativamente a Israel, dele clama Isaías: Ainda que o número
dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será
salvo” (Rm 9.27). Um remanescente de Israel em cada época é que seria
salvo e não toda a nação de Israel. E Paulo diz que isso já estava acontecen­
do naquele momento: “Pergunto, pois: terá Deus, porventura, rejeitado o
seu povo? De modo nenhum! Porque eu também sou israelita da descen­
dência de Abraão, da tribo de Benjamim” (Rm 11.1). O próprio Paulo era
um descendente de Israel e um salvo, pois Deus estava mantendo o seu
remanescente, conforme as próprias palavras do apóstolo: “Assim, pois,
também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a
eleição da graça” (Rm 11.5). Existiam eleitos em Israel naqueles dias que
continuavam sendo salvos. Paulo explica que Deus estava permitindo um
endurecimento a Israel a fim de possibilitar que os gentios (estrangeiros)
fossem aceitos na família da fé. Ele argumenta: “Pergunto, pois: porventu­
ra, tropeçaram para que caíssem? De modo nenhum! Mas, pela sua trans­
gressão, veio a salvação aos gentios, para pô-los em ciúmes” (Rm 11.11).
Por essa razão, os gentios não deveriam se vangloriar: “Se, porém, alguns
dos ramos foram quebrados, e tu, sendo oliveira brava, foste enxertado em
meio deles e te tornaste participante da raiz e da seiva da oliveira, não te
glories contra os ramos; porém, se te gloriares, sabe que não és tu que
sustentas a raiz, mas a raiz, a ti” (Rm 11.17,18). Os israelitas eram ramos da
videira e foram quebrados pela incredulidade (11.20), e no lugar daqueles
ramos os gentios, que eram “oliveira brava”, foram enxertados. Isso, po­
rém, de acordo com Paulo, não significa que os ramos naturais não poderi­
am mais ser enxertados: “Eles também, se não permanecerem na incredu­
lidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo.
Pois, se foste cortado da que, por natureza, era oliveira brava e, contra a
natureza, enxertado em boa oliveira, quanto mais não serão enxertados na
sua própria oliveira aqueles que são ramos naturais!” (Rm 11.23,24). Deus
pode normalmente enxertá-los novamente, mas, para isso, eles precisam
deixar de lado a incredulidade. Isso nos mostra que a salvação para os ju­
deus é exatamente a mesma para os gentios: é pela fé. Nem poderia ser
diferente, afinal a oliveira na qual todos os ramos são enxertados é a mes­
ma. E depois de falar sobre isso que Paulo diz que Israel foi endurecido em
Sinais do fim 575

parte, até que haja entrado a plenitude dos gentios, e assim, todo Israel será
salvo (Rm 11,25,26). A melhor maneira de entender isso é que todo o Is­
rael, no sentido de todos os eleitos de Israel serão salvos no fim. Esse “no
fim” não significa depois que os gentios se converterem. Paulo não diz que
os gentios se converterão e depois todo o Israel será salvo, mas que Deus
endureceu Israel para que os gentios fossem enxertados “e assim”, ou seja,
dessa maneira, todo Israel será salvo, Seria estranho pensar que Deus con­
cedesse uma chance especial exclusiva para os habitantes de Israel que esti­
verem vivos na vinda de Jesus, em detrimento de todos os demais que vive­
ram antes. Do mesmo modo, não parece justo identificar apenas os israeli­
tas vivos na vinda de Jesus como sendo “todo o Israel”. Eles serão apenas
um fragmento do Israel de Deus. Além disso, se Deus juntará a plenitude
dos gentios durante todo esse tempo, por que a plenitude de Israel não
pode seguir paralela? Parece melhor, portanto, entender que “todo o Is­
rael” significa não todos os descendentes físicos de Israel que estarão vivos
na vinda de Jesus, mas todos os eleitos de Israel em todos os tempos. E a
soma de todos os remanescentes de Israel.

Sinais que d e m o n s t r a m op os içã o a Deus

Outra categoria de sinais que anunciam a vinda de Jesus são aqueles


associados a algum tipo de oposição a Deus. São eles: tribulação (persegui­
ção), apostasia e o aparecimento do Anticristo. O Anticristo será estudado
no próximo capítulo.
Tribulação e apostasia são coisas que podem ser encontradas simultane­
amente. Na verdade, geralmente é a tribulação que leva à apostasia. No
sermão escatológico do Capítulo 24 de Mateus, encontramos uma descri­
ção impressionante desses dois sinais. O referido sermão contém as expli­
cações de Jesus sobre o fim desta era e sobre a destruição de Jerusalém.
Jesus começou a dar explicações numa ocasião quando os discípulos lhe
mostraram a imponência do templo, e Jesus disse que o templo não duraria
muito tempo (Mt 24.1,2). Isso assustou os discípulos que viram naquele
acontecimento a consumação do século, o verdadeiro fim do mundo, por
isso perguntaram quais seriam os sinais que antecederiam aquele evento
catastrófico (Mt 24.3). Jesus disse que, primeiramente, eles deveriam estar
preparados para não serem enganados, pois muitos tentariam se fazer pas­
sar pelo Cristo: “Vede que ninguém vos engane. Porque virão muitos em
meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo, e enganarão a muitos” (Mt 24.4,5).
Depois falou da perseguição e da apostasia que afligiria os cristãos: “Então,
576 Razão da esperança

sereis atribulados, e vos matarão. Sereis odiados de todas as nações, por


causa do meu nome. Nesse tempo, muitos hão de se escandalizar, trair e
odiar uns aos outros; levantar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a
muitos. E, por se multiplicar a iniqüidade, o amor se esfriará de quase to­
dos” (Mt 24.9-12). Por isso, a necessidade de perseverança era a maior de
todas (v. 13). Portanto, Jesus fala de uma mescla de falsos cristos, falsos
profetas, perseguições sobre os cristãos verdadeiros e apostasia de cristãos
nominais. Porém, nesse ponto Jesus está falando do fim dos tempos ou da
destruição de Jerusalém? Das duas coisas. Devemos lembrar que os discí­
pulos lhe perguntaram sobre as duas coisas. De certo modo, tudo o que
Jesus disse se cumpre parcialmente na destruição de Jerusalém que aconte­
ceu cerca de quarenta anos depois que ele proferiu essas palavras. Porém, a
destruição de Jerusalém prefigurava uma destruição ainda maior, o fim do
mundo. Portanto, quando olhamos as explicações de Jesus, precisamos nos
lembrar dos dois eventos.
Com relação à destruição do templo, Jesus diz que uma grande profana­
ção a antecederia (Mt 24.15). Quando os habitantes de Jerusalém e da Ju-
déia vissem a profanação, deveriam fugir para os montes, sem se preocupar
em voltar para pegar alguma coisa (Mt 24.16-18). Provavelmente, essa foi
uma referência ao momento em que o general romano Tito invadiu Jerusa­
lém e profanou o Templo. A referência às grávidas, ao inverno e ao sábado
deve ser entendida como em relação à fuga. A fuga deveria acontecer a toda
pressa e uma mulher grávida teria dificuldade para correr. A mesma dificul­
dade se daria no inverno. E, no sábado, o judeu nem podia correr (Mt
24.19,20). Porém, tudo isso também prefigura o fim do mundo, quando,
mais do que nunca, haverá profanações, perseguições e apostasias.
Jesus continua falando sobre os sinais futuros e diz que haveria um
tempo de tribulação ímpar na História, e que aqueles dias seriam abrevia­
dos por causa dos escolhidos, pois, caso contrário, eles mesmos correriam
riscos (Mt 24.21,22). A “grande tribulação” certamente deve se referir à
tribulação dos últimos dias, cuja perseguição por parte dos inimigos de
Deus será mais terrível do que nunca. E novamente ele fala sobre a neces­
sidade de estar atento para não ser enganado. Ele diz: “Então, se alguém
vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque surgirão
falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para
enganar, se possível, os próprios eleitos. Vede que vo-lo tenho predito”
(Mt 24.23-25). Jesus tinha plena consciência de que os poderes malignos
fariam de tudo para impedir que as pessoas fossem salvas pela aproxima­
ção da manifestação final do Reino de Deus. Eles fariam isso falsificando
Sinais do fim 511

essa manifestação. A falsificação não é sem motivo. Quando Satanás con­


segue fisgar uma pessoa com falsos ensinos, ela está totalmente perdida, e
o pior é que ela acha que está salva (lTm 3.1; 2Tm 4.1), Então, não procu­
rará refúgio, pois acha que já está refugiada. Aparentemente, enquanto par­
te do mundo estaria sendo enganada por falsos sinais, outra parte estaria
vivendo despreocupadamente. Mais à frente, Jesus diz: “Pois assim como
foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do homem. Porquanto,
assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e
davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o
perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim será
também a vinda do Filho do homem” (Mt 24.37-39). Os dias que antece­
deram o dilúvio foram os piores que já existiram. Deus entregou aquelas
pessoas ao pecado. Elas se tornaram totalmente alienadas de Deus. A úni­
ca preocupação delas era com as coisas do dia-a-dia, que praticavam em
aberta rebelião contra Deus, como se pode ver dos casamentos mistos
daquele tempo (Gn 6.1). Jesus disse que o mesmo tipo de alienação haveria
antes da sua vinda.

Sinais que d e m o n s t r a m o j u l g a m e n t o divino


Um outro importante grupo de sinais que indicam a vinda iminente de
Jesus diz respeito aos que demonstram o julgamento divino sobre o mun­
do, Nesta classe se encontram as guerras, os cataclismas da natureza e as
pragas destruidoras.
Jesus disse: “E, certamente, ouvireis falar de guerras e rumores de guer­
ras; vede, não vos assusteis, porque é necessário assim acontecer, mas ainda
não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino,
e haverá fomes e terremotos em vários lugares; porém tudo isto é o princí­
pio das dores” (Mt 24.6-8). Lucas acrescenta alguns detalhes: “Quando
ouvirdes falar de guerras e revoluções, não vos assusteis; pois é necessário
que primeiro aconteçam estas coisas, mas o fim não será logo, Então, lhes
disse: Levantar-se-á nação contra nação, e reino, contra reino; haverá gran­
des terremotos, epidemias e fome em vários lugares, coisas espantosas e
também grandes sinais do céu” (Lc 21.9.11). Todas essas manifestações
indicam o juízo de Deus sobre o mundo pecaminoso. Guerras, fome, doen­
ças, terremotos, etc., são coisas que acontecem porque o pecado entrou no
mundo, como uma maldição divina (Gn 3.17). Essas coisas sempre aconte­
ceram, porém, nos últimos tempos, haverá uma acentuação. A acentuação
desses acontecimentos é um sinal da vinda de Jesus,
578 Ra m o da esperança

Essa terceira classe de sinais é a que tem deixado os estudiosos da Bíblia


mais inquietos nos últimos tempos. A intensificação das guerras e revolu­
ções em todo o mundo, a proliferação das pestes e doenças incuráveis, a
fome que assola uma grande parcela da população mundial, e os aconteci­
mentos catastróficos da natureza, muitos deles provocados pela própria
irresponsabilidade do homem, têm testemunhado que o mundo está viven­
do realmente o “princípio das dores” de que Jesus falou. Porém, esses si­
nais não devem nos deixar atemorizados, pois Jesus mesmo disse que não
devíamos nos assustar. Como diz Hoekema, “não devemos ficar atemori­
zados, mas devemos aceitá-los como dores do nascimento de um mundo
melhor”5 (ver Rm 8.22). Num sentido, a geração atual tem sido privilegiada
em ver tantos sinais, embora em si, esses sinais sejam negativos. Mas eles
demonstram que a luz já está brilhando no horizonte.

A responsabilidade de vigiar
Como dissemos, Jesus não apontou sinais para assustar, e sim para que
estivéssemos preparados. No livro de Mateus, temos o registro de várias
parábolas que Jesus contou no final de seu sermão escatológico, que nos
ajudam a entender a necessidade de olhar para os sinais e ficar vigilantes.
Ele diz que dois poderão estar juntos no campo, mas um ser levado por
Deus e o outro abandonado (Mt 24.40). Também duas mulheres poderão
estar juntas moendo e só uma ser levada (Mt 24.41). Proximidade física não
adiantará nada naquele dia, é preciso vigilância. Como ninguém sabe em
qual dia o Senhor vem, todos devem vigiar (Mt 24.42), como um pai de
família que não sabe quando o ladrão vem, e, portanto, deve estar sempre
de prontidão (Mt 24.43).
Em seguida, Jesus contou duas parábolas para ilustrar ainda mais a ne­
cessidade de vigilância. Ele falou do servo que, pensando que o seu senhor
demoraria, começou a se aproveitar da situação. Porém, quando ele menos
esperasse, o senhor viria e o puniria (Mt 24.45-51). E fala também das
virgens que esperavam o noivo. Cinco delas levaram azeite suficiente para
as lâmpadas e cinco não. As cinco que levaram puderam entrar na festa das
bodas, mas as cinco que não levaram ficaram de fora (Mt 25.1-12). E Jesus
arremata: “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora” (Mt 25.13).
Um outro aspecto importante que Jesus enfatizou em relação a estar
preparado para a sua vinda, foi a necessidade de administrar responsavel­
mente os bens concedidos por ele (Mt 25.14-30). Jesus contou a parábola
Sinais do fim 579

dos talentos, falando de um homem que se ausentou do país, e que distri­


buiu dinheiro para alguns servos. A um deu cinco talentos, a outro dois, e a
outro um. Jesus enfatiza que cada um ganhou segundo a sua própria capa­
cidade (v. 15). O que recebeu cinco talentos fez negócios e ganhou mais
cinco. O que recebeu dois ganhou mais dois. Porém, o que recebeu um,
com medo de perder o dinheiro, resolveu enterrá-lo. Quando o senhor
voltou, cada servo foi apresentar as contas diante do Senhor. Os dois pri­
meiros receberam elogios do Senhor, pois administraram sabiamente o que
haviam recebido, fazendo uso dos bens dele. Porém, o que recebeu um
talento apenas, entregou o mesmo dinheiro, argumentando que agiu assim
porque ficou com medo de perder o dinheiro, pois sabia do rigor com que
o senhor tratava essas questões. Jesus chamou esse servo de mau e negli­
gente (v. 26). Como conseqüência, ele perdeu até aquele talento que rece­
beu, o qual foi dado ao que tinha dez. E o servo inútil foi lançado fora, nas
trevas (v. 30). Do mesmo modo que as virgens néscias ficaram de fora
porque não tinham azeite, esse servo ficou de fora porque não administrou
dignamente o que havia recebido de Deus. Quem não vigiar pode realmen­
te ficar de fora.
Nós que vivemos dois mil anos depois da vinda de Jesus, não temos
nenhuma dúvida de que ele já veio uma vez aqui. Sua primeira vinda é um
fato histórico para nós. Mas muitos do Antigo Testamento viveram e mor­
reram na expectativa da vinda do Messias. Muitos desistiram de esperar,
mas, de repente ele veio. Entre os que esperavam estavam os magos e os
pastores. Especialmente Ana e Simeão são exemplos de pessoas que conti­
nuavam a esperar a consolação de Israel (Lc 2.25-38). Os dois estavam no
templo naquele dia quando o Senhor, ainda bebê, foi finalmente levado ao
templo. Certamente eram observadores de sinais. Igualmente eram os ma­
gos que seguiram a estrela, e os pastores que obedeceram às ordens do
anjo. Mas o que os sinais têm produzido na nossa vida? Será que somos
observadores de sinais? Ou será que somos como os fariseus que sabiam
quando ia chover, mas não conseguiam ver o óbvio? Será que estamos ven­
do a luz despontar no horizonte? E que transformações isso tem produzi­
do na nossa vida? Os sinais não foram postos para causar medo ou suscitar
especulações, mas para que estejamos vigilantes.
45

A vinda do inimigo
<lw r''l5lP

Poucos assuntos têm despertado mais a curiosidade das pessoas do que


a manifestação do Anticristo, A Besta do Apocalipse figura entre as perso­
nagens mais enigmáticas e polêmicas da História, O número da Besta já fez
com que Holywood ganhasse muitos milhões de dólares em produções
fantasiosas e especulativas. Poucas pessoas não se sentem atraídas por essas
coisas, Mas, afinal, quem é o Anticristo? Será ele uma pessoa ou uma insti­
tuição? O que ele representa para os planos do maligno? E por que Deus
permitirá a sua manifestação? Estudar sobre o Anticristo é tomar conheci­
mento dos planos de guerra do grande inimigo de Deus. E como se estivés­
semos numa guerra e tivéssemos acesso aos planos secretos do inimigo.
Por um lado, ficamos impressionados com todo o mal que ele tem planeja­
do contra o povo de Deus e, por outro, nos enchemos de coragem, pois já
não seremos pegos de surpresa. Acima de tudo, estudar sobre o Anticristo
nos leva a perceber a misericórdia, a graça e o poder dõ Senhor Jesus Cris­
to, que, nas sua vinda, destruirá esse inimigo.
A manifestação do Anticristo é um dos sinais mais decisivos em relação
à vinda de Cristo, pois ela antecede imediatamente a vinda de Jesus. Faz
parte daquele grupo de sinais que indicam oposição contra Deus e perten­
ce ao momento da apostasia que já foi estudado no capítulo anterior, A
palavra “Anticristo” aparece quatro vezes na Bíblia, todas nos escritos de
João. Porém, João não é o único a falar sobre o Anticristo. Paulo advertiu os
crentes de Tessalônica de que eles não deviam esperar a vinda do Senhor
antes do aparecimento de um certo “homem da iniqüidade” (2Ts 2.3). Jesus
falou sobre o “abominável da desolação” assentado no lugar santo (Mt
24.15). O profeta Daniel falou sobre um “chifre pequeno” que se estabele­
ceria e falaria insolências (Dn 7.7), e de um príncipe que há de vir que
destruirá a cidade e o santuário (Dn 9.26). Falou ainda de um rei que se
levantará e se engrandecerá sobre todo deus, e contra o Deus dos deuses
falará coisas incríveis (Dn 11.36,37). Portanto, a vinda desse personagem
maligno é muito prevista na Escritura.
582 Razão da esperança

A co n s u m a ç ã o do m al
Paulo explicou: “Irmãos, no que diz respeito à vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, nós vos exortamos a que não vos
demovais da vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por
espírito, quer por palavra, quer por epístola, como se procedesse de nós,
supondo tenha chegado o Dia do Senhor. Ninguém, de nenhum modo, vos
engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia e
seja revelado o homem da iniqüidade, o filho da perdição” (2Ts 2.1-3). A
manifestação desse inimigo de Deus é a consumação da apostasia que ca­
racterizará os dias que antecederão a volta de Jesus. A grande tribulação que
redundará em extrema perseguição aos cristãos dará vazão à apostasia, pois
os crentes nominais e mesmo aqueles que por interesse pessoal se infiltraram
na igreja de Cristo, abandonarão a fé que professaram. Estes certamente
seguirão o Anticristo, recebendo a marca do seu nome. Nesse tempo, have­
rá necessidade de perseverança como nunca houve, pois o homem da ini­
qüidade, segundo Paulo, “se opõe e se levanta contra tudo que se chama
Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus,
ostentando-se como se fosse o próprio Deus” (2Ts 2.4). Ele não só perse­
gue os seguidores de Deus, como se fará passar por Deus. Nesse sentido,
ele é Anticristo, pois “anti” pode significar tanto algo contrário, como con­
corrente. Desde os dias do apóstolo Paulo, o mundo já vem sendo prepara­
do pelas forças malignas, para a manifestação do grande inimigo do povo
de Deus. Paulo já dizia: “Com efeito, o mistério da iniqüidade já opera e
aguarda somente que seja afastado aquele que agora o detém; então, será,
de fato, revelado o iníquo, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de
sua boca e o destruirá pela manifestação de sua vinda” (2Ts 2.7,8). O que
detém o inimigo provavelmente seja a pregação do Evangelho, pois o pró­
prio Jesus disse que o Evangelho precisava ser pregado em todo o mundo
antes do fim (Mt 24.14). Paulo descreve ainda que o inimigo terá à sua
disposição todo o poder do diabo para enganar as pessoas:

Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo


poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com todo engano de injustiça aos
que perecem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos. É
por este motivo, pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem
crédito à mentira, a fim de serem julgados todos quantos não deram crédito
à verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça (2Ts 2.9-12).
A vinda do inimigo 583

Os milagres realizados pelo destruidor são sustentados pelo próprio


Satanás, mas as pessoas acreditarão que sejam de origem divina.
Portanto, a vinda do Anticristo é a consumação das operações do mal
em todos os tempos. O fato de ele aparecer apenas no fim do mundo
aponta para uma realidade assustadora. Este mundo não progredirá até
atingir um grau de perfeição, como muitos pensam, mas regredirá até os
padrões mais baixos do mal que podem existir. Este mundo piorará até
estar pronto para a vinda do filho da perdição. Isso nos faz entender que
“dias melhores não virão”. Ao mesmo tempo, é possível ver nas movimen­
tações globais que privilegiam o materialismo e destroem os pilares da fa­
mília e do Cristianismo, esforços monumentais para preparar o mundo
para a vinda do Anticristo.

0 dragão e seus aliados


O livro do Apocalipse é o livro que contém mais informações sobre o
Andcristo. No capítulo 12, João descreve uma batalha no céu. Dois exérci­
tos lutam, e a luta é a mesma de sempre: o mal contra o bem. O bem vence
e o mal perde o seu posto naquele lugar em que o desdno dos seres huma­
nos é estabelecido e dirigido. Quando ocorreu essa batalha? Na exaltação
de Cristo, quando ele venceu os seus inimigos, colocando-os debaixo de
seus pés (Ef 1.20-22).1 Cristo, por sua morte, ressurreição e ascensão pôs
fim ao poder do diabo, tirando dele o status de acusador (Rm 8.33). Quan­
do o dragão perdeu o seu lugar de acusador por causa da obra de Cristo, só
lhe restou a possibilidade de perseguir diretamente a igreja. Observe a ira
com que ele desceu, sabendo que o seu tempo é curto (12.12). Porém, a
perseguição do dragão é frustrada pela proteção divina. A mulher, que
representa a igreja, é mantida longe do alcance do dragão (ljo 5.18). Ela é
sustentada por Deus, como Israel o foi no deserto com o maná (Palavra de
Deus), durante 1.260 dias. Esse tempo refere-se ao tempo total da dispen-
sação cristã.2 De várias maneiras o Dragão tenta perseguir a igreja. Ele
lança uma torrente de mentiras, de perseguições, de desilusões, de falsida­
des religiosas e filosóficas, de utopias políticas, de dogmas quase científi­
cos; mas a verdadeira igreja vence todas essas coisas e permanece fiel gra­
ças à proteção divina. As pessoas mundanas, por outro lado, engolem o rio
inteiro.
584 Razão da esperança

A primeira besta

Como se viu fracassado no seu propósito de impedir a vinda do descen­


dente, o dragão foi perseguir os descendentes da mulher individualmente,
ou seja, os crentes individuais. Para isso ele foi buscar ajuda, chamando a
besta do mar e a besta da terra.3 O dragão se colocou em pé sobre a areia
do mar e chamou uma besta (Ap 12.17), Lentamente, foi surgindo do mar
um monstro horrível. Primeiro apareceram os chifres, depois o corpo todo.
Ela se parece com um leopardo, mas tem pés de urso e boca de leão (Ap
13.1-10). Estes são exatamente os três animais vistos por Daniel no capítu­
lo 7. Quem eram aqueles animais, de acordo com Daniel? Eram impérios
mundiais. Talvez aqui esteja a pista para entender o que eles significam no
Apocalipse. Observe que a besta surge do mar. Na Bíblia, o mar representa
as nações e os seus governantes (Is 17.12; Ap 17,15). Portanto, essa primei­
ra besta deve ser o poder político. E o domínio, seja por meio da democra­
cia ou da ditadura, é o modo em que Satanás usurpadoramente controla
este mundo, sendo de fato o seu príncipe (Mt 4.8,9). Essa besta assume
diferentes formas ao longo da História: Babilônia, Assíria, Medo-Pérsia,
Grécia-Macedônia, Roma, Igreja Católica, Alemanha, União Soviética, Es­
tados Unidos, Comunidade Européia, China, etc, pois todas são apenas
expressões do seu poder. Sua ferida mortal também é fácil de entender,
pois os impérios se levantam e caem, e sempre existe um novo império
dominando o mundo. Por outro lado, essa ferida pode se referir também a
um império que foi destruído no passado e que pode voltar a dominar no
futuro. No caso mais imediato, representava a perseguição de Nero que
havia se suicidado, mas que voltava a toda força com Domiciano, Entretan­
to, cremos que a descrição mais ampla aplica-se ao próprio Anticristo. O
tempo de perseguição infligido pela besta é 42 meses, que simbolicamente
representam o período total da dispensação cristã. Nesse período, os go­
vernos anticristãos blasfemam contra Deus e oprimem a igreja. A igreja
deve suportar com paciência essa perseguição, sabendo que, no fim, Cristo
lhe assegurará a vitória.

A se g u n d a besta
A segunda besta, que surge da terra, é uma imitação do Cordeiro de
Deus (Ap 13.11-18). Em tudo ela se parece com algo bom, mas intimamen­
te é um agente do diabo, Portanto, a segunda besta é a mentira de Satanás
com aparência de verdade (2Co 11.14). Ela simboliza todos os falsos profe­
A vinda do inimigo 585

tas em cada nova época que a igreja vive. Eles vêm disfarçados como ove­
lhas, mas interiormente são lobos vorazes (Mt 7.15). Cristo disse: “Levan-
tar-se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos” (Mt 24.11). A segun­
da besta é a falsa religião que, de mãos dadas com o Estado, desvia as
pessoas do Deus verdadeiro. As duas bestas trabalham em perfeita coope­
ração, e serão os dois grandes instrumentos do dragão. Elas são a sustenta­
ção do ministério maligno do “homem da iniqüidade”. Por meio do poder
político e da religião, o Anticristo vai controlar toda a terra. Elas estão
unidas e, em alguns casos, até aparentemente uma contra a outra, mas o
objetivo é sempre o mesmo: enganar. Isso já acontecia nos dias de João. O
sacerdote pagão defendia e dava seu apoio ao poder secular do Estado na
sua perseguição aos crentes. Os sacerdotes defendiam que “César era Se­
nhor”, e recorriam até mesmo a embustes e pseudomilagres para enganar
as pessoas, a fim de que adorassem a estátua do Imperador.4 Porém, sejam
falsos ou verdadeiros os sinais, a intenção é a mesma: “Enganar, se possí­
vel, os próprios eleitos” (Mt 24.24).

0 n ú m e r o da besta

O número da besta tem sido a fonte das maiores especulações ao longo


da História. Alguns somam as letras de algum líder político ou instituição
religiosa e chegam ao 666. Outros dizem que se trata do símbolo da maço­
naria, da moeda americana, etc. Embora seja verdade que a soma do núme­
ro das letras do título Nero César seja 666, e, num sentido, Nero realmente
representava o domínio da Besta nos tempos do apóstolo João (pois já nos
tempos primitivos, não ser um adorador de César podia trazer sérios preju­
ízos para os crentes), a verdade é que a marca da besta sempre aparece
junto com ela, e sempre esteve no mundo. Por isso devemos deixar de lado
todo tipo de especulações infundadas. Assim como o Apocalipse relata que
os crentes foram selados com a marca de Deus (Ap 7.3), os ímpios são
marcados com a marca do diabo. Trata-se de uma marca de propriedade, e
todas as vezes que aparece no Apocalipse está ligada com o ato de adorar a
besta (Ap 14.11; Ap 20.4). Como diz Hendriksen, “devemos lembrar que
não somente gado, mas também escravos eram estigmatizados ou marca­
dos. A marca significava que o escravo pertencia a seu senhor”.5 Então, ter
a marca significa pertencer e adorar a besta, ou seja, ser um escravo dela. A
marca é posta na mão direita e na fronte. A fronte simboliza a mente, o
intelecto da pessoa, enquanto a mão representa a sua atividade física, a sua
ocupação, o seu trabalho. Isso quer dizer que tanto a mente como as atitu-
586 Razão da esperança

des são dirigidas para a besta e não para Deus, N ão é preciso que seja um a
m arca literal, assim com o a m arca do batism o tam bém não é literal. U m a
m arca literal seria fácil de ser identificada e talvez não surpreendesse nin­
guém. E p ro vável que a m arca da besta seja m uito mais discreta e sutil, N o
nosso entendim ento, a m arca da besta em toda a H istória é o secularism o e
a falsa religião que dom inam a vida das pessoas. O u seja, é o m undo com o
ele é. A pessoa que tem a m arca da besta é um filho deste m undo, que vive
de acordo com o padrão, ou a fo rm a deste m undo (Rm 12.2), Essa pessoa
está contente com a sua m aneira m undana de viver. Q uanto ao significado
do núm ero 6 6 6 , to d o tipo de cálculo ou estatística se to rna totalm ente in­
fundado. Jam ais poderem os decifrá-lo, pois talvez, ele não deva ser real­
m ente decifrado. A única consideração que podem os fazer é que seis é
núm ero de hom em , ou seja, representa o hom em decaído. E interessante
que o h om em tenha sido criado no sexto dia. E possível que os cristãos
prim itivos tivessem alguma referência que os ligasse mais diretam ente aos
fatos, m as para nós, isto é algo com pletam ente inacessível. E p o r que o fato
de alguém não possuir este núm ero o im pede de com prar ou ven d er algu­
m a coisa? A n tes de resp on der a essa pergunta, é preciso o b servar que o
texto não diz que o crente não poderá desenvolver nenhum m eio de sobre­
vivência. Será que não será possível nem m esm o plantar e colher? E fazer
negócios de com pra e vend a entre os p róprios crentes?
Possivelm ente todas essas perguntas estejam erradas, exatam ente p o r­
que seguem a linha errada de raciocínio. Mas a solução pode ser mais sim ­
ples do que se imagina. O que o texto está querendo dizer é que vai ficar
cada vez mais difícil um crente sobreviver honestam ente neste mundo. Se
ele não faz parte do sistema, se ele não sonega, suborna, usa pesos e m edi­
das falsos, e outros m eios ilícitos que todos praticam , pode acabar ficando
sem lucros, pois todos estão fazendo isso. A lé m do mais, se ele se recusa a
fazer trabalhos ilícitos para os patrões, p od e perder o em prego. E tudo vai
p io rar grandem ente nos últim os dias. O crente que quiser perm anecer fiel
terá que se recusar a aceitar a m arca do m undo (Ap 14.9-12).
Porém , além dessas considerações, não devem os descartar a possibilida­
de de haver um a m arca física im posta pelo go vern o do Anticristo. A igreja
deve ficar atenta a tudo o que acontecer, P orém , ela não precisa se assustar
com tudo o que circula pela internet ou é escrito em livros, que apontam
para um a m arca visível. Se perm anecerm os na E scritura não serem os enga­
nados. Essa é a nossa segurança.
A vinda do inimigo 581

Que m é o Anticristo?

De certo modo, a besta e o Anticristo não são o mesmo personagem.


Até porque há duas bestas e só um Anticristo. As bestas são o sistema que
Satanás usa para perseguir a igreja, seja por meio do Estado ou da falsa
religião que dita as regras para a mentalidade mundana. A besta sempre
esteve em atuação neste mundo, porém, no fim dos tempos, sua atuação
será mais poderosa do que nunca. Porém, onde se encaixa o Anticristo?
Talvez ele esteja conectado com a cabeça ferida da besta que se levanta, ou
seja, ele surge dela. De qualquer modo, ele será apenas o chefe do sistema
que já existe (ver 2Ts 2.1-12; ljo 2.18). Podemos até dizer que ele será uma
espécie de personalização da besta na sua forma mais poderosa e destrutiva
que jamais houve e nem haverá.
Já dissemos que a besta simboliza todos os impérios mundiais anti-
cristãos, e João a descreve como sendo aquela que “era e não c” (Ap
17.8). Pense na antiga Babilônia de Nimrod, na Assíria, na Babilônia de
Nabucodonosor, no império Medo-Pérsia, no império Greco-macedô-
nio. O que aconteceu com esses impérios? Eram e já não são. Porém,
subitamente eles aparecem de novo na figura do Império Romano, e cau­
sam grande admiração nos homens. Porém, nenhum deles dura para sem­
pre, pois quando um novo império se levanta “caminha para a destrui­
ção” (Ap 17.11). Há novos impérios hoje no mundo, e de certa maneira,
são apenas ressurreições de impérios anteriores. Mais cedo ou mais tarde
todos caminham para destruição. Apocalipse 17,10 fala de sete reis. O
texto diz: “Dos quais caíram einco, um existe, e o outro ainda não che­
gou; e, quando chegar, tem de durar pouco. E a besta, que era e não é,
também é ele, o oitavo rei, e proeede dos sete, e caminha para a destrui­
ção” (Ap 17.10-11). Quem são esses cinco reis que já caíram? Talvez seja
uma referência à Babilônia antiga, à Assíria, à Babilônia moderna, ao im­
pério Medo-Pérsia e ao império Greco-macedônio. Quem seria o rei que
ainda vivia naquele tempo? Roma. O sétimo, portanto, seria um reino
posterior a Roma. Talvez sejam todos os reinos entre Roma e o Antricristo,
personificado no papado, na Otan, na URSS, nos USA, etc. De qualquer
modo, o Anticristo é o oitavo rei. Nesse sentido, ele é a personalização da
besta, pois é uma das cabeças dela. O mais impressionante é que o Anti­
cristo será uma das cabeças que já existia, Qual? A princípio, qualquer
resposta não passa de especulação.
Apocalipse 17.12-14 fala ainda de “dez reis”: “Os dez chifres que viste
são dez reis, os quais ainda não receberam reino, mas recebem autoridade
5S8 Razão da esperança

como reis, com a besta, durante uma hora. Têm estes um só pensamento e
oferecem à besta o poder e a autoridade que possuem. Pelejarão eles contra
o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei
dos reis; vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com
ele”. Os dez reis simbolizam todos os reis que se aliarão à besta e ao Anti-
cristo para lutar contra o Cordeiro, mas serão derrotados. O mundo estará
do lado do Anticristo, e perderá com ele. A derrota acontecerá na batalha
do Armagedom.

A batalha do A rm a ged o m
O Anticristo usará toda a sua força para perseguir os santos de Deus.
Ele é a consumação do mal e tentará, de todas as maneiras, destruir o povo
de Deus. Ele usará de todos os métodos para fazê-los negar o seu Senhor.
Quando ele se manifestar, será o tempo de provação mais tenebroso que a
igreja já enfrentou em todas as eras. O tempo da perseguição é limitado, e
até mesmo “abreviado”, pois Jesus disse: “Nesse tempo haverá grande tri­
bulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido e
nem haverá jamais. Não tivessem aqueles dias sido abreviados, ninguém
seria salvo; mas, por causa dos escolhidos, tais dias serão abreviados” (Mt
24.21,22). O que abreviará esses dias será a própria vinda do Senhor Jesus.
No momento da sua vinda, ele destruirá o iníquo com o sopro de sua boca
e pela manifestação da sua vinda (2Ts 2.8).
Segundo o Apocalipse, o Anticristo será destruído na batalha do Arma­
gedom. A palavra “Armagedom” vem do livro de Juizes capítulos 4 e 5.
Naquele tempo, o povo de Deus era pequeno diante dos inimigos, mas na
batalha que ocorreu no monte do Megido, os inimigos de Israel foram
derrotados. Portanto, o Armagedom é o símbolo de todas as batalhas nas
quais os crentes são inferiores aos seus inimigos, mas recebem livramento
do Senhor. Quando o seu povo é oprimido, Deus intervém para libertá-lo
e derrotar os inimigos. A maior dessas batalhas acontecerá no momento da
vinda de Cristo. Quando o seu povo estiver experimentando o auge da
perseguição, o Senhor descerá do céu para livrá-los (Ex 3.7,8). Apocalipse
16.12-16 descreve um ajuntamento de reis e de exércitos sob a liderança do
Anticristo. Eles se reúnem para lutar contra o Senhor, e se ajuntam no lugar
chamado Armagedom. A batalha do Armagedom é mais bem descrita em
Apocalipse 19.11-21 e 20.7-15. No capítulo 19, João vê o céu aberto e o
Senhor Jesus montado no cavalo branco descendo, seguido de todos os
A vinda do inimigo 589

exércitos celestes (Ap 19.11-14). Um anjo chama as aves dos céus para um
banquete (Ap 19,17,18). Na terra, o Anticristo e seus aliados estão congre­
gados, esperando pela batalha (Ap 19.19). Entretanto, a batalha é muito
rápida. O inimigo é esmagado sem qualquer esforço da parte do Senhor, O
Anticristo é lançado no lago de fogo, os homens que o seguiram são mor­
tos, e as aves tiveram o seu banquete (Ap 19.20,21).
A certeza que temos é que o grande inimigo do povo de Deus, o Anti­
cristo, cairá na vinda de Jesus. Porém, durante o tempo que Deus lhe con­
ceder para realizar seus planos malignos, ele será praticamente invencível.
A igreja não poderá resistir ao seu poder, pois está escrito que ele terá
poder para lutar contra os santos e os vencer (Ap 13.7). Porém, quando a
situação parecer insustentável para o povo de Deus, de repente se verá um
sinal no céu, e como um relâmpago que sai do Oriente e vai até o Ocidente,
o Senhor voltará com forte clangor de trombeta (Mt 24.27-30). Naquele
momento o Anticristo será aniquilado, sem demora ou resistência; o Se­
nhor simplesmente o esmagará, e libertará o seu povo.

A última tentativa do m al
Uma das questões que nos propusemos a responder neste estudo diz
respeito à razão pela qual Deus permite a manifestação do Anticristo. Como
já vimos, a Bíblia diz que algo o impede de se manifestar. Paulo explicou:
“Com efeito, o mistério da iniqüidade já opera e aguarda somente que seja
afastado aquele que agora o detém; então, será, de fato, revelado o iníquo, a
quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e o destruirá pela
manifestação de sua vinda” (2Ts 2.7,8). O “mistério da iniqüidade” que já
opera, refere-se ao movimento do mal no mundo. São os planos do malig­
no, os quais ele vem executando desde o início da criação, numa tentativa
insana de vencer a batalha contra Deus. São planos misteriosos ou secretos,
pois os homens não têm acesso a eles, O inimigo age na espreita, oculto nas
trevas, espalhando a sua influência nefasta por toda a humanidade. Ele es­
craviza os poderosos e os miseráveis, faz com que todos sigam o curso do
mundo que ele mesmo estabeleceu (Ef 2.2). Porém, apesar de todo o mal
que ele provoca, o fato é que ele não provoca toda o mal que poderia provo­
car. E a razão disso é que algo o impede de agir livremente.6 E nesse senti­
do que os amilenistas entendem o aprisionamento de Satanás em Apocalip­
se 20.1-3. E também as próprias palavras de Jesus sobre a sua atividade de
“amarrar o valente” (Mc 3.27). Deus não tem deixado o inimigo agir livre­
590 Razão da esperança

m ente no m undo, mas parece que pouco tem po antes da vin da de Jesus, ele
finalm ente terá oportunidade para isso. A vinda do A n ticristo consum ará
todas as atividades malignas neste mundo. Será, num sentido, a últim a e a
m aior m anifestação do mal. D eus perm itirá que esse inim igo finalm ente se
m anifeste, num a espécie de encarnação maligna, para que fique bem claro
que D eus é soberano. Essa m anifestação do inimigo, em vez de destruir os
planos de D eus, na verdade segue os planos de Deus. E está nesses planos
que ele seja destruído no m om ento da vinda de Jesus.
C oncluindo, não sabem os quando o A n ticristo se m anifestará, mas bem
pode ser que ele já esteja às portas. Todas essas transform ações mundiais
que têm acontecido no cam po da econom ia, da tecnologia, da política, da
religião e da m oral, sugerem que o m undo está sendo preparado para a
vin da desse hom em . E stritam ente falando, talvez esse seja o único dos si­
nais que apontam a vinda de Jesus que ainda não se cum priu. Porém , ao
que tudo indica, não deve estar m uito longe. D evem os ficar atentos, p o ­
rém , não há m otivos para sobressaltos, nem para atitudes desesperadas.
N ão devem os acreditar em tudo o que a imaginação das pessoas diz sobre
o A n ticristo ou sobre a m arca da besta. C onfiantes em D eus, atentos e
diligentem ente estudando a sua Palavra, devem os viver em paz neste m un­
do, pois o S en hor não perm itirá que sejam os tentados além das nossas
forças (1 C o 13 .13).
46

A segunda vinda de Cristo


J ® , -J M k

Parece que o Cristianismo dos dias atuais não se interessa muito pela
volta do Senhor. Antigamente, a igreja tinha uma expectativa pela vinda
gloriosa do Senhor Jesus. Os hinos, os corinhos e a pregação daqueles dias
eram permeados por expressões que apontavam para a vinda do Senhor
em poder e grande glória. Por que será que o Cristianismo de hoje pratica­
mente não se interessa mais pela vinda de Jesus? Pela mesma razão por que
não se importa muito com o céu. Antigamente, a pregação do evangelho
dizia mais ou menos o seguinte: creia em Jesus e você será livre do inferno
e poderá ir para o céu. Mas a pregação de hoje diz: aceite Jesus e você será
próspero, não terá mais doenças, e Deus fará todo tipo de milagres para
você. O foco de antigamente era o céu, o de hoje é a terra. Antigamente,
Deus livrava do inferno, hoje livra do fracasso, da falência, da enfermidade,
etc. Em meio a isso tudo, a segunda vinda de Jesus tem perdido o interesse.
A Bíblia descreve a segunda vinda como a grande libertação dos cris­
tãos. Em meio à tribulação e à perseguição, o Senhor voltará para livrar o
seu povo dos seus inimigos e de todo o sofrimento e mal que este mundo
oferece. Mas, hoje se diz que, quando alguém se converte, poderá ter uma
boa casa, carros, um bom emprego, casa na praia, etc. Hoje se diz que
quando alguém se converte, não terá mais problemas de saúde, nem fami­
liar ou emocional. Sofrimento e mal eram palavras comuns dos cristãos da
igreja primitiva, mas não são palavras da igreja do século 21. E, por isso, a
pregação de hoje não tem mais espaço para a segunda vinda de Cristo, e,
por essa razão, boa parte dos cristãos vive como se Jesus não fosse voltar.
Para os cristãos autênticos, entretanto, o evento mais esperado continua
sendo a segunda vinda de Jesus. O cristão verdadeiro sabe que este mundo
sempre será um lugar traiçoeiro e perigoso para alguém que deseja ser fiel;
por essa razão, a glória dos reinos deste mundo já não brilha tanto aos seus
olhos (Mt 4.8,9). Não que o crente seja alguém que não goste desta vida.
Esta vida é um dom de Deus, e um crente experimenta alegria verdadeira
aqui (sempre - Fp 4.4,11), mas o cristão verdadeiro sabe que momentos de
calmaria logo podem virar tempestades, e, por isso, a sua esperança maior
592 Razão da esperança

está naquele dia em que todas as promessas divinas se cumprirão. Naquele


dia, a suprema justiça de Deus se manifestará neste mundo. A Bíblia nos
orienta a direcionar toda a esperança, a expectativa e a razão da nossa exis­
tência para aquele dia fantástico quando Cristo voltar. Naquele dia, os verda­
deiros crentes exultarão, pois o Senhor irá livrá-los de todas as suas tribula­
ções. A tribulação é justamente o que antecederá a segunda vinda de Jesus.

A g r a n d e tribulação
Jesus disse que os últimos dias seriam tempos de grande tribulação. Há
um sentido em que a tribulação marca todos os períodos da igreja, Sempre
há provações, perseguições e dificuldades a serem vencidas pelos crentes,
porém, o Senhor falou de uma “grande tribulação” em Mateus 24.21,22:
“Porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do
mundo até agora não tem havido e nem haverá jamais. Não tivessem aqueles
dias sido abreviados, ninguém seria salvo; mas, por causa dos escolhidos, tais
dias serão abreviados”. A tribulação que Jesus descreve é extraordinária, pois
a sua intensidade é superior a todos os outros momentos de tribulação na
História. Ao mesmo tempo, a tribulação é abreviada, ou seja, interrompida,
O que interrompe essa tribulação? A vinda de Cristo para resgatar seu povo.
Alguns estudiosos pré-milenistas acreditam que a igreja será arrebatada
antes da tribulação. Segundo esse entendimento, Jesus virá nas nuvens e
arrebatará a sua igreja. Depois do arrebatamento da igreja, haverá sete anos
de tribulação na terra, que são identificados com a septuagésima semana de
Daniel (Dn 9.27). Durante esses sete anos, Deus permitirá o aparecimento
do Anticristo e todo tipo de perseguição aos cristãos nominais e à nação de
Israel. Também haverá juízos terríveis sobre os habitantes da terra, inclusi­
ve a parte não-salva da igreja. Depois dos sete anos, o Senhor voltará com
a sua igreja, Israel se converterá e Deus estabelecerá o milênio,1 O maior
argumento contra essa idéia é o simples fato de que as passagens da Escri­
tura que descrevem a tribulação não dizem que a igreja será livre dela. Como
já vimos, quando Jesus anunciou a grande tribulação, disse que ela seria
abreviada por causa dos eleitos. Então, certamente eles estarão no meio
dela. Paulo diz aos crentes de Tessalônica que eles não deveriam esperar a
vinda de Jesus antes do aparecimento do Anticristo (lTs 2.1-3). De que
adiantaria Paulo lhes avisar sobre isso, se não houvesse possibilidade de
eles estarem na terra quando o Anticristo aparecesse? Na verdade, a tribu­
lação existirá por causa da igreja. Por que haveria tribulação para incrédulos
A Segunda Vinda de Cristo 593

ou cristãos nominais? A tribulação serve para amadurecer a fé. Ela será


conduzida por Satanás e o Anticristo, mas Deus a permitirá para provar o
seu povo, porém, não os deixará cair. A tribulação não durará muito, pois a
vinda do Senhor a abreviará. Se não fosse abreviada, ninguém a suportaria.
Isso nos fala da intensidade única e espantosa dessa tribulação final.
A grande tribulação mesclará perseguições com derramamento da ira de
Deus. É evidente que a ira de Deus não atingirá a igreja de Cristo. O sétimo
capítulo do Apocalipse diz que os servos de Deus são marcados na fronte,
para que a ira de Deus não caia sobre eles (Ap 7.1-3). Porém, como diz
Hoekema, “proteção da ira de Deus não implica libertação da ira do ho­
mem”.2 O Anticristo juntará todas as suas forças contra o povo de Deus e
conseguirá levar muitos à morte, enquanto outros provavelmente apostatarão
da fé para não serem perseguidos. Quando isso acontecer, devemos nos
lembrar das palavras de Jesus: “Aquele, porém, que perseverar até ao fim,
esse será salvo” (Mt 24.13).
Portanto, a Bíblia dá razões suficientes para que esperemos a vinda do
Senhor. Ele virá nos livrar de todas as nossas tribulações. Aqueles cristãos
que pensam que a vida cristã possa ser um mar de tranqüilidade, devido a
todo tipo de “triunfalismo” das pregações modernas, deveriam se preocu­
par um pouco mais, pois a Bíblia diz que, “todos quantos querem viver
piedosamente em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3.12).

A vinda incon fu ndível de Jesus


A Bíblia diz que a vinda de Jesus será inconfundível. Jesus disse que
haveria um tempo de tribulação ímpar na História, e que aqueles dias seri­
am abreviados por causa dos escolhidos, pois, caso contrário, eles mesmos
correriam riscos (Mt 24.21,22). Aparentemente, a tribulação será terrível
pela tentativa maligna de enganar os crentes. Por isso, Jesus fala sobre a
necessidade de estar atento para não ser enganado. Ele diz: “Então, se al­
guém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque
surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios
para enganar, se possível, os próprios eleitos. Vede que vo-lo tenho predi­
to” (Mt 24.23-25). O inimigo sempre tentará falsificar as coisas de Deus
para seduzir as pessoas. Talvez ele tente falsificar a própria vinda de Jesus.
Porém, Jesus disse que a sua vinda seria inconfundível: “Porque, assim como
o relâmpago sai do oriente e se mostra até no ocidente, assim há de ser a
vinda do Filho do Homem” (Mt 24.27). Jesus não voltará de maneira parti-
594 Razão da esperança

cular ou privada, a sua vinda será totalmente pública, de modo que todo
olho o verá (Ap 1.7).
A Bíblia descreve a vinda do Senhor como um evento único, mas mui­
tos crentes têm imaginado que haverá mais de uma vinda do Senhor. Como
já dissemos, especialmente aqueles que crêem na existência literal do milê­
nio (pré-tribulacionistas), pensam em mais de uma vinda. Segundo estes, a
primeira vinda do Senhor será para o seu povo. Depois de sete anos, ele virá
com o seu povo para a batalha contra os ímpios e o estabelecimento do
Reino, Alguns chegam a dizer que, no fim do milênio, haverá outra vinda
do Senhor para destruir o diabo.3 A Bíblia, porém fala de uma única vinda
de Cristo, a qual será visível a todas as pessoas (Ap 1.7). Essa vinda será
tanto para os seus santos como com seus santos, porém, num único evento.
Ele vem para seus santos, pois vem resgatá-los da tribulação. Porém, ele
também vem com os seus santos (lTs 3,13), porque, conforme Paulo diz em
ITessaloniscenses 4.14, o Senhor trará os que dormem com ele na sua vin­
da. Então, isso significa que Jesus trará com ele aqueles que tiverem morrido
e os fará ressuscitar no momento do arrebatamento. Por essa razão, Paulo
disse que os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro (lTs 4.13-17),
Acima de tudo, é preciso destacar que a segunda vinda de Jesus será uma
vinda em glória e poder. Quando aqui esteve pela primeira vez, Jesus foi o humil­
de carpinteiro de Nazaré que sofreu pelos pecados dos homens. Na segunda
vinda, como ele próprio disse, retornará “sobre as nuvens do céu com poder e
muita glória” (Mt 24.30). João anteviu profeticamente essa volta. Uma de suas
descrições mais impressionantes está no capítulo 19 de Apocalipse. Ele diz:

Vi o ccu aberto, e eis um cavalo branco, O seu cavaleiro sc chama Fiel e


Verdadeiro e julga e peleja com justiça. Os seus olhos são chama de fogo; na
sua cabeça, há muitos diademas; tem um nome escrito que ninguém conhe­
ce, senão ele mesmo. Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu
nome se chama o Verbo de Deus; e seguiam-no os exércitos que há no céu,
montando cavalos brancos, com vestiduras de linho finíssimo, branco e puro.
Sai da sua boca uma espada afiada, para com ela ferir as nações; e ele mesmo
as regerá com cetro de ferro e, pessoalmente, pisa o lagar do vinho do furor
da ira do Deus Todo-Poderoso. Tem no seu manto e na sua coxa um nome
inscrito: REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES (vs. 11-16).

João está descrevendo a vinda vitoriosa do Senhor quando ele destruirá


todos os seus inimigos, Naquele dia, as forças do mal serão destruídas e o
Senhor estabelecerá o seu reino eterno. O seu povo será definitivamente
livre de todo pecado, de todo sofrimento e de todo mal.
A Segunda Vinda de Cristo 595

0 arrebatam ento do p o v o de Deus


Duas perguntas são importantes neste ponto: O que é o arrebatamento e
quando ele acontecerá? O arrebatamento é um ato de socorro divino pelo
qual ele retira os seus filhos de algum lugar, após algum tempo de provação,
e antes de executar o seu juízo sobre seus inimigos. Arrebatamento é sinôni­
mo de resgate ou livramento especial. Há muitas passagens na Bíblia que
apontam para o arrebatamento. Mesmo no Antigo Testamento já podemos
ter alguma idéia disso. Quando Deus decidiu destruir Sodoma e Gomorra
por causa da malícia delas, havia uma família que Deus não queria que fosse
destruída. Era a família de Ló, o sobrinho de Abraão. Por essa razão, Deus
enviou dois anjos do céu para retirar essa família, antes de mandar os flagelos
da destruição (Gn 19.1-29). O último versículo dessa conhecida história diz:
“Ao tempo que destruía as cidades da campina, lembrou-se Deus de Abraão
e tirou a Ló do meio das ruínas, quando subverteu as cidades em que Ló
habitara” (Gn 19.29). Este ato de Deus de se lembrar do seu povo e retirá-lo
é o próprio espírito do arrebatamento. De certo modo, a mesma coisa acon­
teceu quando o povo de Israel foi tirado do Egito. O próprio Senhor disse a
Moisés: “Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o
seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso,
desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a
uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel” (Ex 3.7,8). Deus enviou
várias pragas para o Egito, e no meio da última praga, retirou o seu povo com
mão poderosa, fazendo-o atravessar o Mar Vermelho. Depois, todos os seus
inimigos foram destruídos (Ex 12-14). Algo semelhante acontecerá no fim.

A eleição e o ar re ba tam ento


Jesus disse que o arrebatamento aconteceria no momento exato de sua
vinda: “Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; todos os po­
vos da terra se lamentarão e verão o Filho do homem vindo sobre as nu­
vens do céu, com poder e muita glória. E ele enviará os seus anjos, com
grande clangor de trombeta, os quais reunirão os seus escolhidos, dos qua­
tro ventos, de uma a outra extremidade dos céus” (Mt 24.30,31). O arreba­
tamento que acontecerá no momento da segunda vinda será exclusivo para
os escolhidos. Ele volta a dizer: “Então, dois estarão no campo, um será
tomado, e deixado o outro; duas estarão trabalhando num moinho, uma
será tomada, e deixada a outra” (Mt 24.40,41). A absoluta escolha divina
596 Razão da esperança

norteará os anjos no momento de retirar da terra aqueles que pertencem a


Deus, como os anjos retiraram Ló antes que Deus destruísse Sodoma. O
amor e a fidelidade de Deus em relação aos seus escolhidos não permitirá
que eles sejam destruídos juntamente com os ímpios.

0 ar rebatam en to das du as teste m unha s


No livro do Apocalipse, o arrebatamento também está descrito de modo
simbólico. Há pelo menos três descrições dele. A primeira no capítulo 11,
que fala das duas testemunhas de Deus (Ap 11.3-14). Durante todo o tempo
da angústia, Deus possui duas testemunhas para o mundo. Elas profetizam
vestidas de pano de saco. São como João Batista pregando o arrependimen­
to no deserto. Quem são essas duas testemunhas? Elas somente podem re­
presentar a igreja. O candeeiro já foi aplicado à igreja em Apocalipse 1.20.
Mas por que o número 2? Talvez porque os discípulos deveriam ir de dois
em dois (Lc 10.1). De qualquer modo, essas testemunhas são invencíveis e
intocáveis, mas somente até que apareça a besta. Elas têm poder, como Elias,
de orar e fazer os céus se fecharem. A Bíblia fala muito sobre o poder da
oração dos crentes, mediada pela intercessão de Cristo e do Espírito. Porém,
a besta destruirá essas testemunhas, ou seja, a besta vai derrotar a igreja. E
será uma derrota visível, pois as pessoas se alegrarão por causa dessa derro­
ta. O corpo das testemunhas fica estirado na cidade que espiritualmente se
chama Sodoma, Egito e Jerusalém (Ap 11.8), que representam o mundo em
sua perversão, escravidão e perseguição. Especialmente Sodoma e o Egito
são lugares de onde Deus retirou o seu povo no momento máximo de tribu­
lação. Porém, quando tudo parecia que estava perdido para a igreja, um espí­
rito de vida da parte de Deus fez com que ela se levantasse. E inimaginável o
terror que toma conta das pessoas. No fim das contas, a igreja estava com a
verdade, seu testemunho triunfou, mas, agora é muito tarde para o mundo.
O mundo somente pode contemplar a igreja subindo: “E as duas testemu­
nhas ouviram grande voz vinda do céu, dizendo-lhes: Subi para aqui. E subi­
ram ao céu numa nuvem, e os seus inimigos as contemplaram” (Ap 11.12).

A colheita e a vin d i m a
No capítulo 14 de Apocalipse há outra descrição do arrebatamento. A
partir do versículo 13, começa a descrição de uma colheita. Primeiro, os
mortos sobem à presença de Deus acompanhados de suas obras. Depois
há a visão da ceifa. O próprio Senhor Jesus recolhe os seus escolhidos que
A Segunda Vinda de Cristo 597

são guardados no seu celeiro (Ap 14.14-16; ver Mt 3.12). Trata-se de mais
uma descrição do arrebatamento. Simbolicamente, Deus recolhe o seu povo
como trigo para o celeiro. E, por fim, vem a vindima (Ap 14.17-20). Isso se
refere à destruição dos ímpios. As uvas serão esmagadas no lagar da ira de
Deus. E a consumação de todos os indescritíveis flagelos que cairão sobre
o mundo ímpio, mas a igreja já partiu, a noiva já está segura nos braços do
seu esposo.

As bodas do Cordeiro
No capítulo 19, novamente o Apocalipse descreve o arrebatamento. Um
coro de “Aleluias” anuncia que chegaram as bodas do Cordeiro (Ap 19.1-
9). Para entender bem o que isso significa, é necessário um pouco de co­
nhecimento a respeito do sistema de casamento judaico,4 Primeiro vinham
os esponsais. Era o contrato de casamento propriamente dito. A partir desse
dia, o noivo e a noiva eram legalmente marido e mulher, porém ainda não
viviam juntos. Depois, vinha o intervalo. Nesse período, o noivo pagava ao
pai da noiva o dote dela, se ainda não tivesse feito isso. Então, vinha a
procissão, que era quando a noiva se preparava para o noivo, vestindo-se da
melhor maneira. Também o noivo se preparava para a noiva. O noivo ia até
o lar da noiva, a recebia e a conduzia até o novo lar, ou ao lar dos pais dele.
Por fim, chegavam as bodas, que incluía a ceia nupcial. Cristo desposou a
igreja, ela é sua noiva. O dote ele pagou com o seu próprio sangue. O inter­
valo foi o período entre a primeira e a segunda vinda, Agora chegou a hora
das bodas, ou seja, do momento do encontro. Ele vem buscar a sua noiva,

O g r a n d e en con tro
A passagem da Escritura que descreve o arrebatamento de modo mais
claro é ITessalonicenses 4.13-17. Paulo está falando sobre a situação dos
mortos em Cristo. Alguns pensam que eles estão perdidos, mas Paulo afir­
ma que não, pois Deus, no dia da vinda de Cristo, “primeiro” ressuscitará
os mortos em Cristo, Devemos observar que não se trata de uma ressurrei­
ção antes da ressurreição dos ímpios. Os ímpios nem são citados nessa
passagem, mas a palavra “primeiro” é colocada aí por causa da situação dos
crentes que estiverem vivos na segunda vinda. Paulo diz que os mortos em
Cristo ressuscitarão primeiro e, então, nós seremos arrebatados juntamente
com eles, para encontrar o Senhor nos ares. Quando Paulo descreve esse
“encontro nos ares”, ele usa a linguagem da sua época que descreve o en-
598 Razão da esperança

contro ou as boas- vindas oficiais concedidas a um dignitário recém-chega­


do a alguma cidade.5 E o mesmo que os romanos fizeram quando foram
encontrar Paulo a alguns quilômetros fora da cidade (At 28.15 onde a mes­
ma expressão é empregada). Em geral, a caravana de boas-vindas ia ao
encontro do dignitário para escoltá-lo de volta à cidade. Desse modo, cre­
mos que o arrebatamento será um encontro com o Senhor nos ares; esse
será o modo pelo qual Deus vai retirar o seu povo do mundo; em seguida
virão os últimos flagelos e, depois, os crentes voltarão com o Senhor para a
batalha do Armagedom.

Conclusão - Não se esqueça do principal


Nenhuma distração nesta vida deveria nos fazer esquecer daquele dia
glorioso. Toda a nossa expectativa e oração devem se concentrar nesse dia.
O dia do livramento fmal trará todo o bálsamo de Deus sobre a nossa vida.
Aquele será um dia de imensa alegria para o povo de Deus. Porém, a vinda
de Jesus realmente pegará a muitos de surpresa. Especialmente aqueles que
estiverem vivendo apenas para o presente. As virgens néscias tinham ido ao
encontro de Jesus sem o óleo para as lamparinas (Mt 25.1-13). Havia dez
virgens, cinco sábias e cinco néscias. Todas estavam esperando a vinda do
noivo. Elas eram bastante parecidas entre si, exceto por uma diferença bási­
ca: cinco estavam realmente preparadas, e cinco não. E incrível pensar que
aquelas cinco virgens pudessem ir ao encontro do noivo com lamparinas,
mas sem óleo. Duas razões são possíveis para esse deslize fatal. Ou elas não
estavam dispostas a esperar muito, ou haviam se preparado de modo descui­
dado. Porém, o que teria distraído a atenção dessas jovens? O que fez com
que elas se esquecessem do principal? E o que tem feito com que o povo de
Deus se esqueça do principal? Por que a vinda de Jesus não é mais esperada
e celebrada? Uma historinha pode ser útil para encerrarmos este assunto:
Uma mulher, carregando uma criança, entrou numa caverna cheia de tesou­
ros. Lá dentro uma voz lhe disse: “Você tem poucos minutos, leve tudo o
que puder, mas não se esqueça do principal”. Ela pensou sobre o que seria a
coisa mais preciosa lá dentro. Rapidamente carregou todo o ouro que pôde,
escolhendo as peças maiores, e saiu precipitadamente quando a porta estava
se fechando. Então, notou que tinha deixado a criança lá dentro.
47

0 Reino milenar

Quando Jesus voltar, ele estabelecerá um reino de mil anos ou o reino


eterno? Essa questão divide os cristãos evangélicos. Nenhum tema é tão
controvertido em teologia do que o Milênio, e nenhuma passagem bíblica
causa mais discussão do que Apocalipse 20.1-10. Entraremos nessa discus­
são acalorada, porém não querendo aqui imprimir uma posição intransigen­
te, e até quase fanática, sobre um assunto que diz respeito ao futuro, e do
qual ninguém tem certeza absoluta. Há tanta controvérsia sobre este assunto
que talvez não consigamos achar duas pessoas que tenham exatamente a
mesma opinião a respeito dele. Há também muita especulação, o que faz
com que este seja um dos assuntos mais ingratos a se tratar em escatologia.
Trataremos do assunto como ele precisa ser tratado, ou seja, abordando as
principais visões, emitindo algumas opiniões sobre cada uma delas, e até
mesmo assumindo uma posição. No entanto, entendemos que se trata de
um tema que não deveria dividir os cristãos; no final das contas, todos crêem
que Jesus virá e estabelecerá um reino eterno; quer exista ou não um reino
intermediário, a esperança relativa a esse reino eterno não deve diminuir.

Correntes milenistas
Há basicamente quatro posições em relação ao milênio. São elas: o
Amilenismo, o Pós-Milenismo, o Pré-Milenismo Histórico e o Pré-Milenismo
Dispensacionalista. O termo “amilenismo”, como diz Hoekema, “não é muito
feliz”,1 porque sugere que não existe um milênio. Os amilenistas acreditam
no milênio de Apocalipse 20, porém não acham que ele diga respeito a um
reino de mil anos literais que Cristo estabelecerá na terra depois da sua vin­
da. O amilenismo entende que o milênio de Apocalipse 20 já está em ativida­
de neste momento, pois começou com a primeira vinda de Jesus e terminará
na segunda vinda com a instauração dos novos céus e nova terra. Por isso,
para o amilenismo, o milênio não é literal, mas espiritual. O pós-Milenismo
600 Razão da esperança

defende que o milênio também antecede a segunda vinda, porém, acha que
será um tempo de prosperidade e paz advinda da pregação do evangelho em
todo o mundo. Para o pós-milenismo, o mundo se tornará gradativamente
um lugár muito bom, onde o mal será reduzido ao mínimo e as nações coo­
perarão entre si, cristianizando o mundo todo. No final dessa era gloriosa,
Satanás será solto, e então, Jesus voltará e o destruirá. O pré-milenismo his­
tórico interpreta literalmente a passagem de Apocalipse 20.1-10, e entende
que o milênio será estabelecido na segunda vinda de Jesus, e será um reino
de mil anos sobre a terra, onde o Senhor regerá as nações com cetro de
ferro, minimizará o mal existente e estabelecerá uma era de ouro, reinando a
partir de Jerusalém. Ao final do milênio, Satanás será solto e convencerá as
nações a fazerem guerra contra Jerusalém. Então, descerá fogo do céu e
consumirá as nações rebeldes. Em seguida, o Senhor estabelecerá o juízo e o
tempo eterno. O pré-milenismo dispensacionalista se parece com o pré-
milenismo histórico em sua expectativa por um milênio futuro e literal, po­
rém difere dele quanto a detalhes específicos. O dispensacionalismo distin­
gue pelo menos duas vindas de Jesus, a primeira para o arrebatamento dos
salvos, e a segunda depois de sete anos de tribulação para o estabelecimento
do milênio. No dispensacionalismo há um tratamento diferente entre a igre­
ja e Israel. Mesmo no milênio, esses dois grupos serão distinguidos. O dis­
pensacionalismo entende que a igreja é uma espécie de parêntesis na história
de Deus com Israel. Na primeira vinda de Jesus, o evangelho foi oferecido
aos judeus, mas como eles o rejeitaram, Deus o ofereceu aos gentios e for­
mou a igreja, porém no fim, ele voltará a tratar com Israel. Uma das caracte­
rísticas principais do pré-milenismo, seja histórico ou dispensacionalista é a
interpretação literal das passagens do Antigo Testamento sobre a restaura­
ção de Israel, e também do livro do Apocalipse.
O seguinte quadro nos ajuda a entender as diferenças entre esses quatro
sistemas:2
Amilenismo Pós Pré-M. Pré-M.
Milenismo Histórico Dispens.
Segunda Vinda Evento Evento Arrebatamen­ Segunda vinda
simples, simples, to e segunda em duas fases.
nenhuma nenhuma vinda simultâ­ Cristo retorna
distinção entre distinção entre neos. Cristo para buscar a
arrebatamento arrebatamento retorna para sua igreja e
e segunda e segunda estabelecer o para estabele­
vinda. Inicio vinda. Início Milênio. cer o Milênio
do Estado do Estado depois de sete
Eterno. Eterno. anos.
0 reino m ilenar 601

Amilenismo Pós Pré-M. Pré-M.


Milenismo Histórico Dispens.
Ressurreição Ressurreição Ressurreição Ressurreição Três ressur­
geral de geral de de crentes no reições:
crentes e crentes e início do crentes na
incrédulos na incrédulos na Milênio e de segunda
vinda, judeus
segunda segunda incrédulos ao
depois dos
vinda. vinda. final.
sete anos,
incrédulos ao
final do
Milênio.
Julgamento Julgamento Julgamento Julgamento Julgamento
geral de todas geral de todas na segunda na vinda,
as pessoas. as pessoas. vinda e depois da
depois do tribulação e
Milênio. depois do
Milênio.
Tribulação Experimenta­ Experimenta­ Experimenta­ Igreja é
da na da na da na arrebatada
presente era presente era presente era antes da
tribulação.
Milênio Não-literal. A presente Milênio Milênio
Crentes era entrará futuro após a futuro após a
reinam com no Milênio Vinda de Vinda de
Cristo no céu pelo progres­ Jesus. Reino Jesus. Reino
e sobre a terra so dos povos milenar literal milenar literal
até a segunda mediante o sobre as sobre as
vinda. evangelho. nações do nações do
mundo. mundo. ,
Israel e a igreja Igreja é Israel Igreja e Israel Igreja é Israel Completa
no Novo no Novo no Novo distinção
Testamento. Testamento. Testamento, entre Israel e
Nenhuma Nenhuma porém, Deus igreja. Deus
distinção distinção tratará com tem um
entre Israel e entre Israel e Israel separa­ programa
igreja. igreja. damente. para cada um
dos grupos.
Defensores L. Berkhof Chades Hodge G. E. Ladd L. S. Chafer
A. Hoekema B. Warfield M. J. Erickson J. D. Pentecost
W Hendriksen 1 G . T Shedd A. Reese J. lí Walvoord
G. C Berkouwer L. Boetnner
602 Razão da esperança

Todas as quatro posições acima têm encontrado defensores capacita­


dos, e qual delas é a verdadeira só saberemos depois da vinda de Jesus. De
qualquer modo, o que pode ser dito brevemente sobre cada uma delas é
que o pós-milenismo que esteve muito em voga nos séculos passados, de­
pois das guerras mundiais e do aumento da fome e das doenças pelo mun­
do, caiu em descrédito, uma vez que a sonhada prosperidade parece estar
muito longe. O pré-milenismo dispensacionalista é muito recente, e bastan­
te complicado de ser explicado. O maior problema dele é a distinção radical
que faz entre Israel e igreja, dividindo a volta de Jesus e a ressurreição em
duas ou três etapas. O pré-milenismo histórico é mais sóbrio em sua visão,
entendendo que haverá apenas uma vinda de Jesus. O problema desse siste­
ma é o excesso de literalismo. O amilenismo é, na nossa opinião, o que faz
mais justiça ao ensino bíblico.

0 ap risiona m en to de Satanás
A passagem de Apocalipse 20.1-3 descreve o aprisionamento de Sata­
nás. Ela diz: “Então, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave do
abismo e uma grande corrente. Ele segurou o dragão, a antiga serpente,
que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; lançou-o no abismo,
fechou-o e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até se
completarem os mil anos. Depois disto, é necessário que ele seja solto
pouco tempo”. Devemos lembrar que isso foi escrito para os cristãos do
século Io. Nesse tempo, em que os cristãos morriam diariamente nos cir­
cos e nos anfiteatros romanos, parecia realmente que Satanás estava ven­
cendo, mas João escreve para mostrar os cristãos que a situação não era o
que parecia ser.

0 va lenle a m a r r a d o 3

Para entendermos o significado de Apocalipse 20.1-3, precisamos vol­


tar ao início do ministério de Jesus. Os fariseus acusavam Jesus de expul­
sar demônios com o poder do próprio Satanás, por isso Jesus respondeu:
“Como pode alguém entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens sem
primeiro amarrá-lo? E, então, lhe saqueará a casa” (Mt 12.29). A palavra
“amarrar” aqui é exatamente a mesma na língua grega usada em Apoca­
lipse 20.2 para “segurar”. Essa tarefa de “amarrar” ou “segurar” Satanás
começou na primeira vinda de Cristo. Quando Jesus enviou os setenta
0 reino m ilenar 603

discípulos para pregar o evangelho, eles voltaram radiantes porque até os


demônios lhe eram submissos, então Jesus disse: “Eu via a Satanás cain­
do do céu como um relâmpago” (Lc 10.17,18). Observe que a queda de
Satanás é associada à pregação do evangelho. Do mesmo modo, quando
alguns gregos foram para conversar com Jesus, ele disse: “Chegou o mo­
mento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso. E
eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” (Jo
12.31,32). É preciso notar que a palavra “expulsar” no texto grego é exa­
tamente a mesma de Apocalipse 20.3 que é traduzida como “lançou”. O
mais importante, porém, é que com a morte de Cristo e a expulsão de
Satanás, Jesus disse que atrairia a si todos os seres humanos. Não apenas
judeus, mas também gregos, romanos, chineses, portugueses, brasileiros,
etc. Até a primeira vinda de Jesus, apenas Israel conhecia o Senhor, sendo
que Satanás prendia as demais nações em ignorância praticamente abso­
luta. Porém, com a vinda do Senhor, o poder do diabo foi drasticamente
limitado e ele agora já não pode mais enganar as nações, pois não pode
impedir a pregação do evangelho em toda a terra.4 A única restrição ao
diabo em Apocalipse 20.3 é que ele não pode mais enganar as nações,
portanto, o amilenismo entende que Apocalipse 20.1-3 narra, não uma
prisão futura de Satanás, mas a restrição que Deus impôs sobre ele com a
primeira vinda e Jesus. Foi graças a esse aprisionamento que alguns sim­
ples galileus do século Io, em algumas décadas, conseguiram levar o evan­
gelho a todo o mundo civilizado. Hoje, não há um único país que não
tenha algum missionário e muitos convertidos ao Cristianismo. A Bíblia
já foi traduzida para mais de mil línguas. Portanto, o milênio do Apocalip­
se 20 é a realidade do mundo atual. Ele começou com a primeira vinda de
Cristo. Os mil anos do capítulo 20 correspondem aos 1.260 dias das ou­
tras partes do livro, ou seja, o total de anos da dispensação cristã, e é
apenas um número simbólico.
Alguém pode dizer: mas como Satanás está amarrado se o mundo está
desse jeito? Ele está amarrado, mas não completamente impossibilitado
de atuar. O que ele não pode fazer, segundo Apocalipse 20.3 é enganar as
nações. É dito que, depois do fim do milênio, ele reúne as nações para
pelejar contra a igreja (Ap 20.8). No tempo presente, ele não consegue
fazer esse tipo de movimentação de nações contra o povo de Deus,5 até
porque há nações que ainda são cristãs. Além disso, deve ser verificado
que o nosso Senhor e os apóstolos empregaram palavras ainda mais for­
tes do que “prender” ou “expulsar” para descrever a derrota de Satanás
que já aconteceu. Além das passagens que já vimos acima, podemos citar
604 Razão da esperança

Hebreus 2.14: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de


carne e sangue, destes também ele (Jesus), igualmente, participou, para
que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o
diabo” (ênfase acrerscentada). Essa passagem está dizendo que Jesus, com
a sua morte, destruiu Satanás. Essa é uma expressão bem mais forte do
que “prender” ou “lançar no abismo”. Diante dessa passagem, alguém
pode negar que Satanás já está destruído? Porém, então, como é que ele
continua agindo? Ele está destruído porque já não tem qualquer possibi­
lidade de vitória. Colossenses 2.15 também deixa bem claro que Satanás
está totalmente derrotado: “E, despojando os principados e as potesta­
des, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”. A
linguagem dessa passagem é militar. Paulo está comparando o que Jesus
fez com Satanás e suas hostes, com o que os exércitos romanos faziam
com os vencidos. Naquele tempo, quando um exército vencia o outro, os
perdedores eram despojados de todos os seus bens, às vezes até das pró­
prias roupas. Em seguida, eles eram amarrados e obrigados a desfilar pe­
las ruas, numa humilhação pública. Jesus despojou Satanás e o humilhou
perante todos com sua morte e ressurreição. Portanto, a expressão “pren­
deu por mil anos” pode significar perfeitamente a obra que Jesus realizou
na cruz contra Satanás.

Sequência n ã o - cr o n o ló g i ca

Os pré-milenistas interpretam Apocalipse 20 como acontecendo depois


da volta de Jesus, porque entendem que o capítulo 20 se segue cronologica­
mente ao capítulo 19. Porém, no nosso entendimento, o Apocalipse não é
um livro que deva ser lido em ordem cronológica. Narrando coisas que
dizem respeito ao fim, João freqüentemente volta aos primórdios do evan­
gelho a fim de dar o entendimento global da batalha do mal contra o bem.
Ao chegarmos no capítulo 20, já fomos informados sobre como pratica­
mente todos os inimigos de Cristo encontrarão o seu fim. Porém, ainda
resta um, o pior de todos, Satanás. Sua derrota já foi decretada e anunciada
(12.12), mas não foi ainda explicada, pois João deixou essa explicação para
o final. João já disse que Satanás perdeu o seu lugar no céu, depois da
batalha com Miguel (Ap 12). O que ele está fazendo no capítulo 20 é de­
monstrar como foi realmente essa derrota.
Não podemos entender Apocalipse 20-22 como sendo uma continua­
ção do capítulo 19. Provavelmente a maneira mais correta de interpretar o
Apocalipse é pelo entendimento de que nele há sete seções paralelas. É
0 reino m ilenar 605

como se João contasse a mesma história pelo menos sete vezes, porém, a
cada vez, acrescentasse detalhes que não constavam nas descrições anteri­
ores. E somente no último ciclo, ou seja, quando ele reconta a história pela
última vez, que ela fica completa. A divisão que Hendriksen propõe é a
seguinte: Primeira Seção: “Cristo no meio dos sete candeeiros” (Ap 1-3);
Segunda Seção: “A Visão do céu e dos Sete Selos” (Ap 4-7); Terceira Se­
ção: “As Sete Trombetas” (Ap 8-11); Quarta Seção: “O Dragão Persegui­
dor” (Ap 12-14); Quinta Seção: “As Sete Taças” (Ap 15-16); Sexta Seção:
“A queda da Babilônia” (Ap 17-19); Sétima Seção: “A Grande Consuma­
ção” (Ap 20-22).6 De fato, no capítulo 20 se inicia uma nova seção que vai
descrever outra vez a dispensação cristã como um todo, desde a primeira
vinda de Jesus até a sua segunda vinda e o juízo final, como fizeram todas
as seis seções ou ciclos anteriores. Repare que a segunda vinda de Cristo e
o julgamento do mundo haviam sido anunciados em todas as seis seções
anteriores. Veja como o sexto selo na segunda seção descreve o fim do
mundo em cores vívidas (6.12-17). Do mesmo modo, na sétima trombeta
da terceira seção, a consumação de todas as coisas é claramente descrita
(11.15-19). E esse acontecimento é também descrito em 14.14-20 no final
da quarta seção, com o acréscimo de detalhes de como será a separação
entre os crentes e os ímpios. Observe que nessa passagem os crentes são
ceifados e recolhidos ao celeiro, enquanto os ímpios são pisados como se
fossem uvas. Assim também o sétimo flagelo da quinta seção descreve o
fim de tudo, mas aqui é pela primeira vez descrita uma batalha antes do
fim, a batalha do Armagedom (16.12-21). Porém, a explicação mais clara
dessa batalha está no final da sexta seção, em que o cavaleiro montado no
cavalo branco desce para destruir os exércitos do diabo e dos seus aliados.
Portanto, João está recontando pela sétima e última vez como acontecerá a
derrota do mal.
E muito difícil que Apocalipse 20 seja uma descrição do que acontece
depois de Apocalipse 19, pois no capítulo 19 já aconteceu a consumação.
Os ímpios foram vindimados na batalha do Armagedom e os homens re­
beldes foram mortos (19,21). No capítulo 20, a história é recontada a fim
de explicar como será destruído o último inimigo - Satanás —, e assim,
todos os detalhes se completam. Em defesa dessa posição, Hendriksen
mostra o paralelo que há entre os capítulos 11-14 e 20-22.7
606 Razão da esperança

Apocalipse 11 a 14 Apocalipse 20
12.5-12. Em conexão com o nas­ 20.1-3. Satanás é atado e lançado no
cimento, morte ascensão e coro­ abismo; seu poder sobre as nações
ação de Cristo, Satanás é lançado é reprimido. Ao invés de as nações
do céu. Suas acusações perderam conquistarem a igreja, esta é que co­
toda aparência de verdade. meça a conquistar as nações.
14.2-6; 12.14-18. Um longo perío­ 20.2. Um longo período de poder
do de poder e constante testemu­ exercido pela igreja. Satanás tem
nho por parte da igreja, que é sus­ estado amarrado. Ele permanece
tentada “longe da face da serpente”. amarrado por mil anos, ou seja, a
A influência do diabo é restringida. dispensação cristã inteira.
11.7-14; 13.7. Um período muito 20.7-10. Um período muito curto
curto da mais severa perseguição. da mais severa perseguição: Sata­
Este é o pouco tempo de Satanás: nás dirige o exército de Gogue e
a mais terrível e também a final ma­ Magogue contra a igreja. Esta é a
nifestação do poder perseguidor do Batalha do Armagedom.
Anticristo.

11.17-18; 14.14-18. A segunda e úl­ 20.11. A segunda e última vinda


tima vinda de Cristo para juízo. de Cristo para juízo.

Os santos reinam
Em seguida, Apocalipse 20.4-6 narra um reinado milenar. Aqueles que
seguem uma abordagem cronológica do capítulo 20, dizem que todos esses
acontecimentos seguem o 19. Então, na segunda vinda de Jesus, Satanás
seria preso, e, em seguida, haveria a primeira ressurreição e os crentes reina­
riam com Cristo por mil anos na terra. Depois desses mil anos, haveria a
segunda ressurreição somente dos ímpios para o juízo. Nossa dificuldade
com esta interpretação já foi descrita acima. Não cremos que o capítulo 20
seja uma seqüência do 19, mas que ele dá início a um novo ciclo. Vimos que
a derrota e a prisão de Satanás já aconteceram na primeira vinda de Jesus.

Tronos n o céu

Porém, há uma dificuldade ainda maior em pensar que o milênio come­


ça com a ressurreição dos crentes. João não diz que vê corpos reinando
0 reino m ilenar 607

com Cristo na terra, mas “almas” (Ap 20.4). Ele diz que viu tronos e, sen­
tados nesses tronos, aqueles que têm a autoridade para julgar. Quem se
assenta nesses tronos? São as almas que João viu. O texto grego não con­
tém a expressão “vi ainda”, como se se tratasse de um grupo diferente
daquele que está assentado nos tronos. Diz simplesmente: “E as almas dos
decapitados por causa do testemunho de Jesus e da Palavra de Deus, tantos
quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não recebe­
ram a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante
os mil anos” (Ap 20.4). Observe que essas almas estão “vivendo” com
Cristo e reinando por mil anos. A expressão “e viveram” (no grego e^esan)
não significa necessariamente “e ressuscitaram”, até porque a palavra grega
“ressuscitaram” é outra (anastásei). A passagem nos diz que as almas dos
que morreram estão “vivendo” e reinando com Cristo por mil anos, que é
o tempo inteiro da dispensação cristã, desde a primeira até a segunda vinda
de Cristo. Além disso, esses tronos certamente devem estar no céu, pois
como diz W J. Grier, “sempre que se faz referência a tronos, no Apocalipse,
quer se trate do de Cristo, quer dos de seu povo, são localizados no céu”.8
(Ver Ap 4.4). E como diz Kistemaker, “o vocabulário de tronos, juízo e
almas representa uma cena celestial”.9 Quando João diz que os restantes
dos mortos não reviveram “até que se completassem os mil anos” e chama
o acontecimento de “viver” de primeira ressurreição, ele não está dizendo
que isso vai acontecer depois do milênio. Aliás, a palavra “reviveram” é a
mesma usada para “viveram” no versículo anterior. O que João quer dizer é
que os mortos sem Cristo continuaram mortos física e espiritualmente e,
depois do milênio, eles vão ressuscitar, mas para entrar na morte eterna.
Portanto, a primeira ressurreição aqui é o “viver” com Cristo no céu. Os
ímpios não vão “viver” com Cristo no céu até o dia da ressurreição final.
Aquele que tem parte na primeira ressurreição (espiritual) vai para o céu, e
não precisa temer a segunda morte que é o lago de fogo. Nem seria preciso
falar algo assim se os cristãos já estivessem com o seu novo corpo aqui na
terra. Em resumo: “Os que pertencem a Cristo morrem uma vez, porém
ressurgem duas vezes (espiritual e fisicamente), enquanto os que o têm
rejeitado ressurgem uma vez, porém morrem duas vezes (física e espiritual­
mente)”.10 As pessoas que João viu no céu (decapitados como Paulo e João
Batista) ascenderam espiritualmente ao céu (primeira ressurreição), e res­
suscitarão fisicamente na vinda de Jesus. As pessoas que morrem sem Cris­
to não vão para o céu (não têm parte na primeira ressurreição), mas ressus­
citarão na vinda de Jesus para o grande julgamento.
608 R azão da esperança

A situa çã o do s m or to s

Um argumento que reforça essa interpretação vem de outras partes do


livro de Apocalipse. Devemos sempre lembrar que João está escrevendo
para cristãos do século Io. Esses cristãos estavam sofrendo grandes perse­
guições, Muitos já haviam morrido por causa do evangelho. Era natural que
a igreja se perguntasse: O que aconteceu com os cristãos que foram marti­
rizados? Deus não vai fazer nada para vingá-los? Em praticamente todas as
seções, João dá informações sobre esses mortos, No capítulo 6, ele diz que
viu as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus
e por causa do testemunho que sustentavam. Essas almas estavam debaixo
do altar de Deus, e clamavam por vingança. Foi lhes dito que deviam espe­
rar, usando vestiduras brancas, até que se completasse o número dos már­
tires (ver Ap 6.9-11). No capítulo 7, João dá mais informações sobre os
mártires. Ele diz que “se acham diante do trono de Deus e o servem de dia
e de noite no seu santuário. E aquele que se assenta no trono estenderá
sobre eles o seu tabernáculo. Jamais terão fome, nunca mais terão sede, não
cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no
meio do trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida. E
Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima” (Ap 7.15-17), Ou seja, João
está tentando consolar os amigos e parentes das vítimas, dizendo que elas
estão numa posição privilegiada. No capítulo 14, João diz que os mortos no
Senhor são “bem-aventurados”, podem descansar de suas fadigas, pois suas
obras os acompanham (Ap 14.13), No capítulo 20, ele torna a ver as almas
desses mártires, e agora acrescenta que além de estarem num estado de
bem-aventurança, eles estão reinando com Cristo e serão os próprios juizes
de seus algozes (Ap 20,4). Portanto, na sequência lógica do Apocalipse,
essa passagem não está falando coisa alguma sobre um reino literal e terre­
no de Cristo sobre a terra durante mil anos, mas da situação dos mortos em
Cristo no céu, durante todo o tempo da dispensação cristã.
Como já vimos, aqueles que reinam com Cristo por mil anos não são
pessoas ressuscitadas fisicamente, mas almas que reinam no céu. Nesse
ponto, há mais uma dificuldade para a interpretação pré-milenista que é o
fato de que a passagem localiza apenas dois grupos de pessoas que reinam
com Cristo, e são os “decapitados por causa do testemunho de Jesus e os
que não adoraram a besta”. Onde está o restante dos crentes mortos? Além
disso, está falando apenas dos que morreram, e se eles ressuscitaram fisica­
mente, onde estão os vivos que serão transformados? Eles não participam
do milênio? Como diz Hoekema, “não há nada dito aqui acerca de crentes
0 reino m ilenar 609

que não morreram, mas ainda estavam vivos quando Cristo retornou”.11
Porém, quando lembramos que João está querendo explicar justamente a
situação dos mártires, toda dificuldade desaparece.

N úm er o s não-lilerais

A interpretação literal dos mil anos na passagem não se justifica facil­


mente. Qualquer pré-milenista sabe, por exemplo, que a corrente que pren­
de Satanás não é física, é espiritual. Portanto, ninguém interpreta isso lite­
ralmente, Então, por que o número 1.000 deve ser interpretado literalmen­
te? Além disso, por que, nessa passagem, esse número deve ser interpreta­
do de modo literal, se todos os outros números do Apocalipse não são? Por
exemplo, será que há sete Espíritos Santos, ou apenas um? (Ap 3.1; 4.5).
Será que Jesus é literalmente um Cordeiro que tem sete chifres e sete olhos?
(Ap 5.6). Será que correu sangue pela morte dos ímpios por 1.600 estádios
(296 km)? (Ap 14.20). Será que a Nova Jerusalém possui 12.000 estádios
(2.219 km)? (Ap 21.16). Evidentemente que ninguém interpreta esses nú­
meros literalmente, pois são claramente simbólicos. Mas, então por que o
número 1.000 teria que ser literal em Apocalipse 20.3,4?
Ainda deve ser considerado que a existência de um milênio literal so­
mente pode ser deduzida da passagem de Apocalipse 20.1-4. Nenhum ou­
tro lugar na Escritura fala de algo parecido. E, como já vimos, Apocalipse
20.1-4 não precisa ser interpretado literalmente. No restante da Escritura
não existe a menor indicação de um milênio intermediário entre a era atual
e a e r a eterna. Jesus, nas parábolas (Mt 13,24-30,36-43,47-50; Lc 19.11-27;
Mt 25.14-30), e na descrição do julgamento em Mateus 25, não falou de um
reino intermediário depois da sua vinda. Ele disse que a sua vinda traria o
julgamento e o estado final dos homens. A mesma idéia pode ser vista em
toda a Bíblia. Sempre que o Novo Testamento fala do futuro, ela não diz
que haverá um reino para Israel na segunda vinda de Jesus, mas que quando
Jesus voltar, será estabelecido o novo céu e a nova terra (2Pe 3.1-13).

A últim a batalha
Em Apocalipse 20.7-10 há a descrição da rebelião final, na qual Satanás
reúne as nações para pelejarem contra o Senhor. Que batalha é essa, se no
capítulo 19 os inimigos de Cristo já foram destruídos? Que nações são
essas cujo número é como a areia do mar, se os homens já foram mortos
em Apocalipse 19.21? Na verdade, não são batalhas diferentes, mas duas
610 Razão da esperança

descrições da mesma batalha. É dito que, no fim do milênio, Satanás será


solto. Solto de quê? De sua prisão que o incapacitava de enganar as nações
a fim de reuni-las contra a igreja de Deus. Observe que ele vai seduzir as
nações nos quatro cantos da terra. Que essa é a batalha do Armagedom
podemos inferir por causa da referência a Gogue e Magogue. Gogue era o
príncipe de Magogue. E dito em Ezequiel 38.2 que Gogue também é prín­
cipe de Rôs, Meseque e Tubal. Essas três regiões ficavam na região em que
hoje é a Turquia. E todo esse território foi conquistado depois de Ezequiel
pelos selêucidas, principalmente nos tempos de Antíoco Epifânes o mais
cruel inimigo dos judeus, que foi governador da Síria. Esse homem foi o
mais perfeito tipo do Anticristo no Antigo Testamento. Portanto, a refe­
rência a Gogue, nessa última batalha, é uma referência novamente às forças
do Anticristo que tentarão pelejar contra o Cordeiro. João não descreve a
derrota do Anticristo aqui, porque já a descreveu antes, e agora ele está
interessado em descrever a derrota do dragão, que na mesma batalha do
Armagedom na única vinda de Cristo, foi também aprisionado no lago de
fogo. O fato de João dizer que a besta e o falso profeta já estavam no lago
de fogo (Ap 20.10) significa apenas que ele já havia narrado esse aconteci­
mento antes, até porque a besta e o falso profeta são o governo e a religião
anticristã de Satanás. João deixou para narrar no fim a maneira como o
dragão será destruído.

0 c u m p r im en to das profecias do AT
Talvez a maior razão de os pré-milenistas insistirem num reino literal e
terreno de mil anos seja por causa da visão deles das profecias do Antigo
Testamento. Como já dissemos, não há qualquer passagem que fale em mil
anos de reino, mas os pré-milenistas olham para as profecias de Isaías, Eze­
quiel, Amós, Zacarias e outros, que falam sobre um futuro glorioso para
Israel, e imaginam que isso acontecerá numa volta futura de Israel das vári­
as nações ao redor do mundo, para a terra da promessa. Eles pensam que
isso precisa se cumprir literalmente. Nesse sentido, vêem o retorno de Is­
rael para a Palestina, depois da Segunda Guerra Mundial, como um indício
do cumprimento histórico das profecias. A intepretação amilenista entende
que essas profecias se cumpriram literalmente na volta de Israel do cativei­
ro da Babilônia, ou se cumprem espiritualmente na igreja que é o Israel no
Novo Testamento, ou ainda se cumprem no novo céu e nova terra. Não há
a necessidade de um reino milenar para que elas se cumpram.
0 reino m ilenar 611

Primeiramente, devemos entender que interpretar literalmente todas as


profecias do Antigo Testamento pode levar a absurdos. Como observa W
J. Grier, “a própria profecia do Antigo Testamento contém uma advertên­
cia contra tal literalismo. Deus disse que falaria aos profetas do Antigo
Testamento em sonhos e visões e em palavras obscuras (Nm 12.6-8; Os
12.10)”.12 Por exemplo, quando Ezequiel diz que o povo retornará à sua
terra, Davi reinará sobre os que voltarem (Ez 37.24). Se isso for interpreta­
do de modo literal, Davi precisaria reencarnar para reinar sobre Israel. E,
além disso, o que não pode ser esquecido é que muitas profecias proferidas
à nação de Israel eram condicionais. Por exemplo, quando Deus chamou o
povo de Israel do''Egito, ele lhes prometeu uma nova terra, porém, devido
à desobediência deles, foram privados desse benefício (Nm 14.23). Com
relação ao próprio reino eterno da descendência de Davi, a promessa era
condicional. Davi entendeu isso, pois, no seu leito de morte, ele disse ao
seu filho Salomão:

Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem!


Guarda os preceitos do Siínhor, teu Deus, para andares nos seus caminhos,
para guardares os seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e
os seus testemunhos, como está escrito na lei de Moiscs, para que prospe­
res em tudo quanto fizeres e por onde quer que fores; para que o Siínhor
confirme a palavra que falou de mim, dizendo: Se teus filhos guardarem o
seu caminho, para andarem perante a minha face fielmente, de todo o seu
coração e de toda a sua alma, nunca te faltará sucessor ao trono de Israel
(lRs 2.2-4).

Do mesmo modo, as promessas de Deus de prosperidade para a nação


de Israel estavam condicionadas à obediência. Uma vez que a nação não
permaneceu em obediência, Deus não se viu obrigado a cumprir todas as
promessas.
Ao considerar algumas das principais profecias do Antigo Testamento,
as quais são geralmente usadas para a defesa de um milênio literal e terres­
tre, podemos perceber que elas não exigem um cumprimento literal num
milênio. Uma das principais passagens do Antigo Testamento usadas para
defender o milênio é Isaías 65.17-25. Aí Isaías fala da restauração de todas
as coisas: “Não haverá mais nela criança para viver poucos dias, nem velho
que não cumpra os seus; porque morrer aos cem anos é morrer ainda jo­
vem, e quem pecar só aos cem anos será amaldiçoado” (v. 20). Diz que: “A
longevidade do meu povo será como a da árvore, e os meus eleitos desfru­
tarão de todo as obras das suas próprias mãos” (v. 22). E diz que naquele
612 Razão da esperança

tempo: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como


o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em
todo o meu santo monte, diz o S enhor” (v. 25). Os pré-milenistas dizem
que essa descrição não pode se referir ao tempo eterno porque há referên­
cia à morte e ao pecado. Porém, deve ser entendido que Isaías usa figuras
de coisas que os homens podem entender, mas está falando dos “novos
céus e nova terra”, conforme ele deixa bem claro no versículo 17. E o
Apocalipse diz que os novos céus e nova terra compõem o estado final do
universo e não o milênio. Isaías descreve os tempos eternos em linguagem
que as pessoas daquele tempo podiam entender. Ele usa expressões que
indicam longevidade e prosperidade em linguagem que deve ser interpreta­
da de modo figurado e não literal.
Outra passagem bastante usada para a defesa do milênio é o capítulo 11
de Isaías. Ela diz que um rebento de Jessé será levantado (v. 1), o qual terá
sabedoria para reconduzir o povo (vs. 2-5). Nesse tempo, “o lobo habitará
com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão
novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará (...) A
criança de peito brincará sobre a toca da áspide, e o já desmamado meterá
a mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o
meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do S enhor,
como as águas cobrem o mar” (vs. 6-9). Essa também não é uma descrição
do milênio, Ela se parece bastante com a outra descrição que já vimos aci­
ma, no capítulo 65, e que Isaías disse pertencer à nova terra e aos novos
céus. Isaías está falando de um tempo de perfeição, em que a terra se enche­
rá do conhecimento do Senhor. Isso é muito superior ao que teria que
acontecer no milênio em que ainda haveria povos dispostos a se rebelar
contra o Senhor. Nos versículos 10-16 Isaías fala da restauração de Israel.
Não podemos entender essa passagem sem lembrar que o povo de Israel
foi levado cativo para a Assíria e o povo de Judá para a Babilônia. Isaías diz
que o povo voltaria para a sua terra. Isso de fato se cumpriu setenta anos
depois do cativeiro, quando o povo retornou do exílio. O versículo 16 diz:
“Haverá caminho plano para o restante do seu povo, que for deixado, da
Assíria, como o houve para Israel no dia em que subiu da terra do Egito”.
Esse versículo teve um cumprimento literal quando Israel voltou do cati­
veiro. E evidente que a profecia vai além disso, mas por que pensar num
milênio intermediário se a profecia pode se referir em linguagem figurada
aos novos céus e nova terra? Como diz Hoekema, “na há razão obrigatória
para entendermos este tipo de passagens do Antigo Testamento, de modo
a descrever um reino milenar futuro”.13 Essas profecias se cumprem no
0 reino m ilenar 613

retorno de Israel do cativeiro, na primeira vinda de Jesus, ou finalmente


descrevem a nova terra que será estabelecida na segunda vinda de Jesus.14
O próprio Novo Testamento interpreta profecias que descrevem a res­
tauração de Israel como não-literais. Um exemplo basta para perceber isso.
Amós 9.11,12 diz: “Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi,
repararei as suas brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei
como fora nos dias da antiguidade; para que possuam o restante de Edom
e todas as nações que são chamadas pelo meu nome, diz o S enhor, que faz
estas coisas”. Em Atos 15.14-18 temos a interpretação do cumprimento
figurado dessa profecia. Tiago entende que ela se cumpriu quando Deus
incluiu os gentios na comunidade do povo de Deus. Portanto, se o próprio
Novo Testamento demonstra que as profecias do Antigo Testamento não
precisam ser cumpridas literalmente, por que nós deveríamos insistir nisso?

Dificuldades adicionais
Falar num milênio terreno envolve algumas contradições adicionais: Por
que razão, depois de os crentes terem ressuscitado, eles ainda teriam que
viver mil anos numa terra imperfeita? De certo modo, as coisas não seriam
muito diferentes do que são hoje. Somos convertidos e desejamos uma
nova era, porém ainda temos que sofrer com este mundo decaído. Imagine
pessoas já ressuscitadas ainda tendo que viver numa terra decaída. Outra
coisa estranha é a idéia de que haverá pessoas com corpo glorificado viven­
do junto com pessoas sem corpo glorificado. Que tipo de relacionamento
poderia existir entre essas pessoas? Umas morrem, outras são eternas. E
como podem as nações se rebelarem contra o Senhor depois do milênio na
soltura de Satanás? Não terá adiantado nada os mil anos de prosperidade
do Senhor na terra? Finalmente, é muito estranha a idéia de haver salvação
depois da vinda do Senhor. Como serão salvos os ímpios durante o milê­
nio? Eles terão que ouvir o evangelho e crer? A Bíblia diz que fé é acreditar
no que não pode ser visto (Hb 11.1), mas naquele momento todos verão
Jesus reinando de um trono terreno em Jerusalém. Isso seria injusto, se
considerarmos que todos os demais que viveram antes do milênio tiveram
que crer com bem menos evidência. Se for dito que não há salvação no
milênio, então, a necessidade de ele existir cai ainda mais. Embora não pos­
samos ser dogmáticos, porque o Senhor conduzirá a História segundo o
seu propósito, essas observações demonstram que a existência de um milê­
nio literal traz mais complicações do que soluções.
614 Razão da esperança

Concluindo, vimos que há evidências de sobra para que Apocalipse 20.1-


10 não seja interpretado de modo literal. Porém, insistimos na tese de que
este assunto não deve dividir os cristãos. Ter expectativas diferentes em
relação à segunda vinda é melhor do que não ter expectativa alguma. O que
importa é que ele virá, e que haverá pessoas aguardando-o. Quer naquele
momento ele inaugure o milênio, quer inaugure o tempo eterno, de qual­
quer modo estaremos para sempre juntos com o Senhor.
48

A ressurreição final

Um antigo missionário protestante nas Ilhas Ryukyu, no Pacífico Oes­


te descobriu uma estranha sepultura; nela havia uma placa indicando que
mais de onze mil cabeças de cristãos estavam sepultadas ali. Em outra
investigação, ele descobriu que, em 1637, o governo japonês, que contro­
lava Ryukyu, havia ordenado que todos os cristãos no império fossem
exterminados. O governo sabia que os cristãos criam na ressurreição e,
por isso, as cabeças dos mártires crentes foram sepultadas separadas dos
corpos, na expectativa de que a ressurreição pudesse ser desse modo evi­
tada. Aqueles tiranos, embora inimigos dos cristãos, temiam a possibili­
dade da ressurreição e, na sua crueldade, queriam de alguma maneira im­
pedir os cristãos de obtê-la.
A ressurreição dos mortos é uma doutrina tipicamente cristã. Nenhu­
ma outra religião acha que ela seja necessária. Porém, para o Cristianismo
ela é essencial, Todas as outras religiões imaginam que a felicidade do ho­
mem se completa quando este se vê livre do corpo. Desde os tempos mais
primitivos, o ser humano tem acreditado que a matéria é má. Assim, o
corpo, como invólucro da alma, seria um elemento aprisionador e negati­
vo. A Bíblia contraria essa noção. Segundo o ensino bíblico, o ser humano
não foi criado para viver sem corpo. O corpo do ser humano se tornou
corrupto por causa do pecado, mas a solução não é a alma se livrar do
corpo, até porque a alma também se corrompeu por causa do pecado.
Tanto o corpo quanto a alma precisam ser restaurados. Deus inicia essa
obra de restauração na conversão, quando coloca o Espírito dentro do
homem, e cria uma nova vida. Nesse sentido, a conversão pode ser chama­
da de ressurreição espiritual (Rm 6.13). Porém, a renovação total do corpo
e da alma acontecerá na ressurreição física, que está marcada para o último
dia. Enquanto o ser humano não estiver restaurado, tanto no corpo como
na alma, ele não alcançará a plenitude. Por essa razão, a ressurreição é tão
importante.
616 Razão da esperança

0 dia da ressurreição
Classicamente, se tem acreditado que a ressurreição acontecerá no últi­
mo dia, no momento da segunda vinda de Jesus. Naquele dia ressuscitarão
os justos e também os ímpios. Portanto, haverá apenas uma ressurreição.
Aqueles que defendem um reino de mil anos depois da vinda de Jesus acre­
ditam que haverá pelo menos duas ressurreições. A primeira ressurreição
acontecerá na vinda de Jesus e será a ressurreição exclusiva dos crentes.
Após mil anos de reino, acontecerá a segunda ressurreição, que será a res­
surreição dos ímpios para o Juízo Final. Essa é uma interpretação literalista
baseada em Apocalipse 20.4,5: “Vi ainda as almas dos decapitados por cau­
sa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos
quantos não adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não recebe­
ram a marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante
mil anos. Os restantes dos mortos não reviveram até que se completassem
os mil anos. Esta é a primeira ressurreição”. Quando essa passagem é inter­
pretada literalmente, parece realmente ensinar que há duas ressurreições
físicas, uma antes do milênio (dos salvos) e outra depois do milênio (dos
perdidos). Primeiramente precisamos dizer que as coisas podem realmente
ser dessa maneira. Deus é soberano sobre o futuro e pode estabelecer as
coisas como ele quiser. Porém, nos parece que essa passagem não deve ser
interpretada literalmente. E o motivo é simples: o livro do Apocalipse como
um todo não deve ser interpretado literalmente. O Apocalipse é um livro
repleto de símbolos, e muitas vezes buscar o sentido literal de sua simbologia
leva a inconvenientes. Parece-nos que não devemos pensar que a passagem
esteja falando em ressurreição física. E nossa convicção, como já demons­
tramos no capítulo anterior, que ela está falando de uma ressurreição espi­
ritual. O versículo 4 diz “vi as almas”. Ele não diz “vi pessoas com corpos”.
Essas almas viveram e reinaram com Cristo durante mil anos. A palavra
“viveram” (grego: e^esan) aqui não significa “ressuscitaram”, mas simples­
mente “continuaram a viver”. A passagem diz ainda que o restante dos
mortos não viveu, ou seja, continuaram mortos; não é dito que eles não
ressuscitaram. E nosso entendimento que a passagem está falando das pes­
soas que morrem e suas almas vivem com Cristo e reinam com ele durante
mil anos. Esse tempo deve ser entendido como todo o tempo da dispensa-
ção cristã antes da vinda de Jesus. Devemos lembrar que João está falando
de coisas que ele viu no céu, quando para lá subiu numa visão (Ap 4.1). O
versículo 5 chama isso de “primeira ressurreição” não porque há uma “se­
A ressurreição final 617

gunda ressurreição” somente para os ímpios, mas porque há uma “segunda


ressurreição” física para os crentes (e também para os ímpios, mas para eles
será a primeira). Mas quem já passou pela primeira ressurreição, ou seja, se
converteu e foi para o céu, não corre qualquer risco de ficar de fora. Não
haveria sentido em dizer que já não há risco para aqueles que ressuscitaram
fisicamente, afinal, eles já teriam ressuscitado, mas há sentido em assegurar
que aqueles que estão no céu, mas que ainda não ressuscitaram fisicamente,
ou seja, que estão sem corpo, terão seus respectivos corpos novamente,
Além do mais, se existe uma ressurreição física diferente para os crentes
e para os ímpios, e se há um reino literal de mil anos na terra, então, haverá
duas ressurreições de crentes também, e talvez até três. Terá que haver uma
ressurreição na vinda de Cristo, outra ressurreição depois dos sete anos de
tribulação (para os que defendem o pré-tribulacionismo),1 e outra ressur­
reição após o milênio, pois possivelmente pessoas se converterão no milê­
nio. E como essas pessoas não foram transformadas na vinda do Senhor,
terão que morrer e ressuscitar. E ainda precisaria haver a ressurreição dos
ímpios. E isso já parece ressurreição demais.

Uma só ressurreição
Porém, o fato é que o ensino bíblico não faz distinção entre várias res­
surreições. Desde o Antigo Testamento, a Bíblia deixa bem claro que have­
rá apenas uma ressurreição, que acontecerá no último dia. Daniel disse:
“Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida
eterna, e outros para vergonha e horror eterno” (Dn 12.2), Não há qual­
quer indicação de duas ressurreições nessa passagem, que é a mais impor­
tante do Antigo Testamento a respeito da ressurreição. Ela simplesmente
diz que haverá um dia quando os mortos ressuscitarão. A diferença não é a
ressurreição em si, mas o destino dos homens. Os crentes irão para a vida
eterna, enquanto os ímpios para a vergonha e o horror eterno. A mesma
idéia pode ser vista no capítulo 5 de João. Jesus disse: “Não vos maravilheis
disto, porque vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvi­
rão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da
vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (Jo
5.28,29). Jesus não diz que haverá duas ressurreições em momentos dife­
rentes, Ele diz que virá a hora (singular) em que todos os que estão mortos
ouvirão a voz do Senhor e sairão. Porém, uns irão para a vida eterna e
outros para o juízo. Jesus não faz qualquer distinção temporal, nessa passa-
618 Razão da esperança

getn, entre a ressurreição dos salvos e a dos perdidos. Em outras passagens,


Jesus deixou bem claro que a ressurreição acontecerá no último dia (Jo
6,39. 40, 44, 54). Esse “último dia” precisa ser identificado com o momen­
to final, quando o Senhor voltar do céu. No livro de Atos, também encon­
tramos que haverá apenas uma ressurreição, tanto dos justos como dos
ímpios. Quando Paulo se defendeu diante do governador Fclix, ele tocou
propositadamente na questão da ressurreição, por saber que parte dos reli­
giosos acreditava nela. Ele resume a sua teologia dizendo: “Porém confes-
so-te que, segundo o Caminho, a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus
de nossos pais, acreditando em todas as coisas que estejam de acordo com
a lei e nos escritos dos profetas, tendo esperança em Deus, como também
estes a têm, de que haverá ressurreição, tanto de justos como de injustos”
(At 24.14,15). Ele não fala em ressurreições, mas de uma ressurreição, quando
tanto os justos como os injustos ressuscitarão.
Em 1 Tessaloniscenses 4.13-17, o apóstolo Paulo aborda o tema da res­
surreição e da volta do Senhor de modo mais direto. Ele diz que os crentes
não devem ser ignorantes em relação ao que acontecerá com os que já
morreram em Cristo (4.13). Ele diz: “Pois, se cremos que Jesus morreu e
ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia,
os que dormem” (4.14). Os mortos em Cristo ressuscitarão na vinda de
Jesus, essa é a garantia que eles têm. Em seguida ele fala sobre a diferença
que acontecerá entre os mortos e os vivos na segunda vinda de Jesus:

Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os
que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que
dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida
a voz do arcanjo, c ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os
mortos cm Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos, os que ficar­
mos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o en­
contro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o Senhor
(vs. 15-17).

Paulo fala de uma prioridade dos crentes mortos em relação aos que
estiverem vivos na segunda vinda. Ele diz que os mortos ressuscitarão pri­
meiro. Evidentemente, a dúvida dos crentes de Tessalônica era se os cren­
tes mortos teriam a mesma vantagem dos vivos na vinda de Jesus. Paulo
escreve para demonstrar que os mortos terão os mesmos privilégios.2 No
momento em que o Senhor voltar, e a voz do céu chamar os mortos, eles
ressuscitarão e serão arrebatados primeiro, depois os vivos os seguirão. Paulo
não diz que eles serão arrebatados antes que os ímpios mortos. Aqui, Paulo
A ressurreição final 619

nada fala sobre a ressurreição dos ímpios, porque esse não é seu assunto no
momento.3 Porém, assim como Jesus disse que quando os mortos ouvissem
a sua voz sairiam do túmulo, uns para a vida eterna e outros para a condena­
ção (Jo 5.28,29), podemos entender que, no mesmo momento, quando os
crentes ouvirem a voz do Senhor e ressuscitarem para o arrebatamento, os
ímpios também ouvirão a voz e ressuscitarão para a condenação.
Em 2 Tessaloniscenses, Paulo também falou sobre a manifestação futu­
ra do Senhor, trazendo ao mesmo tempo alívio para os crentes e juízo para
os ímpios. Ele diz:

E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do


céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de
fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os
que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão
penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do
seu poder, quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado
em todos os que creram, naquele dia (porquanto foi crido entre vós o nosso
testemunho) (1.7-10).

Os dois eventos —a salvação dos crentes e o banimento dos ímpios —,


acontecerão no momento da vinda de Jesus. Essa idéia está muito clara na
passagem, tanto pelo sentido contextuai quanto pelo gramatical. Como diz
Berkhof, “se não for este o caso, a língua terá perdido seu sentido”.4
Apocalipse 20.11-15 descreve a ressurreição dos mortos:

Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença


fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mor­
tos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se
abriram livros. Ainda outro livro, o liv r o da Vida, foi aberto. E os mortos
foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito
nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entre­
garam os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as
suas obras.

Em linguagem simbólica, essa passagem descreve o momento do julga­


mento de todas as pessoas que já morreram. Os mortos são vistos, tanto os
grandes como os pequenos. Vieram do mar, do estado de morte e do Hades,
ou seja, todos os mortos estarão lá. A intenção da passagem é demonstrar
que no juízo todas as pessoas estarão presentes, tanto as salvas como as
condenadas. Mas há duas perspectivas de juízo, uma pelas obras, por causa
620 Razão da esperança

dos livros que foram abertos, e outra pela questão da inscrição no Livro da
Vida. A passagem diz que, quem não foi achado inscrito no livro da Vida
foi lançado no lago de fogo. Se somente estivessem ali os perdidos, não
haveria necessidade nenhuma de se abrir o Livro da Vida, pois bastariam os
livros das obras. Além do mais, pareceria estranho que, no Juízo Final, esti­
vessem apenas os perdidos. Embora os salvos não sejam julgados no senti­
do de ter definido o seu destino eterno nesse julgamento, pois isso já acon­
teceu em vida (Jo 3.18), eles são julgados pelas suas atitudes, que lhes garan­
tirá galardão. Quanto aos ímpios, a necessidade da ressurreição deles, como
o Apocalipse demonstra, é por questão de justiça, pois a morte deve, em
sua máxima extensão, e com todo o seu peso, ser imposta sobre os ímpios.5
Todos os mortos estarão no juízo daquele dia. Portanto, haverá apenas um
dia para a ressurreição, e naquele dia, os salvos ressuscitarão para a vida
eterna, e os ímpios para a destruição eterna.

Como será o corpo da ressurreição


Uma das maiores dúvidas acerca da ressurreição diz respeito ao tipo de
corpo que terão os ressuscitados/’ A passagem de 1 Coríntios 15,36-38 é a
mais esclarecedora a esse respeito: “O que semeias não nasce, se primeiro
não morrer; e, quando semeias, não semeias o corpo que há de ser, mas o
simples grão, como de trigo ou de qualquer outra semente. Mas Deus lhe
dá corpo como lhe aprouve dar e a cada uma das sementes, o seu corpo
apropriado”. O nosso novo corpo será, num certo sentido, idêntico ao
atual e, noutro sentido, totalmente diferente. Haverá tanto continuidade
como novidade no novo corpo. Haverá continuidade porque será um cor­
po a partir deste, assim como a planta nasce a partir da semente, mas haverá
novidade, porque assim como a planta que nasce é imensamente superior à
semente, assim também o nosso novo corpo será superior ao que temos
agora. Aquele será um corpo perfeito, sem as fraquezas e limitações pró­
prias do atual. Devemos lembrar que o nosso corpo será igual ao corpo
ressuscitado de Jesus, Seremos seres humanos plenos como Jesus é, embo­
ra devamos lembrar que nunca seremos Deus, como ele é.
Precisamos de um novo corpo. O nosso coração regenerado encontra
muita dificuldade em relação ao corpo atual, pois o corpo que temos agora
é, na melhor das hipóteses, instrumento ineficaz para expressar os desejos
e propósitos do coração regenerado. Como Jesus disse: “O espírito, na ver­
dade, está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26.41).7 Todos os dons de
A ressurreição final 621

Deus, e todas as maravilhas da regeneração acabam, como que brecadas


por causa da qualidade inferior do nosso corpo atual. Por outro lado, dá
para imaginar como será a vida do ser humano quando ele estiver de posse
de um corpo apto para uma alma regenerada. Num certo sentido, seremos
mais privilegiados do que Adão antes da queda. Paulo também fala sobre
iso no capítulo 15 de 1 Coríntios. Ele diz que “o primeiro homem, Adão,
foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (v. 45).
O que quer que isso signifique, o certo é que haverá uma vantagem do corpo
futuro em relação ao de antes da queda. Por mais perfeito que fosse o corpo
de Adão, ainda assim estava na categoria de “corpo terrestre”, mas o corpo
futuro será um “corpo celestial” (ICo 15.40). Nesse sentido, terá muito mais
glória do que o anterior (ICo 15.41). Paulo diz que o primeiro homem, for­
mado da terra, é terreno; o segundo homem é do céu (ver ICo 15.48). Have­
rá, portanto, uma superioridade total mesmo em relação ao corpo do Adão
antes da queda. Com relação ao atual, então, será incomparável.

A ressurreição e a vida cristã


A doutrina da ressurreição era especialmente importante para a igreja
primitiva. Uma das heresias mais destruidoras desde o início do Cristianis­
mo foi o gnosticismo. Para essa heresia, toda a matéria é má e apenas o
espírito é bom. Então, a melhor coisa que pode acontecer para o nosso
espírito é se livrar do corpo. E claro que essa idéia, embora bastante popu­
lar, não é bíblica. A Bíblia ensina a importância do nosso corpo. Não fomos
feitos para vivermos sem ele. E a grande boa nova do evangelho é que na
ressurreição seremos unidos a ele outra vez. O nosso espírito não foi feito
para viver sem um corpo; isso demonstra o quanto o “ser humano” em
corpo e alma é importante para Deus. Ter um corpo não é algo que teste­
munhe contra nós. O problema conosco não é o corpo em si, mas o peca­
do que habita no nosso corpo. Os puritanos colocavam grande ênfase na
ressurreição, e eles levavam este mundo a sério. Insistiam que tanto a nossa
alma quanto o nosso corpo foram redimidos juntos, embora ainda continu­
em decaídos. Porém, os nossos membros físicos são tão dignos quanto a
nossa alma. Talvez, por isso, a Bíblia insista: “Oferecei-vos a Deus, como
ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instru­
mentos de justiça” (Rm 6.13). Podemos agradar a Deus espiritualmente e
corporalmente, pois se Jesus está em nós, a redenção tem nos alcançado
integralmente. Se os corpos são tão importantes, então, devemos zelar por
622 Razão da esperança

eles. Neste mundo, temos padrões de beleza muito diferentes. Alguns são
considerados mais belos do que os outros, e muitos sofrem por causa disso.
A ressurreição nos garante que, um dia, essas diferenças não mais existirão,
pelo simples fato de que todos os salvos terão um corpo perfeito.
O corpo é muito importante. Isso deve nos influenciar também no
evangelismo, pois não devemos ter preocupação apenas com a alma das
pessoas, mas devemos pregar o evangelho para o ser humano como um
todo, preocupados com a salvação da alma e com a preservação do corpo.
Não há problema algum em ser doador de órgãos, por exemplo, pois Deus
não necessita de um corpo completo para nos ressuscitar. Assim como o
governo japonês, que separou as cabeças dos corpos dos cristãos, não po­
deria impedir a ressrreição, ainda que todo o nosso corpo seja destruído,
Deus pode fazê-lo voltar do nada, para uma forma perfeita.
49

0 dia do juízo

"Então, vereis outra vez a diferença entre o justo c o perverso,


entre o que serve a Deus e o que não o serve'' (M l J . I 8 ) .

Pela maneira como as pessoas vivem, parece que não há muita vanta­
gem em ser honesto neste mundo. Parece que os ímpios são até mais felizes
do que os crentes. Ao contrário dos filmes e novelas que sempre mostram
um final feliz, na vida cotidiana os assassinos ficam fora da prisão, os trafi­
cantes moram em mansões, os golpistas do INSS não devolvem o dinheiro
c os fraudulentos fogem com altas quantias de dinheiro para o exterior.
Porém, os pais de família mal conseguem comprar o leite para os filhos, os
trabalhadores honestos deixam grande parte do pequeno salário para o
governo por causa dos impostos, e as pessoas de bem são atingidas por
balas perdidas. Da perspectiva humana, está muito difícil ver a diferença
entre o justo e o perverso, conforme Malaquias dizia (Ml 3.18), exceto que
o perverso parece que sempre leva vantagem.
Jó era um homem atribulado. Além da doença, das perdas familiares,
dos prejuízos materiais, ele ainda tinha que agüentar a importunação dos
seus amigos. Os amigos de Jó eram adeptos de uma teologia extrema­
mente simplista. Para eles, o justo era recompensado em vida e o perver­
so punido, e ponto final.1 Quando eles viram o estado calamitoso de Jó,
não tiveram dúvidas: toda aquela justiça e retidão que Jó demonstrava,
era pura aparência. Se Jó estava sendo punido, então, não era tão justo
como parecia. Daí, terem resolvido “ajudá-lo”. Para eles, a tarefa era muito
simples: bastava convencer Jó de seus pecados, então, ele se arrependeria,
e lhe seria devolvida a saúde e a prosperidade. Essa é uma visão muito
simplista da vida, mas é a visão da maioria das pessoas. O fato é que há
mais coisas entre o céu a terra do que as consequências imediatas dos
nossos atos. E impossível que uma pessoa receba todo o mal que merece
em vida, ou mesmo o bem. Por essa razão, é preciso que haja um “Juízo
Final”.
624 Razão da esperança

Há pelo menos cinqüenta referências ao Juízo Final no Novo Testa­


mento. Isso já é suficiente para demonstrar que esse é um dos temas mais
importantes da Bíblia. Segundo a Escritura, haverá um dia em que Deus se
assentará no tribunal e julgará todas as pessoas e tudo o que foi feito neste
mundo. A existência desse dia de Juízo é a única certeza que temos de que
vale a pena servir ao Senhor.

Ovelhas separadas dos cabritos


No final do seu sermão profético, Jesus falou sobre o momento em que
haverá a grande separação entre os salvos e dos condenados (Mt 25.31-46).
Ele disse que o Filho do homem virá na sua majestade, acompanhado de
todos os anjos e se assentará no trono da glória (v. 31). Essa é uma imagem
bem diferente de Jesus do que aquela a que as pessoas estão acostumadas a
imaginar. O humilde carpinteiro de Nazaré voltará envolto em glória, majes­
tade e autoridade. Todas as nações serão reunidas diante dele, que passará a
fazer a separação, exatamente como as ovelhas são separadas dos cabritos (v.
32). As ovelhas ficarão à sua direita e os cabritos à esquerda (v. 33). Até aqui
não ficou claro qual o motivo da separação; então, em seguida, Jesus esclare­
ce que as ovelhas são benditas e podem entrar no Reino que está preparado
desde a fundação do mundo (v. 34). A razão, segundo ele, é porque: “Tive
fome, e me destes de comer, tive sede, e me destes de beber, era forasteiro, e
me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e
fostes ver-me” (Mt 25.35,36). Naquele momento, as ovelhas surpresas dirão:
“Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com
sede e te demos de beber?” (Mt 25.37). Jesus lhes responde: “Em verdade
vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos,
a mim o fizestes” (Lc 25.40). Chega, então, a vez dos cabritos. Eles estão
postados à esquerda e recebem a ordem de se afastar. Só lhes resta a perdi­
ção. A razão é porque agiram justamente no sentido oposto aos dos primei­
ros: “Em verdade vos digo que, sempre que o deixastes de fazer a um destes
mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer” (Lc 25.45). E interessante que
a condenação ou a salvação dependem do que as pessoas tiverem feito em
relação a Jesus. Ele é a base da salvação, Agir de maneira positiva em relação
a ele garante salvação, agir de maneira negativa garante condenação. Acima
de tudo, Jesus quis demonstrar a necessidade de vida autêntica. Ele mostrou
de modo muito claro, ao longo do seu ministério, qual era o tipo de discípulo
que o agradava. Não era aquele que se importava apenas com aparências,
0 dia do juízo 625

pois ele queria decisão de vida. Decisão que envolvesse profunda mudança
de caráter. Um discípulo deve se parecer ao máximo com o Mestre.
Da passagem citada acima, fica bastante evidente que, no mesmo julga­
mento, estarão os salvos e os perdidos. Na verdade, o objetivo desse julga­
mento é justamente demonstrar a diferença de destino que há entre esses
dois grupos. No dia do Juízo, que está descrito em Apocalipse 20, o qual
em seguida estudaremos, todas as pessoas, inclusive os crentes, estarão. O
fato de já estarmos salvos por Cristo, não retira a necessidade de compare­
cer perante o Juízo. Por outro lado, não significa que haja algum risco de
condenação para os que estão em Cristo Jesus (ljo 4.17). Paulo diz que nós,
os crentes, teremos que comparecer perante o tribunal de Cristo (2Co 5.10).
Do mesmo modo, Hebreus 10.30 diz que Deus julgará o seu povo. E Ro­
manos 14.10 diz que compareceremos perante o tribunal de Deus. Tudo
isso deve ser identificado com o mesmo dia do Juízo. O grande Juiz daquele
dia também já está designado: Jesus Cristo. Por sua obra de redenção, ele
conquistou o direito de julgar (Jo 5.27; At 10.42; Fp 2.10; 2Tm 4.1).

A insegurança dos ím pios


Como já dissemos, freqüentemente temos a impressão de que os ímpios
não são punidos neste mundo. Parece que eles geralmente acabam impunes
apesar de seus crimes. A prosperidade dos ímpios é o tema do Salmo 73.2
O salmista começa o salmo declarando a bondade de Deus: “Com efeito
Deus é bom para com Israel, para com os de coração limpo” (SI 73.1).
Parece, entretanto, que nem sempre ele teve toda essa convicção, pois no
versículo seguinte ele diz: “Quanto a mim, porém, quase me resvalaram os
pés; pouco faltou para que se desviassem os meus passos” (v. 2). O motivo
desse “quase desvio” não foi outro senão indignação diante da prosperida­
de dos perversos. Ele declara: “Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a
prosperidade dos perversos. Para eles não há preocupações, o seu corpo é
sadio e nédio. Não partilham das canseiras dos mortais, nem são afligidos
como os outros homens” (vs. 3-5). O salmista não conseguia entender como
poderia ser possível que pessoas tão más prosperassem e se safassem de
toda maldade que cometiam, inclusive a de falar contra Deus. Nada os
atingia, por isso ele derrama sua indignação: “Eis que são estes os ímpios; e,
sempre tranqüilos, aumentam suas riquezas” (v. 12). A indignação do salmista
diante da prosperidade impune dos ímpios se tornava ainda maior porque
ele próprio era continuamente afligido, por mais que se esforçasse em ser
626 Razão da esperança

justo e honesto. Ele diz: “Com efeito, inutilmente conservei puro o coração
e lavei as mãos na inocência. Pois de contínuo sou afligido e cada manhã,
castigado” (vs. 13,14). Essa é a expressão de alguém que não tem mais
esperança. Ele diz: foi tudo inútil, de nada adiantou eu me esforçar por
viver uma vida reta, pois isso só me trouxe ainda mais desgraças, mas os
ímpios estão sempre seguros, Com uma dor lancinante, o salmista chegou à
conclusão de que não existia justiça. E inegável que qualquer um pode che­
gar a essa conclusão, se analisar os fatos apenas da perspectiva humana.
As coisas só começaram a mudar para o salmista quando ele foi até o
santuário de Deus, e nas próprias palavras dele, atinou “com o fim deles”
(v. 17). Ele se lembrou de que Deus tem um juízo sobre todos os homens, e
entendeu que o fim dos ímpios está sempre à porta: “Tu certamente os
pões em lugares escorregadios e os fazes cair na destruição. Como ficam de
súbito assolados, totalmente aniquilados de terror! Como ao sonho, quan­
do se acorda, assim, ó Senhor, ao despertares, desprezarás a imagem deles”
(vs. 18-20). O salmista entendeu o quanto a posição do ímpio é insegura. A
qualquer momento, a calamidade pode se abater sobre ele, e ele não tem em
quem se refugiar. A qualquer momento, ele poderá ser tragado pela morte
e todas as suas esperanças se dissiparão. Portanto, a prosperidade e a segu­
rança dele são totalmente ilusórias. O salmista entendeu que os ímpios não
têm qualquer segurança, pois, a qualquer momento, Deus pode lhes pedir a
conta (Lc 12.15-21).
Por outro lado, ele começou a ver a sua própria situação com outros
olhos. E verdade que passava por aflições, mas tinha algo que os prósperos
ímpios não tinham: “Todavia, estou sempre contigo, tu me seguras pela
minha mão direita. Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na
glória. Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em quem eu me compraza
na terra. Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a
fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre” (vs. 23-26). A
convição de um Deus no céu que faz a diferença também na terra, encheu
o coração desse homem de esperança. A alegria voltou ao seu coração. A
confiança no Juiz que sabe julgar retamente sempre foi a marca dos verda­
deiros crentes (SI 50.6; 96.10).

O gra n d e ju lg a m e n t o
O fim dos ímpios acontecerá, segundo a Bíblia, no dia do Juízo Final. A
justiça de Deus garante que todos terão um julgamento justo. O Juízo Final
0 dia do juízo 621

vai deixar bem claro o quanto Deus é justo, quando todos os ímpios forem
condenados por suas obras. O livro do Apocalipse contém a mais impres­
sionante descrição do juízo do último dia:

Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença


fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os m or­
tos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono, Então, se
abriram livros. Ainda outro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos
foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito
nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entre­
garam os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as
suas obras. Então, a morte e o inferno foram lançados para dentro do lago
de fogo. Esta é a segunda morte, o lago de fogo. E, se alguém não foi
achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de
fogo (Ap 20.11-15).

Essa é uma passagem impressionante; como diz Kistemaker, “em cinco


versículos, João desvenda o fim do tempo cósmico e, assim, encerra a his­
tória do mundo”,3 Vários detalhes dessa descrição simbólica são importan­
tes para nós. O trono branco representa a justiça e a santidade de Deus. E
um trono imparcial. Ele não está comprometido, como muitas vezes os
juizes deste mundo estão, com os interesses dos poderosos. Ninguém po­
derá acusar esse trono de favorecer uns em detrimento dos outros. Absolu­
ta justiça prevalecerá no juízo. O aspecto do juiz supremo assentado no
trono é suficiente para percebermos que ele não pode ser coagido, pois
ninguém pode resistir a ele. Em seguida, João vê os que serão julgados,
Além dos mortos, é possível que os próprios demônios sejam julgados nes­
se momento. Inclusive, a Bíblia diz que os crentes terão alguma participa­
ção nesse ato de julgar os demônios (ICo 6.2,3), porém, não sabemos como
isso se dará.4 Os que serão julgados estão todos em pé diante do trono.
Essa é a posição de ouvir a sentença. Nesse julgamento não são necessárias
acusações ou defesas, pois tudo está descrito nos livros que são abertos. Ou
seja, a verdade está diante de todos, Ninguém pode fugir aos fatos. Deus
tem todas as provas de todos os crimes, dos menores aos maiores, no seu
arquivo celestial, e, no dia do juízo, tudo isso virá a lume. Imagine o assas­
sino vendo seus crimes “um por um”, e ouvindo as suas próprias palavras
de blasfêmias e ofensas, agora, porém, diante do Todo-poderoso. Esse será
o mais horripilante filme de terror, pois cada ímpio assistirá ao filme de sua
própria vida. Mas os crentes também verão. Seus pecados secretos serão
expostos nesse momento. Embora sejam, como diz Berkhof, “pecados
628 Razão da esperança

perdoados”,5 como disse Jesus, nesse dia, teremos que dar conta de cada
palavra frívola (Mt 12.36).
As obras, porém, não são a base da salvação ou da condenação de nin­
guém. O que decide é o nome estar ou não inscrito no livro da vida, confor­
me a passagem assegura: “E, se alguém não foi achado inscrito no livro da
vida, esse foi lançado para dentro do lago do fogo” (v. 15). Além do aspecto
da eleição, aqui deve ser lembrada a obra da redenção. Todos os seres hu­
manos são pecadores e estão automaticamente condenados, mas o Senhor
providenciou uma salvação para todo aquele que crê, na pessoa de Jesus
Cristo, que assumiu o pecado do ser humano e foi condenado por ele.
Assim, as pessoas que crêem são as que têm o nome escrito no livro da
vida. No dia do Juízo Final, o livro da vida é aberto e quem tem o nome
inscrito nele vai habitar os novos céus e a nova terra. Quem não tem o
nome inscrito, será lançado no lago de fogo, que é o inferno definitivo. No
Juízo Final, todos já chegam com o destino eterno determinado, pois já
houve um pré-julgamento em vida, quando aceitaram ou recusaram a sal­
vação em Jesus Cristo. A Bíblia deixa isso bem claro: “Quem nele crê não é
julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do
unigénito Filho de Deus” (Jo 3.18). Isso quer dizer que o julgamento final é
mais uma questão de pôr as coisas em pratos limpos do que, propriamente
dito, decidir sobre a salvação das pessoas. O Juízo Final é absolutamente
necesário por uma questão de justiça. É o momento sublime, quando a
ordem do universo for restaurada, e todo mal for punido de modo público
e definitivo.
Há uma função para as obras nesse Juízo: recompensa ou punição. Isso
vale tanto para os salvos como para os perdidos. A Bíblia ensina que as obras
dão galardão aos salvos, ou seja, quanto mais as pessoas viverem segundo a
vontade de Deus nesta vida, mais recompensa terão no céu (Mt 5.12; 6.1; Mc
9.41; ICo 3.14; 2Jo 1.8; Ap 11.18; 22.12). E se há um galardão para os salvos,
é possível que haja um “galardão às avessas” para os perdidos. Talvez o que
está escrito nos livros abertos não só justifique a condenação dos ímpios,
como também implique diferentes níveis de condenação (Lc 12.47,48), em­
bora todos sejam lançados no mesmo lago de fogo e de lá jamais saiam.
Ainda deve ser dito que o padrão para o julgamento final não será igual para
todos. Embora a entrada no céu dependa unicamente da fé em Jesus Cristo,
a Bíblia deixa claro que, das pessoas que receberam mais benefícios de Deus,
será exigido mais (Lc 12.48; Mt 11.22). As pessoas que não conheceram a
Bíblia serão julgadas segundo o padrão da revelação natural e da própria lei
da consciência que Deus imprimiu no coração delas (Rm 2.12-16).
0 dia do juízo 629

Conclusão
O dia do Juízo será o dia da manifestação suprema da Justiça de Deus.
Nesse dia, as ovelhas serão separadas dos cabritos, os ímpios receberão a
pena devida por seus pecados, e os salvos desfrutarão da eterna bem-aven-
turança por terem confiado no Senhor e dependido inteiramente dele. Nes­
se dia, ficará muito evidente a diferença “entre o justo e o perverso, entre o
que serve a Deus e o que não o serve” (Ml 3.18). Na verdade, quando
Malaquias escreveu isso, o próprio Deus já havia demonstrado a razão des­
sa diferença. O povo de Israel estava questionando o Senhor. Eles diziam:
“Inútil é servir a Deus; que nos aproveitou termos cuidado em guardar os
seus preceitos e em andar de luto diante do S e n h o r dos Exércitos? Ora,
pois, nós reputamos por felizes os soberbos; também os que cometem im­
piedade prosperam, sim, eles tentam ao S e n h o r e escapam” (Ml 3.14,15).
Como se percebe, a questão da justiça sempre foi uma grande dúvida dos
fiéis. Porém, a resposta do Senhor é muito clara: “Eles serão para mim
particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o S e n h o r dos Exércitos;
poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve. Então, vereis
outra vez a diferença entre o justo e o perverso, entre o que serve a Deus e
o que não o serve” (Ml 3.17,18; ênfase acrescentada). No dia do grande
julgamento, aqueles que temem ao Senhor, serão tratados como “tesouro
particular”, como verdadeiros “filhos”. Os ímpios não desfrutarão desse
benefício. Se hoje a diferença pende para o lado dos ímpios, pois não ve­
mos os ímpios sendo punidos como deviam, naquele dia as coisas serão
muito diferentes. Por outro lado, isso é um consolo para as pessoas que
sofrem injustamente. Elas não devem se angustiar quando os “amigos de
Jó ” tentarem colocá-las para baixo dizendo que “se você está mal é porque
está em pecado”. Essa maneira simplista de ver a vida ignora que a Bíblia
não diz “o aqui se faz aqui se paga”, mas “o que se planta, colhe”, ainda que
a colheita não seja de todo realizada nesta vida, para bem ou para mal (SI
126.5,6; Pv 22.8).
50

A esperança da eternidade

Tudo o que foi estudado até aqui nos trouxe para este ponto final e
essencial da nossa esperança. A certeza de um “destino eterno” é o que dá
valia a tudo o que foi estudado até este momento. Todas as doutrinas con­
sideradas acima são importantes e verdadeiras, porque levam à considera­
ção do destino eterno. Se a nossa existência se resumisse apenas a esta vida,
seríamos, nas palavras do apóstolo Paulo, “os mais infelizes de todos os
homens” (ICo 15.19). Toda a nossa teologia, esperança e fé seriam fúteis e
sem nenhum sentido, se a única coisa que nos restasse fosse esta vida. Seria
sem sentido falar em revelação, em soberania de Deus, em expiação de
Cristo, em salvação, igreja, ou escatologia, se a vida atual fosse a única for­
ma de existência a que estamos confinados.
O destino eterno se refere ao estado de existência que os seres humanos
experimentarão depois da ressurreição dos mortos e do juízo final. Por
isso, de certa maneira, somente aí começará a eternidade para os homens, e
só então todos terão plena consciência disso. Será uma forma de existência
bastante diferente da atual. E possível que o próprio conceito de tempo
não exista mais, não pelo menos, como o conhecemos hoje. Todos os ho­
mens existirão eternamente, porém, o destino dos perdidos e o destino dos
salvos serão muito diferentes.

0 destino dos perdidos


O lago de fogo é o destino final dos perdidos (Ap 20.15). Esse lugar
aparece somente no capítulo 19 do Apocalipse. E interessante que, só no
final da Bíblia, a existência desse lugar tenha sido explicada. O lago de fogo
deve ser identificado com o lugar de punição definitivo de todos os ímpios.
E dito que a própria morte e o inferno são, depois do Juízo, lançados para
dentro do lago de fogo. Há uma diferença entre o inferno e o lago de fogo.
O inferno existe hoje, mas deve ser considerado como um lugar transitório.
632 Razão da esperança

As almas dos ímpios são atormentadas no inferno, porém, estão lá sem


corpo. No dia da ressurreição, mesmo os ímpios terão que ressuscitar para
o Juízo e, então, serão lançados para dentro do lago de fogo. Portanto, num
sentido, o lago de fogo é ainda pior que o inferno atual. Podemos considerá-
lo como o inferno definitivo.

Tentativas de m i n i m i z a r o j u l g a m e n t o de Deus

Uma questão que normalmente surge com respeito à punição dos ímpios
é a duração dela. A repugnância de muitos pela idéia de uma eternidade de
punição levou naturalmente ao pensamento de que o estado de punição
não pode ser eterno. Essa idéia não é nova. A doutrina católica do purgató­
rio já é uma tentativa de minimizar os efeitos do julgamento divino. O
purgatório seria um lugar intermediário entre o céu e o inferno para onde a
maioria das pessoas iria depois da morte. Assim, apenas um número pe­
queno iria para o inferno. Conforme a doutrina católica, todos os que estão
no purgatório têm chances de “purgar” os seus pecados e pagar pelos seus
crimes, podendo, depois de algum tempo, ir para o céu. A partir dessa pers­
pectiva, provavelmente um número bem pequeno, ao final, seria eterna­
mente perdido.
Um outro modo de minimizar o julgamento de Deus é o universalismo
soteriológico. Essa é a idéia de que, no fim das contas, todos serão salvos.
Os universalistas acreditam que a existência de um inferno seria algo in­
compatível com o amor e a bondade de Deus. Sendo assim, Deus em seu
imenso poder, achará alguma maneira de salvar todas as pessoas. Na histó­
ria da igreja, houve até defensores de que o próprio diabo e seus anjos
serão, de algum modo, salvos no fim.1 Alguns universalistas até concordam
que pode haver algum tempo de punição para os ímpios, mas que, no fim,
todos serão salvos. É evidente que, para manter essa posição, a Bíblia terá
que ser deixada de lado; por essa razão, essas idéias geralmente fluem dos
movimentos de teologia liberal, que desconsideram a inspiração e a iner-
rância da Escritura. Somente se o pecado do homem não for tão terrível
como a Bíblia o descreve, e somente se o sacrifício de Jesus for algo sem
valor, é que o universalismo soteriológico poderia ser viável.
Existe também a crença na extinção da alma. Como o próprio nome
sugere, os perdidos seriam aniquilados, ou seja, reduzidos a um estado de
não-existência. Essa posição é diferente do universalismo porque não de­
fende a salvação dos ímpios, mas diz que o inferno não é eterno. Depois da
morte e do julgamento, os ímpios serão lançados no inferno, onde serão
A esperança da eternidade 633

queimados, ou seja, destruídos. Os defensores dessa idéia questionam como


o fogo poderia queimar algo eternamente, pois, em algum momento, ele se
extinguiria. Portanto, a partir de algum momento, as almas deixariam de
existir. Admite-se a possibilidade de que haja variação de um perdido para
o outro, em termos de sofrimento que antecipa a extinção, mas no fim,
todos os ímpios simplesmente deixarão de existir. Um argumento que ge­
ralmente é usado para defender essa posição é que não poderia haver felici­
dade verdadeira no céu se os habitantes do paraíso soubessem que existe
um inferno cheio de pessoas sofrendo eternamente. Os mais famosos de­
fensores do aniquilamento são os Testemunhas de Jeová, mas muitos teó­
logos tradicionais simpatizam com essa idéia.

0 casti go eterno
Como já dissemos em outros capítulos, devemos deixar o futuro nas
mãos de Deus. Não cabe a nós determinar como deverá ser o futuro. Se
Deus quiser aniquilar os ímpios, ele o fará, e não caberá a nenhum de nós
qualquer questionamento. Porém, da perspectiva da interpretação bíblica
tradicional, parece muito difícil sustentar a doutrina do aniquilamento. Por
mais que este seja um tema difícil, e que talvez, todos nós até desejássemos
que houvesse um aniquilamento, o fato é que, a menos que estejamos inter­
pretando erroneamente os textos bíblicos, os ímpios realmente passarão a
eternidade sendo punidos no inferno.
Há um número muito grande de passagens bíblicas que falam sobre o
inferno. Há pelo menos cinqüenta textos da Escritura que falam direta­
mente do inferno ou da punição que os ímpios receberão. Nesse momento,
a nossa intenção é nos concentrarmos nas passagens que falam sobre a
duração dessa punição. Em Mateus 18.8, Jesus fala sobre um “fogo eter­
no”. Ele diz: “Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e
lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que,
tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno”. A imagem de
um fogo queimando eternamente leva necessariamente à idéia de que o
lugar de punição dos ímpios é eterno. Não haveria razão para o fogo ser
eterno se, em algum momento, os ímpios simplesmente deixassem de exis­
tir. No capítulo 25 de Mateus, Jesus volta a falar sobre este assunto. Ele fala
sobre a ocasião do julgamento final, quando separará as ovelhas dos cabri­
tos: “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-
vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus
anjos” (v.41). Logo à frente, ele explica o que significa esse estado: “E irão
63 4 Razão da esperança

estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna” (v.46). Jesus
chama o castigo dos ímpios de “eterno”, e o compara com a recompensa
dos salvos que é a vida “eterna”. Se o castigo dos ímpios não for eterno,
então, a vida dos salvos também pode não ser eterna. No Evangelho de
Marcos, temos algumas expressões ainda mais fortes de Jesus sobre o esta­
do de eterna punição dos ímpios. Ele diz: “E, se tua mão te faz tropeçar,
corta-a; pois é melhor entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos,
ires para o inferno, para o fogo inextinguível [onde não lhes morre o ver­
me, nem o fogo se apaga]” (Mc 9.43,44). Por três vezes Jesus fala desse
fogo inextinguível e desse verme que corrói e nunca morre. Ele está retra­
tando o sofrimento interior, pelo verme, e exterior pelo fogo. Ambos os
sofrimentos, segundo Jesus, são eternos. E possível que as expressões usa­
das pela Bíblia, como fogo, verme, trevas, etc., não devam ser entendidas
literalmente. Pode ser uma maneira de expressar em língua compreensível
coisas incompreensíveis para o homem. Porém, o elemento de duração
está bem claro nas passagens: é eterno.
Uma das passagens bíblicas mais claras sobre a punição eterna é 2
Tessaloniscenses 1.9: “Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, ba­
nidos da face do Senhor e da glória do seu poder”. Paulo está, evidente­
mente falando sobre os ímpios, e sobre o que eles enfrentarão na segunda
vinda de Jesus. A penalidade deles será “eterna destruição”, sendo banidos
da face do Senhor. A própria expressão “banidos” sugere continuar existin­
do, mas “longe de”. Eles existirão eternamente banidos da face do Senhor
em destruição eterna. O Apocalipse descreve um outro aspecto desse sofri­
mento eterno: “Também esse beberá do vinho da cólera de Deus, prepara­
do, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxo­
fre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. A fumaça do seu
tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não têm descanso algum, nem
de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem e quem quer
que receba a marca do seu nome. (Ap 14.10,11). Parece haver uma contra­
dição nessa passagem em relação à anterior, mas elas estão apenas enfati­
zando faeetas diferentes do sofrimento dos ímpios. Eles estarão ao mesmo
tempo “banidos da face do Senhor” e “atormentados na presença do Se­
nhor”. O banimento se refere à impossibilidade de acessar o favor divino.
Por outro lado, terão que encarar a face de ira do Cordeiro, porque são
merecedores da condenação. Para entendermos esse contraste entre o aban­
dono e a presença de Deus, devemos nos lembrar do que aconteceu com
Jesus na cruz. O próprio Jesus confessa que sofreu um abandono de Deus
(Mt 27.46). Então, num sentido, Deus abandonou o seu Filho na cruz, pois
A esperança da eternidade 635

virou o seu rosto de Jesus; isso significa que não mais o sustentou com a
sua graça. Porém, noutro sentido, o olhar de Deus permaneceu sobre Jesus,
mas era o olhar de ira. Do mesmo modo, os perdidos não estarão na pre­
sença de Deus, entendendo-se essa presença como favor, mas estarão na
presença de Deus, entendendo-se essa presença como ira. Com relação à
duração da penalidade que virá aos que se submetem à marca da besta, a
passagem diz que a fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos sécu­
los, e não têm descanso algum nem de dia nem de noite. Respeitando o
simbolismo da passagem, a duração eterna da punição está muito evidente.
Qualquer outra interpretação teria que forçar o seu sentido natural. Portan­
to, diante dessas passagens bíblicas, fica muito difícil sustentar idéias como
“universalismo” ou “aniquilamento”.

0 inf erno e o cristão

Qual deve ser a postura do cristão ao considerar a doutrina do inferno?


Primeiramente, ele não precisa temer o inferno. O inferno foi feito para o
diabo e seus anjos (Mt 25.41), e os homens maus irão para lá como conse­
qüência de seus pecados e por sua recusa em aceitar a salvação que Deus
providenciou.
Devemos considerar que o conhecimento da existência do inferno deve
conduzir o crente verdadeiro ao trabalho. Como diz Hoekema, “para nosso
empreendimento missionário, a doutrina do inferno deveria nos impulsio­
nar a um zelo e urgência maiores”.2 E, de fato, se percebemos que todos os
que morrerem sem Cristo, quer estejam do nosso lado, quer estejam no
outro lado do mundo, passarão a eternidade nesse lugar horrendo de puni­
ção, nosso coração deveria se comover a tentar resgatar alguns do fogo (Jd
22,23). Devemos nos lembrar, também, que Deus pode exigir de nós o
sangue alheio. Paulo entendia que Deus poderia cobrar dele, caso se recu­
sasse a pregar o evangelho, por isso, depois de passar três anos pregando
aos Efésios, pôde dizer: “Portanto, eu vos protesto, no dia de hoje, que
estou limpo do sangue de todos; porque jamais deixei de vos anunciar todo
o desígnio de Deus” (At 20.26,27). Ele entendia as coisas da seguinte ma­
neira: “Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre
mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho!”
(ver ICo 9.16). Isso nos faz lembrar da história do Antigo Testamento
sobre o atalaia descrito em Ezequiel 33. O atalaia era uma espécie de vigia
que se colocava na torre para observar a aproximação de inimigos. Se o
atalaia visse inimigos se aproximando e desse o aviso, caso as pessoas não
636 R am o da esperança

se importassem, e acabassem morrendo, o atalaia estava livre, pois havia


cumprido o seu papel. Porém, se visse o inimigo se aproximando e não
desse o aviso, ele teria que pagar pelo sangue dos que morressem (Ez 33.1 -
9). A doutrina do inferno fala ao cristão de suas responsabilidades.
Finalmente, diante do ensino bíblico de que tanto os homens como os
demônios serão punidos no inferno, não pode prevalecer o conceito popu­
lar de que o diabo é o chefe do inferno. O diabo nem sequer está no inferno
agora. Seu lugar é a terra (Ef 6.12; Ap 12.9,12). Satanás será lançado no
lago de fogo, para ser eternamente punido juntamente com todos os seus
anjos, após a vinda de Jesus. Ele não irá para lá para governar, mas para
sofrer, e de todos, certamente será o que mais sofrerá. Por outro lado, o
crente verdadeiro jamais irá para esse lugar. Se o Senhor Jesus sofreu a
penalidade do crente, e se o crente confia de todo coração nessa obra de
Jesus, e tem experimentado a transformação do Espírito, pode tranqüilizar
a sua alma.

0 destino dos salvos


Depois do grande dia do juízo, de acordo com a Palavra de Deus, os
salvos habitarão a nova terra que será conjuntamente recriada com os no­
vos céus. No estado atual, as almas das pessoas que morreram em Cristo
estão na presença de Deus, desfrutando o paraíso no céu, porém, essas
almas estão lá sem seus corpos. Por isso, o paraíso hoje é chamado de lugar
de descanso. As almas dos salvos devem descansar até o último dia, quando
ressuscitarão (Ap 6.11; 14.13). Depois da ressurreição, quando as almas dos
salvos se unirem a seus novos corpos, os redimidos serão levados a um
novo estado de existência mais pleno (ICo 15.35-49).
A Bíblia diz que haverá uma grande renovação que acontecerá no futu­
ro. Jesus falou que na sua vinda aconteceria a “regeneração” (Mt 19.28).
Isso certamente se refere ao momento em que Deus renovar os céus e a
terra. Pedro disse que Jesus ficaria nos céus “até aos tempos da restauração
de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos profetas
desde a antiguidade” (At 3.21). Assim, as profecias do Antigo Testamento
se cumprirão quando Deus renovar a terra. E Pedro diz novamente que, na
vinda do Dia de Deus, os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos
abrasados se derreterão (2Pe 3.12). E ele complementa: “Nós, porém, se­
gundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita
justiça” (v. 13). Tanto a terra como os céus serão renovados. Em Isaías 65 o
A esperança da eternidade 63 7

Senhor já havia prometido: “Pois eis que eu crio novos céus e nova terra; e
não haverá lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas”
(v. 17). E João viu numa visão o cumprimento dessa promessa: “Vi novo
céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já
não existe” (Ap 21.1). Após todos os cataclismas finais, quando Deus exer­
cer a sua justiça sobre o mundo decaído, e julgar todas as pessoas, ele reno­
vará toda a sua criação, incluindo a terra e o céu. Essa é a grande expectati­
va do povo de Deus.

A renovação da terra

Deus sempre se importou com a terra. O relato da criação diz: “No prin­
cípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém...” (Gn 1.1,2). Daí para a
frente, a terra ocupa o centro das atenções. Desde o início, a preocupação
principal do Espírito Santo foi revelar como a terra surgiu, e poucos detalhes
foram dados a respeito do céu. No plano de Deus, a terra foi o lugar ideali­
zado para a habitação dos homens. Desde o começo, Deus planejou que a
terra fosse o lugar onde o ser humano se realizaria: “Também disse Deus:
Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha
ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais
domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela
terra” (Gn 1.26). Foi somente quando o homem transgrediu a ordem de
Deus, que Deus amaldiçoou a terra: “E a Adão disse: Visto que atendeste a
voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses,
maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os
dias de tua vida” (Gn 3.17). Porém, sempre esteve no plano de Deus restau­
rar a terra. Por essa razão, Jesus foi enviado a este mundo. Ele veio aqui para
retirar a maldição. Não é sem motivo que João Batista tenha chamado Jesus
de “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Evidente­
mente que Jesus não tira os pecados de todas as pessoas do mundo, pois a
Bíblia não ensina o universalismo, porém Jesus tira o pecado do mundo (gre­
go: cosmos), porque veio aqui para eliminar os efeitos do pecado sobre este
mundo, Ele assumiu a antiga maldição, pois fez-se maldito ao ser pendurado
num madeiro (G1 3.13). O sacrifício de Jesus não apenas salva os pecadores,
mas é a fonte da restauração da própria terra amaldiçoada pelo pecado. Por
isso, Paulo fala da expectativa da criação:

A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.


Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa
638 Razão da esperança

daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida


do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angús­
tias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias
do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção
de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.19-23).

Por causa da redenção de Cristo, há uma redenção também para a cria­


ção. Quando os filhos de Deus receberem seus corpos novos, a terra tam­
bém será renovada. Nessa terra, a maldição será totalmente retirada, pois
João diz: “Nunca mais haverá qualquer maldição. Nela, estará o trono de
Deus e do Cordeiro. Os seus servos o servirão” (Ap 22.3).
Quando João diz que na nova terra o mar já não existe (Ap 21.1), não
sabemos se isso é literal ou simbólico, mas possivelmente seja simbólico. O
mar pode representar os distúrbios que assolam o mundo. A não-existência
do mar implicaria num estado de total tranqüilidade. A nova terra será ca­
racterizada pela paz e pela prosperidade. Nela, certamente se cumprirão
todas as promessas do Antigo Testamento que ainda não se cumpriram,
sobre a prosperidade do povo de Deus. Se não houvesse a nova terra, pos­
sivelmente essas profecias ficassem sem cumprimento. Elas não poderiam
ser cumpridas, se o futuro reservasse para nós apenas um estado incorpóreo
de existência, em algum lugar celestial. Porém, como o futuro é concreto e
terreno, as expectativas do Antigo Testamento se cumprirão. Entretanto,
não devemos considerar literalmente os elementos preditos, que às vezes
falam de montes produzindo mosto e leite (J1 3.18), bem como de pessoas
morrendo jovens aos 100 anos de idade (Is 65.20). Evidentemente que são
símbolos de prosperidade e de paz que estarão presentes na nova terra, não
apenas por mil anos, mas para sempre. Quando o Senhor renovar a terra,
então, os justos habitarão nela, para se cumprir o que Jesus disse: “Bem-
aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5.5). Especialmente a
questão do trabalho deverá ter importância na nova terra. Quando Deus
criou o homem, ele o colocou numa esfera de três relacionamentos: havia a
responsabilidade espiritual, a responsabilidade social e a responsabilidade
cultural. Desde o iníeio, o plano de Deus para o ser humano incluía o traba­
lho, a família, o lazer e, acima de tudo, o culto. Talvez não haja razão para
excluirmos nenhum desses elementos da nova terra. No plano espiritual,
Deus estabeleceu o sábado para o culto, e deixou a sua imagem impressa no
ser humano para que houvesse um relacionamento verdadeiro e íntimo
entre o criador e a criatura. No plano social, Deus fez a mulher para o
homem constituir família, e assim houvesse um relacionamento de ajuda e
A esperança da eternidade 639

complementação. No plano cultural, Deus colocou o cosmos inteiro à dispo­


sição do ser humano, a fim de que explorasse responsavelmente todas as
suas riquezas. No ambiente desses relacionamentos, o ser humano experi­
mentaria a sua completa realização. Portanto, se o trabalho desde o início
esteve no plano de Deus, não há razão para pensar que não esteja no futuro.
Certamente não seremos desocupados flutuando de nuvem em nuvem, Po­
rém, certamente não será um trabalho que traga canseiras e frustrações, pois
isso acontece por causa do pecado (Gn 3.17-19), e lá, não haverá pecado.

A r enovaç ão dos céus

Segundo a Bíblia, não apenas a terra passará por um processo de reno­


vação, pois o próprio céu será renovado. E difícil não perguntar sobre o
“porquê” da renovação do céu. A Bíblia terá que dar a resposta. A Bíblia diz
que o sacrifício de Jesus fez reconciliação de coisas na terra e no cêu (Cl 1.20;
ênfase acrescentada). De alguma maneira, aparentemente o pecado deixou
seus efeitos até mesmo no céu. Precisamos lembrar que a rebelião de Sata­
nás aconteceu no céu, e ele convenceu muitos dos anjos de Deus a segui-lo
em sua luta contra Deus. Até a ascensão de Cristo, Satanás continuou tendo
algum acesso à presença de Deus (Jó 1.6; Ap 12.7-9). E possível que a
renovação dos céus tenha algo a ver com o desejo de Deus de não deixar
nenhum registro do pecado. Deus quer a sua criação inteiramente renova­
da, e isso inclui tanto o céu quanto a terra,
Mas certamente, a principal razão para a renovação do próprio céu tem
a ver com a disposição de Deus de estar perto do ser humano. Quando
João viu os novos céus e a nova terra, viu descendo do céu a cidade santa,
a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como
noiva adornada para o seu esposo (Ap 21.2), Seja qual for o significado
dessa cena, ela fala-nos do relacionamento pessoal que Deus deseja man­
ter com o seu povo, pois uma voz vinda do trono exclamou: “Eis o taber­
náculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos
de Deus, e Deus mesmo estará com eles” (Ap 21.3). Nos novos céus e
nova terra, não haverá separação entre o céu, a habitação de Deus (lRs
8.30, Is 66.1), e a terra, a habitação dos seres humanos. Na nova terra, não
haverá a necessidade de santuários, conforme João diz: “Nela, não vi san­
tuário, porque o seu santuário é o Senhor, o Deus Todo-poderoso, e o
Cordeiro. A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem
claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é a sua lâmpada”
(Ap 21.22,23), A presença plena de Deus na terra mostra que os céus têm
640 Razão da esperança

vindo à terra. Terra e céus passaram a estar interligados. Nenhuma imagem


poderia ser mais forte, nesse sentido, do que a que descreve o próprio
trono de Deus na terra: “Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os
seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o
nome dele. Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de candeia,
nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão
pelos séculos dos séculos” (Ap 22.3-5). O Antigo Testamento é muito en­
fático em descrever que o trono de Deus está no céu. Em Isaías 66.1, o
próprio Deus diz: “O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus
pés”. Na recriação, a terra deixará de ser apenas o “estrado” para ser a Sala
do Trono. Por essa razão, esses dois lugares estarão definitivamente uni­
dos, não haverá mais separação entre a habitação dos homens e a habita­
ção de Deus. Portanto, os habitantes da nova terra serão também habitan­
tes dos novos céus. A terra e o céu serão uma só coisa, o lar de Deus e dos
homens. Essas imagens, como diz Pohl, “significam a comunhão perfeita
entre Deus e o ser humano, ou que o ser humano, sem qualquer perturba­
ção, está em casa junto com Deus”.3
Uma questão que precisa ser considerada é se os novos céus e a nova
terra serão totalmente diferentes dos atuais ou se haverá alguma continui­
dade. Provavelmente haverá tanto continuidade como novidade, Como já
dissemos num estudo anterior sobre o corpo da ressurreição que será tanto
um corpo novo como uma continuação do atual, também o novo universo
será uma continuação do atual, mas ao mesmo tempo será novo. Será um
lugar de prazeres indescritíveis, onde os santos viverão uma vida cheia de
significado e realização. Eles poderão usar suas vidas eternas, livres de qual­
quer imperfeição, servindo-se de suas imensas capacidades, para glorificar
eternamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. E participarão dos eter­
nos propósitos de Deus para o mundo vindouro.
Quanto à questão das lembranças, há um sentido em que não mais nos
lembraremos das coisas ruins. Isaías disse que nos “novos céus e nova ter­
ra” não haveria lembrança das coisas passadas e nem memória delas (ver Is
65.17). Evidentemente que, se alguma coisa pode nos fazer infelizes, essa
coisa não existirá no paraíso restaurado. No entanto, não devemos pensar
que esqueceremos de tudo. Será que poderíamos esquecer da própria re­
denção? Como esquecer que Cristo morreu pelos nossos pecados? Deus
nunca apagará de nossa memória o fracasso da declaração de independên­
cia do homem, para que o homem sempre se alegre em depender de Deus.
Também é certo que reconheceremos uns aos outros, pois o próprio Jesus
disse que Abraão, Isaque e Jacó poderiam ser reconhecidos no reino de
A esperança da eternidade 641

Deus (ver Lc 13.28). Mas nada poderá nos fazer sofrer, porque lá não há
mais qualquer tipo de sofrimento (ver Ap 21.4).
Cabe ainda uma palavra sobre a recompensa dos justos. Segundo a Bí­
blia, os justos desfrutarão da vida eterna. Porém, a eternidade não é a carac­
terística única dessa vida, pois, no sentido temporal, mesmo os ímpios vive­
rão eternamente no inferno. E a qualidade dessa vida eterna que se destaca.
Os santos desfrutarão da presença eterna e benéfica de Deus, experimen­
tando a vida na sua plenitude, “sem nenhuma das imperfeições e dos dis­
túrbios da presente vida”.4 Uma das principais bem-aventuranças dos habi­
tantes do futuro universo é que verão a Deus. Jesus disse: “Bem-aventura­
dos os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5.8). E João diz: “Ama­
dos, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havere­
mos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a
ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (ljo 3.2). Poderemos ver a
plena presença de Deus na face de Cristo. Esta, sem dúvida, será nossa
maior recompensa.
No futuro, quando adentrarmos a nova terra e o novo céu, desfrutare­
mos de todas as bênçãos de Deus na sua plenitude. Não haverá qualquer
separação entre a terra e o céu e, conseqüentemente, nenhuma separação
entre o ser humano e Deus. Todos os crentes ressuscitados ou transforma­
dos adentrarão as portas da eternidade, e viverão sempre a glorificar a Deus
e ao Cordeiro. Essa é a nossa grande e bendita esperança. Quando estiver­
mos lá, poderemos louvar a Deus infinitamente pela revelação, pela criação,
pela redenção, e até pela queda, que nos fez conhecer mais da sua graça.
Porém, ao mesmo tempo em que olhamos para o futuro e nos enchemos
de esperança, precisamos viver plenamente o presente. Para dar a ratção da
esperança não basta apenas ter conhecimento intelectual das coisas que aqui
foram estudadas, é preciso praticar, pois toda a nossa vida precisa ser trans­
formada pela esperança. Como disse Calvino: “A esperança não é mais do
que o alimento e a força da fé”.5
Notas
Introdução
Jo ã o C alv in o , A s Pastorais, São P aulo : P aracleto s, 1998, ( lT m 6.3), p. 164-165.
V er M ich ael H o rto n , As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 19.
A liste r M c G rath en te n d e q ue a elitização da teo lo g ia tem sid o um a das co isas m ais p reju d iciais nestes
dias m o d ern o s. E le diz: “ O d istan ciam en to do m u n d o acad êm ico das realid ad es da v id a d iária está
estrita m en te ligad o , ao m en o s n a p ercep ção p o p u lar, co m o elitism o d o m u n d o a cad êm ico ” (A lister E.
M c G rath . “T h e o lo g y and T h e F u tu res o f E v an g eiicalism ” . In The futures o f Evangelicalism. O rg. C raig
B arth o lo m cw , R o b in P a rry c A n d rew W est, p. 27).
V er Jo h n Sto tt, A Mensagem de Atos> p. 87.
A In tro d u ç ã o , ta m b é m ch a m ad a d e P ro lc g ô m e n a , trata d o s assu n to s in tro d u tó rio s à teo lo g ia . A
T eo n to lo g ia estu d a o ser e as o b ras de D eus. A A n tro p o lo gia é o estu d o d o se r h u m an o , d a criação e da
q u ed a à lu z da E scritu ra. A C risto lo g ia estu d a a pesso a e a o b ra de C risto. A So terio lo gia é o estu d o da
salvação con qu istad a e aplicada. A P neum ato lo gia estuda a pesso a e a obra do E spírito Santo. A E clesiologia
estu d a a ig reja e os m eio s de g raç a. A E scato lo gia d iz respeito ao estu do d as ú ltim as coisas.

Capítulo 1
O s teó lo g o s ch a m am a p rim eira das oito d iscip lin as da teologia sistem ád ea de Introdução ou Prolcgomena.
T rata-se da p arte q ue trata das questõ es in tro d u tó rias à teo lo g ia, co m o a R evelação (G eral e E sp ecial), os
pressu p o sto s filo só fico s, a fu nção e o m éto d o d a teologia, etc. N este trabalho , sim p lificam o s b astan te
essa p a rte , tratan d o ap en as da questão da R evelação, e m ais esp ecificam en te d a R evelação E special.
D eix am o s de lad o tod o tipo d e esp ecu laçõ es o u naturalism o.
A n selm o falou so b re a necessid ad e de en ten d er a fé, e que isso é u m tipo de “ d esejo ” da fé (Ver K arl
B a rth , F é em Basca de Compreensão, p. 28).
A p ersp ectiv a ad o tad a aq u i é de q ue a fé po d e ser co m p reen d id a, p o rém , não no sen d d o ilu m in ista de
q ue se crê ap en as no que se po d e co m p re en d er (Ver Stan ley J. G renz & R o ger E . O lso n , Teologia do Século
20, p. 16). M u ito s asp ecto s da fé p erm an ece m além da co m p reen são h u m an a, m as jam ais receb em o s
p erm issão para c ru z a r os braços.
A revelação g e ra l, q u e tam b ém é ch am ad a de revelação natu ral, diz resp eito à revelação q ue D eu s faz de
si m esm o e que p o d e se r v ista n a n atu reza, no m o d o com o D eus co n d u z a H istó ria e na p ró p ria co n sti­
tu ição do ser hu m ano . O p ro p ó sito d essa revelação não é red im ir, m as d em o n strar a g ló ria de D eu s
co m o cria d o r (ver SI 19 .1 -6 ; Rm 1.18-32). A E scritu ra d iz que os “ céu s p ro clam am a g ló ria dc D eu s” (SI
19.1), e q u e D eu s re v e lo u a su a d iv in d ad e e os seus atrib u to s p o r m eio das co isas q u e foram criad as (R m
1.20). P o rtan to , a criação é a u m a m an eira de D eu s m an ifestar a su a ex istên cia e a sua g ló ria p ara as
p esso as. N o en tan to , d ev em o s o b serv ar que a revelação natural é sem pre sobrenatural no sen tid o dc que
p arte sem p re d elib erad am e n te de D eus.
P ara u m a ex celen te ex p o sição so bre In sp iração e In errân cia da B íb lia, ver: H erm isten M aia P ereira da
C o sta, A Inspiração e Inerrância das Escrituras. São P aulo : E d ito ra C ultura C ristã, 1998.
O s au tó grafo s são os escrito s o rigin ais, os q ue saíram da pen a dos escritores.

Capítulo 2
A m atéria estu d ad a a p a rtir d este cap ítu lo faz p arte d a d iscip lin a q ue os teó lo go s ch am am de Teontologia.
E la d iz re sp eito ao estu d o d o ser e. d as obras de D eus.
L o u is B e rk h o f, Teologia Sistemática , p. 2 2 . O p ró p rio B e rk h o f n ã o a d m ite u m a a c e ita ç ã o c eg a da
e x istê n c ia de D eu s p e la fé. B e r k h o f a d m ite q ue a fé n ã o é u m a fé c e g a , m as b a se a d a em p ro v as.
S e g u n d o ele, e ssa s p ro v a s v e m em p rim e iro lu g a r d a E s c ritu ra e em se g u n d o lu g a r d a re v e la ç ã o g e ra l
(pp. 2 2 ,2 3 ).
O co n ceito de F ran cis Sch aeffer é m u ito in teressan te. E le traça u m a lin h a e a cham a de lin h a do d eses­
p ero. A cim a da lin h a, ficam os q ue acred itam em ab so lu to s; ab aixo da lin h a ficam os q u e já não crêem
cm abso luto s. N a su a o b ra O Deus que Intervêmi pp. 2 5-88, Sch aeffer define a o rd em p ela q u al as pesso as
co m eçaram a u ltra p a ssa r a lin h a do desesp ero . S egun d o ele, tudo co m eço u com a F ilo so fia, d ep o is foi a
v ez da A rte, d ep o is a M ú sica, d ep o is a C u ltu ra G eral e, p o r fim , a T eologia. Q u an d o se d eixou de
644 Razão da esperança

a cred ita r em ab so lu to s, e D eu s é ab so lu to p o r ex celên cia, nào restou co isa algum a para crer, d c m o do
q u e só resta o d esesp ero o u o nihilism o.
4 T eísm o é a cren ça em D eu s co m o o rig in ad o r e su sten tad o r de toda a criação.
5 B ertran d R u ssel, Why I Am N ot a Christian. N ova Y ork: Sim o n and Sch u ster, 1957, p 107. A pud A lvin
P lan tin ga. W ananted Christian R eltef p. 227.
6 A b rah am K u yp er, Calvinismo, p. 137-138.
7 A b ra h a m K u yp er, Calvinismo , p. 122.
8 A b rah am K u yp er, Calvinismo, p. 123.
9 O d esen v o lv im en to d essa tese de P lan tin ga pode se r en co n trad o in Jam es F. S en n ett, The Analytic Tbeist
—A n Alvin Plantinga Reader, pp. 72-96. O argu m en to a segu ir segue a ab o rd agem d e Jo h n C o o p er, co n fo r­
m e su a A p o stila de A u la (nào p u b licad a), de um m ó d u lo de C o sm o visão R efo rm ad a, lecio n a d o no
C en tro P re sb iteria n o d c P ó s-G rad u aç ão A n d rew Ju m p e r —SP, em 2002. Jo h n C o o p er segue a a rg u m en ­
tação d e P la n tin g a , seu colega.
10 A teoria q u e d iz q ue n ad a p o d e ser con hecid o .
11 V er Ja m e s F. S en n ett, The Analytic Tbeist - A n Alvin Plantinga Keader; pp. 22-49.
12 É claro q u e isso nào será o p rin cip al elem en to a im p ed ir o p ecad o do h o m em . O p ró p rio D eu s é q uem
g a ra n tirá q ue o h o m em restau rad o n ào to rn e a cair.
13 F ran cis S ch aeffer, O Deus que se Revela, pp. 68,69.
14 O m al d eix ará d e e x istir não p o rq ue será an iq uilad o , m as p o rq ue será co n fin ad o a u m a prisão, o lago dc
fo go , d e on d e jam ais p o d erá sair para ex erce r in flu ê n cia no vam ente (A p 20.14).
15 P ara u m a an álise m ais co m p leta dos argu m en to s co m p o n to s favoráveis e crítico s, ver: C h arles H o d ge,
Teologia Sistemática, pp. 153-180.
16 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , pp. 175,176.
17 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática, p.lOO.
18 E stam o s cien tes d o a cirra d o d eb ate ex isten te entre os teó lo g o s re fo rm ad o s a re sp eito d a cap acid ad e
h u m an a de re co n h e c e r a ex istên cia da d iv in d ad e a p a rtir da re v e lação g eral. Q u an d o a q u estào se refere
ao s “ efeito s n o étic o s d o p ec ad o ” , é d ifíc il en c o n trar co n co rd ân cia, m esm o entre refo rm ad o s. Q u estõ es
co m o : “ É p o ssív el co n h ecer a D eus p o r m eio d as o b ras d a n atu rez a?” ; “E x iste a p o ssib ilid ad e de se fazer
teo lo g ia n a tu ra l?” ; “A té que p o n to a razão hu m an a é in ad eq u ad a p ara co n h ecer D eu s?” ; cau sam tensões
a té m esm o en tre os m ais ard o ro so s d efen so res da R efo rm a. P o d em o s d izer q u e, h isto ricam en te , os
teó lo g o s re fo rm a d o s, q uan to a essa questão , b asicam en te têm se en fileirad o atrás de d u as p o siçõ es: 1)
O s efeito s são tão d ev astad o res que im p ed em que o h o m em o b ten h a co n h ecim e n to n ào d isto rcid o
so b re D eu s à p arte d a re v e lação esp ecial. 2) O s efeito s nào são tão terríveis a p o n to d e im p ed ir q u e o
h o m em tenh a algu m en ten d im en to d e D eus a p artir d a revelação n atu ral; o p ro b lem a está na su a re sp o s­
ta v o litiv a a essa revelação. O s q ue d efen d em a p rim eira p o sição são g eralm en te co n h ecid o s p elo no m e
de “ P rc ssu p o sicio n alista s,> o u “ F id eístas” , c entre os seus m ais co n h ecid o s defen so res está C o rn eliu s
V an T il, um teó lo g o d e W estm instcr, q ue n eg a a p o ssib ilid ad e de co n h ecim en to v erd ad eiro d e D eu s à
p a rte da re v e lação esp ecial (V er C o rn eliu s V an T il, The Defense o f the Vaith. F ilad élfia: P re sb y te rian &
R e f o rm e d , 1 9 5 5 , p. 2 6 2 ). A se g u n d a p o siç ã o c c o m u m e n tc d e n o m in a d a “ E v id e n c ia lis m o ” o u
“T ra d icio n a lism o ” , e assu m e u m lad o b em op osto . N essa lin h a en co n tram o s B en jam m in B. W arfield ,
q u e faz p arte d a esco la c h am ad a “ O ld P rin çeto n ” , e que d efen d e a tese de q u e o in créd u lo p o d e fo rm u lar
u m a teo lo g ia a p a rtir da revelação geral, sem a n ecessid ad e d a revelação esp ecial (Ver B. B. W arfield. The
Inspiration and Authority o f the Bible, pp. 73-78. V er tam b ém B. B. W arfield. Studiesin Theology. N o va York:
O xfo rd U n iv ersity P ress, 1932, pp. 110,111).
19 A g o stin h o , The Cottfessions o f Saint Augustin, I. t .
20 Jo ã o C alv in o , Institucion de la Religion Cristiana, I, 5 ,1 2 .
21 A lv in P la n tin g a , Warranted Christian Belief p. 175,
22 F ran cis S ch aeffer, O Deus Q ue Se Revela, p 52.
2,1 H crm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 17.

Capítulo 3
1 R. C. S p ro u l, Verdades Essenciais da F é Cristã. C ad ern o I, p. 33.
2 M esm o K an t aceitava a id éia d a existência de D eus, e entendia que ela po dia ser estab elecida a p artir do
senso de m o ral da hum anid ad e. Porém , K an t fez u m d esserviço à teologia e à p ró p ria filosofia, ao relegar
D eu s à catego ria do “n ú m en o ” . D esse m o d o, D eu s não po deria ser realm en te con hecido , po is ficaria em
o u tra dim ensão. K an t, c sua critica da razão pura, abriu espaço p ara o s filósofos relativistas d os n o ssos dias.
Notas 645

3 C f R. C. S p ro u l, Verdades Essenciais da F é Cristã, C ad ern o I, p. 43. P o rém , não se deve co n fu n d ir con tra-
d ição co m parad o xo . C o n trad ição refere-se a d ois elem en to s m u tuam en te excluden tes. Q u an d o a nossa
teo lo g ia é co n tra d itó ria , n em D eu s a p o d erá harm o n izar. Ü p arado xo tem a ver, p o rém , co m o g ra u do
co n h ecim en to . A lg o para nós po d e p a recer co n trad itó rio sim p lesm en te p elo fato de q u e nào tem o s
co n d içõ es d e en te n d ê-lo plen am en te. E assim q u e se re lacio n am as d o u trin as da so b eran ia de D eu s e da
resp o n sab ilid ad e h u m an a, send o am bas en fatizad as pela E scritu ra, co m o v ere m o s adian te. A o m esm o
tem p o em q ue D eu s é so b eran o , o h o m em é resp o n sáv el p elo s seus atos. N isso n ào h á co n trad ição ,
ap en as u m parad o xo . P o d em o s ch am ar tam b ém esse co n ceito de “p arad o xo ló g ico ’*.
4 H . C. C am p o s, O Ser de Deus e os seus Atributos, p. 69.
5 D av id S. C la rk , Compêndio de Teologia Sistemática , p. 64.
6 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática, p. 103.
7 J. I. P acker, O Conhecimento de Deus. p. 11.
8 A p alav ra “ n ih il” é latin a e sign ifica “n ad a” . A filo so fia nih ílista não vê sign ificad o em co isa alg u m a, e
en ten d e q u e a v id a nào tem q u alq u er sen tid o o u propósito.

Capítulo 4
1 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Pui, Deus o Filho , p. 114.
2 H erm an B av in ck , Our Rtasonable Faith, p. 145.
3 P ara u m a ex celen te ex p o sição a respeito dos co n flito s a resp eito da T rin d ad e d esse p erío d o , v er L o uis
B erk h o f, Historia de l^as Doctrinas Cristianas, pp. 47-119.
4 N o C o n cílio d e T o led o (589 d .C .) foi acrescen tad a a ex p ressão “e d o F ilh o ” , resu m in d o a d o u trin a da
ig reja O cid e n tal de q u e o E sp írito p ro ced e do Pai e d o F ilh o con jun tam ente.
5 V er G erard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol I, p. 32.
6 E m b o ra algu n s v eja m na re p etição d o s ad jetivo s “ san to , san to , san to ” em Isaías 6.3 u m in d icio claro da
T rin d ad e, não d esejam o s ir tào lo n g e, po is na lín gu a h eb raica a re p etição v isa en fa tiza r o q u e está sendo
dito. O m esm o talvez n ào p o ssa ser d ito de D an iel 9.19 e Isaías 33.22.
7 V er ex celen te estu d o so b re e ssa p assag em in H erm an B av in ck , The Doctrine oj God> pp. 2 65,266 . P ara um a
o p in ião c o n trá ria , v er Jo h n S tto t, 1,11,111 João - Introdução e Comentário, p .l 55.
8 Jo ã o C alv in o , Instituías , 1 , 13, 21.
9 B e rk h o f fala d a d iferen ça en tre “ essên c ia” e “ su b stân cia” e d a ten d ê n cia m o d ern a d e n ão u sar os dois
term o s com o sin ô n im o s p elo fato de q u e, n a ig reja O rien tal, “ su b stân cia” trad u zia tanto “ o u sia” com o
“h ip o sta sis” , sen d o , p o rtan to , u m term o am b ígu o (V er L. B erk h o f, Teologia Sistemática, pp. 88,89).
10 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática^ p. 95.
11 A ig re ja o rien tal (C ató lica O rtod oxa) nu n ca aceito u essa form ulação.
12 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 98.
13 V er A u gu stu s N. L o p es, O Culto Espiritual, pp. 64,65.
14 D. M . L h o yd -Jo n es, Deus o Pai, Deus o Filho, pp. 122,123.
15 R ica rd o B arb o sa d e S o u sa, O Caminho do Coração, p. 80.
16 H erm an B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 155.

Capítulo 5
1 V er 2 S am u el 2 2 .2 ; Salm o 18.2; H ab acu qu e 1.12.
2 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 61.
3 W illia m G. T. S h ed d , Dogmatic Theology, p. 347.
4 E ssa teo ria é d en o m in ad a “ teísm o a b e rto ” , ou teologia relacion al.
5 V er W illia m G. X S h ed d , Dogmatic Theology, p. 397.
6 Ê n ecessário q ue se en ten d a q ue há pro m essas in co n d icio n ais e prom essas con dicio nais de D eus. A qui,
estam o s tratan d o das pro m essas in co n d icio n ais; m ais à frente falarem os so bre as prom essas condicionais.
7 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 62.
8 A . W P in k , Los Atributos de Dios, p. 52.

Capítulo 6
1 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 74.
2 W illiam H en d rik sen , Mateus , V ol. 1, p. 441.
6 46 Razão da cspenmça

3 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 75.


4 Ver A . VK P in k , Los Atributos de Vios, p. 83.
5 11. C. S p ro u l, Verdades Essenciais da Fé Cristã , C ad ern o I, p. 48.
6 B e rk h o f diz q ue C risto m ereceu para os p ecad o res m ais do q ue o p erd ão dos pecado s. E le os tornou
h erd eiro s da v id a etern a (G 14 .7 ), lib erto u -o s d a lei co m o co n d içào p ara a v id a, fez co m q u e o preceito da
lei se cu m p risse nos cren tes (R m 8.3 ,4 ), fez d eles “ju stiça de D eu s” (2C o 5.21) (ver L o u is B erk h o f,
Teologia Sistemática, p. 381).

Capítulo 7
1 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Grafa , p. 11.
2 V er J. I. P acker, A Evangelização e a Soberania de Deus, pp. 16-18.
3 E sse co n fo rto só será po ssív el se a q uestão nu nca for an alisad a m ais p ro fu n d am en te , e se os elem en tos
b íb lico s nu n ca fo rem ab o rd ad o s com h o nestidade.
4 C o n fissão de F é, III, 1.
5 V er L o ra in e B o ettn er, The Reformed Doctrine o f Prédestination , p. 242.
6 C itad o p o r A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 150.
7 R icard o B arb o sa de S o u sa, O Caminho do Coração, p. 163.
8 E sse co n ceito será estu d ad o m ais à frente.
9 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, pp. 230,231.

Capítulo 8
1 O Jo rn a l Folha Universal da Ig reja U niversal d o R eino de D eu s u sou esse term o.
2 Á q u in o (1 2 2 5 -1 2 7 4 ) escrev eu : .O co n ceito d e p red estin a çã o p ressu p õ e a eleição , e esta , o a m o r (..,).
P o r o n d e , to d o s os p red estin a d o s sào eleito s e am ad o s. (S. T om ás de A q u in o , Suma Teolósica, V ol. L
1 .23.4. p. 2 3 5 ).
3 L u tero , falan d o so b re a p red estin ação , disse: “D u as co isas o b rigam à p regação da pred estin ação . A
p rim eira é a h u m ilh a çã o do n o sso orgu lh o e o re co n h ecim en to da graç a de D eu s; e a segu n d a é a
n a tu rez a da fé crista em si m esm a ” (M artín h o L u tero, De Servo Arbitrio, in E. G o rd o n R u p p c P h ilip S.
W atso n (orgs.), L uther and Erasmm: F m W iü and Salvation, p. 137).
4 M u ito s re jeitem a id éia d e q ue a Confissão de Westminster se ja realm en te u m a co n fissão calv in ista, po is
acred itam q u e os teó lo g o s p u ritan o s m o d ificaram o p en sam en to de C alvino. N o en tan to , en ten d em o s
q u e, a C F W re fle te co n sisten tem en te o p en sam en to do re fo rm a d o r d e G en eb ra. T ratam o s um p o u co
d esse assu n to n a n o ssa d issertação d e m estrad o ; v er u m resu m o da m esm a na re vista Fides Reformata-.
L e an d ro A n to n io de L im a , “ C alv in o E n sin o u a E x p iação L im itad a?” , vol. 9, n . l , 2 0 0 4 , São P aulo : C en ­
tro de P ó s-G rad u aç ão A n d rew Ju m p e r, p. 77-99.
5 C o n fissão de F é d e W estm in ster, III, 3.
ó V er S ta n le y J. G ren z e R o ger E . O ison, A Teologia do Século 20, p. 87. B ru n n er (1 889-19 66), o u tro teólogo
d a n eo -o rto d o x ia, en ten d ia q ue p red estin ação é apen as u m a q uestão de fé; assim , aqu ele q u e crê é eleito
e aq n ele q ue n ã o crê é repro vad o . A co n cep ção d e B ru n n er é m uito p ró x im a da d e A rm ín io . V er S tan ley
J. G renz e R o ger E . O iso n , A Teologiado Século 20,p. 101.
7 P ara v er a ap licação d esses term o s antes e d ep o is da R efo rm a , v er F red H . K lo o ster, Su p ralap sarism o , in
W alter A . E lw ell (org,), Enciclopédia Histórico-Teológiça da Igreja Cristã, V ol. III, p. 4 2 4 -4 2 5 ; S u p ra lap su m , in
R ich ard A . M u ller, Dictionaty o} luttin and Greek Theological Terms, p. 292.
8 V er L o rain e B o etn er, The Reformed Doctrine o f Prédestination , pp. 126,127. V er tam b ém L o uis B erk h o f,
Teologia Sistemática, pp. 119-121.
9 R . C. S p ro u l, Eleitos de Deus, p. 125.
10 R. C. S p ro u l, Eleitos de Deus , p. 126.
11 Jo ã o C alv in o , O I J m dos Salmos, Vol. 2, (SI 3 6 .5 ), p. 128.
12 E n ten d em o s q ue a p reterição é o ato d iv in o de ab an d o n ar os seres h u m an o s ao s seus p ró p rio s pecados.
Ju n ta m en te eo m esse ato d e p reterir, e stá a d isp o sição de co n d en ar os h o m en s pelos seus pecado s, o que,
às v ezes, os teó lo g o s ch am am de p ré-c o n d en ação (Ver L o uis B erkh o f, Teologia Sistemática, p. 117).
13 A . A . H o d ge , Esboços de Theologia, p. 67. (E d ição de 1895).
14 V er R. C . S p ro u l, Eleitos de Deus, p. 128
15 11. C. S p ro u l, Verdades Essenciais da F é Cristã, C ad ern o 2, p. 56.
16 R. C. S p ro u l, Eleitos de Deus, p. 136.
Nolas 647

17 Jo ã o C alv in o , Romanos, p. 341 (R m 9 .2 1 ). N a v erd ad e, n o g rego , os verb os q ue P aulo u so u “ p rep a ra d o s” .e


“p rep a ro u ” são d iferen tes e a v oz cam bem . N o p rim eiro caso, o sentido é u m p o u co d iferen te do do
segun d o. N ão é p reciso en te n d er, no p rim eiro caso, q u e ho uve u m p ro p ó sito d e criação p ara a p erd ição
(du pla p red estin a çã o ), até p o rq u e a vo z é passiva e o su jeito nào c indicado. P ode-se en te n d er q u e o
p ró p rio h o m em é o su jeito d esse verbo. D e q u alq u er m o d o, ain da q ue seja D eu s, “ nào d evem o s su po r
q u e sua ação de en d u recer os co raçõ es d eles, p rep aran d o -o s assim p ara a destru ição , veio co m o co n se­
q ü ên cia e ca sd g o de q u e eles m esm os h av iam se en d u recid o ?” (W illiam H cn d rik scn , Romanos, p. 363).
18 M ich ae l H o rto n faz u m a excelente d cseriçào d essas im p licaçõ es no seu livro A s Doutrinas da Maravilhosa
Graça, pp. 81-10 0 . Igu alm en te, L o rain c B o ettn er, em The Reformed Doctrine o f Predestination, p. 327-362 .
19 M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 87.
20 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 88-89.
21 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 92.
22 j . C alv in o , A s Jnstitutas, II I .2 3 .1 4 . D o m esm o m o d o, assev era P acker: “A té o n d e os cristão s saib am , os
rep ro vad o s n ào têm face, não nos cab en d o ten tar id en d ficá-lo s. D evem os, antes, v iv er à lu z da c erteza de
q ue q u alq u er u m p o d e ser salvo, se ele ou ela arrep en d er-se c co lo car su a fé cm C risto ” . (J. L Packer,
Teologia Concisa, p. 143).
23 V er H erm isten M . P. C o sta, Breve Teologia da Evangelização,p. 33-37.

Capítulo 9
1 V er W illia m H en d rik scn , Mais que Vencedores, p. 107.
2 V er R. C, S p ro u l, A Santidade de Deus, p. 29.
3 H o d g e en ten d e q ue os serafin s, ao o ferecer um a h o m en agem p erp etu a à san tid ad e d iv in a, estão re p re­
se n tan d o todo o u n iv erso (ver C harles H o d ge, Teologia Sistemática, p. 312).
4 V er R. C . S p ro u l, A Santidade de Deus, p. 34.
5 L u iz B erk h o f, Teologia Sistemática, p.76.
6 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Pai, Deus o Pilho, p. 97.
7 J. R id d erb o s, Isaias: Introdução e Comentário, p. 95.
8 M u ito s talvez p referissem q ue ele tivesse d ito “sed e p ró sp ero s po rq ue eu sou p ró sp e ro ” .

Capítulo 10
1 A b lasfêm ia seria d izer q u e D eu s é o au to r do m al, e a h eresia p o deria ser o d u alism o , o u seja, d izer q ue
o m al c etern o e in d ep en d en te com o D eu s (Ver G. C. B erko uw er, Doutrina Bibltca do Pecado,p. 21).
2 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 148.
3 E ssa p a ssa g em se re fe re aos esp írito s m alignos. P orém , antes de se reb elarem , eles fo ram anjos.
4 E sses títulos tam b ém são aplicad os aos an jo s decaídos.
5 Jo à o C alv in o , Efésios, p. 46, E f 1.21.
6 D. M . L lo yd -Jo n es, D e/ff o Pai, Deus o Filho, p. 436.
7 A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 140.
8 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 222.
9 B erk o u w er o ferece ex celen te argu m en tação co n tra essa teoria em A Doutrina Bíblica do Pecado, p. 62-75.
10 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 149.
11 V er E . H . B an cro ft, Teologia Elementar, p. 307.
12 V er G. C. B erk o u w er, Doutrina Biblica do Pecado, p. 79. A in d a assim , deve h aver um a origem .
13 L o ra in e B o ettn er, The K efom ed Doetrine o f Predestination, p. 243.
14 D eve ser en ten d id o q u e o lib eralism o nào n egav a apen as a e x istên cia de S atan ás, m as co m p ro m cd a toda
a re v e lação b íb lica.
15 D. M . L lo yd -Jo n es, O Combate Cristão, p. 90.
16 J. C alv in o , Efésios, p. 190, E fésio s 6.12.

Capítulo 11
1 N ó s nos atrev em o s a c o n d n u ar in sistin d o n a auto ria m o saica do P en tateu co ap esar d e toda a arg u m en ­
tação d a crítica m o d ern a no sen ü d o con trário. P or m u ito tem p o , os crítico s eru d ito s assu m iam a d efin i­
ção de W ellh au sen (184 4 -1 9 1 8 ) de q u e o P en tateu co era co m p o sto de q u atro tipos de m ateriais ou
fo n tes: A fo n te “J ” o u J a v ista , a fonte “ E ” o u E lo h ista, a fon te “D ” ou D cu tero n ô m ia e a fon te P ou
648 Razão da esperança

S a cerd o ta l. P o rém , o s p ró p rio s estu d o s c rítico s têm lan çad o d ú vid as a resp eito d essa teo ria, co m o a d m i­
te o p ró p rio G o rd o n W cn ham , po is as discu ssões so bre esse assu n to têm su rgid o d en tro do p ró p rio
c o ração da crítica (G o rd o n W en ham , Word tíiblicalCommentary, Volume 1: Genesis 1-15, In tro d u cd o n ). N ão
h á razões co n v in cen tes para nào a cred itar q u e Je su s so ub esse q uem escreveu o P en tateu co , c ele disse
q ue fo i M o isés (ver L c 24.44).
2 A m áx im a ltex nihilo nibiífiP é v erd ad eira, po is “ nad a v em do nada” . V er ex celen tes argu m en to s sobre
isso em Dogmatic Theology, de W illiam G. 'f. Sh ed d , p. 467.
3 R. C . S p ro u l, Verdades Essenciais da F é Cristã , C ad ern o 1, p. 54.
4 A id é ia d a ev o lu ção já foi su sten tad a p o r filó so fos g re g o s antigos, com o, po r exem plo , T ales de M ileto.
N o século 17, h o m en s co m o S w am m erd an (1 6 3 7 -1 7 8 5 ), L eib n iz, D id ero t, R o b ert C h a m b ert tam b ém a
d efen d eram . Foi P lerb ert S p en cer quem in tro d u ziu a idéia do ev o lu cio n ism o na co m u n id ad e científica.
5 H á u m a d iferen ça en tre m acro cv o lu ção e m icro ev o lu çào . T rata-se d e d u as teorias: a p rim eira p o stu la que
to d as as eo isas su rg iram d a evolu ção, en q u an to a segun d a en fatiza o fato de q ue, d e certo m o d o , m u itas
co isas ev o lu em neste m und o . A m acro ev o lu ção é d ecid id am en te an tib íb lica, m as a m icro ev o lu ção ap a­
re n tem en te não co n traria os p rin cíp io s bíb lico s, afinal o h o m em realm en te se ad ap ta a v ário s h ab itats e
co n d içõ es d iferen tes, e há u m p ro g resso claro n a h istó ria da hu m an id ad e, q u e é atestad o p ela p ró p ria
B íblia.
6 A lister M c G ra th , O Deus Desconhecido: Em Busca da 'Realização 'Espiritual, São P aulo : L o yo la, 2 00 1, p. 23.
7 C h arles H o d ge, Teologia Sistemática, p. 180.
8 J. G resh am M a ch en , Vision Cristiana D el Nombre, p. 123.
9 O m esm o p o d e ser d ito de o u tro s cien tistas fam o so s d o p assad o , co m o Jo h a n n e s K ep ler, L eo n h ard
E u ler, Ja m e s C lark M ax w e ll, Ja m e s P re sco tt Jo u le, W erher Von B raun. O s filó so fo s g re g o s P latão e
A ristó teles tam b ém su sten tav am a idéia de q ue o u n iv erso foi criado.
10 P ara u m a ab o rd a g em in tere ssan te do ev o lu cio n ism o q ue ajuda a en te n d er os p rin cip ais p ressu p o sto s
d ele, b em com o algu m as resp o stas para os seus q u estio n am en to s, v er Como Derrotar o Evolucionismo com
Mentes Abertas, d e P h illip E . Jo h n so n . São P aulo: E d ito ra C u ltu ra C ristã, 2000.
11 P au lo J. A ch te m ier, biarper’s Bible Dictionaty, (tó p ico “T ia m a t”).
12 V er G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol I, pp. 407-408.
13 P ara u m a ex p o sição d e n arrativ as m íticas sem elh an tes entre cu ltu ras ver, de D avid E. A u n e, WordBiblkal
Commentary, Volume 52b: Révélation 6-16, (R ev 12.1).
14 O p ró p rio V an G ro n in g en d efen d e essa teoria (ver G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol I, p.
56-57).
15 É p reciso q ue se en ten d a q ue o “cao s” o rig in al d escrito pela B íb lia, o “ sem fo rm a c v a z ia ” n ào co n tém
n ec essariam en te a id cia d e “ m al” . Pode sig n ifica r apen as q ue a terra não era p ró p ria para ser h ab itad a e,
en tão , D eu s a to rn o u p ró p ria (Ver G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol. 1, p. 47).

Capítulo 12
1 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p 25. P arte d a ab o rd agem a segu ir p o d e se r v ista
nessa o b ra d e H o rto n (pp. 25-39).
2 A n d io n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 24.
3 H e rm a n B av in ck , OurReasonable Vaith, p. 184.
4 E in teressan te q ue, en q u an to o h o m em foi su b m isso a D eus, o resto da criação foi su b m isso ao ho m em .
P o rém , d ep o is d a q u ed a tud o isso m u d o u (ver Jo h n L. D agg, M anual de Teologia, p. 119).
5 G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol 1, p. 85.
6 V er G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol 1, p. 84.
7 G érard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, V ol 1, p. 85.
8 J. G resh am M a ch en , Vision Cristiana dei Homhre, p. 145-146.
9 V er A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus> p. 228.
10 J. G resh am M ach en , Vision Cristiana dei Hombre, p. 143.
11 A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 230.
12 S im o n J. K istem ak c r, Hebreus, p. 144.
13 E ssa s o b serv açõ es p o d em ser en c o n trad as in A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 2 29-2 30.
14 V d . M o rto n H . S m ith , Systematic Theology, p. 238.
15 M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p 30.
16 U m a ó tim a ex p o sição so b re os três m an d ato s, e q ue serv iu de base p ara este texto, p o d e ser en co n trad a
em Família da Aliança , d e H a rriet e G érard G ro n in g en , pp. 55-199.
17 A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p. 222.
Noicis 649

18 J. I. P ackcr, Teologia Concisa, p. 217.


19 F red V an D yk e et al,, A Criação Redimida, p. 99.
20 A lgu m as d essas im p licaçõ es p o d em se r vistas in M ichael H orton, A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p 35-38.

Capítulo 13
1 L o uis B crk h o f, Teologia Sistemática, P. 165.
2 V er W illia m G. T. S h ed d , Dogmatk Theology, V ol I. p. 528.
3 D c certo m o d o , isso ap en as reflete o q u e algu n s teó lo g o s tem en ten dido co m o sendo o p rin cip a l po n to
d a d iscu ssão teo ló g ica (e q uem sab e até filo só fica) em todo s os tem p os: o re lacio n am en to en tre a tran s­
c e n d ên cia c a im a n ên cia divin a. Stan ley J. G rens e R o ger E. O lson m o stram co m o a v isào d eseq u ilib rad a
entre essas d u as características d ivin as, ao lo n g o da h istó ria da teo lo g ia, tem criad o tantos p ro b lem as
p ara os estu d o s teo ló g ico s (Stan ley J. G ren s e R o ger H. O lso n , A Teologia do Século 20, p. 9-11). A teologia
d a R efo rm a p ro cu ro u m an ter u m eq u ilíb rio en tre a tran scen d ên cia, ou seja, D eu s com o aq u ele a b so lu ta ­
m en te sep arad o , a u to -su ficien te , e q u e nào p recisa do m u n d o ; c a im an ên cia, o u seja, D eus q ue se
relacio n a co m o m u n d o , q u e está p resen te na criação e está envo lvido nos aco n tecim en to s da histó ria
h u m an a. O Ilu m in ism o co lo co u essas cren ças em xeq u e, d estru in d o o eq uilíb rio clássico. O lib eralism o
teo ló g ico (S ch lc icrm ach er, R itsch l, H arnack) ten to u d ar u m a resp o sta ao Ilu m in ism o , m as en fatizo u
ex a g era d a m en te a im an ên cia divin a. A n co -o rto d o xia (B arth , B ru n n er, B u ltm an n ), cm revo lta co n tra o
lib eralism o , fo i ao o u tro ex trem o e ex agero u na tran scen d ên cia. D e lá p ara cá, q uase rodas as novas
teo lo g ias re ag em ao lib eralism o o u à n eo -o rto d o xia e se po larizam cm ex trem o s, com o p o r exem plo , o
n co lib era lism o se cu la r dc P a u lT ilic h (1 8 8 6 -1 9 6 5 ), a T eologia do P ro cesso d e T eilh ard de C h ard in (1881-
1955) e d e A. N. W h iteh ead (1 8 6 1 -1 9 4 7 ), o rad icalism o d e D ietrich B o n h o effcr (19 0 6 -1 9 4 5 ), a T eologia
da E sp eran ça d c Jü rg c n M o ltm an n e W o lfh art P an n cm b erg, a T eo lo gia da L ib ertação em todas as suas
ra m ifica çõ es (n eg ra , la tin o -am erican a, fem in ista). D c u m m o d o o u de o utro , o eq u ilíb rio en tre tran scen ­
d ên c ia e im a n ên cia nào tem sid o alcan çad o , com o na R efo rm a. Isso p o d e ser visto tam bém n o s m o v i­
m en to s ain d a m ais m o d ern o s com o a “ teologia da p ro sp erid ad e” , a ‘‘teologia relacio n ar* (ou teísm o
ab erto ), e todo o m o vim en to carism ád co.
4 L o uis B crk h o f, Teologia Sistemática, p. 170 .
5 L o ra in e B o ettn er, The lieform ed Doctrine o f Predestination , p. 247.
6 U m a ex celen te ex p o sição so b re o concursus p o d e ser v ista cm H . C. C am pos, O Ser de Deus e as Suas Obras
- A Providência e a Sua Realização Histórica>pp. 292-315.
7 U m a b o a ex p o sição d c algu m as d essas p assagen s está in L o ra in e B o ettn er, The Keformed Doctrine o f
Predestination , p. 2 4 3 -2 4 8 .
8 C h a rles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 439.
9 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 433.
10 P arece-n o s o p o rtu n o d ar u m a palavra a respeito do fatalism o c do d eterm in ism o . A m b o s os co n ceito s
são p a recid o s; en tretan to , eles se d istin gu em pelo seguin te: o fatalism o a firm a q ue ex iste u m a força
ex tern a d eterm in a n te dc to d o s os aco n tecim en to s. E sse co n ceito gera no h o m em u m a atitu d e de co n ­
fo rm ism o e in d iferen ça , v isto q ue n ad a q u e p o ssa d eseja r ou fazer afeta o cu rso dos aco n tecim en to s:
tud o o co rre d e m o d o in falív el. O d eterm in ism o en sin a apen as q ue, para cad a fato h á sem p re razõ es que
o d eterm in a ra m , crian d o u m a relação de cau sa c efeito , se m se p reo cu p ar co m a “ cau sa p rim eira” ; esse
co n ceito é u sad o a m p lam en te n o s div erso s cam p os das ciências.

Capítulo 14
1 E rlic L e n s C ésar, O que D eusje^ por mim podefa%er p o r você, p. 98-100.
2 O V atican o ex ig e essa co m p ro v ação para can o n izar o san to q ue realizo u o m ilagre.
3 N a v erd ad e, essa b an alizaçào é p o r cau sa do sign ificad o técn ico da palavra m ila g re, p o is etim o lo g ica-
m en te, um aco n tecim en to co m o esse p o d eria ser ch am ad o d c m ila g re, p o is, a p alav ra deriva d e “ m arav i­
lh a r” o u algo q u e p ro d u z esp an to (V er C h arles H o d ge, Teologia Sistemática , p. 459).
4 W illia m G. T. S h ed d , Dogmatic Theology, Vol. 1, p, 533.
5 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 459.
6 E . J. Y o un g, Daniel, in F. D av id so n (org.), Novo Comentárioda Bíblia, p. 821 b.
7 A teo lo g ia lib era l do século 19, ced en d o à p ressão da ciên cia, rejeito u a ex istên cia d e m ilagres e p ro cu ro u
“ d em itizar” a B íb lia, o u seja, re tirar os m ilagres para ten tar en c o n trar a v erd ad e q ue estaria esco n dida.
A ssim , a teo lo g ia lib e ra l se lan ço u à b u sca do Je su s h istó rico , p en san d o q ue o C risto d escrito pelos
ev an gelh o s n ào fo sse o v erd ad eiro , po r cau sa do so b ren aturalism o . B u lttm an n , u m teó lo g o d a nco-
650 Razão da esperança

o rto d o x ia, p o r o u tro lad o , en ten d eu , jun to com m u ito s ou tro s, q ue a b u sca p elo Je su s h istó rico cra
im p o ssív el. E le p ro p ô s q ue, em v ez dc “d cm id z a r” a B íb lia, ela deveria ser “ d esm ito lo gizad a” . Isso não
sign ifica re tirar o s m ito s, m as in terp retá-lo s, p ara q ue a m en sagem d eles falasse ao ho m em m o derno . V er
R u d o lf B u ltm a n n , Demitologiiçação, S ão L eo p o ld o : E d ito ra S in o d al, 1999. M as dc q u alq u er m o d o , am bas
as esco las re jeita m a h isto ricid ad e do m ilagre.
8 H en d rik van R iessen , Enfoque Cristiano dc la Ciência, p. 66.
9 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 175.
10 W illia m G. T. S h ed d , Dogmatk Theology, p, 535.
11 V er W illia m G. T. S h e d d , Dogmatk Theology, p. 540. E v id en tem en te q u e foi co n tra a n a tu rez a no caso
esp ecífico dc L ázaro. O s d em ais m o rto s p erm an ece ram no p ro cesso de deco m po sição. N esse sentido, a
n atu rez a geral n ão foi afetada.
12 A d efin ição dc H o d ge, v ista acim a, p arece co n trariar essa noção. H o d ge não aceita q u e D eu s u se m eios
para re aliza r m ilag res, m as nesse caso teríam o s q ue rem o v er v ário s a co n tecim en to s b íb lieo s da catego ria
d e m ilagres, com o, p o r exem plo , as p ragas no E gito , o u a pesca m aravilh o sa. H o d ge p refere ch am ar
esses aco n tecim en to s d c “p ro v id en ciais” e não m ilagres abso luto s (Ver C h arles H odge, Teologia Sistemá­
tica^ p. 466).
13 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 176,
u C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 473.
15 Jo à o C alv in o , Romanos, p. 500, R o m anos 15.18.
í(i Ver W aync G ru d em , Teologia Sistemática , pp. 291 -2 9 7 . G ru d em argu m en ta b astan te co n v in cen tem en te
co n tra a cessação dos m ilagres, p o rem , ele p arece não v er q u alq u er d iferen ça entre o tem po dos ap ó sto ­
lo s c os n o sso s dias, o q u e sem d ú v id a é ign o rar os fatos.
17 V eja o u tro s m ilagres im p ressio n an tes de P au lo re gistrad o s em A to s 1 3.6 -12 ; 1 4.8 -18 ; 16 .1 6 -1 8 ; 19.8-11;
28.1-6. O b serv e q u e eles estão asso ciad o s m ais ao início da p regação ap o stó lica em algum lu g ar novo.
18 Jo h n H . A rm stro n g , “ E v an g elism o dc P o d er” , cm Religião de Poder. org. p o r M ich acl S co tt H o rto n , p. 59.
19 E ste n o m e foi d ad o p o r P eter W agner, p ro fesso r dc m issõ es do Sem in ário E ullcr nos E stad o s U nidos.
S eg u n d o ele, a p rim eira o n d a v eio no eom eço do sceulo 20 co m o su rg im en to do p en teco stalism o . A
se g u n d a o n d a a co n teceu em m ead o s d o s an o s 7 0 , c , a p artir d o s anos 90 a terceira e m ais p o d ero sa on da
d o esp írito está atuando.

C apítu lo 15

1 M ich ac l H o rto n , As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 42.


2 A p a ren tem en te, o h o m em esteve, d esd e o início, presen te a toda essa d iscu ssão (G n 3.6)
* C o rn eliu s P la n tin g a Jr., Não Era Para Ser Assim , p. 26.
4 K istcm ak e r v ê algu m p aralelo : Sim o n J. K istem ak er, Santiago, 1-3 Juan, p. 63.
5 V er G. C. B erk o uw er, A Doutrina Bíblica do Pecado, p. 31.
(i H o ek em a en te n d e q u e a cau sa d o p ecad o do se r h u m an o é ap en as ex te rn a , o u seja, veio ap en as dc
Satan ás, e q ue isso é a gran d e d iferen ça entre o p ecad o d o s seres h u m an o s e o p ec ad o dos anjos. O s
an jo s p ecaram se m q u alq u er in flu e n cia ex tern a, enq u anto os h o m en s p ecaram a p a rtir dc u m a in flu e n cia
ex tern a (ver A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, p.141).C ertam en te essa éum a diferen ça
ex isten te, p o rém , não se p o d e ign o rar q ue algo d en tro do p ró p rio ho m em o fez pecar. E le tin h a lib erd a ­
de d e escolha.
7 B e rk h o f está ccrto em a firm a r q ue, no fim d as con tas, c im p o ssív el d izer com o a ten tação pô de en c o n ­
trar u m po n to d c c o n tato n u m a p esso a san ta co m o A d ào (ver L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 225).
8 M ich acl H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 46.
9 Jo h n M a c A rth u r Jr ., Sociedade sem Pecado, p. 81.
10 C o rn eliu s P lan tin g a Jr., Não Era Para Ser Assim, p. 17.
11 E stam o s d efen d en d o aq u i o co n ceito d e “im p u tação im ed ia ta ” do pecado , e n ão a id éia de im p u tação
“ realista” , se g u n d o a q ual o p ecad o dc A d ão é o no sso p ec ad o po rq ue há só u m a n atu rez a h u m an a, e
A d ão a po ssu ía in tegralm en te. (Ver A n th o n y H o ek em a, Criados à Imagem de Deus, pp. 176-180),
12 Isso ev id en tem en te não exclui o fato de q ue tu d o segue a v o n ta d e so beran a d e D eus.
13 E sse é o p rim eiro p o n to d o C alvinism o. (O s cin eo são: D ep ravação to tal, E leição in co n d icio n al, E x p ia ­
ção lim itad a, G raça irre sistív el, P ersev eran ça dos san to s).
14 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 249.
15 M ich acl H o rto n , As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 48.
16 C o rn eliu s P la n tin g a Jr ., Não Era Para Ser Assim, p. 113.
N otas

Capítulo 16
1 L o ra in e B o ettn et, Imortalidade , p. 10.
2 J. I. P acker, Vocábulos de Deus, p. 185.
3 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro , p. 108.
4 L ouis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 676.
5 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 108.
6 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 262.
7 C h arles H o d ge , / Corintios, p. 305 (IC o 15.25).
8 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 676.
9 C itad o p o r L o rain e B o ettn cr, Imortalidade, p. 32.

Capítulo 1 7
1 A s religiõ es n ào -cristàs, com o po r exem plo , o B u d ism o, o In d u ísm o e o lsla m ism o , tam bcm falam da
vida ap ó s a m o rte.
2 V er C h arles P fciffer (org.), Wyciiffi Bible Ençydopedia , V erbete: H ades.
3 A B íb lia p arece assu m ir q u e Sam u el estav a falando (IS m 28.1 5 ,16 ). A referên cia ao ju lgam en to de Saul
está c o rreta (IS m 2 8 .1 7 ,1 8 ). E Israel acab o u realm en te cain d o nas m ào s dos filisteus, e Sau l e seus filhos
fo ram m o rto s (I S m 28.19. V er IS m 3 1.1-6). O cu m p rim en to in d ireto da p ro fecia p o d e sc r v isto desse
m o d o. P o r isso , algun s en ten d em q u e D eus p erm itiu q ue Sam u el vo ltasse para ju lgar Saul.
4 A té m esm o a lógica está co n tra o E spiritism o. Im agine u m a alm a q ue tem q u e re en ca rn ar su cessiv am en ­
te p a ra se ap erfeiço ar, m as q ue sem pre ca rrega o s e rro s da v id a anterior. Isso é p io r do q ue dever p ara u m
b a n c o co m juro s altíssim o s; a p esso a m al co n segue p agar os juros, q ue d izer do cap ital? A lé m disso, se a
v isâo e sp írita e sd v esse certa, en tào u m cren te fiel estaria certo em co n tin u ar sendo u m cren tc fiel. Sc ele
for b em fiel e re alizar b o as obras, co m o d eve fazer, po is sào fru tos de sua con versão , p ro gred irá de
q u alq u er m odo. O co n trário n à o é v erd ad eiro para o espírita. Seg u n d o a B íblia, aqu ele q ue nào se co n ver­
ter a Je su s está perd id o. P ortanto, até a lógica ensina a co n tin u ar cren te em Jesus.

Capítulo 18
1 O s principais teólogos desse período foram Sch eleierm acher, A lbrecht Ritschl c A d o lf H arnack (ver Louis
B erkhof, Teologia Sistemática, pp. 309-310; Stanley J. G rens e R o ger E. O lson, Teologia do Sêatlo XX> pp. 43-71).
2 D o n ald M . B aillie, Deus Estava em Cristo, p. 169.
3 G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo, p. 86.
4 A leg o ria foi um a m an e ira d e in terp retação m uito co m um usada p elo s Pais da Ig reja , q u e p ro cu ravam o
sen tid o o cu lto d o texto, sem m u ita p reo cu p ação co m o sc n d d o literal. O lh ava-se sem p re o lad o m ísdeo
d e um a p a ssa g em , e assim palav ras, frases ou situ ações eram in terp retad as num sen d d o q ue extrap o lava
to talm en te o asp ecto literal da p assagem bíblica.
5 G. C. B erk o uw er, y*l Pessoa de Cristo, p. 87.
6 U m o u tro asp ecto in tere ssan te é q u e o g re g o é u m a lín gu a b astan te d esen v o lvid a para a an tigu id ad e,
com u m g rau d e p recisã o b astan te elevado. Isso co n trib u iu para a p reserv açao e a in teg rid a d e o rig in al d a
m en sag em do N o vo T estam en to q u an d o foi cie trad u zid o para outras línguas.
7 W illiam H en d rik sen , Gálatas, p. 229-230,
8 A d o lf P o h l, Carta aos Gálatas, p. 143.
9 H erm an R id d erb o s, A Teologia do Apóstolo Paulo, p. 48.
lü G. C. B erk o uw er, A Pessoa de Cristo, p. 134.
11 R o b ert M . B o w m an Jr., Por Q ue Devo Crer na Trindade ~ Uma Resposta às Testemunhas de Jeová , p. 91.
12 V er W illia m H en d rik sen , Romanos, p. 347.
13 R o b ert M . B o w m an Jr ., Por Q ue Devo Crer na Trindade - Uma Resposta às Testemunhas de Jeová , p. 101.
14 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 319.
15 V er R .C . S p ro u l, Doutrinas Centrais da Fé Cristã , L ivro I, p. 79.
16 G. C. B erk o uw er, A Pessoa de Cristo, p. 174.
17 R .C . S p ro u l, A Glória de Cristo, p. 67. V er T am b ém Boa Pergunta, p. 34.
18 E ssa re sp o sta p arece estran h a, m as nós tam b ém d izem o s q ue ele tinha e não tinha o n isciên cia, p o is ao
m esm o tem p o em q u e co n h ecia os pen sam en to s d o s ho m en s, n ào sab ia a d ata da sua vinda.
652 Razão àa esperança

19 G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo, p. 195.


20 N ão q u e Satan ás seja o S en h o r d o p lan eta, m as ele é o S en h o r do m u n d o decaído.
21 H erm an B a v in ck , 'Teologia Sistemática „ p. 311.
22 G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo, p. 12.

Capítulo 19
1 M illard J. E rick so n , Introdução à Teologia Sistemática , p. 300.
2 V er J.N .D . K elly, 1 e 11 Timóteo e Tilo., p. 89.
3 V er W illia m H en d rik sen , 1 y 2 Timóteo y Ti/o, pp. 158-162.
4 G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo, p. 248.
5 Jo à o C alv in o , A s Instituías, (111.21.1-3). V er G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo , p.250.
6 A tos 15 n arra a p rim eira v ez cm q ue a ig re ja se re u n iu em concílio. O s ap ó sto lo s e os p resb ítero s se
re u n iram em Je ru sa lé m para tratar da questão da circu n cisão dos gen tio s.
7 E x traíd o d e J.N .D . K elly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã, p. 256.
8 V er H . G riffith , “ N estó rio , N e s to m n is m o ” , In EHTJC , III, p. 18.
9 V er L o ren zo P erro n e, “ D e N icéia (325) a C alced ô n ia (451)” , in G iu sep pe A lb erin g o (org.), História dos
Concílios Ecumênicos, p. 74.
10 N ào ig n o ra m o s o fato d e q ue o título “F ilh o d o h o m em ” ten h a co n o taçõ es m essiân icas e até divin as.
C u llm an n a firm a q u e a n o çào de F ilho do h o m em é m ais am p la do q ue q u alq u er outra, e d escreve a ob ra
to ta l de Je su s (v er O scar C u llm an , Cristotogia do Novo Testamento , p. 181).
11 H o d g e fala b astan te d essa analo gia, em b o ra reco n h eça q ue toda an alo gia é in co m p leta q u an d o se refere
à p esso a d e C risto. V er C h arles H o d ge, Teologia Sistemática, pp. 764,765.
12 H o ek em a d isco rd a d a id eia d e q u e h á d u as n atu rezas no cren te. E le d efen d e q ue o regen erad o tem
apen as u m a n atu reza: a esp iritual. A n atu reza carn al foi cru cificad a com C risto. E le ex p lica o p ec ad o que
co n tin u a a h a b ita r na carn e co m o u m a co n seq ü ên cia d o viver com o ho m em (ver A n th o n y H o ek em a,
Salvos pela Graça, pp. 2 1 6 -2 2 1 ).
13 D ev em o s lem b ra r q u e, n esse po nto, n ào há sem elh an ças co m a d o u trin a da T rindade. N a T rin d ad e, há
u m D eu s, m as h á três p esso as, haven do só u m a natu reza, a divin a. N o se r de Je su s, há ap en as u m a
p esso a, m as d u as n atu rezas, a d iv in a e a hu m an a.
14 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 766.
15 V er C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 772.
16 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 772.
17 A p esso a d e Je su s é de fato tean tró p ica, po is há d u as n atu rezas n essa ú n ica pesso a. Porém , a n atu reza
n ào é tean tró p ica, ela c d u p la: hu m an a e d ivina.
18 A u gu stu s H . S tro n g , Teologia Sistemática , Vol. 2, p. 350. N a R efo rm a, calvinistas e luteranos se d eb ateram em
torno da q uestão dos atribu tos divinos na pessoa h um ana de Jesus. E stam os falando aqu i p rin cipalm ente
d a d isp uta existente quan to ao relacion am ento das naturezas de C risto em sua p esso a, p articu larm en te
ligad as à in terp retação d a p resen ça de C risto na Ceia. O s luteranos defen diam u m a espécie de com un icação
d e atribu tos entre a n atureza d ivin a e a natureza h um ana de Jesus. A ssim , a natu reza divina co m un ico u à
natu reza h u m an a de Je su s o atributo d a o nipresença. D esse m odo, Je su s se tornou fisicam en te onipresente.
Isso é cham ad o de “ u biqü id ad e” do corpo de Cristo. E ssa foi a m aneira q ue L u tero encontrou para d efen ­
d er a presen ça física de Je su s n a C eia, com b ase na expressão : “ Isto é o m eu co rp o ” . U m a vez q ue, segundo
as id éias de L u tero, Jesu s se tornou fisicam ente on ip resente p o r causa da co m un icação de atributos, então,
no m o m en to da C eia, o corpo físico de Je su s está “con su b stan ciado ” com o corpo de Cristo. Para os
calvin istas, essa m istura d e naturezas na pesso a de C risto se p arecia m uito com a antiga heresia de E utico,
q ue m istu rava as natu rezas hu m an a c divina de C risto, criando u m a espécie de terceira n atu reza, su sten tan ­
d o o m o nofisism o. O s calvin istas acusavam os luteranos de serem nco-eutiquianos. P or o utro lado, a
afirm ação dos calvin istas de que o corpo d e Je su s estava no céu, enquanto o seu E spírito estava na terra
soava à h eresia nesto rian a, e os luteran o s acu savam os calvin istas de serem n eo nestoriano s. E n tretan to , a
p o sição calvin ista não é nestoriana, m as em con form id ad e com calcedôn ia, cm q u e as n aturezas de C risto
estão u nid as, p o rém nào m isturadas. A natu reza divina é on ip resente, m as a h um ana não é.
19 C h arles H o d ge, Teologia Sistemática , pp. 774,7 7 5 .
20 H erm an B av in ck , Teologia Sistemática , p. 359.
21 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática , p. 462.
22 V er G. C. B erk o u w er, A Pessoa de Cristo , p. 219.
23 E m 39 2 d .C ., p ela p rim eira vez, M aria foi d eclarad a p erp etu am en te v irg em p elo p ap a Siríaco , m as so ­
m en te no C o n cilio d e T ren to, em 1547, isso foi co n sid erad o u m d o g m a católico, e so m en te em 1854 o
N oJíís 653

p a p a P io IX d ecla ro u M aria to talm en te livre de p ec ad o s d u ran te toda a sua v id a. A d eclaração d esse Papa
foi: “N ó s, p ela au to rid a d e de no sso S en h o r Je su s C risto, sob a b ên ção dos ap ó sto lo s P edro e P au lo c po r
n o ssa p ró p ria au to rid ad e, d eclaram o s, p ro n u n ciam o s e defin im o s q ue a d o u trin a q ue assegu ra q u e a
B en d ita V irg e m M a ria d esd e o p rim eiro m o m en to de sua co n cep ç ão foi, p ela sin gu lar g raç a e p riv ilégio
d o T o d o -p o d ero so D eu s, em v ista d o s m érito s d e C risto Je su s o S alvad o r da raça h u m an a, p reserv ad a
im u n e de to d a m ácu la d e p ecad o origin ar*. O Papa L eão X III, em 1891, na en c íc lica Octobri Mense d ecla ­
ro u q ue “ O E tern o F ilh o d e D eu s, q u an d o q u is tom ar a n atu reza d e h o m em para re d en ção e g lo rificação
da h u m an id ad e, (...) n ão fez sem p rim eiro ter o ab so luto livre co n sen tim en to de su a esco lh id a m ã e (...)
então» assim co m o n in g u ém p o d e ir ao su p rem o P ai sen ão p o r m eio do F ilho, é certo q ue, n in g u ém pode
ir ao F ilh o sen ão p o r m eio da M ãe (...) M aria é a ú n ica, M aria é digna d e todo lo u v o r; ela é p o d ero sa, m ãe
d o to d o -p o d ero so D e u s” . E m 1892, esse m esm o P apa, na en cíclica M agnos D ei Ma/ris declaro u : “E la
p erm a n ece so b re tod as as o rd en s de an jo s e ho m en s, e so m en te ela está p ró x im a de C risto ” . N a en cíclica
M ystici Corporis C hm ti , d e 1943, o Papa P io X II d eclaro u q ue M aria foi im u n e de todo p ec ad o ; o fereceu
o seu filh o no G ó lg o ta ao P ai; o b teve o d erram ar d o E sp írito S an to no P en te co ste s; p ro v id en cia cu id ad o
m a tern o p ara a ig re ja ; e rein a n o s céu s com C risto. E m 1950 ele d eclaro u: “ E la co n q u isto u a m o rte e foi
elev ad a co m co rp o e alm a p ara a g ló ria dos céu s, o n d e com o R ain h a rein a re fu lg en te à d ireita d o seu
F ilho... N ó s p ro clam am o s e d efin im o s esse d ogm a revelad o p o r D eu s q u e a im acu lad a M ãe d e D eus,
M aria sem p re V irgem , q u an d o o cu rso de su a v id a terren a se acab o u , foi to m ad a co m co rp o e alm a para
a g ló ria dos céu s” . T u d o isso foi co n firm a d o p elo C o n cílio V atican o II. (V er P au l E n ns, The Moody
Hatidbook o f Theology, P arte 4, Cap. 37).

Capítulo 2 0
1 C h arles H o d gc , Teologia Sistemática, p. 822.
2 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Pai, Deus o Filho, p. 375.
3 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática , p. 829.
4 Jo ã o C alv in o , Institutas, 111,15,2.
5 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 358.
6 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 366.
7 D eve se r n o tad o q ue tan to Je su s q u an to o E spírito S an to re ceb em o títu lo de parakletos (ad v o gad o ou
co n so lad o r). O E sp írito Santo é o ad v o gad o d e C risto n a terra e dos pró p rio s cren tes c o n tra o m undo ,
e C risto é o a d v o gad o d o s crentes no céu ju n to a D eu s e co n tra Satanás.
s E m b o ra os d ias d e N o c re p resen tem , teo lo g icam en te, os p io res dias q ue este m u n d o já viu. D eu s en tre­
g o u o ser h u m an o ao seu pró p rio p ecad o , e o h o m em foi lib erad o para se r tão m au q u an to po ssível.
D ep o is d o d ilú v io , D eu s im p ô s restriçõ es ao ser hu m ano , e não p erm ite q ue ele ch egu e facilm en te ao
lim ite d a m ald ad e. Je su s d isse, p o rém , q ue lo g o an tes de sua v in d a, o m u n d o vo ltaria a ser se m elh an te ao
m u n d o d o s d ias de N o é (M t 2 4.3 7 -3 9 ).
9 F ran cis S ch aeffer, A Obra Consumada de Cristo, p. 70.
10 A p rim eira c o m p licação co m essa id éia c q u e o ser h u m an o nu n ca co n seg u iria o ferecer a D eu s um
v erd a d eiro arrep en d im en to . O en sin o b íb lico é q ue o a rrep en d im e n to é u m d om d e D eu s (ver A t 11.18;
R m 2 .4 ; 2T m 2.25).
11 Jo h n S to tt, A Cru% de Cristo , p. 55.
12 Jo h n M u rray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 19.
13 V er D o n ald A. H agn er, Word Biblieal Commentary, Volume 33b: Matthew 14-28, M t 20,26.
14 N a p a ssa g em em q u e D eu s renova a aliança com A b raão , ele m an d a A b raão o rg a n iza r u m a cerim ô n ia
co m u m d aq u eles d ias q ue sim b o lizav a u m pacto. A nim ais eram co rtad o s ao m eio e as m etad es eram
co lo cad as u m as d efro n te às o utras, d eix an d o u m co rred o r ao m eio. O s p ro p o n en tes p assavam jun tos
pelo m eio d o s an im ais assum in d o a resp o n sab ilid ad e em caso de q u eb ra do p acto , q ue seria a m o rte. N o
caso d e A b raão , D eu s p asso u so zin h o pelo m eio dos ped aço s, assum in d o in teiram en te a re sp o n sa b ilid a ­
de (G n 15.9-17).
15 B. B. W arfteld, Biblieal Fotmdations, p. 193.
16 D o n ald M . B aillie, Deus Estava em Cristo, p. 216.
17 V er W ayne G ru d em , Teologia Sistemática, p. 478.
18 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática , p. 477.
19 M ich ae l H o rto n , Creio , p. 100.
20 V er D .M . L lo yd -Jo n es, Deus o Pai, Deus o Filho, p. 426.
21 Jo h n Sto tt, A Cru% de Cristo, p. 116.
22 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Pai, Deus o Filho, p. 425.
65 4 Razão da esperança

Capítulo 21
1 F ran cis S ch aeffcr, A Obra Consumada de Cristo, p. 75.
2 B en jam im B. W arficld , lu i Personay I^a Obra de Cristo^ p. 324.
3 B en jam im B. W arfield , La Personay l^a Obra de Cristo, pp. 306,307.
4 B en jam im B. W arfield , La Personay Iuj Obra de Cristo, p. 324.
5 A n selm o argu m en ta ex ten siv am en te so b re esse assun to no seu livro CurD eo Piomo? O livro d e A n selm o
tem fo rm a d e d iálo go en tre ele m esm o e B oso, u m de se m discípu los. B o so faz as p ergu n tas e A n selm o
as resp o n d e. N a co sm o lo gia d e A n selm o , D eus crio u o m u n d o para a sua g ló ria e, q uan d o o ser h u m an o
p eco u , a h o n ra d e D eu s foi ferida. Isso foi um in sulto à sua h o n ra c algum a satisfação p recisav a ser dada.
A ssim , Je su s C risto realizo u um sacrifício em prol da h o n ra de D eus. (Ver B en g t H ãg g lu n d , História da
Teologia, pp. 146-148).
6 P ara o u tras teo rias a re sp eito d a ex p iação , v er R o b ert L e th am , The Work o f Christ, pp. 159-175.
7 B. B. W arfield , Bib/icaiFoundations, pp. 169,170.
8 B a illie d iz q ue “ o tem a do sacrifício no an tigo Israel é b asta n te co m p licad o c co n tro v ertid o ” . E le nao
en ten d e q u e os p ec ad o s grav es eram ab so lv id o s pelos sacrifícios. (Ver D o n ald M . B aillie, Deus Estava em
Cristo, pp. 200,201).
9 C h arles H o d gc , 'Teologia Sistemática, p, 855.
1(1 V er L o uis B erk h o f, 'Teologia Sistemática , p. 378.
n j. C alvino., Ímtiínción, I II.8.1.
12 Jo ào C alv in o , A Verdadeira Vida Cristã, p. 45. “E le nào so m en te pad eceu co n stan te aflição , m as tam bém
q u e toda a sua v id a foi u m a esp écie d e cru z p erp étu a ” (Joào C alvino, A s Instituías, (1541), IV.17).
13 O C red o dos A p ó sto lo s tem a sua o rig em no C red o R o m ano A n d g o , elab o rad o no sécu lo 2o, tendo
algum as d eclaraçõ es d o u trin árias acrescen tad as no d eco rrer dos p rim eiro s séculos, c h e g an d o à sua for­
m a atu a l p o r v o lta d o sécu lo 7o. V er J. N. D. K elly, Primitivos Credos Cristianos, p. 125ss.; P. S ch aff, The
Creeds o f Christendom, V ol. í , pp. 19-22; II. 45-55.
14 W ayn e G ru d em , Teologia Sistemática , p. 489.
15 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , pp. 342,343.
10 B e rk h o f p refere falar q u e a alm a de Je su s ficou num estado passivo c nao ativo (v er L o uis B erkh o f,
Teologia Sistemática, p. 343).
17 O C atecism o de H eid elb erg na respo sta à P ergu n ta 37 diz: “ Q u e C risto, em co rp o e alm a, d u ran te toda
a su a v id a n a terra, m as p rin cip alm en te no final, su p o rto u a ira de D eu s co n tra o p ecad o d e todo o
gên ero h u m a n o ” .
18 M ich ael H o rto n , Creio, p. 99.
19 jo ã o C alv in o , ínstitutas, (11,16,10).
20 Jo ã o C alv in o , ínstitutas , (11,16,10).
21 H erm an B av in ck , Teologia Sistemática, p. 401.
22 B e rk h o f en fatiza q ue, a in d a assim , o am o r do P ai nao se retirou do F ilh o , o q u e p o r certo é v erd ad e (ver
L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 340).
23 C ab e ainda um a explicação à q uestão d o C redo A postólico. A inda q ue a expressão não se encontre nas
versões m ais antigas, ela se encaixa n a seqüência das expressões. O C redo faz u m a e sp écie de seqüência em
“V ” p ara d em o n strar a trajetória d e Cristo. A p rim eira d eclaração sobre Jesu s c: “C reio cm Jesu s C risto seu
único filho, n o sso Sen h o r” . E ssa afirm ação aponta p ara a divin dade de Jesus. A seguin te, para a encarnação,
q u e representa u m po n to abaixo: “ Q ue foi con cebid o pelo p o d er do E sp írito S an to ” . A p róxim a m ais um
po n to abaixo : “N asceu da v irgem M aria” . E continua a descida: “ P adeceu sob P ôn cio P ilato s” . D esce ainda
m ais: “Foi crucificad o, m o rto e sepu ltad o” . A próxim a expressão rep resen ta o po nto m ais inferio r de
todos: “D esceu ao h ad es” . D aí co m eça a subida: “R essuscitou ao terceiro dia. Subiu aos céus. E stá assen­
tado à d ireita de D eu s Pai T odo-Poderoso. D o nd e há de v ir p ara ju lgar os vivos c o s m ortos...” . P ortanto, a
expressão “ D esceu ao h ad es” quer ind icar o p o nto m áxim o da h u m ilhação de C risto antes d e sua exaltação.
E la sign ifica sim p lesm en te: E steve sob o po d er da m o rte em todos os sentidos.
24 Ja m e s D en n ey, The Death o f Cbnst, p. 157.

Capítulo 22
1 N o s estad o s am erican o s em q ue ex iste a pen a de m o rte, so m ente o g o ve rn a d o r p o d e, n u m a ligação
telefô n ica d e ú ltim a h o ra, su star a execu ção do con denado.
Noíns 655

2 N o sécu lo 17, a teo lo g ia esco lástica p ro testan te p ro d u ziu ex ten sas obras so b re a expiação. U m a das m ais
co n h ecid as foi a do p u ritan o Jo h n O w en , q u e tratou ex ten siv am en te da q u estão da ex p iação lim itada.V er
Jo h n O w en , Por Q uem Cristo Morreu? (P u b licaçõ es E v an gélicas Selecio n ad as). E ssa o b ra é u m a versão
sim p lificad a e c o n d en sad a do clássico The Death o f Death in the Christ’s Death (1616-1684). V er W illiam H .
G o old (org.), The Works o f John Owen , V ol X . L iv ro I.
3 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 395.
4 O s teó lo g o s re fo rm a d o s u sam am bas as ex p ressõ es para a d o u trin a. A ex p ressão “d efin id a ” parece
m elh o r p elo fato d e q u e não faz p arecer q ue a ex p iação de C risto seja lim itad a em po der. A idéia c q u e a
ex p iação c d efin id a em re la çã o aos eleito s, m as não lim itad a em p o der. N este trabalho , há u m a p referên ­
cia p elo term o “ ex p iação d efin id a” , em b o ra não seja d escartad o o term o “ex p iação lim itad a” .
5 C h arles H o d gc , Teologia Sistemática, p. 892.
6 C o n fissão de Fé de W estm inster, V III.V.
7 O s cin co p o n to s do a rm in ian ism o sào: d ep rav ação p arcial, eleição co n d icio n al, ex p iação ilim itad a, g raç a
resistív el e p o ssib ilid a d e de p erd a d a salvação.
B O s C ân o n es d e D o rt, II.IIL
9 O s C ân o n es d e D o rt, I1.V U I. E ssa lin h a de argu m en tação é co n sid erad a calvin ista. O no m e “ calv in ista”
v em d o re fo rm a d o r Jo ã o C alvino (1 5 0 9 -1 5 6 4 ), que foi o gran d e sistem atiz ad o r da R efo rm a P ro testan te.
E le p ro d u ziu u m a v asta o b ra teológica p o r m eio de co m en tário s d a S agrad a E scritu ra, tratad o s teo ló g i­
cos, serm õ es e cartas. Su a ob ra m agn a, as Instituías, é gera lm en te co n sid erad a a m aio r o b ra teo ló g ica da
R efo rm a P ro testan te, e um a das m ais im p o rtan tes da H istó ria. Jo ã o C alvino , ap esar d e p o ssiv elm en te ter
b asead o boa p arte d a su a teologia n a o b ra do céleb re A go stin h o , é co n sid erad o o Pai da T eo lo g ia R efo r­
m ad a, e tod o o sistem a refo rm ad o d ep en d e essen cialm en te dos ensinos do re fo rm a d o r de G en ebra,
P o rém , a q u estão q u e se tem lev an tad o nos últim o s tem p os é se C alvino co n co rd aria com todo s os cinco
p o n to s do calv in ism o , esp ecialm en te o q u e fala da ex p iação lim itada. N a m in h a d issertação de m estrado,
pro cu ro d em o n stra r q u e a d o u trin a d a ex p iação lim itad a tem sua b ase em C alvin o (V er L e an d ro A nto nio
L im a, Uma Apologia <ia Expiação Definida em Calvino. São P aulo : C en tro P re sb iterian o d e P ó s-G rad u ação
A n d rew Ju m p e r, 200 2 ). P ara um a rtigo com essa exp o sição resu m id a ver L e an d ro A nto nio de L im a,
“ C alv in o E n sin o u a exp iação L im itad a?” , São P aulo : R evista Fides Reformata , Vol 9, n . l , 2 00 4, pp. 77-99.
10 Q u an to à ap aren te co n trad ição entre os “m u ito s” de Je su s e os “p o u co s” q ue en tram p ela p o rta estreita
(M t 7 .1 3 ,1 4 ), é p reciso q ue se en ten d a q ue a so m a dos salvos, cm todo s os tem p os, p ela m o rte d e Je su s,
fo rm a “ m u ito s” , p o rém , o n ú m ero de salvos, em cad a ép o ca, certam en te fo rm a o g ru p o dos “ p o u co s” ,
esp ecialm en te em co m p aração com o nú m ero de nào-salvos.
11 Esses conceitos são b aseados n a exposição de M ichael H orton, A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, pp. 130,131.

Capítulo 23
1 Jo sh M c D o w ell, Evidência que Uxige um Veredito, p. 239,240.
2 Jo ã o , en tretan to , foi p risio n eiro na terrível Ilh a de Patm os.
3 C h arles H o d gc, Teologia Sistemática, p. 951.
4 C h arles H o d gc, Teologia Sistemática , p. 951.
5 Jo s h M aeD ovvell, A s Evidências da Ressurreição de Cristo, pp. 25-26.
6 V er M ich ael H o rto n , Creio, p. 111-112.
7 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática, p. 512.
H C h arles H o d ge. Teologia Sistemática , p. 953.
9 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 347.
10 G eo rge E ld o n L ad d , Teologia do Novo Testamento, p. 303.
11 L ew is S p e rry C h afer, Teologia Sistemática, V ol 5-6, p. 218.
12 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 347.
13 W illiam H cn d fik se n , Romanos, p. 184.
14 W illia m H en d rik sen , Romanos, p. 184.
15 Ju stin o (1 0 0 -1 6 7 d .C .), p o r v o lta do ano 150, fez a m ais co m p leta d escrição do cu lto na Ig reja P rim itiva,
o n d e ele se re fe riu ao d o m in go com o dia de culto: “N o dia q ue se cham a d o so l [d o m in go ], celeb ra-se
u m a reu n ião de to d o s os q ue m o ram nas cid ad es ou nos cam p os, e aí se Icem , en q u an to o tem p o o
p erm ite , as M e m ó rias d o s ap ó sto lo s [quatro E vangelhos] o u o s escritos dos p ro fetas....” . (Ver Ju stin o de
R o m a, 1 Apologia, 67.7 . p. 83-84). Ju stin o in clu siv e ex p lico u a razão d e a Igreja g u a rd a r o d o m in go :
“ C eleb ram o s essa reu n ião g era l no dia do so l, p o rq ue foi o p rim eiro dia em q ue D eu s, tran sfo rm an d o as
trevas e a m a téria , fez o m u n d o , e tam bém o d ia em q ue Je su s C risto, no sso Salv ad o r, ressu scito u dos
m o rto s” (Ju stino d e R o m a, I Apologia, 67. pp. 83-84). U m o u tro d o cu m en to q ue atesta a an tigü id ad e da
656 Razão da esperança

gu ard a do d o m in go p o r p arte d a ig reja cristã, é o D idaquê (c> 120 d .C ) , d o cu m e n to a n ô n im o , o q ual usa


a m esm a lin g u a g em d c Jo ã o sc referin d o ao d o m in go co m o o “ dia d o S en h o r” : “ R eu n in d o -v o s no dia do
S en h o r, p arti o p ào c dai graç as...,” (Didaquê, XIV, ln : J.G . Salvad o r, org. O Didaquê, p. 75).
u> j . I. Packer, Teologia Concisa,, p.233.
17 J. I. P acker, Teologia Concisa , p.234.

Capítulo 2 4
1 V er W ayne G ru d em , Teologia Sistemática, p. 517.
2 H crm an B av in ck , Teologia Sistemática, p. 408.
3 M ich acl H o rto n , Creio, p. 138.
4 E n tretan to , n ào d ev em o s p e n sa r q ue ele esteja “ fisicam en te” entre nós, co m o sc o seu c o rp o físico fosse
on ip resen te. S eg u n d o o calv in ism o , a natu reza d iv in a dc Je su s c o n ip resen te, m as a su a n atu reza h u m an a
nào c, p o rq ue nào há co m u n ic aç ão dc atrib u to s entre as natu rezas dc Je su s. N a R efo rm a, u m a lo n g a
d iscu ssão so h rc isso sc esta b eleceu e n tte lu teran o s e calv in istas. A te m esm o um ca tecism o su rg iu , p a ta
ten tar fazer a co n ciliação entre as d u as p artes: o C atecism o dc H cidclbcrg. E sse catecism o foi fo rm u lad o
p ara estab elecei: u m co n sen so , p o rem , suas id éias em relação à C eia do S e n h o r in clin a m -se m u ito m ais
para a teo lo g ia refo rm ad a, O C atecism o dá um d estaq u e im en so à a sce n são d c Je su s, p o is h á só u m a
p erg u n ta so b re a re ssu rreição c quatro so bre a ascen são , c com o no ta K lo o stcr, isso a p o n ta, ev id e n te ­
m en te p ara a questão do d eb a te so bre as natu rezas dc Je su s à lu z d a d iscu ssão a resp eito da C eia do
S en h o r (ver F rcd H . K lo o stcr, y-4 Mighty Comfort - The Christian Faith Acording to the Heidelberg Catechism , p.
53). A P erg u n ta 4 7 do C atec ism o an tecip a u m a d ú v id a e p ro vável o b je ção : Sc C risto está no ccu , então ,
co m o ele p ô d e ter d ito q ue estaria co n o sco todos os dias até a co n su m ação do sé cu lo ? A re sp o sta é:
“S eg u n d o sua natu reza h u m an a, nào está ago ra na terra, m as segu n d o sua d iv in d ad e, m ajestad e, g raç a e
esp írito , jam ais sc afasta de n ó s” . D esd e o m o m en to da asccnsào, Je su s nào está m ais fisicam en te entre
nós. N ào h á q u a lq u er co m u n icação dc atrib u to s na p esso a dc Je su s. A n atu rez a h u m an a p erm a n ece
h u m an a c nào re ceb eu o a trib u to da o n ip resen ça. J á a n atu reza d ivin a que se m p re foi o n ip resen te está
cm todo lu g a r ao m esm o tem po. É n esse sen tid o q ue Je su s está p resen te en tre nós.P or cau sa dc sua
o n ip resen ça d iv in a , ele está co n o sco todo s os d ias até o fim do m undo.

Capítulo 25
1 N este p o n to , in iciam o s os estu d o s so b re o q ue os teó lo g o s ch am am dc Soteriologia. E o estu d o a respeito
d a salv açào c o m o d o co m o 6 ap licad a na v id a das p esso as. O s cap ítu lo s an terio res trataram da C risto lo -
gia, isto e, d a p esso a dc C risto e de sua obra. A go ra, falarem os so bre com o essa o b ra d c C risto c aplicada
a nós, o u se ja , co m o so m o s salvos. A C risto lo g ia falou so bre a o b ra ex tern a d c D eu s p ara n o s salv ar; a
S o te rio lo gia fala da ob ra d a salv açào q ue D eus realiza dentro dc nós.
2 L o rain e B o ettn cr, imortalidade, p. 13.
3 C om isso nào q u erem o s d izer q u e Satanás q uis im p ed ir q ue Je su s m o rresse na cruz. Satan ás tentou
im p ed ir a red en ção , m as n em ele sabia exatam ente co m o Je su s faria isso.
4 A p rática d as “ in d u lg ên cia s” é b em an tiga na igreja ro m an a; nin g u ém sab e ao certo q u an d o cia teve
início. S c h a ff diz q ue, até cerca dc 1150, a estru tu ra sacram en tal das in d u lg ên cia s n ào estav a co m p leta ­
m en te desenvolvid as (D. S. Sch aff, Nossa Crença e a de Nossos Pais>p. 329 ), E m n o v em b ro d c 1095J pela
p rim eira v ez , foi p ro m etid a a in d u lgên cia p len ária p elo p ap a U rb an o Tl (1 0 8 8 -1 0 9 9 ), no S ín o d o dc
C lc rm o n t na F ran ça, a todo s aqu eles q ue p articip a ssem , p o r p u ra d cv o çào , d a P rim e ira C ru zad a em
Je ru sa lé m .
5 R. C. M c G re g o r W righ t, A Soberania Banida , p. 102.
6 H crm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 462,
7 L e w is S p c rry C h afcr, Teologia Sistemática, Vol 7 -8, p. 234.

Capítulo 2 6
1 V er A u gustus H . Stro n g, Teologia Sistemática , vol. 2, p. 497.
V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 449. A inda q ue tu do isso d ev a se r v isto dc u m a persp ectiva
p u ram e n te esp iritu al, p o is C risto e o cren te p erm an ecem com o p esso as d istin tas, su as p erso n alid ad es
nào sc fundiram .
3 A n th o n y H o ck cm a, Salvos Pela Graça, p. 62.
Nolas 657

4 Isso é ch am ad o de “ u n ià o fe d e r a r’ de C risto co m os que foram esco lh id o s no C o n selh o da R edenção,


on d e o p ecad o do povo foi im p u tad o a C risto e a ju stiça de C risto im p u tad a ao povo (ver L o u is B erk h o f,
Teologia Sistemática, p. 450).
5 T am b ém p o r isso o in fralap sarian ism o faz m ais sentido, p o is v ê o decreto da eleição co m o lo gicam en te
(nào cro n o lo g icam en te) p o sterio r ao d ecreto p ara p erm issão d a q u ed a, e co n ju n to ao decreto d a vin d a
d e Je su s p ara a red enção.
6 M ich ael H o rto n , “ U n iào co m C risto ” . E m Cristo o Senhor, de M ich ael H orto n (org.), p. 106.
7 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 450.
a C h arles H o d g e , Teologia Sistemática, p. 1004.
9 Jo ã o C alv in o , A s instituías, 111.1,1.
í0 Jo h n H . G erstn er, “A N atu rez a da F c Ju stific a d o ra ” , em Justificação Pela Fé Somente, p, 33.
11 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 499.
12 M ich ael H o rto n , “ U n ião co m C risto ” , em Cristo o Senhor ; p. 105-106.
13 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática , p, 499.
14 R o b e rt B. S trim p le, “ O A rrep en d im en to em R o m an o s” , em Cristo o Senhor, p. 62.
í5 Jo ã o C alv in o , AsInstitutas, 111.6.2.
16 M ich ae l H o rto n , “ U n iào co m C risto ” , cm Cristo o Senhor, p. 108.
í7 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 469.

Capítulo 2 7
1 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 76.
2 Jo ã o C alv in o , Commeníaty on the Second Bspistle o f Peter; 2 P ed ro 3.9.
3 Jo ã o C alv in o , A s Institutas, (1 5 4 1 ), 111.8.
4 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 86.
5 J. C. R yle, Meditações no Evangelho de Mateus, p. 261,
6 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 990.
7 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça , p. 137. A lgu m as ab o rd agen s do restan te deste
estu d o p o d em se r en c o n trad as no cap ítu lo “ G raça E m b riagan te” , desse m esm o livro.
8 H e rm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 462.
9 A u gu stu s H . S tro n g , Teologia Sistemática, vol. 2 p. 493.
10 R. C. M c G reg o r W righ t, A Soberania Banida, p. 143.
11 H e rm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 458.

Capítulo 28
1 A E scritu ra fala ain d a d a re g en eraç ão num sentid o m ais am plo, in d ican d o a restau ração final da criação,
q u e aco n tecerá na segu n d a v in d a d e Jesu s (M t 19.28). O p ró p rio C alv in o u so u a palavra co m o u m
sin ô n im o d o p ro cesso total d e ren o v ação da v id a e crescim en to espiritual d o cristão (ver R. C. M c G rcgo r
W righ t, A Soberania Banida, p. 145).
2 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 111.
3 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 473. B e rk h o f d iz q ue a re g en eraç ão age de d en tro , en q u an to a
v o ca çã o age de fora.
4 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 473.
5 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 473-474.
6 O Rev. H erm isten co m p ô s o segu in te q u ad ro co m p arativ o entre os diversos teó lo g o s re fo rm ad o s: Char­
les Hodge (1 7 9 7 -1 8 7 8 ) 1. V ocaçào. 2. R egeneração . 3. Fé. 4. Ju stificação . 5. San tificação . W. G, T. Shedd
(18 2 0 -1 8 9 4 ) 1. R egen eração . 2. C onversão. 3. Ju stificação . 4. San tificação . R .L . Dabney (1820-1898) 1.
V o cação E ficaz. 2. Fé. 3, U n ião com C risto. 4. Ju stificação . 5. A rrep en d im en to . 6. S an tificação e B oas
O bras. 7. P ersev eran ça d o s S a n t o s .^ . A. Hodge (1823-1886) 1. V ocação E ficaz. 2. R egeneração . 3. Fé. 4.
U n iào M ística. 5. A rrep en d im en to . 6. Ju stificação . 7. A d oção . 8. S an d ficação 9. P erseveran ça dos Santos.
Abraham Kuyper ( 1837-1 9 2 0 ) I . Ju stificação . 2. R egeneração . 3. V ocação. 4. C onversão. 5. Fé. 6. S a n tifica ­
ção. Herman Bavinck (1 8 5 4 -1 9 2 1 ) 1. V ocaçào C ristã/ R egen eração . 2. F é/ A rrep en d im en to . 3. Ju stificação .
4. San tificação / G lo rificação . Louis Berkhof (1873-1957) 1. U n ião M ística. 2. R eg en eração / V o cação E fi­
caz. 3. C o n v ersão : A rrep en d im en to e Fé. 4. Ju stificação . 5. San tificação . 6. P ersev eran ça d o s Santos.
Herman Hoeksema (1886-1965) 1. R egeneração . 2. V ocação E ficaz. 3. Fé. 4. C onversão. 5. Ju stifica çã o . 6.
S an tificação . 7. P ersev eran ça c P reservação . 8. G lo rificação . JohnM urrqy (189 8-19 74) 1. V ocaçào. 2. R e­
gen eração . 3. Fé e A rrep en d im en to . 4. Ju stificação . 5. A d o ção . 6. S an tificação . 7. P erseveran ça. 8. G lori-
658 Razão da esperança

fieação. A. H. Strong (183 6 -1 9 2 1 ) 1. E leição. 2. V ocação. 3. U n ião c o m C risto. 4. R egeneração . 5. C o n ver­


são. 6. Ju stifica çã o . 7. S an tificaçao . 8. Perseveran ça. (V er H crm isten M . P. C osta. Soteriologia: A Salvação do
Deus Triúnopara o seu Povo (I). Sào P aulo , 2 0 0 2 , p. 1 1 -13 ; trabalho n à o p u b licad o ).
7 A u gu stu s H. S tro n g, Teologia Sistemática , vol. 2, p. 494.
8 L o u is B erk h o f, Teologia Sitemálica , p. 416.
9 R. C. M e G rego r W righ t, A Soberania Banida, p. 102.
10 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça , p. 20.
11 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 20.
12 R. C, M c G rcg o r W righ t, A Soberania Banida, p. 114.
13 C h arles H o d g e , Teologia Sistemática , p. 1030.
14 V er jo à o C alv in o , Efésios, p. 51, E f 2.1.
f le rm a n n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 457.
10 C h arles H o d ge, Teologia Sistemática, p. 996.
17 R. C. S p ro u l, Sola Gratla , p. 20.
18 C h arles H odge» Teologia Sistemática, p. 1007.
19 R. C. M c G reg o r W righ t, A Soberania Banida, p. 145.

Capítulo 2 9
5 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 479.
2 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça , p. 133. C alv in o d izia: “A rrep en d im en to sign ifica q ue n o s retiram o s
d e n ó s m esm o s e n o s co n v ertem o s a D eus, e, tend o ab an d o n ad o a n o ssa p rim eira fo rm a de p en sa r e de
q uerer, a ssu m im o s u m a nova.” (Joào C alvino. As ínstitutas, (1541), I I .5).
3 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 1077.
4 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 1077.
5 Jo ã o C alv in o , ínstitutas, III.2.10.
6 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça , p. 147.
7 C h arles H o d ge, Teologia Sistemática, p. 1089.
8 R. C. M c G re g o r W righ t, A Soberania Banida , p. 144.
9 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 1057.
10 C itad o p o r K in R id d leb arg er. “ O q ue 6 Fé?” , cm Cristo Senhor, org. p o r M ich ael H o rto n , p. 99. V eja
tam b ém a ex p o sição ex egética de Jo e l R. B eek e no a rtigo “A R elação da Fe co m a Ju stific a ç à o ” , em
Justificação pela Fé Somente , p. 51, a an álise da ex p ressão “p ela fé” . E le argu m en ta q u e, ex egeticam en te,
jam ais p o d eria se lo c a liz a r n a fé o p o d er de salvação, m as no o b jeto da fe, q u e é C risto. N essa m esm a
o b ra, Jo h n G erstn er, no a rtigo “A N atu rez a da F e Ju stifica d o ra ” , diz: “A ssim , a B íb lia está n o s en sin an d o
q u e a fé q u e salva não é u m a o b ra. E la não tem v alo r esp iritu al cm si. M ais p recisam en te, a v erd ad eira
ig reja cristã n ão en sin a ju stificação p ela fe. E la en sin a a justificação p o r C risto ” (pp. 87-88).
11 B av in ck d iz: “A ssim com o, p elo lad o da m en te, a fe é o fru to d a regen eração , assim tam h ém , pelo lad o da
vo n ta d e, o arrep en d im e n to é a ex p ressão da n o v a v id a ” . H erm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 475.

Capítulo 30
1 V er M ich ae l H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 153.
2 C h arles H o d ge, Teologia Sistemática, p. 1115.
3 V er R. C. S p ro u l, “A N atu rez a F o ren se d a Ju stific a ç ã o ”, em Justificação Pela Fé Somente, p. 27.
4 V er R. C. S p ro u l, “A N atu reza F orense da Ju stific a ç ã o ”, em Justificação Pela Fé Somente, p. 33.
5 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 1133.
6 V er R. C. S p ro u l, “A N atu reza F o ren se d a Ju stific a ç à o ”, em Justificação Pela l'é Somente, p. 37.
7 V er R. C. S p ro u l, “A N atu rez a F o ren se da Ju stific a ç ã o ”, cm Justificação Pela F é Somente, p. 37.
8 V er R . C. S p ro u l, “A N atu rez a F o ren se d a Ju stifica çà o ”, em Justificação Pela Fé Somente, p. 38.
9 H erm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 500.
10 M esm o a a b ste n ção de “relaçõ es sexu ais ilícitas” (v. 29) tinha u m fim cerim o n ial, q u e ap o n tava para
algun s tip o s de u n iõ es co n ju gais p ro ib id as, co m o a de p aren tes p róxim os (L v 18.1-30).
11 Jo ã o C alv in o , A s Ínstitutas, (1541), IV.16.
12 H e rm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 496.
13 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 503.
14 G eo rge W h ite fic ld , Cristo: Sabedoria, Justiça, Santificação, Redenção, p. 8.
15 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 514.
Nolas 659

Capítulo 3 1
1 C atecism o M a io r d c W cstm in ster, P ergu n ta 75.
2 J. 1. P acker, A Redescoberta da Santidade, p. 14.
3 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 211.
4 P or essa razão, a B íb lia ch am a os cren tes de san to s (SI 16.3 ; A t 9 .3 2 ; Um 16.2; 2C o 8.4; E f 1.1; Cl 1.2;
lT m 5 .1 0 ; H b 6 .1 0 ; J d 3; A p 11.18).
5 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 199.
6 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 1188.
7 H erm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 521.
8 A u gu stu s H. S tro n g, Teologia Sistemática, vol. 2, p. 506.
H erm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 523.
10 W iliia m H cn d rik sen , Colossenses e Filemom, p. 158.
11 W iliia m H cn d rik sen , Colossenses e Vilemom, pp. 167-168.
12 H e rm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 529.
13 H erm an n B a v in ck , Teologia Sistemática, p. 522.
14 J. C alvino , Catecismo de Genebra, P ergu ntas 255 e 256.

Capítulo 32
1 C itad o p o r M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 192.
2 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p 549.
3 T ratarem o s d esta q u estão m ais à frente.
4 R. C. M c G reg o r W righ t, A Soberania banida, p. 149.
5 A u gu stu s H . S tro n g , Teologia Sistemática , v o l, 2 p. 631.
6 F ran cis S ch aeffer, A Obra Consumada de Cristo, p. 232.

Capítulo 33
1 N o g r e g o c a p alav ra “pneumd\ N o h eb raico “ruacti" c esp írito e tam b ém é vento.
2 N o in íc io d a ig re ja , a p re o c u p a ç ã o p rin c ip a l foi co m a p esso a d e C risto , em b o ra o E sp írito S an to
ten h a re c e b id o aten ção . D u ra n te a R e fo rm a , a o b ra do E sp irito S a n to foi e n fa tiz a d a , esp e c ia lm e n te
p o r C alv in o , q u e re d e sc o b riu o seu p a p e l n a a p lica çà o d a salv ação . P o rém , n o s estu d o s p o ste rio re s da
te o lo g ia s is te m á tic a , a p esso a e a o b ra d o E sp írito n em sem p re m e re c e ram u m a seção p ró p ria . G era l­
m e n te , ele foi e stu d a d o ju n to com a T rin d a d e o u d en tro da so tcrio lo g ia . S in c la ir B. F erg u so n , no
en ta n to , en te n d e q ue o E sp írito S an to n ão ficou esq u e c id o n o s escrito s d o s g ran d e s teó lo g o s, p o is
C alv in o , O w cn , K u yp er e o u tro s se d e d ic a ra m na a b o rd a g e m da d o u trin a do E sp írito S an to , o q ue
co n c o rd am o s p ro n ta m e n te (V er S in c la ir B. F ergu so n . O E s p ír it o S a n to . Sào P au lo : E d ito ra O s P u ri­
ta n o s, 2 0 0 0 , p. 9 -1 0 ).
3 R. C. S p ro u l, O Mistério do Espírito Santo , p. 17.
4 R. C. S p ro u l, O Mistério do Espírito Santo, p. 19.
5 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 17.
6 F. D. B ru n cr, Teologia do Espírito Santo, p. 126.
7 V er Jo h n Sto tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 20.
8 C h arles H o d ge , Teologia Sistemática, p. 395.
9 W ayne G ru d em , Teologia Sistemática , p. 533.
10 H erm an n B av in ck , Teologia Sistemática, p. 424.
11 Jo h n Stocc, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 17.
12 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Espírito Santo, p. 45.
13 Jo ã o C alv in o , A s Institutas, (1541), 11.7.
14 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Espírito Santo, p. 31.
15 D. M . L lo yd -Jo n es, Deus o Espírito Santo, p. 31.
16 P o r isso, algun s q u estio n am o pró p rio term o “ p en tcco stal” ,d izen d o q u e n ào faz sentido dentro de u m a
term in o lo gia crista, p o is, se o E sp írito San to tivesse sid o enviad o p o r o casiào da P ásco a, então haveria
crcn tcs “ p a sco a is” ?
17 V er A lan R ich ard so n , Introdução a Teologia do Novo Testamento, p. 119.
660 Razão da esperança

18 O s sam aritan o s eram h a b ita n tes d e S am aria, u m a pro v ín cia q ue, no passado, havia sido u n id a a Ju d á . N o
A n tig o T estam en to , o rein o d e Israel era co m p o sto d e doze tribos. Q u an do o re in o se d ivid iu , d ep o is do
rein ad o d e S alo m ão , Ju d á co n stitu iu u m rein o sep arad o , o R ein o d o S u l, en q u an to a m aio ria das ou tras
tribo s fo rm o u o R ein o d o N o rte , que ficou co n h ecid o com o Sam aria.
19 V er F. D. B ru n er, Teologia do Espírito Santo, p. 137.
20 F. D. B ru n er. Teologia do Espírito Santo, 148.
21 F. D. B ru n er, Teologia do Espirito Santo, p. 151.

Capítulo 34
1 J o h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo , p. 35.
2 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santot p. 44.
3 A . A . H o ek em a, Salvos pela Graça, p. 58.
4 L o u is B crk h o f, Teologia Sistemática, p. 541.
5 R. C. S p ro u l, O Mistério do Espírito Santo , p. 163.
6 R . C. S p ro u l, O Mistério do Espírito Santo , p. 164.
7 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espirito Santo, p. 56.
8 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espirito Santo , p. 56.
9 A n th o n y H o ek em a, Salvos Pela Graça, p. 51.
10 A . A . H o ek em a, O Cristão Toma Consciência do Seu Valor, p. 53.
u Jo à o C alv in o , Instituías, II.2 .1 9 .
•2 R. C . S p ro u l, Verdades Essenciais da Fé Cristã, V ol 2, p. 15.
13 E d w in H . Palmei-, E l Espiritu Santo , p. 68.
14 C .H . S p u rg co n , Firmes na Verdade, p. 72.

Capítulo 35
1 V er Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo , p. 46.
2 Jo à o C alv in o , A Verdadeira Vida Cristãy p. 25. C alv in o diz ainda: “P au lo su sten ta q ue aq u ele falso co n h e ­
cim en to q u e se ex a lta acim a d a sim p les e h u m ild e d o u trin a d a p ied ad e nào é d e form a algu m a eo n h eci-
m en to ” (Joào C alv in o , A s Pastorais, p. 186, lT m 6.20).
3 B illy G rah am , O Espírito Santo, p. 123.
4 Jo h n S to tt, A Mensagem de Efésios, p. 139.
5 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo , p. 40.
Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 42.

Capítulo 36
1 Jo h n S to tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 64.
2 D ev em o s c o n sid era r isso ju n tam en te co m a id éia de b u scarm o s os m elh o res d o n s (IC o 12.31). É n o ssa
fu nção b u sc arm o s os m elh o res, m as d ev em o s en te n d er q ue D eu s n o s dará o q ue é m elhor.
3 D. M . L lo yd -Jo n cs, Deus o Espírito Santo. p. 345.
4 Jo à o C alv in o , A Verdadeira Vida Cristã , p. 36.
5 A u gu stu s N. L o p es, O Culto Espiritual, p. 139.
6 Jo à o C alv in o , Primeira Cotintios, p. 396 (IC o 13.4).
7 C h arles H o d g e , Comentário de I Coríntios, p. 25 0 (IC o 13.7).
8 H á u m d etalh e q u e geralm en te passa d esp erceb id o nessa p a ssagem , m as q u e m erece co n sid eração da
n o ssa p arte. É a m an eira eo m o os três d on s listad o s segun d o P au lo ch egarão ao fim . P au lo d iz q ue todo s
os d o n s so m en te irão d u rar ate a v in d a d o “ q u e e p erfeito ” (IC o 13.10). A in terp retação m ais p lau sív el
d essa ex p re ssão d ev e ser cm relação à S eg u n d a V in d a d e Jesu s. É a p erfeição da era v in d o u ra , n a q u a l os
d o n s esp iritu ais n ào serão m ais n ecessário s, p o rém , o am o r co n tin uará sendo. O q u e ch am a a aten ção é
o tratam en to d iferen ciad o q u e P au lo co n ced e ao s três d on s listad o s acim a. E le diz: “p ro fecias, d esap a re­
cerão (grego : katargetesontai)>K, “língu as, cessarão (g re g o : pausontai)” ; “ciên cia, p assará (grego : katergetesetai)”
(I C o 13.8). P crccb e-sc q ue a palavra para o m o d o co m o as lín gu as acab arão nào é a m esm a p ara com o
a p ro fecia e o co n h ecim e n to d esap arecerão . N a v erd ad e, a ex p ressão g ram atica l é um verb o n a voz
m éd ia, q u e em relação a o b jeto s im p lica ação reflex iv a, cuja trad u ção p o d eria ser: “ cessarão p o r si m e s­
m a s” . E q u an d o , no v ersícu lo seguin te, ele diz “ p o rq ue cm parte, eo n h ccem o s e, cm p arte, p ro fetiza-
Notas 661

m o s” (1 3 .9 ), cie n ão in clu i o d o m d e língu as. N o v ersícu lo 10,cie d iz que “ Q u ando, p o rem , v ie r o q ue é


p erfeito , então , o q u e c em p arte (p ro fecia c co n h ecim en to ) será an iq u ilad o ” (grego : katergetesetai, o
m esm o verb o u sad o p ara p ro fecia e co n h ecim en to cm 13.8, m as n ào para lín gu as). O q u e isso pode
su gerir? P ode su gerir q u e o d o m de lín gu as nào p recisará p erm a n ece r até a segun d a v in d a de Jesu s.
P o rtan to , P au lo p o d e estar d izen d o q ue os d on s são m en o s im p o rtan tes do q ue o am o r p o rq ue ch egará
um d ia em que to d o s acab arão , c que o d o m de língu as p o d eria ser o p rim eiro a c essar, até p o rq u e ele era
o o b je to p rin cip al das d iscu ssõ es naq uele m o m ento. E m b o ra essa p assagem não seja u m a palavra finai a
re sp eito do assu n to , n ão d eix a de ser in teressan te q ue é p o ssív el v er n ela u m a in d icação d a cessação das
língu as antes m esm o da v in d a de Jesu s (ver Jo h n M acA rth u rJr., First Conntbians, (IC o 13.8); c 0.f Carismáticos,
p. 157-160). O Dr. N ico d e m o s d isco rd a in teiram en te d essa in terp retação , en ten d en d o q ue P au lo está
fazen d o apen as u m jo g o d e palav ras, q u e a vo z m éd ia n ào sign ifica reflex ivo n esse caso , e q ue sc P aulo
q u isesse d izer q u e o d o m de lín gu as cessaria an tes, p o d eria ter sim p lesm en te d eclarad o isso. (Ver A ugus-
tus N. L o p es, O Culto Espiritual, pp. 166-167).
9 V er A u gustus N. L o p es, O Culto Espiritual, p. 164.
10 E n ten d er esse “ p erfeito ” de 1 C o rín tio s 1 3.10 com o send o o cân o n da E scritu ra o u a m atu rid ad e da
ig re ja sà o in terp retaçõ es forçad as da p assagem . P aulo nào p o d eria estar falan do do fech am en to do c â ­
no n, p o is isso n ão faria q u alq u er sen tid o para os co rín tio s. O sentido ó b vio da p assagem é q ue esse
“p erfe ito ” é a v in d a d e Jesu s.
11 V er D. M . L lo yd -jo n es, Deus o Espírito Santo, p. 350.
12 Jo h n Sto tt, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 75.
13 W ayn e G ru d em e n ten d e q u e, c o m o o s p ro fetas do N o vo T estam en to não tin h am au to rid ad e eq uivalen te
aos ap ó sto lo s, p o is eles eram in stru m en to s u sad o s po r D eu s para revelar a su a v o n tad e no m eio do
po vo, m as nào n ecessariam en te in sp irad o s, então , eles não p recisam ter d esap arecid o co m o fech am ento
do cân o n . G ru d em en te n d e q u e ho je aind a há pro fetas q ue aju d am o p o vo d e D eu s a sab er a v o n tad e de
D eu s p a ra situ açõ es p articu lares, p o rém , d efen d e q u e a E scritu ra é a re g ra m áx im a p ara ju lg a r essas
pro fecias. G ru d em tenta estab elecer u m m eio -term o en tre a p o sição “ cessacio n ista” e a “c a rism á tica ”
(Cf. W ayne G ru d em , O Dom de Profecia, pp. 3 1-117). P referim o s p en sa r q ue os p ro fetas d o N T d esap are­
ceram co m os ap ó sto lo s, p o is eram ofício s divin os, m as a p ro fecia co n tin u a cm atu ação no m u n do , nào
send o apen as m ed iad a p ela E scritu ra, m as p o r m eio da E scritu ra.
14 R.B . K u ip er, E l Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 141.

Capítulo 37
1 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 255.
2 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 255.
3 E d w in H . P alm er, E / Espiritu Santo, p. 14.
4 Jo ã o C alv in o , Exposição de ITebreus, p. 153, H b 6.4.

Capítulo 38
1 R u d o lf B u ltm an n , Teologia do Novo Testamento, p. 534.
2 V er R . C. S p ro u l, Verdades Essenciais da l 7e' Cristã , C ad ern o 3, p. 7.
3 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p.561.
4 A C o n fissão d e F é de W estm instcr, X XV . 1.
3 V er W illia m M acD o n a ld , Cristo Amou a igreja, p.11-12.
6 V er G co rgc E ld o n L a d d , Teologia do Novo Testamento , p. 324.
7 V er F. F. B ru ce, Hechos de Los Apósteles, p. 346.
8 E im possível con cord ar com B ultm ann que entende que, no C ristianism o prim itivo o sacram ento de m odo
algum era um sím bolo, m as u m a celebração q ue realizava m ilagres (R udolf Bultm ann. Teologia do Novo Testa­
mento, p. 186). O sím bolo estava m uito presente tendo em m ente o p ano de fundo do A n tigo T estam ento.
9 C o m o d iz B erk h o f, “ a igreja d o N o vo T estam en to e a d a an tiga d isp en sação são essen cialm en te u m a só ”
(L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 574).
10 P ara m u ito s, a p regação da P alavra é a “ ú n ica” m arca da ig re ja v erd ad eira. E m b o ra ela seja a re g ra p ara a
a d m in istraç ão d o s sacram en to s e p ara a d iscip lin a eclesiástica, en ten d em o s q u e essas d u as ú ltim as tam ­
b ém são m arcas. P o rém , sacram en to s e d iscip lin a n ão ex istem sep arad o s da p regação da P alavra de D eu s
(V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 580).
u L o u is B erk h o f. Teologia Sistemática, p. 581.
662 Razão da esperança

12 Jo ã o C alv in o , A s Instituías, (1541), 1V.12.


13 V er P ierrc C h. M areei, E l Bautismo - Sacramento de Pacto de Grada, p. 43-44. G eralm en te é dito q ue a
P alavra é o in stru m en to da fé, e os sacram en to s, in stru m en to s para fo rtalecer a fé (ver. R. B. K u iper, El
Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 188).
14 U m a ex celen te ex p o sição so b re essas características co m o efeito s do P en tccorcs p o d e se r vista em A
Mensagem de Atos, dc Jo h n Sto tt, p. 86-93.
15 Jo h n Sto tt, A Mensagem de Atos, p. 87.
16 Jo h n F. M íicA rth u r Jt\, The MacArthur New Testamenl Commentary, A cts Volumes 1 and 2, (A t 2.42).
17 V er Jo h n S to tt, A Mensagem de Atos, p. 89.
18 V er I. H o w ard M arsh al, Atos, Introdução e Comentário, p. 84.
19 Q u an to à o raçào , d ign o de nota é o que C alv in o escreve em sua o b ra: “ C o n clu am o s p o is, q u e é im p o s­
sív el, tratan d o -se de o raçào p ú b lica ou privad a, q ue a lín gu a sem o co ração nào d esag rad e a D eu s so b re­
m o d o. Pois na v erd ad e, o co ração d eve estim u lar-se co m o ferv o r do que p en sa c ir m u ito m ais além do
q ue a lín g u a p o d e p ro n u n ciar (...) P orque, aind a q ue algum as vezes as m elh o res o raçõ es se façam sem
falar, su ced e sem d ú v id a m u itas vezes, q u e q uan d o o afeto do co ração está m u ito acen d id o , a lín gu a se
so lta, e os d em ais m em b ro s tam b ém ; e isto sem p reten são algu m a, sen ão esp o n ta n ea m en te” (Jo ão C al-
v in o , instituías, III. 20.33).
20 V er D. M. L lo yd -Jo n es, Avivamento, p. 80.
31 ,
À . W. T o zer, O Poder de Deus p. 113.

Capítulo 39
1 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 201.
2 V er H c n n a n H o ek sem a , ReJot'med Dogmatàs, pp. 632-634.
3 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , pp. 609,610.
4 M ich ael H o rto n , As Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 208.
5 P ierre C h. M a reei, E l Bautismo, Sacramento D el Pacto de Grada, p. 216.
6 W illia m H en d rik sen , E l Pacto de Gracia, pp. 27,28.
7 A o b a tiza r crian ças, os ap ó sto lo s estav am in teiram en te d en tro d a tradição ju d aica q ue b atizava os filhos
d o s p ro sé lito s (ver O sca r C ullm an n , Das Origens do Evangelho à Formação da Teologia Cristã , p. 131).
8 V er W illia m H en d rik sen , E l Pacto de Grada, p. 29.
9 Jo ã o C alv in o , A s Instituías, (1541), III.11.
10 C onferir u m a excelente argum entação, nesse sentido, em De la insígnia cristiana, d e Charles H odge, pp. 10-23.
11 E ssas p a ssa g en s falam dc b atism o s co m o ab lu çõ es, que eram riruais de p u rificação . E les praticavam
esses ritu ais cm cop os, jarro s, vaso s d c m etal e cam as. A id éia de afu n d ar u m a cam a n u m rio p arece
estran h a.
12 P h ilp p c L an d es d em o n stra com o os Pais da igreja en te n d iam q ue a palavra b atizar p o d eria sin gificar
“ d erra m a r águ a” . E le lista d iversos textos d a p atrística p ara co m p ro v ar isso, O s pais d a ig re ja falam so bre
p esso as q ue receb iam o b atism o em seus leito s (ver P hilippe L an d es, Estudos Sobre o Batismo — O modo de
Administrá-lo , pp. 84-90).
u P h ilip p e L a n d es, Estudos Sobre o Batismo - O modo de Administrá-lo, p. 67.
14 A p rep o sição g re g a “ e i s q ue L u cas usa para d izer q ue F ilip e e o eu n u co d esceram à águ a, de aco rd o com
v á ria s o u tras v ezes cm q ue ela é u sad a no N ovo T estam en to , não sign ifica n ecessariam en te “ p ara d en tro
d c ” , co m o no sen tid o d e afu n d ar (A t 16.16; L c 8.2 6 ; J o 7.8).
15 V er M ich ae l H orto n,^4.r Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 215.
Jo ão C alvino, A s Instituías, (1541), IV.12, em que o refo rm ad o r diz ainda, “ O batism o é u m só e jam ais deve
ser repetido, m as a C eia é distribuída m uitas vezes, a fim de que aqueles que um a vez foram recebidos e
inseridos na igreja entendam que são continuam ente alim entados c refeitos ou renovados po r Jesu s C risto” .
17 E s p e c ia lm e n te d u ra n te a R e fo rm a , a q u e s tã o da C e ia fo i b a s ta n te d is c u tid a , R o m a d e fe n d ia a
Transubstanciação, q u e foi d efin id a no Q u arto C o n cílio L atcran en se em 1215. Isso sign ifica q u e a su b stân ­
cia do p ão e d o v in h o era m iracu lo sam en te tran sfo rm ad a na su b stân cia d o co rp o c do san gu e d o Sen hor,
de m o d o q u e já não d ev eriam ser v isto s co m o p ão e vinho , em b o ra p a recessem ser. L u tero crio u ou tra
teo ria q ue ficou co n h ecid a com o Consubstanciação. O s lu teran o s d efen d iam u m tipo d e co m u n ic aç ão de
atrib u to s entre a n atu reza d iv in a e a natu reza h u m an a de Jesu s. A ssim , a n atu rez a d iv in a co m u n ico u à
n atu reza h u m an a d e Je su s o atrib u to d a o n ip resen ça. D esse m o d o , Je su s teria se to rn ado fisicam en te
o n ip resen te. Isso c ch am ad o dc u b iqü id ad e do co rp o de C risto. E ssa foi a m an eira q ue L u tero en co n tro u
p ara d efen d er a p resen ça física d e Je su s n a C eia, b asead o na ex p ressão : “Isto e o m eu co rp o ” . U m a vez
q u e, segu n d o as id eias d e L u tero, Jesu s se to m o u fisicam en te o n ip resen te p o r cau sa da co m u n icação de
Nolas 663

atrib u to s, en tão , n o m o m en to da C eia, o co rp o físico de Je su s está “ co n su b stan ciad o ” co m os elem en to s


do pão e d o vin h o . Z iu n glio n eg o u q u e o C risto glo rificad o esteja p resen te na C eia d o Sen hor, ap elan do
ap en as para a q u estão m em o rial da C eia. C alv in o co n co rd av a com Z u ín glio no sen tid o de sim b o lo gia,
m as en ten d ia q u e C risto, p o r m eio d o E sp írito , co n ced e aos ad o rad o res u m v erd ad eiro g o z o d e sua
p resen ça p esso al, atrain d o -o s à co m un h ão com ele no céu , de m an eira glo rio sa e b em real, não o b stan te
in d escritív el (ver J. 1. P acker, Teologia Concisa, p. 202.).
18 V er M ich ael H o rto n , As Doutrinas da Maravilhosa Grafa, p. 216.
19 V er M ich ael H o rto n , A s Doutrinas da Maravilhosa Graça, p. 218.
20 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 663,
2! C atecism o M e n o r de W estm inster, Perg. 85.

Capítulo 40
1 J. J. V on A llm en , O Culto Cristão - Teologia e Prática, p. 60.
2 C itad o p o r Jo h n F. M acA rth u r, Jr., Com Vergonha do Evangelho, p.73.
3 Jo ã o C alv in o , Jnstitutas, 1.3.1.
4 A go sd n h o , The Confessions o f Saint Augustin, 1. 1.
5 Jo ã o C alv in o , Instituías, 1.3,1.
6 R . B. K u iper, E l Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 325,
7 Jo h n M aeA rtu r, Jr., Kedescobrindo o Ministério Pastoral, p. 268.
8 E d ifíc il sab er o sign ificad o p reciso de N eu stã; po d e ser “ d eu s de b ro n z e” , de aco rd o co m a d efin ição do
B D B (’TheAbridgedBrom-Driver-Btiggs ITebmv-English Lexicon o f the Old Testament, org. p o r R ichard W hitaker,
v erb ete “ N eu stã ”), o u u m o b jeto feito d e bronze, segun d o o EnhancedStrong} s I^exicon, verb ete “ N eu stà ” .
9 Jo hn M aeA rtu r, Jr., Kedescobrindo o MinistérioP astoral p. 268.
10 Jo h n M a eA rtu r, Jr., Kedescobrindo o Ministério Pastoral\ p. 268.
11 Jo h n M a eA rtu r, Jr ., Kedescobrindo o Ministério Pastoral,\ p. 268.
12 V ald ecí d o s San to s ap o n ta q u atro co rren tes filo só ficas q u e têm in flu en ciad o gran d em en te a p o stu ra dos
cren tes n a ad o ração : O existen cialism o , o hum an ism o , o d eísm o e o p ragm atism o . V er V aldeci dos
San to s, “ R efled n d o S o b re a A d o ração e o C ulto C ristã o ” , R evista V‘ides Keformata , pp. 141-143.
13 Isso n ão sign ifica q u e, para q ue o culto seja v erd ad eiro , tenh am os q ue “n o s sen tir m a l” . A p en as, o po nto
a ser en ten d id o aq u i e o da p rio rid ad e. A p rio rid ad e do cu lto não é o “ sen tir-se b em ” , m as ad o rar a D eus.
14 V er R . N. C h am p lin e J. M . B en tes, Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia , Vol. 3, p. 178.
15 Jo h n R. W. S to tt, Crer é Também Pensar ; p. 30.
10 V er J. J. V on A llm en , O Culto Cristão, p. 26.
17 V er Jo h n F. M acA rth u r, Jr., Kedescobrindo oM inistério Pastoral.\ p. 277.
18 V er Jo h n F. M acA rth u r, Jr., Com Vergonha do Evangelho, p.73ss.

Capítulo 41
1 V er W alter C. K aiser, Jr., 'Teologia do Antigo Testamento , p. 121.
2 V er D w ig h t L. M o ody, Prevailing Prayer; Whaí Hinderes It?, pp. 14,15.
3 Ver Jo ã o C alv in o , Institutas, I I .6.1-2.
4 H a rrie t e G erard V an G ro n in g en , A Familia da Aliança, p. 215.
C itad o p o r J. I. P acker, Entre os Gigantes de Deus , p. 274.
6 D. M . L lo yd -Jo n es, Avivamento , pp. 75,76.
7 B ên ção aqui não é no se n d d o m o d ern o de re ceb er algu m b en efício físico de D eus. A qui, b en ção é a
pró p ria p resen ça de D eus.
8 V er P au l E n n s, í(Fello\vship” , em The Moody Handbook o f Theology. V er T am b ém J. D. D o u glas, O Novo
Dicionário da Bíblia , V o lu m e único, p. 310.
9 Jo h n F. M a cA rth u r Jr ., Romanos (15.6).
10 J. I. P acker., Entre os Gigantes de Deus, pp. 274,275.
11 V er Jo h n Sto tt. Eu Creio na Pregação, p. 51.
12 Jo h n F. M acA rth u r Jr ., Com Vergonha do Evangelho, pp. 117,118,130.
13 Jo h n B u n yan e T h o m a s G o o d w in , La Qraciôn, p. 5.
14 W illia m H en d rik sen , Colosenses e Filemon, p. 189ss.
15 V er R ich ard C. T ren ch , Synonyms o f The N ew Testament, par. L X X V III. E tam bém W illiam H en d rik sen ,
Colosenses e Filemon, p. 189. Para u m a a b o rd agem m ais recen te d este assu n to v er R alp h P. M artin , Colossm-
ses e Filemon, pp. 126-128.
664 Razão da esperança

16 V er W illia m H en d rik sen , Efésios, p. 263.


17 Jo h n R. W. S to tt, A Mensagem de Efésios, pp. 153,154.
18 A lgu n s h in o s d a ig reja tam b ém têm essa atitu d e, co m o p o r exem plo, o h ino 19 do Novo Cântico q u e diz
“V in d e ó re m id o s, filh os d e D eu s, can tai lo u v o res q u e alcan cem os céu s” .
19 Sim o n J. K istem ak er, Hechos, p. 118.
2Ü V er J. J. V on A llm en , O Culto Cristão, p. 175ss.
21 Jn stin o de R o m a, 1 Apologia, p. 67.
22 Jo à o C alv in o , Instituías, IV .27.43.
23 V er J. J. Von. A llm en , O Culto Cristão, p. 177as.
24 P cter C. C raigie , Word Biblical Commentary\ Volume 19: Psalms 1-50, (SI 41.1).
25 O Salm o 149.3 tam b ém la ia em lo u v a r co m “ d an ças” , m as a E d içào R evista e A tu aliz ad a trad u ziu com o
“ fla u ta ” . O p eso d a m aio ria esm a g a d o ra das versões am erican as ap o n ta para “ d a n ça ” co m o a tradu çào
m ais p ro v áv el. T am b ém esse é o en ten d im en to d e A llen . V er L eslie C. A llen , Word Biblical Commentary,
Volume 21: Psalms 101-150 (SI 147).
26 V er J. D. D o u glas, O Novo Dicionário da Bíblia, p. 386.
27 Jo à o C alv in o , A s Instituías, IV. 10.30.
28 Jo ã o C alv in o , A s Institutas, IV .17.43.
29 A s características a se g u ir foram su gerid as p o r R . B. K u ip er, E l Cuerpo Glorioso de Cristo, pp. 330 -337.
30 R . B. K u ip er, E l Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 334.
31 C itad o p o r Jo h n H . L e ith , A Tradição Reformada , pp. 289,290.
32 L a rry C rabb, Como Compreender as Pessoas, p. 142.

Capítulo 42
1 C h eg a m o s ago ra à ú ltim a d iscip lin a d a T eo lo g ia S istem ática, ch am ad a de liscatologia. E la d iz re sp eito ao
estu d o da d o u trin a das “ú ltim as co isas” .
2 Jü rg e n M o ltm an n , Teologia da Esperança, p. 22.
3 G erard V an G ro n in g en , Criação e Consumação, p. 29.
4 A n th o n y H o ek cm a, A Bíblia e o Futuro, p. 11.
5 A n tho ny H o ek cm a, A Bíblia e o Futuro, p. 13.
6 V er A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Euturo, p. 15.
7 T. W M an so n , O Ensino de Jesus, p. 249.
8 A n th o n y H o ek cm a, A Bíblia e o Futuro , p. 20.
9 V er A n th o n y H o ek cm a, A Bíblia e o Futuro , p. 25.
G co rg e E . L a d d , Teologia do Novo Testamento , p. 184.
11 V er A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 28.
12 H en d rik u s B erk h o f, La Doctrina deJEspíritu Santo, p. 118.
13 A n th o n y H o ek em a, Bíblia e o Futuro, p. 30.
14 C itad o p o r A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro , p. 79.
b V er A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro , p.83.
16 Ja m e s D. G. D u n n , Word BiblicalCommentary, Volume 38a: Romans 1-8 (R m 8 .23 ).
17 Jo ã o C alv in o , Romanos, p. 287 (R m 8.23).

Capítulo 43
1 L o ra in e B o ettn er, Imortalidade, p. 67.
2 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 679.
3 L o rain e B o ettn er, Imortalidade, p. 71.
4 L o rain e B o ettn er, Imortalidade, pp. 61,62.
5 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 679.
6 V er L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 680.
7 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 678.
8 C h arles H o d gc , Teologia Sistemática , p. 1548.
Notas 665

Capítulo 44
1 B u ltm an n e G o p p elt n ão h esitam em d iz er q ue Je su s se eq uiv o co u , po is esses an ú n cio s nu n ca teriam se
co n cretizad o . (V er L eo n h ard G o p p elt, Teologia do Novo Testamento, p. 92). E sses estu d io so s nào estão
p reo cu p ad o s co m a v eracid ad e h istó rica d as ex p ressõ es de Je su s, p ara cies o q ue im p o rta é a m en sagem .
J, Je rem ia s tam bém en ten d e q u e Je su s esp erav a a m an ifestação final d o rein o co m o im in en te, m as e n te n ­
de q ue Je su s acred itav a q ue D eu s p o d eria ad iar essa v in d a o u an tecip á-la, em re sp o sta à o ração das
p esso as (ver J. Je rem ias. Teologia do Novo Testamento , pp. 218,219).
2 J o h n F. M a cA rth u r, Jr ., The M acArthur N ew Testament Commentaiy, Matthew (M t 24 .3 4 ). N o en tan to ,
M a cA rth u r ad m ite q ue d ev am ser co n sid erad o s tam b ém os gen tio s vivos n a v in d a de Jesu s.
3 V er A d o lf P o h l, Evangelho de Marcos, p. 379.
4 V er D o n ald A . H agner, Word Biblical Commentaiy, Volume 33b: Matthew 14-28 (M t 24.3 4).
5 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 217.

Capítulo 45
1 M u ito s estu d io so s en ten d em q ue essa é u m a b atalh a m ítica, à sem elh an ça d e várias b atalh as entre anjos
e d em ô n io s d as lite ratu ras prim itivas (ver D av id E. A u n e, Word Biblical Commentaiy, Volume 52b: Kcvelation
6-16 (A p 12.7-9)). É p referív el pen sar que ele está d escrev en d o , em term o s sim b ó lico s, co m o é p ró p rio
d a lite ra tu ra ap o c alíp tica , a gran d e v itó ria de C risto so b re os p rin cip ad o s e po testades.
2 A s ex p re ssõ es “ u m tem p o, tem p os e m etad e de u m tem p o ” , “ 1.260 d ias” , “ três an o s e m eio ” referem -se
a u m m esm o p erío d o d e tem po. E a d isp cn saçào crista total, d esd e a p rim eira até a segun d a vin d a. E um
p erío d o m u ito lo n g o , d u ran te o qual Satan ás p ersegue a igreja.
3 V er W illia m H en d rik sen , Mais que Vencedores, pp. 175-181.
4 V er W illia m H en d rik sen , Mais que Vencedores, p. 178.
5 W illia m H en d rik sen , M ais que Vencedores, p. 181.
6 D iv ersas teo rias têm sid o ap resen tad as para ex p licar a en igm ática ex p ressão de P au lo “ aqu ele q u e ago ra
o d e té m ” . A m issão d e P aulo , o E sp írito Santo , o Im p ério R om ano, são algum as d elas (ver F. F. B ruce.
Word Biblical Commentaiy, Volume 45: 1 & 2 Thessalonians, (2Ts 2.7)). E m ais p ro v áv el q ue se trate do ato
div in o d e re strin g ir o m al, que será lib erad o q uan d o S atan ás fo r so lto da p risão d o s m il anos.

Capítulo 46
1 V er P a u l E n n s, The Moody Handbook o f Theology\T o p ico ; “D isp en satio n al P re m illen n ia lism ” . V er tam b ém
A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, pp. 221,2 2 2 .
2 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 228.
3 A lgu n s p ré-m ilen istas a cred itam n u m a ú n ica v in d a de C risto, e n esse p o n to estão em co n fo rm id ad e com
a E scritu ra. V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, pp. 701,702.
4 V er W illia m H en d rik sen , Mais que Vencedores, pp. 211-213.
5 V er F. F. B ru ce, Word Biblical Commentaiy, Volume45: 1 <&2 Thessalonians (lT s 4.17).

Capítulo 47
1 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 223.
2 O q u ad ro é retirad o de P aul E n ns, The Moody Handbook o f Theology, T ó p ico : “A m illen n ialism ” .
3 A ex p o sição a se gu ir segue, em lin h as gerais, W illiam H en d rik sen , M ais que Vencedores, pp. 217-2 25.
4 V er S im o n K istem ak er, Apocalipse, pp. 673,674.
5 V er W J. G ricr, O M aior de Todos os Acontecimentos, pp. 126,127.
6 V er W illia m H en d rik sen , Mais que Vencedores, pp. 26-35.
7 W illia m H en d rik sen , M ais que Vencedores, p. 218.
8 W. J. G rier, O M aior de Todos os Acontecimentos, p. 128.
9 S im o n IC istcm akcr, Apocalipse, p. 675.
10 S im o n K istem ak er, Apocalipse, p. 680.
11 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro , p. 244.
12 W. J. G rier, O M aior de Todos os Acontecimentos, p. 36.
13 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 274.
666 Razão da esperança

14 O u tras p assagen s que p o d em se r in terp retad as n esse sentid o sem su gerir a idéia do m ilên io sào: je re m ia s
2 3 .3 -8 ; E zeq u iel 3 4 .1 2 ,1 3 ; E zeq u iel 3 6 .2 4 ; Z acarias 8.7,8; A m ó s 9.14 ,15, etc,

Capítulo 48
1 O p ré-m ilen ism o d isp cn sacio n alista d efen d e q ue, d ep o is do arreb atam en to da ig re ja , h averá sete anos de
trib u laçào na terra, q u an d o jud eus e gen tio s se co n verterão . O s q ue tiverem m o rrid o n esse período,
terão d e ressu scitar.
2 F. F. B ru ce, Word Biblical Commentary, Volume 45: 1 <&2 Thessalonians (lT s 4.15).
3 A ssim co m o ele nào d isse n ad a em 1 C o rín tio s 15.23, onde d escreve apen as a re ssu rreição d o s salvos.
E le está falan d o p ara a ig re ja , c nào q uis en trar em d etalh es so bre a ressu rreição d o s ím pios. P o rém , pelo
sim p les fato de nào ter sid o m en cio n ad a, isso nào sign ifica q u e a ressu rreição dos ím p io s a co n tecerá
n u m o u tro m o m ento.
4 L o uis B erk h o f, Teologia Sistemática^ p. 730.
5 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , p. 729.
6 J á ab o rd am o s este tóp ico no cap ítu lo so bre a ressu rreição de Cristo.
7 H en d rik sen e n te n d e q u e a ex p ressão “ esp írito ” q ue Je su s u so u (gr. Psykê), in d ica a en tid ad e in visível do
h o m em co n sid erad o em su a relação co m D eu s (W illiam H en d riksen , Mateo , p. 964).

Capítulo 49
1 E m algu m a m ed id a, essa id éia está certa. D eu s realm en te p u n e o m al e re co m p en sa o bem nesta vida,
p o rém , d e m o d o algu m em term o s ab so lu to s (ver L o uis B erkh o f, Teologia Sistemática, p. 735).
2 U m a ex celen te ex p o sição so bre o tem a no S alm o 73 p o d e ser en co n trad a em Por que Prosperam os ímpios?,
de D. M . L lo yd -jo n es, Sào P aulo : P u b licaçõ es E v an gélicas Selecio n ad as, 1983.
3 S im o n K istem ak c r, Apocalipse, p. 685.
4 V er L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática , pp. 737,738.
5 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática, p. 738.

Capítulo 50
1 H o ek em a eita o p ai d a ig re ja O rígen es (185-254) co m o d efen so r d essa po sição.V er A n th o n y H o ek em a,
A Bíblia e o Futuro, p. 355.
2 A n th o n y H o ek em a, A Bíblia e o Futuro, p. 365.
3 A d o lf P o h l, Apocalipse de João II , p. 279.
4 L o u is B erk h o f, Teologia Sistemática^ p. 743.
5 J. C alv in o , A s Instituías, I II.2,43.
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Razão da esperança
Leandro Antonio de Lima é A obra do Rev. Leandro Antonio de Lima
ministro presbiteriano, bacharel é um tratado de Teologia que aborda de
em teologia pelo Seminário forma sistemática, profunda, simples e
Presbiteriano Rev. José Manoel prática diversos tópicos da chamada
da Conceição - SP, mestre em Teologia Sistemática sem perder o seu
Teologia pelo Centro propósito de ser compreensível e edifi­
Presbiteriano de Pós-Graduação cante.
Andrew Jumper - SR autor de Partindo da autoridade inerrante e
diversos artigos e de lições infalível das Escrituras, o autor se propõe a
para revistas de Escola apresentar a razão da nossa esperança
Dominical desta editora. (1 Pe 3.15,16), fundamentando-a não em
lendas ou ficções, mas na Palavra de Deus,
que nos fala do nosso passado, orienta
nosso presente e nosso futuro. Desse
modo, o autor, de maneira séria e
corajosa, vai expondo diante de nós
tópicos difíceis da Teologia, demonstrando
com fidelidade bíblica caminhos que
podemos seguir de modo coerente com a
Palavra.
(Adaptado do Prefácio)

Teologia Sistemática/Doutrina

ISBN 85-7622-140-3

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www.cep.org.br

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