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Corpos roubados

Cenas de violência obstétrica retratam o desrespeito aos direitos reprodutivos no


Brasil. Projetos e iniciativas buscam dar visibilidade à questão, lutando para que
mulheres tenham partos dignos.

Por Michelle Prazeres e Jamila Maia1

"Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar o modo de nascer"


Michel Odent

Barriga que tem “cheiro de churrasco” durante o corte com bisturi a laser na
cesariana. Ameaça de degolar um bebê ao fazer a cirurgia, caso a mãe não concordasse
em ir para a sala de parto. Bebês retirados do útero e examinados violentamente antes de
serem entregues às suas mães e pais para um dos mais sublimes encontros da vida. Estas
são cenas protagonizadas por profissionais de saúde e caracterizam exemplos clássicos
da violência obstétrica, que acomete uma em cada quatro mulheres brasileiras.
Trata-se de um tipo específico de violência contra as mulheres (também contra
os bebês e, por consequência, contra seus companheiros ou companheiras e sua família)
que desfruta de uma desconfortável qualidade: é praticamente invisível. Seja pelo fato
de acontecer, em geral, no momento do nascimento, que é tão esperado e pelo qual se
nutrem expectativas de perfeição; seja por ser praticada por profissionais de saúde, que
constituem uma categoria forte e “blindada” socialmente, posto que reconhecida como
séria e detentora de legitimidade; seja “simplesmente” por se tratar de um tipo de
violência contra as mulheres, em geral, colocadas em condição fragilizada e alienadas
de seu próprio corpo.
Se esse tipo de violência virou algo corriqueiro, o cenário parece começar a
mudar em função, principalmente, de dois movimentos: o primeiro são as iniciativas
que buscam denunciar essas atrocidades com mulheres e famílias no momento do parto
e do nascimento e que estão ganhando cada vez mais notoriedade; o segundo são as
ações, movimentos, coletivos e grupos de apoio dedicados à humanização do parto e do
nascimento.
As situações listadas no início do texto foram reveladas por uma ação de
blogagem coletiva chamada “Teste da Violência Obstétrica”2. O teste contou com 1.966

1
Michelle Prazeres é jornalista e mãe do Miguel. Jamila Maia é tradutora e mãe do Gael.
Amigas, ambas são ativistas pela humanização do parto e do nascimento.
respostas de mulheres que em sua maioria (82%) estavam relatando episódios ocorridos
na gestação e parto do primeiro filho, que aconteceu majoritariamente em um hospital
privado, através de convênio (56%). A pesquisa revelou dados como:

12% das entrevistadas disseram que os profissionais de saúde fizeram piadas


sobre o comportamento delas;
9% disseram que os médicos e enfermeiros mandaram a parturiente parar de
gritar;
37% das gestantes sentiram medo pela sua própria saúde ou a do bebê;
24% disseram não terem sido informadas previamente ou consultadas sobre a
realização da episiotomia (corte na vagina no momento que o bebê está nascendo);
23% declararam não ter conhecimento prévio ou não ter consentido com a
administração de ocitocina (hormônio sintético usado para acelerar o trabalho de parto).

Os números mostram que é comum os profissionais de saúde conduzirem


intervenções ao longo do processo de trabalho de parto ou cirurgia sem consulta prévia
às pacientes, ou – mais grave ainda – conduzirem o próprio parto, sem deixar a mulher
protagonizar este momento. Esta talvez seja uma das mais severas formas de violentar,
como conta Anne Rammi, vítima de violência obstétrica na forma de uma cesárea
agendada por coação médica. “Sofri uma cesárea indesejada – agendada por coação
médica sem motivo real – às 38 semanas de gestação, mesmo tendo sempre conversado
com meu médico sobre meu desejo de parto normal. Descobri que fui vítima de uma
prática comum, que é a de usar um motivo técnico e ameaçar a vida do bebê para fazer
uma cirurgia por conforto médico. O motivo era “placenta madura”. Hoje, conhecendo a
medicina baseada em evidências e o modelo humanizado de atendimento ao parto, sei
que fui vítima de um modelo pautado nos interesses de médicos, convênios e hospitais.
Então vai além de eu me considerar vítima. Fomos vítimas, meu filho e eu”, afirma a
arquiteta que é blogueira, editora do Super Duper3 e uma das idealizadoras do site
Mamatraca4, que trata temas de maternidade e infância com vídeos.
Segundo dados do Ministério da Saúde - Sistema de Informações sobre Nascidos
Vivos (SINASC), de 2008 para 2009, a taxa de partos cesáreos ultrapassou a de partos
2
Para mais, veja: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012/05/teste-da-violencia-
obstetrica.html
3
http://www.superduper.com.br/
4
http://mamatraca.com.br/
normais no Brasil. Em 2010, a taxa de cesáreas atingiu 52,3%. Na rede privada, o índice
de partos cesáreos chega a 82% e na rede pública, a 37%. (Blog da Saúde / Ministério
da Saúde, 2012).
O Brasil é o país com maior índice de partos cesáreos no mundo. A título de
comparação e para se chegar a um parâmetro, a taxa da Noruega é de 16,6%, da Suécia,
17,3%, do Japão, 17,4% e da França, 18,8%. Além disso, a Organização Mundial da
Saúde preconiza que não há justificativa para nenhuma região ter uma taxa de
incidência de cesáreas acima de 10-15%.

Violência invisível, mas institucionalizada

Para Ligia Moreiras Sena – que é bióloga, mestre em Farmacologia, doutoranda


em Saúde Coletiva e autora do blog Cientista que Virou Mãe, através do qual se tornou
um dos expoentes do movimento brasileiro pela denúncia e fim da violência obstétrica -
, a falta de informação é apenas um dos fatores que contribuem para a invisibilidade e o
desconhecimento da violência obstétrica. “Um agravante é o "produto final" do evento
de nascimento: a chegada de um filho. É um momento tão especial, marcado por tantas
emoções e surpresas que, muito embora as mulheres tenham sofrido agressões e
violências, acabam minimizando o que sofreram em função da alegria do momento. É
comum, inclusive, ouvir mulheres dizendo que “o profissional foi extremamente
grosseiro comigo, mas tudo bem, o que importa é que meu filho chegou e veio
saudável”, explica Ligia.
Para ela, a violência “sutil” se dá porque a maioria das mulheres a vê como parte
indissociável de um sistema. Apesar de ser invisível, é uma violência institucionalizada:
“as mulheres acham que são tratadas daquela maneira porque "é assim que acontece
mesmo", ou "faz parte". Isso faz com que grande parcela das gestantes atendidas não
problematize a violência que sofrem ou sofreram, por vê-la como integrante obrigatória
da situação. Isso mostra que o atendimento no Brasil é assim, seja qual for a instituição.
São resquícios de um modelo militar de organização, vindo do período da ditadura. Por
isso, também é uma forma de violência institucional”, explica. O trauma às vezes é tão
profundo, que a mulher desiste de ter mais filhos para não ter que vivenciar a
experiência novamente.
Para a fotógrafa Carla Raiter, idealizadora do projeto 1:4, que colhe e organiza
imagens de violência obstétrica como forma de denunciar a situação sofrida pelas
mulheres, o maior problema não é a invisibilidade, mas sim a forma como a sociedade
vê esse tipo de violência – ou não quer ver. “A mulher que reclama do atendimento ao
parto é julgada, porque ousa duvidar dos profissionais, que estudaram anos para isso, é
julgada porque está reclamando do processo que trouxe o filho dela ao mundo, é julgada
por não estar feliz com o fato de o filho dela ter nascido com saúde. Ela é levada a
acreditar que as coisas são assim mesmo, inclusive pelas referências que ela teve a vida
inteira sobre o assunto: o parto é algo institucionalizado, cheio de protocolos
obrigatórios, sem humanização no atendimento, com privação de água e comida, sem
liberdade de movimentação e sem permissão para ter um acompanhante. Tudo isso é tão
comum nas histórias que herdamos de nossas famílias que, no final das contas, não gera
o espanto que seria necessário para motivar a denúncia. Com exceção de casos extremos
de erros médicos com prejuízo para mãe ou bebê, a mulher que passa pelo processo
acha que foi tudo dentro do normal, ou ainda que ninguém vai levá-la a sério”, explica
Carla.
Anne afirma que a violência obstétrica é invisível até o momento em que se
conhecem outras possibilidades. “Quer dizer que eu podia parir? Que eu não precisava
amargar esse corte na barriga? Que dava para ter esperado o tempo do meu filho?
Pronto... aquela cesárea "amada" virou violência. É uma prática do patriarcado para
imprimir força contra nossos corpos. Simbolicamente, onde somos diferentes e por onde
também nos mostramos poderosas”. Para ela, a invisibilidade do tema se dá porque ele
circula em um ambiente de “cortina de fumaça” criada pela ideia de que as escolhas da
mulher durante o parto são individuais. “Sabemos que nesse modelo em que vivemos,
não há escolhas”, afirma.

Heranças do patriarcado

Em seus depoimentos, Ligia, Anne e Carla colocam no centro da questão a


herança de séculos de patriarcado, que tem como consequência a alienação das
mulheres do próprio corpo e a aceitação de uma situação de violência e brutalidade
como algo “normal”. O fato de ser uma violência institucionalizada e não reconhecida
social e politicamente também contribui para que as mulheres aceitem e não denunciem
as situações. Para Ligia, a dificuldade para denunciar é outro fator que favorece a
invisibilidade e, portanto, a perpetuação das práticas violentas institucionais. A cientista
ressalta a urgência da criação de um canal direto de denúncia, um disque-violência
obstétrica, que ouça a mulher, colha a queixa e dê andamento a um processo.
Atualmente, o caminho de denúncia é tão incerto que muitas mulheres acabam
desistindo antes mesmo de começar.
Hoje em dia, se uma brasileira quiser denunciar uma situação de violência
obstétrica, pode recorrer a canais informais, como os blogs, redes sociais e projetos
especiais, como o Mapa da Violência Obstétrica no Brasil, além de alguns canais
institucionais.5.
A parteira Ana Cristina Duarte6, que está à frente do Grupo de Apoio à
Maternidade Ativa (GAMA), um dos grupos de apoio ao parto humanizado do Brasil,
indica outros caminhos para denunciar: exigir o prontuário no hospital e escrever uma
carta contando em detalhes que tipo de violência sofreu e como se sentiu. Se o parto foi
no SUS, enviar uma carta para a Ouvidoria do Hospital com cópia para a Diretoria
Clínica, para a Secretaria Municipal de Saúde e para a Secretaria Estadual de Saúde. Se
foi em hospital da rede privada, enviar a carta para a Diretoria Clínica do Hospital, com
cópia para a Diretoria do seu Plano de Saúde, para a ANS (Agência Nacional de Saúde
Suplementar) e para as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde.
O blog Minha Mãe Que Disse7, outra iniciativa engajada na denúncia da
violência obstétrica, fez uma compilação de dicas e informa que “desde 2011 o SUS faz
uma pesquisa de qualidade relativa às internações na rede – atendimento ao parto
incluído” e que “todo paciente recebe em casa uma CARTA SUS8, com o valor dos
procedimentos que realizou e um campo para avaliar o atendimento que recebeu”. A
pesquisa é um canal que pode ser utilizado para informar sobre a violência sofrida.
Outra iniciativa, também informada pelo blog, é a Ouvidoria Ativa da Rede
Cegonha (estratégia do Ministério da Saúde para melhorar a assistência ao parto,
também vinculada ao SUS). Pelo sistema da ouvidoria, mulheres que tiveram seus
partos dentro da Rede Cegonha recebem uma ligação e respondem a perguntas pessoais
e sobre atenção à saúde no pré-natal, parto, pós-parto e saúde da criança, informa o
blog, acrescentando que as usuárias são escolhidas por amostragem.

5
Website: https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/
6
Para mais, veja: http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-
obstetrica-by-ana.html
7
Fonte: http://minhamaequedisse.com/2013/04/os-ventos-estarao-mudando-no-cenario-
obstetrico-brasileiro/
8
Fonte:
http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/index.cfm?portal=pagina.visualizarTexto&codConte
udo=6942&codModuloArea=168&chamada=carta-sus
Existem, portanto, alguns meios para se comunicar a violência sofrida pela
mulher, mas se ela tiver interesse em levar o caso à justiça, o ideal é consultar um
advogado. A advogada Gabriella Sallit já entrou com uma ação por violência obstétrica
em nome de uma cliente em uma ação pioneira no Brasil. Em post no blog Dadada9 ela
afirma que a “decisão de denunciar a violência obstétrica deve ser tomada com cuidado,
depois de muita reflexão. Acusar alguém é mais difícil do que se imagina. Os processos,
sejam administrativos ou judiciais, reviram a vida da gente, remoem coisas que são
dolorosas, envolvem terceiros que nem sempre concordam com a nossa postura
(marido, filhos etc.). Nem sempre o jogo é limpo. Na verdade, poucas vezes é”. No
texto, ela deixa algumas dicas para quem resolver denunciar uma ação de violência
obstétrica.

Formas de violência obstétrica

Como citou Ligia, uma das dificuldades de organizar informações e denunciar se


deve ao fato de no Brasil, a violência obstétrica não estar tipificada em lei e não ser
reconhecida como tal. A Venezuela é o único país onde este tipo de violência está
discriminado. A Lei Orgânica pelos Direitos das Mulheres qualifica a violência
obstétrica como “a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por
profissional de saúde que se expressa em um tratamento desumanizador e um abuso de
medicalização e patologização dos processos naturais, trazendo consigo a perda da
autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade,
impactando negativamente a qualidade de vida das mulheres”10.
São considerados atos de violência obstétrica na Venezuela: não atender
oportuna e eficazmente as emergências obstétricas; obrigar a mulher a parir em posição
supina e com as pernas levantadas, existindo os meios necessários para a realização do
parto vertical; obstaculizar o apego imediato do bebê com a mãe sem causa médica
justificada, negando-lhe a possibilidade de carregar o bebê e amamentá-lo
imediatamente após nascer; alterar o processo natural do parto de baixo risco, mediante
o uso de técnicas de aceleração, sem consentimento voluntário, expresso e informado da

9
http://www.dadada.com.br/2013/04/01/como-denunciar-a-violencia-obstetrica/
10
Tradução livre da lei venezuelana, que pode ser consultada aqui:
http://venezuela.unfpa.org/doumentos/Ley_mujer.pdf
mulher; praticar o parto por via de cesárea, existindo condições para o parto natural,
sem obter consentimento voluntário, expresso e informado da mulher.
Outros atos que podem ser considerados violência obstétrica, segundo Ana
Cristina Duarte11 são:
impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, familiar
ou de seu círculo social;
tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, zombeteira ou de
qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, incluindo tratá-la de
forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos;
submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes,
como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas
abertas;
impedir a mulher de se comunicar com o "mundo exterior", tirando-lhe a
liberdade de usar o celular, caminhar até a sala de espera, etc.;
fazer graça ou recriminar por qualquer característica ou ato físico como
obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros, assim como por comportamentos como
gritar, chorar, ter medo, vergonha, etc.;
fazer qualquer procedimento sem explicar antes o que é, por que está sendo
oferecido e acima de tudo, sem pedir permissão;
submeter a mulher a mais de um exame de toque (ainda assim quando
estritamente necessário), especialmente por mais de um profissional, e sem o seu
consentimento, mesmo que para ensino e treinamento de alunos;
cortar a vagina (episiotomia) da mulher quando não há necessidade (discute-se a
real necessidade em não mais que 5 a 10% dos partos); dar um ponto na sutura final da
vagina de forma a deixá-la menor e mais apertada, supostamente para aumentar o prazer
do cônjuge;
subir na barriga da mulher para expulsar o feto (manobra de Kristeller);
submeter a mulher e/ou o bebê a procedimentos exclusivamente para treinar
estudantes e residentes, ou permitir a entrada de pessoas estranhas ao atendimento para
"ver o parto", quer sejam estudantes, residentes ou profissionais de saúde,
principalmente sem o consentimento prévio da mulher e de seu acompanhante com a
chance clara e justa de dizer não;

11
http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-obstetrica-by-ana.html
fazer uma mulher acreditar que precisa de uma cesariana quando ela não precisa,
utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados (o bebê é grande, a
bacia é pequena, o cordão está enrolado) e submetê-la a essa cirurgia
desnecessariamente, sem a devida explicação dos riscos que ela e seu bebê estão
correndo (complicações da cesárea, da gravidez subsequente, risco de prematuridade do
bebê, complicações a médio e longo prazo para mãe e bebê);
dar bronca, ameaçar, chantagear ou cometer assédio moral contra qualquer
mulher/casal por qualquer decisão que tenha(m) tomado, quando essa decisão for contra
as crenças, a fé ou os valores morais de qualquer pessoa da equipe;
submeter bebês saudáveis a aspiração de rotina, injeções e procedimentos na
primeira hora de vida, antes que tenham sido colocados em contato pele a pele e de
terem tido a chance de mamar.
A violência obstétrica é portanto física, emocional e também simbólica, pois a
informação que chega às parturientes é carregada de simbolismos e valores que as
conduzem a uma condição de medo e desempoderamento. O parto pode ser
compreendido como um importante rito de passagem para a mulher, uma experiência
grandiosa na medida em que a mulher se sente vitoriosa e capaz quando ele termina,
munida de força psíquica inclusive para encarar a próxima grande transformação: a
amamentação e os cuidados com o bebê. Se submetida a um processo repleto de
agressões e intervenções, ao seu término a mulher – colocada neste lugar pelo agressor -
pode de fato se sentir "defeituosa", incapaz e fraca, à mercê do auxílio constituído na
figura dos profissionais de saúde, sem os quais supostamente o nascimento não teria
sido possível.
Assim, quando há violência obstétrica, a agressão ocorre em vários níveis: há a
violação física, como nos exames de toque feitos sem explicação, consentimento ou
necessidade, nos casos de episiotomia e também de falta de liberdade de movimentação
e de escolha de posição para parir (que chega ao absurdo quando a mulher é amarrada
na cama), mas também há toda a violência verbal que remete ao sexo e às escolhas que
ela fez sobre sua vida reprodutiva. Frases como "na hora de fazer não gritou" traduzem
bem o pensamento de uma sociedade ainda bastante machista e patriarcal, que julga e
"castiga" a mulher que usa sua sexualidade, como explica Ligia. É um ato de negação
da autonomia da mulher, do seu direito de escolha, de sua dignidade e de sua
integridade corporal e emocional.
Questões econômicas e sociais envolvidas

Por trás desse cenário de terror silencioso, soma-se ao patriarcado a


mercantilização do parto, no qual o nascimento da criança é pensado apenas como
procedimento médico e avaliado através de critérios como produtividade e
remuneração. Nos planos de saúde, o valor pago por um parto normal é baixo se
comparado ao da cesariana e esse é um fator reconhecido e até mesmo admitido pela
classe médica quando esta é questionada sobre o alarmante número de nascimentos por
via cirúrgica nos hospitais privados. Mesmo quando o valor é semelhante, não “vale a
pena” fazer partos normais (trabalhosos e demorados) em lugar de cesarianas agendadas
e ágeis, que “rendem mais”. Jornais já denunciaram inclusive que alguns planos de
saúde cobrem apenas cesáreas eletivas em certos hospitais12. O SUS, por sua vez, sofre
com a falta de infraestrutura e de capacidade, frequentemente submetendo as mulheres
ao aceleramento artificial e violento do parto como uma forma de atender mais
parturientes num período menor de tempo. As cesarianas também se multiplicam graças
ao medo por parte dos médicos, que temem ser processados no eventual desfecho
negativo de um parto normal.
Outra grave consequência dessas más práticas é a perpetuação de um sentimento
de fobia do parto normal entre as mulheres brasileiras. A medicina ocidental ainda
pensa no parto como um processo “fisiologicamente patogênico” e se ocupa de poupar
as mulheres de um suposto sofrimento que muitas vezes é iatrogênico, fruto de
inúmeras intervenções adotadas na obstetrícia moderna. O senso comum relacionado ao
sofrimento é reforçado na cena pública pelos meios de comunicação e programas como
as novelas13. Negativamente impressionadas por relatos aterrorizantes, trágicos e
dolorosamente reais, caracterizados prioritariamente pelo mau atendimento à parturiente
e pela violência, até mesmo mulheres de renda mais baixa buscam meios para se
submeter a uma cesariana eletiva como uma alternativa para escapar dos maus-tratos.

Mudanças no cenário
12
Planos cobrem só cesárea em parte dos hospitais.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,planos-cobrem-so-cesarea-em-parte-dos-
hospitais-,1015814,0.htm
13
Recentemente, no primeiro capítulo de uma novela em horário nobre, a rede de televisão
com maior audiência no país mostrou uma cena de morte materna em um parto normal. A
representação dos partos nas novelas brasileiras é digna de um estudo mais aprofundado.
Compartilhamos aqui apenas uma impressão, de que o assunto parece ser sempre cercado de
lendas, mitos e de uma aura aterrorizante, que confirma e reforça o senso comum.
Felizmente, este cenário está começando a mudar no Brasil. Uma série de
inciativas começam a surgir para informar a mulheres, denunciar situações violentas e
alertar órgãos responsáveis. Nos últimos anos, o movimento pela humanização do parto
ganhou ainda mais visibilidade a partir de marchas, movimentos e mobilizações
nacionais, como as em favor da presença das doulas no parto e pelos partos
domiciliares. Ligia Moreiras Sena está por trás de algumas das iniciativas nesse sentido,
como o Teste da Violência Obstétrica e a produção do vídeo-documentário popular
"Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras"14 que atingiu um grande alcance e hoje
possui cerca de 70 mil visualizações no Youtube, além de ter sido apresentado a
profissionais de saúde em diferentes eventos. Por meio desse documentário, formado
por depoimentos de mulheres sobre a violência que sofreram no nascimento dos filhos,
muitas outras mulheres passaram a problematizar as circunstâncias de nascimento dos
próprios filhos e estão se envolvendo na causa.
Por sua vez, o projeto "1:4 - retratos da violência obstétrica", da fotógrafa Carla
Raiter, retrata mulheres que foram vítimas dessa violência com trechos de relatos
estampados em seus corpos. “Ele tem como objetivo chamar atenção para o
tema, disseminar informação, curar feridas, fortalecer redes de apoio, tirar o assunto do
escuro, incentivar a discussão e a denúncia”, explica a idealizadora.
Por fim, cabe destacar o filme "O Renascimento do Parto"15, produzido por um
casal de ativistas, cuja distribuição está sendo viabilizada por uma ação de
crowdfunding (financiamento coletivo). O filme mostra a violência obstétrica sofrida
diariamente pelas mulheres nas maternidades e consultórios brasileiros. O filme traz
depoimentos de profissionais renomados na área do atendimento humanizado ao parto,
como o obstetra francês Michel Odent e a parteira mexicana Naoli Vinaver, além de
histórias de mães e pais, e entrevistas com obstetras, parteiras, doulas e pediatras.
“Felizmente, os últimos dois anos foram marcados por ações e projetos com o
objetivo de tirar a violência obstétrica da invisibilidade, discuti-la, evidenciá-la e
problematizá-la”, conta Ligia. Contudo, ainda há um longo caminho a ser percorrido
para que as mulheres possam ter partos livres e dignos no Brasil.
A humanização do atendimento ao parto é um dos principais caminhos para a
transformação desse cenário, na medida em que se propõe a devolver o protagonismo do

14
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eg0uvonF25M
15
http://benfeitoria.com/o-renascimento-do-parto
momento do parto à mulher, com redução nas intervenções tanto no aspecto clínico
quanto na condução do parto, que é encarado como evento fisiológico.
A preparação dos profissionais de saúde para esse modelo pode ajudar a sanar
não apenas a violência obstétrica, mas também os outros males embutidos nesse
processo, como a medicalização excessiva, a mercantilização do processo de
nascimento (que se traduz na aceleração desnecessária dos partos com fins de
produtividade em detrimento da observação das evidências científicas) e a dominação
sociocultural da mulher.
Assim, o nascimento de uma criança poderá ocupar a posição que lhe cabe na
vida de seus pais, da família e da sociedade como um todo: um evento natural e feliz no
qual um novo ser humano é recebido no mundo com dignidade e respeito, inclusive – e
principalmente – por parte dos profissionais de saúde eventualmente envolvidos no
processo.

Nota final: Agradecemos a oportunidade de participar deste projeto, pois esta obra,
certamente, caminha junto com outras iniciativas no sentido de dar visibilidade a esta
e a tantas outras violências que são cometidas diuturnamente contra nós, mulheres,
no Brasil.

Referências

(1) Contatos dos projetos e iniciativas citados

Carla Raiter / Projeto 1:4


http://carlaraiter.com/1em4/
contato@carlaraiter.com

Ligia Moreira Sena / Cientista que virou Mãe


www.cientistaqueviroumae.com.br
www.facebook.com/cientistaqueviroumae

Gama – Grupo de Apoio à Maternidade Ativa


http://www.maternidadeativa.com.br/
infogama@maternidadeativa.com.br

Filme "O Renascimento do Parto


http://benfeitoria.com/o-renascimento-do-parto

Vídeo-documentário popular "Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras"


http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eg0uvonF25M

Mapa da Violência Obstétrica no Brasil


https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/

(2) Blogs e sites

Estuda, Melania, Estuda: http://estudamelania.blogspot.com.br/


Dadada: http://www.dadada.com.br/
Minha Mãe Que Disse: http://minhamaequedisse.com/
Super Duper: http://www.superduper.com.br/
Mamatraca: http://mamatraca.com.br/

(3) Pesquisas e artigos acadêmicos

Janaína Marques Aguiar. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade


ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. http://www.apublica.org/wp-
content/uploads/2013/03/JanainaMAguiar.pdf

Janaína Marques Aguiar. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica


das usuárias. http://www.scielo.br/pdf/icse/v15n36/aop4010.pdf

Gustavo Venturini. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado.


http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra.pdf

Carmen Simone Grilo Diniz. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos


sentidos de um movimento. http://www.scielosp.org/pdf/csc/v10n3/a19v10n3.pdf

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