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Seleção de Textos:
Acompanhada de Leitura Dirigida
Rio de Janeiro
Outubro
2016
Sumário
Apresentação ............................................................................................. 03
1. Dogmatismo, Razão e Decisão: Sobre Teoria e Práxis na
Civilização Cientificizada (1963) ............................................................ 04
1. Cientifização da Civilização e a Necessidade de Distinguir entre Questões Técnicas e
Questões Práticas, entre Disposição e Ação ................................................................................04
2. A Particularização da Razão e a Irracionalização da Decisão Prática ..................................06
3. Contra os Dogmatismos do Positivismo e do Tecnocratismo: Limites de uma Crítica
Positivista da Ideologia....................................................................................................................07
4. Do Racionalismo Crítico ao Racionalismo “Auto-Esclarecido” ..........................................11
2. A Técnica e a Ciência como “Ideologia” (1968) ............................. 14
1. Dialética das formas de racionalização: racionalização técnico-científica pelo trabalho
social e racionalização comunicativa no quadro institucional ...................................................14
2. Colapso da Dominação Tradicional pelo Avanço da Racionalidade Instrumental: a
Liberação da Comunicação no Capitalismo Liberal ...................................................................16
3. Transformações no Capitalismo Tardio: Eliminação das Questões Práticas, Reprodução
do Sistema, Despolitização da Esfera Pública e Autorreificação do Humano .......................17
4. A Consciência Tecnocrática como Nova Ideologia: os Limites da Autorreflexão ............20
5. O Potencial de Emancipação na Liberação de uma Comunicação Pública Livre de
Violência e Potenciais de Protestos Estudantis ...........................................................................22
3. A Pretensão da Universalidade da Hermenêutica (1970) .............. 26
1. A diferença entre hermenêutica e linguística: método de autorreflexão e método de
reconstrução racional.......................................................................................................................26
2. Contribuições Filosóficas e Sociológicas da Hermenêutica ..................................................27
3. Duas vias alternativas à Hermenêutica: “Linguística Universal” e “Hermenêutica crítica”
............................................................................................................................................................29
4. O Exemplo da Psicanálise: Processos de Distorção Sistemática da Comunicação ...........30
5. A Necessidade de uma Teoria da Competência Comunicativa e da Formação da
Competência Comunicacional .......................................................................................................32
6. Crítica ao Conservadorismo da Hermenêutica: a Questão da Verdade como motor do
Esclarecimento .................................................................................................................................33
Apresentação
Esta compilação de trechos de textos tem o caráter introdutório, está incompleta e foi
feita muito às pressas. Contudo, ela serve de suporte para realizar uma primeira entrada na
problemática central da obra de Habermas – a da relação entre teoria e práxis,
especialmente no que diz respeito ao destino da práxis em uma civilização cientificizada –,
para, em seguida, ver como se elaborou a proposta de uma crítica dos processos de distorção
sistemática da comunicação. Foram escolhidos, para tanto, quatro textos dos quais foram
tirados excertos.
Em primeiro lugar, os textos “Dogmatismo, Razão e Decisão” (1962) e
“Técnica e Ciência como ‘Ideologia’” (1968) nos possibilitam apreender a problema
da teoria e práxis em uma civilização técnico-científica, fazendo-nos conhecer algumas
distinções conceituais – tais como entre técnica e prática, trabalho e interação – centrais para
a teoria social crítica habermasiana, assim como algumas teses importantes: (a) o papel da
esfera pública no processo do Esclarecimento e de formação da vontade política, (b) a
diferença entre a racionalização tecnológica e a racionalização social, (c) o caráter ideológico
das consciências positivista, decisionista e tecnocrática e (d) e as mudanças estruturais do
capitalismo tardio, com seus impactos sobre a esfera pública, a ideologia, as relações de
classe, etc.
Em seguida, no texto “Pretensão da Universalidade da Hermenêutica”
(1970), escrito em um momento de passagem para a “virada pragmático-linguística”,
encontramos uma crítica à hermenêutica filosófica de Gadamer onde é formulada a proposta
de uma análise dos processos de distorção sistemática da comunicação e o apelo a uma teoria
da competência e da formação comunicacional. Os longos excertos deste artigo nos darão uma
boa compreensão do projeto e do que virá a ser, posteriormente, a “pragmática universal” e a
“teoria do agir comunicativo”.
Por fim, somente a título de ilustração, reúno no final da seleção pequenos excertos
que mostram como que ainda na Teoria do Agir Comunicativo (1981) se mantém a
problemática de uma análise dos processos de distorção sistemática e a perspectiva de
pesquisas sociais e psicológicas sobre as patologias do eu e da socialização, assim como sobre
as patologias da comunicação pública.
Infelizmente não foi possível trazer a público os excertos de dois textos importantes
sobre a questão: “Reflexões sobre a Patologia Comunicativa” (1974) e
Comunicação Política na Sociedade de Mídia (2006). Também seria importante
apresentar alguns trechos do incontornável Mudança Estrutural na Esfera Pública
(1962). Isso ficará para uma outra oportunidade. Desejo boa leitura, se houver tempo...
André Magnelli
4
Como está explícito no título do ensaio, Habermas trata do problema da relação entre
teoria e práxis na civilização cientificizada. Ele o faz mostrando como a problemática
da relação da teoria à práxis é construída, na filosofia moderna, pela luta contra o
dogmatismo e em favor da emancipação. Em tal luta foram elaboradas distintas
compreensões da articulação entre a razão e a decisão. Inicialmente, ele reconstrói a
problemática em três filosofias modernas – a de Holbach, a de Fichte e a de Marx –,
mostrando como foi formulada em todas as três, ainda que de distintas formas
desdobradas dialeticamente, uma concepção de “razão decidida” como sendo o meio de
expressão do interesse na emancipação humana. Para o que nos interessa, é
fundamental entender, de início (1), como tal articulação entre razão e decisão tende a
ser dissolvida a partir do século XIX com a ascensão tanto do positivismo quanto do
historicismo. A respeito disso, é fundamental a distinção habermasiana entre, de um
lado, a técnica e, de outro, a prática. Vejamos, na leitura, como e o porquê tal
distinção tende a ser apagada na civilização cientificizada em favor de uma concepção
de “poder de disposição técnica sobre as coisas” e em detrimento de uma concepção de
“potência da ação esclarecida” em torno de um diálogo e entendimento sobre a “vida
boa”. Contra tal redução da práxis à técnica, que conduz à reificação, Habermas
defende, de forma kantiana, uma teoria crítica que reforce “o interesse da razão na
maioridade, na autonomia e na libertação do dogmatismo”.
[...] [Ao separar juízos de fato e juízos de valor, remetendo os juízos de valor a
meras decisões subjetivas atreladas a necessidades e inclinações
irracionalizáveis] o resultado de seu trabalho já é suficientemente monstruoso:
as impurezas e os detritos da emocionalidade são filtrados do fluxo da
racionalidade das ciências experimentais e vedados higienicamente em uma
represa. Assim, nesse estágio a crítica da ideologia conduz à prova de que o
progresso de uma racionalização limitada à disposição técnica típica das ciências
experimentais é pago ao preço do aumento proporcional de uma massa de irracionalidade no
âmbito da própria práxis. Pois a orientação, tanto hoje quanto antes, exige ação.
Porém, ela é cindida em uma mediação racional de técnicas e estratégias e em
uma escolha irracional dos conhecidos sistemas de valores. O preço cobrado pela
economia da escolha dos meios é um decisionismo liberado na escolha dos fins mais elevados.
[...] tais decisões podem ser interpretadas então em um sentido pessoal e
existencialista (Sartre), em um sentido claramente político (Carl Schmitt) ou
institucionalmente a partir de pressupostos antropológicos (Gehlen), mas sua
tese permanece a mesma: que as decisões relevantes para a vida prática, seja na
assunção de valores, na escolha de um projeto de vida individual ou na escolha de um
inimigo, não são acessíveis à deliberação racional nem capazes de um consenso motivado
racionalmente. Mas se as questões práticas, eliminadas do conhecimento
reduzido das ciências experimentais, escapam assim daquele poder de
disposição da explicação racional, se as decisões nas questões da práxis de vida
precisam ser desligadas de qualquer instância comprometida com a
racionalidade, então podemos estranhar muito menos uma última tentativa
certamente desesperada: [a do retorno dos mitos, isto é,] as decisões são
asseguradas pela existência prévia e socialmente vinculante do mundo fechado
das imagens e poderes míticos (Walter Bröcket).
[No fim das contas...] apesar de toda radicalidade, algo fica sem explicação, a
raiz: o motivo da própria crítica da ideologia [...] a crítica da ideologia se priva
da possibilidade de justificar teoricamente seu próprio empreendimento [...]
De onde essa crítica retira sua força se a razão precisa abdicar do interesse em
uma emancipação da consciência diante da parcialidade dogmática?
Certamente, a ciência deve ser estabelecida em sua função afirmativa de
conhecimento, pois ela é, por assim dizer, reconhecida como um valor. Nesse
caso, serve a separação crítico-ideológica entre conhecimento e decisão, e uma
tal separação conduzida dessa forma teria suprimido o dogmatismo. Mas
também assim, a ciência em sua função crítica de conhecimento é contestação
do dogmatismo em um nível positivista, possível apenas na forma de uma
ciência que reflete e quer a si mesma como um fim, isto é, novamente, na
10
“fazemos” sem que, até este momento, possamos fazê-lo sem consciência.
Uma racionalização da história não pode, por isso, ser promovida apenas por um
poder de controle ampliado de homens que trabalham, mas apenas graças a
um alto nível de reflexão, em virtude da consciência de homens ativos que
avançam em direção à emancipação.
Por fim, o texto se volta a seu último adversário: o racionalismo crítico de Karl
Popper. Ainda que ele seja próximo à teoria habermasiana ao pretender defender uma
posição crítica em favor de um esclarecimento comunicativo, ele não consegue pensar os
seus próprios fundamentos: como tal racionalidade crítica pode se fundamentar em um
método científico? Habermas defende, contrariamente a isso, uma posição metateórica e
metaética – que será desenvolvida posteriormente em Conhecimento e Interesse
(1968) –, que conduziria a um racionalismo “auto-esclarecido” por um método
autorreflexivo. A sua posição consistirá em desenvolver uma epistemologia materialista
capaz de fundar um conceito de razão que possui um telos de auto-transcendência
dado pela linguagem natural e vinculado ao “interesse emancipatório” enraizado na
espécie humana.
Este texto fundamental da obra de Habermas foi produzido em um debate crítico com
um dos principais representantes da primeira geração da Escola de Frankfurt,
Herbert Marcuse. Habermas critica Marcuse por associar a racionalidade
tecnológica a uma racionalidade de dominação e, assim, por, de um lado, não
conseguir apreender o papel positivo da racionalização técnico-científica, e, de outro
lado, por não construir um conceito de racionalidade suficientemente amplo para
captar os potenciais emancipadores da racionalização. Contra Marcuse, Habermas
faz a sua famosa distinção entre “trabalho” e “interação” – que havia sido formulada
um ano antes em sua conferência sobre Trabalho e Interação na filosofia do jovem
Hegel (1967). De forma sintética, vejamos o quadro abaixo:
Sistemas de Atividade
Quadro Institucional
Racional referente a fins
Interação Trabalho
Tipo de ação Interação mediatizada por Ação instrumental ou
símbolos estratégica
Regras de orientação
Normas sociais Regras técnicas
da ação
Linguagem corrente,
Linguagem independente do
Nível de definição intersubjetivamente
contexto (contexto-free)
compartilhada
Expectativas de comportamento Previsões condicionais,
Modo de definição
recíprocas imperativos condicionais
Mecanismos de Aprendizagem dos diferentes
Interiorização de certos papeis
aquisição know how e qualificações
Solução de problemas
Manutenção das instituições
Função do tipo de (realização de um objetivo
(conformidade às normas sobre
ação considerada definido em termos de relações
a base de um reforço recíproco)
meios-fins)
Punição sobre a base de sanções
Sanção em caso de Insucesso:
convencionais: fracasso diante
violação da regra fracasso diante da realidade
da autoridade
Crescimento das forças
Emancipação, individualização
produtivas
‘Racionalização’ Extensão da comunicação isenta
Extensão do poder de dispor
de dominação
tecnicamente das coisas
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A distinção dialética entre trabalho e interação não significa, ao contrário das leituras
mais ligeiras e equivocadas de Habermas, que ele considere que o trabalho e a
racionalização instrumental e estratégica sejam inerentemente negativos. Ao contrário,
todo o seu esforço está em mostrar, em primeiro lugar, que a racionalidade em
conformidade a fins está enraizada antropologicamente na espécie humana e, por isso,
é impossível suprimi-la em favor de seja lá qual for o projeto emancipador; em segundo
lugar, ele busca mostrar, contra as teses consolidadas na 1ª geração de Frankfurt, que
a racionalização técnico-instrumental empreendida pelo capitalismo tem potenciais
emancipadores, a partir do momento que submetem os conteúdos da tradição à prova
da crítica realizada por uma racionalidade consequencialista que se desenvolve em
dialética com a racionalidade comunicativa. Tal tese é desenvolvida, de forma sócio-
histórica em Mudança Estrutural na Esfera Pública (1962) e retomada agora
com algumas mudanças oriundas de teses antropológicas sobre o desenvolvimento da
espécie humana. É importante perceber, em primeiro lugar, como o autor entende as
“imagens de mundo místicas, religiosas e metafísicas” como atrelas a contextos de
interação em que os conteúdos práticos são “reprimidos” gerando, assim, uma
“comunicação distorcida”; em segundo lugar, importa perceber como Habermas
identifica um papel emancipador na formação da esfera pública burguesa na época do
capitalismo liberal. Muito embora a ideologia burguesa da “reciprocidade” entre
indivíduos privados mascare uma relação de classe, ela desprende uma potência crítica
contra as formas de dominação tradicional, que se valem dos imperativos de interação
para conter as ações racionais referentes a fins em condições controladas pela relação de
dominação vigente.
nessas três dimensões não nos leva, como a racionalização própria dos
sistemas de ação racional com relação a fins, ao aumento do poder de
disposição técnica sobre os processos objetivados da natureza e da sociedade;
não conduz per se a um melhor funcionamento dos sistemas sociais, mas
proporcionaria aos membros da sociedade oportunidades de uma individuação
progressiva e emancipação mais abrangente. O aumento das forças produtivas não coincide
com o desejo de uma ‘vida boa’, mas pode ser colocado a seu serviço.
Tampouco acredito que a figura de pensamento [própria de Marx] de um
potencial tecnológico excedente, que não pode ser plenamente utilizado
dentro de um quadro institucional mantido repressivamente (Marx fala em
forças produtivas ‘represadas’), seja ainda adequada ao capitalismo regulado
pelo Estado. O melhor aproveitamento de potenciais produtivos não
realizados conduz à melhoria do aparato econômico-industrial, mas hoje não
conduz mais eo ipso a uma modificação do quadro institucional com
consequências emancipatórias. A pergunta não é se esgotamos os potenciais
[técnico-científicos de produção] disponíveis ou ainda por desenvolver, mas se
escolhemos aqueles que podemos querer em vista de uma existência pacífica e
satisfeita. Há de se acrescentar, no entanto, que essa pergunta pode ser aqui
apenas colocada, mas não respondida de antemão; ela exige uma comunicação sem
entraves sobre os objetos da práxis da vida, cuja tematização encontra profunda resistência
no interior de uma esfera pública estruturalmente despolitizada, própria do capitalismo
tardio.
Ao invés de um antagonismo de classes virtualizado e das disparidades
colocadas à margem do sistema, um nova zona de conflitos pode surgir
apenas ali onde a sociedade de capitalismo tardio precisa se imunizar contra os
questionamentos da ideologia tecnocrática de fundo por meio da
despolitização das massas populacionais: justamente no sistema da esfera pública
administrada pelos meios de comunicação de massa. Pois é ali que se cumpre o
ocultamento, sistematicamente necessário, da diferença entre o progresso dos
subsistemas de ação racional com respeito a fins e a transformação
emancipatória do quadro institucional – isto é, entre questões técnicas e
questões práticas. As definições permitidas ao público se referem ao que
queremos para viver, mas não a como gostaríamos de viver se pudéssemos de fato
decidir em face da realização dos potenciais disponíveis.
É muito difícil elaborar um prognóstico sobre quem poderia reavivar essa
zona de conflito. Nem o velho antagonismo de classes, nem os novos tipos de
subprivilégio possuem potenciais de protesto que tendam, por sua própria
25
Ora, se a hermenêutica filosófica não tem nada a ver nem com a arte de
compreender e de falar, nem com a linguística; se ela não traz nada nem ao
uso pré-científico da competência comunicacional, nem à linguística, em que
consiste então a significação da consciência hermenêutica?
Podemos, todavia, enumerar quatro aspectos sob os quais a hermenêutica
adquire uma significação para as ciências e para a interpretação de seus
resultados. (1) A consciência hermenêutica destrói a compreensão objetivista que
as ciências humanas tradicionais têm de si mesmas. O homem de ciência que
procede a uma interpretação permanece ligado a seu ponto de partida
hermenêutico, do que segue que a objetividade da compreensão não pode ser
assegurada por uma suspensão dos preconceitos, mas apenas por uma
reflexão sobre o contexto histórico de tradições que vincula, desde sempre, os
sujeitos a seu objeto. (2) Aliás, a consciência hermenêutica incita as ciências
sociais a se lembrar dos problemas que resultam da pré-estruturação simbólica
de seus domínios de objetos. A partir do momento que o acesso aos dados
não é mediatizado pela observação controlada, mas sim por uma comunicação
por meio da linguagem ordinária, os conceitos teóricos saem do quadro
operacional que oferece o jogo de linguagem correntemente praticada no
estágio científico – relativo à medida das grandezas físicas. [...] (3) A
consciência hermenêutica interessa igualmente à compreensão cientificista que
28
No trecho abaixo (4) temos apenas a tese geral do Habermas sobre a contribuição da
psicanálise. Caso queria saber como ele analisa a “compreensão cênica” do discurso
analítico, como ele explica comunicativamente os sintomas neuróticos e como, enfim, ele
deriva daí pressupostos de uma “comunicação normal” e de um “desenvolvimento
normal” do eu por meio da intersubjetividade linguisticamente mediada, será
necessário se debruçar no texto.
4. O Exemplo da Psicanálise: Processos de Distorção Sistemática da
Comunicação
A experiência limite da hermenêutica tem por objeto manifestações vitais
especificamente ininteligíveis. Essa obscuridade específica não é superável por
nenhuma aplicação da competência comunicacional naturalmente adquirida,
independente do quanto for sábia; sua opacidade obstinada pode ser
compreendida como o índice do fato de que não podemos explicá-la apenas
pela estrutura da comunicação por meio da linguagem ordinária, trazida à
consciência pela hermenêutica. Nesse caso, o que resiste em primeiro lugar ao
esforço interpretativo não é a objetividade da tradição linguageira, nem o fato
de que a compreensão linguageira de mundo seja limitada a um horizonte
determinado, em outros termos, não é uma ininteligibilidade virtual do que
implicitamente vai por si mesmo.
Quando as dificuldades da compreensão resultam de um hiatos cultural,
temporal ou social [como nos casos em que se demanda a consciência
hermenêutica], nós podemos, em princípio, precisar algumas informações
suplementares das quais seria necessário dispor para compreender: nós
sabemos que nos é preciso decifrar um alfabeto, conhecer um léxico ou
deduzir regras que permitam aplicá-las segundo o contexto específico.
Quando nós nos esforçamos pela via da hermenêutica de elucidar as unidades
coerentes de sentido que nos são ininteligíveis, a tolerância da comunicação
corrente por meio da linguagem ordinária nos permite, nos limites que são os
seus, de saber o que nós não sabemos (ainda). Mas essa consciência
hermenêutica se revela insuficiente quanto se trata de uma comunicação
sistematicamente distorcida: na medida em que o caráter ininteligível resulta aqui
de uma estrutura deficiente do próprio discurso. Sem afetar a imagem que tem
de si mesma, a hermenêutica pode negligenciar as perturbações francamente
patológicas da linguagem que encontramos, por exemplo, nos psicóticos. O
domínio de aplicação da hermenêutica coincide com os limites da
comunicação normal por meio da linguagem ordinária, considerando-se que
os casos patológicos escapam dela. A compreensão que a hermenêutica tem
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entendimento cada vez efetivo, caso nós pudéssemos estar seguros de que todo
consenso estabelecido no interior da tradição linguageira foi sem coerção e
sem deformação. Ora, a experiência da hermenêutica das profundezas faz
aparecer que o que é afirmado no dogmatismo da tradição não é apenas a
objetividade da linguagem em geral, mas ainda o caráter repressivo de relações de
violência que deformam a intersubjetividade do entendimento enquanto tal, deformando de
modo sistemático a comunicação por meio da linguagem ordinária. É por isso que todo
consenso obtido por uma compreensão do sentido é fundamentalmente
sujeito a caução: ele pode ter sido extorquido por uma pseudocomunicação
[...] A consciência da estrutura preconceitual da compreensão de sentido não
deve ser confundida com a identificação entre o consenso efetivamente estabelecido e
o consenso verdadeiro. Essa identificação, em compensação, conduz à
ontologização da linguagem e a hipóstase da tradição. Uma hermenêutica dotada
de uma consciência crítica de si mesma, e que distingue entre tomada de consciência
e cegamento, reserva um lugar ao conhecimento metahermenêutico quanto às condições
de possibilidade da comunicação sistematicamente deformada. Ela liga a compreensão
ao princípio do discurso racional segundo o qual a verdade somente seria garantida
por um consenso que seria estabelecido em condições idealizadas de uma
comunicação ilimitada e que foi subtraída de toda e qualquer dominação, e
que poderia ser duravelmente mantida.
[...] A menos que a compreensão do sentido deva a fortiori permanecer
indiferente em relação à ideia de verdade, é-nos preciso antecipar não apenas
o conceito de uma verdade medida pelo horizonte de uma convergência de
visadas idealizada – atingida por meio de uma comunicação ilimitada e
subtraída de toda dominação –, como também a estrutura de uma vida
comum no quadro de uma comunicação sem coerção. A verdade é a coerção
singular que nos força a um reconhecimento universal sem coerção; ora, um
tal reconhecimento está ligado a uma situação ideal de fala, isto é, a uma
forma de vida ideal que permite uma intercompreensão universal sem coerção.
Neste sentido, a compreensão crítica do sentido é forçada a pretender a
antecipação formal de uma vida justa [...] A ideia de verdade, definida pelo
consenso verdadeiro, implica aquela de verdadeira vida. Em outros termos: ela
implica aquela de pessoa chegada à maioridade, capaz de falar em seu próprio
nome. O que se trata de realizar no futuro é a antecipação do diálogo
idealizado como forma de vida que garante o último entendimento
contrafactual e fundamental, que constitui um laço previamente estabelecido e
que permite criticar todo entendimento factual, na medida em que ele é falso,
e de denunciá-lo como uma forma de falsa consciência.
36
Resta que nós estaremos em condições não apenas de exigir, como também
de fundar em razão esse princípio regulador da compreensão, na medida em
que nós poderemos demonstrar o fato de que a antecipação de uma verdade
possível e de uma vida verdadeira é constitutiva para toda intercompreensão
não monológica que se realiza por meio da linguagem. Certamente, a
experiência fundamental da metahermenêutica nos torna conscientes do fato
de que a crítica – isto é, a compreensão penetrante capaz de trazer à luz os
cegamentos – obedece ao conceito da convergência ideal de perspectivas e,
portanto, ao princípio regulador do discurso racional. Não basta, contudo,
invocar apenas a experiência para mostrar que não apenas praticamos
efetivamente esta antecipação em cada compreensão penetrante, mas que nós
somos obrigados a praticá-la. A fim de fundar esta necessidade de direito, é-
nos preciso traduzir o saber implícito que serve desde sempre como fio
condutor para uma análise linguística pela hermenêutica das profundezas, em
uma teoria que permite deduzir da lógica da linguagem ordinária o princípio
do discurso racional enquanto regulador necessário de todo discurso efetivo,
tão deformado quanto o possa ser [esta teoria será a pragmática universal].
O argumento de Gadamer [em favor do reconhecimento dogmático da
tradição] pressupõe que o reconhecimento legitimador e o entendimento
fundador da autoridade se estabeleçam sem violência. A experiência da
comunicação sistematicamente distorcida contradiz esta pressuposição. De
todo modo, a violência não se torna durável senão graças à aparência objetiva da não-
violência que emana de um entendimento pseudocomunicacional. Segundo a terminologia
de Max Weber, nós chamamos autoridade uma tal violência legitimada. É por
isso que a distinção fundamental entre um reconhecimento dogmático e um
verdadeiro consenso supõe a reserva principial de uma intercompreensão universal
e livre de toda dominação. A razão, no sentido do princípio de um discurso
racional, é o muro contra o qual as autoridades de fato têm até hoje se batido,
e não a rocha sobre a qual elas seriam fundadas.
37
[vol.2, p.272]
Os participantes da comunicação se encontram num horizonte de
possibilidades ilimitadas de entendimento. Num nível metodológico, o que se
apresenta como pretensão de universalidade da hermenêutica reflete apenas a
autocompreensão de leigos que agem orientados para o entendimento. Eles
têm de tomar como ponto de partida a ideia de que, em princípio, podem se
entender sobre tudo. E, enquanto mantêm um enfoque performativo, os que
agem comunicativamente não podem contar com distorções ou entraves
sistemáticos em sua comunicação, isto é, com resistências inseridas na própria
estrutura linguística, as quais limitam imperceptivelmente o espaço da
comunicação. Isso não exclui, evidentemente, a possibilidade de uma
consciência falibilista. Pois os membros sabem que podem se enganar; porém,
até mesmo um consenso que posteriormente se revela enganador repousa
inicialmente num reconhecimento não pressionado de pretensões de validade
criticáveis. Na perspectiva interna dos membros de um mundo da vida
sociocultural, não pode haver pseudoconsenso no sentido de convicções
impostas sob pressão, pois aos olhos dos participantes, num processo de
entendimento transparente, a violência não consegue se estabilizar.
[vol.2, p.337]
Pois, neste caso, mesmo que se trate de nexos funcionais que permanecem
latentes, a não-percepção subjetiva de coerções sistêmicas que
instrumentalizam um mundo da vida estruturado comunicativamente adquire
38
[vol.2, p.699-700]
Caso nos decidamos a atribuir as mudanças decisivas da socialização familiar a
uma racionalização do mundo da vida, a interação socializadora constituirá o
ponto de referência para a análise do desenvolvimento do eu – e a comunicação
sistematicamente distorcida, isto é, a reificação de relações interpessoais,
constituirá o ponto de partida para a investigação da gênese patológica. A teoria do
agir comunicativo oferece uma moldura no interior da qual é possível
reformular o modelo estrutural apoiado no ego, no id e no superego. No lugar
de uma teoria das pulsões, que representa a relação entre o eu e a natureza
interna adotando conceitos da filosofia da consciência e seguindo o modelo
das relações entre sujeito e objeto, é colocada uma teoria da socialização, que,
ao estabelecer a relação entre Freud e Mead, valoriza as estruturas da
intersubjetividade substituindo as conjecturas relativas aos destinos pulsionais
por hipóteses relativas à história da interação e à formação da identidade. Tal
proposta teórica apresenta condições para: a) valorizar os novos
desenvolvimentos ocorridos na pesquisa psicanalítica, especialmente a teoria
das relações com objetos e a psicologia do eu; b) conectar-se com a teoria dos
mecanismos de defesa, de tal modo que as junções entre as barreiras
intrapsíquicas e as perturbações da comunicação no nível interpessoal se
tornam palpáveis; c) utilizar as ideias sobre mecanismos de superação de
conflitos conscientes e inconscientes para estabelecer a conexão entre ontogênese e
patogênese. Na tradição piagetiana, o desenvolvimento cognitivo e sociomoral
acontece segundo padrões estruturais que fornecem uma folha de contraste
confiável para desvios clínicos apreendidos intuitivamente.
[p.697-8]
A agudização da problemática da adolescência também leva a atribuir importância à
separação entre mundo da vida e sistema. Ora, se os imperativos do sistema
abordam a família a partir de fora, abertamente e sem nenhum mistério, já não
se imiscuindo furtivamente na família, nem se assentando em comunicações
sistematicamente distorcidas ou interferindo imperceptivelmente na formação de si
mesmo, torna-se mais fácil o surgimento de disparidades entre as
competências, os motivos e as atitudes, de um lado, e as exigências funcionais
dos papeis dos adultos, de outro.