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Jornada do Sociofilo (IESP-UERJ)

Aula III. Jürgen Habermas:


Esfera Pública, Ação Comunicativa e
Distorções Sistemáticas da Comunicação

Seleção de Textos:
Acompanhada de Leitura Dirigida

Professor André Magnelli

Rio de Janeiro
Outubro
2016
Sumário

Apresentação ............................................................................................. 03
1. Dogmatismo, Razão e Decisão: Sobre Teoria e Práxis na
Civilização Cientificizada (1963) ............................................................ 04
1. Cientifização da Civilização e a Necessidade de Distinguir entre Questões Técnicas e
Questões Práticas, entre Disposição e Ação ................................................................................04
2. A Particularização da Razão e a Irracionalização da Decisão Prática ..................................06
3. Contra os Dogmatismos do Positivismo e do Tecnocratismo: Limites de uma Crítica
Positivista da Ideologia....................................................................................................................07
4. Do Racionalismo Crítico ao Racionalismo “Auto-Esclarecido” ..........................................11
2. A Técnica e a Ciência como “Ideologia” (1968) ............................. 14
1. Dialética das formas de racionalização: racionalização técnico-científica pelo trabalho
social e racionalização comunicativa no quadro institucional ...................................................14
2. Colapso da Dominação Tradicional pelo Avanço da Racionalidade Instrumental: a
Liberação da Comunicação no Capitalismo Liberal ...................................................................16
3. Transformações no Capitalismo Tardio: Eliminação das Questões Práticas, Reprodução
do Sistema, Despolitização da Esfera Pública e Autorreificação do Humano .......................17
4. A Consciência Tecnocrática como Nova Ideologia: os Limites da Autorreflexão ............20
5. O Potencial de Emancipação na Liberação de uma Comunicação Pública Livre de
Violência e Potenciais de Protestos Estudantis ...........................................................................22
3. A Pretensão da Universalidade da Hermenêutica (1970) .............. 26
1. A diferença entre hermenêutica e linguística: método de autorreflexão e método de
reconstrução racional.......................................................................................................................26
2. Contribuições Filosóficas e Sociológicas da Hermenêutica ..................................................27
3. Duas vias alternativas à Hermenêutica: “Linguística Universal” e “Hermenêutica crítica”
............................................................................................................................................................29
4. O Exemplo da Psicanálise: Processos de Distorção Sistemática da Comunicação ...........30
5. A Necessidade de uma Teoria da Competência Comunicativa e da Formação da
Competência Comunicacional .......................................................................................................32
6. Crítica ao Conservadorismo da Hermenêutica: a Questão da Verdade como motor do
Esclarecimento .................................................................................................................................33

4. Teoria do Agir Comunicativo (1981) ................................................ 37


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Apresentação

Esta compilação de trechos de textos tem o caráter introdutório, está incompleta e foi
feita muito às pressas. Contudo, ela serve de suporte para realizar uma primeira entrada na
problemática central da obra de Habermas – a da relação entre teoria e práxis,
especialmente no que diz respeito ao destino da práxis em uma civilização cientificizada –,
para, em seguida, ver como se elaborou a proposta de uma crítica dos processos de distorção
sistemática da comunicação. Foram escolhidos, para tanto, quatro textos dos quais foram
tirados excertos.
Em primeiro lugar, os textos “Dogmatismo, Razão e Decisão” (1962) e
“Técnica e Ciência como ‘Ideologia’” (1968) nos possibilitam apreender a problema
da teoria e práxis em uma civilização técnico-científica, fazendo-nos conhecer algumas
distinções conceituais – tais como entre técnica e prática, trabalho e interação – centrais para
a teoria social crítica habermasiana, assim como algumas teses importantes: (a) o papel da
esfera pública no processo do Esclarecimento e de formação da vontade política, (b) a
diferença entre a racionalização tecnológica e a racionalização social, (c) o caráter ideológico
das consciências positivista, decisionista e tecnocrática e (d) e as mudanças estruturais do
capitalismo tardio, com seus impactos sobre a esfera pública, a ideologia, as relações de
classe, etc.
Em seguida, no texto “Pretensão da Universalidade da Hermenêutica”
(1970), escrito em um momento de passagem para a “virada pragmático-linguística”,
encontramos uma crítica à hermenêutica filosófica de Gadamer onde é formulada a proposta
de uma análise dos processos de distorção sistemática da comunicação e o apelo a uma teoria
da competência e da formação comunicacional. Os longos excertos deste artigo nos darão uma
boa compreensão do projeto e do que virá a ser, posteriormente, a “pragmática universal” e a
“teoria do agir comunicativo”.
Por fim, somente a título de ilustração, reúno no final da seleção pequenos excertos
que mostram como que ainda na Teoria do Agir Comunicativo (1981) se mantém a
problemática de uma análise dos processos de distorção sistemática e a perspectiva de
pesquisas sociais e psicológicas sobre as patologias do eu e da socialização, assim como sobre
as patologias da comunicação pública.
Infelizmente não foi possível trazer a público os excertos de dois textos importantes
sobre a questão: “Reflexões sobre a Patologia Comunicativa” (1974) e
Comunicação Política na Sociedade de Mídia (2006). Também seria importante
apresentar alguns trechos do incontornável Mudança Estrutural na Esfera Pública
(1962). Isso ficará para uma outra oportunidade. Desejo boa leitura, se houver tempo...
André Magnelli
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Dogmatismo, Razão e Decisão: Sobre Teoria e Práxis na Civilização


Cientificizada (1963), in: Teoria e Práxis. São Paulo, UNESP, 2011.

Como está explícito no título do ensaio, Habermas trata do problema da relação entre
teoria e práxis na civilização cientificizada. Ele o faz mostrando como a problemática
da relação da teoria à práxis é construída, na filosofia moderna, pela luta contra o
dogmatismo e em favor da emancipação. Em tal luta foram elaboradas distintas
compreensões da articulação entre a razão e a decisão. Inicialmente, ele reconstrói a
problemática em três filosofias modernas – a de Holbach, a de Fichte e a de Marx –,
mostrando como foi formulada em todas as três, ainda que de distintas formas
desdobradas dialeticamente, uma concepção de “razão decidida” como sendo o meio de
expressão do interesse na emancipação humana. Para o que nos interessa, é
fundamental entender, de início (1), como tal articulação entre razão e decisão tende a
ser dissolvida a partir do século XIX com a ascensão tanto do positivismo quanto do
historicismo. A respeito disso, é fundamental a distinção habermasiana entre, de um
lado, a técnica e, de outro, a prática. Vejamos, na leitura, como e o porquê tal
distinção tende a ser apagada na civilização cientificizada em favor de uma concepção
de “poder de disposição técnica sobre as coisas” e em detrimento de uma concepção de
“potência da ação esclarecida” em torno de um diálogo e entendimento sobre a “vida
boa”. Contra tal redução da práxis à técnica, que conduz à reificação, Habermas
defende, de forma kantiana, uma teoria crítica que reforce “o interesse da razão na
maioridade, na autonomia e na libertação do dogmatismo”.

1. Cientifização da Civilização e a Necessidade de Distinguir entre


Questões Técnicas e Questões Práticas, Disposição e Ação [p.468-71]

Essa constelação de dogmatismo, razão e decisão [posta pela decisão em favor


da razão como meio de emancipação no Esclarecimento] alterou
profundamente desde o século XVIII, e isso na mesma medida em que as
ciências positivas se transformaram nas forças produtivas do desenvolvimento
social. À medida que ocorre a cientifização de nossa civilização, fecha-se a dimensão em
que antes a teoria se direcionava à práxis. As leis de autorreprodução exigem que
uma sociedade industrialmente avançada sobreviva na escalada ascendente de
uma disposição técnica cada vez mais ampla sobre a natureza e de uma
administração dos homens e de suas relações recíprocas continuamente mais
refinada do ponto de vista da organização social. Nesse sistema, ciência,
técnica, indústria e administração se unem em um processo circular. A
respeito de tal processo, a relação entre teoria e práxis não precisa se limitar à
utilização racional e teleológica de técnicas garantidas pela ciência
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experimental. A potência social da ciência é reduzida ao poder de disposição técnica


– ela já não é mais considerada como uma potência da ação esclarecida. As ciências
empírico-analíticas produzem recomendações técnicas, porém não oferecem
qualquer resposta às questões práticas. A pretensão com a qual um dia a teoria se
relacionou com a práxis se tornou apócrifa. Em vez de uma emancipação
alcançada por um processo de esclarecimento, entra em cena a instrução da
disposição sobre processos objetivos e objetivantes. A teoria socialmente
eficaz não concerne mais à consciência de homens que convivem e discutem
entrre si, mas ao comportamento de homens utilitários. A título de força
produtiva de desenvolvimento industrial, ela altera a base da vida humana,
mas não supera criticamente essa base para assim elevar a própria vida, em
benefício desta, a um outro patamar.
A verdadeira dificuldade que surge da relação entre teoria e práxis não
decorre, contudo, dessa nova função da ciência que se tornou um poder técnico,
mas do fato de que não podemos mais distinguir entre poder técnico e prático. Mesmo
uma civilização cientificizada não está dispensada de responder às questões
práticas; por isso, surge um perido peculiar quando o processo de
cientifização rompe as fronteiras das questões técnicas sem se desvencilhar do
estágio de reflexão de uma racionalidade limitada ao horizonte tecnológico.
Pois nenhuma tentativa é feita para a obtenção de um consenso racional por
parte dos cidadãos no que diz respeito ao domínio prático de seu destino. Em
seu lugar, surge a tentativa de ampliar tecnicamente, isto é, de uma forma que
não é prática e nem histórica, a disposição sobre a história como uma espécie
de administração perfeccionista da sociedade. A teoria, que ainda se relacionava
com a práxis em um sentido genuíno, concebe a sociedade como um contexto de
ação constituído por homens capazes de linguagem, que efetivam o
intercâmbio social no contexto de uma comunicação consciente e que têm de
se formar como um sujeito total capaz de ação – caso contrário, os destinos
de uma sociedade cada vez mais rigidamente racionalizada em seus aspectos
particulares escapam em seu todo do cultivo racional, do qual tal sociedade
carece ainda mais. Contrariamente, uma teoria que troca a ação pela disposição
[técnica] não é mais capaz de alcançar tal perspectiva. Ela concebe a sociedade
enquanto uma correlação de modos de comportamento em que a
racionalidade é compreendida unicamente na forma de controle técnico-social,
mas deixando de ser mediada por uma consciência coerente da totalidade
social, vale dizer, por aquela razão interessada que só pode obter poder
prático se passar pela cabeça de cidadãos esclarecidos politicamente
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Na sociedade industrial avançada, pesquisa, técnica, produção e administração


se fundem em um sistema intransparente, mas funcionalmente
interdependente. Isso se tornou literalmente a base de nossa vida. Nós nos
relacionamos com tal sistema de modo notável, ao mesmo tempo íntimo e
certamente também alienado. De um lado, vinculamo-nos externamente a essa
base por meio de uma rede de organizações e uma corrente de bens de
consumo, de outro tal base permanece desvinculada do conhecimento e
mesmo da reflexão. Ante esse estado de coisas, no entanto, apenas uma teoria
que está direcionada para a práxis reconhecerá o paradoxo que se evidencia:
quanto mais o crescimento e a mudança da sociedade forem determinados
pela mais extrema racionalidade dos processos de pesquisa estabelecidos
conforme a divisão do trabalho, menos a civilização cientificizada estará
ancorada no saber e na consciência dos cidadãos. Nessa proporção, as
técnicas orientadas pelas ciências sociais e eleitas segundo decisões teóricas,
que ao final são controladas de modo cibernético, encontram seus limites
intransponíveis; isso só pode ser modificado mediante a transformação da
própria situação da consciência, isto é, mediante a consequência prática de uma
teoria [crítica] que não pretende manipular melhor as coisas e elementos
reificados, mas que, antes, por meio de representações penetrantes de uma crítica
persistente, reforça o interesse da razão na maioridade, na autonomia e na libertação do
dogmatismo.
Habermas argumenta, então, contra a “particularização” do conceito de razão que
tende a lhe retirar a capacidade de responder às questões práticas. Caso o conceito de
“razão particularizada” se mantenha, a tendência é que as mais diversas questões que
dizem respeito à prática sejam expulsas do saber e sejam tornadas coisas “subjetivas”
a serem decididas arbitrariamente. Neste caso ocorrerá uma irracionalização da
decisão prática, deixada a cargo de uma ideologia: o decisionismo.

2. A Particularização da Razão e a Irracionalização da Decisão Prática


[p.479-80]

Na segunda metade do século XIX, no curso da redução da ciência à força


produtiva de uma sociedade industrializada, o positivismo, o historicismo e o
pragmatismo arrancam, cada um deles, um pedaço desse conceito total de
racionalidade. A tentativa, até então inquestionada, das grandes teorias de
refletir sobre o contexto de vida em seu todo passa a ser desacreditada como sendo
dogmática. A razão particularizada é remetida ao nível da consciência subjetiva,
seja enquanto capacidade de comprovação empírica de hipóteses
[positivismo], compreensão histórica [historicismo] ou de controle pragmático
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do comportamento [pragmatismo]. Simultaneamente, o interesse e a


inclinação são expulsos na qualidade de momentos subjetivos da dimensão do
conhecimento. A espontaneidade da esperança, o ato de tomada de posição e
a experiência da relevância ou da indiferença ante tudo, a sensibilidade diante
do sofrimento e da opressão, o afeto pela maioridade, a vontade de
emancipação e a felicidade de encontrar a identidade – tudo isso se desligou de um
interesse vinculante da razão. Uma razão desinfetada é purificada dos momentos de
uma vontade esclarecida; precisamente fora de si, ela se aliena de sua própria vida.
E a vida destituída de espírito leva espiritualmente uma existência de arbitrariedade – sob o
nome de ‘decisão’ [, o que passa a ser defendido, teoricamente, pela consciência
decisionista].
Além do decisionismo, temos a tentativa de redução das questões práticas a questões
de técnicas, feita pela “consciência tecnocrata”. Ela buscaria “racionalizar” a
sociedade por meio de imperativos técnicos voltados a uma disposição eficiente sobre
coisas. Contudo, no limite, a consciência tecnocrata somente acentua o decionismo,
porque existe sempre algo “irredutível” à racionalidade tecnológica, os valores e os fins
da ação. O mais grave é perceber como tal racionalidade tecnocrata, que pretende ser
“isenta em relação a valores” e livre de todo e qualquer dogmatismo, manifesta, no fim
das contas, uma posição dogmática que impõe um determinado valor – o de “eficiência
– sobre todos os outros. No limite, tal racionalidade projeta um cenário distópico de
sistemas autorregulados ciberneticamente geradores de uma dominação e reificação
total, tal como percebido pela 1ª geração de Frankfurt (Adorno, Horkheimer e
Marcuse). Por causa disso, Habermas se esforça em mostrar que uma “crítica da
ideologia” feita de modo positivista é incapaz de estabelecer os seus próprios
fundamentos e precisa de um conceito de racionalidade mais abrangente e uma
compreensão ampliada do conhecimento, para além da “auto-compreensão
cientificista”. Desta forma, Habermas conclui afirmando a necessidade de uma outra
concepção de racionalização da história vinculada ao interesse de emancipação.

3. Contra os Dogmatismos do Positivismo e do Tecnocratismo: os


Limites de uma Crítica Positivista da Ideologia [p.482-8; p.497-8]

Assim como os artesãos, na elaboração de sua matéria, deixam-se guiar pelas


regras da experiência legadas pela tradição, também os engenheiros de todo
tipo hoje se apoiam em previsões cientificamente comprovadas na escolha de
seus meios, de seus instrumentos e operações. A confiabilidade das regras, no
entanto, distingue o emprego da técnica em seu sentido antigo do que hoje
denominamos técnica. A função do conhecimento das ciências modernas
precisa ser concebida em conexão com o sistema do trabalho social: ela amplia
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e racionaliza nosso poder de disposição técnica sobre processos objetivos ou,


do mesmo modo, objetivantes da natureza e da sociedade.
Dessa atuação afirmativa do conhecimento reduzido às ciências experimentais
deriva também a outra função, sua atuação crítica. Pois se aquele tipo de ciência
monopoliza a orientação para um comportamento racional, então todas as
pretensões concorrentes a uma orientação científica na ação têm de ser rejeitadas. Essa
abordagem é reservada a uma crítica da ideologia moldada de maneira positivista. Ela
se volta contra um dogmatismo em nova forma. Precisa aparecer como
dogmática agora toda teoria que só se relaciona com a práxis enquanto um
modo de potencializar e aperfeiçoar as possibilidades da ação racional com
respeito a fins. Visto que na metodologia das ciências experimentais se
encontra fundado de modo tanto simplificado quanto rigoroso um interesse
técnico de conhecimento que exclui todo outro tipo de interesse, qualquer referência
diferente à práxis de vida pode ser obscurecida em nome da ausência de valores. A
economia da escolha dos meios segundo uma racionalidade finalista, que é
assegurada mediante determinados prognósticos na forma de recomendações
técnicas, é o único “valor” permitido, e também este não é representado
explicitamente a título de valor porque parece simplesmente convergir com a
própria racionalidade. Na verdade, trata-se da formalização de um único referencial
de vida, a saber, da experiência do controle de êxito construído nos sistemas de trabalho
social e já realizado em cada consumação elementar do trabalho.
De acordo com os princípios de uma teoria analítica da ciência, questões
empíricas, que não pode ser postas nem solucionadas na forma de tarefas
práticas [na verdade, técnicas], não devem esperar respostas teoricamente
vinculantes. Todas as questões práticas que não podem ser suficientemente respondidas por
meio de recomendações técnicas, e que, além disso, precisam também de uma
autocompreensão em situações concretas, ultrapassam de antemão o interesse do
conhecimento investido pelas ciências experimentais. O único tipo de ciência
permitido pela abordagem positivista não é capaz de fornecer explicação
racional a tais questões [práticas]. Teorias que ainda assim oferecem soluções
podem ser conduzidas por esses critérios dogmáticos. O objetivo de uma crítica da
ideologia reduzida de modo correspondente consiste em encontrar em cada verso dogmático a
rima decisionista: que as questões práticas (no nosso sentido) são incapazes de ser colocadas
em discussão e, em última instância, têm de ser decididas. A fórmula mágica para nos
livrarmos do feitiço dogmático consiste em uma difícil decisão isolada tomada
contra a razão: questões práticas não são mais “capazes de verdade”.
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[...] [Ao separar juízos de fato e juízos de valor, remetendo os juízos de valor a
meras decisões subjetivas atreladas a necessidades e inclinações
irracionalizáveis] o resultado de seu trabalho já é suficientemente monstruoso:
as impurezas e os detritos da emocionalidade são filtrados do fluxo da
racionalidade das ciências experimentais e vedados higienicamente em uma
represa. Assim, nesse estágio a crítica da ideologia conduz à prova de que o
progresso de uma racionalização limitada à disposição técnica típica das ciências
experimentais é pago ao preço do aumento proporcional de uma massa de irracionalidade no
âmbito da própria práxis. Pois a orientação, tanto hoje quanto antes, exige ação.
Porém, ela é cindida em uma mediação racional de técnicas e estratégias e em
uma escolha irracional dos conhecidos sistemas de valores. O preço cobrado pela
economia da escolha dos meios é um decisionismo liberado na escolha dos fins mais elevados.
[...] tais decisões podem ser interpretadas então em um sentido pessoal e
existencialista (Sartre), em um sentido claramente político (Carl Schmitt) ou
institucionalmente a partir de pressupostos antropológicos (Gehlen), mas sua
tese permanece a mesma: que as decisões relevantes para a vida prática, seja na
assunção de valores, na escolha de um projeto de vida individual ou na escolha de um
inimigo, não são acessíveis à deliberação racional nem capazes de um consenso motivado
racionalmente. Mas se as questões práticas, eliminadas do conhecimento
reduzido das ciências experimentais, escapam assim daquele poder de
disposição da explicação racional, se as decisões nas questões da práxis de vida
precisam ser desligadas de qualquer instância comprometida com a
racionalidade, então podemos estranhar muito menos uma última tentativa
certamente desesperada: [a do retorno dos mitos, isto é,] as decisões são
asseguradas pela existência prévia e socialmente vinculante do mundo fechado
das imagens e poderes míticos (Walter Bröcket).
[No fim das contas...] apesar de toda radicalidade, algo fica sem explicação, a
raiz: o motivo da própria crítica da ideologia [...] a crítica da ideologia se priva
da possibilidade de justificar teoricamente seu próprio empreendimento [...]
De onde essa crítica retira sua força se a razão precisa abdicar do interesse em
uma emancipação da consciência diante da parcialidade dogmática?
Certamente, a ciência deve ser estabelecida em sua função afirmativa de
conhecimento, pois ela é, por assim dizer, reconhecida como um valor. Nesse
caso, serve a separação crítico-ideológica entre conhecimento e decisão, e uma
tal separação conduzida dessa forma teria suprimido o dogmatismo. Mas
também assim, a ciência em sua função crítica de conhecimento é contestação
do dogmatismo em um nível positivista, possível apenas na forma de uma
ciência que reflete e quer a si mesma como um fim, isto é, novamente, na
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forma de uma razão decidida cuja possibilidade fundamentada é combatida


precisamente pela crítica da ideologia. Se ela, pelo contrário, renuncia à
fundamentação, o próprio conflito da razão com o dogmatismo permanece
uma coisa dogmática: desde o início haveria a indissolução do dogmatismo. Por trás
desse dilema, tal como me parece, esconde-se o fato de que a crítica da
ideologia tem de pressupor tacitamente aquilo que ela combate como sendo
dogmático, a saber, a convergência de razão e decisão – na verdade, um conceito
abrangente de racionalidade. [...] O positivismo é incapaz tanto de entender a
distinção entre esses dois conceitos de racionalidade [técnica-instrumental e
“substancial”] quanto em geral de tomar consciência de que ele mesmo aceita
implicitamente o que combate abertamente – a razão decidida. Mas do fato de
que ambas as formas [de racionalidade] são diferenciadas depende a relação
entre teoria e práxis na civilização cientificizada.

[...] A utopia de uma disposição técnica sobre a história seria consumada se


tivesse sido estipulado um autômato capaz de aprendizagem como sistema de
controle social central, o qual poderia responder ciberneticamente a tais
questões [técnicas], isto é, “por si mesmo”.

A crítica da ideologia, que quer separar brutalmente razão e decisão para


dissolver o dogmatismo e impor o comportamento tecnologicamente racional,
automatiza no fim as decisões segundo as leis dessa racionalidade aplicadas à
dominação. Porque a crítica não pode se ater à separação que ela exige, mas
sim encontra sua própria razão na tomada de partido por uma racionalidade
sempre mais limitada, assim também a racionalização desenvolvida nos quatro
níveis não mostra qualquer tolerância ou mesmo indiferença face a valores.
Esse conceito de racionalidade não tira o ônus das decisões últimas sobre a
aceitação ou a recusa de normas. Por fim, essas decisões [práticas sobre
normas] não concernem a um processo autorregulador de adaptação de
autômatos capazes de aprendizagem segundo leis do comportamento racional
– nem podem ser retiradas de um processo cognitivo orientado pela
disposição técnica. A racionalidade substancial desviada pela ingênua tomada de partido
por uma racionalidade formal revela no conceito antecipado de uma auto-organização
ciberneticamente regulada da sociedade uma discreta filosofia da história. Mas uma tal
administração racional do mundo não é simplesmente idêntica à solução de
questões práticas postas historicamente. Não há qualquer razão para
supormos uma continuidade da racionalidade entre a capacidade de disposição
técnica sobre processos objetivados e um domínio prático de processos
históricos. A irracionalidade da história está fundada no fato de que nós a
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“fazemos” sem que, até este momento, possamos fazê-lo sem consciência.
Uma racionalização da história não pode, por isso, ser promovida apenas por um
poder de controle ampliado de homens que trabalham, mas apenas graças a
um alto nível de reflexão, em virtude da consciência de homens ativos que
avançam em direção à emancipação.

Por fim, o texto se volta a seu último adversário: o racionalismo crítico de Karl
Popper. Ainda que ele seja próximo à teoria habermasiana ao pretender defender uma
posição crítica em favor de um esclarecimento comunicativo, ele não consegue pensar os
seus próprios fundamentos: como tal racionalidade crítica pode se fundamentar em um
método científico? Habermas defende, contrariamente a isso, uma posição metateórica e
metaética – que será desenvolvida posteriormente em Conhecimento e Interesse
(1968) –, que conduziria a um racionalismo “auto-esclarecido” por um método
autorreflexivo. A sua posição consistirá em desenvolver uma epistemologia materialista
capaz de fundar um conceito de razão que possui um telos de auto-transcendência
dado pela linguagem natural e vinculado ao “interesse emancipatório” enraizado na
espécie humana.

4. Do Racionalismo Crítico ao Racionalismo “Auto-Esclarecido”: a


Necessária Reconexão ente Teoria e Práxis [p.501-2; 504-6]

Ao assumir uma atitude racionalista, Popper estabelece máximas para a


decisão de questões práticas, que, caso fossem perseguidas em uma ordem de
grandezas politicamente relevantes, teriam de penetrar profundamente na
estrutura naturalizada da sociedade existente. Aquele processo de comunicação
esclarecida cientificamente, e que já foi institucionalizado na esfera pública política,
possibilitaria uma dissolução técnico-social de todas as formas substanciais de dominação
– e essa própria dissolução estaria incrustada na reflexão constante de
cidadãos que querem sua emancipação. Não é sem razão, portanto, que
Popper espera desse liberalismo da formação política da vontade, reconstruída
no âmbito das ciências modernas, uma diminuição das repressões e, como
consequência da crescente emancipação dos homens, a redução dos
sofrimentos individuais e coletivos no interior das fronteiras de um consenso
obtido sem coerção sobre os princípios do bem-estar e da paz. Tal como no
Esclarecimento do século XVIII, novamente coincidem a falta de
racionalidade com a privação de liberdade e com a obstrução à felicidade.
Mas se de fato existir uma conexão fundamentada entre o cânone extrapolado
em termos sociopolíticos da comunicação cientificamente vinculante e tais
consequências práticas, então um positivismo que reflete sobre si mesmo não poderia
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mais separar do conceito de racionalidade o interesse da razão na emancipação. Porém,


aquela conexão existe porque está inscrita inexoravelmente na discussão racional uma
tendência, ou melhor, uma decidibilidade que se manifesta na própria racionalidade e não
precisa da decisão, da pura fé. O racionalismo teria de destruir a si mesmo como fé
cega positivista se se negasse mais uma vez a submeter a racionalidade abrangente
do diálogo sem coerção dos homens que se comunicam entre si, à qual Popper sempre
aspira secretamente, à racionalidade limitada do trabalho social.
Precisamente a exigência de uma racionalização crescente torna
involuntariamente visíveis os limites positivistas: questões objetivas são
prejudicadas na forma de decisões metodológicas e as consequências práticas
da aplicação de tais critérios são excluídas da reflexão. Em vez disso, é preciso
um esclarecimento hermenêutico do conceito de necessidades e de satisfação
de necessidades, o qual é medido historicamente a partir do estágio de
desenvolvimento da sociedade, assim como de um conceito de sofrimento e
de sofrimento “desnecessário” tão pertinente à nossa época. Mas, sobretudo,
é preciso que o critério escolhido enquanto tal seja derivado e justificado a
partir do nexo objetivo dos interesses que lhe são subjacentes. Isso já
pressupõe novamente um conceito abrangente de racionalidade, mais
precisamente um que não se preocupasse diante da autorreflexão de sujeitos
cognoscentes. Tão logo no âmbito metodológico, no chamado âmbito
metateórico e metaético, passamos a argumentar em geral com base em razões,
então já ultrapassamos o limiar que leva à dimensão de uma racionalidade
abrangente. Os positivistas esclarecidos, que confiam no seu racionalismo
apenas como profissão de fé, não podem refletir sobre aquilo que eles
pressupõem enquanto razão, enquanto algo idêntico ao interesse da razão,
porque não percebem o dogmatismo dos tecnólogos, ainda que estejam
infectados por ele.
[1] Apenas uma razão que sabe que a toda discussão racional é inerente um
interesse irrefreável que trabalha pelo progresso da reflexão em direção à
maioridade, obterá, a partir da consciência de sua própria implicação materialista, a
força transcendente. [2] Apenas ela refletirá sobre a dominação positivista do
interesse técnico do conhecimento a partir do contexto de uma sociedade
industrial que integra a ciência na qualidade de força produtiva e se protege
completamente contra o conhecimento crítico. [3] Apenas ela pode recusar
que uma racionalidade da linguagem já obtida dialeticamente seja sacrificada nos
padrões profundamente irracionais de uma racionalidade do trabalho limitada
em termos tecnológicos. [4] Apenas ela poderá incidir seriamente no nexo
coercitivo da história, que por muito tempo permanece um nexo dialético
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enquanto não estiver livre para o diálogo de homens esclarecidos. Hoje, a


convergência entre razão e decisão, sobre a qual a grande filosofia pensava como
sendo imediata, tem de ser recuperada e afirmada refletidamente a partir do estágio das
ciências positivas, e isso significa mediante a separação realizada de maneira
necessária e justificada no âmbito da racionalidade tecnológica, mediante a
disrupção de razão e decisão. A ciência na qualidade de força produtiva, na
medida em que aflui na ciência como força de emancipação, atua de modo tão
saudável quanto, contrariamente, semeia a desgraça na medida em que quer
submeter a seu controle exclusivo o âmbito da práxis indisponível tecnicamente.
O desencantamento que não desfaz o encanto, mas o dissimula, gera novos
xamãs. O esclarecimento, que não quebra dialeticamente o feitiço, mas o
ajusta com ainda mais força, converte o próprio mundo sem deuses em mito.
As palavras românticas de Schelling a respeito da razão como loucura regulada,
quando aplicadas à dominação da técnica sobre uma práxis separada por isso
da teoria, adquirem um sentido sufocantemente agudo. Se na loucura o
motivo central da razão, já determinante no mito, religião e filosofia,
sobrevive de um modo pervertido, a saber, para fundar a unidade e a conexão
de um mundo na multiplicidade dos fenômenos disformes, então as ciências
que, em um fluxo de fenômenos em princípio sem referência ao mundo,
arrancam empiricamente a uniformidade da contingência, purificam-se de
modo positivista da loucura. Elas regulam, mas não mais a loucura; e a loucura
precisa, por essa razão, prescindir da regulação. A razão estaria em ambas ao
mesmo tempo, mas assim se precipitaria no vão que as separa. De maneira
correspondente, também é fácil perceber o perigo de uma civilização exclusivamente
técnica que abriu mão da conexão da teoria com a práxis: ela é ameaçada pela cisão da
consciência e pela divisão dos homens em duas classes – engenheiros sociais e prisioneiros de
instituições fechadas.
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A Técnica e a Ciência como “Ideologia” (1968); in A Técnica e a


Ciência como 'Ideologia'. São Paulo, UNESP, 2011.
1. Dialética das formas de racionalização: racionalização técnico-
científica pelo trabalho social e racionalização comunicativa no quadro
institucional [p.24]

Este texto fundamental da obra de Habermas foi produzido em um debate crítico com
um dos principais representantes da primeira geração da Escola de Frankfurt,
Herbert Marcuse. Habermas critica Marcuse por associar a racionalidade
tecnológica a uma racionalidade de dominação e, assim, por, de um lado, não
conseguir apreender o papel positivo da racionalização técnico-científica, e, de outro
lado, por não construir um conceito de racionalidade suficientemente amplo para
captar os potenciais emancipadores da racionalização. Contra Marcuse, Habermas
faz a sua famosa distinção entre “trabalho” e “interação” – que havia sido formulada
um ano antes em sua conferência sobre Trabalho e Interação na filosofia do jovem
Hegel (1967). De forma sintética, vejamos o quadro abaixo:

Sistemas de Atividade
Quadro Institucional
Racional referente a fins
Interação Trabalho
Tipo de ação Interação mediatizada por Ação instrumental ou
símbolos estratégica
Regras de orientação
Normas sociais Regras técnicas
da ação
Linguagem corrente,
Linguagem independente do
Nível de definição intersubjetivamente
contexto (contexto-free)
compartilhada
Expectativas de comportamento Previsões condicionais,
Modo de definição
recíprocas imperativos condicionais
Mecanismos de Aprendizagem dos diferentes
Interiorização de certos papeis
aquisição know how e qualificações
Solução de problemas
Manutenção das instituições
Função do tipo de (realização de um objetivo
(conformidade às normas sobre
ação considerada definido em termos de relações
a base de um reforço recíproco)
meios-fins)
Punição sobre a base de sanções
Sanção em caso de Insucesso:
convencionais: fracasso diante
violação da regra fracasso diante da realidade
da autoridade
Crescimento das forças
Emancipação, individualização
produtivas
‘Racionalização’ Extensão da comunicação isenta
Extensão do poder de dispor
de dominação
tecnicamente das coisas
15

2. Colapso da Dominação Tradicional pelo Avanço da Racionalidade


Instrumental: a Liberação da Comunicação no Capitalismo Liberal
[p.96-101]

A distinção dialética entre trabalho e interação não significa, ao contrário das leituras
mais ligeiras e equivocadas de Habermas, que ele considere que o trabalho e a
racionalização instrumental e estratégica sejam inerentemente negativos. Ao contrário,
todo o seu esforço está em mostrar, em primeiro lugar, que a racionalidade em
conformidade a fins está enraizada antropologicamente na espécie humana e, por isso,
é impossível suprimi-la em favor de seja lá qual for o projeto emancipador; em segundo
lugar, ele busca mostrar, contra as teses consolidadas na 1ª geração de Frankfurt, que
a racionalização técnico-instrumental empreendida pelo capitalismo tem potenciais
emancipadores, a partir do momento que submetem os conteúdos da tradição à prova
da crítica realizada por uma racionalidade consequencialista que se desenvolve em
dialética com a racionalidade comunicativa. Tal tese é desenvolvida, de forma sócio-
histórica em Mudança Estrutural na Esfera Pública (1962) e retomada agora
com algumas mudanças oriundas de teses antropológicas sobre o desenvolvimento da
espécie humana. É importante perceber, em primeiro lugar, como o autor entende as
“imagens de mundo místicas, religiosas e metafísicas” como atrelas a contextos de
interação em que os conteúdos práticos são “reprimidos” gerando, assim, uma
“comunicação distorcida”; em segundo lugar, importa perceber como Habermas
identifica um papel emancipador na formação da esfera pública burguesa na época do
capitalismo liberal. Muito embora a ideologia burguesa da “reciprocidade” entre
indivíduos privados mascare uma relação de classe, ela desprende uma potência crítica
contra as formas de dominação tradicional, que se valem dos imperativos de interação
para conter as ações racionais referentes a fins em condições controladas pela relação de
dominação vigente.

O que caracteriza o limiar entre a sociedade tradicional e aquelas que entraram


em um processo de emancipação não é a transformação estrutural do quadro
institucional da sociedade gerada pela pressão de forças produtivas
relativamente desenvolvidas. Este é um mecanismo de evolução histórica da
espécie desde seu princípio. A novidade encontra-se muito mais em um
estágio de desenvolvimento das forças produtivas que torna permanente a
expansão dos subsistemas de ação racional com respeito a fins e que, por seu
meio, coloca em questão os modos como as civilizações legitimam a
dominação por meio de interpretações cosmológicas do mundo. As imagens
de mundo místicas, religiosas e metafísicas obedecem à lógica dos contextos
de interação. Elas dão respostas a problemas mais centrais da humanidade
16

relativos tanto à convivência compartilhada quanto à história de vida


individual. Seus temas são justiça e liberdade, poder e repressão, felicidade e
satisfação, miséria e morte. Suas categorias são o triunfo e a derrota, amor e
ódio, salvação e condenação. Sua lógica se mede pela gramática de uma
comunicação distorcida e pela causalidade do destino exercida por símbolos dissociados e
motivos reprimidos [tal como ele desenvolveu em Conhecimento e Interesse]. A
racionalidade dos jogos de linguagem atrelada à ação comunicativa é
confrontada, no limiar da modernidade, com uma racionalidade das relações
meios-fins que se vincula à ação instrumental ou estratégica. E tão logo essa
confrontação se instaura, a sociedade tradicional vê o princípio de seu fim: seu
modo de legitimar a dominação entra em colapso.
O capitalismo se define por um modo de produção que não apenas coloca
esse problema, como também o resolve. Ele oferece uma legitimação da
dominação que não desce mais do céu da tradição cultural, mas que pode ser
erguida sobre a base do trabalho social. A instituição do mercado, na qual os
proprietários privados trocam mercadorias e que inclui o mercado em que
aqueles desprovidos de propriedade fazem o intercâmbio de sua única
mercadoria, a própria fora de trabalho, promete a justiça na equivalência das relações
de troca. Com a categoria de reciprocidade, essa ideologia burguesa também
transforma a ação comunicativa em base de legitimidade. Mas o princípio de
reciprocidade é agora o princípio organizatório dos processos mesmos de
produção e reprodução. Por isso, a dominação política pode a partir de então
ser legitimada “de baixo para cima”, ao invés de legitimar-se “de cima para
baixo” evocando os recursos da tradição cultural.
Ao partirmos da premissa de que a divisão de uma sociedade em classes
socioeconômicas repousa sobre uma distribuição dos meios de produção
relevantes entre grupos específicos e que, por sua vez, essa distribuição
remonta à institucionalização das relações de poder social, podemos então
admitir que em todas as civilizações esse quadro institucional se tornou
idêntico à dominação política: a dominação tradicional era uma dominação
política. Somente com o modo de produção capitalista a legitimação do
âmbito institucional pode se ligar imediatamente ao sistema do trabalho social.
Pois somente então a ordem da propriedade privada pode se transformar de
uma relação política em uma relação de produção, já que ela se legitima agora por
meio da racionalidade do mercado, da ideologia da troca justa, e não mais em
uma ordem legítima de dominação. Ou seja, o sistema de dominação pode
agora ser justificado pelas relações de produção legítimas: esse é o verdadeiro
conteúdo do direito natural racional de Locke a Kant. O quadro institucional
17

da sociedade é apenas mediatamente política e imediatamente econômico (o


Estado de Direito burguês como “superestrutura”).
[....] A legitimidade fragilizada da tradição é substituída por novas formas de
legitimação, as quais, por um lado, resultam da crítica ao dogmatismo das
interpretações tradicionais do mundo e reivindicam um caráter científico e,
por outro lado, cumprem funções de legitimação subtraindo relações fáticas
de poder de análise e da consciência pública [presente em uma esfera pública liberal]. É
assim que nascem as ideologias em sentido estrito: elas substituem as
legitimações tradicionais da dominação ao se apresentarem com a pretensão
da ciência moderna e se justificarem como crítica da ideologia. As ideologias
possuem a mesma origem que a crítica da ideologia. Nesse sentido, não
podem existir “ideologias” pré-burguesas.

3. Transformações no Capitalismo Tardio: Eliminação das Questões


Práticas, Reprodução do Sistema, Despolitização da Esfera Pública e
Autorreificação do Humano [p.102-112]

Contudo, em meados do século XIX ocorre mutação social, política e econômica


ingressando no que os autores da Escola de Frankfurt chamam de “capitalismo
tardio”, ou “capitalismo monopolista”. Com a ascensão de um capitalismo
monopolista comandado por um Estado Social, entramos em uma era em que a
ciência e a técnica se tornam as principais forças produtivas de um sistema de
crescimento econômico e programas compensatórios de redistribuição. Com isso, ao
mesmo tempo que a economia é repolitizada por um Estado regulador, as massas e os
indivíduos são despolitizados passando-se de uma esfera pública para uma esfera
“publicitária”. Sendo toda a atividade estatal voltada para a estabilidade e
crescimento econômico, a política se torna negativa e os conteúdos práticos do debate
público, que dizem respeito à “vida boa”, tendem a ser eliminados. É importante
perceber como tal mudança do sistema transforma as condições da comunicação
pública, impedindo, ao mesmo tempo, uma liberação do debate público em torno de
questões práticas que poderiam pôr riscos aos limites impostos pelo sistema – o que é
feito em um esforço de reduzir tudo a questões técnicas que atendem a necessidades
funcionais –, e o livre desenvolvimento da individuação na interação social
simbolicamente mediada, de tal forma que os indivíduos tendem a adquirir uma
consciência reificada da realidade e a se auto-reificarem ao orientarem suas condutas a
processos meramente adaptativos. A própria distinção entre trabalho e interação tende
a não ser mais percebida, com um predomínio da racionalidade instrumental sobre as
demandas próprias da interação social.
18

Desde o último quarto do século XIX tornam-se perceptíveis nos países


capitalistas mais avançados duas tendências de desenvolvimento: 1. Um crescimento
do intervencionismo estatal, o qual procura assegurar a estabilidade do
sistema; e 2. Uma interdependência crescente da pesquisa e da técnica, que
transformou a ciência na principal força produtiva. Ambas as tendências
destroem a constelação entre o quadro institucional e os subsistemas de ação
racional com relação a fins que distingue o capitalismo em sua fase liberal.
[...] A relação mudou entre o sistema econômico e o sistema político; a política
não é mais apenas um fenômeno de superestrutura [...] a legitimação não pode
mais ser derivada de uma ordem apolítica como as relações de produção.
Nessa medida, vemos renovada a pressão por uma legitimação direta, tal
como observada nas sociedades pré-capitalistas. Ao mesmo tempo,
entretanto, o restabelecimento de uma dominação política imediata (em uma
forma tradicional de legitimação baseada na tradição cultural) torna-se
impossível. Pois, por um lado, as tradições perderam sua força; por outro, os
resultados da emancipação burguesa contra a dominação imediata (os direitos
fundamentais do homem e os mecanismos de eleições gerais) apenas podem
ser plenamente ignorados nas sociedades industriais avançadas em períodos
de reação. A dominação formal-democrática em sistemas de capitalismo
estatalmente regulado apresenta-nos uma exigência de legitimação que já não
pode ser satisfeita pelos recursos da forma de legitimação pré-burguesa. Por
isso, a ideologia da livre-troca tem seu lugar ocupado por um programa
compensatório orientado não pelas consequências sociais da instituição do
mercado, mas por uma atividade estatal que compensa as disfunções da livre
troca. Esse programa combina o momento da ideologia burguesa do
desempenho (que desloca a atribuição de status, segundo o desempenho
individual, do mercado ao sistema escolher) com a garantia de um bem-estar
mínimo, de segurança nos postos de trabalho e de estabilidade da renda. Ele
obriga o sistema de dominação a manter as condições de estabilidade que
tanto previnem os riscos gerais do crescimento econômico. Isso exige um
espaço de manipulação para intervenções estatais que, ao preço de restrições
às instituições do direito privado, assegura a forma privada de valorização do
capital e vincula a essa forma a devida lealdade das massas.
Na medida em que a atividade estatal é direcionada à estabilidade e ao
crescimento do sistema econômico, a política assume um peculiar caráter
negativo: ela se orienta pela eliminação de disfuncionalidades e prevenção dos
riscos que possam ameaçar o sistema, ou seja, ela não é direcionada à realização
de finalidades práticas, mas à resolução de problemas técnicos. [...] a atividade estatal é
19

restringida através dessa orientação preventiva da ação segundo problemas


técnicos solucionáveis administrativamente, na medida em que, com isso,
questões práticas são colocadas fora de campo. Os conteúdos práticos são
eliminados. O velho estilo de política, pela simples forma de legitimação, era
obrigado a se definir em função de objetivos práticos: as interpretações da
“vida boa” eram orientadas pelos contextos de interação. A ordem de
compensação hoje dominante, ao contrário, relaciona-se tão somente com o
funcionamento de um sistema autodirigido. Ela exclui as questões práticas e,
com isso, a discussão sobre a aceitação de padrões que apenas poderiam ser
alcançados segundo uma formação democrática da vontade. A solução de
problemas técnicos não é atribuída à discussão pública. A discussão pública poderia
problematizar as fronteiras do sistema, dentro das quais as tarefas da atividade
estatal se apresentam como meramente técnicas. A nova política do
intervencionismo estatal requer assim uma despolitização das massas populares.
Com a eliminação das questões práticas, a esfera pública política perde
também a sua função. Por outro lado, o quadro institucional da sociedade
permanece separado do sistema de ação racional com respeito a fins. Sua
organização, como antes, continua referida à práxis comunicativa e não apenas
a questões de uma técnica conduzida cientificamente. Por isso, o ofuscamento
da práxis ligada à nova forma de dominação política não é nada trivial. O
programa compensatório que legitima a dominação deixa em aberto uma
necessidade legitimatória decisiva: como a despolitização das massas torna-se
plausível a elas mesmas?
[...] Desde o fim do século XIX é a outra tendência que marca o capitalismo
avançado que se impõe sempre mais nitidamente: a saber, a cientifização da
técnica [...] o desenvolvimento técnico entrou em uma relação de feed-back com
o progresso das ciências modernas [...] Com a institucionalização do progresso
científico-técnico, entretanto, o potencial das forças produtivas assumiu uma
forma que o dualismo do trabalho e da interação retirar-se da consciência dos
homens.
Certamente, interesses sociais determinam como sempre a direção, as funções
e a intensidade do progresso técnico. No entanto, esses interesses definem
agora de tal modo o sistema como um todo, que acabam por coincidir com o
interesse pela manutenção do sistema. A forma privada de valorização do
capital e o critério de distribuição das compensações sociais, para garantir a
lealdade das massas, são mantidos como tais fora da discussão. Desse modo,
embora ainda dependa da variável mais importante do sistema, a saber, o
crescimento econômico, o progresso quase autônomo da ciência e da técnica
20

aparece como variável independente. E assim se configura uma perspectiva


segundo a qual a evolução do sistema social parece ser determinada pela lógica
do progresso técnico e científico. A legalidade imanente desse progresso
parece produzir uma pressão objetiva que tem de ser obedecida por uma
política orientada à satisfação de necessidades funcionais. Quando, no
entanto, essa aparência se impõe se de modo efetivo, a recomendação
propagandística sobre o papel da técnica e da ciência pode esclarecer e
legitimar por que o processo de formação democrática da vontade perdeu nas
sociedades modernas sua função perante questões práticas e “deve” ser
substituído por decisões plebiscitárias acerca da composição pessoal do
conjunto de administradores. Essa tese da tecnocracia foi desenvolvida em
diferentes versões no âmbito científico. Muito mais importante me parece ser
que essa tese tenha também conseguido penetrar como base ideológica na
consciência da massa populacional e desenvolver força legitimadora. A
operação peculiar dessa ideologia [tecnocrática] consiste em ter dissociado a
autocompreensão da sociedade dos sistemas de referência da ação
comunicativa e dos conceitos da interação simbolicamente mediada,
substituindo-os por um modelo científico. Na mesma medida, assume o lugar
da autocompreensão culturalmente determinada de um mundo da vida social
a autoreificação dos homens sob categorias da ação racional com respeito a fins e do
comportamento adaptativo.
[...] O perfil psicossocial da época é caracterizado menos por uma
personalidade autoritária que por uma desestruturação do superego. Esse
crescimento do comportamento adaptativo é apenas o reverso de uma dissolução
da esfera de interação linguisticamente mediada sob a pressão da estrutura de
ação racional com respeito a fins. A isso corresponde, subjetivamente, que a
diferença entre ação racional com respeito a fins e a interação desapareça não
apenas do conhecimento científico, mas da consciência dos próprios homens.
A força ideológica da consciência tecnocrática é garantida pela ocultação dessa
diferença.
4. A Consciência Tecnocrática como Nova Ideologia: os Limites da
Autorreflexão [117-120]
Eis então que voltamos à questão da consciência tecnocrática, que foi abordada no
texto anterior. A forma da ideologia muda ao entrarmos nas sociedades de capitalismo
tardio. Na ideologia burguesa da fase liberal, existia uma “repressão” da discussão
pública sobre a dominação de classe burguesa institucionalizada, o que gerava uma
distorção sistemática da comunicação pública por meio de uma ideologia da
21

“reciprocidade da troca justa”, mas, ao mesmo tempo, fomentava processos de reflexão


sobre tais situações de injustiça social, com a tematização de questões práticas.
Contudo, com a ascensão da consciência tecnocrática, é a própria possibilidade de
tratar de questões práticas que tende a ser expelida do discurso público, onde é
recusada a possibilidade de se debater racional e publicamente sobre projetos de vida
boa. A consciência tecnocrática não mascara a realidade por meio de um discurso
“racionalizador” que dissocia os símbolos – o que veremos que a forma própria das
distorções sistemáticas da comunicação –; ela se legitima transformando a própria
ciência e a técnica em fetiches. Neste sentido, como veremos no próximo texto, é
fundamental a contribuição da consciência hermenêutica, pois somente ela permite que
descubramos o potencial de socialização e de individualização presente na comunicação
linguística vinculada ao interesse prático de constituir uma intersubjetividade.
A consciência tecnocrática é, por um lado, “menos ideológica” que todas as
ideologias precedentes; pois não tem o poder opaco de um ofuscamento que
apenas aparenta a satisfação de interesses. De outro lado, a ideologia de fundo
hoje dominante, embora mais transparente, transforma a ciência em um
fetiche e é mais irresistível e abrangente que as ideologias de tipo antigo, pois
com o afastamento das questões práticas, não apenas justifica o interesse
parcial de dominação de uma determina classe e reprime as necessidades de
emancipação igualmente parciais de uma outra classe, como também afeta o
interesse emancipatório de toda a espécie enquanto tal.
A consciência tecnocrática não é nenhuma fantasia desiderativa racionalizada,
nenhuma “ilusão” no sentido de Freud, com a qual um contexto de interações
é representado, constituído ou fundamentado. As ideologias burguesas
podiam [na época do capitalismo liberal] ainda ser reduzidas à figura
fundamental de uma interação justa e livre de dominação, satisfatória para
ambas as partes nela envolvidas. Elas preenchiam justamente os critérios da
realização de desejos e da satisfação compensatória, erguidas sobre a base de uma
comunicação de tal modo restringia pelas repressões que as relações de poder
institucionalizadas por meio do capital não podiam ser conhecidas por seu nome. A
causalidade dos símbolos dissociados e dos motivos inconscientes, que davam origem tanto à
falsa consciência quanto à força da reflexão à qual se deve a crítica da ideologia, não é
mais do mesmo modo subjacente à consciência tecnocrática. Ela se mostra
menos compreensível por meio da reflexão, já que não é mais apenas ideologia.
Pois ela não expressa mais uma projeção de “vida boa”, que se não podia ser
identificada como a má realidade, podia ao menos ser a ela integrada com um
laço virtualmente satisfatório.
22

[...] Na consciência tecnocrática não se reflete a dissolução de uma totalidade


ética, mas o recalque da “eticidade” como uma categoria para as relações vitais
de modo geral. A consciência positivista vulgar coloca fora de questão o sistema de
referência das interações baseadas na linguagem cotidiana, onde a dominação e a ideologia
surgem sob condições de uma comunicação sistematicamente distorcida e que, por seu meio,
também podem ser reflexivamente perscrutadas. A despolitização da massa da
população, legitimada pela consciência tecnocrática, é ao mesmo tempo uma
auto-objetivação do homem em categorias tanto da ação racional com respeito
a fins quanto do comportamento adaptativo: os modelos reificados da ciência
imigram para o mundo da vida e ganham um poder objetivo sobre a
autocompreensão social. O núcleo ideológico dessa consciência é a eliminação
da diferença entre práxis e técnica – um reflexo, mas não o conceito, da nova
constelação entre o quadro institucional destituído de poder e os sistemas de
ação racional com respeito a fins que se tornaram independentes.
Desse modo, a nova ideologia fere um interesse inerente a uma das suas
condições fundamentais de nossa existência cultural: a linguagem ou, mais
exatamente, a forma de socialização e individuação determinada pela comunicação
linguística. Esse interesse se estende tanto à manutenção de uma
intersubjetividade do entendimento, quanto ao estabelecimento de uma
comunicação livre de dominação. A consciência tecnocrática faz desaparecer o
interesse prático por trás do interesse pela expansão do nosso poder de
disposição técnica. A reflexão que desafia a nova ideologia tem de remontar a
algo anterior a um interesse de classe historicamente determinado e revelar o
complexo de interesses de uma espécie que se constitui a si mesma.

5. O Potencial de Emancipação na Liberação de uma Comunicação


Pública Livre de Violência e Potenciais de Protestos Estudantis [p.126-
132]

Contra a distopia projetada pela consciência tenocrática, Habermas distingue do


conceito de racionalização técnica o conceito de “racionalização do quadro
institucional” – que podemos chamar de racionalização social ou comunicativa –, que
ocorre por meio da “liberação da comunicação pública”, ou seja, pela discussão pública
sem entraves e violências. Eis aqui sua concepção de Esclarecimento (Aufklärung),
que é oriunda de um conceito normativo de esfera pública (Öffentlichkeit). É
fundamental perceber como tal concepção de esclarecimento vincula a livre comunicação
pública a um processo de individuação e de socialização não repressiva e autônoma.
Com isso, temos, de um lado, uma concepção normativa de comunicação livre de
distorção, e, de outro lado, um diagnóstico sobre as formas de distorção e repressão
23

sistemática da comunicação pública nas sociedades de capitalismo tardio, que geram,


por sua vez, formas “patológicas” de individuação e socialização. Contudo, ele
identifica formas de protesto presentes nos movimentos de juventude (vale lembrar que
o texto é de 1968). Elas seriam possíveis porque tais jovens estariam em condições
estruturais de repolitizarem a esfera pública colocando questões sobre a irracionalidade
prática do sistema.

Não defendo que essa fantasia cibernética de uma autoestabilização da


sociedade análoga aos instintos esteja em vias de realização ou que seja
mesmo realizável algum dia. Mas penso que ela leva ao extremo, na forma de
uma utopia negativa, os vagos pressupostos básicos da consciência tecnocrática,
explicitando desse modo a linha evolutiva caracterizada pela dominação suave
da ciência e da técnica como ideologia. E, principalmente, sua apresentação
deixa claro que devemos distinguir dois conceitos de racionalização. No plano
dos subsistemas de ação racional com respeito a fins, o progresso técnico-
científico já forçou uma reorganização de instituições e esferas sociais e parece
exigi-las em escalas cada vez maiores. Mas esse processo de expansão das
forças produtivas somente representa um potencial de libertação caso não
substitua a racionalização em outro âmbito. A racionalização do quadro
institucional pode ser operada apenas no médium da interação linguisticamente
mediada; ou seja, através do desbloqueio [liberação] da comunicação. Uma discussão
pública, sem entraves e livre de dominação acerca da adequação e desejabilidade dos
princípios e normas que orientam a ação, à luz dos efeitos socioculturais do
progresso dos subsistemas de ação racional com respeito a fins – uma
comunicação desse tipo, em todos os âmbitos políticos (e repolitizados) dos
processos de formação da vontade, é o único médium no qual algo como uma
“racionalização” é possível.
Em um tal processo de reflexão generalizada, as instituições teriam sua
organização específica transformada para além de uma mera mudança em sua
forma de legitimação. A racionalização das normas sociais seria caracterizada
por um grau decrescente de repressão (o que no campo das estruturas de
personalidade representaria um aumento da tolerância perante os conflitos de
papeis); por um grau decrescente de rigidez (o que representaria a multiplicação das
possibilidades de uma adequada autoapresentação individual no interior das
interações cotidianas) e, finalmente, pela aproximação de um tipo de controle
do comportamento que permitiria um distanciamento dos papeis sociais fixos
e uma flexibilidade na aplicação de normas sociais internalizadas e sujeitas à
reflexão. Uma racionalização que se mede por transformações produzidas
24

nessas três dimensões não nos leva, como a racionalização própria dos
sistemas de ação racional com relação a fins, ao aumento do poder de
disposição técnica sobre os processos objetivados da natureza e da sociedade;
não conduz per se a um melhor funcionamento dos sistemas sociais, mas
proporcionaria aos membros da sociedade oportunidades de uma individuação
progressiva e emancipação mais abrangente. O aumento das forças produtivas não coincide
com o desejo de uma ‘vida boa’, mas pode ser colocado a seu serviço.
Tampouco acredito que a figura de pensamento [própria de Marx] de um
potencial tecnológico excedente, que não pode ser plenamente utilizado
dentro de um quadro institucional mantido repressivamente (Marx fala em
forças produtivas ‘represadas’), seja ainda adequada ao capitalismo regulado
pelo Estado. O melhor aproveitamento de potenciais produtivos não
realizados conduz à melhoria do aparato econômico-industrial, mas hoje não
conduz mais eo ipso a uma modificação do quadro institucional com
consequências emancipatórias. A pergunta não é se esgotamos os potenciais
[técnico-científicos de produção] disponíveis ou ainda por desenvolver, mas se
escolhemos aqueles que podemos querer em vista de uma existência pacífica e
satisfeita. Há de se acrescentar, no entanto, que essa pergunta pode ser aqui
apenas colocada, mas não respondida de antemão; ela exige uma comunicação sem
entraves sobre os objetos da práxis da vida, cuja tematização encontra profunda resistência
no interior de uma esfera pública estruturalmente despolitizada, própria do capitalismo
tardio.
Ao invés de um antagonismo de classes virtualizado e das disparidades
colocadas à margem do sistema, um nova zona de conflitos pode surgir
apenas ali onde a sociedade de capitalismo tardio precisa se imunizar contra os
questionamentos da ideologia tecnocrática de fundo por meio da
despolitização das massas populacionais: justamente no sistema da esfera pública
administrada pelos meios de comunicação de massa. Pois é ali que se cumpre o
ocultamento, sistematicamente necessário, da diferença entre o progresso dos
subsistemas de ação racional com respeito a fins e a transformação
emancipatória do quadro institucional – isto é, entre questões técnicas e
questões práticas. As definições permitidas ao público se referem ao que
queremos para viver, mas não a como gostaríamos de viver se pudéssemos de fato
decidir em face da realização dos potenciais disponíveis.
É muito difícil elaborar um prognóstico sobre quem poderia reavivar essa
zona de conflito. Nem o velho antagonismo de classes, nem os novos tipos de
subprivilégio possuem potenciais de protesto que tendam, por sua própria
25

origem, à repolitização de uma esfera pública estéril. O único potencial de


protesto que se dirige às novas zonas de conflito por meio de interesses
reconhecíveis surge, por enquanto, entre determinados grupos de estudantes e
alunos. [...] Sobre esse alicerce pode se erguer uma desaprovação de princípio
acerca da reprodução sem sentido de virtudes e sacrifícios excessivos –
desaprovação pelo fato de a vida individual, apesar do alto nível de
desenvolvimento tecnológico, permanecer determinada pelas exigências do
trabalho profissional, pela ética da competitividade e desempenho, pela
pressão da concorrência, pelo valor da reificação possessiva e da satisfação
pelo consumo; pela necessidade ainda manifesta da luta institucionalizada pela
existência, pela disciplina do trabalho alienado e pela eliminação da
sensualidade e da satisfação estética.
Diante dessa sensibilidade deve se tornar insuportável a eliminação estrutural
de questões práticas da esfera pública despolitizada. Uma força política apenas
poderia surgir daí se essa sensibilização desse origem a um problema
sistematicamente insolúvel. Eu vejo um tal problema no futuro. A medida da
riqueza social produzida por um capitalismo industrialmente desenvolvido,
bem como as condições técnico-organizacionais sob as quais essa riqueza é
produzida tornam cada vez mais difícil vincular a atribuição de status aos
mecanismos de avaliação do desempenho individual de uma maneira ao
menos subjetivamente convincente. Dessa forma, os protestos estudantis
poderiam a longo prazo destruir de forma duradoura a ideologia do
desempenho que já ameaça ruir e, com isso, fazer desabar a base de
legitimação do capitalismo tardio, a qual, apesar de frágil, ainda se encontra
protegida pela despolitização.
26

A Pretensão da Universalidade da Hermenêutica (1970), in: A lógica


das ciências sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 [1982].

Vimos até agora como Habermas critica o positivismo, o tecnocratismo e o


decisionismo e defende uma concepção de Esclarecimento vinculado à liberação da
comunicação pública. Contudo, ele volta suas críticas também ao outro lado do
espectro epistêmico: a hermenêutica filosófica. Como o próprio Habermas manifesta
retrospectivamente, ele e Karl-Otto Apel estavam nos anos 1960 lutando ao mesmo
tempo contra a consciência positivista da época e contra as tendências conservadoras da
hermenêutica filosófica – que não deixou de ter certa cumplicidade com o nazismo.
Esse artigo de 1970 faz parte de um debate de Habermas com o filósofo Hans-Georg
Gadamer em torno da questão da universalidade ou não da experiência hermenêutica.
Habermas realiza uma crítica à hermenêutica filosófica porque a vê como tendo uma
tendência intrinsecamente conservadora, pois ao mesmo tempo em que recusa a
validade do método científico de objetivação, a hermenêutica defende a impossibilidade
de uma crítica teórica sistemática e universalista à transmissão dogmática dos
preconceitos herdados pela tradição.
Habermas começa o artigo apresentando a peculiaridade da hermenêutica filosófica,
enquanto um modo de reflexão crítica, em relação às artes hermenêutica e retórica, de
um lado, e, de outro, em relação à linguística. Abaixo segue um trecho a respeito da
segunda distinção entre hermenêutica e linguística (1). É importante que se perceba
qual é a diferença entre o método da hermenêutica (autorreflexivo) e o método da
linguística (reconstrutivo), porque, nos seus escritos posteriores, Habermas irá fazer a
sua virada de um método autorreflexivo para um método reconstrutivo.

1. A diferença entre hermenêutica e linguística: método de autorreflexão


e método de reconstrução racional.
A autorreflexão permite a um sujeito tomar consciência das pressuposições
inconscientes subjacentes às performances realizadas de modo direto. Assim,
a consciência hermenêutica é o resultado de uma autorreflexão na qual o
sujeito falante toma consciência das liberdades e das servidões próprias à
linguagem. É assim que se dissipam ao mesmo tempo a ilusão subjetivista e a
ilusão objetivista das quais a consciência ingênua é prisioneira. A autorreflexão
elucida as experiências que o sujeito falante faz ao empregar sua competência
comunicacional, mas ela não pode explicar essa competência. Em
compensação, a reconstrução racional de um sistema de regras linguísticas
[realizada pela linguística reconstrutiva] explica a competência linguística. Ela
explicita as regras que são usadas pelo locutor nativo de maneira implícita;
27

propriamente falando, ela não torna conscientes as pressuposições das quais o


sujeito não seria consciente. A subjetividade do locutor, o único horizonte que
abre a possibilidade de uma experiência da reflexão, é por princípio posta de
lado. Podemos dizer que uma reconstrução linguística bem sucedida traduz
em dados conscientes o funcionamento inconsciente da linguagem. Mas essa
seria uma expressão imprópria, já que a consciência do locutor não é
transformada por esse saber linguístico.

Embora o autor critique a hermenêutica filosófica, ele considera a consciência


hermenêutica não apenas fundamental para refletir sobre os fundamentos do
conhecimento na sua relação com o interesse – o que ele faz no livro Conhecimento
e Interesse (1968) ao atribuir às “ciências hermenêuticas” um domínio do saber
vinculado ao interesse prático –, como também para tratar da relação entre ciência,
política e opinião pública nas sociedades cientificizadas. No trecho (2) vemos quais
são as contribuições filosóficas e sociológicas da hermenêutica.

2. Contribuições Filosóficas e Sociológicas da Hermenêutica

Ora, se a hermenêutica filosófica não tem nada a ver nem com a arte de
compreender e de falar, nem com a linguística; se ela não traz nada nem ao
uso pré-científico da competência comunicacional, nem à linguística, em que
consiste então a significação da consciência hermenêutica?
Podemos, todavia, enumerar quatro aspectos sob os quais a hermenêutica
adquire uma significação para as ciências e para a interpretação de seus
resultados. (1) A consciência hermenêutica destrói a compreensão objetivista que
as ciências humanas tradicionais têm de si mesmas. O homem de ciência que
procede a uma interpretação permanece ligado a seu ponto de partida
hermenêutico, do que segue que a objetividade da compreensão não pode ser
assegurada por uma suspensão dos preconceitos, mas apenas por uma
reflexão sobre o contexto histórico de tradições que vincula, desde sempre, os
sujeitos a seu objeto. (2) Aliás, a consciência hermenêutica incita as ciências
sociais a se lembrar dos problemas que resultam da pré-estruturação simbólica
de seus domínios de objetos. A partir do momento que o acesso aos dados
não é mediatizado pela observação controlada, mas sim por uma comunicação
por meio da linguagem ordinária, os conceitos teóricos saem do quadro
operacional que oferece o jogo de linguagem correntemente praticada no
estágio científico – relativo à medida das grandezas físicas. [...] (3) A
consciência hermenêutica interessa igualmente à compreensão cientificista que
28

as ciências físicas têm de si mesmas, excluindo-se, obviamente a sua


metodologia. A tomada de consciência do fato de que a língua natural joga um
papel de uma “última” metalinguagem para todas as ciências formalizadas,
explica o estatuto epistemológico que é dado à linguagem ordinária no curso
do processo de pesquisa. A legitimação das decisões que presidem às escolhas
estratégicas de pesquisa, da estrutura e dos métodos de controle das teorias,
que presidem, consequentemente, ao “progresso das ciências”, depende das
discussões conduzidas pela comunidade de pesquisadores. Ora, estas
discussões levadas no nível metateórico são fundamentalmente ligadas ao
contexto das línguas naturais e à forma de explicitação própria à comunicação
por meio da linguagem ordinária. A hermenêutica pode dar razões explicando
porque o consenso que podemos obter neste nível metateórico é, certamente
racionalmente motivado, mas não peremptório. (4) Enfim, existe hoje um
setor de interpretação que adquiriu atualidade no domínio social e que requer
mais que todos os outros uma consciência hermenêutica: trata-se da tradução
na linguagem do mundo vivido de informações científicas que podem ter
pesadas consequências para o futuro [...] As funções que o progresso
científico e técnico assume para a manutenção dos sistemas nas sociedades
industriais desenvolvidas explicam a demanda objetiva entre o saber
tecnicamente explorável e a consciência prática do mundo vivido. Eu creio
que a hermenêutica tenta, pela sua pretensão à universalidade, satisfazer a essa
necessidade.

Habermas defende, contudo, que a hermenêutica é limitada ao tratar da lógica da


pesquisa própria às ciências empírico-analíticas. Se ele defende, por um lado, a
necessidade de uma tradução do discurso científico monologicamente produzido para o
discurso formulado na linguagem cotidiana e inteligível para todos os cidadãos, ele
considera, por outro lado, que a hermenêutica não é capaz de fazê-lo, na medida em
que ela apreende apenas a estrutura de comunicação da linguagem natural, e não a da
pesquisa científica. A construção de teorias rigorosas e a organização de uma atividade
racional referente a fins não se submete inteiramente, portanto, à consciência
hermenêutica. Ela obedece a uma “inteligência operatória” que é retirada do contexto
da intersubjetividade e liberada, assim, dos elementos constitutivos do diálogo e da
comunicação. Portanto, o trabalho de tradução de um discurso monológico próprio das
ciências empírico-analíticas para um discurso dialógico próprio da linguagem cotidiana
deve ser empreendido por outros meios do que o da hermenêutica.
É aí que ele insere duas propostas diferentes àquela de uma “hermenêutica universal”
(3). De um lado, a elaboração de ciências voltadas para a interpretação de processos
29

de distorção sistemática da comunicação, que podemos chamar de “hermenêuticas


críticas”: a psicanálise e a crítica da ideologia. De outro, a elaboração de uma
linguística reconstrutiva universal. Como veremos, Habermas seguirá, nos seus escritos
posteriores, a segunda via, só que reconstruindo não uma teoria da “competência
linguística” (como em Chomsky), mas sim uma teoria da “competência
comunicativa”, que ele denominará de “pragmática universal”.

3. Duas vias alternativas à Hermenêutica: “Linguística Universal” e


“Hermenêutica crítica”

De um lado, existem limites sobre os quais nós chegamos [com a


hermenêutica], que são aqueles que, de maneira completamente significativa,
encontramos no domínio de aplicação da compreensão hermenêutica nas
explicações que pretendem fornecer de certos casos, de uma parte, a
psicanálise, e, de outra parte, a crítica da ideologia (na medida em que se trata
de estruturas coletivas). As duas lidam com objetivações da linguagem ordinária nas
quais o sujeito que produz essas manifestações vitais não reconhece suas
próprias intenções. Podemos compreender essas manifestações como os
elementos de uma comunicação sistematicamente distorcida. Elas não são
compreensíveis senão na medida em que são conhecidas as condições
universais da patologia que pode afetar a comunicação por meio da linguagem
ordinária. É necessário, assim, para uma teoria que tem por objeto a
comunicação por meio da linguagem ordinária que permita o acesso à unidade
coerente de sentido que foi patologicamente escondida. Se a pretensão de
expor uma tal teoria fosse fundada, seria possível chegar a uma compreensão
explicativa que fosse ao mesmo tempo transcender os limites da compreensão hermenêutica.
De outro lado, os representantes de uma linguística generativa renovaram, há
dez anos, o programa de uma teoria geral das línguas naturais. A intenção de
uma tal teoria é expor a reconstrução racional de um sistema de regras que
define de modo satisfatório a competência linguística universal. Se fosse
possível honrar esta pretensão, de tal maneira que a cada elemento de uma
língua natural das descrições estruturais em termos teóricos possam ser
coordenadas de modo unívoco, então as descrições estruturais em termos
teóricos poderiam substituir a compreensão hermenêutica de sentido.
Desta forma, a tese forte de Habermas é que “a consciência hermenêutica é incompleta
enquanto ela não fizer sua a reflexão sobre o limite da compreensão hermenêutica”. A
maior parte do artigo será voltada a uma demonstração de tais limites a partir do
exemplo da forma de interpretação analítica desenvolvida pela psicanálise freudiana
30

No trecho abaixo (4) temos apenas a tese geral do Habermas sobre a contribuição da
psicanálise. Caso queria saber como ele analisa a “compreensão cênica” do discurso
analítico, como ele explica comunicativamente os sintomas neuróticos e como, enfim, ele
deriva daí pressupostos de uma “comunicação normal” e de um “desenvolvimento
normal” do eu por meio da intersubjetividade linguisticamente mediada, será
necessário se debruçar no texto.
4. O Exemplo da Psicanálise: Processos de Distorção Sistemática da
Comunicação
A experiência limite da hermenêutica tem por objeto manifestações vitais
especificamente ininteligíveis. Essa obscuridade específica não é superável por
nenhuma aplicação da competência comunicacional naturalmente adquirida,
independente do quanto for sábia; sua opacidade obstinada pode ser
compreendida como o índice do fato de que não podemos explicá-la apenas
pela estrutura da comunicação por meio da linguagem ordinária, trazida à
consciência pela hermenêutica. Nesse caso, o que resiste em primeiro lugar ao
esforço interpretativo não é a objetividade da tradição linguageira, nem o fato
de que a compreensão linguageira de mundo seja limitada a um horizonte
determinado, em outros termos, não é uma ininteligibilidade virtual do que
implicitamente vai por si mesmo.
Quando as dificuldades da compreensão resultam de um hiatos cultural,
temporal ou social [como nos casos em que se demanda a consciência
hermenêutica], nós podemos, em princípio, precisar algumas informações
suplementares das quais seria necessário dispor para compreender: nós
sabemos que nos é preciso decifrar um alfabeto, conhecer um léxico ou
deduzir regras que permitam aplicá-las segundo o contexto específico.
Quando nós nos esforçamos pela via da hermenêutica de elucidar as unidades
coerentes de sentido que nos são ininteligíveis, a tolerância da comunicação
corrente por meio da linguagem ordinária nos permite, nos limites que são os
seus, de saber o que nós não sabemos (ainda). Mas essa consciência
hermenêutica se revela insuficiente quanto se trata de uma comunicação
sistematicamente distorcida: na medida em que o caráter ininteligível resulta aqui
de uma estrutura deficiente do próprio discurso. Sem afetar a imagem que tem
de si mesma, a hermenêutica pode negligenciar as perturbações francamente
patológicas da linguagem que encontramos, por exemplo, nos psicóticos. O
domínio de aplicação da hermenêutica coincide com os limites da
comunicação normal por meio da linguagem ordinária, considerando-se que
os casos patológicos escapam dela. A compreensão que a hermenêutica tem
31

de si mesma somente pode ser questionada a partir do momento em que


aparece que o discurso “normal” – ou digamos sem patologia aparente – apresenta
igualmente formas de comunicação sistematicamente distorcidas. O que se passa na
pseudo-comunicação na qual os interessados não podem se dar conta da
perturbação que afeta a comunicação. O fato de que um não entende os
dizeres de outrem somente é perceptível, então, para um terceiro. A pseudo-
comunicação engendra um sistema de mal-entendidos que a ilusão de um falso consenso
impede de trazer às vistas. Ora, a hermenêutica, na medida em que nós evoluímos
em uma língua natural, nos ensina que nós estamos sempre implicados e não
podemos sair do papel de participante reflexivo. É por isso que nós não
dispomos de nenhum critério universal que nos permita determinar a partir de
qual momento nós somos tomados em uma falsa consciência de uma
intercompreensão pseudo-normal, e nós tomamos como senso apenas dificuldades
superáveis por um esclarecimento hermenêutico o que demandaria de fato
uma explicação sistemática. A experiência hermenêutica limite reside,
portanto, no fato de que nós percebemos enquanto tais mal-entendidos
engendrados de modo sistemático – antes de tudo, sem “compreendê-los”.
Freud trouxe a cena essa experiência da comunicação sistematicamente
distorcida para delimitar um domínio de manifestações vitais especificamente
ininteligíveis [...] Concentremo-nos, antes de tudo, sobre o domínio que foi
melhor esclarecido, aquele dos fenômenos neuróticos. Nós dispomos de três
critérios para distinguir as manifestações vitais que se deformam na neurose e
que são nesse sentido especificamente ininteligíveis: [a] no plano dos símbolos
linguísticos, a comunicação deformada se assinala pela aplicação de regras que
se afastam do sistema de regras próprio à linguagem pública. Essa deformação
pode afetar os conteúdos semânticos isolados ou dos campos semânticos
inteiros; em casos extremos, mesmo a sintaxe é atingida. A propósito dos
textos oníricos, Freud estudou sobretudo a condensação, o deslocamento, a
agramaticalidade e o papel das alianças de palavras. [b] No nível do
comportamento, um jogo de linguagem deformada se assinala por sua rigidez
e pela repetição compulsiva. Os modelos de comportamento estereotipados
reaparecem em situações que apresentam os mesmos estímulos que
desencadeiam pulsões afetivas. Essa falta de flexibilidade é reveladora do fato
de que o conteúdo semântico do símbolo perdeu autonomia em face da
situação que especifica a enunciação linguística. [c] Se nós consideramos o
sistema da comunicação deformada em seu conjunto, nós somos
surpreendidos por uma singular disparidade entre os diferentes níveis da
comunicação; o que é desintegrado é a concordância usual entre o simbolismo
32

linguístico, as ações e as expressões que os acompanham. Os sintomas


neuróticos não são senão o testemunho tenaz e mais aparente desta
discordância. Qualquer que seja o nível da comunicação no qual aparecem os
sintomas, que esse seja na enunciação verbal, sob a forma de simbolismo
corporal ou em comportamentos compulsivos, é sempre um conteúdo
excomungado do uso público da linguagem que toma uma forma autônoma. Esse
conteúdo exprime uma intenção ininteligível segundo as regras da
comunicação pública, uma intenção nesse sentido privatizada, que permanece
inacessível até mesmo para o autor ao qual é preciso atribui-lo. Existe no self
uma barragem comunicacional entre o eu da competência linguística, que
participa dos jogos de linguagem intersubjetivamente usuais, e esse “país
estrangeiro no fundo de nós mesmos” (Freud), que é representado pelo
simbolismo de uma língua privada ou primitiva.
[...] a compreensão cênica [realizada pelo analista no contexto da clínica] se
distingue da compreensão hermenêutica no fato de que ela somente pode ser
compreendida como a aplicação de uma competência comunicacional que não faria
senão dar lugar a teorias, sem ser ela mesma compreendida em uma teoria.
Podemos explicitar as hipóteses tacitamente pressupostas pela análise da
linguagem no sentido de uma hermenêutica das profundezas, segundo três
pontos de vista: [1] O psicanalista dispõe de uma ideia prévia quanto à
estrutura de uma comunicação não distorcida por meio da linguagem
ordinária; [2] ele remete a distorcida sistemática da comunicação à confusão
entre dois níveis de estruturação simbólica: o nível prélinguístico e o nível
linguístico; [3] ele explica a gênese da distorção com a ajuda de uma teoria
relativa aos processos de socialização anormais, que se estendem à relação
entre os modelos de interação infantil e à formação das estruturas da
personalidade.
Habermas defende, então, a tese forte de que o discurso analítico pressupõe, de modo
tácito, uma teoria da competência comunicacional e da formação da competência por
meio da estruturação da personalidade (5). É deste ponto que se desenvolverá o projeto
de ciências reconstrutivas.
5. A Necessidade de uma Teoria da Competência Comunicativa e da
Formação da Competência Comunicacional
[...] A compreensão cênica [da psicanálise] pressupõe a metapsicologia no
sentido de uma teoria relativa à gênese das estruturas do ego, do isso e do
superego. A isso corresponde, no nível sociológico, uma teoria das aquisições
das qualificações fundamentais necessárias para o agir segundo os papéis. As
33

duas teorias, contudo, fazem parte de uma metahermenêutica que remete à


gênese psicológica das estruturas constitutivas da personalidade e a aquisição
das qualificações fundamentais necessárias para agir segundo os papéis, à
formação de uma competência comunicacional; o que quer dizer: ao exercício
socializador que consiste em se iniciar em formas de intersubjetividade
próprias ao entendimento por meio da linguagem ordinária. O que nos
permite responder a nossa questão inicial: a compreensão explicativa, no sentido
de um deciframento de manifestações vitais especificamente deficientes por
meio de uma hermenêutica das profundezas, não pressupõe apenas, tal como
a compreensão hermenêutica simples, a aplicação experimental de uma
competência comunicacional adquirida de maneira espontânea, mas também a
elaboração de uma teoria da competência comunicacional. Essa teoria
compreende as formas de intersubjetividade ligada à linguagem e a gênese de
suas deformações [...] Toda interpretação de uma comunicação
sistematicamente distorcida segundo uma hermenêutica das profundezas, que
seja descoberta no diálogo analítico ou de maneira informal, deve
implicitamente pressupor essas hipóteses teóricas exigentes que não podem
ser desenvolvidas e fundadas senão em uma teoria da competência comunicacional.
Por fim, temos o terreno preparado para a crítica ao conservadorismo da hermenêutica.
Para Habermas é crucial diferenciar entre “consenso empírico e contingente”, de um
lado, e, de outro, “consenso racional”. Para tanto, ele defende uma das principais
articulações conceituais de sua obra: a da relação intrínseca entre verdade, justiça e
intercompreensão pela linguagem. O projeto de Esclarecimento é um da Razão contra
Autoridade Dogmática não no sentido restrito de racionalização científico-científica,
mas sim no sentido amplo de uma racionalidade comunicatica: que “a razão se afirme
enquanto princípio de uma comunicação sem violência em face da experiência de uma
realidade na qual a comunicação é deformada pela violência”.
6. Crítica ao Conservadorismo da Hermenêutica: a Questão da Verdade
e do Consenso Racional como motor do Esclarecimento
[...] nós podemos já evocar a competência que o analista (e o crítico da
ideologia) devem efetivamente pôr em ação quando eles decifram uma
manifestação vital especificamente ininteligível. O conhecimento implícito das
condições de uma comunicação sistematicamente distorcida, efetivamente pressuposto
no emprego da competência comunicacional pela hermenêutica das
profundezas, basta para questionar a concepção ontológica da hermenêutica que
Gadamer desenvolve na esteira de Heidegger.
34

[Para Gadamer] a elucidação hermenêutica de manifestações vitais


incompreensíveis ou mal compreendidas deve sempre recorrer a um consenso
previamente estabelecido por tradições convergentes nas quais podemos nos
fiar. Esta tradição, todavia, é para nós objetiva, no sentido em que nós não
podemos confrontá-la com uma pretensão principial à verdade. A estrutura do
preconceito, própria a toda compreensão, não apenas interdita o
questionamento do consenso efetivamente estabelecido e que é a cada vez na
base de nosso mal-entendido e de nossa incompreensão, mas ainda faz com
que tal questionamento parece um absurdo. Do ponto de vista hermenêutico,
nós tendemos a nos referir a formas concretas de intercompreensão
previamente estabelecidas, portanto, a nos referir, em última instância, à
socialização e à iniciação em contextos tradicionais que nos são comuns.
Nenhuma destas formas pode ser subtraída, em princípio, da crítica, mas
nenhuma pode ser posta em questão em abstrato. Isso somente seria possível
caso pudéssemos lançar uma espécie de olhar oblíquo sobre um consenso
estabelecido por uma intercompreensão recíproca, e submetê-lo a novas
exigências quanto à sua legitimidade, à exceção dos interessados. Ora, [para a
hermenêutica] nós não podemos pôr questões deste tipo senão em face dos
interessados, engajando um diálogo com eles. Nós nos submetemos assim,
uma vez mais, à coerção hermenêutica que consiste em aceitar em um
primeiro tempo, a título de entendimento fundamental, as luzes de um
consenso que pode ser o resultado do diálogo reestabelecido. É absurdo [para
a hermenêutica] suspeitar abstratamente que este entendimento, certamente
contingente, poderia ser uma falsa consciência, porque não podemos
transcender o diálogo que nós somos. Disso, Gadamer conclui pela primazia
ontológica da tradição linguageira em relação a toda crítica possível: nós não
podemos criticar senão tradições particulares, na medida em que nós fazemos
parte do contexto global da tradição constituída por uma língua. Em um
primeiro momento, essas reflexões parecem plausíveis. Todavia, elas são
questionadas pela descoberta da hermenêutica das profundezas, segundo a
qual um consenso, aparentemente estabelecido de modo “racional” pode ser
perfeitamente o resultado de uma pseudocomunicação. Albrecht Wellmer
assinalou que a tradição das Luzes havia generalizado esta descoberta hostil à
tradição. Apesar da importância que elas dão à intercompreensão, as Luzes
exigem que a razão se afirme enquanto princípio de uma comunicação sem violência em face
da experiência de uma realidade na qual a comunicação é deformada pela violência [...]
Nós somente estaríamos com o direito de identificar o entendimento
fundamental, prévio em relação a toda intercompreensão fracassada, e o
35

entendimento cada vez efetivo, caso nós pudéssemos estar seguros de que todo
consenso estabelecido no interior da tradição linguageira foi sem coerção e
sem deformação. Ora, a experiência da hermenêutica das profundezas faz
aparecer que o que é afirmado no dogmatismo da tradição não é apenas a
objetividade da linguagem em geral, mas ainda o caráter repressivo de relações de
violência que deformam a intersubjetividade do entendimento enquanto tal, deformando de
modo sistemático a comunicação por meio da linguagem ordinária. É por isso que todo
consenso obtido por uma compreensão do sentido é fundamentalmente
sujeito a caução: ele pode ter sido extorquido por uma pseudocomunicação
[...] A consciência da estrutura preconceitual da compreensão de sentido não
deve ser confundida com a identificação entre o consenso efetivamente estabelecido e
o consenso verdadeiro. Essa identificação, em compensação, conduz à
ontologização da linguagem e a hipóstase da tradição. Uma hermenêutica dotada
de uma consciência crítica de si mesma, e que distingue entre tomada de consciência
e cegamento, reserva um lugar ao conhecimento metahermenêutico quanto às condições
de possibilidade da comunicação sistematicamente deformada. Ela liga a compreensão
ao princípio do discurso racional segundo o qual a verdade somente seria garantida
por um consenso que seria estabelecido em condições idealizadas de uma
comunicação ilimitada e que foi subtraída de toda e qualquer dominação, e
que poderia ser duravelmente mantida.
[...] A menos que a compreensão do sentido deva a fortiori permanecer
indiferente em relação à ideia de verdade, é-nos preciso antecipar não apenas
o conceito de uma verdade medida pelo horizonte de uma convergência de
visadas idealizada – atingida por meio de uma comunicação ilimitada e
subtraída de toda dominação –, como também a estrutura de uma vida
comum no quadro de uma comunicação sem coerção. A verdade é a coerção
singular que nos força a um reconhecimento universal sem coerção; ora, um
tal reconhecimento está ligado a uma situação ideal de fala, isto é, a uma
forma de vida ideal que permite uma intercompreensão universal sem coerção.
Neste sentido, a compreensão crítica do sentido é forçada a pretender a
antecipação formal de uma vida justa [...] A ideia de verdade, definida pelo
consenso verdadeiro, implica aquela de verdadeira vida. Em outros termos: ela
implica aquela de pessoa chegada à maioridade, capaz de falar em seu próprio
nome. O que se trata de realizar no futuro é a antecipação do diálogo
idealizado como forma de vida que garante o último entendimento
contrafactual e fundamental, que constitui um laço previamente estabelecido e
que permite criticar todo entendimento factual, na medida em que ele é falso,
e de denunciá-lo como uma forma de falsa consciência.
36

Resta que nós estaremos em condições não apenas de exigir, como também
de fundar em razão esse princípio regulador da compreensão, na medida em
que nós poderemos demonstrar o fato de que a antecipação de uma verdade
possível e de uma vida verdadeira é constitutiva para toda intercompreensão
não monológica que se realiza por meio da linguagem. Certamente, a
experiência fundamental da metahermenêutica nos torna conscientes do fato
de que a crítica – isto é, a compreensão penetrante capaz de trazer à luz os
cegamentos – obedece ao conceito da convergência ideal de perspectivas e,
portanto, ao princípio regulador do discurso racional. Não basta, contudo,
invocar apenas a experiência para mostrar que não apenas praticamos
efetivamente esta antecipação em cada compreensão penetrante, mas que nós
somos obrigados a praticá-la. A fim de fundar esta necessidade de direito, é-
nos preciso traduzir o saber implícito que serve desde sempre como fio
condutor para uma análise linguística pela hermenêutica das profundezas, em
uma teoria que permite deduzir da lógica da linguagem ordinária o princípio
do discurso racional enquanto regulador necessário de todo discurso efetivo,
tão deformado quanto o possa ser [esta teoria será a pragmática universal].
O argumento de Gadamer [em favor do reconhecimento dogmático da
tradição] pressupõe que o reconhecimento legitimador e o entendimento
fundador da autoridade se estabeleçam sem violência. A experiência da
comunicação sistematicamente distorcida contradiz esta pressuposição. De
todo modo, a violência não se torna durável senão graças à aparência objetiva da não-
violência que emana de um entendimento pseudocomunicacional. Segundo a terminologia
de Max Weber, nós chamamos autoridade uma tal violência legitimada. É por
isso que a distinção fundamental entre um reconhecimento dogmático e um
verdadeiro consenso supõe a reserva principial de uma intercompreensão universal
e livre de toda dominação. A razão, no sentido do princípio de um discurso
racional, é o muro contra o qual as autoridades de fato têm até hoje se batido,
e não a rocha sobre a qual elas seriam fundadas.
37

Teoria do Agir Comunicativo. 1. Racionalidade da ação e racionalização social;


2. Sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

A crítica dos processos sistemáticos de distorção da comunicação é, portanto, central


para toda e qualquer teoria crítica. É comum se considerar que, após Habermas
realizar a sua famosa “virada pragmático-linguistica” com o desenvolvimento das
ciências reconstrutivas, sobretudo com a formulação da “pragmática universal”, ele
teria abandonado aquele projeto crítico. Na verdade, ele foi metamorfoseado no
interior de uma teoria da ação comunicativa. Somente a título de ilustração, seguem
abaixo algumas propostas de Habermas, presentes na Teoria do Agir
Comunicativo, onde vemos que a proposta de crítica das patologias da
comunicação, sobretudo no tocante às formas de socialização e de formação da
personalidade, se mantém como sendo própria de uma teoria social voltada a uma
interpretação crítica dos modos de alienação e reificação presentes nas sociedades do
tempo presente.

[vol.2, p.272]
Os participantes da comunicação se encontram num horizonte de
possibilidades ilimitadas de entendimento. Num nível metodológico, o que se
apresenta como pretensão de universalidade da hermenêutica reflete apenas a
autocompreensão de leigos que agem orientados para o entendimento. Eles
têm de tomar como ponto de partida a ideia de que, em princípio, podem se
entender sobre tudo. E, enquanto mantêm um enfoque performativo, os que
agem comunicativamente não podem contar com distorções ou entraves
sistemáticos em sua comunicação, isto é, com resistências inseridas na própria
estrutura linguística, as quais limitam imperceptivelmente o espaço da
comunicação. Isso não exclui, evidentemente, a possibilidade de uma
consciência falibilista. Pois os membros sabem que podem se enganar; porém,
até mesmo um consenso que posteriormente se revela enganador repousa
inicialmente num reconhecimento não pressionado de pretensões de validade
criticáveis. Na perspectiva interna dos membros de um mundo da vida
sociocultural, não pode haver pseudoconsenso no sentido de convicções
impostas sob pressão, pois aos olhos dos participantes, num processo de
entendimento transparente, a violência não consegue se estabilizar.
[vol.2, p.337]
Pois, neste caso, mesmo que se trate de nexos funcionais que permanecem
latentes, a não-percepção subjetiva de coerções sistêmicas que
instrumentalizam um mundo da vida estruturado comunicativamente adquire
38

o caráter de um engano ou de uma consciência objetivamente falsa. As influências do


sistema sobre o mundo da vida, que modificam a estrutura dos contextos da
ação de grupos integrados socialmente sem prejudicar a aparência autárquica
do mundo da vida, têm de se ocultar, de certa forma, nos poros do agir
comunicativo. Isso provoca uma violência estrutural, a qual se apropria, sem se
manifestar, da forma de intersubjetividade do entendimento possível. A violência estrutural é
exercida por meio de restrições sistemáticas à comunicação; e ela está ancorada de tal
forma nas condições formais do agir comunicativo, que os participantes não
podem mais distinguir claramente os elos que unem os três mundos entre si, a
saber: o mundo objetivo, o social e o subjetivo.
[vol.1, p.573]
Podem-se conceber essas patologias comunicativas [apresentadas na clínica] como
resultado de uma confusão entre ações orientadas pelo êxito e ações
orientadas pelo entendimento. Em situações de um agir veladamente
estratégico, ao menos o comportamento de um dos participantes está
orientado pelo êxito, e os demais são levados a continuar acreditando que
todos estão cumprindo os pressupostos do agir comunicativo. Esse é o caso
da manipulação, que já mencionamos com relação ao exemplo dos atos
perlocucionários. Diante disso, todo e qualquer tipo de superação
inconsciente de conflitos, que a psicanálise explica recorrendo às estratégias
defensivas, acaba levando a transtornos na comunicação, em um plano ao
mesmo tempo intrapsíquico e interpessoal. Em casos assim, ao menos um dos
participantes engana a si mesmo quanto a estar agindo sob um enfoque
orientado pelo êxito e estar apenas mantendo a aparência de um agir
comunicativo.
[Vol.1, p.258]
Se a pragmática-formal reconstrói condições gerais e necessárias do agir
comunicativo, é preciso que se possam retirar daí padrões não naturalistas
para formas de comunicação que não apresentem distúrbios. Distúrbios de
comunicação podem remontar ao descumprimento das condições de
normalidade assinaladas de maneira formal-pragmática. Hipóteses deste tipo
poderiam ser testadas sob ponto de vista clínicos, mediante modelos de uma
comunicação sistematicamente desfigurada e com base em material reunido
até o presente momento sobretudo em famílias patogênicas e avaliado sob o
prisma da teoria da socialização.
39

[vol.2, p.699-700]
Caso nos decidamos a atribuir as mudanças decisivas da socialização familiar a
uma racionalização do mundo da vida, a interação socializadora constituirá o
ponto de referência para a análise do desenvolvimento do eu – e a comunicação
sistematicamente distorcida, isto é, a reificação de relações interpessoais,
constituirá o ponto de partida para a investigação da gênese patológica. A teoria do
agir comunicativo oferece uma moldura no interior da qual é possível
reformular o modelo estrutural apoiado no ego, no id e no superego. No lugar
de uma teoria das pulsões, que representa a relação entre o eu e a natureza
interna adotando conceitos da filosofia da consciência e seguindo o modelo
das relações entre sujeito e objeto, é colocada uma teoria da socialização, que,
ao estabelecer a relação entre Freud e Mead, valoriza as estruturas da
intersubjetividade substituindo as conjecturas relativas aos destinos pulsionais
por hipóteses relativas à história da interação e à formação da identidade. Tal
proposta teórica apresenta condições para: a) valorizar os novos
desenvolvimentos ocorridos na pesquisa psicanalítica, especialmente a teoria
das relações com objetos e a psicologia do eu; b) conectar-se com a teoria dos
mecanismos de defesa, de tal modo que as junções entre as barreiras
intrapsíquicas e as perturbações da comunicação no nível interpessoal se
tornam palpáveis; c) utilizar as ideias sobre mecanismos de superação de
conflitos conscientes e inconscientes para estabelecer a conexão entre ontogênese e
patogênese. Na tradição piagetiana, o desenvolvimento cognitivo e sociomoral
acontece segundo padrões estruturais que fornecem uma folha de contraste
confiável para desvios clínicos apreendidos intuitivamente.
[p.697-8]
A agudização da problemática da adolescência também leva a atribuir importância à
separação entre mundo da vida e sistema. Ora, se os imperativos do sistema
abordam a família a partir de fora, abertamente e sem nenhum mistério, já não
se imiscuindo furtivamente na família, nem se assentando em comunicações
sistematicamente distorcidas ou interferindo imperceptivelmente na formação de si
mesmo, torna-se mais fácil o surgimento de disparidades entre as
competências, os motivos e as atitudes, de um lado, e as exigências funcionais
dos papeis dos adultos, de outro.

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