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Artigo CONFLUÊNCIAS
A INVISIBILIDADE DOS CONFLITOS RELIGIOSOS E AS FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS
PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ABSTRACT
This article has the purpose of describe and analyze the conflict management practices involving religious matters
made by mediators in a Special Criminal Court (JECrim) in municipality of São Gonçalo. The research method
performed was the “Observant participation” (Wacquant: 2008), considering that I chose to act as a mediator. To
this end, I had to attended the Mediator Training Course the School of Judicial Administration (ESAJ), responsible
for the formation of these professionals in the Rio de Janeiro State. This course and fieldwork in this court are parts
of my dissertation´s reflections, who bothered to analyze how the conciliation and mediation are operated in two
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JECrims and what values, strategies and codes of conduct used by conciliators and mediators in the conduct of
cases of religious intolerance. In this text, bother to discuss how the mediators administer religious conflicts, since,
theoretically, mediation would be more appropriate to deal with the feelings of the parties involved in the conflict.
Keywords:Administration religious conflicts, criminal mediation.
1
CONFLUÊNCIAS
Uma primeira versão deste trabalho foi| Revista Interdisciplinar
apresentada no SPG 18 de Sociologia
“Práticas e Direito. Vol.
das Instituições 16, nº 3, de
do Sistema 2014. pp. 151-172
Segurança 151
Pública e de Justiça
Criminal”, coordenado pelas Profª. Vivian Paes e Ludmila Ribeiro, no 37º Encontro Anual da ANPOCS, em setembro de 2013.
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regulamentação
ção no âmbito dodaPoder
atividade de Media-
Judiciário do servidores do Juizado
trabalha também comodemediador.
São Gonçalo
Um
Estado do Rio de Janeiro” expõe em seu deles me disse que é bom trabalhar uma
Parágrafo 5º que o mediador pode ga- vez por semana no Centro de Mediação
nhar pontos em provas de títulos para porque é um trabalho “mais tranquilo”
concursos realizados pelo judiciário. que sua atividade como serventuário no
Juizado e porque as mediações duram em
§ 5º O exercício das funções média duas horas, desde modo ele conse-
de mediador certificado, por gue “ir embora mais cedo” nesse dia.
período contínuo superior a um O perfil das pessoas que trabalham
ano, constitui relevante serviço como mediador parece ser um impor-
público a ser anotado nos as- tante fator de distinção em relação aos
sentamentos funcionais de ser- que trabalham como conciliadores.
vidor, além de título em concur- Com isso, os conciliadores, por serem
so público realizado no âmbito advogados ou estudantes de direito se
do Poder Judiciário do Estado, 12
http://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce-
inclusive no de provas e títulos 77-4070-a409-e1c8714b994c Acessado em: 20/02/2013.
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zado. Formado em direito, passou para Daniela tem menos de trinta anos e
o concurso de serventuário do Fórum trabalha como assistente social no Fó-
de São Gonçalo há muitos anos e estava rum de São Gonçalo há cerca de três
quase se aposentando. Ele me disse cer- anos. Formou-se em serviço social e
ta vez que pensou em tentar concurso logo em seguida foi aprovada nesse con-
público para delegado, mas que desistiu curso. Daniela, diferente de Joel, sempre
da ideia porque acabou “se acomodando escuta as partes sem interrompê-las. Ela
nesse emprego”. Joel era um dos funcio- diz que é importante “elas desabafarem
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Os três nomes foram modificados. sobre o ocorrido” e também “é impor-
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tante [os mediadores] escutar tudo o ra”. Junto a isso, Joana considerava que
que elas [as partes] trazem para cá”. Joel, “tem assuntos que as partes têm vergo-
certa vez a criticou por não ter “um pul- nha de falar” ou “coisas que as partes não
so firme”, ele me contou que quase saiu tinham pensado antes e só começaram a
briga em uma audiência de mediação pensar depois de ouvir o relato do outro
porque “ela não consegue mostrar auto- e o relato delas mesmas”. Joana me disse
ridade” para as partes. Daniela, nos ca- também que existem “muitos motivos
sos envolvendo conflitos entre parentes, ocultos” para o conflito e o mediador
sempre demonstra se preocupar com a tem que “pescar” esses fatos.
família. Certa vez me disse que “em São Apesar dos diferentes perfis, os me-
Gonçalo as famílias são muito desestru- diadores sempre buscam encontrar o
turadas, é pai que não fala com filho e que motivou o conflito. É uma espécie
irmão que mata irmão”. Perguntei se ela de flash back, uma volta momentânea ao
sabia o porquê disso? Ela falou que a ci- passado buscando a gênese do conflito.
dade é muito pobre e “as famílias deses- É interessante que logo após de ser iden-
truturadas”. Por isso ela diz que “sempre tificada a origem desse conflito - depois
é bom ressaltar a importância da famí- de as partes ficarem muito tempo ex-
lia nas audiências”, pois considera que pondo seus argumentos e sentimentos,
isso “toca o sentimental das pessoas e lembrando-se de situações ocorridas no
ajuda uma perdoar a outra”. passado - os mediadores pedem para
Joana é psicóloga, aparenta ter menos que as partes esqueçam o que ocorreu
de quarenta anos e trabalha no Fórum e pensem “o daqui para frente”. Parece
da cidade há quase uma década. Joana, algo meio contraditório. Trazer à tona
como Daniela, sempre escuta as par- todo o histórico dos conflitos e no final
tes sem interrompê-las, entretanto, tem da audiência, como disse um mediador,
uma postura mais austera com as partes falar: “O que aconteceu até agora não dá
quando não concorda com elas. Em al- para voltar no tempo. E agora? Como
gumas audiências vi Joana criticar a pos- vai ser agora em diante?”. As partes
tura de alguma das partes, como uma vez foram escutadas, falaram, emociona-
em que não concordou com a postura de ram-se, trouxeram suas representações
um suposto autor do fato dizendo que ele sobre o conflito, elencaram os motivos
tinha “que respeitar seu tio por ser mais que causaram o processo e, após tudo
velho” e ser seu familiar. Joana se preo- isso, devem esquecer o que ocorreu e
cupava muito com os detalhes do caso, pensar no “agora em diante”.
pois, em suas palavras, “muitas dessas Quando percebi que sempre era re-
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pessoas não tem muita instrução e não alizado esse flash back nas audiências e
conseguem se comunicar de forma cla- depois, como num passe de mágica, o
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guia perdoar o próprio pai não irá con- as partes entrarem na sala, os dois me-
seguir perdoar mais ninguém. diadores explicaram os procedimentos
É interessante observar que a e as partes aceitaram participar. Os me-
mediadora fala em perdão, que é inter- diadores decidiram, como de praxe, co-
pretado no sentido do arrependimento meçar audiência de mediação com uma
do suposto autor do fato e do esqueci- sessão individual com a suposta vítima.
mento completo da ofensa pela suposta Sessão individual com a suposta
vítima. Diferente da desculpa, que se vítima, Ana:
relaciona com a idéia de que uma argu-
mentação do suposto autor do fato con- A suposta vítima, Ana, en-
siderada coerente pela suposta vítima trou com a ação alegando que
pode isentar o suposto autor do fato da seu filho, Luís, que possui pro-
culpa, portanto, tirar a culpa (des + cul- blemas mentais, estava sendo
pa); ou da superação, que se relaciona a ameaçado pelos vizinhos. Se-
uma questão de cura psicanalítica. gundo Ana, a motivação do
conflito se refere à inveja desses
OS CASOS DE “INTOLERÂNCIA vizinhos por ela ter comprado
RELIGIOSA” NA MEDIAÇÃO o terreno onde construiu sua
A seguir descrevo três casos que de- casa e este ter um tamanho su-
monstram como os mediadores condu- perior em relação aos demais
ziram as audiências de mediação. terrenos da rua. Por ser “uma
mulher simples” e ter compra-
1º Caso - Tipificação: Ameaça do o terreno “com muito custo”
O caso envolvia uma briga de vizi- construindo “uma casa mui-
nhos, onde uma vizinha entrou com o to simples”, seus vizinhos “não
processo contra dois vizinhos que estavam conseguem a engolir”. Como
ameaçando seu filho. É possível observar Luís é “nervoso”, ele às vezes não
que os conflitos iam além dessa ameaça, mede o que fala. Ou seja, pela
apresentado um conteúdo discursivo que inveja do seu grande terreno,
demonstra certa discriminação das partes por Ana ser “muito simples”, por
em relação às suas diferentes religiões. sua casa destoar das outras da
Ao iniciar a audiência, sala de au-
diências estava composta pelos media- 14
Antes de começar a mediar, os iniciantes devem assistir
algumas sessões de mediação como observadores. Ao final
dores Júlio e Daniela, as partes, Ana
da sessão, devem preencher um formulário que relatando
(suposta vítima), Anderson e Magali como foi a atuação dos mediadores.
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rua e pelo fato de seu filho, Luís, A segunda vizinha, Maga-
ser “nervoso” e não “medir o li, comenta que “esta senhora
que fala”, muitos vizinhos da rua [Ana] veio corrida de algum
não a aceitam, considerando-a lugar” e que inclusive tentou a
“uma invasora”. [A fala dela foi ajudar certo momento de difi-
bem confusa, parecia nervosa e culdade. Mas “como ela é arisca
um tanto descontrolada]. não conseguimos conviver bem”.
(Notas de Campo) Magali disse que Ana a ameaçou
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isso: “espírita, mas de santo!” Em mos religiosos. Ana diz que “eles recla-
seguida diz que seus vizinhos maram tanto do Centro” que ela teve que
não respeitam a religião dela. Se- sair. Por outro lado, Magali ficou ofendi-
gundo Ana, “eles falaram tanto da quando Ana ameaçou-lhe jogar “terra
do meu ‘Centro’ que eu saí dele. de cemitério”. Apesar de todas essas de-
Eu canto para os meus Orixás, mandas terem sido trazidos pelas partes
mas não vou mais para o ‘Cen- como um insulto, os mediadores não
tro’”. O outro mediador presente, conseguiram enxergar - ou enxergaram
Júlio, disse a Magali: “você não e consideraram sem importância - que
deve ligar para isso, esse negócio isso pudesse ser a motivação do desen-
de religião é bobagem, temos que tendimento entre as partes. Pelo contrá-
ver como vocês podem conviver rio, eles “não deveriam ligar para isso”,
melhor”, e mudou de assunto. pois, na perspectiva do mediador, esse
(Notas de Campo) “negócio de religião é bobagem”.
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à dinâmica. Os mediadores decidiram, Como um dos AF, Jomar, tem um
como de praxe, começar a audiência de grave problema de audição, os media-
mediação com uma sessão individual dores resolvem fazer uma única sessão
com a suposta vítima. com os dois acusados.
Sessão individual com a suposta ví- Sessão com o primeiro e segundo
tima, Andréia: AF, Jomar e Geraldo:
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mediadores e o fato de Andréia ser uma acordo - sobre o fato ocorrido, direcio-
praticante de uma religião de matriz afro- nando o assunto para questões religiosas
-brasileira, poderia soar como um defei- com intuito de que as partes relatassem
to, em termos morais. Geraldo também como uma representa a religião da outra.
corrobora isso em sua fala quando diz Após as partes entrarem na sala, ex-
que “trabalha, vou para a Igreja, sou do plicamos os procedimentos e as partes
bem”, ele elenca esses fatores como virtu- aceitaram aderir à dinâmica. Desta for-
des morais a serem explicitadas na audi- ma, eu e Júlio começamos a audiência
ência. A própria advogada de Andréia co- de mediação com a suposta vítima.
menta comigo – e os mediadores também Sessão individual com a suposta
escutaram esse relato – que o problema vítima, Vilma:
era “por conta da religião”. Os mediadores
ignoram esse fato, além de todas as outras A suposta vítima, Vilma, ale-
falas nesse sentido, como o insulto à su- gou que a AF, Elaine, foi até a
posta vítima em ser chamada de “sapatão frente da sua casa e fez inúmeros
endiabrado” e quando diz claramente que xingamentos. Vilma relata que
os AFs “não a respeitam por ser de uma elas brigaram por conta do baru-
religião diferente da deles”. Os mediado- lho: “nossa casa é muito perto da
res também não conseguem perceber o outra, ela faz barulho lá, eu recla-
conteúdo das ofensas quando Geraldo mo e não resolve”. Vilma diz que,
acusa Andréia de “ter colocado um dia- como resposta, ela aumenta o
bo” em frente da sua casa. Joel, por fim, seu som e “ela me xinga na frente
considera que o problema se restringe “a de todos os vizinhos”. Segundo
questão da propriedade e da ação cível”. Vilma, Elaine “não tem um mí-
nimo de educação”. Em seguida,
3º Caso - Tipificação: Injúria Vilma começa a desqualificar a
O terceiro caso, assim como o dois vizinha: “ela xinga o tempo todo,
primeiros, também envolvia uma briga fuma igual uma chaminé e sopra
entre vizinhos. Essa audiência de me- a fumaça pro meu terreno [ex-
diação foi presidida por mim e por outro plica que existe um basculante
mediador, Júlio. Além de nós, estavam as da sala da vizinha fica de frente
partes: Vilma (suposta vítima) e Elaine para seu terreno]”. Vilma diz que
(AFs). Não havia advogados nem obser- sempre fica incomodada com
vadores. Como estava atuando como me- barulho e cheiro, que segundo
diador, tentei fazer muitas perguntas – o ela, é “insuportável”, “aí reclamo
que irritou meu colega mediador pelo e ela me ofende...”.
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fato dele sentir que não iria sair nenhum (Notas de Campo)
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Sessão individual com a suposta au- a Elaine como ela achava que
tora do fato, Elaine aquele problema poderia ser so-
lucionado. Ela respondeu: “acho
Elaine alega que teve uma que não tem solução”. Júlio em
discussão com a Vilma na frente seguida comenta que “vocês não
da casa da vizinha e ela foi até a precisam gostar uma da outra,
delegacia fazer o registro. Elai- da religião da outra, que aqui
ne comenta que não concorda temos que resolver o que moti-
com o registro, e diz que a vizi- vou o problema, os insultos e o
nha que não a respeita e a agride barulho”. Elaine responde que a
sempre. Pergunto o porquê das vizinha também a chamou de
agressões. Elaine responde que a “preta velha macumbeira e dis-
vizinha nunca gostou dela por- se que não tinha moral de ir até
que não aceita sua religião. Per- sua casa reclamar do barulho”.
gunto qual a religião das duas. Júlio pergunta como aconteceu
Elaine responde que a vizinha “é a confusão. Andréia relata que
daUniversal[se referindo a Igre- estava em casa fazendo o almo-
ja Universal do Reino de Deus] ço e colocou uma música para se
e eu sou espírita”. Perguntei se distrair, e ela escutou a vizinha
ela era espírita kardecista. Ela pelo basculante da sala gritando
responde, num tom meio en- “música do demônio e outras
vergonhado e ao mesmo tempo coisas. Aí ela colocou uma mú-
reativo: “sou de santo”. O outro sica da Igreja muito alta, parecia
mediador, Júlio, pergunta como um trio elétrico. Fui lá reclamar,
era a relação dela com a vizinha aí começou a confusão”. Júlio
antes da briga, “se elas se fala- repete novamente a minha per-
vam”. Elaine diz que quando foi gunta sobre como Elaine consi-
morar lá a vizinha já morava, e dera que essa situação poderia
que ela sempre falou com os ou- ser resolvida. Ela respondeu que
tros vizinhos. “O problema é que sabia que as duas tinham se ex-
ela é evangélica e eles [se referin- cedido quando discutiram na
do aos evangélicos] só acham a frente do portão da vizinha, mas
religião deles boa”. Em seguida, que não queria ser ofendida pela
respondeu que a vizinha nunca vizinha novamente “só porque
falou com ela direito, “passava ela acha que a Igreja dela é a úni-
na rua e ela [se referindo a Vil- ca salvação do mundo”.
ma] virava a cara”. Pergunto (Notas de Campo)
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Sessão audiência individual com a vam exaltadas no momento da
suposta vítima, Vilma confusão e se não havia alguma
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cara de que não entendi o que estava fa- de uma agressão objetiva a direitos que
lando e Júlio completou: “ela [Vilma] foi não pode ser adequadamente traduzida
ofendida na frente das vizinhas, não vai em evidências materiais”; 2) “sempre
sossegar até que a outra seja penaliza- implica uma desvalorização ou negação
da na justiça”. Perguntei a Júlio se Vil- da identidade do outro” (2008).
ma, como uma pessoa cristã, não tinha Para formular o conceito de insul-
obrigação de perdoar Elaine – que se to moral, Cardoso de Oliveira (2008)
mostrou mais disposta a encerrar o pro- utiliza as noções de consideração e
cesso. Júlio respondeu “Cristo está longe desconsideração a partir das noções de
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para fundamentar direitos universalizá- dedor. 2) o desentendimento começa
veis”; ou também “devido aos constran- quando uma pessoa processou uma
gimentos para a universalização do res- companhia de transportes por ter da-
peito a direitos básicos de cidadania no nificado seu refrigerador. No primeiro
Brasil”, em virtude da dificuldade das caso, ele considera que houve um acor-
pessoas incorporarem a idéia de igual- do equânime tendo em vista o media-
dade (Cardoso de Oliveira: 2008). dor, numa postura “pouco usual”, re-
No Brasil, quanto nos outros dois solveu explorar o sentido das alegações
casos estudados por Cardoso de Olivei- de agressão, ou seja, o que as partes
ra (2008), o reconhecimento de deter- consideraram como sendo um insul-
minadas demandas trazidas pelas par- to moral. No segundo caso, houve um
tes não pode ser traduzido em direitos acordo barganhado pelo do mediador
pela esfera jurídica, tendo em vista não não considerar relevante o fato da su-
ser possível “fundamentar legalmen- posta vítima reclamar uma reparação
te a atribuição de um valor singular a em relação à postura da empresa em
uma identidade específica, e exigir o ignorar suas diversas cartas e telefone-
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seja
ção, tão
nosbem
casosequilibrada.
envolvendoNa media-
intolerân- problema é a questão
da ação cível” - tendoda
empropriedade
vista haver,e
cia religiosa, é possível afirmar que os além da ação movida no JECrim por
“valores cristãos” - como em um caso injúria, outra ação movida pela supos-
em que vi no durante o trabalho de ta vítima em um Juizado Especial Cível
campo onde uma professora do Cur- com intuito de que os vizinhos fossem
so de Formação de Mediadores afirma despejados – e não a ofensa moral
que “os valores cristãos são bons no elencada pela suposta vítima em torno
sentido moral” – podem interferir no de sua identidade religiosa.
resultado nas audiências, ainda mais Podemos perceber que apesar da
quando uma das partes não pertence a mediação permitir, diferentemente da
nenhuma religião cristã. conciliação, que as partes falem sobre o
Enfim, diferente da conciliação, ocorrido, no qual, segundo um media-
na mediação as partes podem expli- dor, proporciona um “efeito terapêuti-
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co”, em muitos casos os mediadores não Brasileira de Ciências Sociais - VOL. 23
conseguem captar o conteúdo moral da No 136. 67, 2008. http://www.scielo.br/
ofensa cometida, seja por não perceber pdf/rbcsoc/v23n67/10.pdf
que aquilo - como nos casos de intole- ____________________. Direito
rância religiosa – representa um insulto Legal e Insulto Moral. Rio de Janeiro:
à vítima, seja por perceber a ofensa, mas Relume Dumará, 2002.
considerá-la, a partir de sua perspecti- ____________________. & OLI-
va, algo sem grande relevância. VEIRA, Roberto Cardoso de. Ensaios
Portanto, é possível afirmar que Antropológicos Sobre Moral e Ética. Rio
existem diferentes moralidades em de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
jogo, ou melhor, que a noção de direi- EILBAUM, Lucia. “Só por formali-
to é uma categoria relacional (Cardoso dade”: a interação entre os saberes an-
de Oliveira, 1996) e o problema da ju- tropológico, judicial e jurídico em um
dicialização de determinados conflitos “juicio penal”. Paper apresentado no XI
é que o enquadramento jurídico dos CONLAB, Salvador Bahia, 2011.
fatos levados ao Judiciário é restrito e GARAPON, Antoine. Julgar nos Es-
acaba, muitas vezes, não dando respos- tados Unidos e na França. Cultura Jurí-
tas pertinentes às questões e comple- dica Francesa e Common Law em uma
xidades sociais envolvidas no conflito perspectiva comparada. Rio de Janeiro,
efetivo, real, vivido pelos cidadãos. Lumen Juris, 2008.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local.
REFERÊNCIAS Novos ensaios em antropologia inter-
AMORIM, M. S.; KANT DE LIMA, pretativa. Petrópolis, Vozes, 2002.
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BOURDIEU P. Esboço de uma te- De Sociologia Del Trabajo, 2000.
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172 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 16, nº 3, 2014. pp. 151-172
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