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15/03/2018 Victor Cesar Torres de Mello Rangel

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Artigo CONFLUÊNCIAS
A INVISIBILIDADE DOS CONFLITOS RELIGIOSOS E AS FORMAS DE ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS
PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito

ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

A INVISIBILIDADE DOS CONFLITOS RELI-


GIOSOS E AS FORMAS DE ADMINISTRA-
ÇÃO DE CONFLITOS PELOS MEDIADORES
EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO
MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ1
Victor Cesar Torres de Mello Rangel
Doutorando em Antropologia pela Federal Fluminense.
E-mail: vctmrangel@id.uff.br
RESUMO
Este artigo tem o intuito de descrever e analisar as práticas de administração de conflitos envolvendo questões
religiosas pelos mediadores em um Juizado Especial Criminal (JECrim) do município de São Gonçalo. As in-
vestigações de campo foram realizadas a partir da “participação observante” (Wacquant: 2008), tendo em vista
que optei por atuar como um mediador. Para tal, participei do Curso de Formação de Mediadores da Escola
de Administração Judiciária, responsável pela formação desses profissionais no Estado do Rio de Janeiro. Este
curso e o trabalho de campo neste juizado constituem partes das reflexões da minha dissertação de mestrado,
que se preocupou em analisar como a conciliação e a mediação são operadas em dois JECrims e quais os valores,
estratégias e códigos de conduta empregados pelos conciliadores e mediadores na condução dos casos de intole-
rância religiosa. Nesse texto, me preocupo em discutir como os mediadores administram conflitos religiosos, já
que, teoricamente, a mediação seria mais adequada a lidar com os sentimentos das partes envolvidas no conflito.
Palavras-chave:Administração de conflitos religiosos, mediação criminal.

ABSTRACT
This article has the purpose of describe and analyze the conflict management practices involving religious matters
made by mediators in a Special Criminal Court (JECrim) in municipality of São Gonçalo. The research method
performed was the “Observant participation” (Wacquant: 2008), considering that I chose to act as a mediator. To
this end, I had to attended the Mediator Training Course the School of Judicial Administration (ESAJ), responsible
for the formation of these professionals in the Rio de Janeiro State. This course and fieldwork in this court are parts
of my dissertation´s reflections, who bothered to analyze how the conciliation and mediation are operated in two

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JECrims and what values, strategies and codes of conduct used by conciliators and mediators in the conduct of
cases of religious intolerance. In this text, bother to discuss how the mediators administer religious conflicts, since,
theoretically, mediation would be more appropriate to deal with the feelings of the parties involved in the conflict.
Keywords:Administration religious conflicts, criminal mediation.
1
CONFLUÊNCIAS
Uma primeira versão deste trabalho foi| Revista Interdisciplinar
apresentada no SPG 18 de Sociologia
“Práticas e Direito. Vol.
das Instituições 16, nº 3, de
do Sistema 2014. pp. 151-172
Segurança 151
Pública e de Justiça
Criminal”, coordenado pelas Profª. Vivian Paes e Ludmila Ribeiro, no 37º Encontro Anual da ANPOCS, em setembro de 2013.

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RANGEL,

INTRODUÇÃO pela criminalização desses casos.


Este artigo foi escrito a partir de mi- Também é importante dizer que os
nha dissertação de mestrado intitulada casos envolvendo preconceito ou discri-
“´Nem Tudo é mediável´: a invisibilida- minação religiosa possuem uma lei es-
de religiosa e as formas de administração pecífica, a Lei 7716/89, conhecida como
de conflitos (mediação e conciliação) no Lei Caó, que prevê de dois a cinco anos
Rio de Janeiro” (Rangel: 2013). Na disser- de reclusão para esses crimes e o enca-
tação, procurei analisar quais os valores, minhamento para as Varas Criminais.
estratégias e códigos de conduta empre- Entretanto, em muitos desses casos o
gados por conciliadores - em um Juizado conteúdo religioso das ofensas é descon-
Especial Criminal do município do Rio siderado na hora do Registro de Ocor-
de Janeiro (JECrim) - e mediadores - em rência realizado pela delegacia e apenas
um JECrim do município de São Gon- o resultado desses conflitos na forma de
çalo, localizado na região metropolitana ameaça, injúria, agressão física leve, en-
do Estado do Rio de Janeiro - na admi- tre outros, são considerados. Logo, mui-
nistração dos casos de “intolerância reli- tos desses casos são encaminhados aos
giosa”. Neste presente trabalho direciono Juizados Especiais Criminais, responsá-
o olhar para as práticas de administração veis por atenderem crimes com penas
de conflitos dos mediadores em relação previstas de até dois anos de reclusão –
aos casos que envolvem motivações reli- classificados pelo Direito como casos de
giosas elencadas pelas partes1. menor potencial ofensivo.
É importe frisar de a categoria
“intolerância religiosa” utilizada nesse OS PROCEDIMENTOS NOS
trabalho é uma categoria nativa, criada JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
pela Comissão de Combate a Intolerância O primeiro contato entre o recla-
Religiosa2 como uma bandeira na luta mante e o reclamado3 nos Juizados Es-
1
As supostas vítimas e supostos autores do fato (acusados)
peciais Criminais acontece na audiência
são chamados, pelos operadores do Direito, de partes. de conciliação, que também é chamada
2
A Comissão de Combate à Intolerância Religiosa - CCIR
e agnósticos, além de membros do Tribunal de Justiça do
foi criada em 2008 na cidade do Rio de Janeiro a partir de
Rio de Janeiro - TJRJ, o Ministério Público e a Polícia Civil.
diversos casos envolvendo agressões e ameaças aos prati-
Para mais informações: http://www.eutenhofe.org.br/quem-
cantes das religiões de matriz afro-brasileiras. A comissão
somos/ccirrj Acessado em 15/05/2013.
foi criada inicialmente por religiosos da Umbanda e do
3
Candomblé, não possuindo fins lucrativos. Tem por obje- As partes ou supostas vítimas e supostos agressores, também
tivo denunciar crimes contra os praticantes das religiões de são chamadas de reclamante e reclamado. Ao analisar seman-
matrizes afro-brasileiras, invisibilizados no sistema de justiça ticamente essas palavras, podemos observar como opera a
criminal. Após algum tempo, outros segmentos religiosos se lógica da dualidade, tendo em vista que os atores presentes
juntaram ao grupo, que hoje é formado por umbandistas, aparecerem como dois pólos (vítima e autor do fato) opostos.
candomblecistas, espíritas, judeus, católicos, muçulmanos, A palavra reclamar, segundo o Novo Dicionário Aurélio de
malês, bahá’ís, evangélicos, hare krishnas, budistas, ciganos, Língua Portuguesa, significa “fazer impugnação ou protesto
wiccanos, seguidores do santo daime, presbiterianos, ateus (verbal ou por escrito); opor-se; reivindicar; exigir”.

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PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
de audiência preliminar. Após o registro notas em jornais reconhecendo o erro
de ocorrência na delegacia pela suposta do autor do fato, por exemplo. Só vi este
vítima ou pela autoridade policial com- tipo de retratação num caso tipificado
petente4, e o envio deste ao JECrim, um como calúnia envolvendo um patrão e
funcionário do cartório marca o dia e um empregado. 3) ou pelo acordo civil
horário da audiência de acordo com a - O acordo civil também pode ser feito
disponibilidade do órgão. de inúmeras formas, os mais comuns
O objetivo da audiência de concilia- que presenciei foram: o pagamento de
ção nos casos envolvendo ações públicas algum valor em dinheiro do autor do
condicionadas à representação – quan- fato à vítima para tentar recompor al-
do alguém entra com uma ação contra gum prejuízo causado; o compromisso
outrem – é que o conciliador tente ao de que o autor do fato não se aproxime
máximo que a suposta vítima desista do mais da vítima. É comum nesses acor-
processo. Isto se pode dar de três ma- dos serem também discutidas questões
neiras: 1) pela desistência da suposta relativas ao Juizado Especial Cível, pois
vítima em continuar com o feito - Es- é permitido que neste espaço fosse re-
tas desistências podem ser explicadas solvido tanto a questão criminal como
por inúmeros motivos, os argumentos questões financeiras.
mais comuns que presenciei foram: a Nos casos em que as partes possuam
desistência da suposta vítima pelas con- algum vínculo geográfico ou sentimen-
secutivas ausências do autor do fato às tal (como no caso de vizinhos e paren-
audiências; arrependimento em ter re- tes), durante a audiência de conciliação
gistrado o fato; o uso do registro como é comunicado que o juiz entendeu as
uma forma de dar apenas um “susto” na partes devem passar por sessões de me-
outra parte; a orientação de alguns ad- diações. As dinâmicas da conciliação e
vogados de que o tempo gasto indo as da mediação são bem diferentes. Expli-
audiências não vale a pena frente à mul- carei essas diferenças mais a frente.
ta pecuniária que o autor do fato irá re- Caso não haja nenhum tipo de en-
ceber. 2) pela conciliação entre as par- tendimento na conciliação ou na media-
tes- A conciliação mais comum entre as ção, normalmente é marcada uma nova
partes é concretizada a partir do pedido audiência - em alguns casos é aberto um
de desculpas do autor do fato à vítima – prazo para a juntada5 de documentos
ou desculpas mútuas. Existem outros ti- relativos ao processo. Nessa nova audi-
pos de retratação, como a publicação de
5
O prazo para a juntada é um período de tempo solicitado pelos
4
O primeiro, no caso de ações condicionadas à advogados para que possam reunir documentos sobre o caso.
representação e o segundo, nos casos de ações incondicio- Entre esses documentos, destaco os laudos periciais, lista das
nadas à representação. Explicarei esses termos a seguir. testemunhas a serem encaminhadas ao juiz, petições, entre outros.

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ência é tentada novamente a conciliação. do ao defensor, no caso de não possuir um


Caso não a conciliação não se realize, é patrono9, que o orienta, na maioria dos ca-
oferecido ao suposto autor do fato o be- sos, a aceitar a multa – considerada uma
nefício da transação penal6 - cada pessoa decisão bem mais sensata frente ao risco
tem direito de utilizar esse beneficio a de sofrer uma maior sanção na audiência
cada cinco anos -, que consiste no paga- de instrução e julgamento com o juiz.
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mento de um valor estipulado pelo Mi-


nistério Público a ser doado a favor de AS DIFERENÇAS ENTRE A
uma instituição de caridade ou a presta- CONCILIAÇÃO E A MEDIAÇÃO
ção de serviço comunitário por algum Antes de começar a analisar as audiên-
tempo delimitado. Se o suposto autor do cias de mediação, é importante ressaltar as
fato aceitar, o processo é extinto, inde- diferenças em relação às audiências de con-
pendente se a suposta vítima concordar ciliação. Destaco alguns pontos a seguir.
ou não. Caso não aceite, o caso é enca- 1) O tempo das audiências de conci-
minhado ao juiz e ele quem decidirá na liação e mediação é distinto. Na concilia-
audiência de instrução e julgamento, fase ção, as audiências são marcadas de quinze
posterior à audiência preliminar. em quinze minutos, o que demonstra sua
Nos casos de ação pública incondicio- preocupação mais quantitativa do que
nada à representação – quando o Estado qualitativa no tratamento dos conflitos.
entra com uma ação contra um indiví- A curta duração é motivo de constantes
duo7 - como não há a possibilidade de reclamações das partes, que chegam à au-
desistência, acordo civil, conciliação nem diência querendo falar sobre o ocorrido.
de mediação - é oferecido ao suposto autor Diferentemente, a audiência de mediação
do fatoo benefício datransação penal8 logo dura duas horas ou mais, podendo ser re-
na primeira audiência. Este é encaminha- alizado mais de uma sessão10, de acordo
com a necessidade dos casos.
6
Apesar da aceitação do pagamento da transação penal, 2) Outra diferença se refere ao perfil
pela lei, não significar assunção da culpa, ouvi relatos, du-
rante o campo, de pessoas serem impedidas de prestar con-
dos conciliadores e mediadores. Dos sete
curso ou reprovadas. conciliadores que tive contato em um JE-
7
Os casos mais comuns no juizado pesquisado da cidade do Rio de Crim da cidade do Rio de Janeiro, todos
janeiro são: Porte de Drogas para Consumo Próprio, Contravenção
eram estudantes ou bacharéis em Direito.
(Jogo do Bicho, Bingos), Desobediência, Desacato, entre outros.
8
Em alguns casos envolvendo o uso de drogas para o consu-
Na mediação, diferentemente, era apenas
mo próprio, não era oferecido à transação penal, mas uma recomendado que o mediador possua for-
advertência - o conciliador perguntava se o individuo era
viciado em alguma substância e, caso a resposta fosse nega- 9
Termo utilizado pela linguagem jurídica para se referir ao
tiva (como aconteceu em todos os casos que presenciei) era
advogado representante das partes envolvidas.
recomendado aos conciliadores dar uma lição de moral no
10
suposto autor do fato, que muitas das vezes prometia que Normalmente, a segunda sessão é marcada quinze dias
não iria voltar a fazer uso de tal substância. após a primeira sessão.

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mação superior (em qualquer área). No guiarem a mediação, não se prendendo
JECrim de São Gonçalo, os mediadores a uma perspectiva normativa, faz com
eram psicólogos, assistentes sociais, ser- que a mediação seja vista por advoga-
ventuários e (poucos) advogados. A maio- dos e conciliadores como algo, por assim
ria são funcionários do próprio Fórum. dizer, fora do Direito. O conciliador se
3) É importante ressaltar que as volta quase que mecanicamente para o
mudanças propostas pelos Juizados TCO, diferente da mediação onde, se-
Especiais são inspiradas no modelo gundo uma mediadora, “o processo aqui
jurídico americano da common law, que não vale nada, o que vale é o que é falado
difere estrutural e filosoficamente do e acordado pelas partes”. Sobretudo, pelo
modelo inquisitorial brasileiro, inscrito fato de que as provas e testemunhas, tão
no sistema da civil law (Kant de Lima: valorizadas no meio jurídico, não pos-
2008; Garapon: 2008). Deste modo, a suem qualquer validade nas audiências

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conciliação e a mediação são estranhas à de mediação. Um advogado descreveu


tradição jurídica brasileira, uma vez que a mediação como “como uma terapia. A
nosso sistema de justiça preserva uma diferença é que é de graça”. Um concilia-
tradição inquisitorial, herança jurídica dor também disse, quando perguntado
portuguesa. Ou seja, o sistema jurídico sobre a diferença entre a conciliação e
brasileiro da civil law “foi regido sob óti- mediação, que “esse lance da mediação é
ca da dominação e controle do Estado muito blábláblá, coisa de psicólogo”.
sobre a população” (Amorim, Kant de 4) Também existem diferentes
Lima & Burgos, 2003: 53). Diferente- orientações para o trato dos casos nes-
mente, na tradição jurídica da common ses dois espaços. Na conciliação não há
law o sistema jurídico se preocupa com oportunidade para a discussão sobre as
os interesses individuais dos envolvidos. motivações referentes ao conflito, nem
Entretanto, apesar da conciliação e mesmo para qualquer outro diálogo en-
mediação se posicionarem contra a ló- tre as partes. A própria supervisora do
gica do litígio – característica da nossa JECrim que trabalhei na cidade do Rio
tradição jurídica da civil law (Kant de de Janeiro orienta os conciliadores a não
Lima: 2008) -, a mediação surge como “entrar no mérito do conflito” focando a
algo ainda mais distante do que os ope- audiência para o “daqui para frente”. Já
radores do Direito julgam ser, de fato, na mediação é buscado se achar, usando
cabível ao direito. Ou seja, o fato dos me- as palavras de uma mediadora, “a raiz
diadores não se basearem no Termo Cir- do desentendimento”, ou seja, as mo-
cunstanciado de Ocorrência – TCO11 ao
quadrar o crime na Lei 9.099/95. Neste documento consta um
11
O Termo Circunstanciado de Ocorrência − TCO é o docu- pequeno relato policial sobre o fato ocorrido. Os mediadores,
mento específico lavrado pelo delegado quando se trata de en- diferente dos conciliadores, não tem acesso a esse documento.

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tivações iniciais para o surgimento do para ingresso na magistratura de


conflito. É interessante que logo após de carreira estadual e critério de de-
ser identificada a origem do conflito, os sempate nesse, ou em qualquer
mediadores pedem para que as partes concurso realizado por esse Po-
esqueçam o que ocorreu e tentam so- der. Quando exercida por bacha-
lucionar o conflito a partir da ideia do rel em direito, é também consi-
perdão, como veremos a seguir. derada atividade jurídica para os
fins de que cuida o artigo 58, da
OS MEDIADORES E O “PERDÃO” Resolução nº 75, de 12 de maio
Dos quinze mediadores que tive a de 2009, do Conselho Nacional
oportunidade de conhecer pessoalmen- de Justiça, desde que exercida
te – de um total de dezoito mediadores por, no mínimo 16(dezesseis)
– todos trabalham como serventuários, horas mensais, no período de
psicólogos ou assistentes sociais no jui- 1(hum) ano” [grifos meus].
zado e são cedidos de suas atividades
para atuarem como mediadores uma O Artigo 1º do Ato Executivo nº
vez por semana. Isso pode ser explica- 3053/1012 “resolve que o Servidor Me-
do a partir de algumas Resoluções do diador cumprirá expediente, três dias ao
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A mês, no Centro de Mediação a que este-
Resolução nº19/19 que dispõe “sobre a ja vinculado”. Por isso que a maioria dos

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regulamentação
ção no âmbito dodaPoder
atividade de Media-
Judiciário do servidores do Juizado
trabalha também comodemediador.
São Gonçalo
Um
Estado do Rio de Janeiro” expõe em seu deles me disse que é bom trabalhar uma
Parágrafo 5º que o mediador pode ga- vez por semana no Centro de Mediação
nhar pontos em provas de títulos para porque é um trabalho “mais tranquilo”
concursos realizados pelo judiciário. que sua atividade como serventuário no
Juizado e porque as mediações duram em
§ 5º O exercício das funções média duas horas, desde modo ele conse-
de mediador certificado, por gue “ir embora mais cedo” nesse dia.
período contínuo superior a um O perfil das pessoas que trabalham
ano, constitui relevante serviço como mediador parece ser um impor-
público a ser anotado nos as- tante fator de distinção em relação aos
sentamentos funcionais de ser- que trabalham como conciliadores.
vidor, além de título em concur- Com isso, os conciliadores, por serem
so público realizado no âmbito advogados ou estudantes de direito se
do Poder Judiciário do Estado, 12
http://portaltj.tjrj.jus.br/documents/10136/5341a7c3-ce-
inclusive no de provas e títulos 77-4070-a409-e1c8714b994c Acessado em: 20/02/2013.

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aproximam e se identificam mais com nários mais antigos do juizado, trabalhou
o “mundo do direito” (Kant de Lima: com muita gente e em muitos setores no
2008). Os mediadores são funcionários Judiciário da cidade. Apesar de não atu-
públicos, de diversas áreas, e muitos de- ar como advogado, ele tem um grande
les demonstram pouco conhecimento conhecimento sobre a prática jurídica.
sobre o Direito. Além de terem formação Pude notar isso em suas conversas com
variada, o fato do mediador não ter aces- os advogados das partes durante as vá-
so ao processo, diferente do conciliador, rias mediações que realizei com ele. Joel
faz com que não precise entrar em debate também trabalhou alguns anos como
com advogados tendo que recorrer a ar- conciliador antes de ir para a mediação.
gumentos jurídicos para legitimarem seu Disse que ficou mais tempo que precisa-
discurso. Nas audiências de mediação va para obter a certificação, pois, na épo-
que assisti sempre era reforçado o fato de ca, o juizado “estava muito escasso de
que eles são proibidos de consultarem o conciliadores”. As mediações que realizei
processo e que provas e testemunhas, tão com ele, quase sempre demoravam, em
valorizadas no meio jurídico, não pos- média, menos de uma hora e meia. Joel
suem qualquer validade naquele espaço. me disse, certa vez, que o segredo da me-
Dos quinze mediadores que conheci diação, era identificar com a suposta ví-
durante o trabalho no Juizado, tive, parti- tima o que causou o conflito e levar isso
cularmente, maior contato com três me- para o AF. Em seguida, “tu vê qual é a da
diadores13. Um serventuário, Joel, que é um vítima, se ela se mostrar flexível é certo
dos poucos mediadores formado em Di- que vai ter acordo”. Ele critica os media-
reito, uma assistente social, Daniela, e uma dores que “demoram muito na media-
psicóloga, Joana, sendo todos funcionários ção”, pois, a seu ver, “não conseguimos
do Fórum da comarca de São Gonçalo. resolver todos os problemas gerados em
Joel é o mediador que mais realizou anos (...) temos que ir ao foco específico
audiências de mediação comigo durante que gerou o processo”. Joel considera que
o tempo que estive trabalhando no jui- “mediação não é terapia”.
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zado. Formado em direito, passou para Daniela tem menos de trinta anos e
o concurso de serventuário do Fórum trabalha como assistente social no Fó-
de São Gonçalo há muitos anos e estava rum de São Gonçalo há cerca de três
quase se aposentando. Ele me disse cer- anos. Formou-se em serviço social e
ta vez que pensou em tentar concurso logo em seguida foi aprovada nesse con-
público para delegado, mas que desistiu curso. Daniela, diferente de Joel, sempre
da ideia porque acabou “se acomodando escuta as partes sem interrompê-las. Ela
nesse emprego”. Joel era um dos funcio- diz que é importante “elas desabafarem
13
Os três nomes foram modificados. sobre o ocorrido” e também “é impor-

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tante [os mediadores] escutar tudo o ra”. Junto a isso, Joana considerava que
que elas [as partes] trazem para cá”. Joel, “tem assuntos que as partes têm vergo-
certa vez a criticou por não ter “um pul- nha de falar” ou “coisas que as partes não
so firme”, ele me contou que quase saiu tinham pensado antes e só começaram a
briga em uma audiência de mediação pensar depois de ouvir o relato do outro
porque “ela não consegue mostrar auto- e o relato delas mesmas”. Joana me disse
ridade” para as partes. Daniela, nos ca- também que existem “muitos motivos
sos envolvendo conflitos entre parentes, ocultos” para o conflito e o mediador
sempre demonstra se preocupar com a tem que “pescar” esses fatos.
família. Certa vez me disse que “em São Apesar dos diferentes perfis, os me-
Gonçalo as famílias são muito desestru- diadores sempre buscam encontrar o
turadas, é pai que não fala com filho e que motivou o conflito. É uma espécie
irmão que mata irmão”. Perguntei se ela de flash back, uma volta momentânea ao
sabia o porquê disso? Ela falou que a ci- passado buscando a gênese do conflito.
dade é muito pobre e “as famílias deses- É interessante que logo após de ser iden-
truturadas”. Por isso ela diz que “sempre tificada a origem desse conflito - depois
é bom ressaltar a importância da famí- de as partes ficarem muito tempo ex-
lia nas audiências”, pois considera que pondo seus argumentos e sentimentos,
isso “toca o sentimental das pessoas e lembrando-se de situações ocorridas no
ajuda uma perdoar a outra”. passado - os mediadores pedem para
Joana é psicóloga, aparenta ter menos que as partes esqueçam o que ocorreu
de quarenta anos e trabalha no Fórum e pensem “o daqui para frente”. Parece
da cidade há quase uma década. Joana, algo meio contraditório. Trazer à tona
como Daniela, sempre escuta as par- todo o histórico dos conflitos e no final
tes sem interrompê-las, entretanto, tem da audiência, como disse um mediador,
uma postura mais austera com as partes falar: “O que aconteceu até agora não dá
quando não concorda com elas. Em al- para voltar no tempo. E agora? Como
gumas audiências vi Joana criticar a pos- vai ser agora em diante?”. As partes
tura de alguma das partes, como uma vez foram escutadas, falaram, emociona-
em que não concordou com a postura de ram-se, trouxeram suas representações
um suposto autor do fato dizendo que ele sobre o conflito, elencaram os motivos
tinha “que respeitar seu tio por ser mais que causaram o processo e, após tudo
velho” e ser seu familiar. Joana se preo- isso, devem esquecer o que ocorreu e
cupava muito com os detalhes do caso, pensar no “agora em diante”.
pois, em suas palavras, “muitas dessas Quando percebi que sempre era re-
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pessoas não tem muita instrução e não alizado esse flash back nas audiências e
conseguem se comunicar de forma cla- depois, como num passe de mágica, o
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mediador pedia que a suposta vítima es- culpar a outra. Pergunto por que focar
quecesse tudo, fui perguntar aos media- para o “daqui para frente”? Ela diz que,
dores no sentido de entender essa dinâ- depois de esclarecidos os fatos, uma tem
mica. Joel me disse que “resolvemos o que perdoar a outra, pois “o que está no
que está no processo”. Perguntei como, passado já foi”. Assim como Joana, Ali-
já que o mediador não tem acesso ao ne me disse que esse flash back era bom
processo. Ele me disse que as partes “re- para “uma parte entenda a visão da ou-
latam o processo” para os mediadores e tra” e que no fim, após as explicações, é
que estes “teriam que fazer essa retros- “proposto que a vítima perdoe o outro”.
pectiva” para “identificar o problema”. Ela ainda me disse que a maioria dos
Perguntei por que os mediadores per- casos envolve familiares ou pessoas que
guntam “como vai ser agora em diante” convivem há muito tempo e por isso que
e pedem as partes para esquecer o ocor- deveria haver o perdão: “são pessoas que
rido. Joel respondeu que “a mediação se conhecem há anos ou a vida toda, não
não consegue resolver tudo”, mas é bom são desconhecidos e a função do media-
no sentido das partes falarem e tentar- dor é uni-las novamente”. Para isso, Ali-
mos resolver “o problema pontual” do ne considera que os mediadores têm que
processo. Ou seja, é possível perceber “relembrar os momentos bons que pas-
que Joel, por ser advogado e ter sido saram juntos, relembrar que são do mes-
conciliador muito tempo, possui uma mo sangue”. Por fim, ela diz que “muitas
visão instrumentalizada acerca da reso- vezes são brigas bobas, o mediador tem
lução de conflitos, se preocupando mais que estimular as pessoas a perdoarem”.
com a forma, ou seja, com o processo, Essa ideia do perdão, utilizada no
com a “questão pontual” e não com o sentido cristão, de remissão, de liberta-
conteúdo trazido pelas partes. ção, apareceu em alguns momentos du-
Conversei também com uma psicó- rante a pesquisa. A primeira vez, duran-
loga, Joana, e com uma assistente social, te o Curso de Formação de Mediadores
Aline, que me deram respostas pareci- (requisito para o trabalho de mediador),
das. Joana disse que “trazer os proble- e em outras vezes nas mediações no JE-
mas à tona” faz bem para as pessoas. Crim da cidade de São Gonçalo. Lem-
Ela chama isso de “choque de verdade”, bro-me de uma audiência, interrompida
onde as partes falam sobre os problemas diversas vezes por discussões e lágrimas,
e uma se coloca no lugar da outra. Joana envolvendo uma briga antiga entre um
diz que muitas vezes existe um proble- pai e seu filho. O filho demonstrava
ma de comunicação e quando uma parte muito rancor em relação ao pai. Uma
escuta a outra fica mais fácil entender o mediadora, Bruna, vendo que o filho
porquê de tal atitude e assim uma des- não iria perdoar o pai, disse no final da

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audiência que “o eperdão


tude do homem” que seéele
a maior vir-
não conse- (suposto autor
va atuando comodoobservador
fato), e eu, que esta-
14. Após

guia perdoar o próprio pai não irá con- as partes entrarem na sala, os dois me-
seguir perdoar mais ninguém. diadores explicaram os procedimentos
É interessante observar que a e as partes aceitaram participar. Os me-
mediadora fala em perdão, que é inter- diadores decidiram, como de praxe, co-
pretado no sentido do arrependimento meçar audiência de mediação com uma
do suposto autor do fato e do esqueci- sessão individual com a suposta vítima.
mento completo da ofensa pela suposta Sessão individual com a suposta
vítima. Diferente da desculpa, que se vítima, Ana:
relaciona com a idéia de que uma argu-
mentação do suposto autor do fato con- A suposta vítima, Ana, en-
siderada coerente pela suposta vítima trou com a ação alegando que
pode isentar o suposto autor do fato da seu filho, Luís, que possui pro-
culpa, portanto, tirar a culpa (des + cul- blemas mentais, estava sendo
pa); ou da superação, que se relaciona a ameaçado pelos vizinhos. Se-
uma questão de cura psicanalítica. gundo Ana, a motivação do
conflito se refere à inveja desses
OS CASOS DE “INTOLERÂNCIA vizinhos por ela ter comprado
RELIGIOSA” NA MEDIAÇÃO o terreno onde construiu sua
A seguir descrevo três casos que de- casa e este ter um tamanho su-
monstram como os mediadores condu- perior em relação aos demais
ziram as audiências de mediação. terrenos da rua. Por ser “uma
mulher simples” e ter compra-
1º Caso - Tipificação: Ameaça do o terreno “com muito custo”
O caso envolvia uma briga de vizi- construindo “uma casa mui-
nhos, onde uma vizinha entrou com o to simples”, seus vizinhos “não
processo contra dois vizinhos que estavam conseguem a engolir”. Como
ameaçando seu filho. É possível observar Luís é “nervoso”, ele às vezes não
que os conflitos iam além dessa ameaça, mede o que fala. Ou seja, pela
apresentado um conteúdo discursivo que inveja do seu grande terreno,
demonstra certa discriminação das partes por Ana ser “muito simples”, por
em relação às suas diferentes religiões. sua casa destoar das outras da
Ao iniciar a audiência, sala de au-
diências estava composta pelos media- 14
Antes de começar a mediar, os iniciantes devem assistir
algumas sessões de mediação como observadores. Ao final
dores Júlio e Daniela, as partes, Ana
da sessão, devem preencher um formulário que relatando
(suposta vítima), Anderson e Magali como foi a atuação dos mediadores.

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PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
rua e pelo fato de seu filho, Luís, A segunda vizinha, Maga-
ser “nervoso” e não “medir o li, comenta que “esta senhora
que fala”, muitos vizinhos da rua [Ana] veio corrida de algum
não a aceitam, considerando-a lugar” e que inclusive tentou a
“uma invasora”. [A fala dela foi ajudar certo momento de difi-
bem confusa, parecia nervosa e culdade. Mas “como ela é arisca
um tanto descontrolada]. não conseguimos conviver bem”.
(Notas de Campo) Magali disse que Ana a ameaçou
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dizendo que “minha macumba


Sessão individual com o primeiro bate palma”. Em seguida, Maga-
suposto AF, Anderson: li comenta que é “da Pastoral” e
que trabalha para a igreja: “no
O primeiro vizinho, Ander- carnaval nem vou à rua”. Magali
son, alega que o filho da suposta diz que ela que teria que entrar
vítima, Luís, ofende constante- como vítima no processo. Ma-
mente os moradores da rua com gali comenta que quando cum-
xingamentos e agressões, segun- primenta Ana dizendo “vai com
do Anderson, “ele [Luís] taca Deus”, ela responde “vai com
pedra em todo mundo que pas- o Diabo”. Certo dia disse que a
sa” e fica “sacudindo os bada- ameaçou dizendo que “jogaria
los para as meninas”. Anderson terra de cemitério nela”.
não vê motivo para o processo, (Notas de Campo)
pois, apesar do pouco diálogo
“sempre os tratou com respei- Nesse momento a mediadora, Da-
to”. Também comenta que não niela, corta a fala de Magali e pergunta:
tem interesse no terreno e que “lá onde vocês moram têm cemitério?”
possui muitos bens. Anderson Magali responde que não. Daniela per-
comenta: “Eu sou católico, se gunta a Magali: “você não disse que tem
Deus deu, ele que tem que tirar”. fé?”. Magali diz que sim. Daniela então
Anderson, por fim, dá a enten- diz que Magali “não deve ligar para isso”.
der que Ana possui problemas Segunda sessão individual com a su-
mentais como Luís, por isso “os posta vítima, Ana:
dois são agressivos assim”.
(Notas de Campo) Ao voltar para a sala, Daniela
pergunta para Ana qual sua re-
Sessão individual com a segunda ligião. Ela responde em voz bai-
suposta autora do fato, Magali: xa, como que envergonhada por

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isso: “espírita, mas de santo!” Em mos religiosos. Ana diz que “eles recla-
seguida diz que seus vizinhos maram tanto do Centro” que ela teve que
não respeitam a religião dela. Se- sair. Por outro lado, Magali ficou ofendi-
gundo Ana, “eles falaram tanto da quando Ana ameaçou-lhe jogar “terra
do meu ‘Centro’ que eu saí dele. de cemitério”. Apesar de todas essas de-
Eu canto para os meus Orixás, mandas terem sido trazidos pelas partes
mas não vou mais para o ‘Cen- como um insulto, os mediadores não
tro’”. O outro mediador presente, conseguiram enxergar - ou enxergaram
Júlio, disse a Magali: “você não e consideraram sem importância - que
deve ligar para isso, esse negócio isso pudesse ser a motivação do desen-
de religião é bobagem, temos que tendimento entre as partes. Pelo contrá-
ver como vocês podem conviver rio, eles “não deveriam ligar para isso”,
melhor”, e mudou de assunto. pois, na perspectiva do mediador, esse
(Notas de Campo) “negócio de religião é bobagem”.

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Após as conversas individuais, os 2º Caso - Tipificação: Injúria


dois mediadores chamaram as partes Esse caso, assim como o primeiro,
novamente para a sala e resolveram envolvia uma briga de vizinhos. Uma vi-
marcar outra sessão após 15 dias15. Os zinha entrou com o processo contra dois
mediadores suspeitaram que a Ana ti- vizinhos que constantemente a ofendiam.
vesse “algum problema mental” e solici- É possível observar que os conflitos iam
taram uma avaliação psicológica. além dessa injúria reclamada pela suposta
É possível observar nesse caso que vítima, tendo em vista haver outros pro-
a suposta vítima demonstra claramente cessos, segundo fala da advogada de uma
sua insatisfação em relação aos vizinhos das partes. Na fala das partes e também da
não respeitarem sua identidade religio- advogada podemos perceber a manifesta-
sa. Também é possível notar na fala de ção da intolerância religiosa em relação às
Ana certo constrangimento em relação diferentes religiões mencionadas.
a como os mediadores iriam vê-la como Ao iniciar a audiência, a sala estava
uma praticante de uma religião de ma- composta pelos mediadores Joel e Joa-
triz afro-brasileira. Por fim, também po- na, as partes Andréia (suposta vítima),
demos ver que as duas partes reclamam Jomar e Geraldo (AFs), e eu, que estava
de situações que as ofenderam em ter- atuando como observador. Após as par-
15 tes entrarem na sala, os dois mediado-
Não pude acompanhar o desfecho desse caso porque
havia me inscrito, semanas antes, para uma mediação que res explicaram os procedimentos e as
seria realizada na mesma semana em que essa foi remarcada.
partes, apesar da relutância inicial de
Nesse juizado, os mediadores e observadores participam no
máximo de uma audiência de mediação por semana. Andréia em participar, aceitaram aderir
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à dinâmica. Os mediadores decidiram, Como um dos AF, Jomar, tem um
como de praxe, começar a audiência de grave problema de audição, os media-
mediação com uma sessão individual dores resolvem fazer uma única sessão
com a suposta vítima. com os dois acusados.
Sessão individual com a suposta ví- Sessão com o primeiro e segundo
tima, Andréia: AF, Jomar e Geraldo:

A suposta vítima, Andréia, O primeiro AF, Jomar, ale-


alega que dois vizinhos, Geral- ga que a Andréia inventou tudo
do e Jomar, constantemente a por não gostar da mãe do segun-
ofendem. Como eles moram no do AF, Geraldo. Em seguida, Jo-
mesmo terreno e a janela da sala mar diz num tom de reprovação
de Andréia fica posicionada em que Andréia “frequenta centro
frente ao quintal dos vizinhos de macumba, batuque”. E que a
“dá para escutar todos os xinga- “mãe de Geraldo é evangélica,
mentos”. Segundo Andréia, os por isso não se dão”.
vizinhos “gritam ofensas a meu (Notas de Campo)
respeito o dia todo”. Falam que ela
é “uma sapatão endiabrada e que Jomar quase não fala na audiência, por
tem que ir à igreja, não ficar im- conta de seu problema auditivo. Os media-
portunando ele [nesse momento dores, Joana e Joel, com dificuldade de en-
ela se refere a Geraldo]”. Andréia tendê-lo pedem para Geraldo expor o caso.
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também reclama que os cachor-


ros dos vizinhos latem muito e da O segundo AF, Geraldo, afir-
sujeira do quintal. Além disso, ou- ma logo ao entrar “eu trabalho,
tra coisa que a incomoda é a “ba- vou para a Igreja, sou do bem”.
teção do portão”. Diz que o pro- Diz que Andréia “não gosta da
blema começou quando “tacaram gente [se referindo a ele e Jomar]
uma cabeça de nego16 nela”. O que porque minha mãe é evangélica”.
motivou esses problemas, segun- Comenta que Andréia “é da ma-
do Andréia, é que a mãe de um cumba”. Em seguida acusa An-
dos AF, Geraldo, não aceita que dréia de ter colocado “um diabo”
ela seja proprietária do terreno. na porta da minha casa [não
(Notas de Campo) entendi o que ele quis dizer com
isso, suponho que tenha feito um
16 “trabalho” em frente da sua casa].
“Cabeça de nego” é o nome popular de uma espécie de rojão feito
de pólvora prensada. Após aceso o pavio, ela explode em segundos. (Notas de Campo)
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Como estava atuando como obser- têm documento”. A mediadora


vador não podia falar com as partes. Joana pergunta por que Andréia
Entretanto, como estava sentado ao acha que os vizinhos não gostam
lado da advogada de Andréia, aprovei- dela. Andréia faz uma pausa e
tei enquanto Andréia tomava um café pensa por alguns segundos. De-
para conversar alguns instantes com pois diz que eles não a respeitam
sua advogada sobre o caso. A advogada, por ser de uma religião diferen-
Maria, me disse que “a briga entre eles te da deles. Um dos mediadores,
era antiga” e que “esse não era o primei- Joel, já impaciente sentindo que
ro processo”. Segundo Maria, o desen- não iria sair nenhum acordo,
tendimento “começou há anos quando pergunta se não havia algo que
a mãe de Geraldo fazia culto até 1h da os vizinhos pudessem fazer para
manhã em casa”. Como sua cliente era que ela “pudesse os perdoar”.
da umbanda, “Josefa [mãe de Geral- Andréia responde que não. Joel
do] não a respeitava”. Perguntei por então termina a audiência.
que Josefa não estava incluída no pro- (Notas de Campo)
cesso. Maria me respondeu que “havia
outros em que ela estava, mas esse ela Não houve acordo nessa mediação.
não entrou”. Perguntei de que se tra- Depois de terminada a audiência Joel
tavam os outros processos. Maria dis- comenta ironicamente comigo: “porra, o
se “que eram todos parecidos, injúria, cara é surdo, deve colocar a música alta
ameaça..., além de um sobre o terreno”. pra caralho”. Na visão de Joel (que é o
Antes de recomeçar a audiência, Maria único advogado que atua como mediador
disse “isso não vai acabar nunca, a vi- e que trabalhou por muito tempo como
zinha [Josefa] não aceita ela [Andréia] conciliador nesse JECrim) “o problema é
por conta da religião”. a questão da propriedade e da ação cível”
Segunda sessão individual com a su- tendo em vista esistir, conforme mencio-
posta vítima, Andréia: nado por Andréia, outra ação movida em
um Juizado Especial Cível JEC envolven-
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Andréia, logo ao entrar, do uma disputa pelo terreno.


disse que “não iria sair acordo”. Logo a princípio, podemos observar
Segundo ela, já havia vários pro- que Jomar ao citar a religião de Andréia
cessos e “eles continuam me des- a refere como algo a ser reprovado pelos
respeitando”. “Inclusive já entrei mediadores. Em sua concepção, o fato
com um processo no cível [JEC] da mãe de Geraldo e eles (ele e Geral-
para eles saírem de lá”. Segundo do) serem evangélicos poderia significar
Andréia, “o terreno deles não algo positivo na avaliação do caso pelos
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mediadores e o fato de Andréia ser uma acordo - sobre o fato ocorrido, direcio-
praticante de uma religião de matriz afro- nando o assunto para questões religiosas
-brasileira, poderia soar como um defei- com intuito de que as partes relatassem
to, em termos morais. Geraldo também como uma representa a religião da outra.
corrobora isso em sua fala quando diz Após as partes entrarem na sala, ex-
que “trabalha, vou para a Igreja, sou do plicamos os procedimentos e as partes
bem”, ele elenca esses fatores como virtu- aceitaram aderir à dinâmica. Desta for-
des morais a serem explicitadas na audi- ma, eu e Júlio começamos a audiência
ência. A própria advogada de Andréia co- de mediação com a suposta vítima.
menta comigo – e os mediadores também Sessão individual com a suposta
escutaram esse relato – que o problema vítima, Vilma:
era “por conta da religião”. Os mediadores
ignoram esse fato, além de todas as outras A suposta vítima, Vilma, ale-
falas nesse sentido, como o insulto à su- gou que a AF, Elaine, foi até a
posta vítima em ser chamada de “sapatão frente da sua casa e fez inúmeros
endiabrado” e quando diz claramente que xingamentos. Vilma relata que
os AFs “não a respeitam por ser de uma elas brigaram por conta do baru-
religião diferente da deles”. Os mediado- lho: “nossa casa é muito perto da
res também não conseguem perceber o outra, ela faz barulho lá, eu recla-
conteúdo das ofensas quando Geraldo mo e não resolve”. Vilma diz que,
acusa Andréia de “ter colocado um dia- como resposta, ela aumenta o
bo” em frente da sua casa. Joel, por fim, seu som e “ela me xinga na frente
considera que o problema se restringe “a de todos os vizinhos”. Segundo
questão da propriedade e da ação cível”. Vilma, Elaine “não tem um mí-
nimo de educação”. Em seguida,
3º Caso - Tipificação: Injúria Vilma começa a desqualificar a
O terceiro caso, assim como o dois vizinha: “ela xinga o tempo todo,
primeiros, também envolvia uma briga fuma igual uma chaminé e sopra
entre vizinhos. Essa audiência de me- a fumaça pro meu terreno [ex-
diação foi presidida por mim e por outro plica que existe um basculante
mediador, Júlio. Além de nós, estavam as da sala da vizinha fica de frente
partes: Vilma (suposta vítima) e Elaine para seu terreno]”. Vilma diz que
(AFs). Não havia advogados nem obser- sempre fica incomodada com
vadores. Como estava atuando como me- barulho e cheiro, que segundo
diador, tentei fazer muitas perguntas – o ela, é “insuportável”, “aí reclamo
que irritou meu colega mediador pelo e ela me ofende...”.

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fato dele sentir que não iria sair nenhum (Notas de Campo)
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Sessão individual com a suposta au- a Elaine como ela achava que
tora do fato, Elaine aquele problema poderia ser so-
lucionado. Ela respondeu: “acho
Elaine alega que teve uma que não tem solução”. Júlio em
discussão com a Vilma na frente seguida comenta que “vocês não
da casa da vizinha e ela foi até a precisam gostar uma da outra,
delegacia fazer o registro. Elai- da religião da outra, que aqui
ne comenta que não concorda temos que resolver o que moti-
com o registro, e diz que a vizi- vou o problema, os insultos e o
nha que não a respeita e a agride barulho”. Elaine responde que a
sempre. Pergunto o porquê das vizinha também a chamou de
agressões. Elaine responde que a “preta velha macumbeira e dis-
vizinha nunca gostou dela por- se que não tinha moral de ir até
que não aceita sua religião. Per- sua casa reclamar do barulho”.
gunto qual a religião das duas. Júlio pergunta como aconteceu
Elaine responde que a vizinha “é a confusão. Andréia relata que
daUniversal[se referindo a Igre- estava em casa fazendo o almo-
ja Universal do Reino de Deus] ço e colocou uma música para se
e eu sou espírita”. Perguntei se distrair, e ela escutou a vizinha
ela era espírita kardecista. Ela pelo basculante da sala gritando
responde, num tom meio en- “música do demônio e outras
vergonhado e ao mesmo tempo coisas. Aí ela colocou uma mú-
reativo: “sou de santo”. O outro sica da Igreja muito alta, parecia
mediador, Júlio, pergunta como um trio elétrico. Fui lá reclamar,
era a relação dela com a vizinha aí começou a confusão”. Júlio
antes da briga, “se elas se fala- repete novamente a minha per-
vam”. Elaine diz que quando foi gunta sobre como Elaine consi-
morar lá a vizinha já morava, e dera que essa situação poderia
que ela sempre falou com os ou- ser resolvida. Ela respondeu que
tros vizinhos. “O problema é que sabia que as duas tinham se ex-
ela é evangélica e eles [se referin- cedido quando discutiram na
do aos evangélicos] só acham a frente do portão da vizinha, mas
religião deles boa”. Em seguida, que não queria ser ofendida pela
respondeu que a vizinha nunca vizinha novamente “só porque
falou com ela direito, “passava ela acha que a Igreja dela é a úni-
na rua e ela [se referindo a Vil- ca salvação do mundo”.
ma] virava a cara”. Pergunto (Notas de Campo)
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Sessão audiência individual com a vam exaltadas no momento da
suposta vítima, Vilma confusão e se não havia alguma
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forma para que elas chegassem


Vilma entrou e Júlio relatou a algum entendimento. Ela diz
que a Elaine estava disposta a que não. “A palavra dela não
colaborar e que ela reconheceu vale nada, pode me pedir des-
que as duas se exaltaram na culpa hoje e amanhã tentar al-
frente do seu portão. Vilma res- guma coisa ruim comigo”. O ou-
pondeu “eu não me exaltei nada, tro mediador, sentindo que não
ela que veio igual o cão na mi- iria sair nenhum entendimento
nha porta”. Em seguida, pergun- dali, tentou finalizar a conversa,
to a Vilma com ela via a vizinha mas insisto e pergunto que tipo
antes da confusão. Vilma res- de coisa ruim? Vilma responde
ponde que nunca teve contato “fazer um trabalho”. Peço para
com ela, “ela não é uma pessoa ela ser mais clara. Ela diz que
boa, ela é um bicho ruim, Deus “esse pessoal faz trabalhos para
sabe disso”. Pergunto por que ela prejudicar os outros, mas meu
diz isso. Ela responde: “Ela anda pai é mais forte”. Júlio, já inquie-
com esse pessoal da magia ne- to com minhas perguntas, pede
gra. Isso não é de Deus”. O ou- para Vilma se retirar da sala.
tro mediador interrompe e diz (Notas de Campo)
“não vamos entrar no mérito da
religião, estamos conversamos Não houve acordo nessa mediação.
sobre o desentendimento de vo- Ao terminar a sessão, o mediador
cês [se referindo à confusão em disse que não iria adiantar eu tentar
frente ao portão de sua casa]”. prolongar a sessão porque sabia que não
Tentando encerrar o assunto se chegaria a um acordo, em suas pala-
sobre religião, Júlio pergunta a vras: “dava pra ver que não ia ter acor-
Vilma como ela acha que aqui- do”. Perguntei por que ele achava isso?
lo poderia ser resolvido. Vilma Júlio respondeu que a suposta vítima se
responde: “só se eu ou ela nos ofendeu quando a outra parte a ofendeu
mudarmos dali (...) não dá pra em frente aos seus vizinhos. E comple-
conviver perto de uma pessoa tou “essas pessoas religiosas, como ela
dessas, que vai em frente da [se referindo a Vilma], não conseguem
minha casa me xingar, que cul- perdoar quando são ofendidas assim.
tua coisa ruim”. Comento que Acham que a moral que vale tudo (...)
Elaine admitiu que vocês esta- não consegue perdoar a ofensa”. Fiz uma
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cara de que não entendi o que estava fa- de uma agressão objetiva a direitos que
lando e Júlio completou: “ela [Vilma] foi não pode ser adequadamente traduzida
ofendida na frente das vizinhas, não vai em evidências materiais”; 2) “sempre
sossegar até que a outra seja penaliza- implica uma desvalorização ou negação
da na justiça”. Perguntei a Júlio se Vil- da identidade do outro” (2008).
ma, como uma pessoa cristã, não tinha Para formular o conceito de insul-
obrigação de perdoar Elaine – que se to moral, Cardoso de Oliveira (2008)
mostrou mais disposta a encerrar o pro- utiliza as noções de consideração e
cesso. Júlio respondeu “Cristo está longe desconsideração a partir das noções de
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dessas duas ai”. E encerrou o assunto. reconhecimento (anerkennung) e des-


respeito (Mißachtung), retomadas em
O GRAU DOS INSULTOS autores contemporâneos como Taylor
Observando três diferentes contex- (1994) e Honneth (1996); pelo debate
tos etnográficos – Brasil, Estados Uni- francês sobre consideração (considéra-
dos e Canadá17 -, o antropólogo Luis tion), desde Rousseau até, mais recen-
Roberto Cardoso de Oliveira tem se temente, Haroche e Vatin (1998), onde
preocupado em analisar a “relação en- a consideração é encarada como um
tre as idéias de respeito a direitos ple- direito humano; além dos conceitos
namente universalizáveis, tendo como de dádiva ou reciprocidade de Marcel
referência o indivíduo genérico, e de Mauss (1974), também revisitados por
consideração ao cidadão, portador de Caillé (1998) e Godbout (1992, 1998).
uma identidade singular” (Cardoso de O insulto - “como uma agressão à
Oliveira: 2008), a partir do olhar atento dignidade da vítima” – possui difícil
às dimensões legal e moral dos direitos. tradução em termos materiais, tenden-
Há alguns anos, o autor tem discu- do a ser invisibilizado como uma agres-
tido como a linguagem do direito não são digna de retratação. Nas sociedades
consegue captar os atos ou eventos de onde vigora o direito positivo, as for-
desrespeito à cidadania (Cardoso de mas de administração desses conflitos
Oliveira: 2008). A elaboração do concei- frequentemente não conseguem chegar
to de insulto moral favorece a análise so- a algum tipo de resolução considerada
bre o conteúdo desses atos, tendo duas satisfatória pelos envolvidos. Cardoso
características essenciais: 1) “trata-se de Oliveira elenca três fatores para que
isso aconteça. O primeiro fator se refere
17
Em Massachusetts seu foco foi os processos de resolução
de disputas na esfera dos Juizados de Pequenas Causas. Em
à grande “impermeabilidade do Judici-
Quebec, discutiu sobre o debate público a respeito da sobe- ário a demandas por reparação por in-
rania daquele país. No Brasil, se ateve nas discussões sobre
sulto”; também pelo fato da “dificulda-
direitos a partir da elaboração da Constituição de 1988 e
suas reformas durante o período de reabertura política. de de formular um discurso adequado
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PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
para fundamentar direitos universalizá- dedor. 2) o desentendimento começa
veis”; ou também “devido aos constran- quando uma pessoa processou uma
gimentos para a universalização do res- companhia de transportes por ter da-
peito a direitos básicos de cidadania no nificado seu refrigerador. No primeiro
Brasil”, em virtude da dificuldade das caso, ele considera que houve um acor-
pessoas incorporarem a idéia de igual- do equânime tendo em vista o media-
dade (Cardoso de Oliveira: 2008). dor, numa postura “pouco usual”, re-
No Brasil, quanto nos outros dois solveu explorar o sentido das alegações
casos estudados por Cardoso de Olivei- de agressão, ou seja, o que as partes
ra (2008), o reconhecimento de deter- consideraram como sendo um insul-
minadas demandas trazidas pelas par- to moral. No segundo caso, houve um
tes não pode ser traduzido em direitos acordo barganhado pelo do mediador
pela esfera jurídica, tendo em vista não não considerar relevante o fato da su-
ser possível “fundamentar legalmen- posta vítima reclamar uma reparação
te a atribuição de um valor singular a em relação à postura da empresa em
uma identidade específica, e exigir o ignorar suas diversas cartas e telefone-

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seu reconhecimento social” (2008). mas no intuito de resolver a questão.


Nos casos encaminhados aos Juizados Segundo a suposta vítima, essa descon-
Especiais no Brasil, aspectos significati- sideração merecia uma reparação.
vos dos conflitos – os morais – são mui- No Brasil, apesar das dinâmicas de
tas vezes excluídos da pauta. Ou seja, mediação ser diferente dos EUA, nos
a conciliação e transação penal não casos de intolerância religiosa relatados,
podem ser interpretadas como etapas assim como o segundo caso relatado
alternativas à audiência judicial já que acima por Cardoso de Oliveira, os me-
se seguem a lógica jurídica tradicional diadores não consideraram relevantes
das disputas a partir de um caráter as demandas trazidas pelas partes. No
impositivo – e não guiado a partir das caso da mediação daqui, não conside-
demandas trazidas pelas partes (2008). raram relevantes as ofensas em relação
Em um dos trabalhos sobre os Jui- às diferentes identidades religiosas.
zados de Pequenas Causas dos EUA, Outro fator a ser destacado é a pos-
Cardoso de Oliveira (1996) analisa o sível assimetria entre as partes, como
trabalho dos mediadores a partir de destaca Nader (1994). A autora, a par-
dois casos observados empiricamente: tir de três ambientes distintos – os
1) o desentendimento entre as partes zapotecas e outros povos colonizados;
é gerado pela venda de um congelador a Alternative Dispute Resolução como
usado com a data de fabricação dife- parte de uma política de pacificação
rente do que foi anunciado pelo ven- nos Estados Unidos; e disputas inter-

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RANGEL,

nacionais relacionadas a rios -, Laura citar seus argumentos e sentimentos


Nader (1994) “analisa a utilização do sobre o fato ocorrido. Apesar do foco
modelo legal de harmonia como uma da mediação se voltar para a busca da
técnica de pacificação”, onde nessas gênese do desentendimento entre as
disputas o desfecho acaba sendo resul- partes, em alguns casos, como os con-
tado de imposições ou difusões (nos flitos de natureza religiosa, os media-
casos dos povos colonizados). Ou seja, dores não conseguem entender que
apesar da antropóloga tratar de insti- aquilo representa um “insulto moral”
tuições, contextos e lugares diferentes (Cardoso de Oliveira: 2012). Ou seja,
do que trato aqui, ela nos traz uma im- os mediadores se voltam, nas palavras
portante questão a ser pensada tam- de uma conciliadora, para a “raiz do
bém nos Juizados Especiais no Brasil: desentendimento” para, em seguida,
a assimetria entre as partes. Tanto na desqualificar as motivações do confli-
conciliação quanto na mediação, o de- to. No primeiro caso relatado, o me-
sequilíbrio de poder entre as partes é diador ignora o ressentimento de uma
um problema a ser enfrentado nos JE- das partes em relação ofensa de cunho
Crims. Na conciliação, esse desequilí- religioso, pois, pela sua ótica, ela “não
brio pode ser observado, como exem- deve ligar para isso”, já que “esse negó-
plo, na ausência do defensor público cio de religião é bobagem”. No segun-
no horário das audiências e, muitas do, onde uma parte diz abertamente
vezes, no precário atendimento reali- ser intolerante à religião da outra, os
zado pelos estagiários que faz com que mediadores ignoram esse fato durante
a balança (símbolo do Direito) não a audiência e ainda consideram que “o

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seja
ção, tão
nosbem
casosequilibrada.
envolvendoNa media-
intolerân- problema é a questão
da ação cível” - tendoda
empropriedade
vista haver,e
cia religiosa, é possível afirmar que os além da ação movida no JECrim por
“valores cristãos” - como em um caso injúria, outra ação movida pela supos-
em que vi no durante o trabalho de ta vítima em um Juizado Especial Cível
campo onde uma professora do Cur- com intuito de que os vizinhos fossem
so de Formação de Mediadores afirma despejados – e não a ofensa moral
que “os valores cristãos são bons no elencada pela suposta vítima em torno
sentido moral” – podem interferir no de sua identidade religiosa.
resultado nas audiências, ainda mais Podemos perceber que apesar da
quando uma das partes não pertence a mediação permitir, diferentemente da
nenhuma religião cristã. conciliação, que as partes falem sobre o
Enfim, diferente da conciliação, ocorrido, no qual, segundo um media-
na mediação as partes podem expli- dor, proporciona um “efeito terapêuti-
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PELOS MEDIADORES EM UM JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO – RJ
co”, em muitos casos os mediadores não Brasileira de Ciências Sociais - VOL. 23
conseguem captar o conteúdo moral da No 136. 67, 2008. http://www.scielo.br/
ofensa cometida, seja por não perceber pdf/rbcsoc/v23n67/10.pdf
que aquilo - como nos casos de intole- ____________________. Direito
rância religiosa – representa um insulto Legal e Insulto Moral. Rio de Janeiro:
à vítima, seja por perceber a ofensa, mas Relume Dumará, 2002.
considerá-la, a partir de sua perspecti- ____________________. & OLI-
va, algo sem grande relevância. VEIRA, Roberto Cardoso de. Ensaios
Portanto, é possível afirmar que Antropológicos Sobre Moral e Ética. Rio
existem diferentes moralidades em de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
jogo, ou melhor, que a noção de direi- EILBAUM, Lucia. “Só por formali-
to é uma categoria relacional (Cardoso dade”: a interação entre os saberes an-
de Oliveira, 1996) e o problema da ju- tropológico, judicial e jurídico em um
dicialização de determinados conflitos “juicio penal”. Paper apresentado no XI
é que o enquadramento jurídico dos CONLAB, Salvador Bahia, 2011.
fatos levados ao Judiciário é restrito e GARAPON, Antoine. Julgar nos Es-
acaba, muitas vezes, não dando respos- tados Unidos e na França. Cultura Jurí-
tas pertinentes às questões e comple- dica Francesa e Common Law em uma
xidades sociais envolvidas no conflito perspectiva comparada. Rio de Janeiro,
efetivo, real, vivido pelos cidadãos. Lumen Juris, 2008.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local.
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Page 22 Victor Cesar Torres de Mello


RANGEL,

_______________. Ensaios de An-


tropologia e de Direito: Acesso à Justiça e
Processos Institucionais de Administração
de Conflitos e Produção da Verdade Jurí-
dica em uma Perspectiva Comparada. 1ª.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
_______________.Roberto e LU-
PETI, Barbara. O desafio de realizar pes-
quisa empírica no Direito: uma contri-
buição antropológica, paper apresentado
no 7º encontro da ABCP - Associação
Brasileira de Ciência Política, 04 a 07 de
agosto de 2010, Recife/Pernambuco.
NADER, Laura. A civilização e seus ne-
gociadores: a harmonia como técnica de pa-
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pologia, Niterói: ABA/PPGACP-UFF, 1994.
RANGEL, Victor Cesar Torres de Mello
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and “The politics of recognition”, New Jersey,
Princeton University Press, pp. 25-73, 1994.

VICTOR CESAR T. DE M. RANGEL


Doutorando em Antropologia pela
Federal Fluminense. Pesquisador do
Núcleo Fluminense de Estudos e pes-
quisas - NUFEP/UFF e Instituto de Es-
tudos Comparados em Administração
Institucional de Conflitos - INCT/InE-
AC. Bolsista de doutorado financiado
pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

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