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A literariedade
Jonathan Culler.
Que é literatura? Esta pergunta, que parece impor-se como a pergunta base dos
estudos literários e como o objeto primordial da teoria literária, pode ser compreendida de
diferentes maneiras: em primeiro lugar, como uma pergunta sobre a natureza geral da
literatura. Que tipo de objeto ou de atividade é a literatura? Para que serve? Por que estudá-
la? Qual o seu lugar na diversidade das atividades humanas? Compreendida desta maneira,
se trataria de uma pergunta não de definição, mas de caracterização, e isto porque
interessaria a todos os que se ocupam da literatura e queriam saber porque se dedicar a esta
atividade e não a outra.
Mas o que é literatura? Também pode significar o que distingue literatura das outras
coisas: o que é que a distingue dos outros textos, das outras representações? O que a
distingue dos outros produtos do ser humano ou das outras práticas? Perguntar-se qual é ou
quais são a ou as qualidades distintivas da literatura é colocar a pergunta da literariedade:
qual é ou quais são os critérios que fazem de algo literatura?
Apesar do caráter aparentemente central desta pergunta acerca dos estudos
literários, temos de confessar que não se chegou a uma definição central de literariedade.
Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, tem razão quando declara que
“não dispomos de verdadeiros critérios para distinguir um estrutura verbal literária de uma
que não é” (1966,13).
Há várias razões para isso. Se refletirmos um momento, nos damos conta de que há
dificuldades de princípio assim como dificuldades empíricas. Existe uma imensa variedade
de obras literárias e um romance determinado, por exemplo, Em busca do tempo perdido ou
Jane Eyre, pode parecer-se mais com uma autobiografia do que com um soneto, ainda que
uma poesia lírica de Burns, de Heine ou de Verlaine se pareça mais com uma canção do
que uma obra de teatro de Sófocles. Assim, um primeiro problema consistiria em saber se
existem propriedades interessantes que estão presentes em todas as obras que
denominamos literárias e que as distinguem dos objetos não literários aos quais se parecem.
Mas esta pergunta se torna mais difícil em uma perspectiva histórica, por puco que seja.
Segundo um célebre perito em poesia, “a fronteira que separa a obra poética da que não é
poética é mais instável que a fronteira dos territórios administrativos da China”
(JAKOBSON, 1973, 114). Podemos pensar em alguns poemas modernos que em outras
épocas não seriam considerado como literatura. Os talk poems do poeta norte-americano
David Antin, por exemplo, manifestam um discurso que não pode ser mais comum, sem
rimas nem ritmos, sem figuras especiais, e que possui todas as vacilações e repetições da
fala cotidiana. Quando do auge do nouveau roman francês, muitos críticos e leitores
achavam que essas construções sem personagens a sem as intrigas tradicionais tampouco
podiam ser consideradas literatura. Esses textos não poderiam levar o nome de “romance”
no século XIX.
Nessas condições, poderíamos chegar à conclusão de que a literatura não é nada
coisa além do que aquilo que uma determinada sociedade trata como literatura: quer dizer,
um conjunto de textos que os árbitros da cultura – professores, escritores, críticos,
acadêmicos – reconhecem que pertence à literatura. Esta conclusão não é muito satisfatória,
mas nos servimos de outras categorias da mesma natureza mediante as quais os critérios de
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Finnegans Wake, ou, na tradução brasileira, Finnicius Revém, é o último romance de James Joyce, publicado
em 1939, e um dos grandes marcos da literatura experimental por ser escrito em uma linguagem composta
pela fusão de outras palavras, em inglês e outras línguas, buscando uma multiplicidade de significados.
Referências
Campos, Augusto de; Campos, Haroldo de. (2001) Panorama do Finnegans Wake. São Paulo: Editora
Perspectiva. ISBN 85-273-0207-5.
Joyce, James. (1999) Finnegans Wake/Finnicius Revém. Tradução de Donaldo Schüler, 1o volume. Porto
Alegre: Ateliê Editorial. ISBN 85-85851-97-X. (N.T)
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Nouveau roman: Forma experimentalista, característica da produção literária de romancistas franceses da
década de 1950, entre os quais se encontram Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet. Os ensaios deste último
escritor, reunidos em Pour um Nouveau Roman (1963), contêm muitos dos fundamentos teóricos desta
tendência. De modos vários, os escritores do nouveau roman procuraram eliminar as personagens, o enredo e
a subjectividade inerente ao trabalho do autor, tentando, na sua escrita, apresentar o mundo como uma «coisa
em si mesma», na sua solidez e pureza de conceito. As obras Le Voyeur (1955), de Robbe-Grillet, e Le
Planetarium (1959), de Sarraute, tornaram-se exemplos bem aceites pela crítica desta tendência literária.
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Outros escritores, como Michel Butor, Claude Ollier e Marguerite Duras foram também associados ao
nouveau roman, também designado por «anti-romance», pela subversão dos processos tradicionais da
narrativa. Em Portugal, aproximaram-se deste tipo de romance escritores como Nuno Bragança e Artur
Portela Filho. (N.T)
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eufônicos: que produzem sons harmoniosos (N.T).
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que me sirvo são menos importantes, como também são as relações com outros convites
emitidos por mim e por outras pessoas antes desta. Em contrapartida, em um poema como
“Convidando um amigo para jantar”, do poeta inglês Ben Johnson, o que se produz é todo o
contrário: aqui, o que mais importa é a estrutura das imagens e dos ritmos no texto; o
contexto no qual se insere a mensagem é o contexto de um gênero literário, um certo
lirismo do cotidiano, do que se desprende, no tom e no movimento do poema, uma visão
dos valores que sustentam o modo de vida que se evoca. Shklovski fala da literatura como
do “caminho no qual o pé sente a pedra, o caminho que regressa sobre si mesmo” (1919,
115). A obra na está dirigida a um fim, mas isto não quer dizer que careça de
determinações. Na realidade, a obra se refere a seus próprios meios, ou seja, a evidência da
linguagem em um texto literário é uma maneira de desprendê-lo de outros contextos (do
momento e as circunstâncias práticas do enunciado), de fazer do ato de linguagem que o
texto pretendo cumprir (como o convite) um procedimento literário e situá-lo em um
contexto de textos e de procedimentos literários.
Voltamos agora, portanto, às afirmações de Jakobson para quem os estudos
literários farão do procedimento seu personagem único: qualquer discussão que se centra na
literariedade não considerará o procedimento como um meio de expressar uma mensagem
qualquer, mas como o protagonista, o sujeito do discurso literário.
Em um determinado nível, o texto nos conta uma aventura puramente literária
(formal). Então temos de nos perguntar: o que faz aqui este encadeamento? Em que se
converte o soneto? Em que consistem as combinações de imagens e quais são os seus
efeitos? Em vez de tratar um elemento formal – a forma do soneto, por exemplo – como um
meio para expressar a visão de um amante, pode-se contemplar este conteúdo como o meio
de explorar ou de fazer avançar ou desviar o soneto. Este aspecto da literariedade, que
tende a isolar o texto dos contextos práticos e históricos da sua produção, redefine, por
oposição, o contexto como o contexto específico da literatura. Neste contexto, escrever é
inscrever-se na tradição literária, e tem-se que explicar as obras de acordo com esta única
perspectiva.
Toda obra literária se cria em referência e em oposição a um modelo específico que
fornecem outras obras da tradição. As obras estão determinadas por estruturas
convencionais – por exemplo, os procedimentos para estabelecer a intriga. Shkolovski
demonstra que “a convencionalidade mora no miolo de toda obra, posto que as situações
estão livres de suas relações cotidianas e se determinam segundo as leis de uma trama
artística dada!” (1911, 118). Como indicamos, a forma da obra está determinada pelas
formas literárias preexistentes.
À medida que a literatura, em seus vínculos com outros discursos literários, é um
comentário ou uma reflexão sobre a literatura, isto nos ajuda a ver o papel das estruturas
lingüísticas e retóricas que tratamos anteriormente em nossa análise da literariedade como
evidência da linguagem. Constatamos que o foregrounding [primeiro plano] apenas pode
chegar a ser um critério suficiente do literário, visto que há repetições e aberrações também
em outros textos. É, melhor dizendo, o modo de integração destas estruturas – é dizer, o
estabelecimento de uma interdependência funcional e unificadora de acordo com as normas
da tradição do contexto literário – o que caracteriza a literatura. São os três níveis ou os
tipos de integração que devemos contemplar.
Em um primeiro nível está a integração das estruturas ou das relações que, em
outros discursos não têm função alguma. Quando marco um encontro, na forma de minha
mensagem se pode ignorar uma assonância, uma aliteração ou um paralelismo.
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[Os grandes soluços/ Dos violinos/ Do outono/ Ferem meu coração/ com uma
languidez/ Monótona.]
Não é que sempre se encontra a unidade que se busca, mas a suposição da unidade
faz que apareçam tensões e até contradições entre os elementos ou entre as estruturas em
diferentes níveis. “A linguagem da poesia é a linguagem do paradoxo”, declara um ilustre
representante do New Criticism4 norte-americano (Brooks, 1947,3): a literatura, mediante o
jogo das conotações e a apresentação irônica dos discursos (os discursos do cotidiano e os
discursos da literatura anterior), faz que se sinta até que ponto toda a redução a uma posição
ou a uma visão monológica baseia-se em simplificações. A linguagem da poesia procura os
meios para o questionamento de proposições simplistas. Quando, por exemplo, se trata de
definir a relação entre as dimensões constatativas e performativas do texto – a relação entre
o que ele diz e o que ele faz -, é freqüente tropeçar em dificuldades. Um exemplo célebre: o
verso do poeta norte-americano Archibald Macleish, freqüentemente citado pelo New
Criticism, “A poem should not mean, but be” [“Um poema não deveria significar mas ser”],
contrapõe ser e significar e, através disso, significa: faz que se veja que a oposição entre ser
e significação é mais complicada do que se supunha anteriormente.
Mas é a presunção de unidade – este segundo nível de integração – que faz que
surjam as dissonâncias e se produzam muitos efeitos literários deste gênero.
Em um terceiro nível de integração, a obra significa muito em relação ao contexto
literário: em sua relação com os procedimentos e convenções, com os gêneros literários,
com os códigos e modelos pelos quais a literatura permite aos leitores interpretar o mundo.
Neste nível, o texto literário oferece sempre um comentário sobre uma leitura implícita
(Iser, 1972) ou pode se interpretado como uma alegoria da leitura, uma reflexão sobre as
dificuldades da interpretação (De Man, 1979). A possibilidade de ler um texto literário
como uma reflexão sobre sua própria natureza e sobre a natureza da literatura, faz da
literatura um discurso auto-reflexivo, um discurso que, implicitamente (por causa de sua
situação de comunicação adiada), conta algo interessante sobre sua própria atividade
significativa. Isto não quer dizer que se explique o texto inteiramente ou se domine
plenamente: pelo contrário, as investigações recentes indicam que há sempre aspectos do
funcionamento do texto que escapam à reflexão ou à definição. Neste sentido, o tema
profundo da literatura sempre é a impossibilidade da literatura, essa perseguição do
absoluto literário é de certa maneira o fracasso (Blanchot, 1955). Mas para voltar às formas
mais familiares que traduzem a prática mediante a qual os autores buscam renovar e fazer
progredir a literatura, esta é uma crítica da literatura – da noção de literatura que ele herda-,
e nisto, a literariedade é um tipo de reflexividade.
O atual debate sobre literariedade oscila entre uma definição das propriedades dos
textos (da organização do texto) e uma definição das convenções e pressupostos com os
quais se aborda o texto literário. Estas duas perspectivas não são de modo algum idênticas,
nem tampouco se pode supor que estejam em contradição. Na realidade, a natureza da
linguagem e dos fenômenos culturais exige essa alternância de perspectivas: só em relação
a um conjunto de convenções, em um ou outro nível, em um o outro nível, é como uma
série de marcas ou uma seqüência sonora estão dotadas de propriedades. Não obstante, essa
alternância de perspectivas cria problemas para uma delimitação da literatura. Por uma
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O New Criticism é um movimento inicial da teoria literária surgido nos anos 20 nos Estados Unidos. Ele
propõe a separação do texto e do autor a fim de que o texto que seja objeto em si mesmo. Rompe com
biografismo da crítica de então, mas rejeita também a análise literária a partir de contextos sociais ou
culturais. Por isso dizemos que se enquadra na Corrente Textualista dos estudos literários.
Um dos conceitos mais conhecidos destes teóricos é o Close Reading, leitura analítica e minuciosa do texto
preconizada por Elliot. Colhida em: http://pt.wikipedia.org/wiki/New_Criticism (N.T) .
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parte, está claro que a noção de literariedade é uma função das relações diferenciais do
discurso literário e de outros discursos, mais que uma qualidade intrínseca. Se se toma um
fragmento de prosa periodística e se dispõe em uma página em forma de poema, vemos
surgir algumas qualidades que estão no texto, mas que são uma função das novas
convenções que se aplicam a ele:
Mas, por outro lado, cada vez que se identifica uma certa literariedade, se constata
que estes tipos de organizações encontram-se em outros discursos, até quando não se trata
esse discurso como se fosse literatura. Jakobson mesmo cita como exemplo da função
poética da linguagem um lema norte-americano da campanha presidencial de Eisenhower
em 1954, “I Like Ike” [Eu gosto do Ike]: há aqui uma repetição paronomástica muito
acentuada na qual o sujeito do gosto e o objeto do gosto estão inteiramente envoltos pelo
ato de gostar (Like contém I e Ike), como se fosse inevitável, inscrito até na língua, que “I
like Ike” (1960,357). Temos que observar que em toda uma série de investigações teóricas
atuais – em campos tão diferentes como a antropologia,a psicanálise, a filosofia e a história
- têm encontrado uma certa literariedade em fenômenos não literários. Os estudos de
Sigmund Freud e de Jacques Lacan demonstraram, por exemplo, o papel constitutivo no
funcionamento da psique de uma lógica da significação mais diretamente observável na
poesia. Jacques Derrida mostra a centralidade inquestionável da metáfora no discurso
filosófico. Claude-Levi Strauss descreveu uma lógica do concreto que atua nos mitos e no
totemismo, lógica que se parece com o jogo de oposições (macho/fêmea, terrestre/celeste,
moreno/loiro, sol/lua) da temática literária. É como se cada procedimento e cada espécie de
estrutura que poderiam parecer essencialmente literários, encontram-se também em outros
discursos. Esta constatação seria desesperante se o objetivo das investigações sobre a
natureza da literatura consistisse unicamente em distinguir a literatura do que não é, mas à
medida em que a finalidade consiste em identificar o que é importante na literatura, a busca
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da literariedade nos mostra até que ponto a literariedade pode iluminar outros fenômenos
culturais e revelar mecanismos semióticos fundamentais.
A outra concepção da literariedade, representada por velhos lemas como a fórmula
de Sir Philip Sydney segundo a qual “o poeta não afirma nada e portanto não mente”, põem
a tônica em uma relação particular do discurso com a realidade: estas proposições referem-
se a pessoas e acontecimentos imaginários mais que históricos. Este caminho não consegue
captar o critério distintivo da literatura haja vista que no discurso há outras instâncias da
ficção. Enunciados que pertencem à lingüística e à filosofia põem em cena personagens
fictícios – Le roi actuel de la France est chauve, John is eager to please [O rei atual da
França é calvo. João está ansioso por agradar] – como fazem toda parábola e todo cenário
hipotético. Mas estas observações não minimizam a importância dos esforços para definir
as relações da literatura com a realidade. A ficcionalidade não se limita a personagens,
situações e acontecimentos imaginários. Não é [dizer] unicamente que Anna Karenina, don
Quixote e Hans Castorp não existam; um “eu” de um poema não designa tampouco um
indivíduo empírico em um dado momento, mas um sujeito criado no e pelo poema: “J’ai
plus de souvenirs que si j’avais mille ans”5, o primeiro verso de “Spleen” de Baudelaire,
não é uma proposição sobre o Charles Baudelaire que escreveu Flores de Mal. Neste
sentido, a obra literária é um acontecimento semântico: projeta um mundo imaginário, que
abarca os narradores e os leitores implícitos. Mas esta concepção de literatura como ficção
não é de todo exata, posto que as obras literárias também põem em cena realidades
históricas e psicológicas – Napoleão, a batalha de Waterloo, as condições de trabalho dos
trabalhadores das minas, o sentimento de ciúmes de um menino mimado etc. Podemos
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SPLEEN
então dizer que a obra se refere mais a um mundo possível entre vários mundos possíveis
do que a um mundo imaginário. Para expor melhor as implicações desta ficcionalidade,
alguns teóricos, em vez de dizerem que a obra se refere a um mundo de ficção, querem
dizer que o ato de referência é em si fictício. Como ato de linguagem, a obra literária é
imitação de um ato de linguagem “sério”, na qual o locutor é responsável pelas proposições
que emite, pelas promessas que fez, etc. Por esta perspectiva, a ficção se entende em
relação com o “discurso natural” ou não fictício o qual imita6. “A ficcionalidade essencial
das obras literárias não se há de descobrir na ausência de realidade dos personagens,
objetos e acontecimentos aos quais se referem, mas na realidade do próprio ato de
referência” (Smith, 1978, 11). Assim, em um romance, é o ato de narrar os acontecimentos,
de descrever os personagens e de referir-se aos lugares é que é fictício. O romance
representa o ato de alguém que descreve, que conta feitos etc. A mimese da literatura não
consistiria tanto na imitação dos personagens e dos acontecimentos como na imitação dos
discursos “naturais”, dos atos de linguagem “sérios”. Os romances seriam as instâncias
fictícias de diversos tipos de livros - crônicas, diários, memórias, biografias, histórias e até
coleções de cartas. O novelista “faz crer que escreve uma biografia, mas o que faz é
fabricar uma” (Smith, 1978, 30). O teórico espanhol Martinez-Bonati vai mais longe que
os signos chamados lingüísticos de uma obra na realidade são imitações fictícias, e não
verdadeiramente lingüísticas, dos signos propriamente lingüísticos (1981,81).
Há romances que efetivamente “nos levam a crer” que são biografias ou coleções de
cartas, ou que põem em cena um personagem que simula contar sua vida, ma na maior parte
dos casos o texto literários, a ficcionalidade não é de modo algum a qualidade essencial que
distingue um romance de uma biografia. Smith entende que ao escrever A Morte de Ivan
Ilich Tolstoi “faz crer que escreve uma biografia, mas na verdade fabrica uma”, embora ao
contrário Tolstoi não simula nada. Longe de fabricar um escrito que pareça uma biografia,
Tolstoi vale-se de procedimentos que seriam ilegítimos em uma biografia e que são
próprios do romance. Ilich está escrito em terceira pessoa e, naturalmente vemos o mundo
segundo o seu ponto de vista, e seguimos o ponto de vista do protagonista no momento de
sua morte. Käte Hamburger (1968) distingue a literatura dos demais discursos pela
capacidade que ela tem de apresentar um mundo, incluída a experiência anterior, a partir do
ponto de vista de um personagem que está representando em terceira pessoa. O indício
desta literariedade é um tipo de frase propriamente literária, “Morgen war Weihnachten”
[Amanhã era natal], na qual os elementos dêiticos (manhã, ontem, aqui, lá, você) estão
definidos em relação a uma subjetividade (do personagem) que está situado no passado ma
no presente da enunciação. Martinez-Bonati refere-se também a modos de discurso da
ficção que não são a imitação de um ato cotidiano supostamente “real” (1981, 104). Assim,
há boas razões para supor que a literatura não é uma imitação fictícia dos atos de linguagem
não fictícios e “sérios”, mas um ato de linguagem específico como, por exemplo, contar
uma história.
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Observamos uma situação peculiar na qual os teóricos da literatura ou da literariedade como ficção definem
a literatura como imitação de um discurso não fictício, e os analistas dos discursos não fictícios (o relato da
Historia, por exemplo) mostram que temos de compreendê-los em relação ao discurso literário. A
inteligibilidade da história não dependerá da uma causalidade científica, mas da maneira que os elementos do
relato se sucedem e se vinculam para formar um todo segundo os modelos do gênero literário. Este é outro
exemplo de um campo em que os discursos literários funcionam segundo estruturas e procedimentos que se
manifestam mais explicitamente na literatura.
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Por este caminho chegamos a uma conclusão que já foi abordada no princípio de
outra forma: que o discurso literário para possuir condições de enunciação diferentes de
outros atos lingüísticos, se relaciona com condições específicas. Mas quais são essas
condições e, em particular, qual é a relação entre estes atos de linguagem do relato literário
e dos relatos não literários? Pergunta essencial para uma literatura vinculada à
ficcionalidade. Mary Louise Pratt, que se opõe à idéia de uma linguagem literária distinta,
insiste na importância que teria contemplar as narrações literárias como membros de uma
classe de “textos narrativos de exibição” [narrative display texts] , classe que abarcaria a
todo relato de acontecimentos apresentados como insólitos, interessantes, destinados a
divertir, e nos quais se consideraria que o destinatário reconhece que a pertinência do relato
não está nas informações que este propõe, mas no fato de que seja “contável” [tellable]
(1977, 148). Nesta classe, os relatos literários se beneficiam dos mecanismos da seleção -
edição, crítica literária, ensino – que criam, frente a estes relatos, “um princípio de
cooperatividade hiperprotegida” [hyper-protected cooperativa principle] e permitem ao
leitor acreditar que podem resultar dele uma comunicação interessante. Para compreender
este princípio de cooperatividade, temos que notar que se pressupõe uma cooperação que
sustenta e faz possível a comunicação comum: assim, em geral, pressupõe-se que nosso
interlocutor se coloca em uma atitude de cooperação e que sua resposta será pertinente com
respeito à questão proposta (se me convidam ao cinema e eu respondo “faz um bom dia”, o
princípio de cooperatividade nos autoriza a encontrar a pertinência dessa resposta). Em
nossas relações cotidianas, às vezes decidimos [coisas] muitos apressadamente que os
detalhes e as digressões do relato que alguém nos faz não são pertinentes e que nosso
interlocutor viola o princípio da cooperatividade. Mas em literatura, este princípio está
“hiper-protegido”, no sentido de que pressupomos a pertinência e o valor dos momentos
obscuros, anormais e digressivos. Quando o relato literário parece que não obedece às
regras da comunicação eficaz, é que está a serviço de uma comunicação diferente e
indireta.Teríamos que acumular uma imensa soma de incompreensões e de frustrações
frente a um texto para que podermos decidir que não há solicitação de comunicação
cooperativa, pois em literatura até a impertinência dos detalhes pode ser um componente
significativo da arte. Em suma, o que distingue A Morte em Veneza do relato da morte de
um homem mais velho que desejava um rapaz é sobretudo que temos boas razões para
supor que o primeiro relato será mais rico, complexo, “valerá a pena” ouvi-lo ou lê-lo, terá
uma unidade e demais propriedades da literariedade das quais nos ocupamos anteriormente.
Portanto, vemos que uma discussão sobre a ficcionalidade dos atos literários de
linguagem nos levam a essas pressuposições da literariedade que nos fazem buscar e
encontrar na obra uma organização complexa e intensa da linguagem. Isto não quer dizer
que tenhamos resolvido o problema da literariedade; não encontramos um critério distintivo
o suficiente que possa definir, o que significa simplesmente que todas as buscas que
procura isolar os elementos e as convenções determinantes para produzir literatura
coincidem e propõem juntas meios importante para os estudos literários.
In ANGENOT, Marc et alii. Teoria Literaria. Madrid: Siglo veintiuno editores: 1993, pp.
36-50.