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Eudaimonia, Função e Modos de Vida na Ética Nicomaquéia de Aristóteles
Existem duas correntes de interpretação em disputa quanto à questão: há
uma incompatibilidade no tratamento da eudaimonia por Aristóteles no primeiro e no
último livros da Ética Nicomaqueia, predominantemente referentes às discussões da
eudaimonia em I, 17 (1094a1098b8) e X, 69 (1176a301179a30)? Uma afirma
que há no texto aristotélico razões para se entender que a eudaimonia é um bem
inclusivo, espécie de conjunto ordenado de virtudes e ações desta natureza, e outra
que encontra no texto do estagirita razões para defender que a eudaimonia é um
bem dominante, uma única atividade. Irei me aliar ao grupo dos que afirmam ser a
eudaimonia um bem inclusivo, procurando mostrar que não há uma
incompatibilidade no tratamento dispensado nos trechos citados exatamente por
serem eles melhor compreendidos usando a interpretação inclusiva. Ou seja, o que
parece causar a celeuma é justamente a interpretação da eudaimonia como bem
dominante.
Segundo Aristóteles é notório que todas as coisas tendem a um bem, tem
como finalidade algum bem. Assim também as ações dos seres humanos são
realizadas com vistas a algum bem reconhecido pelo agente como resultado da
ação, e esse resultado pode ser obtido durante a realização do ato ele mesmo ou
ser um produto do ato diferente dele. De qualquer maneira é preciso que haja um
término na cadeia de desejo para que não caia o ser humano na apatia, pois se tudo
fosse desejado em vista de algo outro não se faria coisa alguma.
“Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que
desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse
desse fim; e se é verdade que nem toda coisa desejamos com vistas
em outra (porque, então, o processo se repetiria ao infinito, e inútil e
vão seria o nosso desejar), evidentemente tal fim será o bem, ou
antes, o sumo bem. “ EN, I, 2.
A esse sumo bem é comum chamarse de felicidade, mas nem todos
concordam com quanto ao que ela seja identificada e dependendo de quem busca a
definição e do estado em que se encontra o buscador a resposta pode variar muito
entre as pessoas. Por isso é necessário que seja encontrada uma definição que
seja aplicável à todos os seres humanos por vir de algo que esteja presente em
todos nós. Esse algo deve estar ligado à essência do homem e deve ser algo que o
distingua dos outros seres pois plantas e outros animais percebemos que tem em
suas finalidades seus bens e é de se pensar que também o homem tenha uma
função, pois:
“Darseá o caso, então, de que o carpinteiro e o curtidor
tenham certas funções e atividades, e o homem não tenha nenhuma?
Terá ele nascido sem função? Ou, assim como o olho, a mão, o pé e
em geral cada parte do corpo têm evidentemente uma função própria,
poderemos assentar que o homem, do mesmo modo, tem uma função
à parte de todas essas? Qual poderá ser ela?” EN I, 7.
Certamente haverá o homem de ter na sua capacidade racional, que é sua
diferença específica com relação aos outros animais, a sua função expressa mais
completamente, já que compartilha com os outros seres vivos as características
biológicas básicas e “estamos procurando o que é peculiar ao homem.”
“Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio
racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de serlhe
obediente, e a outra no sentido de possuílo e de exercer o
pensamento. E, como a ''vida do elemento racional" também tem dois
significados, devemos esclarecer aqui que nos referimos a vida no
sentido de atividade; pois esta parece ser a acepção mais própria do
termo.” EN I, 7.
“Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que
segue ou que implica um princípio racional, e se dizemos que "um
taletal" e "um bom taletal" têm uma função que é a mesma em
espécie; se realmente assim é, o bem do homem nos aparece como
uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais
de uma virtude, com a melhor e mais completa.” EN I, 7.
Assim é definida pela primeira vez a eudaimonia, felicidade, no livro I, e logo
em seguida o estagirita acrescenta que deve ser observada essa consonância
“numa vida completa” e que essa definição deve servir como delineamento geral,
um esboço tosco do bem o qual terá seus detalhes precisados mais tarde.
W. F. R. Hardie, no ano de 1965 com o artigo “The final good in Aristotle's
Ethics”, ataca essa definição de Aristóteles como dando margem à interpretações
divergentes por conter ambiguidades quanto ao uso da noção de “função peculiar”
ao ser humano para a definição da felicidade. Segundo Hardie é possível
entendermos o bem final como sendo um fim de segunda ordem, realizado
harmoniosamente pela satisfação de outros desejos de forma coordenada o melhor
possível como sendo uma concepção inclusiva do bem final que seria então um
conjunto de desejos sendo realizados prudentemente. Ou podemos interpretar de
maneira mais estrita a noção de função peculiar do ser humano e essa seria a
maneira dominante de se entender a felicidade como sendo idêntica a vida
contemplativa como apresentada no livro X:
“Se a felicidade é atividade conforme à virtude, será razoável
que ela esteja também em concordância com a mais alta virtude; e
essa será a do que existe de melhor em nós. Quer seja a razão, quer
alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente
e guia natural, tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer
seja ele mesmo divino, quer seja apenas o elemento mais divino que
existe em nós, sua atividade conforme à virtude que lhe é própria será
a perfeita felicidade. Que essa atividade é comtemplativa, já o
dissemos anteriormente.”
Não parece haver necessidade no texto aristotélico de ser feita uma leitura
estritamente dominante do entendimento de eudaimonia que entre em conflito com
a concepção inclusiva, como mostram Keyt e Cooper em seus textos “The Meaning
of Bios in Aristotle’s Ethics and Politics” e “Contemplation and Happiness: A
reconsideration”, respectivamente.
Segundo Keyt:
“There is a growing consensus, at least among scholars in the
United States, that in spite of appearances to the contrary chapters 7
and 8 of Book X of the Nicomachean Ethics are consistent with the rest
of the treatise and that Aristotle is arguing in these two chapters that
the best and happiest life for a man is a mixed life of political and
theoretical activity.”,
entretanto esse consenso só se estabelece completamente coerente quando
a noção de bios é compreendida de uma maneira específica e diferenciada da
noção de zôê pois “zôê seems to refer to different expressions of life whereas bios
often refers to different occupations or careers.” e a ambiguidade mencionada por
Hardie fica esclarecida e enfraquecida quando assim é feito.
Diferenciadas as noções acima, o próximo passo para a compreensão da
felicidade como um fim inclusivo que harmoniza os capítulos I e X “is Cooper’s idea
that by a theoretical bios Aristotle means a mixed life “devoted jointly if differentially
to theoretical study and moral action”. Essa ideia pode não encontrar apoio no texto
até que seja apresentada uma forma positiva de interpretar o uso aristotélico de
bios.
O homem pode ser representado como tendo três dimensões, três modos de
vida que podem ser escolhidos por quem tem condições de viver para além de uma
situação de subsistência ou jugo de algum infortúnio, a saber, a vida dedicada aos
prazeres, animalesca, da qual até os animais participam, bem como as crianças e o
intemperante, uma vida perante os cidadãos de sua comunidade, vida política,
prática e a vida de contemplação teórica que é a mais elevada destas três, aqui
apresentadas em ordem crescente do animal passando pelo homem e chegando ao
divino.
A definição de homem usada para o argumento do ergon diz que homem é o
animal racional e que sua função deve ser relacionada à racionalidade por ser esta
a distinção específica dele para os outros animais. Mas não é possível esquecer
que o homem é o composto desta natureza dupla e é impossível que ele ao exercer
qualquer atividade em um destes níveis, deixe de ser o que é no outro. Assim o
homem compartilha com outros animais as funções biológicas de seu gênero e essa
dimensão dá suporte as outras duas, a política que é a humana propriamente dita e
a divina que é algo que lhe assemelha aos deuses que também são imaginados à
contemplar.
Estes modos de vida não podem ser compreendidos como existindo
simultaneamente ativos num ser humano quanto ao mesmo tempo, e o modo de
vida animal parece ser um modo que a criança assim que é adestrada da maneira
virtuosa, supera, como nota Keyt:
“Thus it seems reasonable to infer that on Aristotle’s theory of
personal development a child lives the life of an animal (an apolaustic
life). As a child grows up, acquires reason, and receives moral
instruction the life of an animal will, if the instruction is successful, be
transformed into the life of a man. In an ideal human life, by this
interpretation, the apolaustic life is an early stage that is supplanted,
when the person matures, by the practical and political life. It seems,
then, that on Aristotle’s theory of personal development a person can
live an apolaustic life at one time and a life of moral virtue at another.”
Dessa forma não é possível viver uma vida de prazeres corporais e de virtude
moral simultaneamente pois estaria o ser humano perseguindo o verdadeiro bem e
os prazeres corporais enquanto lhe faltaria temperança e nem tampouco pode
oscilar entre os dois estados pois a vida de virtude moral deve ter uma constância
que esse balanço não permitiria alcançar. A vida de virtude moral é fruto do correto
educar das crianças e ninguém pode retroceder ao estado infantil tendo alcançado a
maturidade sem ser por uma destruição do seu caráter moral.
De maneira oposta, a relação entre a virtude teórica e as virtudes pratica e
política não exclui uma ida e vinda, uma oscilação entre as atividades peculiares a
cada uma delas, sendo possível que conforme a situação alguém possa engajarse
em uma, outra ou até mesmo duas ao mesmo tempo. Keyt, citando Platão diz:
“In Plato’s Symposium, Alcibiades relates how Socrates stood
in one spot for twentyfour hours grappling with a philosophical
problem during the siege of Potidaea (220c1d5). If, as seems
plausible, Socrates lived a military life (a kind of practical life) during
the entire period he was a member of the army besieging Potidaea,
then for at least twentyfour hours he lived a practical life and a
theoretical life simultaneously.”
Durante o tempo que esteve na tropa do cerco à Potidaea, Sócrates teve a
oportunidade de dedicarse durante vinte e quatro horas a um problema filosófico, o
que não excluiu em nenhum momento sua capacidade de soldado pronto para
entrar em ação. Por outro lado durante o cerco houve ocasião para que ele
exercesse sua função de soldado, quando suspendeu a contemplação, o que não
significa que enquanto estava a contemplar não estava vivendo como um soldado,
vivia contemplando e soldado. Enquanto envergava seu uniforme de hoplita,
Sócrates estava sendo plenamente um homem com suas virtudes práticas e morais
a sua disposição e enquanto ser que recebeu dos deuses a razão estava
contemplando, tal como os doadores de seus dotes racionais.
No desenvolvimento do ser humano a criança começa como animal que é
treinado racionalmente, depois se transforma num adulto que é a expressão de sua
humanidade e pode assim se dedicar, o tanto quanto sua natureza dupla o permitir,
a viver a vida dos deuses, contemplando a verdade e assim que a situação o exigir,
agir de acordo com essa verdade.
Acredito que entendendo a eudaimonia como fim inclusivo, de segunda
ordem, é possível fazer sentido entre o livro I e X desde que tomadas as precauções
de compreender de maneira adequada os modos de vida e a função do homem
enquanto ser racional. Assim, o bem supremo do homem é uma atividade, da qual
ele somente pode desfrutar na medida em que exerce completamente sua
humanidade e maximamente possível seu atributo divino, ao longo de uma vida
completa, atividade esta que deve ser desempenhada segundo a sua virtude mais
perfeita e de acordo com a necessidade da sua condição de habitante de uma
comunidade onde a sua conduta será virtuosa, de acordo com sua virtude mais
perfeita.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:
i) Hardie, W.F.R. The Final Good in Aristotle’s Ethics, Philosophy, v.XL, n.154, 1985.
[Hardie, W.F.R., O bem final na ética de Aristóteles, IN: ZIngano, M (org.), Sobre a
Ética Nicomaqueia de Aristóteles, São Paulo: Odysseus, 2010. (tradução de “The
Final Good in Aristotle’s Ethics).]
ii) Ackrill, J. Aristotle on Eudaimonia. IN: Rorty, A. (org.), Essays on Aristotle’s
Ethics, Los Angeles: University of California Press, 1981.
[Ackrill, J. Sobre a eudaimonia em Aristóteles. IN: Zingano, M (org.), Sobre a Ética
Nicomaqueia de Aristóteles, São Paulo: Odysseus, 2010.]
iii) Zingano, M. Eudaimonia e Bem Supremo em Aristóteles. In: Zingano, Estudos de
Ética Antiga, São Paulo, Discurso Editorial, 2007.
iv) Cooper, J. Contemplation and Happiness: a Reconsideration. IN: Reason and
Emotion. Princeton University Press, 199.
http://gen.lib.rus.ec/book/index.php?md5=BEEBC4446F3945A0D8323897546FCE8
2
v) Keyt, The meaning of bios in Aristotle's Ethics and Politics”. In: DESTRÉE, P.,
ZINGANO, M. Theoria: Studies on the Status and Meaning of Contemplation in
Aristotle's Ethics. Leuven: Peeters, 2014, p. 5159.