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RESUMO:
O presente trabalho analisará comparativamente os textos “Manifesto
Antropófago”, de Oswald de Andrade, e “Manifesto da Antropofagia Periférica”,
de Sérgio Vaz. O objetivo deste estudo é apontar as relações textuais mantidas
entre os dois manifestos, como também delinear os deslocamentos ocorridos de
um texto para o outro, uma vez que o próprio conceito de antropofagia ativa
certo tipo de relação de deslocamento e manutenção das forças contextuais na
produção literária, visando à implosão de sistemas fixos e as hierarquizações
conceituais.
Ao nos depararmos com o quadro atual de produção literária brasileira, somos surpreendidos
por uma variedade de projetos de percursos distintos. Entre esses projetos singulares encontramos o
“Manifesto da Antropofagia Periférica”, de Sérgio Vaz. Escrito em 2007, o texto foi produzido por
ocasião do evento denominado Semana de Arte Moderna da Periferia, e publicado inicialmente no
blog do autor¹.
A Semana de Arte Moderna da Periferia foi um evento realizado em novembro de 2007. O
evento contou com várias manifestações culturais de inúmeros artistas periféricos e serviu como
catalisadora das produções já existentes na nova cena cultural que ocorria nas comunidades da cidade
de São Paulo. Artes como dança, música, literatura, grafites, teatro e outras variadas apresentações
ocorreram durante sete dias de evento em uma releitura violenta da semana modernista. Sérgio Vaz
diz assim sobre a utilização do nome da semana de 22:
Raiva! Raiva! O centro vai na periferia e faz o que quer com a periferia. Agora
é a nossa vez de fazer o que quiser com o centro. Aí eu peguei uma das coisas
mais sagradas de São Paulo e falei: ”Nós vamos dessacralizar essa porra!”. Só
isso. (VAZ, em entrevista ao grupo de entrevistadores da UFJF, em 29 de maio
de 2012).
Trata-se de uma definição complicada. Além disso, a denominação que se direciona pelo tema
abordado abrangeria um número enorme de escritores brasileiros, tais como Rubem Fonseca, Plínio
Marcos, João Antonio, Carolina de Jesus, entre outros. Como o foco da discussão é ressaltar o ponto
de origem dos escritos e suas consequências, preferimos os primeiros critérios, que apontam para o
lugar de enunciação e se interessam por mapear as relações dos lugares com os escritores/escrituras.
Há também o fator cronológico, que preferimos por manter nas produções do século XXI, mantendo
o olhar no novo momento literário e o que esse momento, tal qual o manifesto de Sérgio Vaz, possa
ter de diálogo com produções anteriores. Usaremos periférico e marginal para denominar essa tensão
entre a produção e seu lugar de origem; não como conceito engessador, mas como alternativa de
manter os olhos no lugar de enunciação do “Manifesto da Antropofagia Periférica”.
Para compreender as relações entre os dois manifestos é necessária a compreensão de que,
apesar de muito diferentes ao primeiro olhar, há algo que permanece de um texto para o outro, certo
tipo de estratégia de escrita evocada pelos dois autores que merece ser analisada para melhor situá-la
e compreendê-la. Consideramos o “Manifesto Antropófago” como o que Foucault (1996) chama de
texto primeiro e o “Manifesto da Antropofagia Periférica”, de comentário. Sendo assim, entende-se o
primeiro como o discurso que funda uma mentalidade, ou que no jogo das relações, antecede outra
[...] o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas
empregadas, senão o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no
texto primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele desloca sempre, mas ao
qual não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia
sido dito e repetir incansavelmente, aquilo que no entanto, não havia jamais sido
dito (FOUCAULT, 1996, p. 25).
São exatamente essas dobras intertextuais que nos interessam. O que estava silenciosamente nas
entrelinhas do manifesto modernista, mas é recuperado em outro contexto e se faz tão significativo
em um cenário tal qual a periferia de São Paulo? Quais são os deslocamentos semânticos produzidos
pelo texto antropofágico/periférico que estão em sintonia com os deslocamentos produzidos pelo
texto de Oswald?
O conceito de texto primeiro e comentário, apesar de não dar conta de todas as relações entre
os textos, será levado em consideração. Para a maioria do público leitor de Sérgio Vaz, a primazia
pertenceria ao manifesto do século XXI, não interessando tanto o fator cronológico, e sim, o contato
e identificação que os leitores possam ter com os textos. Pensando na relação que a maioria dos leitores
de Sérgio fazem entre os textos, as ressignificações do texto ou a função de comentário pertenceriam
ao texto modernista. Essas relações também serão importantes para as conclusões deste trabalho. No
entanto, preferimos dar mais atenção à questão cronológica para marcar o texto primeiro (“Manifesto
Antropófago”) e comentário (“Manifesto da Antropofagia Periférica”).
Comecemos exemplificando o caráter político que os dois manifestos suportam, visto que,
apesar do distanciamento da política que parte da crítica enxerga no primeiro modernismo brasileiro,
enxergamos, até através da releitura, o uso político que o próprio Oswald faz da antropofagia anos mais
tarde, ligando-o ao comunismo, a potencialidade política que o “Manifesto Antropófago” carrega.
Quando Oswald de Andrade publica seu manifesto, a situação das pessoas que realizaram a
semana já está mudada, alguns grupos se formam, principalmente em torno de escolhas político-
partidárias. Grupos como o Anta (ou verde-amarelo), o Pau-Brasil que depois se transforma em
antropofagia, entre outros. Benedito Nunes explica de maneira suficiente tal situação:
[...] fazer literatura é levar tal realidade para a ágora, para o espaço de discussão
de intelectuais (que mereçam esta qualificação), editores, políticos, público,
Não distante dessa compreensão, Sérgio Vaz coloca em seu manifesto uma série de fragmentos,
tal como o texto oswaldiano, que reclamam uma identidade legitimada e atacam posições ocupadas
por outros produtores culturais, os quais, segundo o manifesto periférico, corroborariam com um
estado de exploração e manutenção das forças sociais. A resolução desse impasse seria o que, em seu
manifesto, Sérgio Vaz chama de “artista cidadão”, ou nas palavras do autor:
Ao caracterizar um tipo de artista produtivo nos tempos atuais, Sérgio Vaz está reclamando para
a arte o que Antonio Candido chamaria de literatura empenhada, ou seja, um tipo de literatura que
procure expor as mazelas sociais e as contradições dos projetos regionais e nacionais (Cf. CANDIDO,
2007)3. O próprio poeta vira-lata, como se denomina Sérgio Vaz, propõe em seu manifesto uma série
de retomadas artísticas que sejam “A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros” (VAZ, 2011,
p. 50).
Ao relembrarmos o que foi dito pelo próprio Oswald de Andrade sobre a antropofagia, como
sendo uma noção de construção de futuro nacional, não podemos deixar de compará-la com a mesma
noção encontrada no manifesto de Sérgio Vaz.
Essa busca de um futuro melhor enquanto nação passa por uma mudança de alvos se atentarmos
para os dois manifestos. Enquanto Oswald tem como “inimigo sacro” (ANDRADE, 1990, p. 51)
o pensamento patriarcalista e repressivo encontrado na herança europeia, Sérgio Vaz encontra sua
opressão patriarcal no quadro geral de desenvolvimento interno da nação.
Os dois manifestos evocam figuras do passado opressor/repressor para, ao colocá-los no texto,
modificar as ligações imediatas de vitória ou derrota que a história possa ter construído sobre essas
figuras. Um exemplo disso é a retomada do índio por Oswald de Andrade. Uma vez que sabemos da
matança de várias tribos e a conquista da América pelos portugueses e espanhóis, o índio sobrevivia
como a presença do que foi derrotado e submetido às novas culturas impostas. A retomada dessa
figura como o símbolo maior de identidade nacional, aliada a uma imagem de força heroica ao
indígena, retrabalham o imaginário e sustentam o índio como símbolo de resistência frente às
imposições exteriores, as quais, na época, eram vistas como as únicas possibilidades civilizatórias de
desenvolvimento nacional.
Podemos relembrar agora que, para conceituar os escritores chamados marginais, Érica Peçanha
(2009, p. 182-199) aponta para uma noção de exclusão social recebida e reivindicada como lugar de
enunciação e produção cultural significativo. Sérgio Vaz também reclama uma identidade negada
por muito tempo na construção social brasileira e que necessitava de afirmação enquanto presença
ativa no país. No primeiro fragmento do manifesto periférico lemos que “Só a Periferia nos une, pelo
amor, pela dor e pela cor” (VAZ, 2011, p. 50). Podemos ligar essa cor, se atentarmos para o lugar de
enunciação de Sérgio e lembrarmos a maioria dos moradores dessas áreas, diretamente à pele escura da
maioria da população de baixa renda nas grandes metrópoles brasileiras. A escravidão é colocada aqui
como o elo entre os excluídos e explorados economicamente por um sistema que pretende continuar
diferenciando as classes, as peles e os saberes para manter o controle4.
Esta sequência está após o fragmento que citamos acima sobre o “batuque da cozinha”. Assim
montado, o texto passa a ter uma significação muito mais contundente, quando se diz a favor da cultura
popular e também da dita cultura erudita. No entanto, esta valorização da cultura erudita passa pela
releitura localizada das necessidades estruturais da periferia. Tanto cultural quanto socialmente, o
teatro, o cinema, as artes plásticas e a dança são relançados dentro de um mundo outro que os absorve
conscientemente, em uma operação de assimilação.
Permanece, como já dito, a noção de assimilação, de devoração do inimigo não destruidora,
mas agregadora de elementos e produtora de deslocamentos e releituras desses elementos, para um
jogo diferente, no qual as diferenças e indiferenças serão ou afirmadas como legitimadas, no caso da
diferença, ou detonadas pela revelação dos elementos estigmatizados e colocados anteriormente no
jogo como não válidos, apenas como elementos de exploração.
A postura antropofágica de um texto para o outro possibilita que, ao mesmo tempo em que se
opõem a algum tipo de tradição, retome-se essa tradição para a construção de significados válidos
interiormente, e não apenas uma cópia de modelos exteriores. Assegura-se, assim, a legitimidade da
nova produção, em uma engenharia que insere a literatura periférica/marginal no quadro geral de
produção da literatura brasileira.
Hoje, talvez, seja possível dizer que os leitores de Sérgio Vaz comem o biscoito fino produzido
por Oswald de Andrade e que a nova cena literária produzida nas periferias brasileiras venha a colocar
em xeque uma série de conceitos considerados universais na análise dos objetos literários nacionais,
assim, como um dia, os parnasianos foram considerados, pelos modernistas, como os “mestres do
passado”.
ABSTRACT:
This paper will examine comparatively the texts Manifesto Antropófago, by
Oswald de Andrade and Manifesto da Antropofagia Periférica, by Sergio Vaz,
aiming to point textual relations maintained between the two manifestos
Notas explicativas
*
Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFJF.
**
Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
1
Disponível em: <http://colecionadordepedras1.blogspot.com.br/>. Acesso em:
2
Sobre o assunto, ver: COELHO, Frederico. Cultura marginal: atuações, estratégias e conflitos integradores. In: Eu,
brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
3
Lembrar a música de Caetano, Haiti:
“Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres,
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.
4
Ver mais sobre o assunto em CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre
Azul, 2007.
5
Retiramos o conceito da teoria de Pierre Bourdieu apresentada em sua obra Economia das trocas simbólicas, e é assim
apresentada: “O princípio unificador e gerador de todas essas práticas [...], muitas vezes consideradas como ‘tomadas
de consciência’, não é senão o habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização
de estruturas objetivas e que, enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma determinação, [...]
tende a produzir práticas [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 134-135).
6
Afirmamos tal mecanismo somente em relação à sociedade brasileira, mas acreditamos ser possível a utilização do
conceito de antropofagia em outras construções simbólicas comunitárias.
Referências
ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo; Secretaria do Estado da
Cultura, 1990. 238 p.
_. Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 184 p.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva,
2007. 361 p.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. 416 p.
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil
das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 334 p.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder
de uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 224 p.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
Editora Loyola, 1996. 74 p.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 104 p.
NASCIMENTO, Érica Pessanha. Vozes Marginais na Literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
331 p.