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DOI: 10.

5902/ 2317175816162 9

A VONTADE GERAL COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA


SOBERANIA POPULAR EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

THE GENERAL WILL AS A CONDITION FOR THE EXERCISE OF


POPULAR SOVEREIGNTY IN JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Luiz Carlos Mariano da Rosa1


Recebido em: 15/11/2014
Aprovado em: 10/04/2015

RESUMO ABSTRACT

Baseado no caráter necessário que a leitura rou- Based on the required character that Rous-
sseauniana atribui ao pacto social, que implica o seau’s reading gives the social pact, which im-
ato pelo qual o povo se faz povo e converge para plies the act by which the people do and people
a constituição de um corpo coletivo e moral que converge to form a collective body and moral-
emerge como a única fonte legítima do poder e ity that emerges as the only legitimate source
seu único detentor, este artigo assinala a Vontade of power and its sole owner, the article points
Geral como condição para o exercício da sobe- out the General Will as a condition for the ex-
rania popular. Mostra, ainda, que o está em voga ercise of popular sovereignty and shows that
não é senão uma formação econômico-social what is needed him is nothing but a social-eco-
que possibilite sua manifestação como tal, que nomic formation that enables its manifestation
encerra o interesse comum e perfaz um proces- as such, terminating the common interest and
so que envolve as decisões coletivas e, antes, a makes a process involving the collective deci-
sua elaboração. Tal processo demanda a criação sions and before it has been drafted. This pro-
de condições concretas para a sua objetivação e cess requires the creation of concrete condi-
transpõe o significado de um mero somatório das tions for its objectification and transposes the
vontades particulares que resulta na vontade de meaning of a mere summation of individual
todos (maioria) e caracteriza um sistema que es- wills which results in the will of all (most) and
truturalmente tende à desigualdade e à injustiça features a system that tends structurally ine-
e que, por essa razão, conforme defende a pers- quality and injustice, and for that reason, as
pectiva de Marx, guarda uma lógica incapaz de defending the prospect of Marx, save a logical
promover a sua superação. unable to promote its overcoming.
Palavras-chave: Vontade Geral; Rousseau; So- Keywords: General Will; Rousseau; Popular
berania popular; Interesse comum. sovereignty; Common interest.

1
Pós-Graduado em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF), Brasil. Professor no Espaço Politikón Zôon - Educação, Arte e Cultura. E-mail:
marianodarosaletras@terra.com.br.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 9 - 23


10 Luiz Carlos Mariano da Rosa

1 Introdução a proposta da leitura de Montesquieu4,


além da instauração da autoridade polí-
Escapando ao sentido que encerra tica e das condições necessárias para o
sob a acepção de uma convenção contin- exercício do poder, segundo a constru-
gente, o pacto social não se impõe senão ção hobbesiana5.
como o ato necessário do sujeito no sen- Baseado no exercício de uma ati-
tido de fazer-se social, constituindo uma vidade pessoal e consciente, cuja dispo-
consequência lógica para a qual converge sição, emergindo do desejo, dialoga com
o processo de legalização que envolve a a intenção de se alcançar um determina-
própria natureza no seu desenvolvimento do fim, à ordem política que resulta de
ou o “social”. Perfaz, assim, um resulta- um ato de vontade e que, ao se exprimir,
do que, na mesma perspectiva, implica mantém-se sob a acepção de uma estru-
o desejo ou o “econômico”2, que emerge tura artificial (no âmbito da qual a lei se
em uma determinada situação, a saber, no restringe à noção de algo que não é mais
âmbito da generalização da guerra. O con- do que a imposição do soberano), e ao
trato carrega, dessa forma, uma condição “voluntarismo” que é atribuído à teoria
que transpõe as fronteiras do arbítrio e da política rousseauniana o que se impõe é
liberdade moral, cuja criação guarda cor- a distinção envolvendo fato e direito6 em
respondência com a sua instrumentalida- uma construção que traz o pacto como a
de, não havendo possibilidade de se lhe instauração desse último e converge para
anteceder, tornando-se, então, um produto a necessidade de estabelecer uma relação
das leis naturais em sua determinação na entre o ser (natureza humana) e o dever
situação-limite da contradição. ser (lei) por meio de uma administra-
Estabelecer a conciliação envol- ção de caráter legítimo e seguro. Essa
vendo liberdade e igualdade, liberdade e relação entre o ser (natureza humana) e
soberania, razão (racionalidade política) o dever ser (lei) demanda a constituição
e soberania popular – que perfazem cate- da Vontade Geral como o princípio da
gorias que, no âmbito político, guardam autopreservação do povo enquanto tal,
um caráter antitético – é a pretensão da segundo a condição atribuída pelo pacto,
teoria rousseauniana, que converge para que encerra a sua autoafirmação através
uma forma que, no tocante ao corpo polí- da soberania e da autorrealização que
tico, possibilita a sua fundação por meio implicam o interesse comum, na medida
da soberania popular. Tal teoria dispen- em que o contrato se caracteriza como a
sa, desse modo, qualquer tipo de recurso 4
“[...] Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liber-
advindo do seu exterior para a sua limi- dade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser
forçado a fazer o que não se tem o direito de querer. Deve-se ter em mente
tação, desde as fronteiras que encerram o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de
fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que
a legitimidade dos direitos do homem elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam
que, emergindo do estado de natureza este poder” (MONTESQUIEU, 1996, p. 166, grifos meus).
5
Se o pensamento hobbesiano e a teoria rousseauniana guardam coincidên-
pré-político, impõem-se às deliberações cia no que tange ao caráter absoluto do poder do soberano, que se impõe
como o “único juiz da execução do contrato”, segundo a leitura de Derathé
coletivas, conforme supõe a perspectiva (2009, p. 335), o que os distingue é a finalidade proposta pela perspectiva
de Locke3, até o horizonte que implica de cada um, na medida em que, se Hobbes pretende assegurar a segurança
dos cidadãos e a paz civil, a prioridade de Rousseau não é senão a liber-
a circunscrição da lei, de acordo com dade: “O que deu originalidade a Rousseau foi ele ter colocado o proble-
ma nestes termos. Todos os seus predecessores perguntavam-se sob que
2
“Estamos no mundo da produção material, explorado sobretudo pelas condições uma autoridade política poderia ser instituída. Eles respondiam
categorias daquela ‘ciência social’ que, após Adam Smith, Ricardo e unanimemente: pela alienação da liberdade natural. Para eles, a institui-
Marx, definiu-se sob a denominação de ‘economia política’. A legalidade ção do governo civil era feita pelo preço da liberdade, como se cada um
desse mundo, Rousseau a encontra na lógica do desejo (no seu embate se encontrasse pronto a sacrificar uma parte de sua liberdade para melhor
com os eventos), nas transformações do homem caracterizado fundamen- assegurar sua segurança, formando com todos os outros uma união de for-
talmente pelo desejo” (CARDOSO, 1975, p. 36, grifos meus). ças e de vontades. Para Rousseau, a segurança comum não deve acarretar
3
“É a existência dos direitos naturais do indivíduo no estado de natureza sujeição, e trata-se precisamente de saber como os homens podem unir-se
que vai proteger, dos abusos do poder, o mesmo indivíduo no estado de num corpo político sem com isso renunciar à sua liberdade, pois esta é um
sociedade. E como? Em primeiro lugar, porque o estado de natureza de direito inalienável” (DERATHÉ, 2009, p. 335).
Locke, contrariamente ao de Hobbes, está regulado pela razão. Em se- 6
“Esta separação de campos, em outras palavras, não é senão a distinção
gundo lugar, porque, contrariamente a Hobbes, os direitos naturais, longe de um domínio do 'sociológico' (podemos, ao que parece, sem dúvida,
de constituirem o objeto de uma renúncia total pelo contrato original, lon- denominá-lo assim), e de um domínio do 'político', ou talvez, mais preci-
ge de desaparecerem, varridos pela soberania no estado de sociedade, ao samente da 'política' – para apontar mais para o nível da prática que para o
contrário subsistem. E subsistem para fundar, precisamente, a liberdade” nível das estruturas, no caso, a superestrutura jurídico-política do Estado”
(CHEVALLIER, 1999, p. 108). (CARDOSO, 1975, p. 35).

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situação-limite do desejo e da sua autos- peração do paradoxo entre obediência e


suficiência. Tal desejo e a sua autossu- liberdade, visto que, contrariamente, à
ficiência, emergindo desde o estado de instituição da autoridade política o que
natureza, demanda a sua superação no se impõe é ou a obediência pura e sim-
ponto culminante da contradição, isto ples ao Estado e às suas leis ou a obe-
é, a consciência da sua impotência total diência que depende do processo de ava-
diante da realidade, que assinala a possi- liação individual e da sua consciência10.
bilidade de sua supressão7. Se implica a condição de ativida-
Uma transformação do desejo de de e passividade que o povo enquanto
caráter necessário que converge para a tal assume como corpo coletivo e mo-
universalidade que cabe à Vontade Ge- ral que instaura uma “vontade” (Vonta-
ral: eis o que caracteriza o contrato, o de Geral), segundo os seus valores, as
qual escapa, pois, à condição de uma suas necessidades e os seus objetivos,
associação contingente e voluntária, se- cuja possibilidade de cumprimento nela
gundo a leitura rousseauniana quanto à está pressuposta, a relação que envol-
instauração do corpo político e à cons- ve soberano e súdito dialoga com um
tituição da sua autoridade. Tal leitura se exercício que converge para um dever.
contrapõe ao consentimento que, se na Tal dever caracteriza a comunidade
perspectiva hobbesiana emerge coerci- como ética, uma vez que a submissão
tivamente8, conforme a interpretação guarda correspondência com uma de-
lockeana tem viés tácito9, implicando terminação moral, escapando à lógica
uma construção no âmbito da qual os mecanicista de um efeito que carrega
membros do corpo político não dele- uma dinâmica linear que, em virtude
gam a soberania senão aos representan- da falta de resistência, dispensa a força
tes ou ao governo, isto é, a uma forma da “obrigação”11. À incompatibilidade
de instituição à qual, de acordo com o que, em certo grau e sentido, envolve
pensamento de Rousseau, sobrepõe-se o desejo do indivíduo na sua existência
a própria constituição do povo como tal. absoluta e a vontade dirigida pela razão,
Nessa perspectiva, a correlação isto é, a vontade individual e a vonta-
entre liberdade e igualdade, no que con- de coletiva, o que se impõe, em face da
cerne aos indivíduos entre si, converge vontade coletiva (Vontade Geral), não
para a necessidade acerca do estabeleci- é senão um “dever” e uma “obrigação”
mento de uma forma de associação polí- que, abrangendo os aspectos moral e fí-
tica cuja legitimidade não pode guardar sico, convergem para a instauração da
correspondência senão com a constitui- “lei” por meio de um sistema de deveres
ção voluntária de uma organização que e sanções que se caracteriza como a sua
encerre a possibilidade de que os pró- expressão histórica. Esse sistema de de-
prios membros exerçam os direitos que veres e sanções perfaz, em sua concreti-
lhe são facultados pela referida condição cidade, o consenso na sua positividade,
e cumpram as obrigações políticas atri- o que atribui à sociedade civil a condi-
buídas por si mesmos. Isso implica a ção de uma sociedade política, tendo em
única alternativa no que se refere à su- vista que a sua emergência ocorre na
7
“Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos perspectiva que traz como fundamento
prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua
resistência, as forças que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse esta-
do. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, 10
Convergindo para uma concepção que se opõe à ideia de autoridade le-
se não mudasse de modo de vida, pereceria” (ROUSSEAU, 1999b, p. 69). gítima, negando o direito de qualquer indivíduo, representando o Estado
8
Sentido que se impõe ao pensamento hobbesiano, cuja síntese converge ou não, exigir a obediência de outro implica a impossibilidade acerca do
para a seguinte fórmula: “E os pactos sem a espada não passam de pala- estabelecimento de uma autoridade política legítima, conforme defende
vras, sem força para dar segurança a ninguém” (HOBBES, 2003, p. 143). o “anarquismo filosófico”.
9
“E assim cada homem, consentindo com os outros em instituir um 11
“A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão,
corpo político submetido a um único governo, se obriga diante de todos compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar
os membros daquela sociedade, a se submeter à decisão da maioria e a força aos outros: aquele que recusar obedecer à Vontade Geral a tanto
concordar com ela; do contrário, se ele permanecesse livre e regido como será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o
antes pelo estado de natureza, este pacto inicial, em que ele e os outros forçarão a ser livre, pois é essa condição que, entregando cada cidadão
se incorporaram em uma sociedade, não significaria nada e não seria um à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal” (ROUSSEAU,
pacto” (LOCKE, 2001, p. 140). 1999b, p. 75).

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da autoridade política a obediência do uma organização capaz de possibilitar a


indivíduo à Vontade Geral12. garantia dos interesses dos indivíduos14,
Se a Constituição consiste em cuja demanda implica desde a conserva-
um momento que encerra a Vontade ção (segurança pessoal) até a proprieda-
Geral, pois, convergindo para as fron- de. Tal demanda o estado de natureza,
teiras da particularidade, caracteriza-se em virtude da sua condição de instabili-
como “parte” do todo, como universal dade, não mais pode assegurar, já que,
simultaneamente, a Constituição deve se em face do egoísmo “o homem se tor-
identificar-se com a própria Vontade na um lobo para o outro homem” (homo
Geral, não perfazendo senão o próprio homini lupus), as disputas não acarretam
todo, contrapondo-se à perspectiva que senão “a guerra de todos contra todos”
a mantém sob a acepção de um conjun- (bellum omnium contra omnes).
to de determinações fundamentais da
vontade racional, conforme defende a A forma da sociedade existente até
leitura hegeliana (HEGEL, 1995). Tal agora sobrecarregou os homens com
leitura implica a atribuição ao povo de inúmeros males, envolvendo-os cada
uma condição que o priva de sua essên- vez mais profundamente com o erro e
o vício. Mas esse envolvimento não
cia genérica, reduzindo-o a uma multi-
é um destino inevitável ao qual o ho-
dão atomística que emerge na esfera do mem está submetido. Ele pode e deve
Estado como sociedade civil, circuns- livrar-se dele ao tomar as rédeas de
crita a uma parte da Constituição, isto sua própria história - ao transformar o
é, a um elemento político-estamental mero ter de em querer e em dever. É
(MARX, 2010). coisa dos homens e está em seu poder
transformar em benção a maldição
2 Da autossuficiência do desejo à existente até agora sobre todo o de-
Vontade Geral como condição para o senvolvimento estatal e social. Mas
exercício da soberania popular eles só podem resolver essa tarefa
depois de se compreenderem e en-
contrarem a si mesmos (CASSIRER,
Se supõe um “estado de natureza”
1999, p. 64, grifos do autor).
que antecede à formação da sociedade,
a perspectiva jusnaturalista defende um
Se a natureza do homem não
individualismo que se caracteriza como
emerge senão através da autossuficiên-
possessivo, visto que atribui ao homem
cia do desejo, o fato de carregar em si
desde o instinto de posse até o desejo de
o princípio da violência a impede de es-
acumulação. A tal noção se contrapõe
tabelecer “de direito” o Estado, impos-
a leitura rousseauniana, que, acusando
sibilitando-a de se impor como o fun-
a transposição da condição humana da
damento do contrato, perfazendo uma
“sociedade civil” para o estágio pré-so-
situação que assinala que, embora a so-
cial, encerra a “possessividade” sob a
ciedade se caracterize como produto da
acepção de uma de suas virtualidades,
natureza, há uma ruptura entre ambas.
cuja atualização depende do processo
Essa situação ocorre na medida em que
de socialização, que pode provocar ou
o contrato traz como base a Vontade Ge-
não a sua emergência.
nados entre si como proprietários de suas próprias capacidades e do que
Ao caráter natural da “possessivi- adquiriram mediante a prática dessas capacidades. A sociedade consiste
dade” que emerge da teoria da socieda- de relações de troca entre proprietários. A sociedade política torna-se um
artifício calculado para a proteção dessa propriedade e para a manuten-
de, tanto da leitura hobbesiana como da ção de um ordeiro relacionamento de trocas” (MACPHERSON, 1979,

perspectiva lockeana13, o que se impõe é p. 257, grifos meus).


14
Alcança relevância, nessa perspectiva, a diferenciação envolvendo as
concepções políticas de sociedade em questão: “A dicotomia comuni-
12
Diferentemente da leitura de Durkheim, o fundamento da obrigação, dade-associação pode ser ligada a contrastantes concepções políticas de
segundo a perspectiva de Rousseau, “não implica de modo algum que sociedade — como uma livre associação de indivíduos em competição
exista uma autoridade externa e superior aos indivíduos”, mas “a autori- (visão liberal/hobbesiana) ou como um coletivo que é mais que a soma
dade política tem seu fundamento no ato pelo qual o indivíduo se engaja de suas partes, um corpo edificante através do qual é possível concretizar
em obedecer à vontade geral” (DERATHÉ, 2009, p. 351). a autêntica cidadania (visão socialista/rousseauniana)” (BOTTOMORE;
13
“A sociedade torna-se uma porção de indivíduos livres e iguais, relacio- OUTHWAITE, 1996, p. 116).

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ral, expressão do corpo moral e coletivo assinala a diferença entre ambos, pois,
que o pacto engendra, do corpo político se este defende a intervenção de uma
na sua atividade, do conjunto dos “cida- “mão invisível” harmonizando os con-
dãos”, do povo incorporado que nesta flitos individuais no sentido de que coo-
condição se torna “soberano” e que em perem para o bem-estar geral, aquele,
sua passividade, sob a acepção de “con- contrapondo-se ao otimismo em ques-
junto de súditos”, configura o “Estado”, tão, advoga que a organização social
se lhe mantendo submetido15. em referência, determinada pelas leis
Às inter-relações envolvendo in- de mercado, tende à intensificação da
divíduo e sociedade, segundo a leitura desigualdade social, que, sobrepondo-
rousseauniana, impõem-se um dinamis- se àquela que vigora no plano natural,
mo histórico e uma potencialidade de contribui para o engendramento de uma
transformação que escapam à concep- série de consequências que alcançam
ção da teoria contratualista de Hobbes e o âmbito da moral social e individual,
Locke. Ao individualismo dessa teoria, perfazendo-as.
caracterizado como “possessivo”, so-
brepõe-se a interpretação rousseaunia- A relação já não mais se estabelece
na do homem como indivíduo natural, diretamente de consciência para cons-
que não guarda senão incompatibilida- ciência: ela agora passa por coisas. A
de com a referida perspectiva, visto que perversão que daí provém não apenas
do fato de que as coisas se interpõem
as suas reflexões são uma antecipação
entre as consciências, mas também
no tocante à ontologia do ser social que do fato de que os homens, deixando
encerra a proposta de Hegel (LUKÁCS, de identificar seu interesse com sua
1979) e de Marx, que defende que o ho- existência pessoal, identificam-no
mem enquanto tal, sob a acepção de um doravante com os objetos interpostos
ser que raciocina, dispõe de linguagem que acreditam indispensáveis à sua
e age moralmente, definindo-se pelo felicidade. O eu do homem social não
seu trabalho, pela sua história e pela sua se reconhece mais em si mesmo, mas
práxis social e produzindo-se através se busca no exterior, entre as coisas;
dela (MARX; ENGELS, 2002). seus meios se tornam seu fim (STA-
A “sociedade civil” que Rousseau ROBINSKI, 1991, p. 35).
descreve no Discurso não se caracteriza
senão como um estágio de rápida e inten- Nessa perspectiva, se não se de-
sa generalização das relações mercantis tém no ancien regime feudal-absolutista,
que, convergindo para a dominação supondo a defesa da “democracia burgue-
do capital, antepõe-se imediatamente sa” que, emergindo, se lhe contrapõe, a
à instauração do capitalismo propria- crítica rousseauniana não se impõe senão
mente dito, configurando um processo à própria “societé civile” da época que,
que, envolvendo a ampliação crescente originalmente “burguesa”, caracteriza-se
da divisão do trabalho, da multiplica- pela desigualdade, já que a acumulação
ção das demandas e das necessidades das riquezas ameaça a liberdade. Além
humanas, traz como base o progresso. disso, a instauração da “tirania dos ricos”
O agente de tal progresso, o indivíduo, que advém, conforme sublinha Derathé
busca o próprio interesse, tendo o lucro (2009, p. 520), compromete a capacidade
privado como a sua expressão, leitura do Estado de proteger os cidadãos, con-
que, se inicialmente correlaciona Rou- vergindo para a necessidade de uma pro-
sseau e Adam Smith, posteriormente posta que, identificando as suas causas (a
propriedade privada, a divisão do trabalho
15
Convém salientar que, “como o soberano é ‘formado apenas pelos par-
ticulares que o compõem’, o pacto social reduz-se na realidade a um en-
e a alienação), possibilite a sua superação
gajamento do povo consigo mesmo”, tendo em vista que “os associados por meio da construção de uma organiza-
alienam-se com todos os seus direitos a toda a comunidade”, convergindo
essa “alienação total” para torná-los simultaneamente súditos e membros ção social democrática e igualitária, isto
do soberano (DERATHÉ, 2009, p. 341).

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é, uma república autogovernada cujo fun- os princípios racionais e éticos que devem
damento seja a Vontade Geral16, conforme regular uma organização social justa.
expõe em Do Contrato Social.
Se no processo de desenvolvi- A associação civil tem essencialmen-
mento social o que cabe à natureza hu- te como finalidade impedir que um
mana não é senão uma transformação de dos associados possa submeter um
caráter imperceptível que sobrepõe ao outro deles à sua vontade e, ao neu-
tralizar os efeitos das desigualdades
amor de si (instinto de autopreservação)
sociais, assegurar a todos os cidadãos
e ao sentimento de piedade (interindivi- o equivalente de sua independência
dual) o amor-próprio, que se circunscre- natural. Por certo, existe uma certa
ve ao interesse pessoal17, a organização desigualdade no estado de natureza,
da convivência coletiva com base em mas, “nesta, sua influência é quase
princípios racionais e éticos demanda nula” [Discurso], porque, nesse es-
uma mudança que implica a superação tado, os homens não têm, por assim
da condição determinante para o com- dizer, relações entre eles. Enquanto
prometimento da solidariedade social. vive no estado selvagem, o homem
Tal comprometimento, transpondo as “basta-se a si mesmo” [Emílio]: como
fronteiras da subjetividade, guarda cor- ele pode dispensar a assistência de
seus semelhantes, ele os ignora; mas,
respondência com a produção humana
uma vez que se tornou sociável, ele
concreta (a formação econômico-so- tem necessidade deles, assim como
cial), remetendo à instituição da socie- estes têm necessidade dele. Todo mal
dade civil, à sua gênese, que traz como ou, se quisermos, todas as contradi-
fundamento a propriedade privada, a ções do sistema social vêm dessa
divisão do trabalho e a alienação. dependência mútua, da qual cada um
Nesse sentido, se a radicalização procura tirar o máximo de benefício a
envolvendo a premissa de indivíduos ca- expensas de outrem, pois, na ausên-
racterizados pela liberdade e pela igual- cia de uma regra que seja respeitada
dade se impõe como o fundamento legí- por todos, só pode reinar o arbitrário
timo para a instauração do corpo político nas relações entre os indivíduos (DE-
RATHÉ, 2009, p. 338).
e para a constituição da sua autoridade,
a condição que implica uma perspectiva
essencialmente não individualista, para A organização social para a qual
a qual converge a leitura rousseauniana, converge o contrato não pode ter em sua
demanda uma concepção de liberdade constituição uma liberdade que guarde
e igualdade que se mantém atrelada ao raízes nas fronteiras de uma noção de
âmbito da sociabilidade concreta. Essa indivíduo abstrato, reduzido a um áto-
concepção se sobrepõe a qualquer cons- mo de racionalidade na referida estru-
trução identitária que, no que tange à sua tura, tendo em vista o caráter negativo
definição, circunscreva-se ao horizonte que lhe é atribuído em função de uma
da abstração, emergindo de um hipotético perspectiva que sobrepõe o privado ao
estágio pré-cívico ou de uma situação pré- comum e o particular ao coletivo, com-
social e prescindindo de um diálogo com prometendo o próprio sentido da insti-
tuição em questão. Tal sentido consiste
16
Convém salientar que “Rousseau de modo algum vê no Estado uma em uma construção cuja tendência im-
mera associação, uma comunidade de interesses e nem um equilíbrio dos
interesses de vontades isoladas. O Estado não é, segundo ele, um mero plica o desenvolvimento das condições
sumário empírico de determinados impulsos e inclinações, de determi-
nadas veleidades, mas é a forma na qual a vontade, enquanto vontade
necessárias para a afirmação do homem
moral, realmente existe - na qual a passagem da mera arbitrariedade para enquanto tal no âmbito da sociabilida-
a vontade pode se concretizar” (CASSIRER, 1999, p. 63, grifos do autor).
17
“Com as relações sociais, tudo muda. O amor de si, que no estado de de, o que demanda não menos do que
natureza era um sentimento absoluto, torna-se um ‘sentimento relativo
pelo qual nos comparamos’, transforma-se em amor-próprio e engendra
uma igualdade substantiva, baseada na
nos homens um apetite insaciável de dominação. A desigualdade, cujos vida econômica, se é esta que determi-
efeitos quase não se faziam sentir no estado de natureza, torna-se prepon-
derante e exerce uma influência nefasta sobre as relações de homem a na o seu destino sócio-histórico, bem
homem” (DERATHÉ, 2009, p. 355).

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SOBERANIA POPULAR EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

como, antes, o lugar a partir do qual 3 Da Vontade Geral como resultado


inevitavelmente emerge18. do processo de objetivação dos valo-
res, das necessidades e dos objetivos
Rousseau se opõe não ao poder alie- do corpo coletivo e moral
nante do dinheiro e da propriedade,
mas a um modo particular desse po- Se, na Antiguidade, sobrepõe-se a
der se exercer, na forma de concen- estrutura predominante, que traz um arca-
tração da riqueza, e a tudo aquilo que bouço coletivo que não transpõe as fron-
decorre da mobilidade social produ-
zida pelo dinamismo do capital em
teiras que encerram a noção das comuni-
expansão e em concentração (MÉS- dades naturais e do seu caráter orgânico
ZAROS, 1981, p. 57). nem tampouco a perspectiva política da
Idade Medieval e o seu providencialismo
Se o contrato social encerra uma divino, o que se impõe, na modernidade,
tensão envolvendo o mundo privado e o é a pluralidade da organização social. Tal
mundo público, o que se impõe ao ho- organização social, guardando correspon-
mem como “membro do soberano” é a dência com uma visão laica da existência,
superação do interesse particular para o emerge do contrato que, carregando a ne-
qual converge a sua vontade particular cessidade de estabelecer a correlação fun-
em nome do interesse geral ou comum damental abrangendo liberdade e igualda-
que emerge como resultado da Vontade de, converge para a questão que implica
Geral, de cuja construção inevitavel- a oposição entre as vontades individuais
mente participa naquela condição. Essa e os interesses particulares que lhe estão
superação do interesse particular impli- atrelados e o interesse comum para o qual
ca a impossibilidade do integrante do inescapavelmente tende a sociedade en-
corpo coletivo ou moral em questão se quanto tal, constituindo-se a Vontade Ge-
contrapor a si mesmo como aos demais ral como a possibilidade de superação que
que, por meio de um ato, tornaram-se a própria ordem sociopolítica demanda.
um povo, à medida que se lhes escapa
outra forma de associação que os capa- Se quisermos saber no que consiste,
precisamente, o maior de todos os bens,
cite a conservar a liberdade e a engen-
qual deva ser a finalidade de todos os
drar a autonomia, tendo em vista que, sistemas de legislação, verificar-se-á
nesta perspectiva, a preeminência das que se resume nestes dois objetivos
vontades particulares no âmbito da co- principais: a liberdade e a igualdade. A
letividade representa a desestruturação liberdade, porque qualquer dependên-
do pacto e a invalidação dos seus prin- cia particular corresponde a outro tanto
cípios, que pretendem, em suma, o esta- de força tomada ao corpo do Estado, e a
belecimento de uma ordem igualitária19. igualdade, porque a liberdade não pode
subsistir sem ela (ROUSSEAU, 1999b,
p. 127, grifos do autor).

À necessidade que envolve a su-


peração do amour propre e dos interes-
18
Nessa perspectiva, convém ressaltar que, contrapondo-se à propriedade ses particulares que se lhe estão atrela-
privada e à divisão do trabalho, que se impõem como alicerces da “so-
ciedade civil” identificada no Discurso, a leitura rousseauniana, através dos a fim de possibilitar a construção da
Do Contrato, converge para uma organização social que, atribuindo à
propriedade privada uma função social, mantenha-a atrelada ao interesse
Vontade Geral, que requer uma relação
comum da coletividade, excluindo a divisão do trabalho, já que propõe entre os homens que pressuponha que,
uma igualdade econômica que impede a existência de ricos e pobres, bem
como a possibilidade de uma relação que implique a compra e a venda de enquanto se ocupe e se preocupe consigo
mão de obra, isto é, a negociação do trabalho.
19
“Se sobrassem aos particulares alguns direitos dos quais pudessem
mesmo, não exclua os demais e, enquan-
usufruir sem a permissão do soberano, a vontade geral deveria inclinar-se to pense nestes, tendo-os como alvo de
diante das vontades particulares ou, ao menos, medir-se com elas; ela
deixaria de lhes ser superior e de lhes impor sua lei. Deixar-se-ia, assim, cuidado, pense simultaneamente em si,
subsistir a oposição das vontades particulares que se propunha precisa-
mente suprimir” (DERATHÉ, 2009, p. 339).
impõe-se uma transformação na natu-

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 9 - 23


16 Luiz Carlos Mariano da Rosa

reza humana. Essa necessidade ocorre cimento do poder de coação do Estado


na medida em que a Vontade Geral su- concernente à positividade que encerra
põe a unanimidade, concernente à vida a vontade individual21.
pública e ao seu fundamento, acerca da Nessa perspectiva, se se caracte-
adoção de um princípio de justiça políti- riza em sua constitutividade pela corre-
ca que somente pode guardar raízes nas lação de forças antagônicas, o homem
fronteiras constitutivas dos indivíduos em sua concreticidade histórico-cul-
em sua concreticidade histórico-cultu- tural, econômico-social e política não
ral (formação econômico-social), que é carrega senão diversos interesses que,
aquela que, no que tange à sua realidade, guardando correspondência com as suas
se lhes determina objetivamente, tendo necessidades, sejam elas verdadeiras ou
em vista a lógica da racionalidade que a falsas, convergem para uma articulação
preside, condicionando a interiorização que, envolvendo o público e o privado,
dos valores, das práticas, das condutas, o comum e o individual, mantém-se sob
dos comportamentos, das necessidades e o horizonte ético. Tal articulação impli-
dos objetivos que carrega20. ca a construção do interesse geral que,
Se a Vontade Geral emerge como embora se sobrepondo aos interesses
resultado de um consenso que implica particulares, não advém por exclusão
a incapacidade de resistência diante da destes nem tampouco se constitui como
realidade que assinala a possibilida- o resultado de um mero somatório deles,
de de sua supressão, convergindo para mas emerge através do exercício daque-
uma determinação que se circunscreve la liberdade que no âmbito da coletivi-
às fronteiras da negatividade, cujo di- dade assume a condição de um processo
reito se detém no horizonte da “sobre- no qual cada um e todos conjuntamente
vivência”, transpondo o caráter abstrato devem participar, não se lhes escapando
da sua condição elementar, o que se im- a possibilidade da sua efetivação que,
põe é a necessidade da instauração de no caso em questão, confere preemi-
um momento positivo. Cabe, a tal mo- nência ao todo social e àquela espécie
mento, conduzir a razão da passividade de “razão geral” que o governa22.
(teórica) à atividade (prática), perfazen- À Vontade Geral impõe-se a con-
do uma lógica que demanda a conside- dição de “soberano” que, atribuída ao
ração dos indivíduos na sua “existência povo através do pacto social, implica o
absoluta”, detentores de necessidades ato pelo qual o povo se faz povo, con-
próprias em virtude da sua desigualda- vergindo para a constituição de um cor-
de natural ou física. Essa desigualdade po coletivo e moral que emerge como a
sublinha a vontade particular e a sua ex- única fonte legítima do poder e seu úni-
pressão, tornando-se, em certo sentido e co detentor, perfazendo uma construção
grau, incompatível a “vontade de todos” 21
“Cada indivíduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade
e a “Vontade Geral”, constituindo-se o particular, contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão.
Seu interesse particular pode ser muito diferente do interesse comum. Sua
“dever” de obedecer a um compromis- existência, absoluta e naturalmente independente, pode levá-lo a considerar

so que, no que tange à vontade coletiva, o que deve à causa comum como uma contribuição gratuita, cuja perda
prejudicará menos aos outros, do que será oneroso o cumprimento a si pró-
sobrepõe-se às vontades individuais no prio. Considerando a pessoa moral que constitui o Estado como um ente de
razão, porquanto não é um homem, ele desfrutará dos direitos do cidadão
sentido de alcançarem a intersecção que sem querer desempenhar os deveres de súdito – injustiça cujo progresso

a sua emergência supõe como produto determinaria a ruína do corpo político” (ROUSSEAU, 1999b, p. 75).
22
“Ora, o povo como corpo, ‘o soberano’, não poderia querer senão o
real dos valores, das necessidades e dos interesse geral, não poderia ter senão uma vontade geral. Enquanto cada
um dos membros, sendo simultaneamente, em consequência do contrato,
objetivos da coletividade, além de con- homem individual e homem social, pode ter duas espécies de vontade.

ceder à referida “obrigação” o reconhe- Como homem individual, é tentado a perseguir, de acordo com o instinto
natural, egoísta, o seu interesse particular. Mas o homem social que nele
existe, o cidadão, procura e quer o interesse geral: trata-se de uma busca
20
“A fim de que um povo nascente possa compreender as sãs máximas toda moral, feita no ‘silêncio das paixões’. A liberdade – a liberdade natural
da política, e seguir as regras fundamentais da razão de Estado, seria transformada, desnaturada – é, precisamente, a faculdade que possui cada
necessário que o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social – um de fazer predominar, sobre a sua vontade ‘particular’, a sua vontade
que deve ser a obra da instituição – presidisse à própria instituição, e que ‘geral’, que apaga ‘o amor de si mesmo’ em proveito do ‘amor do grupo’
os homens fossem antes das leis o que deveriam torna-se depois delas” (B. de Jouvenel). Assim, obedecer ao soberano, ao povo em conjunto, é
(ROUSSEAU, 1999b, p. 112). verdadeiramente ser livre” (CHEVALLIER, 1999, p. 167, grifos do autor).

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A VONTADE GERAL COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA 17
SOBERANIA POPULAR EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

em cuja estrutura cada membro se torna Irredutível à simples concordân-


simultaneamente cidadão e súdito. Isso cia envolvendo as vontades particulares
acontece na medida em que, se cabe de caráter numérico (maioria) ou impli-
obedecer às leis, advindas dos atos ge- cando uma mera coincidência (opinião),
rais desenvolvidos pelo “soberano”, o a Vontade Geral, escapando à condição
seu pertencimento a este por meio da “mítica” ou “metafísica” atribuída pela
sua participação na atividade que produz complexidade que carrega, caracteri-
tais leis assinala que a referida obrigação za-se como uma noção essencial que se
guarda correspondência com o integran- impõe à realidade coletiva, segundo a
te do corpo político e não com uma esfe- leitura rousseauniana. Essa leitura a in-
ra de poder que lhe escape e com a qual terpreta como a tradução que abrange o
mantenha uma relação indireta. que existe de comum nas vontades par-
Nessa perspectiva, a Vontade Ge- ticulares, emergindo como uma espécie
ral consiste no resultado do processo de de substrato coletivo das consciências24,
objetivação dos valores, das necessidades constituindo o seu objeto o interesse co-
e dos objetivos que emergem da relação mum, que consiste em algo que pertence
envolvendo as estruturas que perfazem a todos e a cada um enquanto membros
a constituição da ordem social, guardan- do corpo coletivo e neste sentido so-
do correspondência com um princípio mente, tendo em vista que se sobrepõe
de integração dinâmico-dialético. Esse à acepção que o circunscreve a uma con-
princípio implica as vontades individuais fluência dos interesses particulares e à
dos membros do corpo coletivo e moral preeminência da maioria através da con-
para o qual converge o pacto que atribui cordância dos seus interesses privados.
ao povo tal condição e que, longe de ani- Longe de se caracterizar como
quilar as partes em função do todo, supõe uma construção que emerge das fron-
uma unidade orgânica que encerra o equi- teiras dos interesses particulares, guar-
líbrio instável das forças antagônicas coe- dando-os, de alguma forma, em sua
xistentes em seu arcabouço. constitutividade, que não se impõe se-
A Vontade Geral, pois, não se não como resultante de um processo de
impõe como um produto de ordem téc- agregação25, o interesse comum carrega
nica, engendrado pela burocracia esta- uma noção que, segundo a leitura rous-
tal. Aliás, a despeito da possibilidade seauniana, converge para a relação que
de configurar a “vontade da maioria”, envolve o geral e o particular, dialo-
a Vontade Geral, sobrepondo-se ao gando com a ideia de intersecção. Su-
sentido em questão, não se caracteriza põe-se, assim, o pertencimento do inte-
senão como um processo que implica resse comum ao âmbito dos interesses
a participação ininterrupta das cons- particulares, sob a acepção que assinala
ciências individuais no que concerne à a condição de inclusão daquele nestes
construção do Estado e da sua realidade particulares” ou um compromisso que as abrange, a Vontade Geral con-
como uma comunidade cuja existência siste na vontade de todo aquele que guarda a condição de membro do

e razão de ser guardam correspondência soberano, o que implica a suposição de que “os cidadãos tenham uma
vontade comum, o que seria evidentemente impossível se eles estivessem
com valores, práticas, condutas, com- divididos em tudo, se não houvesse também um interesse comum, base
psicológica da associação e que, desse ponto de vista, constitui o laço
portamentos, necessidades e objetivos entre os associados” (DERATHÉ, 2009, p. 343).

que, não escapando às concepções teó- Alcança relevância a concepção que atribui à Vontade Geral a condição
24

que, no tocante ao indivíduo em seu aspecto jurídico e à sua essência


ricas e ideológicas e às suas categorias abstrata e extratemporal, implica uma “encarnação”, visto que se mantém
em estado de imanência em face da consciência, conforme a perspectiva
essenciais, convergem para expressar o de que, baseada no pensamento de Gurvitch, a leitura de Derathé sublinha

interesse comum. Tal interesse é deter- ao analisar a analogia entre a Vontade Geral e a consciência que se impõe
à construção rousseauniana (DERATHÉ, 2009).
minado, portanto, pelas condições obje- 25
A agregação dispensa, pois, a eticidade que rege o vínculo que deter-
mina a associação, já que contempla estruturas superficiais de contato,
tivas da vida histórico-cultural, econô- baseadas em necessidades e objetivos de caráter imediato, convergindo

mico-social e política23. para as fronteiras de um utilitarismo incapaz de produzir a profundida-


de que requer uma construção que implica valores, práticas, condutas e
comportamentos que possibilitem a criação de condições objetivas para
23
Sobrepondo-se à concepção que envolve um “composto de vontades a emergência do interesse comum e da manifestação da Vontade Geral.

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18 Luiz Carlos Mariano da Rosa

últimos, na medida em que se constitui da vontade coletiva, isto é, a transição do


daquilo que é comum aos diversos in- momento negativo para as “existências
teresses. Isso justificaria a identificação absolutas” dos indivíduos na sua concre-
da Vontade Geral como a soma das di- ticidade histórica (o momento positivo),
ferenças, que se contrapõe à vontade de demandando a construção de regras uni-
todos (maioria) e ao sentido que carrega versais que se sobreponham ao condicio-
e que remete ao horizonte da aglome- namento das carências dos homens no
ração, circunscrevendo-se a uma for- momento lógico da sua elaboração.
mação que se limita à reunião de par-
tes homogêneas (ou à reunião de partes A lei em seu sentido puro e rigoroso
que, pela sua correspondência, tendem não é um fio que se junta de maneira
a adquirir tal conformação)26. puramente exterior às vontades indivi-
Se a vontade de todos (maioria) duais impedindo que se separem; ela é,
ao contrário, o seu princípio constitu-
se reduz ao exercício que envolve todos
tivo; é o que as fundamenta e justifica
sob uma acepção que se circunscreve a espiritualmente. Ela pretende dominar
uma simples justaposição de indivíduos os cidadãos à medida que, em cada ato
atomizados, concernente à constituição individual, ao mesmo tempo os torna
da Vontade Geral, o que cabe, pois, é cidadãos e os educa para serem cida-
a participação dos “singulares como dãos (CASSIRER, 1999, p. 63).
todos” no poder legislativo, segundo
a leitura de Marx. Trata-se, assim, da Longe de configurar um proces-
participação de todos no sentido que so que envolva, em suma, a absorção
implica a “soma das diferenças” em um do homem enquanto indivíduo concre-
processo que, não deixando de guardar to pela coletividade, o que implicaria o
correspondência com os interesses par- aniquilamento das suas vontades e dos
ticulares, desenvolve-se para além do seus interesses particulares, o que se
seu âmbito (MARX, 2010). impõe à Vontade Geral, no tocante à sua
construção, é uma tensão permanente
4 Da Vontade Geral como um proces- entre o privado e o público. Essa tensão
so que envolve a elaboração e o exer- converge para uma totalidade orgânica
cício das decisões coletivas e unitária que encerra duas condições
que se contrapõem uma à outra e guar-
Resultante do processo de desen- dam complementariedade – ser e dever
volvimento da natureza, a Vontade Ge- ser –, pressupondo uma relação dialéti-
ral, contudo, demanda uma determinação ca em sua formação27.
positiva que, através da forma da lei, não Irredutível às vontades particula-
guarda correspondência senão com uma res dos homens e aos seus atos e interes-
convenção, implicando, no que tange às ses, a Vontade Geral não se dispõe senão
vontades particulares, um acordo para o como resultante do ato pelo qual um
estabelecimento de um sistema de direitos povo assume tal condição, constituindo
e deveres, isto é, uma legislação, conver- um corpo coletivo e moral que converge
gindo para possibilitar que os indivíduos para as fronteiras que encerram o inte-
alcancem o consenso na regulamentação resse comum. Esse interesse comum ad-
da sociedade. É nesse sentido que se tor- vém da vontade que se caracteriza como
na necessária a criação de mecanismos real e verdadeira no que concerne às
e princípios que viabilizem a articulação necessidades coletivas, carregando uma
substancialidade que emerge da própria
26
“Portanto, só quando assume um certo ‘caráter’ específico é que cada
indivíduo passa a incluir um membro do corpo soberano – o qual não é 27
Torna-se relevante sublinhar “que não se trata, para ele [Rousseau], de
mera agregação de indivíduos em suas particularidades. Ao ser membro exigir que o indivíduo se sacrifique à coletividade, mas de levá-lo a com-
do corpo soberano, cada indivíduo deve considerar somente o interesse preender que, dadas as condições da vida em sociedade e o 'jogo de toda
comum de que compartilha com outros indivíduos iguais a ele; deve con- a máquina' política, o interesse de cada cidadão está ligado ao interesse
siderar-se, e julgar e decidir, somente como um ‘componente do povo’” de todos os outros, e que, consagrando-se ao bem público, cada um só age
(DENT, 1996, p. 90, grifos meus). finalmente para seu próprio bem” (DERATHÉ, 2009, p. 349).

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A VONTADE GERAL COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA 19
SOBERANIA POPULAR EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

“essência” do corpo político28, corporifi- relação com o bem comum, em outro,


cado pela soberania popular e pelo seu subsequentemente, assume a condição
exercício, que implica os atos gerais e a de resultado do processo, do qual não
sua expressão, as leis. emerge senão como a sua declaração
Se a Vontade Geral emerge das (Vontade Geral)30. Esta é a expressão
fronteiras das vontades particulares, nem do interesse comum, guardando as leis,
por essa razão destas guarda dependên- que corporificam os atos gerais, a pos-
cia, não perfazendo necessariamente sibilidade de o indivíduo alcançar no
uma coincidência envolvendo aquelas estado social uma condição capaz de
senão casualmente, embora mantendo correlacionar liberdade, “moralidade” e
correspondência com o acordo básico “virtude”, escapando à dependência dos
que se lhe impõe. A Vontade Geral con- homens e, consequentemente, ao cará-
verge, assim, para justificar a relação ter arbitrário de suas vontades e seus
que implica a autoridade e o governo e interesses particulares.
a vida em comum (coletiva) através de À Vontade Geral, sob a acepção
uma perspectiva que seja capaz de esta- que envolve uma emanação do sobera-
belecer a conciliação imprescindível en- no, impõe-se uma tendência que neces-
tre a liberdade e a igualdade na realidade sariamente implica o interesse comum,
concreta dos membros da ordem social e convergindo para as fronteiras que en-
política, ambas (a liberdade e a igualda- cerram o princípio de que não se pode
de) permanecendo imunes à formalidade desejar senão sub specie boni. Tal prin-
que as invalida, institucionalizando a de- cípio atribui à Vontade Geral a condição
sigualdade e a injustiça. de infalibilidade, embora o sentido que
À pluralidade envolvendo os in- carrega como a própria decisão coletiva
teresses particulares impõe-se a possi- não permita essa caracterização já que
bilidade de intersecção, de cuja articu- enquanto tal depende de um juízo cuja
lação depende a construção da Vontade retidão guarda correspondência com a
Geral, pois o que emerge é o caráter possibilidade do conhecimento da Von-
intrínseco que implica a relação que tade Geral como padrão ou regra.
abrange Vontade Geral e interesse co- Guardando precedência em rela-
mum (ou bem comum). A Vontade Ge- ção à decisão, a deliberação consiste no
ral converge, desse modo, para uma ma- momento de formação da vontade, que
nifestação que demanda a participação converge para um horizonte que encerra
de todos os membros do corpo coletivo várias perspectivas no âmbito das quais
e moral, tendo em vista que é a igualda- as preferências pessoais se movimen-
de que tende a diferenciá-la da vontade tam. A essa noção se sobrepõe a leitura
da maioria, atribuindo-lhe a conotação rousseauniana, que se detém apenas na
que encerra a ideia de soberania e a sua última etapa do processo, subestimando
indivisibilidade e inalienabilidade29. -o enquanto possibilidade de revelação
Se a Vontade Geral consiste, em da Vontade Geral, tendo em vista a con-
um momento, em uma espécie de pa- cepção que caracteriza a sua emergên-
drão de orientação no que concerne a cia como natural, subjacente às cons-
uma determinada proposição e à sua ciências dos membros do soberano31.
28
“O corpo político não é assim apenas um sistema de relações jurídicas 30
O que se impõe à Vontade Geral não é senão a correlação envolvendo
entre os indivíduos: este sistema é apenas a sua ossatura. Mais do que os dois sentidos em questão, conforme expõe o estudo de Reis (2010),
isto, trata-se de uma realidade essencialmente de ordem afetiva” (FOR- cuja perspectiva traz como base o seguinte texto: “Quando se propõe uma
TES, 1976, p. 89). lei na assembléia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se
29
“Na realidade, a soberania, tal como concebe Rousseau, não é a ‘for- aprovam ou rejeitam a proposta, mas se estão ou não de acordo com a
ça pública’, ela é somente a vontade que dirige o emprego dessa força. vontade geral que é a deles; cada um, dando o seu sufrágio, dá com isso
Segundo o Contrato social, ‘a soberania é apenas o exercício da vontade a sua opinião, e do cálculo dos votos se conclui a declaração da vontade
geral’. Segundo e Emílio, ‘a essência da soberania consiste na vontade geral” (ROUSSEAU, 1999b, p. 205).
geral’. Essas fórmulas não deixam subsistir nenhum equívoco sobre o 31
Alcança relevância, nessa perspectiva, a observação que emerge do es-
verdadeiro pensamento do autor. Por sua natureza, a soberania é única tudo de Vita (1991, p. 220), o qual, baseado na leitura de Bernard Manin,
e essencialmente vontade. Se a soberania é indivisível e inalienável, é sublinha a “concepção limitada de deliberação” que se impõe à cons-
porque a vontade não se transmite e não se divide” (DERATHÉ, 2009, trução de Rousseau no que tange às suas restrições à discussão pública,
p. 426, grifos do autor). afirmando que, se “em seu sentido mais forte, deliberação diz respeito ao

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20 Luiz Carlos Mariano da Rosa

Nessa perspectiva, a Vontade Ge- noção e o conceito que abrange a cau-


ral emerge como um processo que impli- sa pública, que pode contê-la, mas que
ca a pressuposição da existência do inte- se lhe sobrepõe, não se caracterizando,
resse comum na constituição identitária pois, como sinônimo.
do cidadão. A tal condição, atribuída Se a necessidade da construção de
pela situação de membro do corpo cole- um grau de igualdade substantiva como
tivo e moral para o qual o pacto social condição capaz de assegurar a partici-
converge, impõe-se a sua possibilidade pação política autônoma de todos os ci-
de emergência, pois envolve a supera- dadãos32 é o pressuposto da instauração
ção da sua vontade particular em uma da Vontade Geral, a ocupação exclusiva
relação que, tendo como fundamento o relacionada aos negócios e interesses
indivíduo e o povo enquanto tal simul- públicos consiste no princípio racional
taneamente, não guarda correspondência de moralidade política que se lhe cons-
senão com o movimento dialético. titui como tal. Esse princípio perfaz,
no que tange à infinidade de vontades
A primeira e mais importante con- particulares, o que há de comum entre
sequência decorrente dos princípios estas e o que perpassa todas em um mo-
até aqui estabelecidos é que só a von- vimento que implica transcendência,
tade geral pode dirigir as forças do tendo em vista que delas emerge no sen-
Estado de acordo com a finalidade de
tido de realizar o bem comum.
sua instituição, que é o bem comum,
porque, se a oposição dos interesses Nessa perspectiva, o que cabe
particulares tornou necessário o es- à Vontade Geral é a possibilidade de
tabelecimento das sociedades, foi superação da ruptura entre o Estado e
o acordo desses mesmos interesses a sociedade civil33, que representam,
que o possibilitou. O que existe de respectivamente, o Estado político e o
comum nesses vários interesses for- Estado não político, na medida em que
ma o liame social e, se não houvesse impede que a Constituição, que tende a
um ponto em que todos os interesses corporificar a Vontade Geral através das
concordassem, nenhuma sociedade leis para as quais converge a sua mani-
poderia existir. Ora, somente com festação nas assembleias, interponha-se
base nesse interesse comum é que a
entre o povo (o “todo”, o poder consti-
sociedade deve ser governada (ROU-
SSEAU, 1999b, p. 85, grifos meus). tuinte) e a sua própria “essência”. Essa
“essência” é suposta em sua existência
Nessa perspectiva, o que se im- que, como tal, assegura a preeminência
põe é a relação envolvendo o interesse do interesse comum em face dos inte-
comum e a formação econômico-social, resses particulares que se lhe opõem, o
já que, se a oposição dos interesses par- que implica a sobreposição da alienação
ticulares converge para a necessidade política, que não envolve senão a inver-
quanto à instituição da ordem social, são das posições abrangendo o povo
o interesse comum não emerge senão (“Estado real”) e a Constituição (Esta-
através da sua intersecção. Tal intersec- do político), tendo em vista que aquele,
ção possibilita a união social e confere 32
Consistindo na apropriação do patrimônio socialmente construído tan-
to quanto na atualização das potencialidades de realização humana dis-
ao corpo coletivo e moral ora constituí- ponibilizadas em cada contexto historicamente determinado, a referida
do uma tendência no que concerne ao perspectiva remete ao conceito de cidadania. Esse conceito guarda raízes
nas fronteiras que encerram a ideia de soberania popular, implicando a
seu governo que guarda raízes nas for- emergência efetiva das condições sociais e institucionais capazes de pos-
sibilitar ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do
ças determinantes do sistema, o que im- governo e, consequentemente, no controle da vida social, convergindo o
plica uma diferenciação entre a referida seu caráter “pleno” para um processo que envolve o exercício dos direi-
tos nas esferas civil, política e social, segundo o contributo do sociólogo
momento que precede a decisão e durante o qual o indivíduo se interroga britânico T. H. Marshall.
sobre as diferentes alternativas e sobre suas próprias preferências”, o que 33
“Até agora, a humanidade foi bem mais possuída pelo Estado do que
implica, pois, o “momento da formação da vontade”, o conceito rous- lhe deu forma livremente e manifestou nele a ordem adequada a si mes-
seauniano não se circunscreve senão às fronteiras da decisão, às quais se ma. A necessidade impeliu-a ao Estado mantendo-a presa a ele - bem an-
mantém reduzida a sua concepção, escapando-lhe consequentemente “o tes que ela pudesse entender interiormente e compreender a necessidade
processo de formação da vontade – individual ou coletiva”. dele” (CASSIRER, 1999, p. 63).

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A VONTADE GERAL COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA 21
SOBERANIA POPULAR EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

destituído do seu conteúdo genérico, blemática convergindo para a diversida-


perde seu estatuto fundante, tornando- de de valores e para a pluralidade de inte-
se refém deste último, sua própria cria- resses da sociedade civil. Tal liberalismo
ção (MARX, 2010). encerra em seu âmago uma liberdade
puramente “negativa”, de forma que o
5 Considerações finais sistema político guarda, sob a acepção
de “mercado político”, a condição que
Se a doutrina do direito natural demanda a agregação e o processamento
detém a possibilidade de se sobrepor ao das preferências dos cidadãos36 que, uma
arcabouço dos direitos tradicionais da vez constituídas na esfera social (no ex-
nobreza (classe dominante), a defesa da terior daquele, no caso, à sua margem),
representatividade, que traz como fun- permanecem dispostas, no que tange à
damento o consenso, contrapõe-se ao boa vida, à sociedade ideal e ao bem-es-
exercício do poder como privilégio de tar, com a devida neutralidade37.
classe, assumindo o Estado, sob a pers- Se o consensus consiste em uma
pectiva contratualista34, a sua conserva- realidade para a qual tende a constru-
ção e a sua propriedade, tendo em vista ção da Vontade Geral, não como a sua
a concepção individualista que o perfaz, condição originária, mas como um fe-
instaurando um Estado cuja existência nômeno que se impõe mais a posteriori
se mantém, dessa forma, reduzida à do que a priori, não perfaz senão um
questão que implica a qualidade posses- tipo de “solidariedade” que se sobrepõe
siva ora atribuída ao homem, que tem o à conformidade das consciências a um
instinto de posse e o desejo de acumula- conteúdo comum. Este tipo de “solida-
ção como fundamentos. riedade” alcança, em um determinado
Sobrepondo-se ao caráter indivi- contexto histórico-cultural, as frontei-
dualista atribuído pela perspectiva que ras da universalidade, convergindo para
encerra o Estado como resultado de um uma complementariedade que emerge
contrato envolvendo as vontades parti- da necessidade de expressão da ordem
culares, o que se impõe à leitura rous- social e, antes, da conservação dos in-
seauniana é a Vontade Geral. Para esta divíduos enquanto tais no âmbito da co-
converge o ato de associação em ques- letividade e da relação que esta requer
tão, base da unidade do corpo coletivo que os mesmos mantenham entre si38.
que, emergindo através de um “eu” co- Sobrepondo-se à igualdade for-
mum, tende às fronteiras do interesse mal dos cidadãos, que guarda raízes nas
comum, que escapa ao arcabouço da fronteiras da naturalização dos indiví-
vontade de todos e expressa a transcen- duos imposta pela perspectiva liberal, o
dência da vontade coletiva em relação às que implica uma concepção de caráter
vontades individuais que, sob a acepção abstrato, tornando-os passíveis de fusão,
de um mero somatório, detêm a vontade uma vez que os relega à condição de uma
da maioria e o seu interesse privado35. 36
Contrapondo-se à Montesquieu, convém salientar, nessa perspectiva,

A questão que envolve o bem a observação rousseauniana, exemplificada pelo povo inglês, acerca do
referido procedimento, incapaz de expressar a vontade popular: “O povo
comum e a racionalidade coletiva, que inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos
membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada.
se impõe à teoria política rousseaunia- Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz, mostra

na, longe de escapar ao âmbito do pen- que merece perdê-la” (ROUSSEAU, 1999b, p. 187).
37
Alcança relevância, sob tal leitura, as “regras do jogo”, isto é, os pro-
samento democrático contemporâneo, cedimentos formais, em detrimento da questão dos conteúdos e valores,
relegados ao arbítrio individual, que constitui a essência da “liberdade
caracteriza-o, mantendo-se nele em vi- negativa”, convergindo para uma organização social que se circunscreve

gor, diferentemente do liberalismo, por ao âmbito de um agregado de interesses individuais e vontades particu-
lares, cuja soma não transpõe senão as fronteiras da vontade de todos.
exemplo, que se sobrepõe à referida pro- 38
“Não é pelo simples estatuto jurídico que se regulam as relações entre
os seus membros, que uma república se distingue de simples agregado. O
34
Dessa perspectiva emerge uma feição que guarda correspondência com o ho- que distingue estas duas formas de ordenação social é a natureza do laço
rizonte das relações sociais burguesas, visto que se caracteriza como mercantil pelo qual se prendem uns aos outros os seus membros. Numa pátria, os
(comercial), cumprindo a função de assegurar os interesses dos indivíduos. associados possuem todos uma só vontade e um só interesse, ao passo
35
Nessa perspectiva, convém sublinhar que “a vontade geral não é geral ape- que na outra forma de associação a união que se verifica não vai além da
nas por ser de todos, mas por ser a mesma vontade” (FORTES, 1976, p. 88). simples justaposição dos egoísmos individuais” (FORTES, 1976, p. 90).

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22 Luiz Carlos Mariano da Rosa

categoria universal, a Vontade Geral que Tal leitura escapa, assim, à tendência de
emerge da leitura rousseauniana envolve sobrepor as “democracias reais” às pres-
um processo de construção que demanda crições dos arcabouços teóricos que não
a participação efetiva dos membros da se detêm, no que concerne às estruturas
associação que o contrato social funda. políticas, em como são, mas em como
Assinala, assim, uma relação que encerra poderiam ser, tendo em vista a noção
a horizontalidade que abrange cidadão/ acerca da incapacidade de um argumento
cidadão e sobrepuja a obrigação que traz empírico alcançar primazia em relação a
como base a verticalidade que a forma um argumento prescritivo, refutando-o
cidadão/Estado dispõe. (VITA, 1991).
Longe de se caracterizar como Nessa perspectiva, a Vontade Geral
uma abstração destituída de qualquer emerge como solução para a questão que
valor prático, o que se impõe à Vontade envolve a ruptura entre Estado político e
Geral e ao seu exercício não é senão a Estado não político, cuja condição, desti-
possibilidade de fixação dos fins políti- tuindo o povo de sua essência genérica,
cos que se lhe mantêm inerentes através converge para reduzi-lo no âmbito políti-
de uma correlação que implica as lutas co-estamental, pois o circunscreve de um
da opinião pública, as eleições, as dis- dêmos inteiro às fronteiras que encerram
cussões parlamentares, os plebiscitos, a sociedade civil, forma pela qual integra
dentre outros eventos que convergem o Estado. A ruptura entre Estado político
para a constituição de um sistema dinâ- e Estado não político acarreta, assim, um
mico-dialético que perfaz a unidade da conflito que, atrelado ao conceito de Cons-
ordem sociopolítica e expressa o interes- tituição40, reproduz-se através da relação
se comum, sobrepondo-se à estaticidade que abrange o poder legislativo (“povo
que exclui a participação ativa do povo en miniature”) e o poder governamental,
na construção da referida experiência39. tendo em vista que aquele é privado de
Se, segundo o viés de inspiração sua universalidade, tornando-se “parte”
liberal ou liberal-democrática que deter- do todo, o que implica a transformação da
mina o pensamento político contemporâ- Vontade Geral em um poder particular do
neo, há um caráter circunscrito às fron- Estado, passível de confronto pelo poder
teiras da negatividade, o que se impõe, executivo que, nessa perspectiva, se lhe
de acordo com os teóricos empíricos da sobrepõe (MARX, 2010).
democracia aos ideais participativos da Se a Constituição guarda a sig-
perspectiva rousseauniana é a impossibi- nificação que corresponde ao univer-
lidade de sua aplicação no âmbito dos sis- sal, que se impõe a todo o particular no
temas existentes, convergindo as teorias âmbito de qualquer Estado cujo modus
normativas (que defendem um princípio essendi escapa ao paradigma democrá-
de moralidade política e se contrapõem tico, de acordo com este, ela não se ca-
à concepção que circunscreve o sistema racteriza senão como uma autodetermi-
democrático à esfera que o define como nação do povo, convergindo para uma
um método de escolha de governantes) condição na qual a Vontade Geral não
para uma leitura que, mantendo o pen- aliena o seu poder, perfazendo, por essa
samento de Rousseau como horizonte razão, a “verdadeira democracia” um
paradigmático, traz como base a inter- princípio político, que consiste na supe-
pretação de que “fato não cria direito”. ração da oposição entre Estado político
e sociedade civil (Estado não político).
39
“Não basta que o povo reunido tenha uma vez fixado a constituição
do Estado sancionando um corpo de leis; não basta, ainda, que tenha
estabelecido um Governo perpétuo ou que, de uma vez por todas, tenha 40
“Por certo, Rousseau não nega que o Estado possa dar-se uma constitui-
promovido a eleição dos magistrados; além das assembleias extraordi- ção, mas, para ele, essa constituição só existe pela vontade do soberano,
nárias que os casos imprevistos podem exigir, é preciso que haja outras, o qual pode mudá-la quando lhe apraz. As leis do Estado, inclusive as leis
fixas e periódicas, que nada possa abolir ou adiar, de tal modo que, no fundamentais, são apenas a expressão da vontade geral. Basta, portanto,
dia previsto, o povo se encontre legitimamente convocado pela lei, sem que essa vontade mude para que as leis estabelecidas sejam revogadas e
que para tanto haja necessidade de nenhuma outra convocação formal” substituídas por outras: a autoridade que as dita pode também aboli-las”
(ROUSSEAU, 1999b, p. 181, grifos meus). (DERATHÉ, 2009, p. 483, grifos meus).

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A VONTADE GERAL COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA 23
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