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Wilhem Reich
Tradução da versão em inglês por Maya Hantower, Martins Fontes (2009)
O que vemos aqui é a impressionante sagacidade clínica de Reich como psicanalista.
Geralmente considera‐se o texto de Stern (1938) como o primeiro artigo a abordar as
personalidades borderline, contudo isso é apenas mais um traço do apagamento histórico de
Reich na história do movimento psicanalítico. É Reich, e não Stern, quem nos dá a primeira
descrição deste que foi o tipo clínico mais exaustivamente estudado, nos anos 1980, pelas
diferentes tradições psicanalíticas. O ponto de partida para o estudo é a oposição entre
sintoma e caráter. Ao contrário do sintoma o caráter é algo do qual raramente nos queixamos.
São os outros, os próximos, que costumam ser perturbados pelo caráter de alguém. O caráter
impulsivo nunca aparece sem algum complemento sintomático: fobias, rituais compulsivos,
amnésias histéricas. O caráter é uma espécie de repetição que acompanha uma vida: ser
sistematicamente traído por aquele a quem se protege, ter experiências amorosas que
atravessam as mesmas fases e chegar ao mesmo fim, “uma perpétua recorrência da mesma
coisa”. É neste contexto que Reich propõe distinguir a personalidade impulsiva. Sua
apresentação é curiosamente próxima das melhores descrições clínicas contemporâneas sobre
o assunto, ou seja, uma subjetividade dividida entre um funcionamento esquizóide, sem
alucinação, mas com dissociações intensas das experiências de afeto, prazer e corporeidade,
ao lado de um funcionamento narcísico, sem uma estável formação de ideal, mas com uma
espécie de “superego isolado”. Antecipando os últimos desenvolvimentos de Freud sobre o
mecanismo de renegação (Verleugnung), Reich descreve sujeitos que resolvem a dupla
antinomia entre desejo e interdição, e entre o eu e o outro, por meio de um único ato
impulsivo. Ao contrário da compulsão, que sempre é sentida como uma obrigação intrusiva a
agir, a impulsão é ardorosamente defendida pelo eu como expressão instantânea de sua
vontade. Veja‐se aqui a importância e atualidade do tema: crimes e atos violentos tipicamente
de natureza impulsiva, a impulsividade que se atribui aos usuários de drogas, os transtornos de
atenção e hiperatividade que preocupam educadores. Paradoxo de uma época que parece
louvar o impulso (o instante de felicidade, o ato genuíno), na mesma medida em que o marca
com o sinal do patológico.
Duas séries de problemas devem convergir na formação do caráter impulsivo, a saber,
o superego isolado e a identificação sexual problemática. Quanto à formação do superego
isolado verifica‐se uma espécie de “eclipse do pai” ou dos modos de apresentação da
autoridade: “não é a mesma coisa se um revolucionário social “revolucionar” somente por
causa de uma reação contra seu pai, ou se age a partir de uma imagem paterna
revolucionária, sem relação com as atitudes de seu próprio pai” (26) ou ainda, “o ideal burguês
da dona de casa econômica, limpa, submissa e calma também exige que a mulher mantenha
as crianças quietas” (29). Nos dois casos Reich está questionando a figura paterna como
unificador necessário das posições de autoridade. O superego isola‐se do ideal de eu, e
conseqüentemente do próprio eu, quando deve obedecer a interpelações contraditórias. Na
neurose simples a contradição expressa pela autoridade é resolvida por meio do recalque
alternado das moções de amor e ódio ou de respeito e insubmissão deixando em seu lugar o
fenômeno residual da ambivalência (coexistência de amor e ódio pela mesma pessoa). No caso
do caráter impulsivo a contradição é transformada em duas injunções independentes que são
então seguidas por meio do impulso. Daí que a separação entre os sentimentos sociais (culpa,
vergonha, nojo e angústia) seja substituída pela sensação difusa mas unificada de desprazer.
Aqui Reich parece teorizar uma importante inversão no estatuto do supereu, inversão
apontada também por Lacan anos mais tarde. Se expressão freudiana ‐ em acordo com o
paradigma social da produção ‐ associava o supereu com a interdição, Reich, acentuará a
dimensão prescritiva ou “impulsiva” do supereu, em acordo com o paradigma social do
consumo.