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Intervenção
no Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2007.
O que garante a psicanálise ? Essa é uma pergunta que remete a três níveis
distintos de resposta. Primeiro se pode entender de que se trata da garantia que um
analisante tem que diante da experiência que se lhe anuncia, que esta experiência será
de fato uma psicanálise. Nesse nível somos levados a uma tautologia: a psicanálise é o
tratamento conduzido por um psicanalista e um psicanalista é aquele que conduz curas
analíticas. É neste nível que se coloca a primeira objeção paranóica: mas como o
paciente pode saber que tem diante de si um psicanalista e não um embusteiro ? Como
me disse alguém uma vez: “Fui a um psicanalista e ele me disse: ‘deite-se que eu
gostaria de examinar suas zonas erógenas’ ”. Digo que o argumento é paranóico, mas
poderia também me referir à segregação e ao complexo de impostura que ele acaba por
dissiminar. Ou seja, podemos dizer onde não há psicanalista, mas dificilmente podemos
dizer onde ele está. O desagradável da situação é que o antídoto teórico para esta
dificuldade é também um tanto quanto tautológico: o analista não se autoriza senão de
si mesmo 1 .
Confesso que esta máxima sempre me despertou certo constrangimento. Afinal
como uma experiência de dissolução do eu, de reconhecimento radical do caráter
alienante e de desconhecimento intrínceco do “si mesmo”, poderia se transmitir à partir
do autorizar-se por si mesmo. Uma análise deveria ensinar alguém a, sobretudo,
desconfiar de “si mesmo” e de preferência não extrair a autoridade necessária para seus
atos da força egóica de sua identidade.
Examinando mais de perto a noção de si mesmo, na tradição ocidental, vemos
que ela decorre de três acepções distintas que acabam se combinando: o ipso, o idem e o
proper. O ipso, de onde vem a idéia de ipseidade, refere-se ao caráter único de alguém.
O idem, de onde vem a idéia de identidade refere-se à continuidade ou mesmidade do si
mesmo ao longo do tempo. Finalmente o proper indica, na esfera do si mesmo, a
capacidade de ser próprio, de apropriar-se de seus atos, palavras e desejos. Só consigo
reconhecer alguma plausibilidade na tese do autorizar-se por si mesmo, se o entendemos
como expressão do apropriar-se, do tornar própria a atividade à qual se refere, no caso
1
Lacan, J. Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista de Escola, in Outros Escritos, Jorge
Zahar, Rio de Janeiro, 2003:248.
DUNKER, C.I.L – Riscos Próprios e Riscos Impróprios da Formação Psicanalítica. Intervenção
no Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2007.
“É isto a garantia – isto pelo qual pus na ordem do dia na Escola Freudiana a
transmissão da psicanálise – a garantia de que a psicanálise não se encaixe
irredutivelmente neste autismo a dois.” (Lacan – SXXIV – L Issue ..., a11:77)
Uma Escola, portanto, autoriza o analista por sua formação, entendo isso no
duplo sentido de permitir que ele se aproprie, que ele seja autor, de sua formação e que
isso lhe confere uma certa autoridade. Nada, portanto, menos formativo do que a atitude
dócil e resignada diante do saber, que deve ser compreendido, assimilado e reproduzido,
segundo um certo sistema de hierarquias e distribuição do capital simbólico inerente ao
saber. Formação implica uma certa confrontação da qual se extrai um princípio
genérico: o risco. Quando se escolhe um analista, quando se decide por um supervisor,
DUNKER, C.I.L – Riscos Próprios e Riscos Impróprios da Formação Psicanalítica. Intervenção
no Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2007.
quando nos envolvemos com uma instituição analítica e não outra, quando vamos a um
seminário ou mesmo quando escolhemos ler um livro em vez de outro, em cada um
destes pequenos ou grandes gestos há um risco. O importante é que este risco seja um
risco próprio, que seja reconhecido como tal e julgado segundo os termos que são os da
própria formação. Esse me parece ser o sentido da distinção entre gradus e hierarquia. A
hierarquia baseia-se na lógica do risco social, o gradus na lógica do risco formativo.
Passamos aqui ao terceiro nível de consideração sobre o que garante a
psicanálise. É o nível de sua relação com o campo social. Entendo que não se trata de
fugir a este plano e argumentar toscamente que a psicanálise se faz e se reconhece por si
mesma e entre seus próprios pares. Isso seria trair duramente a idéia de formação. Seria
reduzir a formação à um processo apenas ético e não também político. O risco ético não
é o espelho do risco político, entre eles há uma Banda de Moebius da transferência.
Entre eles há a psicanálise em extensão e a psicanálise e intensão. A palavra autorizar
contém este duplo vínculo: autor e autoridade. Neste caso o risco não se transfere para a
Escola que escolhemos participar:
Ou seja, se dizemos: este risco alguém assume por mim, alguém que dirige ou se
interessa por isso na Escola, uma vez que esta se coloca como asseguradora, estamos no
mesmo caminho da contra-formação, ou seja, “impropriação” de risco.
Quando falo em risco social refiro-me a uma expressão corrente da ideologia de
nossa época, ou seja, a tendência a regular as relações sociais e as orientações político
normativas segundo o princípio da redução de risco. Quanto menos risco melhor. É
neste quadro, bem descrito por autores como Beck e Guiddens, que se pode entender o
problema da regulamentação da psicanálise. Ou seja, seria preciso defender a população
contra o risco representado por uma prática potenciamente perigosa, danosa ou não
legítima. O argumento da segurança dos usuários combina-se assim com as políticas
públicas de distribuição de saúde e tratamento. Importante notar que a percepção da
prevenção ou evitação do risco torna-se um fator determinante da política, é uma
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Lacan, Proposição V2,1967:243
DUNKER, C.I.L – Riscos Próprios e Riscos Impróprios da Formação Psicanalítica. Intervenção
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Freud, S. – A questão da análise leiga (1926), in Obras Completas Sigmund Freud, VXX, Amorrortu,
Buenos Aires, 1988.
DUNKER, C.I.L – Riscos Próprios e Riscos Impróprios da Formação Psicanalítica. Intervenção
no Fórum do Campo Lacaniano, São Paulo, 2007.
Espero que fique claro, desta maneira, que o problema da regulamentação não é
primariamente relativo aos psicanalistas, mas às associações de psicanálise. A
segregação é indireta, quem estiver fora de uma associação ou que não for por ela
legitimado, está fora do sistema de distribuição de recursos sem saúde mental, está
excluído dos concursos para trabalhar em instituições e será lentamente segregado à
condição de um não-formado.
Está aqui a raíz para um tipo de risco que é impróprio. Impróprio no sentido de
que ele transfere para uma instância Outra a administração das tomadas de risco
inerentes à processo formativo. No fundo o argumento final seria o de que o Estado
garante a psicanálise, e os riscos formativos que ela implica são riscos minimizáveis
pelas garantias que ela oferece.
Termino com um apólogo sobre a diferença entre riscos próprios e riscos
impróprios na formação do analista:
A formação do analista e a transmissão da psicanálise tem a estrutura de um
chiste. O que garante que uma piada será de fato uma piada, ou seja, que ela produza
efeitos como o riso ou o humor ? Freud tinha algumas idéias a respeito. É necessário
que aquele que conta e aquele que escuta pertençam “a mesma paróquia”. Mas o fato de
que pertençam á mesma paróquia é condição necessária, mas não suficiente, aliás,
quando estamos demais na mesma paróquia as piadas tendem a ser conhecidas, são
velhas e perdem seu gosto. Logo, as boas piadas, de alguma forma vem de fora. Contar
uma piada é sempre um risco, podemos nos dar mal, prior do que passar desapercebido
é tentar agradar e não conseguir. Há um risco, que tem que vem diretamente com a
forma como quem conta pretende extrair um “fragmento de gozo” que só retorna ao
sujeito na medida em que ele se desfaz e “passa a diante” uma primeira experiência, na
qual ele mesmo foi ouvinte. É quando passamos a piada adiante que realmente nos
apropriamos dela. Mas nada menos propício ao efeito de chiste do que alguém nos
incitando ou obrigando a contar piadas. É certo que neste caso, começamos a deixar de
lado a graça e o tempo próprio do chiste em detrimento de especificações rituais e
tolices do tipo, quem está autorizado a contar uma piada e quem está obrigado a rir dela.
Mas afinal o que garante a piada psicanalítica ?