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Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

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SOBRE A ANTRO- influência que eles receberam de seus


ancestrais teóricos, bem como a reper-
POLOGIA BRASI- cussão em algumas de suas obras. O
LEIRA: UM CON- estilo romanceado, imagístico e inter-
disciplinar do autor pernambucano
TRAPONTO ENTRE versus o membro da Universidade de São
GILBERTO FREYRE Paulo, com posicionamento marxista e
E ROBERTO forte impregnação da Sociologia Clássi-
ca propriamente dita.
CARDOSO DE
OLIVEIRA Palavras-chave: Democracia Racial. Contraste.
Sociologia e antropologia brasileiras.
ON BRAZILIAN AN-
THROPOLOGY: A COUN-
TERPOINT BETWEEN Abstract
This paper aims to draw a contrast betwe-
GILBERTO FREYRE AND en Gilberto Freyre and Roberto Cardoso
ROBERTO CARDOSO DE de Oliveira in theoretical and methodologi-
OLIVEIRA cal environments. To achieve this end, both
were initially contextualized within the
Brazilian Anthropology: the first as a
Cristiany Morais de Queiroz1 representative of National Identity Studies
and Racial Democracy, and the second,
that stood out from his ethnographic studies
Resumo in indigenous communities. So, were identi-
fied the influence they have received from
Este trabalho se propõe a traçar um their theoretical ancestors, as well as the
contraste teórico e metodológico entre impact on some of their works. The roman-
Gilberto Freyre e Roberto Cardoso de ticized Pernambuco’s author, with imagistic
Oliveira. Para tal, ambos foram, inicial- and interdisciplinary style versus the mem-
mente, contextualizados no âmbito da ber of the University of São Paulo, with
Antropologia Brasileira: o primeiro Marxist positioning and strong impregna-
como representante dos Estudos da tion of Classical Sociology itself.
Identidade Nacional e Democracia Keywords: Racial democracy. Contrast. Brazilian
Racial, e o segundo, que se destacou a Sociology and Anthropology.
partir de seus estudos etnográficos em
comunidades indígenas. Identificamos a

1Mestra e doutora em Antropologia


pela Universidade Federal de Per-
nambuco (UFPE). Professora da
Faculdade Damas da Instrução
Cristã (FADIC). Recife. Brasil.
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1. INTRODUÇÃO te, por isso que a Antropolo-


gia Brasileira tem um estilo
Traçando uma rápida híbrido, sem uma base bem
história acerca da Antropolo- definida, sua característica
gia Brasileira, acredita-se que principal. Como bem se posi-
não se pode afirmar que existe ciona Gomes (2008):
uma tradição de pensamento,
com escolas ou correntes que Na verdade, até a década
se reportam os princípios ou de 1940, e em muitos
teorias fundadoras, pelo me- exemplos mais tarde, a
nos no estilo inglês, francês ou Antropologia brasileira
norte-americano, com objetos era exercida por intelec-
tuais de procedências di-
claramente delineados, com versas, alguns médicos,
metodologia, ou, simplesmen- outros advogados e lite-
te, com um estilo próprio. O ratos, com atitudes um
que temos, na verdade, são tanto inusitadas e posici-
antropólogos que, individual- onamentos intelectuais
mente ou em grupos, se orga- ecléticos. Vimos como
nizam por orientações teóricas Curt Nimuendaju, nosso
de diversos matizes e proce- maior etnógrafo, tinha
dências, estudando sobre pro- sido operário em uma
blemas brasileiros, com ante- fábrica alemã. Nina Ro-
cedentes brasileiros, outros drigues e Manoel Bonfim
eram médicos, Euclides
que tratam de problemas aca- da Cunha, engenheiro,
dêmicos, próprios de escolas Sílvio Romero, filósofo e
antropológicas oriundas de advogado, e Capistrano
outros países, de outros con- de Abreu, historiador, só
textos históricos. para citar os mais impor-
As contribuições que tantes do início do sécu-
tivemos não foram propria- lo. (Gomes, 2008, p.
mente antropológicas, e sim se 191).
misturavam por outros cam-
pos do saber científico: da
medicina, do jornalismo, da Outra característica
história, da literatura, da enge- muito importante da Antropo-
nharia e etc. Sendo, exatamen- logia Brasileira e que nos ajuda
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a compreender a formação dos de se tornar um antropó-


nossos antropólogos é o fato logo, Boas tinha estuda-
de que a Antropologia é uma do matemática e física, e
das poucas profissões não se interessado por geo-
regulamentadas no Brasil. grafia (OLIVEN, 2004).
Sendo assim, cursar um pro-
grama de pós-graduação aca-
Sendo assim, a desvan-
bou se tornando o caminho
tagem mais óbvia da não-
“normal” para ser reconhecido
regulamentação da profissão
como antropólogo pelos pares.
de antropólogo no Brasil é a
Neste caso, existem as vanta-
de nossos mestres e doutores
gens e as desvantagens.
em antropologia não gozarem
da proteção legal que outras
Uma das vantagens da profissões têm. O que existem
profissão de antropólogo são pessoas com diferentes
não ser regulamentada é cursos de graduação que ocu-
permitir que os antropó- pam o cargo de antropólogo
logos brasileiros sejam em instituições públicas. Per-
oriundos dos mais varia- cebe-se que no Brasil, a An-
dos cursos de graduação, tropologia foi se desenvolven-
optando pela antropolo- do de maneira muito peculiar,
gia apenas na pós- com um jeito de ser que de
graduação, quando já são alguma maneira parece argu-
um pouco mais experien-
tes e têm mais vivência
mentar as suas principais ca-
acadêmica. No mundo racterísticas.
todo, existe um certo Contudo, não pode-
número de antropólogos, mos negar o trabalho que já
alguns muito importan- realizamos de estudos e pes-
tes, que se formaram ori-
quisas, pois sempre tivemos
ginalmente em outras
profissões. Malinowski,
instituições e personalidades
por exemplo, tinha dou- de grande peso na formulação
torado em física e mate- de orientações gerais de pes-
mática e Leach, gradua- quisa e de tendências temáti-
ção em matemática e ci- cas e teóricas. É neste ponto
ências mecânicas. Antes que passamos a citar alguns
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trechos e comentários a res- tas para ler ou viveram


peito da História das Ciências aqueles episódios num
Sociais no Brasil, a partir de cenário privado. Não se
Mariza Corrêa; é notório que trata mais, em suma de
os comentários a seguir não uma história a ser recu-
perada – quando a me-
fazem justiça à riqueza do mória e o depoimento,
texto desta autora. Falar da quase sempre singulares,
Antropologia Brasileira é para eram fundamentais para
Mariza como entrar em conta- registrar mesmo imper-
to com as etnografias tradici- feitamente a atuação de
onais, visto que o pesquisador um personagem - mas
sempre sabe demais, ao con- sim de uma história
trário da abordagem histórica, compartilhada. (COR-
onde os documentos disponí- RÊA, 2004, p.29).
veis, um dia, se esgotarão e o
trabalho de pesquisa fica con- Nesta obra (A Antro-
cluído, a menos que surjam pologia no Brasil – 1960-
novas evidências, não sendo 1980)2, Mariza Corrêa se pro-
possível o pesquisador saber põe a realizar a trajetória da
mais (CORRÊA, 2004). Já no antropologia a partir do perfil
caso da Antropologia no Bra- de quatro instituições de gran-
sil, de peso acadêmico na forma-
ção dos antropólogos no Bra-
Sabe demais [no caso o sil. Por ordem de nascimento:
pesquisador] por ter se o Programa de Pós-Graduação
envolvido pessoalmente em Antropologia Social do
em parte dessa história, Museu Nacional (1968); a pós-
por conhecer duas ou
três versões de um mes- 2 Os dados que apresento neste
mo evento, por ter sido texto estão bem aquém dos que são
testemunha de episódios relatados por Mariza Corrêa. A
ou ter ouvido histórias priori já vamos nos desculpando ao
que não pode contar, sob leitor, visto ser a obra desta autora
o risco de trair a confian- de grande relevância para as Ciências
ça nele depositada pelos Sociais no Brasil, no sentido de que
possibilita a nós pesquisadores um
que lhe contaram essas
esclarecimento do passado acadêmi-
histórias, lhe deram car- co da Antropologia.
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graduação da USP (1970); o pais desta instituição é o traba-


Programa de Mestrado na lho em equipe com forte con-
Unicamp (1971) e o Programa centração nas pesquisas de
da Universidade de Brasília Etnologia e com Camponeses.
(1972). De acordo com a data
de fundação de cada institui- Ora, essa é a possibilida-
ção, percebe-se que a “comu- de que seria explorada
nidade” de antropólogos re- minuciosamente nas
presentava na altura dos anos pesquisas desenvolvidas
sessenta um grupo de “livre- no Museu: todas as no-
ções utilizadas para des-
atiradores”, visto ser a auto- crever a vida rural no en-
nomia dos pesquisadores bas- saismo até então predo-
tante significativa (CORRÊA, minante seriam discuti-
2004). Só a partir do final da das levando em conta
década de setenta é que pode- uma nova bibliografia
remos falar de uma antropolo- que as colocava num
gia verdadeiramente madura, quadro comparativo e as
com uma ampliação das rela- analisava em todos os
ções acadêmicas e produções seus aspectos. “Rigor”.
intelectuais no Campo das Meeiros, parceiros, pe-
Ciências Sociais. quenos produtores, siti-
antes, o trabalho familiar,
O Programa do Museu seriam categorias ou situ-
Nacional é mais antigo que ações esmiuçadas nos
1968, pois Roberto Cardoso trabalhos produzidos no
de Oliveira lá instalou, oito âmbito da pós-graduação
anos antes (mais precisamente de um modo tão comple-
nos anos de 1960, 1961 e to que, discordâncias
1962), um curso de especiali- teóricas à parte, permi-
zação em Antropologia Social, tem dizer que a área de
com o apoio do Instituto de estudos sobre “campo-
Ciências Sociais da Universi- neses” realizou um traba-
dade do Brasil a convite do lho análogo ao feito em
relação às sociedades in-
Professor Castro Faria e gran- dígenas – criou um novo
de incentivo de Maybury- léxico, desde então parte
Lewis. Segundo Corrêa (2004), de nossa bagagem inte-
uma das características princi-
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lectual. (CORRÊA, 2004, 1973 os cadernos da Série An-


p.47). tropologia, cujo primeiro artigo,
representando esta instituição
Esses dois projetos foi de autoria de Roberto Car-
eram considerados como as doso de Oliveira, “Povos indí-
áreas mais fortes, pois foi atra- genas e mudança sócio-
vés deles que, nos primeiros cultural na Amazônia”. Em
anos, o Museu Nacional se outras palavras, a publicação
organizou e se tornou conhe- de Roberto Cardoso parece ter
cido. Além desta particularida- sido um ponto importante na
de, o Museu seria também apresentação da UnB, visto
singular por ser este o único que tinham quatorze integran-
Programa em que os docentes tes que faziam parte do conse-
se dedicam exclusivamente à lho editorial do primeiro nú-
formação de mestres ou dou- mero e nenhum deles era da
tores e, eles próprios, à pes- UnB, pois representavam pro-
quisa. gramas já desenvolvidos ou
Na Universidade de em vias de desenvolvimento.
Brasília, também com signifi- Sendo assim, as duas
cativa presença de Roberto instituições (Museu Nacional e
Cardoso de Oliveira, em 1972 UnB) parecem ter sido forte-
ele foi convidado a criar um mente associadas, graças ao
programa de pós-graduação papel que Roberto Cardoso de
que permaneceu até 1985. Oliveira desempenhou em
Diferentemente do Museu ambas e ao fato de que vários
Nacional, em Brasília havia antropólogos da UnB estuda-
cursos de graduação a serem ram e trabalharam anterior-
oferecidos, além dos cursos de mente no Museu Nacional.
pós-graduação. A principal Outra característica importan-
marca desta instituição foi a te da UnB neste período foi
criação, e, em 1976, do Anuá- um maior comprometimento
rio Antropológico, sendo um do antropólogo com a comu-
recurso importante para deba- nidade estudada, fazendo com
tes e pesquisas na UnB. que muitos deles conciliassem
Antes da existência as suas atividades acadêmicas e
desse anuário, foi criado em trabalhassem em prol dos gru-
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pos indígenas. Eis uma marca investigações globais en-


importante na antropologia de contra-se a ficção de uma
Roberto Cardoso, que teremos homogeneidade social e
a oportunidade de desenvolver cultural cuja existência
mais adiante ao longo deste ainda está por ser prova-
da. (Corrêa: 1995, 56).
ensaio.
Institucionalmente fa- E como forma
lando, a Antropologia surgiu de argumentar seu pen-
na Universidade de São Paulo samento, Willems exem-
a partir da criação da cadeira plifica a partir do estudo
de Etnografia Brasileira, que das comunidades indíge-
teve como primeiro responsá- nas:
vel Emilio Willems, substituí-
do por Egon Shaden3, em (...) Que se diria se al-
1949; e a cadeira de Língua guém se dedicasse a es-
Tupi-Guarani, em 1935, regida tudar a estratificação so-
cial dos índios brasilei-
por Plínio Ayrosa. ros? A objeção que ime-
A gestão de Willems diatamente se apresen-
foi bastante conturbada, pois tasse teria provavelmente
houve de sua parte uma briga este teor: Os índios bra-
com a Sociologia, no que se sileiros dividem-se em
refere aos estudos relaciona- muitas tribos diferentes,
dos ao caráter global das clas- fato esse por si só sufici-
ses sociais. Em suas próprias ente para afastar a possi-
palavras: bilidade de um estudo
global; necessário será o
É inteiramente absurda a estudo de cada tribo em
pretensão de estudar a separado ou, pelo menos,
estratificação de uma na- de certo número de tri-
ção sem anteriormente bos pertencentes a divi-
investigar a estratificação sões maiores cultural-
das unidades ecológicas e mente definidas. (COR-
culturais em que essa na- RÊA, 1995, p.56-57).
ção se divide. À base das
Tal manifestação teóri-
3 Ele foi o primeiro doutor em An- ca e metodológica faz ressoar
tropologia da USP, em 1945. ecos em Florestan Fernandes,
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que inicialmente se coloca ral e o Papel das Classes Soci-


falando que “trata-se de saber ais na sociedade passam a ser
se a atitude do sociólogo na desenvolvidas pelo aluno de
análise das classes sociais é Florestan, Roberto Cardoso de
diferente ou não da atitude do Oliveira, visto que nesta épo-
antropólogo cultural no estudo ca, o marxismo já penetrava,
do mesmo fenômeno”. mesmo que timidamente, no
(CORRÊA, 1995). espaço acadêmico.
Florestan se coloca a O índio, neste momen-
favor dos estudos sociológicos to da história, surge como um
de estratificação social e argu- ator político. Roberto Cardoso
menta seu posicionamento a de Oliveira observa o começo
partir de dois pontos: 1) a in- de alguns esboços em relação
vestigação sociológica está em às políticas indígenas, com
condições ideais, do ponto de grande possibilidade de, em
vista metodológico, para isolar algum momento, criarem obje-
os fatores sociais da estratifi- tivos e estratégias comuns
cação social e 2) em contraste suscetíveis de estabelecerem
com a Sociologia, falta à An- uma única e globalizadora
tropologia meios de investiga- política indígena. A partir de
ção para apanhar as correla- tais fatos e tensões, do ponto
ções mais profundas entre os de vista político e institucional,
tipos de estratificação social e já nos dar condições de perce-
os conteúdos culturais corres- bermos o posicionamento do
pondentes. Em outras pala- aluno de Florestan Fernandes,
vras, percebe-se uma tensão sua história e a formação de
institucional entre as duas dis- seus pares na sua vida aca-
ciplinas (a antropologia e a dêmica, ou seja, o gosto pela
sociologia) que parece ser fo- etnologia indígena e a tensão
mentada pelo objeto de estudo que se forma nas políticas de
em debate, o índio; que neste preservação às comunidades
caso, as ideias sociológicas indígenas.
demonstram ter mais pontos a A crise pela qual pas-
seu favor. sou a Universidade de São
A tensão que se obser- Paulo foi em parte responsável
va entre a Antropologia Cultu- pela transformação da Univer-
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sidade de Campinas. No senti- cionalismo, acrescentar uma


do de que os docentes, além espécie de dinâmica histórica
de serem altamente qualifica- através da análise dos sujeitos
dos, tivessem também a liber- significou uma junção bastante
dade de pensamento garantida. adequada, visto que a Antro-
Como o grupo era muito pe- pologia tem escrito intermina-
queno, socorreu-se com fre- velmente sobre gente sem
quência a necessidade de pro- história.
fessores visitantes e dos do- Essa parceria de sabe-
centes de outras áreas, fazendo res reforçou a tendência de
com que o programa tivesse uma maior circulação de an-
no seu início não só um diálo- tropólogos entre os programas
go com os colegas de outras de pós-graduação, além de
disciplinas, como também apontar para uma situação
apresentava aos alunos a opor- nova em termos de universi-
tunidade de entrar em contato dade brasileira, que foi a inicia-
com diversas orientações teó- tiva com os debates intelectu-
ricas. No entanto, a marca do ais e as diferentes tendências
programa era indiscutivelmen- na Antropologia.
te a influência da Antropologia Consequentemente
Britânica, trazida pelos seus começa a aumentar, cada vez
fundadores. mais, o número de interlocuto-
Além da ênfase na res, tanto os de origem de
pesquisa empírica, a outra ver- outros programas brasileiros
tente importante desde o iní- como os que vinham de outras
cio da formação dos estudan- universidades estrangeiras.
tes do programa de pós- Mariza Corrêa expõe um qua-
graduação de Campinas era a dro com, pelo menos, uns
relação da Antropologia com a quinze deles. Só para citar os
História. O trabalho de Verena mais famosos: Peter Fry, Alba
Stolcke com as mulheres que Zaluar, Lilia Schwarcz, Heloísa
trabalhavam nas plantações de pontes, Ana Maria Niemeyer,
cana de Campinas foi decisivo Guita Debert, Paula Montero
para a implementação dessa e o próprio Roberto Cardoso
parceria. Ora, se nesta institui- de Oliveira.
ção a pedra de base era o fun-
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A partir desse breve verdadeiro “clássico” que foi


histórico a respeito das insti- muito criticado por tantos,
tuições de peso na constitui- principalmente os de origem
ção, na história, na construção, cartesiana e com obsessivo
na formação e na sistematiza- valor aos ideais positivistas,
ção da Antropologia no Brasil, devido a uma de suas princi-
percebe-se que não há um ou pais características, que é ser
alguns “pais” da Antropologia “tão pouco afeito às normas”
Brasileira, mas houve algumas (CARDOSO, 2003), mas ao
personalidades que realizaram mesmo tempo capaz de fazer
pesquisa, descreveram singula- com que o leitor realize uma
ridades culturais, propuseram verdadeira viagem ao se deixar
perguntas e respostas para embalar e se deliciar com as
encarar os problemas brasilei- minúcias e os detalhes, for-
ros a partir de um ponto de mando assim uma colcha de
vista que se pode chamar de retalhos entre a formação da
antropológico. O principal família patriarcal brasileira, a
tema da Antropologia brasilei- personalidade deste povo e
ra parece ser realmente, o Bra- todo o seu sistema político,
sil. econômico e cultural. Como
Passaremos, então, a bem refere Motta (1989):
partir de agora, a contextuali-
zar os dois autores: Gilberto Quaisquer, porém que
Freyre e Roberto Cardoso, que sejam suas imperfeições,
parecem representar claramen- a obra de Gilberto
te duas direções bem delinea- Freyre não deixa de
das e opostas sobre o “fazer exercer um impacto mui-
to forte sobre a pesquisa
antropologia no Brasil.” científica. O rigoroso
É neste sentido que Popper, em A Lógica da
escolhemos, primeiramente, Pesquisa Científica e nou-
Gilberto Freyre, como sendo tros de seus ensaios, ad-
um representante fiel e bastan- mite perfeitamente que a
te significativo sobre a “demo- ciência deve muito de
cracia” ou a “fraternidade” da suas descobertas a fato-
convivência das raças em nos- res e procedimentos ex-
so país (MOTTA, 1989). Um tra-científicos ou pré-
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científicos, mas capazes entre raça e cultura; a


de conduzir ao teste em- discriminar entre os efei-
pírico de hipóteses. tos de relações puramen-
(MOTTA, 1989, p. 560). tre genéticas e os de in-
fluências sociais, de he-
Com relação à influência rança cultural e de meio.
de Boas, foi fundamental para a Neste critério de dife-
observação e descrição que renciação fundamental
Freyre fez das relações entre o entre raça e cultura as-
índio, o negro e o branco no senta todo o plano deste
Brasil. Nas palavras do antropó- ensaio. (FREYRE, 2005,
logo pernambucano, a respeito p. 31).
de Casa Grande & Senzala (1933):

O professor Franz Boas Sua significativa Obra


é a figura de mestre de teve por finalidade, além de
que me ficou até hoje combater a vergonha de si dos
maior impressão. Co- brasileiros como povo de mes-
nheci-o nos meus pri-
tiços por meio da reafirmação
meiros dias em Colúm-
bia. Creio que nenhum da oposição entre raça e cultu-
estudante russo dos ro- ra; como também objetivou
mânticos do século XIX, estudar a matriz da mestiça-
preocupou-se mais in- gem no espaço brasileiro des-
tensamente pelos desti- de os tempos da colonização
nos da Rússia do que eu portuguesa, analisando “a psi-
pelos do Brasil na fase cologia íntima dos brasileiros”.
em que conheci Boas [...] Como bem refere Nilo Pereira
Foi o estudo de antropo- (1983)4:
logia sob a orientação do
professor Boas que pri- Cheguei mesmo a ter
meiro me revelou o ne- uma frase que, apesar de
gro e o mulato no seu ser minha, me agrada.
justo valor – separados
dos traços de raça os
efeitos do ambiente ou 4 Em “Notas Avulsas” no Jornal do
da experiência cultural. Comércio, no dia 02 de junho de
Aprendi a considerar 1983, publicado no livro de Ruy
João Marques, Casa Grande & Senza-
fundamental a diferença
la, Gilberto Freyre e Medicina.
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Escrevi em jornal que o a função de antropólogo “um


grande mérito sociológi- contrato divino no sentido
co de Casa Grande & clássico”5, que para ele:
Senzala foi, é e será sem-
pre o de ter passado do É assumir a profissão de
preconceito (de raça) ao professor universitário
conceito, de modo que tendo como referência
pudéssemos saber o que um campo de honra bá-
somos verdadeiramente, sico, sentir-se honrado
sem nos envergonhar- de ter essa profissão. Vo-
mos de nada – nem do cê atualiza essa honra
índio nem do negro. A diuturnamente, o famoso
grande Democracia raci- full time, o tempo integral.
al, que somos, tem o seu É mais do que um sim-
alicerce interpretativo no ples contrato de trabalho,
livro de Gilberto Freyre. é um contrato divino, no
(PEREIRA, 1983, p. 24). seu sentido mais clássico.
Desde que você assume
a profissão de professor
Portanto, nos propo- universitário, você carre-
mos de forma ensaística, em ga todos os deveres e vo-
relação a Gilberto Freyre, tra- cê se compraz com esses
tar compreensivamente a dife- deveres. É o conjunto
rença entre raça e cultura e, a desses deveres que cons-
valorização da mestiçagem tituem alguém como pes-
como característica nacional soa. É você procurar en-
que contrasta fortemente com sinar, dialogar, procurar
exercitar a profissão, nas
a longa série de escritos de
suas duas faces, o ensino
autores brasileiros desde 1870 e a pesquisa, a comunica-
(diga-se com especial ênfase a ção e a produção de co-
Raimundo Nina Rodriguez, nhecimentos.
seu opositor intelectual). Para
dialogar com esse vitoriano
dos Trópicos (PALLARES-
BURKE, 2005), escolhemos 5Tal referência fará todo sentido no
Roberto Cardoso de Oliveira momento em que ele falará da sua
(1928-2006), que considerava experiência entre os Terena em
1955.
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O início de sua forma- à situação de contato entre


ção acadêmica começou com índios e brancos. Sua preocu-
a Filosofia e uma influência pação se manteve sempre em
francesa. Posteriormente, ele não perder de vista a socieda-
se interessou em acompanhar de brasileira. Eis que a sua
os cursos de Sociologia de problemática científica girava
Florestan Fernandes e de Ro- em torno do grande paradoxo:
ger Bastide. Em relação ao “Compreender a relação entre
primeiro, o contato foi possi- a sociedade brasileira, definida
bilitado a partir dos textos como fraternal, e esta mesma
sobre os Tupinambás e o se- sociedade que liquidava as
gundo, a partir dos estudos populações indígenas”.
sobre o negro. Terminou a Ao longo deste traba-
universidade em 1953 e, em lho, poderemos perceber uma
janeiro de 1954, já estava no diferenciação crucial entre
Rio de Janeiro trabalhando em ambos os autores (Freyre e
etnologia, convidado por Cardoso de Oliveira). Segundo
Darcy Ribeiro, que havia or- Motta (2000), em Gilberto
ganizado o Museu do Índio e Freyre não há conceitos claros
ativava toda a Antropologia e distintos, em preposições
no Rio. Sua prática indigenista articuladas, com sequência e
como etnólogo veio também consequência de sua muito
através do trabalho no Serviço preponderante intuição sobre
de Proteção ao índio (SPI). as características do povo bra-
Sendo assim, a sua aprendiza- sileiro, ou seja, sua tendência
gem sobre a realidade indígena “imagística”. No caso de Ro-
brasileira se desenvolveu mui- berto Cardoso de Oliveira, há
to mais pela prática do que de maneira muito prevalente o
pela teoria, pois ele tinha aces- paradigma de ciência social
so às informações das popula- que veio a ser enfatizado na
ções indígenas espalhadas pelo Universidade de São Paulo.
território nacional, tendo “a Tal ideia pode ser devidamen-
sensação de ter o Brasil em te considerada a partir da aná-
suas mãos” (como ele próprio lise da influência em que am-
se refere), porque tinha dados bos os autores receberam ao
de todas as regiões, sobretudo
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longo de sua formação aca- 2. A INTERDISCIPLINA-


dêmica. RIDADE E O TOM PER-
Acreditamos que dis- SONALÍSTICO DE GIL-
correndo entre os dois, pode- BERTO FREYRE
remos melhor visualizar a di-
ferença entre as questões de Velhos retratos; receitas
contraste dentro da própria de carurus e guisados;
Antropologia Brasileira: uma as tortas Ruas Direitas;
relacionada à Identidade os esplendores passados;
Nacional e a outra, à questão
a linha negra do leite
indigenista. Não pretendemos coagulando-se em doçu-
nos alongar numa área em que ra;
estamos sendo apenas con- as rezas à luz do azeite;
templativos, mas apenas pen- o sexo na cama escura;
sar sobre tais reflexões: Até
que ponto Roberto Cardoso a casa-grande; a senzala;
de Oliveira e Gilberto Freyre inda os remorsos mais
traz as mesmas inquietações? vivos,
Qual a ênfase dada em um e tudo ressurge e me fala,
noutro? Até que ponto o mar- grande Gilberto, em teus
xismo encontra-se em contra- livros. (ANDRA-
DE,1955)
dição ferrenha à política racial?
Será que podemos mencionar
Para iniciar as nossas
um modelo “freyriano” em
reflexões, começamos apre-
contraste a um modelo “car-
sentando, de maneira geral,
doso oliveiriano”? Tais ques-
uma obra muito significativa
tões pretendem ser reflexivas,
de Gilberto Freyre, publicada
seja através de tentativas con-
em 1943 (dez anos após a
firmatórias, seja através de
revelação de Casa Grande &
outras indagações, ou sim-
Senzala), que se denomina
plesmente não apresentar res-
Problemas Brasileiros de Antropo-
postas, mas como diria Claude
logia6.
Lévi-Strauss, elas são boas
para pensar. 6 Acreditamos que se trate da 2ª
edição, pois há uma publicada em
1938.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 139

Já no prefácio o autor gias – a física e a social; 2) a


denomina sua obra de “huma- relação entre o clima e o pro-
nismo científico”, fazendo cesso de civilização e 3) o le-
menção aos ingleses7 e se refe- gado dos estudos antropológi-
rindo a The Social Fuction of cos se iniciarem já nos colé-
Science (1938) de J. D. Bernal. gios, entre os adolescentes.
Os estudos de antropologia No primeiro capítulo
são tratados de forma bem “A propósito de algumas ten-
relacionada com outras ciên- dências atuais da antropolo-
cias, diríamos que de maneira gia”, o autor se refere à difi-
multidisciplinar, visto que são culdade em separar, de modo
levadas em consideração as absoluto, o adquirido, do na-
relações com a genética, com a tural, o orgânico, do supe-
biologia, com a psicologia, por rorgânico; porém, a separação
um lado e com os conheci- da antropologia em física e
mentos de sociologia e geo- social tem utilidade, apenas,
grafia, por outro. Trata-se de pedagógica. É necessário que
uma análise minuciosa e inde- haja sempre uma correlação de
pendente de preconceitos das um estudo com o outro. O
diferenças genéticas que exis- estudioso deverá estar sempre
tem na sociedade humana – já atento à possível interpenetra-
que esta é a função principal ção ou interdependência da
da ciência moderna. O livro é relação do traço cultural com
dividido, basicamente, em três o traço físico.
partes: 1) a importância dos Através das pesquisas
estudos das duas antropolo- entre as várias classes sociais,
têm-se revelado que tais dife-
renças poderão estar relacio-
7 Segundo Pallares-Burke (2005), nadas à desigualdade de he-
Gilberto Freyre pode ser visto, pois,
como um representante brasileiro da
rança biológica. Neste ponto,
“anglofilia” – que se manifesta atra- o autor faz uma analogia entre
vés do gosto e admiração pela cultu- o trabalho do antropólogo e o
ra inglesa. Como bem referiu Voltai- trabalho do naturalista, pois o
re e todos os que descobriram a primeiro realiza no meio das
Inglaterra e a adotaram como padrão
de referência: “Que se imite o que se culturas vivas trabalho quase
inveja”. tão mecânico quanto o segun-
140 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

do, que coleciona insetos ou autor deixa bem claro a inter-


plantas. Em ambas as realida- dependência entre os termos
des há trabalho de anotação, físico e cultural, neste a preo-
pelas minúcias; no caso do cupação é esclarecer a diferen-
antropólogo, dos vários traços ça entre ambas as antropolo-
e complexos de cultura e no gias, o cuidado para não serem
caso do naturalista, os modos mencionadas indistintamente.
de colher, preparar e conser- O processo cultural é mais
var o alimento. limitado que o processo social.
A condição física do A cultura é própria da nature-
homem está sempre condicio- za humana, com a qual se ini-
nando o seu desenvolvimento ciou e dentro da qual se de-
social. Note-se bem que o senvolveu. Já o processo social
autor utiliza o termo condicio- é anterior à natureza humana,
nando e não determinando. No incluindo outras formas de
final desse capítulo, Gilberto vida ou, antes, de natureza.
Freyre faz uma defesa em Portanto, pode-se dizer que o
relação aos negros, ao menci- orgânico condiciona o social e
onar que os que culpam o o social condiciona o cultural.
negro de não ter levantado Alguns antropologis-
8
civilizações da mesma altura e tas sugerem a seguinte classi-
da mesma expressão cultural ficação de conteúdo no senti-
das asiáticas e das européias, do antropológico: elementos
não devem se esquecer da sua materiais, isto é, instrumentos
situação geográfica desfavorá- de trabalho, casas, vestuário;
vel. Percebe-se uma busca do técnicas ou habilidades especi-
autor em tomar um caminho alizadas, como: escrever, pin-
contrário ao evolucionismo, tar, dançar, tocar; elementos
um cuidado para não ser etno- simbólicos, como: a língua, a
cêntrico; tal tendência se ma- música, o desenho, a pintura,
nifestará ao longo do seu livro o número, o emblema; cren-
e por toda a sua obra. ças, conhecimentos, teorias e
O segundo capítulo é métodos de explicar as coisas;
intitulado Antropologia social e
antropologia cultural. Se no pri- 8 Termo utilizado por Gilberto
meiro capítulo, como vimos o Freyre.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 141

estruturas, instituições, costu- do grupo; quando objeto de


mes; valores sociais, como: direito de propriedade e
honestidade, esperança, leal- objeto de cerimônias místicas;
dade, patriotismo, solidarieda- enfim, quando complexo, inter-
de e numerosos outros. ligado através de uma série ou
Continuando nessa correlação funcional de traços.
mesma linha de raciocínio: de Um exemplo poderia
especificar as diferenças, o ser o significado do galo para a
autor nos chama atenção para cultura balinesa, pois este
uma outra distinção, que se animal só passa a fazer sentido
faz entre complexo de cultura e se for interligado com as ca-
traço. Eis que uma analogia se racterísticas do estilo de vida
apresenta para melhor com- balinês, visto que há uma pro-
preendermos. Os traços de funda identificação psicológica
cultura são como as letras do dos homens balineses com
alfabeto isoladas, sem formar seus galos. Como refere o
palavras ou frases. Eles só próprio Geertz (1989), os ga-
começam a fazer um sentido los eram vistos como pênis sepa-
sociológico quando juntas rados, autofuncionáveis, órgãos
formam uma série, uma corre- genitais ambulantes, com vida pró-
lação, um complexo. Por pria; além de representar a anima-
exemplo, a presença do arroz, lidade desses homens.
do milho, do cachorro ou do Voltando a Gilberto
cavalo em determinada área Freyre, deve-se anotar nos
cultural, na lavoura ou entre traços de cultura uma tendên-
os animais domésticos em um cia, que alguns antropologistas
determinado grupo humano, é comparam à dos elementos
um traço de cultura. Como químicos – para se combina-
traço de cultura sua expressão rem uns com os outros for-
é simples. O arroz só começa- mando, não só complexos de
rá a ter riqueza de expressão cultura, mas os complexos,
cultural quando considerado uns com os outros, formando
na sua série de usos e aplica- cadeias. Com a sua tendência
ções na vida do grupo: cozi- para combinação, os traços de
nhado, pilado, preparado e cultura, depois de se tornarem
guardado para a alimentação complexos de cultura, for-
142 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

mam, às vezes, cadeias ou o a necessidades físicas, econô-


que os antropologistas cha- micas ou técnicas da região
mam complexos de cultura totais, que os incorpora à sua vida ou
que é uma reunião de vários à sua cultura. Por exemplo, o
complexos particulares, for- uso do chapéu alto, da cartola
mando um complexo total, européia ou as peles de inver-
como o da pesca e da caça. no entre os indivíduos dos
Qualquer um desses dois trópicos. Para o autor, há mo-
complexos totais envolve uma tivos psicológicos de imitação,
série de complexos particula- ligados à vaidade, que explica-
res. Como exemplo podemos riam ou esclareceriam a difu-
citar o significado do futebol são antiecológica e antinatura-
para o povo brasileiro, um lista desses traços. Alguns
esporte já tão incorporado a antropólogos que se têm dedi-
nossa personalidade, que a cado ao estudo das sobrevi-
mobilização em torno de uma vências culturais chegam a
copa do mundo é inevitável, comparar tais vestígios de
fazendo parte integrante do patológicos, acontecendo o
caráter e do temperamento mesmo com vestígios de cer-
nacional, em termos econômi- tos órgãos sem função em
cos, políticos, sociais e cultu- determinados animais. Eis um
rais. clássico exemplo: entre nós
Tais esclarecimentos subsiste como caso de sobre-
serviram de base para se fazer vivência cultural que se pode
uma comparação entre trans- chamar de patológico, o carro
culturação e aculturação. Sen- de boi, sobrevivência de uma
do o primeiro superior ao época em que ele era o único
segundo, pois especifica me- meio de transporte possível
lhor a amplitude de seu signi- nos maus e ásperos caminhos
ficado, numa dimensão maior rurais. Há também os casos de
por considerar o complexo de sobrevivência de superstições.
cultura total. O autor menciona que tais
Há, entretanto, casos vestígios culturais poderão
de expansão e sobrevivência estar relacionados a fatores
de traços ou complexos de psicológicos, no caso uma
cultura que não correspondem tendência humana para mudar
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 143

o menos possível, talvez uma científicos e respeitosos serão


resistência pela inovação. nossas pesquisas e mais com-
Principalmente quando se pleta será a nossa análise. Por
trata de um povo que sempre exemplo, quando alguém ge-
foi visto como “superior”; neralizar acerca do africano
imitar quem se admira faz como sendo atrasado em rela-
parte do ser humano, uma ção à agricultura, é lícito o
maneira de se parecer mais, de questionamento: que africano?
chegar mais próximo de um De que área de cultura? Por-
estilo de vida desejado. que essas áreas de cultura são
No terceiro capítulo diversas; e se algumas se ca-
Áreas de Cultura e Outras Áreas, racterizam pela predominância
Gilberto Freyre distinguirá a da pecuária, noutras a elabora-
diferença entre área de cultura, ção cultural vem se fazendo
em relação com outras áreas e baseada sobre o trabalho de
com os complexos de cultura. exploração do metal ou sobre
O critério da Antropologia o trabalho agrícola. Em outras
Social deverá ser sempre palavras, o termo generaliza-
completado pelo da região ção não condiz com a pesqui-
natural e da área ecológica. As sa antropológica. E o etnocen-
diferenciações que não con- trismo está relacionado, muito
templarem ambos os pólos mais, à maneira de olhar para
serão diminuídas em termos determinada cultura do que o
de importância científica, só que se olha, o aspecto cultural
enfatizando, cada vez mais, o em si.
pensamento etnocêntrico. O tema “interligação
Mais uma vez percebe-se a entre os saberes” continuará
preocupação do autor em nos sendo o fio condutor do texto
chamar a atenção, ao realizar- de Gilberto Freyre, pois o
mos uma análise antropológi- próximo capítulo tem por
ca de uma determinada cultu- título Complexidade da Antropo-
ra, o cuidado para que o olhar logia e Complexidade do Brasil
do antropólogo não se limite a como Problema Antropológico. A
uma só área do conhecimento; diferença entre três elementos
quanto mais pudermos relaci- da antropologia: raça, língua e
onar com outros saberes, mais cultura são de fundamental
144 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

importância, visto que quase rebelde a simplificações.


sempre os antropologistas (FREYRE, 2006, p. 62).
pendem para a exaltação ou o
exagero de um desses três Sejam os aspectos or-
elementos como característico gânicos ou os problemas de
do desenvolvimento humano. cultura precisam estar sempre
Ao enaltecer um desses aspec- interligados. Quanto maior a
tos nos limitaremos a explica- interligação mais nos distanci-
ções ou interpretações parci- ará de análises preconceituosas
ais. Como argumenta o pró- e medíocres. Um dos grandes
prio autor: problemas é dos que se cruza
com a debatida questão das
As qualidades de ciência raças “inferiores” e “superio-
da antropologia vêm se
res” e das culturas condicio-
fortalecendo à medida
que os três critérios, em nadas por essa pretendida
vez de se defrontarem superioridade ou inferioridade.
como inimigos ou rivais, Os três critérios (raça, língua e
vêm entrando em coope- cultura) precisam de uma
ração e reunindo os re- atenção especial, um olhar
sultados de suas pesqui- acolhedor e não seletivo. O
sas e dos seus estudos esforço do autor é grandioso
num trabalho de colabo- no que se refere ao treino, à
ração inteligente, sem leitura e análise antropológica;
prejuízo, é claro, das es- trata-se de um ensinamento de
pecializações cada vez
maneira bem didática e escla-
mais necessárias. Já hoje
não é possível, com as
recedora para os que preten-
dificuldades para o lati- dem embarcar na aventura de
fundismo intelectual em ser antropólogo, de ser pes-
qualquer ramo da ciência, quisador, pois há equívocos
ser o estudioso, antropo- que não podem ser cometidos,
logista geral: há-de esco- mesmo que se trate de um
lher uma das três espe- iniciante na experiência da
cializações. Nada, porém, pesquisa social.
de esquecer o estudioso Vai ficando cada vez
de antropologia que a an- mais clara a impressão de es-
tropologia é complexa e
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 145

tarmos diante de um manual, dos antigos sobrados é uma


um livro que tem por preocu- pesquisa que precisa ser feita
pação básica ser educativo, de maneira cuidadosa, tam-
com uma base puramente bém em outras regiões brasi-
pedagógica, visto que nenhum leiras, com a finalidade de se
antropólogo pode ir a campo estabelecer uma diferenciação
sem ter lido. Parece ter sido regional da fisionomia da nos-
este o principal interesse de sa cultura, ou como cita o
Gilberto Freyre. próprio Gilberto Freyre o
Os capítulos seguintes “ritmo da paisagem” – a pai-
seguem o seguinte roteiro: A sagem que é modificada pela
Propósito de Paulistas (onde o expansão cultural, seja harmo-
tema da miscigenação é o as- nizando-se com ela ou sacrifi-
sunto central. Pois o paulista cando-a aos caracteres dos
velho, cuja qualidade psíquica valores transplantados.); Pro-
de bandeirante corresponde à blemas de Relações da Personalida-
condição biológica híbrida – de com o Meio. Neste capítulo, a
branco + ameríndio. O fato é ciência social é reverenciada
que o bandeirante permanece no sentido em que coopera
entre as personalidades regio- com as outras, como por
nais que formam a do brasilei- exemplo, com a Antropologia,
ro total, a personalidade do com a Psicologia e com a Psi-
criador, do renovador, do quiatria. Não se trata de uma
experimentador por excelên- “ciência social”, independente
cia.); Sugestões para o Estudo e imponente em relação às
Histórico-social do Sobrado no Rio demais, mas em condições
Grande do Sul (os sobrados ideais para estudos de coope-
visitados pelo autor no Rio ração intercientífica. Um bom
Grande do Sul nas cidades exemplo citado pelo autor é o
mais antigas estão entre aque- Patterns of Culture – 1935 de
les elementos da paisagem Ruth Benedict, que transcende
cultural brasileira que pouco os aspectos antropológicos e
varia de Norte a Sul, constitu- sociológicos das culturas, pois
indo a unidade ou a uniformi- as peculiaridades psicológicas
dade de nossa cultura, um não são deixadas de lado; A
retrato. O estudo das casas e Propósito da Política Cultural do
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Brasil na América - neste capí- lores de origens várias: ame-


tulo, Freyre apresenta a preo- ríndia, européia, africana e
cupação da Antropologia, que asiática dentro das necessida-
deve ter como características: des e condições do contexto
humanismo, americanismo e brasileiro. Toda reforma tem
brasileirismo; sem deixar de que se iniciar através de um
mencionar o científico. Agir processo de conscientização
de acordo com tais caracterís- da própria pedagogia, que foge
ticas significa se transformar aos parâmetros convencionais,
num verdadeiro intérprete da mas de reforma de ensino que
formação brasileira, visto que se deixe levar pelos estudos de
toda e qualquer classe social é antropologia física, social e
estudada, não apenas o excep- cultural das populações brasi-
cional, o heróico ou o extra- leiras, das áreas americanas.
ordinário, mas percebe-se um Eis as últimas palavras do
interesse pela história social, mestre a esse respeito:
econômica e cultural do Brasil.
Dessa reunião de característi- O exemplo dinamarquês
cas, surge o esboço de uma se impõe também ao
política cultural, autorizada Brasil e aos demais países
pela ciência. E, finalmente, o americanos, cujo sistema
último capítulo Antropologia e de ensino precisa ser re-
formado não por peda-
Reforma de Ensino, que na nossa gogos só de gabinete,
concepção parece ser o argu- mas sobre o conheci-
mento central dessa obra de mento vivo e tanto quan-
Gilberto Freyre; se durante to possível exato da nos-
todo o livro percebeu-se uma sa situação antropológica
espécie de manual para antro- – física social e de cultura
pólogos, a última parte é uma – e com o máximo de
sugestão de como a política aproveitamento dos nos-
educacional do nosso país sos valores tradicionais e
deve proceder, um dos aspec- populares. Inclusive a
tos mais importantes é que poesia do povo, sua mú-
sica, sua arte, seu folclo-
façamos uma cultura original e re. Realizado esse esfor-
nova, a partir de uma combi- ço, teremos dado ponto
nação e harmonização de va-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 147

de apoio firme às preten- sentido de “educar para a pes-


sões de nos desenvol- quisa”. Acreditamos que essa
vermos em cultura sob parece ser a pedra de base nu-
vários aspectos extraeu- ma das principais obras de
ropéia; e não passiva- Gilberto Freyre, que é Casa
mente subeuropéia.
Grande & Senzala, onde tudo
(FREYRE, 2006, p. 208).
demonstra culminar com a
valorização da cultura negra e
Sendo assim, Problemas mesmo o comportamento do
Brasileiros de Antropologia se negro como uma das “bases da
apresenta a partir de três cami- brasilidade” (Cardoso, 2003).
nhos muito importantes: 1) Ao mesmo tempo em
interdisciplinaridade, 2) peda- que se enaltece a brasilidade a
gogia e 3) em nossa opinião partir da plasticidade cultural
essa terceira característica é, da convivência entre opostos,
justamente, o argumento cen- demonstrando ser uma vanta-
tral das duas anteriores, que é gem para o Brasil, mais se dis-
o cuidado para não ser injusto tancia e se repugna a ideia de
em relação ao olhar que se modernização, com a valoriza-
lança para o objeto de pesqui- ção de uma ética doméstica,
sa, no caso a mestiçagem do em que o tempo dos nossos
Brasil. Ora, quanto mais to- avós e bisavós passa a ser lem-
marmos cuidado em sermos brado com nostalgia e saudo-
interdisciplinares, ou seja, ter- sismo.
mos a habilidade para interligar
os saberes (medicina, geogra- Neste sentido, parece
fia, nutrição, psicologia e etc) haver um contraste muito forte
sem nos atermos a uma só entre a tradição e a moderni-
concepção do ser humano, um dade; contraste esse que já
olhar mais amplo será possível, aparece desde Casa Grande &
além de uma postura menos Senzala (1933). A nova Europa
rígida em relação à ciência; impôs um Brasil ainda roman-
sendo toda essa ideia impor- ticamente rural, que não deve
tante transplantada enquanto se negar a tais caprichos, mas
ensinamento pedagógico, no muito pelo contrário realizar
um movimento de se perceber
148 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

a possibilidade de desenvolvi- consideramos alguns livros de


mento nas regiões tropicais. Gilberto Freyre como um
Sendo esta uma ideia essencial manual, um livro bem didático
para a conciliação, que perpas- e repleto de bons exemplos de
sa sua análise a respeito da como se deve constituir a An-
formação nacional. tropologia.
Lembrando que Gil-
Este foi o legado de
berto Freyre foi discípulo de
Gilberto Freyre, além da cons-
Franz Boas, grande líder de
trução de uma antropologia
uma escola de pensamento
interdisciplinar que abarcasse,
que ficou conhecida como
verdadeiramente, o cotidiano
difusionismo ou escola americana,
do povo brasileiro, cotidiano
que iniciou uma reflexão rela-
esse que deverá ser sempre
tivizadora a respeito do con-
complexificado sob todos os
ceito de cultura; tendo como
olhares: o físico, o social e o
uma de suas principais carac-
cultural. Aspectos como modo
terísticas “estudar as culturas
de alimentação, características
humanas nos seus particula-
de personalidade, processos
res”. Tendo sido um bom
econômicos, arquitetura, lín-
aluno “boaziano”, notemos
gua, dentre outros precisa ser
que ao ler alguns livros do
abordado com um olhar de
autor pernambucano, há uma
pesquisador completo, ou seja,
característica muito importan-
uma pessoa que esteja desvin-
te que parece ser comum nas
culada de valores etnocêntri-
suas obras, que é a análise de
cos, que enalteça mais um
pequenos quadros do cotidia-
aspecto que outros, mas que
no, o estudo meticuloso do
seja capaz de relacionar tais
detalhe da prática social; além
vias de maneira precisa em
de uma preocupação de ser
cada contexto. Os problemas
abrangente, sem necessaria-
dentro da Antropologia Brasi-
mente ser superficial. Como
leira se fazem a partir do mo-
mento em que essa proposta é Pallares-Burke (2005, p.265)
ignorada, ou mesmo não é cita sobre o próprio Gilberto:
...Quero saber como as pessoas
levada, totalmente, a sério. É
viviam, o que vestiam e que aparên-
devido a tais condições que
cia tinham.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 149

Neste sentido, não se médica, social, antropológica,


pode deixar de revelar, dentre econômica, racial e familiar.
os seus grandes livros, em Freyre consegue com signifi-
primeiro lugar Casa Grande & cativa maestria passar de um
Senzala. Percebe-se que nesta assunto a outro sem tornar a
obra o autor está passando leitura fria, distante e fatigante
informações muito importan- da nossa realidade. Assuntos
tes, mas também muito am- como: a linguagem do brasilei-
plas e globais sobre a forma- ro, que se misturou – o escra-
ção social e histórica do Brasil, vo preto ao filho do senhor
sem falar no imenso valor branco; a maneira de manifes-
literário. A partir da leitura tarmos nossas emoções, a
desse livro fica muito clara a influência na personalidade
impossibilidade de segregar a das crianças; os casamentos
visão tropicológica da econo- arranjados; a sexualidade; as
mia patriarcal e escravocrata modinhas de engenho; as
do Nordeste brasileiro com formas de se vestir, os méto-
uma íntima vinculação com o dos de cura, as brincadeiras
clima, o meio social e a saúde infantis e etc. Tudo parece
do homem situado. O clássico corroborar com um estilo
de Gilberto Freyre demonstra principal, que é a defesa em
uma grande polivalência, que é favor dos negros, de que as
demonstrada a partir de sua “mesclagens culturais”, na
ambição em dominar um uni- verdade, mais nos favoreceu
verso científico bem abran- do que deteriorou, de como as
gente, que neste caso o foco é características africanas con-
a ciência médica. Toda sua tribuíram para o enriqueci-
fonte de pesquisa foi exausti- mento do povo brasileiro em
vamente bem consultada e diversas perspectivas. Ve-
com toda a seriedade e rigor jamos, por exemplo, em Casa
de um verdadeiro pesquisador, Grande & Senzala como o au-
além do seu modo vivo, pes- tor compara a medicina co-
soal (para não dizer com certa mum em Portugal e as práticas
subjetividade) que teve por africanas:
intuito revelar um Brasil a
partir de várias perspectivas:
150 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

(...) Remédios caseiros, plesmente, da sua fabulosa


comuns em Portugal e intuição (sem deixar de enfati-
que de lá se transmitiram zar enquanto estilo literário e
ao Brasil: chás de perce- como sua marca fundamental).
vejos e de excremento de Foi, acima de tudo, o resulta-
rato para desarranjos in-
do de consultas sérias, de pes-
testinais; moela de ema
para dissolução de cálcu- quisas bibliográficas exaustivas
los biliares; urina de ho- a fontes reconhecidas, não
mem ou de burro, cabe- apenas referentes aos anos
los queimados, pós de imediatamente anteriores à
esterco de cão, pele, os- CG&S, porém a épocas bem
sos e carne de sapo, la- mais remotas até, inclusive
gartixa, caranguejos etc. relatórios especializados e
Uma medicina que pela cartas trocadas por gente que
voz de seus doutores podia e devia falar sobre aque-
mais ortodoxos receita les assuntos, diários de senho-
aos doentes tamanhas
imundícies dificilmente po-
res-de-engenho e de viajantes
de firmar pretensões de supe- de certa cultura, memórias e
rior à arte de curar dos afri- documentos equivalentes; tão
canos e ameríndios. consciente da pluralidade de
(FREYRE, 2006, p.447 – suas fontes intelectuais, Palla-
o grifo é meu). res-Burke (2005, p.39) cita um
comentário do próprio Freyre
É importante salientar em relação aos seus escritos:
que tais informações acerca de entrara leite de muitas vacas; mas...
assuntos médicos e de outras o queijo era de seu fabrico: criação
áreas, como: nosologia, epi- sua. Além de anúncios em
demiologia, higiene, medicina jornais e comentários na im-
preventiva, saúde pública, prensa leiga de várias épocas.
climatologia aplicada, sexolo- Eis um pequeno trecho ilus-
gia, doenças tropicais e infec- trativo:
tuosas, sifiligrafia e venereolo-
gia, por exemplo, foram as- A mortalidade infantil
suntos devidamente pesquisa- vimos que foi enorme
dos. O que ali está descrito, entre as populações indí-
portanto, não foi fruto, sim- genas desde o século
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 151

XVI. Naturalmente de- confirmando, cada vez mais, a


vido ao contato pertur- destreza de suas pesquisas:
bador e disgênico com a
raça conquistadora. Con- Nieuhof salientou a
siderável tornou-se tam- grande mortalidade in-
bém a mortalidade de fantil nos primeiros sé-
crianças entre as famílias culos de colonização: te-
das casas-grandes. Foi ve, porém, o bom senso de
talvez a esfera em que atribuí-la menos ao clima ou
mais dolorosa e dificil- à escrava africana que à ali-
mente se processou a mentação imprópria. E Fer-
adaptação dos europeus nandes Gama quase re-
do meio tropical ameri- pete ao escrever que “as
cano – a da higiene in- mulheres portuguesa a
fantil. Traziam eles da princípio crearam mui
Europa noções rígidas poucos filhos”; que
de resguardo e de agasa- “dois terços morriam
lho. Supersticioso horror pouco depois de nasci-
de banho e do ar. No- dos”. Que já “as filhas
ções que, nocivas à cri- destas mulheres que
ança em clima tempera- chegaram a crear-se, e
do, em clima quente sig- mesmo ellas, accommo-
nificaram muitas vezes a dando-se ao clima e re-
morte. Piso contrastou- geitando o peso dos ves-
as com a higiene infantil tidos, e o uso de abafar a
dos caboclos para con- cabeça dos filhinhos, ba-
cluir pela superioridade nhando-os em água
do método indígena: morna, não se queixaram
conclusão a que antes mais de que o clima fos-
chegara, sem ser médico se destruidor das vidas
nem naturalista, mas dos recém-nascidos.”
simples homem de bom (FREYRE, 2006, p. 448
senso, o francês Jean de – o grifo meu).
Léry. (FREYRE, 2006,
p.448). Em vários momentos
de sua obra monumental (Casa
E continua a citar suas Grande & Senzala), como já
incursões por outros autores, falamos anteriormente, perce-
152 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

be-se a multivocalidade de querido das crianças bra-


saberes do autor pernambuca- sileiras nos séculos
no, tendo sempre como pano XVIII e XIX, por exem-
de fundo uma postura defen- plo. Oferecendo aos
sora da cultura africana, essa meninos larga oportuni-
dade de beliscarem de ri-
vista muito mais como fazen- jo as primas ou os crias
do parte de uma cultura sábia, da casa, não é de admirar
de bom senso e quase que a popularidade de jogo
“contaminada” pelos maus tão besta. (FREYRE,
hábitos herdados da persona- 2006, p.452).
lidade traiçoeira dos coloniza-
dores. Como, por exemplo, Como bem se percebe,
nas próprias brincadeiras in- o beliscão mais forte se direci-
fantis: onava aos mais vulneráveis (os
negros) através de cantigas de
Mesmo no jogo de pião roda, embalando ainda mais o
e no brinquedo de empi- prazer de machucar o outro:
nar papagaio achou jeito
de exprimir-se o sadismo E ia mesmo o beliscão
do menino das casas- em quem fosse atingido
grandes e dos sobrados na roda por “lá vai um
do tempo da escravidão, beliscão”. Beliscão me-
através das práticas, de droso da parte dos crias;
uma aguda crueldade in- doloroso e forte quando
fantil, e ainda hoje cor- dado pelos meninos
rente no Norte, de “las- brancos. Mas o maior
car-se o pião” ou de sofrimento reservava-se
“comer-se o papagaio” ao último a ser atingido
do outro; papagaio pela frase (que lá vai um
alheio é destruído por beliscão...). Este era agar-
meio da lasca, isto é, lâ- rado por todas as crian-
mina de vidro ou caco de ças que batiam com ele
garrafa, oculto nas tiras no chão, cantando com
de pano do rabo. Nos toda força: é de rim-fon-
próprios jogos coloniais fon, é de rim fon-fon, pé de
de sala surpreendem-se pilão, carne-seca com feijão.
tendências sadistas: no (FREYRE, 2006, p. 452).
“jogo do beliscão”, tão
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 153

rem, como a “acodirem


Apesar de tais citações com sua liberalidade” às
estarem muito bem relaciona- festas dos pretos. “Por-
das a um pesquisador sagaz “a tanto não lhe estranhem
etnografia nunca foi o forte de o criarem seus reis, can-
tar e bailar por algumas
Gilberto Freyre” (Motta - horas honestamente em
2005), pois tais relatos se ba- alguns dias do anno, e o
seiam na pesquisa feita por alegrarem-se honesta-
outros autores a respeito do mente à tarde depois de
Brasil. O que parece importar, terem feito pela manhã
fundamentalmente, para suas festas de Nossa Se-
Freyre é a confraternização de nhora do Rosário, de São
duas culturas, a do branco e a Benedicto e do orago da
do negro; relatada de forma capela do engenho [...].
otimista e com especial ênfase (FREYRE, 2006, p.439).
no enaltecimento do negro.
Inclusive, a religião, segundo Há um trabalho de
Freyre, teve um importante Roberto Motta que se chama:
papel no encontro, na mistura “Gilberto Freyre, René Ribei-
colorida e muito bem realçada ro e o Projeto UNESCO”,
entre brancos e negros: neste escrito o autor mostra
que cabe a René Ribeiro no
A religião tornou-se o seu livro Religião e Relações Ra-
ponto de encontro e de ciais realizar uma interpretação
confraternização entre as de nosso sistema de relações
duas culturas, a do se- raciais à luz de uma teoria
nhor e a do negro; e geral da formação do Brasil,
nunca uma intransponí- largamente baseada nos ensai-
vel ou dura barreira. Os os de GF. Segundo Motta, a
próprios padres procla- citação a seguir indica a influ-
mavam a vantagem de ência das ideias, típicas de
concederem-se aos ne-
gros seus folguedos afri-
Gilberto Freyre, sobre um
canos. Um deles, jesuíta, catolicismo festivo. Sendo
escrevendo no século assim, deixemos que o próprio
XVIII, aconselha os se- Ribeiro se manifeste a partir
nhores não só a permiti-
154 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

do trabalho citado (MOTTA, quanto o primeiro percebia o


1999): processo de mistura entre
brancos e negros como uma
O catolicismo que havia de aproximação festiva das duas
vingar entre nós perderia mui- culturas no Brasil, mesmo
to da sua rigidez, permitindo com uma forte pressão moral
a incorporação de elementos e doutrinária da igreja sobre o
das crenças dos índios e ne- comportamento dos escravos;
gros na sua reinterpretação
em termos da religião do gru-
o segundo percebia como uma
po dominante. Com muita “ilusão de catequese”, que
perspicácia, já assinalou Gil- significa a incapacidade atribu-
berto Freyre que a religião foi ída ao negro de elevar-se ao
o ponto de encontro entre a nível de abstrações do cristia-
cultura negra e a branca no nismo. Em outras palavras, o
Brasil. [...] A religião, segundo cristianismo se mostra como
toda a evidência, era o ele- uma religião tão superior em
mento capital, dominando e relação à dos africanos que
subordinando todos os aspec- estes seriam incapazes de
tos da cultura. Em torno da apreendê-la.
religião giravam as preocupa-
Em mais um artigo in-
ções de todo dia de seus
membros; a ela deviam estar titulado Etnia, Sincretismo e
relacionados os atos princi- Desenvolvimento no Pensamento
pais da vida dos indivíduos; Social Brasileiro Roberto Motta
em suas sanções se apoiavam (2005) refere-se de forma bem
os sistemas políticos e sociais clara, não só quanto à oposi-
e mantinha ela a unidade in- ção entre o pernambucano e o
terna dessas culturas. Era maranhense, mas também traz
consequente a religião o seu o conceito de “ilusão de de-
foco cultural. (RIBEIRO senvolvimento” no lugar de
Apud MOTTA, 1999). “ilusão de catequese”:
O posicionamento de Nina Rodrigues tem em
Gilberto Freyre é totalmente mente uma degeneração
oposto, por exemplo, ao do do catolicismo, causada
médico maranhense Raimun- pelo sincretismo. Ele e
do Nina Rodrigues, pois en- seus seguidores consta-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 155

tam em pesquisas etno- que, das 192 páginas de


gráficas a existência da texto do autor na edição
mistura, mas encaram de de 1935, 144 voltam-se
maneira essencialmente para a descrição de da-
negativa o papel que ela dos de pesquisa relativos
desempenha e continua- à mitologia, ao ritual e à
rá a desempenhar na organização de terreiros
formação social brasilei- da Bahia, num ou noutro
ra. Já Gilberto Freyre e detalhe sujeitos à corre-
aqueles que de um modo ção, porém no geral,
ou de outro, adotaram confirmados pelas ob-
suas ideias descobrem no servações posteriores.
sincretismo, compreen-
dido de maneira bastante Essa falta de seguido-
otimista como “profun- res em relação ao pensamento
da confraternização de de Nina Rodrigues estaria
valores e sentimentos”, o enfatizando a “ilusão de de-
próprio fundamento da
sociedade nacional.
senvolvimento” de sua obra?
De qualquer maneira, segundo
Devido às ideias, essen- Roberto Motta, a concepção
cialmente negativas, por serem de Nina Rodrigues sobre o
justamente etnocêntricas em sincretismo é, por tudo quanto
relação à influência do negro foi visto, de um pessimismo
na cultura brasileira é que radical, sendo exatamente o
Motta (2005) declara a falta de oposto do que vai se encon-
seguidores de Nina Rodrigues, trar, numa geração mais tarde,
dizendo o seguinte: na obra de quem é considera-
do seu grande adversário inte-
Ninguém, hoje em dia, lectual, Gilberto Freyre. Ci-
quer declarar-se discípu- tando Casa Grande & Senzala:
lo de Nina Rodrigues, a
não ser talvez por sua Ocupando-se da cristia-
parte de etnógrafo e nização do negro, no
pesquisador de campo. Brasil, Nina Rodrigues se
Efetivamente, o exame extrema, ao nosso ver,
de O Animismo Fetichista em um erro: o de consi-
do Negro Baiano mostra derar a catequese dos
156 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

africanos uma ilusão. O tom apaziguador,


Mesmo diante das evi- poético e sentimental também
dências reunidas pelo ci- são características marcantes
entista maranhense – em Gilberto Freyre, que po-
maranhense de origem, dem ser destacados ao longo
embora o centro de sua
de muitas de suas obras. Co-
atenção intelectual tenha
sido a Bahia – a favor de mo exemplo, citemos o livro:
sua tese, não pode se ne- Guia Prático Histórico e Sentimen-
gar a extensa ação educa- tal da Cidade do Recife (1934),
tiva, abrasileirante, mora- que como Roberto Motta,
lizadora no sentido eu- mesmo, fala se trata de um
ropeu, da religião católi- guia muito mais sentimental
ca sobre a massa escrava. do que prático e histórico.
Aliás o ponto de partida Não é à toa que o prefácio do
da tese de Nina Rodri- livro é escrito por Antonio
gues, consideramo-lo fal- Paulo Rezende9 e ele passa a
so: o da incapacidade da
raça negra de elevar-se às
citar As Cidades Invisíveis de
abstrações do cristianis- Ítalo Calvino. A cidade do
mo. (FREYRE, 2006, Recife passa a ser percebida a
p.440). partir dos seus segredos, das
invenções humanas, dos
Para Gilberto Freyre, enigmas a serem decifrados,
esse posicionamento de Nina pois a proposta de escrever
Rodrigues é mesmo conside- um guia de uma cidade é, por-
rado como uma lenda, pois é tanto, semelhante com a de
um absurdo considerar o ne- desenhar a “cartografia de um
gro inapto a todo surto inte- labirinto” (Rezende, 2007),
lectual. Para o mestre per- por mais que se mostre objeti-
nambucano, o que mais im- vo e frio, a subjetividade de
portava, realmente, era a con- seus habitantes perpassa por
fraternização entre as duas todos os lugares. Afinal de
culturas, sendo a religião um contas, Gilberto Freyre estava
aspecto emblemático neste
ponto, como já falamos ante- 9 É professor-adjunto do Departa-
riormente. mento de História da Universidade
Federal de Pernambuco.
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 157

falando da sua cidade de ori- tre o passado e o presen-


gem. A praticidade do guia te.
não se deixa levar pela perda
dos encantos. Segundo Re- Assim como Calvino,
zende (2007, p.16), sua narra- Freyre construiu seu texto
tiva como se estivesse costurando
uma colcha de retalhos, sem a
é sinuosa. Os temas mis- intenção de esgotar o assunto,
turam-se. Não perde de pois mesmo com o crescimen-
vista a multiplicidade, o to da cidade, transformando-
inesperado que mora em se numa metrópole, ela não
cada espaço da cidade e perde a dimensão subjetiva e
do seu imaginário. apaixonante, onde a prevalên-
Freyre lembra histórias cia de variadas interpretações
de pescadores e seus fei-
tos heróicos, suas valen-
não se deixa envolver pela
tias, suas promessas a quantidade de dados objeti-
Iemanjá, numa cidade vos. No capítulo Cidade Onde é
que tem uma relação Quase Sempre Verão, Freyre se
marcante com seus rios e reporta ao clima da cidade,
que está aberta para os que parece ser muito mais a
horizontes do oceano escrita de um poeta reverenci-
desde a fundação [...]. A ando sua cidade predileta do
cidade, com seus entrela- que contribuir objetivamente
çamentos com as águas, na relação dos seus dados
desperta a atenção de climáticos.
quem a visita. Com a
modernização, a cidade
No Recife, as roseiras
ganha novos meios de
não se fazem de rogadas
transportes, outros per-
para se abrir em botões e
sonagens passam a fazer
parte do cotidiano que em rosas de uma fra-
grância como só nos
Freyre sempre percorre
trópicos. E, ao lado das
com suas palavras e sua
rosas, girassóis enormes;
atenção com a cultura
jasmins-de-cheiro que
que se espraia pelas ruas,
noite de lua tornam uma
registrando o diálogo en-
delícia o passeio pela ci-
dade, ao longo das gra-
158 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

des e dos muros das ca- já tivemos oportunidade de


sas dos subúrbios. Tem- mostrar.
po de caju, os cajueiros
perfumam as estradas. O turista que se previna
Infelizmente não há contra a maioria desses
mercados de flores na veículos: rodam alguns
cidade; nem no centro em tal velocidade que é
do Recife parques que como se considerassem
dêem ao turista idéia, as ruas do Recife pistas
mesmo vaga, da grande de corrida; e a pobre da
riqueza e variedade de gente que anda a pé, uma
nossa vegetação e da insignificância de gente.
nossa fauna. (FREYRE, Ultimamente a situação
2007, p. 28). melhorou. Mas ainda é
de perigo para a vida de
E o nosso autor per- meninos e velhos, prin-
nambucano vai discorrendo cipalmente. Até as bici-
sobre as mais variadas caracte- cletas fazem as suas. O
rísticas do Recife: os prédios, prefeito atual cogita de
as pontes, os rios, as festas, os melhorar a situação dos
teatros, os cinemas, os veícu- transportes urbanos, que
los, o cosmopolitismo, os é má, no Recife: conse-
quência da demagogia
anúncios de jornal, os sinos da que há anos se fez aqui
cidade, as crendices e etc. Não contra os bondes, dos
se trata de uma simples descri- quais todo bom recifense
ção para conter informações tem hoje saudades, con-
precisas de um turista que siderando-se uma espé-
pretende conhecer a cidade, cie de Amélia da canção
mas é como se tratasse de um popular, entre os meios
verdadeiro “diagnóstico” da urbanos de transporte: o
capital pernambucana, sua bonde, sim, é que era trans-
personalidade, seus gostos e porte! (FREYRE, 2007,
sabores com um ar meio que p.33-34).
nostálgico em relação aos si-
nais de modernização e tecno- Com base em tamanha multi-
logia, uma característica atuan- disciplinaridade de saberes que
te em outras obras suas como é acompanhada de seu signifi-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 159

cativo domínio acadêmico e patriarcais; além do que ela


sentimento pelo que escreve, pôde conferir a unidade naci-
questionamo-nos a partir de onal ao país, tudo isso gera
tal reflexão: “Até que ponto uma possível convivência pa-
sua posição em torno de as- cífica das culturas branca, ne-
suntos tão abrangentes reper- gra e indígena. Como bem
cutiu na maneira original de salienta Fernando Henrique
sua escrita, com invenções Cardoso (2003): Á noção de
melódicas e romanceadas?” equilíbrio dos contrários é extre-
Em outras palavras, a caracte- mamente rica para entender o modo
rística da grande erudição de de apreensão do real utilizado por
Gilberto Freyre e amplitude Gilberto Freyre.
de sua principal obra parece Contrastando diame-
que teve um efeito duplo, pois tralmente com ele, ver-se em
ao mesmo tempo que é muito Roberto Cardoso de Oliveira
bem reconhecida por este o sistema de relações entre
fato, esse parece ser, justa- brancos e índios se traduzindo
mente, a causa de uma escrita a partir de um ponto de vista
que foge aos princípios carte- de tensão, de conflito; com
sianos sem uma metodologia uma interpretação das suas
clara e bem sequenciada. É relações vistas sob um prisma
como se, no caso do autor basicamente sociológico, mar-
pernambucano não fosse pos- xista.
sível ser ao mesmo tempo
amplo e rigoroso. 3. O MODELO MATRI-
Em Gilberto Freyre a CIAL E A BUSCA POR
diversidade dos assuntos rela- UMA POLÍTICA INDI-
cionados e o estar à vontade GENISTA EM ROBERTO
na maneira de escrever é a CARDOSO DE OLIVEIRA
base para se compreender a
coerência de sua obra, visto Em um artigo intitula-
que a família, considerada do O que é isso que chamamos de
como a grande força perma- Antropologia Brasileira?, Roberto
nente na formação nacional; Cardoso de Oliveira propõe
sua influência conservadora e uma reflexão acerca do SER da
disseminadora dos valores Antropologia Social ou Cultu-
160 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

ral, sendo inspirado por Hei- uma tabela, em que tais catego-
degger a propósito da Filoso- rias se cruzam.
fia. Para falar sobre a disciplina No domínio intelectualis-
no Brasil, ele a toma, primei- ta/sincronia o paradigma identi-
ramente, em sua universalida- ficado é o “racionalista” – a
de, isto é, em suas formas pri- partir da evidência histórica da
mordiais, partindo do geral “Escola Francesa de Sociolo-
para o particular. Sendo assim, gia” (de onde se originou a
ele parte de dois procedimen- vertente racionalista da Antro-
tos: o primeiro consiste na pologia Social, de Mauss a
elaboração de um modelo ma- Lévi-Struss); no domínio empi-
tricial da disciplina por meio rista/sincronia, o paradigma é
do qual se cruzam às tradições estrutural-funcional exemplifi-
intelectualista e empirista; segun- cado pela “Escola Britânica de
do, com os termos de uma Antropologia Social” (com
antinomia temporal, que ex- especial destaque a W.H.R.
prima a relação tempo e sua Rivers e Radcliffe-Brown); no
negação ou não tempo, de domínio empirista/diacronia,
maneira a identificar em cada evidenciou-se o paradigma
uma daquelas tradições “esco- culturalista, surgido no interior
las” ou vertentes da disciplina da “Escola Histórico-Cultural
que estejam marcadas, umas Norte-Americana”, liderada
pela neutralização ou anulação por Boas; e finalmente, no
do tempo, outras pela conside- domínio intelectualista/diacronia,
ração do tempo ou da dimen- o autor identificou o paradi-
são histórica como categoria gma hermenêutico, como um
fundamental do seu modo de desenvolvimento tardio de
conhecer. Essa antinomia é uma Antropologia Interpreta-
formada pelas seguintes cate- tiva, observada em algumas
gorias: sincronia/diacronia10, que universidades norte-
possibilitou a construção de americanas. Esta organização
de paradigmas e suas respecti-
vas maneiras de lidar com a
história ou o tempo é que
10 Termos preferidos pelo autor
dado à familiaridade que gozam em formam o SER da Antropolo-
nossa disciplina. gia, mas sem deixar de enfati-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 161

zar que mesmo em se tratando do saber antropológico ficou


de paradigmas, subculturas ou historicamente subordinado à
linguagens, dotados de relativa natureza dos objetos reais (seja
autonomia, não estão imunes o índio, o branco ou o negro).
de sofrer tensão entre si, em Em razão dessa preponderân-
suas relações mútuas; sendo cia: do objeto real sobre o
possível um etnólogo não re- objeto teoricamente construí-
sistir descrever como uma do, surgiram duas tradições no
forte aculturação entre subcul- campo da Antropologia Brasi-
turas científicas. Segundo Ro- leira, dividindo o trabalho en-
berto Cardoso, tal tensão pare- tre a academia e a profissiona-
ce ser a característica principal lização não-universitária.
dessa matriz disciplinar, uma A primeira tradição
marca predominante da mo- que aparece é a da Etnologia
dernidade. Indígena e a segunda é a da
A partir da organização Antropologia da Sociedade
dos paradigmas universais da Nacional; juntamente com tais
antropologia, o autor passa a tradições, aparecem dois con-
refletir sobre a história da An- ceitos muito importantes e que
tropologia em sua particulari- serão o guia condutor do autor
dade nacional, tentando res- ao dividir a Antropologia Bra-
ponder a pergunta: “O que é sileira em categorias. Os con-
isso que chamamos de Antro- ceitos são os de Cultura e Estru-
pologia Brasileira?”. tura. Ao longo do texto ficará
A direção tomada pelo mais claro o motivo de tais
autor vai desde os primórdios conceitos serem utilizados. O
da Antropologia Brasileira, esta conceito de Cultura tem uma
habitualmente conhecida por presença muito significativa
Etnologia, tendo como marca durante o período “heróico”
principal a sua definição em (denominado pelo próprio
função do seu objeto, concre- Roberto Cardoso), que corres-
tamente definido como índios, ponde às décadas de 20 e 30,
negros ou brancos. Sendo as- quando a profissão de antro-
sim, o que se poderia chamar pólogo ainda não era instituci-
de Modo de Conhecimento, onalizada e o ofício do traba-
um sentido bem mais teórico lho de campo, ainda se mos-
162 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

trava de maneira árdua e de Mais uma vez voltando


difícil acesso. Dois nomes se aos conceitos de Cultura e
destacaram nessa época: Curt Estrutura para melhor com-
Nimuendaju na Antropologia preendermos a periodização da
Indígena e Gilberto Freyre na Antropologia Brasileira, já que
Antropologia da Sociedade em termos internacionais são
Nacional. Já o conceito de mais evidentes. Iniciando pelo
Estrutura só começa a entrar conceito de Estrutura, que
no modo de conhecer da dis- encerra um duplo sentido: o da
ciplina no período seguinte, a estrutura no paradigma estru-
partir do final dos anos 40 e tural-funcional (estruturalismo
princípios dos 50. Dois pes- inglês – structural) e o da estru-
quisadores também marcaram tura conhecida no âmbito do
esse período: Florestan Fer- paradigma racionalista francês
nandes e Darcy Ribeiro. Essa em sua vertente Lévi-
época é denominada de “ca- straussiana (structurale) – signi-
rismática”, pois ambos os pes- ficando um conjunto de prin-
quisadores conseguiram reunir cípios organizadores logica-
em torno de si e de seus proje- mente articulados e acessíveis à
tos científicos e acadêmicos inteligência do pesquisador.
inúmeros jovens e estudantes Ambos os sentidos têm um
de antropologia; uma fase de aspecto em comum, que é seu
empolgação. Um terceiro perí- comprometimento com a obje-
odo é chamado de “burocráti- tividade.
co”, tem seu início na segunda Com relação ao concei-
metade dos anos 60 e chega to de Cultura, dois sentidos
até os dias atuais. Nesta época também se impõem, e mais
há a criação dos cursos de uma vez com nacionalidades
mestrado no País e uma cons- diferentes. O primeiro tem
tante preocupação que é a de lugar no idioma alemão, sendo
estabelecer organizações e traduzido por Kultur, que re-
onde a pesquisa passa a ser mete para os fatos observáveis
condição imprescindível ao em sua exterioridade pelo pes-
treino de qualquer antropólo- quisador. O segundo se inscre-
go. ve na noção de Bildung, que
tem influência norte-americana
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 163

e indica a consideração da di- histórica a partir dos conceitos


mensão subjetiva; sendo bem de Cultura e Estrutura. Sua
demonstrativa na Antropologia tentativa foi de organizar atra-
Brasileira com Gilberto Freyre vés da periodização da disci-
em Casa Grande e Senzala. É plina, colocando-se como pes-
importante ressaltar que não quisador e informante ou tes-
pretendemos adentrar nesta temunha com relação aos perí-
área da antropologia, pois ape- odos “heróico”, “carismático”
nas mencionamos como um e “burocrático”. Ou seja, Ro-
aspecto revelado por Roberto berto Cardoso de Oliveira rea-
Cardoso de Oliveira neste arti- lizou uma verdadeira volta ao
go. partir do geral (Antropologia
Retomando a reflexão Internacional) para o particular
inicial de Roberto Cardoso de (Antropologia Brasileira), ten-
Oliveira, a respeito do SER da tando compreender o que
Antropologia que fazemos no acontece universalmente e
Brasil, as palavras de Heideg- identificando seus pontos de
ger são lembradas e transpos- apoio no particular.
tas para a nossa disciplina: “se Este artigo parece ser
quisermos penetrar no SER da bastante emblemático por dois
Antropologia deveremos nos motivos muito importantes: 1-
situar dentro dela, a saber – endossa, de maneira clara, as
fazer a antropologia da Antro- duas tradições da Antropologia
pologia.” Em outras palavras, Brasileira, que foi exposta no
mergulhar no seu mais íntimo início desse artigo: a Antropo-
entendimento, tentar desatar logia Indigenista e a Antropo-
os seus laços, compreender sua logia da Sociedade Nacional;
complexidade, seu significado bem como a sua principal ca-
e os acordos. Foi exatamente racterística que é a inexistência
isso o trabalho realizado por de uma tradição de pensamen-
Roberto Cardoso; ao identifi- to e 2 - contrasta visivelmente
car as duas maiores tradições com o posicionamento de Gil-
brasileiras (a Antropologia berto Freyre, onde a forma de
Indígena e a Antropologia da escrever e interpretar o Brasil,
Sociedade Nacional) e configu- segundo Motta (1989) se dá a
rá-las pela via da interpretação partir de intuições fulgurantes, que,
164 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

como o relâmpago que no meio da a denúncia do genocídio, enfa-


noite ilumina o horizonte e passa a tizando a figura do índio a
revelar o Brasil aos brasileiros, partir de uma triste evidência.
distanciados da própria realidade. Para este autor, o fato de se
Percebe-se em Roberto Cardo- questionar sobre a presença do
so uma preocupação em orga- índio entre nós está relaciona-
nizar o “caos” da Antropologia do, certamente, ao “incômo-
Brasileira, a partir da divisão do” que os grupos tribais pos-
em categorias, cada qual sendo sibilitam. Assim refere Roberto
dominada por um contexto e Cardoso (1972, p.10):
uma história bem particular.
Sendo esta a expressão de uma É uma presença que mo-
“oposição diametral (MOTTA, ralmente incomoda, pois
1989) entre o modo gilbertiano nos obriga a pensar o ín-
de pensar e o paradigma de dio não mais em si, mas
ciência social que veio prevale- em relação a nós pró-
prios: nossas obrigações
cer na Universidade de São civis, nossa responsabili-
Paulo e que vem a difundir-se dade moral. O etnólogo
ou confundir-se com o paradi- está habituado a conviver
gma de outras universidades, com essa relação, tirando
em São Paulo e noutros esta- dela não o que pode ha-
dos” (MOTTA, 1989). ver de angustiante ou de
Lançando-se na dire- admissível revolta (pois o
ção de uma Antropologia In- etnólogo não é sempre
digenista, oportunizamos esse uma testemunha do de-
foco para pensar no contraste sesperador esforço do
entre esses dois autores. Em índio para sobreviver?),
mas o que há de incenti-
uma vertente marxista, Rober- vador nessa mesma rela-
to Cardoso, a partir de sua ção graças à qual nos
Sociologia propriamente dita e perguntamos, parafrase-
fielmente articulada ao princí- ando Lévi-Strauss, “va-
pio positivista, vem expor a lemos mais do que os
longa história das relações selvagens?”
entre índios e brancos no Bra-
sil que parece culminar com Segundo o autor indi-
um acontecimento de impacto: genista, esse último questio-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 165

namento faz com que olhemos das a nosso ver, que poderiam
diretamente para nós mesmos: nortear o estudo das relações
“O que é nossa sociedade?” entre os membros das socie-
Uma sociedade que nos acos- dades tribais e os da sociedade
tumamos a aceitar como cor- nacional?”.
dial, acolhedora, pacifista, Uma ideia preliminar
avessa à iniquidade, ao precon- é a de que a sociedade tribal
ceito racial, etc? Tudo isso é mantém com a sociedade en-
colocado em cheque a partir da volvente (nacional ou colonial)
realidade dos índios em nosso relações de oposição, histórica
país. Já que não se é possível e estruturalmente demonstrá-
falar de um ponto de vista veis. Roberto Cardoso faz
utópico, Roberto Cardoso se questão de ressaltar que não se
volta para o subdesenvolvi- trata de relações entre entida-
mento de certas áreas regionais des contrárias, simplesmente
do país reveladas pela presença diferentes ou exóticas, umas
do índio e, sobretudo, pelo seu em relação a outras; mas con-
estado de sobrevivência. Sendo traditórias, isto é, que a exis-
o índio um indicador socioló- tência de uma tende a negar a
gico de válida utilização pelos da outra. Não sendo por outra
que estudam a sociedade naci- razão que ele se valeu do ter-
onal, seu processo expancio- mo fricção interétnica para enfa-
nista, sua luta pelo desenvol- tizar a característica básica da
vimento. situação de contato. Por
Em O Índio e o Mundo exemplo, o processo de expan-
dos Brancos (1981), uma pesqui- são da sociedade brasileira
sa sobre as relações entre ín- sobre os territórios tribais,
dios e brancos no alto Soli- resultando na destruição dos
mões, o autor ressalta o seu indígenas (depopulação, desor-
olhar sobre o fenômeno de ganização tribal, desagregação
contato interétnico, que será e dispersão das populações
estudado enquanto relações de tribais etc.); a sobrevivência de
“fricção”. Sendo, nesta obra, algumas sociedades tribais não
ressaltada através de uma ques- é suficiente para esconder o
tão fundamental: “Quais as sentido destruidor do contato.
ideias diretrizes, as mais fecun- Em consequência, devido a
166 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

um comodismo, há um ados à força na ordem na-


fenômeno social que aliena a cional. Todos esses pro-
sociedade tribal. Para ele, as blemas estimularam a
sociedades em oposição, em nossa imaginação no tra-
fricção, possuem também di- tamento dos dados e nas
reflexões que sobre eles
nâmicas próprias e suas pró- fizemos. (CARDOSO,
prias contradições. Como se 1981, p. 27).
percebe, Roberto Cardoso se
utilizou de um descortinamen- Em A Sociologia do Bra-
to ao focar seu olhar para duas sil Indígena (1972), Roberto
realidades étnicas diferentes, Cardoso realiza uma sociologia
não apaziguando ou se voltan- do Brasil indígena, porém não
do para um estilo literário me- significa uma abdicação do
loso e harmônico; parece que antropólogo social em favor de
seu posicionamento foi mesmo seu colega sociólogo. Ele ex-
o de “denunciador”, gerador prime, a rigor, a adoção de um
de conflitos e reflexões sócio- objeto, mais do que de um
políticas com base na ciência método, de uma disciplina
sociológica. Nas suas próprias afim. O mesmo compreende
palavras: por objeto a sociedade a que
pertence o pesquisador, da
“O Mundo dos Brancos” qual ele faz parte como sujeito
– o que se escondia por
cognoscente e ator social e em
trás da crosta de estereó-
tipos ou de representa- cuja cena histórica se assume
ções “raciais” com que o como consciência crítica. Tal
branco, regional, via o ponto de vista é justificado
índio; o que existia atrás pelo autor ao referir que o
de uma conduta ora pa- leitor não deve se surpreender
ternalista, ora agressiva, de encontrar neste livro de
que configurava as rela- ensaios quase nenhuma etno-
ções entre índios e bran- grafia, reduzida interpretação
cos na situação de conta- etnológica, porém um grande
to; e, mais, na conjuntura empenho de comunicar refle-
atual, o que se poderia
prever relativamente ao
xões e esboçar análises relati-
destino dos Tükuna situ- vas à problemática do contato
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 167

interétnico, sendo esse o seu guir a seguinte linha de racio-


foco. cínio: “o que significa morre-
Neste mesmo livro há rem algumas centenas de ín-
um texto que tem por título dios, se morrem no Brasil,
“O índio na consciência naci- diariamente, milhares de crian-
onal (1965)”; Roberto Cardoso ças?”; 2) a mentalidade romântica:
de Oliveira fala, basicamente, trata-se de uma mentalidade
dos obstáculos em favor de bem semelhante a anterior,
um indigenismo racional no salvo que em sua presunção de
Brasil; seu questionamento na partilhar uma ideia generosa a
íntegra: quais os obstáculos que a respeito do índio, o desumani-
questão indígena encontra, nos meios za a ponto de ampliar desme-
não-comprometidos, para sua formu- suradamente suas “faltas”
lação adequada e racional? Ele quando delas toma conheci-
enumera alguns desses obstá- mento através da imprensa. E
culos, nomeando-os como critica as mensagens literárias
“mentalidades”, desenvolvidas de José de Alencar e Gonçal-
em setores da sociedade brasi- ves Dias, visto que são capazes
leira de cujas atuações na ques- de passar uma imagem estereo-
tão indígena muito se poderi- tipada do índio; 3) a mentalidade
am esperar. Percebe-se assim, burocrática: esta é constituída
um ar de indignação e cobran- por funcionários que estão
ça nas suas palavras, quando engajados na administração
ele fala que se trata de setores federal e que se viram incorpo-
com força suficiente, mas des- rados ao órgão protetor. Esses
comprometidos com a causa se apresentam como destituí-
do índio. dos de qualquer preparo técni-
Os tipos de “mentali- co ou ideológico em relação a
dades” são as seguintes: 1) A cursos introdutórios de Etno-
mentalidade estatística: esta é en- logia, de Antropologia Aplica-
contrada frequentemente entre da ou de ideologia indigenista.
os intelectuais. Estes justificam Ou seja, se trata de servidores
seus posicionamentos a partir completamente desqualifica-
de dados, puramente estatísti- dos, que podem ser facilmente
cos, com uma exagerada cren- identificados no próprio Servi-
ça nos números que pode se- ço de Proteção aos índios; e 4)
168 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

a mentalidade empresarial: ela nada lhe é favorável. Em ou-


representa o estabelecimento tras palavras, a sua “represen-
de uma orientação totalmente tação étnica” na consciência
voltada para a transformação nacional continuará a ser este-
dos Postos Indígenas em ver- reotipada, pelo menos enquan-
dadeiras empresas, dedicadas à to não houver uma verdadeira
produção e ao lucro. A con- campanha que penetre nas
cepção inerente a essa orienta- escolas e na imprensa, saindo
ção é a de que o índio só pode dos limites dos museus e dos
“civilizar-se” pelo trabalho, cursos especializados. Deixe-
não aquele ao qual está cultu- mos que o próprio autor se
ralmente orientado, mas ao expresse neste sentido:
trabalho induzido, o que lhe é
ensinado pelo civilizado; des- As campanhas de escla-
caracterizando toda a sua sub- recimento popular, a que
jetividade cultural num movi- nos referimos, por im-
mento totalmente desumani- portantes que sejam,
zador. O pagamento é sempre apresentam resultados
fugazes, se não desenca-
feito de maneira que os pró- dearem formas de ensino
prios trabalhadores, produto- e de informação mais
res do lucro, dele se benefici- consistentes e permanen-
em diretamente, uma vez que tes. Além do mais, à de-
ele é incorporado à “renda formação da figura do
indígena”, a saber, um fundo índio, acrescenta-se a de-
em dinheiro destinado a apli- formação da própria polí-
cação em qualquer dos Postos tica indigenista. [...] E, in-
Indígenas, ou seja, em turmas felizmente, parece não
de pacificação ou no financia- haver dúvida de que é
mento de serviços de gabinete. nessas mentalidades que
o indigenismo oficial está
Ao fim de tais consi- buscando inspiração para
derações, Roberto Cardoso o equacionamento da
chega à conclusão de que a questão indígena. (OLI-
posição do índio na sociedade VEIRA, 1972, p.76).
inclusiva, mesmo nos seus
setores mais responsáveis, ad- Roberto Cardoso nos
ministrativamente falando, em coloca na posição de co-
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responsáveis na luta pela pre- consideração os aspectos me-


servação da causa indígena, a todológicos e as relações entre
partir do questionamento: Co- raças e classes no Brasil.
mo trazer o problema da sobrevivên-
cia das populações indígenas para as 4. CONSIDERAÇÕES FI-
áreas não-comprometidas, e teorica- NAIS
mente capazes de pressionar o Go-
verno para uma ação compatível com Retomando os ques-
os ideais democráticos de uma socie- tionamentos do início desse
dade moderna de massa? (CAR- texto: “até que ponto tais au-
DOSO, 1965, p.70). Para ele, a tores trazem as mesmas pro-
resposta a tal questão está no blemáticas e inquietações?”;
esclarecimento da opinião pú- “qual a ênfase dada em um e
blica, através de oportunas noutro?” e “será que podemos
campanhas na imprensa. mencionar um modelo ‘freyri-
O trabalho desse au- ano’ e um modelo Cardoso
tor se caracteriza, basicamente, ‘oliveiriano’?”. Com relação
a partir de uma ciência com- ao primeiro questionamento,
prometida e engajada com as acreditamos que o que liga
questões políticas, trazendo ambos os autores é trazer a
para o centro da discussão problemática da Antropologia
acadêmica duas realidades so- Brasileira para discussão. Para
cialmente opostas: o mundo realizar e alcançar tal objetivo
dos brancos “civilizados” versus cada um tomou um rumo
o mundo dos índios injustiça- diferente, visto que são dife-
dos e limitados às amarras das rentes personalidades olhando
políticas governamentais. O para o mesmo objeto (o ou-
foco constante de sue trabalho tro) em contextos sócio-
parece resumir-se na seguinte históricos também diferentes.
expressão: “em defesa das ter- Como já tivemos oportunida-
ras indígenas”. de de mencionar anteriormen-
A partir das exposi- te; Gilberto Freyre escolhe o
ções e oposições tentaremos caminho de “educador”, preo-
nas considerações finais traçar cupado com a formação dos
um perfil organizador dos dois nossos antropólogos; deixan-
autores em estudo, levando em do bem claro e de forma ex-
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pressivamente didática como é ções antropológicas brasileiras:


pensar e fazer pesquisa antro- a Indígena e a da Sociedade
pológica em terras brasileiras, Nacional.
não deixando nunca de interli- Acreditamos que a ên-
gar saberes que não funcio- fase apresentada por Gilberto
nam de maneira isolada, mas Freyre é a de conselheiro dos
em interdependência uns com que pretendem seguir a carrei-
os outros: a Antropologia ra de antropólogo, além de
Física, a Social e a Cultural, nos mostrar quão rica é a
consolidando a importância quantidade de temas para se
do diálogo entre as ciências da pesquisar no Brasil, como por
natureza e a ciência social. E exemplo, a presença marcante
mesmo com tantas críticas, das casas antigas e dos sobra-
que em muitas ocasiões não dos no Rio Grande do Sul. Ele
foram nem um pouco genero- parece trazer para a discussão
sas, em relação a uma escrita uma sociologia que incorpora
cheia de contradições, com ar a vida cotidiana; não apenas
de conservadorismo, além do em relação à vida pública ou o
gosto pela palavra “sufocando exercício de funções sociais
o rigor científico”, como bem definidas (do senhor de enge-
esclarece Fernando Henrique nho, do latifundiário, do es-
Cardoso (2006) a CG&S: Uma cravo, do bacharel), onde os
obra perene e que será sempre refe- contrários se justapõem fre-
rência para a compreensão do Bra- quentemente de forma ambí-
sil. No caso de Roberto Car- gua, convivendo em harmonia
doso de Oliveira, percebe-se e de forma privada. Roberto
uma preocupação em organi- Cardoso também fala de duas
zar o “caos” da Antropologia realidades: a do branco e a do
Brasileira, no sentido de escla- índio, ambas em conflito, dei-
recer a partir de categorias xando bem claro que existe
(Intelectualista e Empirista) e um dominador e um outro
conceitos (Cultura e Estrutu- que é dominado, com a nega-
ra), que para muitos de nós, ção dos seus próprios valores.
ainda parecem expressar certa E que as relações entre essas
confusão; tudo isso tendo por realidades precisam ser refleti-
base direcional as duas tradi- das e questionadoras por po-
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 171

deres públicos; uma luta para dução de um texto que leva o


lançar voz à realidade que foi leitor no embalo, mas que
sufocada. Sendo por isso ninguém se engane, por trás
mesmo uma Antropologia das descrições, às vezes ro-
parcialmente vislumbrada pe- manceada e mesmo distorcida,
los menos favorecidos? Neste há muita pesquisa. Já no caso
sentido, ele se coloca no lugar de Roberto Cardoso de Oli-
dos injustiçados (as tribos veira, a ênfase parece ser na
indígenas), por isso mesmo organização e periodização
enfatiza a tensão; e Gilberto histórica, em classificar a an-
Freyre se coloca no lugar do tropologia brasileira a partir de
burguês, do vitoriano, cuja categorias – dos paradigmas
ideologia é manter a paz e a internacionais para o nosso
harmonia, o status quo. Segun- tipo de antropologia, a antro-
do Motta (1989), a obra de Gil- pologia que fazemos no Brasil.
berto Freyre consiste, na verdade, Não há uma invenção de tra-
num grande “guia prático, histórico dição; a tradição existe fora da
e sentimental” (que é como ele qua- antropologia brasileira, sendo
lifica seus livros sobre o Recife e resignificada por esta última.
sobre Olinda) para a interpretação Segundo Roberto
da cultura brasileira. (p.562). Motta (2000), num artigo inti-
Uma diferença diame- tulado Paradigmas Fundamentais
tral entre ambos os autores se nos Estudos das Relações Raciais
verifica, claramente, nos ter- no Brasil, o pensamento de
mos metodológicos, visto que Gilberto Freyre sobre raça e
em Gilberto Freyre parece cultura no Brasil pode resu-
haver certa fabulação sobre mir-se assim:
uma tradição, por ser o Brasil
um país recente com passado De acordo então com
nacional. A acomodação ocu- Gilberto Freyre, devido
pa o lugar da luta, onde o do- ao tipo de cristianismo
minado domina de fato, aque- que prevaleceu entre os
le que se propõe como domi- portugueses, as raças, no
Brasil, tenderam a fun-
nante. É por isso que o méto- dir-se numa só comuni-
do eleito para a reconstrução dade emocional e religio-
da história é a empatia, a se-
172 | Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013.

sa. Esta opinião de Gil- na situação de etnólogo, seja


berto Freyre suscitou como funcionário do Sistema
aplauso entusiástico e de Proteção ao índio; chegan-
ferrenha oposição do a alguns momentos tais
(MOTTA, 2000). papéis se confundirem, ou
mesmo, um ser beneficiado
Este paradigma seria o em decorrência do outro. Em
primeiro, chamado de More- trabalho de campo entre os
nidade; indicando a flexibili- Terena em 1955:
dade e o tom elástico e eu-
femístico do mestre pernam- Eles [os índios] vinham
bucano, pois mesmo em se falar comigo, me visitar e
tratando de negros retintos, eu tinha brindes. Entre
no Brasil, chamar por moreno os Terena o melhor pre-
indica um tom anti-racista e sente eram os brindes
“simpático”. Essa é bem a coletivos. Então, eu logo
marca de GF, como falamos mandei fazer engenhos
na exposição acima, visto que para eles esmagarem ca-
chamar uma pessoa de more- na e fazer garapa, fazer
na indica que a mesma não se açúcar. Também jogava
futebol com eles. Era
define por Preta nem Branca, festeiro [...]. Assim, logo
mas misturada, assim como o fiquei com uma relação
olhar desse autor e o seu estilo muito boa, porque era
metodológico. muito jovem, jogava fu-
Uma das marcas tebol com eles, era fes-
principais de Roberto Cardoso teiro, dava os bailes nos
de Oliveira é uma ciência fins de semana, dançava
comprometida com a causa xote, dava pó de café,
dos injustiçados, no caso o pagava o sanfoneiro e
índio brasileiro; sendo o mar- dançava. E graças à dan-
xismo uma teoria capaz de ça nos fins de semana e
ao futebol semanal, a
explicar a fricção interétnica, minha vida durante me-
por causa do conflito, pois as ses passou muito mais
teorias da época privilegiavam, rápida, porque se no
muito mais, o consenso. O começo eu jogava mais
convívio com os índios, seja para fazer rapport, depois
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eu senti que estava jo- de um outro lugar (originário


gando porque queria jo- da Universidade de São Paulo
gar, porque eu gostava e de Florestan Fernandes), a
do jogo e dançava por- partir de uma antropologia
que gostava de dançar contemporânea, sua posição é
com aquelas moças.
a de identificar como se locali-
(OLIVEIRA, 1993).
za a Antropologia Brasileira
Esse envolvimento tomando por referencial a
com o objeto de pesquisa foi Antropologia Internacional, a
muito forte nos dois autores, Antropologia “legitimada”.
fez com que ambos relativi- Sem nos esquecermos, como
zassem, olhassem, seja para o já foi mencionado anterior-
negro, seja para o índio de mente, acreditamos que seus
maneira apaixonante. estudos sobre “fricção interét-
Em termos de modelo, nica” constituem a base de sua
apresentamos mais um aspec- antropologia.
to, que reforça todos os ou- Antropologia de Gil-
tros, é a tentativa de Gilberto berto Freyre tem por caracte-
Freyre em enaltecer a Antro- rística central a plasticidade
pologia Brasileira partindo cultural da convivência entre
dela mesma: do seu povo, da contrários, não se tratando
sua língua, do seu clima, do apenas de uma característica,
seu modo de alimentação... mas um fato vantajoso de ser
Sendo por isso mesmo classi- brasileiro, o que parece ter
ficado na Tradição da Antro- sido muito caro ao debate
pologia da Sociedade Nacio- entre as relações raciais no
nal, uma antropologia que Brasil. Roberto Cardoso de
valoriza os pequenos detalhes Oliveira se apega, justamente,
do povo brasileiro; detalhes a esta característica enaltecida
esses que se expressam a partir pelo autor pernambucano para
de uma recusa à Europa in- questioná-la, colocando-a em
dustrializada. Tratando-se da debate e contrastando dois
oposição entre tradição e mo- mundos.
dernidade. Em Roberto Car- Terminamos este En-
doso, justamente por ele falar saio sem nenhuma pretensão
de torná-lo fechado, sem es-
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tarmos abertos a novas discus- um vitoriano dos trópicos. São


sões, muito pelo contrário, Paulo: Editora UNESP, 2005;
deixamos muitas inquietações
e dúvidas, porém esperamos CORRÊA, Mariza. A Antro-
que elas coloquem o leitor na pologia no Brasil (1960-1980).
posição de pensar junto, ten- In. MICELI, Sérgio. História
tando ver a direção que os das Ciências Sociais no Brasil,
autores tomaram, levando Vol. 2. São Paulo: Editora
sempre em consideração a Sumaré, 1995;
história de vida pessoal de
ambos, suas influências e dire- FREYRE, Gilberto. Casa
cionamentos acadêmicos, além Grande & Senzala: formação da
do contexto sócio-histórico família brasileira sob o regime
em que viveram. da economia patriarcal – 51ª
ed. São Paulo: Global, 2006;
REFERÊNCIAS
____________________
ANDRADE, Carlos Drum- Problemas brasileiros de antropolo-
mond de. Uma Homenagem a gia / Coleção Estudos Brasilei-
Gilberto Freyre. Viola no bolso ros – Rio de Janeiro: Edição
novamente encordoada, Rio de Casa do Estudante do Brasil,
Janeiro, José Olympio, 1955. 1943.

AZEVEDO, Thales de. O ____________________


cotidiano e seus ritos: praia, namoro Guia Prático, Histórico e Senti-
e ciclos da vida / Thales de Aze- mental da Cidade do Recife. 5 ed
vedo (com Ensaios de Anto- – São Paulo: Global, 2007;
nio Motta, Maria de Azevedo
Brandão, Maria Rosário Gon- GEERTZ, Clifford. A interpre-
çalves de Carvalho, Rita de tação das culturas – Rio de Janei-
Cássia Barbosa de Araújo e ro: LTC, 1989.
Roberto DaMatta) – Recife:
Editora Massangana, 2004; GOMES, Mércio Pereira. An-
tropologia: Ciência do homem:
BURKE-PALLARES, Maria Filosofia da cultura – São Paulo:
Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: Contexto, 2008;
Revista Duc In Altum - Caderno de Direito, vol. 5, nº 8, jul-dez. 2013. | 175

_______________________
MOTTA, Roberto. Gilberto ______ Sobre o pensamento an-
Freyre: uma lembrança. Revista tropológico – Rio de Janeiro:
de Antropologia, Publicação do Tempo Brasileiro; 2003 – 3ª
Departamento de Antropologia – edição.
Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas –

________________ Paradig-
mas Fundamentais nos Estudos
das Relações Raciais no Brasil.
Artigo;

________________ Élide,
Gilberto, Imagismo e Língua de
Universidade. Artigo;

________________ Etnia,
Sincretismo e Desenvolvimento no
Pensamento Social Brasileiro. Ar-
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_______________ Gilberto
Freyre, René Ribeiro e o Projeto
UNESCO. Artigo;

OLIVEIRA, Roberto Cardoso


de. A Sociologia do Brasil Indíge-
na. São Paulo: Editora da USP,
1972.

_______________________
_____ O Índio e o Mundo dos
Brancos. 3ª ed. Brasileira, São
Paulo: Pioneira, 1981.

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