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Há no interior do interior do corpo humano uma gaveta. Nela ficam guardadas todas
as palavras não-ditas; dessas que a gente sente, que muitas vezes nos falta habilidade, ou
vontade ou força para articulá-las. Ao contrário do que muitos acreditam, essa gaveta tem
fundo e tem paredes, e é chamada Felicidade por isso mesmo, por ser finita. A palavra
"infinito" não lhe cabe, deixa a gaveta de palavras - Felicidade - entreaberta, o "finito" dentro
dela, o "in" pendurado pra fora. Infelicidade é o nome dela quando confundida assim; é o
nome dela quando transborda.
A ciência ainda não pôde explicar essas pessoas, e sua condição. E, ao que parece, até
mesmo muito dos próprios cientistas compartilham do mesmo mal deste meu (breve e
suposto) objeto de estudo sem nem ao menos se darem conta. Verdade que não tenho
patente para calcar minha análise; não sou nenhum cardiologista, biomédico, biólogo ou seja-
o-que-seja que me garanta qualquer patente de Doutor. Mas é preciso dizer: Elas estão por
toda a parte. Refiro-me às pessoas de coração bem pequenininho. Em sua maioria, possuem
uma dificuldade na curvatura do músculo flexor do dedo indicador e, portanto, vivem com ele
apontado pra todo lado – desde que não seja para o próprio, é claro (até onde se sabe, o
tamanho do coração não prejudica as funções neurológicas responsáveis pelo senso de
autopreservação). Pessoas que sofrem de coração apequenado tendem a acumular
compulsivamente tudo o que há pra se acumular, e – suspeita-se que por uma deficiência
cognitiva – possuem uma maior propensão a confundir coisa com gente e gente com coisa. A
lei geral é: Quanto maior o peito dessas pessoas (em que batem assim, com os punhos, numa
atitude que divide psicólogos e neurocientistas) e mais levantado mantiverem o queixo ou o
nariz, menor ainda é o coração – Cujo tamanho reduzido parece não prejudicar o sistema
cardiovascular; ao contrário, frequentemente tais pessoas aparentam ter o sangue até mais
quente, e mais rapidamente também lhes sobe à cabeça. Portanto, fique atento: Se você
suspeita que alguém próximo à você possa sofrer de Pequenismo-Cardíaco, evite contradize-
lo, pois sua condição impossibilita funções tipicamente humanas, tais como a audição, a
compreensão de sistemas complexos e, acima de tudo, a empatia. Claro que isso não cabe a
mim! Quem sou eu para esmiuçar as causas e consequências de tão misteriosa enfermidade?
O catedráticos que me perdoem, mas temo pelo bem-comum, pois acredito não termos
presenciado na história do ocidente, doença infecto-contagiosa tão perigosa à raça humana
desde a peste-negra ou o cheque especial.
Embrulho
Josias saiu com aquela caixa debaixo do braço. A criatura ficava especialmente
inquieta às segundas-feiras. Ele não a comprou, nem a achou, nem a ganhou. Ela nasceu ali,
dentro da caixa, e na caixa Josias a mantinha. Se reconfortava porque sabia que todos, maior
ou menor fosse, tinham um Desespero guardado. Se apequenava aos sábados de noite,
quando folgava às funções que lhe atribuíam os dias úteis, mas crescia e, às vezes, acreditava
incontrolável quando (como de costume) era obrigado a fazer o que lhe mandavam por uma
recompensa que de nada serve ao Desespero. Comprava camisas, calças, pagava jantares,
financiava carros, esborrifava perfumes, mas nada, absolutamente nada que pagasse acalmava
a criatura. Ia aprendendo a lidar, enquanto mantinha-o cativo, mas sabia que, ora ou outra, a
coisa ficaria feia, e ninguém mais, em todo o mundo, conseguiria controlar essa besta que se
apequena e se agiganta. Até pensava libertar esse Desespero, pois havia boatos de que, uma
vez livre, viraria Esperança e mudaria tudo que é injusto no mundo. Mas o Medo, pequeno
duende que nos sussurra aos ouvidos, está sempre nos dissuadindo. Medo; o carrasco das
Esperanças, e domador de Desesperos.
Química
Que professor pode explicar as químicas dos corpos? Há sementes que florescem nos
mais diversos peitos, mas que fruto nasce do encontro das almas que se desdizem? As bocas
beijarão e os corpos suarão, mas não há florescer que se possa obrigar em Árvores-almas que
se desconhecem. É a distância invisível, mas inquestionável. E nosso não-foi-dessa-vez
permanece; como permanece o mistério de seus porquês.
Aceno
Fumávamos um cigarro na esquina quando percebi, por cima do seu ombro, uma
menininha a encarando do outro lado da rua. Fiz sinal com a cabeça, e quando ela se virou, a
menina abanou a mão no ar. Ela olhou prum lado, pro outro, pra mim, e depois pra ela de
novo. Acenou de volta, meio confusa meio desconcertada. Não se conheciam. A verdade é que
ela morria de medo de crianças e de seus grandes olhinhos. Há algo inexplicável nelas, como se
lembrassem de alguma coisa que nós, adultos, esquecemos no correr dos anos. São
aterrorizantes, disse. Concordei em silêncio, por achá-las mais curiosas do que medonhas. Mas
é de se pensar, mesmo. O que será que a gente precisa desaprender pra finalmente aprender
o que nascemos sabendo?
Miudezas
Há dias em que o contato humano se faz custoso. Acordamos com nossas fragilidades
inflamadas, e o simples ato de nos vestir já fere as chagas. É quando o coração chama pra
pertinho dele, exigindo palavra, atenção, um pouco de carinho. O que entendemos por
personalidade se faz pesado, e o corpo pede claustro para nos lembrar que a existência é
delicadeza dessas que ignoramos por demais.
Metamorfose
Aos vinte e cinco anos, o rapaz nunca havia feito a barba. Fizera-se por conta própria
avolumando-se e escurecendo no rosto. Pela primeira vez a desfizera, e foi como se refizesse a
cara.
A Glândula da Saudade
Há quem diga que se localiza atrás do coração e entre os pulmões, e que, quando
inflamada, os envolve e os comprime, gerando dificuldades respiratórias e uma sensação de
apequenamento do peito. Embora seus efeitos colaterais gerem algum desconforto, dizem
que a inflamação da glândula da saudade é sinal de saúde passadística; um desdobramento
natural de todo e qualquer sentimento positivo alimentado pela visão, audição, olfato, tato,
paladar e suas hiperfunções ainda não descritas pela ciência. Também dizem que ela é
responsável por colorir lembranças, gerando também sorrisos imbecis em pontos-de-ônibus e
calçadas, e locais públicos em geral.
A Hiperfunção
Em meio à folia, almas solitárias e não-solitárias, por vezes caçam olhares; olhares
cruzados, olhares que se desenrolam em sorrisos, olhares cruzados que se transmutam numa
surpresa estampada nos olhares cruzados: grandes conversas sem palavras por entre as
cabeças cruzando avenidas, e ombros flutuando avenidas, e cores pintando avenidas, por
entre outros olhares entrecruzados, contatos tão significantes e breves, que inúmeras vezes
inflamam a glândula da saudade em poucos segundos, bastando apenas descolarem-se assim
os olhos arrastados pelo todo de gente. Há quem leve isso muito a sério, e trate a caça de
olhares com grande solenidade, sendo ás vezes até mais importante do que a música; ás vezes
mais importante do que o próprio carnaval – O que é uma grande besteira, já que a música e a
farra são condições fundamentais para uma caça de olhares saudável.
Os tambores ecoam muito alto, muito-muito alto, e de tão alto, lugar nenhum é
cabível, lugar nenhum o comporta, que não o peito, e lá o surdo lhe toma as batidas do
coração, tua caixa torácica ecoa por entre os prédios, o afoxé lhe escala a nuca, levantando os
pelos, como lhe coçasse todo, e o corpo estremece, os trompetes e caixas em suas têmporas;
o corpo, amplificando os som, vibrando as janelas de apartamentos e vitrines, e os pulos, as
pernas em movimento, a euforia, os esbarrões cheios de desculpas, ou sem nenhuma, onde
falam só os olhos na clara lembrança de que não-me-toques do horário comercial ficaram
guardados em casa, junto ao relatório de quinta-feira.
Um oceano de aromas e sabores onde boiar, onde cada um deles é o redemoinho que
te arrasta descarga abaixo, pelos largos ou estreitos encanamentos do tempo: O chiclete de
canela em outra boca, sabor de quinze anos, uma garota mais velha e mais experiente te
mostra funções alternativas das últimas cadeiras e da sala de cinema; o cheiro do perfume
conhecido da desconhecida que te cruza a multidão sem que você a note, percebendo sua
passagem apenas pelo cheiro que abandonou em seu colo do nada, e do nada tem dezessete
anos novamente e está ouvindo tristezas adolescentes de sua melhor amiga com quem já não
fala e nem se importa, graças ao espaço das vidas que se desdizem; o fim da farra e a noite no
centro com seu cheiro de chuva ácida e ar-condicionado e exaustores te remetendo a outra
cidade, em outro país, onde tudo o que você tinha era quase nada, o que era tudo o que
precisava; o cheiro de espetinho na esquina que você não pode pagar se quiser voltar pra casa
e que te lembra churrascos, ainda muito criança, no interior, enquanto corria e brincava e
imaginava como seria ser adulto sem se dar conta de que não havia grandeza maior do que ser
criança; e por fim, o gosto de vômito na boca que te lembra de tantas situações anteriores que
você mal pode contar, mas não te faz lembrar nada da noite anterior, além do óbvio, é claro.
Ficar o dito pelo não dito: Expressão popular que significa Não chegar à conclusão nenhuma;
Algo que não está resolvido.
Sobre a mesa, quatro mãos. Duas que procuram; uma que some, outra que esquiva.
Levava nos ombros o peso de quatro mundos; quatro crianças. Um único par de
ombros, cansados já tão novos. Quantos mundos o outro par de ombros não abandonara para
dar a si mesmo toda a leveza que se pode querer? Há ombros que simplesmente não dividem
peso; há ombros que não carregam mundos.
Os pés grandes vestiam chinelos muito pequenos. Passaram para o lado do ar-
condicionado. Pararam por pouco tempo. Quatro pés vestindo sapatos lustrados os
acompanharam até a saída.
As bocas diziam ser engano, mas os números não mentem. O rádio passou a descrição
e o dedo puxou o gatilho porque sente medo do medo que bota por lhe ser permitido puxar o
gatilho. Naquela noite, foi a sua pele que lhe determinou a sentença.
A boca não se continha, falava e falava e falava sem parar. Os pés sustentando a boca
lá no alto, equilibrada no palanque. Muitos olhos admiravam a eloquência das mãos e as veias
da testa, mas os pares de orelhas que escutavam atentamente sabiam; não dizia nada a boca.
Pelo menos nada de novo.