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ÉTICA TEOLÓGICA

A ética teológica, também denominada teologia moral, configura-se como um


saber crítico sobre a práxis dos cristãos. É a parte da teologia que estuda as ações
humanas a fim de ordená-las em função da vontade de Deus. É, também, uma
expressão particular da teologia que coloca sua atenção sobre as implicações da fé
sobre o agir moral do cristão.
A palavra ethos (etimologia grega) pode significar caráter e costume. Mas,
também, residência, morada. O ethos aponta para um modo próprio de ser e de viver
humanamente, seu santuário interior. Algo tão profundo transcende às normas morais.
Ethos também traduz a experiência e a sabedoria do modo de vida de um povo, sua
cultura.
A tradução para o latim como mos-moris pode conter as duas conotações
gregas – casa e caráter (Santo Tomás de Aquino). Entretanto, em relação ao uso na
linguagem corrente, o adjetivo ético é frequentemente utilizado como sinônimo de
moral. Porém, o pensamento contemporâneo reserva o substantivo ética
exclusivamente para a ciência cujo objeto é investigar a ação moral do indivíduo. No
entanto, a adoção do termo ética para referi-lo à ciência do comportamento não
impede o uso do termo moral para a mesma ciência, mas do ponto de vista teológico.
Cada religião elabora sua própria ciência do comportamento humano, ou seja, elabora
sua teologia moral.
A teologia moral não é somente, nem em primeiro lugar, a doutrina acerca de
princípios e preceitos morais, mas a exposição da mensagem do Evangelho e da
vocação dos discípulos de Jesus. Seu centro é o evento Cristo. A reflexão moral,
realizada à luz de Cristo, desenvolveu-se também na forma específica de ciência
teológica, chamada teologia moral (Veritatis Splendor n.28).
Nos anos anteriores ao Concílio Vaticano II, a teologia moral reduzia-se à
moral manualística – assim se denomina a moral escolástica que vigorou desde o
Concílio de Trento até o Concílio Vaticano II. Surgiu no século XVI com as Institutiones
Theologiae Moralis, usadas nos seminários e direcionadas para o clero e para o
confessionário. A moral procurava definir o que era proibido e permitido. O
esgotamento desse modelo deu lugar à moral renovada (Escola de Tübingen), que
tem em Bernard Häring um autor de referência, sendo adotada pela Igreja no Concílio
Vaticano II:
Consagre-se cuidado especial ao aperfeiçoamento da teologia moral, cuja
exposição científica, mais alimentada pela doutrina da Sagrada Escritura, evidencie a
sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo e sua obrigação de produzir frutos de
caridade para a vida do mundo. (Optatam Totius n.16).
A partir de então, a teologia moral também passou a ser considerada como
ética teológica.
Nesta seção da enciclopédia, encontram-se artigos de conteúdo conciso e de
qualidade sobre a especificidade dos grandes campos de reflexão da ética teológica.
Cada artigo recolhe os elementos fundamentais conforme o estado atual da reflexão.
Os textos introduzem o campo temático, apresentam os conceitos principais e expõem
suas principais questões.
A rapidez das transformações em curso, com o surgimento de novos e
urgentes interrogantes de diferentes ordens caracterizam a abordagem dos diversos
artigos desta seção da enciclopédia. Os vários verbetes são ligados entre si por
referências situadas dentro de cada exposição. Uma criteriosa e acessível bibliografia
é oferecida no final de cada verbete. Um instrumento útil de consulta e de estudo
acessível.
Por último, é preciso advertir que o leitor não encontrará nem uma teologia
moral completa, nem, ainda menos, respostas prontas para todos os problemas éticos
atuais. A enciclopédia não pretende substituir o trabalho dos professores de teologia.
Um dos principais objetivos consiste em situar a ética teológica no horizonte mais
vasto do evento Cristo (Ética de Jesus). Por ser uma realidade subjacente a toda
teologia, é a compreensão do ethos de Jesus que cumpre evidenciar. A ética teológica
se apresenta como uma tentativa de conjugar o humanum marcado não por um Cristo
parado no espaço e no tempo, mas por um Cristo que caminha com os seus. O ethos
cristão vai emergindo da experiência acumulada pelos cristãos ao longo da história,
onde se espelham, sempre de novo, em Jesus Cristo: como ele se posicionou diante
das várias situações? Numa realidade em constante mudança, como articular o que
permanece e o que evolui? O cristão tem um modo de compreender e de agir que
atravessa os vários ethos, sem perder sua especificidade: Cristo, como norma
primeira, é o fundamento de toda ética teológica.
Élio Gasda
ÉTICA TEOLÓGICA
Células-Tronco
Consciência
Trabalho
Justiça Social
O Bem Comum
Sexualidade conjungal e extra-conjugal
Função social da propriedade no ensino social da Igreja
Aborto
Moral Social
A questão do mal
Temas emergentes na ética teológica
Teologia moral
Ética teológico-cristã da sexualidade
Bioética

CONSCIÊNCIA
Sumário

1 “Consciência de si” e “consciência”


1.1 Perspectiva psicológica
1.2 Perspectiva ética
1.3 Perspectiva teológica
2 Perspectiva bíblica
2.1 Antigo Testamento
2.2 Novo Testamento
3 Perspectiva histórica
4 Desenvolvimento e maturidade da consciência
5 Consciência em uma chave personalista, comunitária e profética
5.1 Consciência moral autônoma e autotranscendente
5.2 Consciência moral comunitária e eclesial
5.3 Consciência moral profética e libertadora
6 Encontro de moralidade e espiritualidade na consciência
7 Referências bibliográficas

Na experiência da consciência, a pessoa livre percebe sua capacidade de


discernir entre o bem e o mal para decidir de forma responsável. Na consciência cristã
se juntam a experiência moral humana da responsabilidade e a experiência espiritual
cristã de viver a fé e caminhar no Espírito.

1 “Consciência de si” e “consciência”

“Consciência de si” (em inglês consciousness, em alemão Bewusstsein) e


“consciência” (inglês, Conscience, alemão, Gewissen) referem-se à etimologia latina
da conscientia: cum scientia, simul scire e à grega de syn-eidesis : “conhecer-com” ou
conhecimento autorreflexo, concomitante ao conhecimento de algo ou de alguém. A
“consciência de si” é dita em um sentido fisiológico e psicológico de estar em um
estado consciente, desperto e capaz de reconhecer-se em suas ações e no meio
ambiente. “Consciência” se diz, em sentido moral ou religioso, da apreensão
responsável do valor moral e espiritual. Desde os tempos antigos, em culturas
distantes uma da outra no espaço e no tempo, há expressões da vida diária sobre a
satisfação pelo bem e remorso pelo mal, como mostram, por exemplo, essas
inscrições: “O coração é testemunha; você não deve agir contra ele” (cultura egípcia);
“Um Deus invisível habita dentro de nós” (cultura hindu); “O melhor de cada humano,
seu coração bom e firme, para ter Deus em seu coração” (cultura náuatle).

1.1 Perspectiva psicológica

Na consciência psicológica, a pessoa, que não é uma coisa a mais entre as


coisas, percebe seus próprios estados anímicos e retorna reflexivamente sobre si
mesma, reconhecendo-se conscientemente como sujeito de sua vida psíquica no
mundo, no tempo e em relação a outras pessoas.
1.2 Perspectiva ética

A consciência moral percebe o chamado para realizar os valores morais e


cumprir as normas; julga, exercendo com prudência a razão prática, sobre o que deve
ou não ser feito para realizar esses valores e aplicar as normas nas circunstâncias
concretas da vida diária. Sócrates se refere à voz do daimon que o aconselha. Sêneca
a chama de “observador vigilante do bem e do mal no nosso interior”. Confúcio disse
que sempre viveu “ouvindo a voz do céu”. Para Kant é o “tribunal da justiça no interior
do homem”. Considerada a partir do objeto do juízo, a consciência é verdadeira ou
errônea. Considerada a partir do sujeito, é sincera ou insincera. Somos chamados a
seguir o chamado da consciência e, ao mesmo tempo, reconhecer a possibilidade do
erro e a necessidade de formar ou corrigir a consciência. A consciência antecedente
convida a fazer o bem e a evitar o mal. A consciência consequente confirma a
satisfação pelo bem feito e reprova o mal cometido.

1.3 Perspectiva teológica

A consciência moral crente é identificada com a fé que internaliza o chamado


divino e expressa a resposta responsável para viver praticando o amor da caridade
(ágape) com a ajuda da graça. A consciência é voz, luz e força para responder à
realidade a partir da fé; capacita, guia e apoia o julgamento prudencial e a decisão
responsável (CURRAN, 2004, p.7). É voz que chama a deixar-se conduzir pelo
Espírito. É luz que acompanha os processos de discernimento e deliberação sobre
valores, normas e circunstâncias. É força para decidir e curar, ou reconciliar depois
de reconhecer os erros na decisão.

2 Perspectiva bíblica

2.1 Antigo Testamento

Na Bíblia hebraica, “coração e entranhas” são metáforas da consciência. Na


profundidade da interioridade, a fé reconhece se “o coração não a reprova” (Jó 27,6).
Davi “sentiu bater-lhe o coração” de remorso por um comportamento injusto (1Sm
24,6; 2Sm 24,10). O salmista arrependido clama: “Cria em mim, ó Deus, um coração
puro, e renova em mim um espírito reto (…) um coração arrependido e humilhado,
não o desprezas, ó Deus” (Sl 51,12-18). Aí Deus promete gravar sua palavra: “Porei
a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração” (Jr 31,33, cf. Dt 4,39).
Jeremias anuncia que “o pecado está gravado na tábua do coração” (Jr 17,1). Jó se
defende: “meu coração não me reprova nenhum de meus dias” (Jó 27,6). A promessa
do Espírito é: “Eu lhes darei um coração novo e lhes infundirei um espírito novo.
Arrancarei o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 11,19; 18,31;
36,26). O Criador, que “vê o coração” (1Sm 16,7), é o “Deus justo que sonda o coração
e as entranhas” (Sl 7,10; Sl 139,1-7; cf. Sl 26,2; Jr 11,20; 17,10; 20,12).

2.2 Novo Testamento

Jesus prega a disposição interior do bom coração, em vez da exterioridade da


consciência moral farisaica (Mt 15,7-20, Lc 11,37-42). “O que sai de dentro do coração
humano é o que mancha” (Mc 7,21-23). “O homem bom tira coisas boas do bom
tesouro que está em seu coração” (Lc 6,45). Chegou o tempo a viver com um coração
novo: Deus o transformará, derramando sem limites seu Espírito (Lc 4,14-21; Jo 7,39,
cf. Jl, 3,1-2). Paulo integrou a tradição helênica sobre a consciência (syneidesis) com
a presença interior e ativa do Espírito. “Aqueles que se deixam guiar pela sabedoria
do Espírito tendem ao que é próprio do Espírito” (Rm 8,5), que ilumina o discernimento
(Rm 14,16-23; 1Tm 1,5; 1Cor 2,6-16).
A autonomia da consciência moral do homem consiste em ser uma lei (nomos)
para si mesmo (autos): uma lei não escrita, gravada nos corações (Rm 2,14-15), que
se explicita na consciência moral cristã como autonomia teonômica, que coincide com
o sentido de viver e caminhar no Espírito. Paulo levanta as questões morais para uma
fé e consciência adultas, em contraste com o modo de agir da criança por medo de
castigo ou esperança de recompensa (Rm 14,1-4), e enfatiza a coerência da ação
com a própria convicção, acentuando o aspecto comunitário e a repercussão de nossa
maneira de agir em outros membros da comunidade (Rm 14,12). Nesse texto, a
palavra-chave é “convicção interna de fé” (pistis).
Paulo integrou a noção popular e filosófica de consciência (syneidesis) na era
helênica com a da fé cristã, centrada na atividade do Espírito que ilumina o
discernimento e fortalece a decisão. Mas o direito e o dever de agir em consciência
se conjugam com o respeito pela consciência dos outros (1Cor 8,1-13 e 10,23-33).
A consciência é a voz, guia e força do Espírito: uma voz que não vem de fora,
mas é ouvida na interioridade; guia para discernir com prudência. “Bem-aventurado
aquele que examina as coisas e faz um juízo (…) o que não vem da convicção é
pecado” (Rm 14,23); força para decidir de forma responsável, denunciar
profeticamente e testemunhar bravamente (Mt 10,19-20).

3 Perspectiva histórica

A tradição patrística pregava a resposta fiel ao chamado de uma consciência


que era, ao mesmo tempo, humana ou natural e cristã ou espiritual; mas os latinos
acentuaram mais as imagens da consciência como tribunal, juiz ou testemunho
interior, enquanto os gregos preferiam a comparação com o pedagogo, guia e
acompanhante.
A tradição monástica e mística cultivou o discernimento segundo a
consciência que se deixa guiar pelo Espírito; mas, nas controvérsias medievais sobre
fé e razão, discorre, por razões diferentes, sobre a moral vivida a partir da fé pelo
caminho ascético-místico e a moral pensada nas disputas escolásticas. O exemplo
disso é a controvérsia sobre os aspectos subjetivo e objetivo da consciência (Bernardo
vs. Abelardo), que desembocou na síntese tomista de uma consciência iluminada pela
lei nova e interior do Espírito, para viver a primeira virtude teologal da caridade, através
do discernimento prático de acordo com a primeira virtude cardinal da prudência.
A tradição escolástica distinguiu a consciência como capacidade de discernir
o bem e o mal (synderesis) e como aplicação concreta (syneidesis, conscientia).
Tomás de Aquino (In 2 Sent., disp. 24, q.2, a.4) expôs isso em forma silogística: a
premissa maior, fruto da synderesis; a menor, da ratio, que determina o motivo de tal
ação ser má; a conclusão, fruto do julgamento da conscientia.
Na época dos manuais de teologia moral, a partir do séc. XVII, tendeu-se a
reduzir o papel da consciência para aplicar princípios de forma dedutiva, com clareza
e certeza para impor normas e censurar falhas.
Nas controvérsias sobre sistemas morais laxistas, rigoristas ou equilibrados
(probabilismo, probabiliorismo, equiprobabilismo) para superar dúvidas no julgamento
e na decisão moral, a consciência parecia ser reduzida a um instrumento para captar
a lei moral e aplicá-la. Este enfoque começou no século XIV (Ockham), pela
mentalidade voluntarista, legalista e extrinsecista, que via a consciência como um
simples árbitro do encontro entre lei objetiva e decisão subjetiva.
Os debates do séc. XX, sobre a ética da situação, provocaram a reação
autoritária do magistério eclesiástico, mas redescobriram o discernimento espiritual,
esquecido após o divórcio entre teologia moral e teologia mística.
O Concílio Vaticano II reafirmou a tradição do discernimento e assumiu a
autonomia de uma consciência madura, que não deve ser confundida com um
superego ou um impulso inconsciente freudiano (Gaudium et spes n.16-17, Dignitatis
humanae, n.3 e 14).
O desenvolvimento renovador da moral teológica pós-conciliar avançou
paralelamente à crise de consciência suscitada pela rejeição de métodos
anticoncepcionais considerados “não naturais” na encíclica Humanae vitae. Muitos
dos bispos e teólogos questionaram a ênfase excessiva no relacionamento entre o
magistério eclesiástico e a consciência obediente (HÄRING, 1981; MCCORMICK,
1989, p.38-41). Mas essa crise favoreceu a reflexão sobre a função da consciência
capaz de dissentir de forma responsável: não dissentir “da” igreja, mas dissentir “na”
igreja, sentindo-se igreja, para colaborar dessa maneira com a evolução da
compreensão da fé e de sua prática. Por outro lado, desenvolveu-se, nas décadas
seguintes, uma reação oposta, de tendência restauracionista, para retornar ao modo
de entender a consciência na teologia pós-tridentina, como foi exposto pelo esquema
De ordine morali, escrito pela comissão preparatória, mas rejeitado pelo Concílio.
A encíclica de João Paulo II, Veritatis Splendor (VS, 1993), estava preocupada
em evitar a crescente oposição entre as abordagens renovadoras, que buscavam
recuperar a melhor tradição da consciência (cf. VS n.38, 41, 42) e as tendências
antirrenovadoras, que enfatizavam o autoritarismo do magistério eclesiástico (ver VS
n.53, 59, 82). Mas, afetada pelo medo do relativismo e do subjetivismo dessas duas
décadas, essa encíclica colocou, de fato, um freio à renovação pós-conciliar,
criticando as correntes teológicas dessa linha (VS n.4, 5, 67, 90, 115). As exortações
pós-sinodais do Papa Francisco (Evangelii gaudium – EG e Amoris laetitia – AL)
recuperaram a mudança de paradigma pós-conciliar reafirmando uma moral de
discernimento (AL n.300-312), que fala mais de graça do que de lei (EG n.38), focada
na caridade e na misericórdia (EG n.37), respeitando a gradualidade e as limitações
no crescimento e maturação da consciência (EG n.44-45), acompanhando o
discernimento e ajudando a formar as consciências, mas sem pretender substituí-las
(AL n.37) nem proibi-las de pensar, decidir e amar por e a partir de si mesmas.

4 Desenvolvimento e maturidade da consciência

A psicologia evolutiva e a psicopedagogia (Piaget, Kohlberg) exploraram o


desenvolvimento da consciência moral no indivíduo. A antropologia cultural, a
sociologia e a psicanálise (Durkheim, Freud) estudaram a evolução do sentido moral
na diversidade de épocas e culturas. Essas abordagens sugeriram estágios de
crescimento, tanto na consciência individual como na história da espécie: prenomia,
tabus, condicionamentos heteronômicos, subjetividade autonômica, reciprocidade e
objetividade universalizadoras. Mas, tanto biográfica quanto historicamente, a
complexidade dos avanços e retrocessos impede a organização desses estágios de
crescimento de acordo com uma sequência ideal homogênea. Em vez disso, eles
expressam a aspiração à maturidade de uma consciência moral vista a partir do auge
de reflexões atuais. A psicoterapia aplicada à espiritualidade apresentou o
desenvolvimento para a maturação em “cinco níveis de consciência”; 1) sensorial (um
ego indiferenciado e dependente); 2) individual (um ego autocentrado independente);
3) pessoal (um sujeito interdependente, um “nós”); 4) cósmica (interdependente com
solidariedade universal); e 5) eterna (em comunhão com o absoluto) (SÁNCHEZ-
RIVERA, 1981).
Essas propostas diversas sobre a gênese e o desenvolvimento da consciência
convergem em uma noção dinâmica e holística de consciência moral, que concebe a
tarefa e o método de educá-la. Em vez de reduzir a consciência moral a reconhecer
mandatos ou proibições e recompensar o cumprimento ou reprovar a infração, ela se
revela como a semente da capacidade de captar valores morais pessoais e
transcendentes. Se a voz da consciência diz: torne-se o que você é e está chamado
a ser, a educação moral terá de facilitar o dinamismo do crescimento humano para
compreender e responder aos valores pessoais, espirituais e totais como, por
exemplo, amar e se deixar amar, perdoar e se deixar perdoar, agradecer e se deixar
agradecer.
5 A consciência em uma chave pessoal, comunitária e profética

A teologia moral pós-tridentina, até meados do séc. XX, além de continuar


distanciando-se da teologia espiritual, também permaneceu isolada das correntes
filosóficas da consciência na modernidade e na pós-modernidade, não dialogando
com o pensamento moderno sobre a autoconsciência (Descartes), nem com a
autonomia, a categorização e a universalidade da moral crítica (Kant); nem com as
suspeitas pós-modernas contra a consciência (Nietsche e Freud); nem com a
abordagem sobre a voz da consciência na fenomenologia existencial e hermenêutica
(Sartre, Heidegger). Esses esquecimentos e distanciamentos foram recuperados nas
reflexões sobre a consciência feitas por aqueles que têm relido a tradição bíblica,
espiritual e o melhor de Santo Tomás e Kant, articulando-a com as contribuições da
fenomenologia existencial (Rahner, Fuchs, Lonergan), a antropologia hermenêutica
(Ricoeur) e as teorias críticas da sociedade (Metz, Gutiérrez, Boff), dando origem à
abordagem personalista, comunitária e libertadora para a qual se encaminha o atual
modo de entender a consciência. Esta concepção de consciência amadureceu ao
longo das controvérsias pós-conciliares: moral da fé vs. autonomia (GAZIAUX, 1995),
o magistério eclesiástico vs. assentimento e dissenso individual (MIETH, 1994) e
sobre as teorias da libertação (VIDAL, 2000).

5.1 Consciência moral autônoma e autotranscendente

A consciência é expressão do melhor de si mesmo no núcleo íntimo da


pessoa, chave de sua dignidade. Para a teologia, a consciência somos nós mesmos,
ultimamente vinculados a Deus pela fé em atitude de escuta. Para a antropologia
moral, a consciência é a voz da autenticidade que nos chama a sermos nós mesmos.
A voz que escutamos como chamado à autenticidade de nossa autonomia é, em
última análise, voz de Deus (teonomia), mas de um Deus que, por seu Espírito, está
em nossa intimidade, não para se impor de maneira heterônoma, mas para fazer com
que sejamos autônomos (autonomia teonômica) (CAFFARENA, 1983, p.244). Se a
consciência moral capta o bem e o mal nos atos livres como imperativo de
autorrealização, a questão radical de “quem eu quero ser” será mais importante do
que a pergunta “o que devo fazer”; ao optar em consciência pelo bem, eu me escolho
como um projeto de personalização e humanização (LÓPEZ AZPITARTE, 1994, p.52-
54).
A consciência, à escuta do chamado do Espírito que a capacita para
responder, é a percepção pessoal da resposta apropriada. A profundidade na resposta
seria a opção fundamental, e a falha na resposta seria o pecado. A consciência é o
centro da nossa interioridade, o pano de fundo dos julgamentos e decisões que
exercitam a prudência. É assim que o senso de consciência esteve intimamente
relacionado com o fato de perceber explicitamente suas próprias atitudes básicas e
opções fundamentais, chave para a coerência e continuidade da vida moral do sujeito.
“O sujeito autenticamente pessoal, convertido intelectual, moral, emocional e
religiosamente, atua no mais alto nível de consciência existencial, moral e
responsável” (LONERGAN, 1973, p.5).

5.2 Consciência moral comunitária e eclesial

Outro significado do prefixo con de “cons-ciência”, sugere o aspecto social do


discernimento moral. Embora o último passo de um processo de discernimento seja
um juízo e decisão, cuja responsabilidade é pessoal e intransferível, a contribuição
comunitária é inevitável ao longo do caminho para a tomada de decisões, assim como
na formação da consciência. As faces do poliedro da consciência que discerne são:
a) atitudes básicas, b) dados sobre as circunstâncias, c) interpretação-reflexão, d)
contraste-conselho, e e) decisão pessoal, prudente e responsável (MASIÁ, 2015).
Nos passos prévios à decisão, o ponto de vista comunitário desempenha um
papel importante.
a) A comunidade eclesial ajuda a configurar atitudes básicas da fé,
influenciando a maneira de perceber a realidade, gerando hábitos de pensar, valorizar
e agir, influenciando, assim, nos juízos morais e nas decisões. Aquele que crê foi
educado em uma tradição na qual recebeu algumas orientações e critérios. As normas
transmitidas tradicionalmente são referência importante; mas não excluem a
necessidade de pensar e decidir por si mesmo. A comunidade ajuda a formar a
consciência e a acompanha no discernimento, mas não a substitui.
b) A consciência não funciona bem sem bons dados de experiência de vida e
das ciências. Ao manter os mesmos valores e princípios, diferentes conclusões podem
ser deduzidas de acordo com a mudança nos dados. Somente com dados não
podemos discernir, mas sem eles não podemos fazer um bom discernimento. A
comunidade de informação e comunicação, tanto dentro como fora da Igreja, ajuda a
garantir esses dados.
c) A partir das atitudes básicas diante dos valores e com dados suficientes,
um julgamento deve ser emitido em cada caso. Aqui entra em jogo o papel de um
pensar honesto que pergunta, analisa os dados, interpreta e não cessa de buscar
criativa e criticamente as respostas. Esse pensar não evita nem substitui a fé, nem a
ciência ou a experiência.
d) Não estamos sozinhos diante da urgência da decisão. Precisamos da ajuda
de outras pessoas para contrastar as interpretações. Diversas comunidades de
pessoas podem ajudar: por exemplo, a comunidade de pesquisadores científicos; a
comunidade do diálogo de pensamento; a comunidade de relações humanas dentro
de uma sociedade plural; as comunidades que compartilham convicções religiosas
etc. No âmbito destas ajudas, se enquadra o papel orientador destas últimas – que
nunca deve ser dominante ou autoritário – a partir das respectivas tradições
comunitárias, culturais ou religiosas. Ajuda-nos a corrigir a passagem do tempo e a
relação com as outras pessoas.
Os debates, no final do século passado, na Igreja, sobre o sentir e dissentir
ajudaram a amadurecer a consciência eclesial, para além das velhas oposições entre
consciência individual e magistério eclesiástico, na compreensão do papel do
acompanhamento pastoral como auxílio ao discernimento da consciência, mas sem
substituí-la para decidir em seu lugar. É papel da comunidade eclesial ajudar a educar
o juízo moral e a formação da consciência dos fiéis. Como portadora de uma tradição
em questões morais, a Igreja acumulou, ao longo dos séculos, uma riqueza de
sabedoria prática que fornece importantes orientações na hora de discernir. A
consciência as respeitará de forma crítica, mas sem considerá-las como um armazém
de respostas pré-fabricadas. A comunidade de fé torna-se o lugar onde seus membros
podem dialogar, estudar e discernir em comum os problemas morais. O papel da
igreja, mais do que o de legislar, é o de iluminar, a partir de uma dimensão elevada,
com propostas de valores. Às vezes, terá que assumir uma posição oficial sobre
problemas concretos, cumprindo, perante a sociedade, uma função que pode ser, de
acordo com os casos, terapêutica ou profética. Quanto mais concretos forem os
problemas, menos radicalmente assertivas poderão ser as tomadas de posição.
Respeitar essas tomadas de posição oficiais da igreja não significa segui-las
cegamente, como se elas eximissem de pensar e decidir conscientemente.
e) Uma decisão responsável (que não é o mesmo que correta ou com cem
por cento de certeza) seria a que levasse devidamente em consideração as quatro
etapas anteriores. Talvez, depois de algum tempo, analisemos a decisão e
descubramos que estava errada; mas isso não significa que tenha sido irresponsável.
Nesse sentido, foi uma decisão eticamente correta. A consciência antecedente terá
que pressupor atitudes básicas de resposta aos valores, antes do mencionado
processo de informar-se, pensar e debater. Durante o processo, a consciência
também deve ser uma consciência acompanhada comunitária e eclesialmente. Depois
de passar pelo processo, é necessário responsabilidade para adotar resoluções
prudentes conscientes, que não precisam depender cem por cento de certezas, nem
podem ser impostas a outras pessoas. Quando queremos conjugar o respeito às
pessoas com a fidelidade às normas, os conflitos são inevitáveis. Nessas ocasiões, a
sabedoria prática deve intervir como mediadora. “A sabedoria prática”, diz Ricoeur,
“consiste em inventar as condutas que melhor satisfaçam às exceções exigidas pela
nossa solicitude para com as pessoas, traindo o menos possível as normas”
(RICOEUR, 1990, p.312).

5.3 Consciência moral profética e libertadora

A teologia da libertação tem revalorizado o papel profético e libertador da


consciência, ao mesmo tempo em que promove o chamado à a comunidade crente
para converter-se em voz dos sem voz e consciência social que denuncie a
manipulação ideológica das consciências, a opressão e exclusão das pessoas, além
fomentar a conscientização sobre tal situação. O clamor do povo injustiçado (Ex 3,7),
as denúncias de injustiça pelos profetas (Am 5,18-24) e a mensagem evangélica de
proximidade e misericórdia (Lc 10 e Mt 25) se atualizam no contexto de teologias
libertadoras como responsabilidade da consciência profética, para reconhecer as
injustiças sistêmicas e males estruturais que exigem ser denunciados pela
comunidade solidária com as vítimas. Esta consciência profética chama não só aliviar
a dor e a pobreza, mas a quebrar as suas causas sociais, estruturais, políticas e
econômicas. Essa consciência atualiza, a partir da fé, o amor ao próximo na luta contra
toda violência, racismo, exclusão, discriminação etc. Não o faz pedindo paternalmente
que se inclua o pobre no sistema, mas exigindo a mudança do sistema que exclui o
pobre. Esta consciência ouve Deus escutando o clamor do pobre, o que a levará a
orientar seu discernimento e motivará suas decisões.

6 Encontro de moralidade e espiritualidade na consciência

A teologia mística de Boaventura viu na consciência, capaz de captar o bem,


um movimento amoroso da vontade, ao invés de um julgamento cognitivo. Mas a
conjugação da deliberação ética e do discernimento espiritual enfraqueceu-se à
medida que se acentuava a desconexão entre a moralidade e a espiritualidade. Do
séc. XVII ao séc. XIX cresceu a distância entre moral de preceitos e espiritualidade
dos conselhos evangélicos. Em meados do século XX, chegam com atraso as
tentativas de recuperar o diálogo da moral teológica com a espiritualidade. A
recuperação da tradição bíblica de discernimento e da tradição filosófica reflexiva
ajudam a relacionar, ao mesmo tempo em que as diferenciam, as funções respectivas
da experiência moral e da experiência religiosa.
A voz da consciência, que dita o que deve ser feito ou não ser feito, “sai das
profundezas de mim mesmo (…) é o clamor da realidade no caminho do absoluto
(ZUBIRI, 2007, p.101-104). A experiência metafísico-religiosa da religação e a
experiência moral da obrigação são diversas, mas relacionadas. “Estamos obrigados
a algo porque anteriormente estamos religados ao poder que nos faz ser”. (ZUBIRI,
2007, p.93). A experiência da religação é o fundamento da consciência moral da
obrigação. O fenômeno da consciência não se reduz a uma obrigação moral. A
consciência não se reduz a um fenômeno moral. Nela, duas experiências diferentes,
a moral e a religiosa, estão intimamente relacionadas. “A voz da consciência é (…) a
palpitação e a batida da divindade no seio do espírito humano” (ZUBIRI, 1997, p.66-
67). A experiência filosófico-religiosa da “religação” fundamenta a experiência moral
da obrigação. “Deus está manifesto nas profundezas de cada homem (…) na voz
absoluta da consciência” (ZUBIRI, 1997, p.72-73). A dimensão religiosa da realidade
pessoal se desvela na consciência, lugar de encontro de moralidade e espiritualidade.

Juan Masiá, SJ. Universidad Católica Santo Tomás, Osaka (Japão).


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TRABALHO

Sumário

1 Definição
2 O contexto do mundo do trabalho
3 Doutrina Social da Igreja
4 América Latina
5 Sistematização
6 Referências bibliográficas

1 Definição
O trabalho é o âmbito da existência em que a pessoa se depara com todos os
aspectos que marcam sua identidade como indivíduo e como ser social. O verbo
trabalhar vem do latim tripaliare (torturar), derivado de tripalium, uma espécie de
instrumento de tortura composto de tres e palus. Em quase todos os idiomas, se utiliza
esse verbo para expressar ideia de fadiga. O conceito alemão arbeit se usa com um
significado equivalente. No idioma português e no espanhol, é derivado de tripalium,
assim como travailler, em francês significou “sofrer” pelo menos até o século XVI.
Na história do Ocidente, o sentido do trabalho sofre mutações segundo os
contextos históricos (cf. MERCURE e SPURK, 2005). Na civilização greco-romana,
estruturada sobre o modo de produção escravista, o trabalho não era um elemento da
vida boa. Em Histórias, Heródoto registra que os trabalhos manuais (cheirotecnai)
eram rejeitados pelos homens livres. Filósofos como Platão ensinavam que tanto os
cheirotecnai como o trabalho artesanal (banausia) eram atividades inferiores. Cícero
classificava o trabalho manual no nível mais baixo da hierarquia dos valores. O
trabalho para a sobrevivência era identificado à palavra negócio, literalmente,
“negação do ócio”. O ócio era a forma nobre de ocupar o tempo com a arte do governo
da pólis (política) e com a filosofia (contemplação das ideias). As atividades
relacionadas com a sobrevivência material ficavam a cargo dos servos, escravos e
camponeses, pessoas de segunda categoria (ARENAS POSADAS, 2003).
O Cristianismo inaugura uma lenta e progressiva mudança de perspectiva.
Nela, os monges tiveram influência inquestionável. São Basílio (330-379) ensinava
que “sobram palavras para mostrar os males da ociosidade, como ensina o Apóstolo:
‘Aquele que não trabalha que não coma’ (2Tes 3,10). Do mesmo modo que cada um
tem necessidade do alimento, assim também deve trabalhar segundo suas forças”
(BASÍLIO, 1857-1866, p.37).
Os monges não estavam submetidos a critérios econômicos, mas à
espiritualidade. Isso explica sua preocupação com as distrações da vida
contemplativa: “Ocupa-te em algum trabalho, de modo que o diabo te encontre sempre
com as mãos na obra”, exortava São Jerônimo (347-420). A sentença ora et labora,
da Regra de São Bento (século VI), é origem da moderna ética do trabalho. A regra
sobre o trabalho manual – De opere manuum Quotidiano – instrui que a ociosidade é
inimiga da alma; por isso, em determinados tempos, os monges ocupem-se dele. Os
monges que se ocupavam em fazer cestas para rompê-las em seguida e refazê-las
tinham como fim “juntar tesouros no céu” (Mt 6,20). O trabalho era motivado pela
caridade. A preocupação em garantir o sustento estava acompanhada pelo socorro
aos necessitados (JACCARD, 1971).
Santo Agostinho (354-430) aprofunda esta vinculação entre trabalho, oração
e caridade. Em seu estado original, o trabalho era agradável ao corpo e à mente, um
livre exercício da razão e uma forma de louvar a Deus. O cansaço é uma
consequência da finitude humana e uma recordação da primitiva infidelidade. Seu
extremo é a ociosidade. Monges de Cartago defendiam a renúncia ao trabalho manual
para dedicar-se totalmente à contemplação. Em resposta, Agostinho escreveu o livro
De Opere monachorum. A razão fundamental para o trabalho, sem dúvida, é a
edificação da cidade de Deus, concretizando o conceito cristão de charitas na história
da humanidade. O trabalho e os bens materiais bem ordenados ajudam a edificar a
cidade de Deus – núcleo da intenção bem ordenada (AGOSTINHO, Cidade de Deus).
A tradição escolástico-tomista acentuou novos sentidos ao trabalho. Na Suma
Teológica, de Tomás de Aquino (1225-1274), o trabalho é abordado a partir do
princípio universal da preservação da vida. A necessidade de sobrevivência é sua
primeira razão. O trabalho pertence à ordem da matéria e não se deve buscar mais
do que o sustento. Outro critério é o da utilidade comum. O valor de uma coisa
depende da sua utilidade para a comunidade (ST II-II q.179-189).
Na modernidade ocorre uma mudança radical no conceito de trabalho (DÍEZ,
2001). Abandona-se o sentido religioso em favor de fins primordialmente materiais. A
revolução industrial irá solidificar este processo de mudança. John Locke, um dos pais
da economia política do liberalismo, vê no trabalho a origem da propriedade privada
(LOCKE, 1990). Adam Smith, fundador da moderna ciência econômica, vê no trabalho
a principal origem da riqueza das nações (SMITH, 1996). Com a consolidação do
capitalismo, o trabalho na indústria e a relação salarial passam a definir todas as
demais relações sociais (PARIAS, 1965). O processo de proletarização é um
acontecimento nuclear da consolidação da modernidade ocidental. Na economia de
mercado, o valor dos bens é estabelecido pela lei da oferta e da procura. O salário é
o preço da mercadoria trabalho (POLANYI, 2000). O indivíduo configura sua
personalidade através do trabalho. Os “melhores” trabalhos são os mais bem
remunerados e prestigiados. Max Weber (1864-1920), ao investigar as origens do
racionalismo ocidental do Capitalismo, conclui que a espiritualidade do trabalho da
Reforma Protestante impulsionou uma ética profissional (WEBER, 2004). A teoria da
predestinação individual do calvinismo ampliou o conceito de vocação a todas as
profissões honestas. O homem deve agradar a Deus com seu trabalho.
Para Karl Marx, o trabalho é, primeiramente, uma categoria antropológica,
pois se trata de uma atividade essencial da natureza humana. O progresso econômico
e cultural acontece em torno do aperfeiçoamento dos meios de trabalho (MARX,
2013). O trabalho livre é a essência do homem e o motor da história das civilizações.
A história universal é a criação do homem pelo trabalho (cf. MARX, 2007). Contudo, a
economia política o conduziu ao processo de degradação traduzido pelo conceito de
alienação. O trabalhador foi convertido em uma besta de trabalho, cujas exigências
são reduzidas a necessidades físicas essenciais dos animais (MARX, 2004). O
mecanismo da mais-valia e a propriedade privada reduziram o trabalhador a esta
condição (MARX, 2013). O trabalho alienado representa uma verdadeira mutilação da
humanidade e uma nova forma de escravidão (cf. MARX, 2004). Aqui está a origem
do conflito entre trabalho e capital, a luta de classes (cf. MARX, 2007).

2 Mundo do trabalho em contexto

Desemprego e precariedade, capitalismo neoliberal globalizado e economia


financeirizada, novas tecnologias e competitividade são conceitos que trazem nova
maneira de compreender o trabalho. A convergência entre desenvolvimento
tecnológico e informação produziu uma mutação profunda. As tecnologias ajustam o
ser humano ao mercado e o trabalhador às máquinas. O trabalho no chão da fábrica
perde espaço para o trabalho imaterial, aquele que cria bens como o conhecimento,
a informação, o design, a imagem, emoções e ideias (GÓRZ, 2005). As novas
tecnologias reforçaram a capacidade de expansão do sistema financeiro. Enquanto a
parte do capital aplicada à produção de bens e serviços diminui, aumenta o valor do
capital aplicado às finanças. Empregos desaparecem na mesma velocidade do
crescimento das finanças. O estatuto do trabalhador é substituído por contratos
temporários (CASTEL, 1998). As políticas de terceirização eliminam os direitos
garantidos em lei. Os sindicatos perdem capacidade de negociação. A classe
trabalhadora tem um perfil mais heterogêneo, fragmentado e empobrecido. O trabalho
em regime de escravidão é uma realidade.
O crescimento populacional inunda o mercado de trabalho com milhões de
pessoas; o agronegócio expulsa os pequenos agricultores para as cidades,
convertendo-os em reserva de mão de obra barata. Conflitos religiosos, políticos e
econômicos e desastres ambientais forçam milhares de pessoas a se deslocarem em
busca de sobrevivência, ficando expostas a uma situação de fragilidade que pode
conduzi-las para a exploração.
A discriminação racial e de gênero é outra das características do mundo do
trabalho. Negros e mulheres ganham proporcionalmente menos que homens brancos.
O desemprego atinge de forma mais intensa a população negra. As mulheres negras
são duplamente discriminadas, pela raça e sexo. A mulher vem ocupando espaços no
mercado. Entretanto, essa incorporação tem sido desigual em relação ao homem. Os
contratos costumam ser de curta duração e os salários inferiores. Muitas mulheres
têm dupla jornada, ou seja, realizam o trabalho doméstico e na empresa. Mantém-se
a divisão sexual do trabalho.

3 Doutrina social da Igreja

a) Rerum novarum

O ponto de partida da consciência eclesial sobre a exploração do trabalhador


imposta pelo capitalismo é a encíclica Rerum novarum (RN) de Leão XIII (1878-1903).
A condição dos operários foi a razão da publicação da primeira encíclica social da DSI
(GASDA, 2011). Os operários foram jogados em uma situação de infortúnio e de
miséria imerecida e terrível (RN n.1). A ideia do trabalho como mercadoria é rejeitada
pela Igreja: “É vergonhoso e desumano usar dos homens como de vis instrumentos
de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços” (RN n.10).
O trabalho é um direito natural, é pessoal e necessário (RN n.32) e ao trabalhador
correspondem os frutos do seu trabalho, ou seja, dá o direito de propriedade (RN n.3,
33). Pio XI, em 1931, faz eco dessas palavras: “O trabalho não é um simples produto
comercial, mas deve reconhecer-se nele a dignidade humana do operário, e não pode
permutar-se como qualquer mercadoria” (Quadragesimo anno n.5).

b) Concílio Vaticano II

O elemento teológico do trabalho humano é destacado no Concílio Vaticano


II. Todo trabalho realizado para conseguir melhores condições de vida contribui de
alguma forma na construção do Reino de Deus. A pergunta sobre o sentido da
atividade humana (GS n.33) também é dirigida ao trabalho: “A atividade humana
individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos
séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus”
(GS n.34). O trabalho pode ser uma coparticipação na obra da Criação:
Os homens e as mulheres que, ao ganhar o sustento para si e suas famílias,
de tal modo exercem a própria atividade que prestam conveniente serviço à
sociedade, com razão podem considerar que prolongam com o seu trabalho a obra
do Criador, ajudam os seus irmãos e dão uma contribuição pessoal para a realização
dos desígnios de Deus na história (GS n.34).
É apontado o crescimento pessoal como um aspecto importante: “Quando
age, o homem não transforma apenas as coisas e a sociedade, mas realiza-se a si
mesmo (…). Este desenvolvimento, bem compreendido, vale mais do que os bens
externos que se possam conseguir” (GS n.35). À luz da Revelação, o valor do trabalho
é esclarecido plenamente em Cristo: “oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se
associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime,
trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré” (GS n.67). O trabalho é um
esforço temporal que interessa em grande medida ao Reino de Deus” (GS n.39).
Na vida socioeconômica (GS n.63-72), o trabalho é enquadrado no âmbito do
princípio da dignidade humana: “o homem é o autor, o centro e o fim da vida
socioeconômica” (GS n.63). Portanto, o trabalho é muito superior aos outros
elementos da economia, uma vez que estes não têm outra função que a de
instrumentos (GS n.67). Não há trabalho sem descanso. O esforço responsável e
árduo dedicado ao trabalho deve ser seguido por “tempo de repouso e descanso que
permita cultivar a vida familiar, cultural e religiosa. Ainda mais, que seja capaz de
desenvolver livremente energia e qualidades, que no trabalho profissional apenas é
possível preservar” (GS n.67).

c) Laborem exercens

A encíclica Laborem exercens (1981), de João Paulo II, é o texto mais


importante da DSI neste tema. Nela, “a questão dos operários deixou de ser um
problema de classe, e deve ser tomado em consideração no âmbito mundial das
desigualdades e das injustiças” (LE n.2). O documento identifica a questão
antropológica que está origem dos conflitos sociais. Trata-se de uma inversão na
ordem dos conceitos, isto é, a primazia do “capital” sobre o “trabalho” que resulta na
alienação da pessoa (GASDA, 2011b). O capital transformou o trabalho em
instrumento de acumulação material (cf. LE n.13). É frente a esta inversão, que
provoca a exploração, a escravidão e a alienação que o primado do trabalho sobre o
capital deve ser reafirmado (LE n.11). O valor primordial do trabalho está vinculado ao
fato que quem o executa é uma pessoa criada à imagem e semelhança de Deus (LE
n.4). “Antes de tudo o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho” (LE
n.6).
Desta essência do trabalho emergem seu sentido objetivo e o seu sentido
subjetivo. O sentido objetivo refere-se ao conjunto de atividades, recursos,
instrumentos, técnicas, formas de gestão e tecnologias. São fatores contingentes que
variam nas suas modalidades com a mudança das condições técnicas, culturais,
sociais e políticas (LE n.5). Em sentido subjetivo, é o agir humano enquanto leva a
cabo as ações que pertencem ao processo do trabalho e correspondem à sua
vocação. O trabalho procede das pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus,
chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da Criação (LE n.6). A
subjetividade impede considerar o trabalho como simples mercadoria. O trabalho é
superior a todo e qualquer outro elemento da economia (LE n.10). Este princípio vale,
em particular, no que tange ao capital (LE n.12). Também o capital é fruto do trabalho.
Trata-se da “tradução, em termos econômicos, do princípio ético do primado das
pessoas sobre as coisas” (LE n.12). A propriedade dos meios de produção deve estar
a serviço do trabalho (LE n.14). A Laborem exercens insere os direitos trabalhistas no
conjunto dos Direitos Humanos (LE n.16). Tais direitos se baseiam na natureza
humana. Os sindicatos e as organizações de trabalhadores são expoentes da luta
pela justiça social (LE n.20).
O sentido subjetivo do trabalho revela a dimensão espiritual da pessoa
humana, sua abertura à transcendência, ou seja, a espiritualidade do trabalho. João
Paulo II recupera os elementos teológicos desenvolvidos principalmente na GS em
forma de síntese, nos quatro últimos parágrafos da encíclica (cf. LE n.25-27): o
homem, criado à imagem e semelhança de Deus, participa de sua obra criadora; tem
em Cristo, o homem do trabalho e anunciador do Reino, seu ponto de referência. O
mundo do trabalho é um lugar imprescindível para assumir este compromisso com a
transformação da sociedade à luz do Reino (cf. LE n.27). Considerar o trabalho
unicamente em seu sentido econômico é mutilá-lo em sua essência e reduzi-lo a uma
tarefa mecânica. Deve-se pensar um trabalho que liberte as potencialidades para o
cuidado e cultivo da Criação (Gn 2, 15).

d) Bento XVI e o trabalho decente

Bento XVI, em sintonia com a OIT (Organização Internacional do Trabalho),


insere os direitos trabalhistas no marco dos direitos humanos. Atualmente o Programa
Trabalho Decente é o ponto de convergência das propostas e convenções da OIT. A
qualidade do emprego é tão importante quanto a quantidade.

Bento XVI explica a palavra decência ao trabalho:

Significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade


essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe
eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua
comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem
respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as
necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam
constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-
se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para
reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que
assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa (CV n.63).
O conceito inclui todas as pessoas que vivem do seu trabalho. Por princípio,
todo trabalho humano deveria ser decente, gerador de valores relacionais, éticos e
espirituais.
A implementação do Programa Trabalho Decente depende da articulação dos
próprios trabalhadores. A Igreja expressa seu apoio ao movimento sindical (RN
n.34.39-40; GS n.68; CDSI, n.305-309). Os sindicatos enfrentam o desafio de
redefinir-se diante das reconfigurações do mercado de trabalho (ANTUNES, 2005;
GORZ, 1982). Bento XVI reconhece que “o conjunto de mudanças sociais e
econômicas cria grandes dificuldades para as organizações sindicais no cumprimento
de seu papel de representar os interesses dos trabalhadores” (CV n.25). Embora o
movimento sindical lute pelos interesses da categoria, não pode ignorar os problemas
de toda a sociedade (SANTANA e RAMALHO, 2003): “a sociedade civil é, de fato, o
lugar mais apropriado para uma ação em defesa do trabalho, especialmente em favor
dos trabalhadores explorados e sem representatividade, cuja amarga condição passa
despercebida aos olhos distraídos da sociedade” (CV n.64).

e) Papa Francisco

Papa Francisco, na Laudato si (LS), articula a ecologia integral ao trabalho


decente, à sustentabilidade e à justiça social: “uma ecologia integral exige que se leve
em conta o valor subjetivo do trabalho aliado ao esforço de se prover acesso ao
trabalho estável e digno para todos” (LS n.191). A ecologia integral envolve dois
aspectos: a dignidade do trabalhador e o cuidado com o meio ambiente.
O trabalho sustentável passa por garantir acesso universal ao trabalho
decente e ao fomento da saúde. Prover cada ser humano de educação e de recursos
para assegurar uma condição de trabalho seguro. Incluir os vulneráveis habilitando-
os a desenvolverem suas capacidades. Para se conseguir continuar a dar emprego,
é indispensável promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a
criatividade empresarial (LS n.129).
O trabalho sustentável implica o cuidado com o meio ambiente.
Da relação entre natureza, trabalho e capital depende o futuro da espécie
humana. O mundo do trabalho é parte da solução da crise ambiental.
Em qualquer abordagem de ecologia integral que não exclua o ser humano, é
indispensável incluir o valor do trabalho. Na narração bíblica da criação, Deus colocou
o ser humano no jardim recém-criado (cf. Gn 2, 15), não só para cuidar do existente
(guardar), mas também para trabalhar nele a fim de que produzisse frutos (cultivar)
(LS n.124).
Papa Francisco tem sido enfático na defesa dos trabalhadores: “Terra, teto e
trabalho – isso pelo que vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso é a
Doutrina Social da Igreja… Não existe pior pobreza material do que a que não permite
ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho” (Encontro Mundial de Movimentos
Populares, Roma, 2014).

4 América Latina

O mundo do trabalho foi abordado nas Conferências do CELAM (Conselho


Episcopal Latino-americano). Reunidos em Medellín, os bispos dirigiram-se
a todos aqueles que, com o esforço diário, vão criando os bens e serviços que
permitem a existência e o desenvolvimento da vida humana. Pensamos muito
especialmente nos milhões de homens e mulheres latino-americanos que constituem
o setor camponês e operário. Eles, na sua maioria, sofrem, esperam e se esforçam
por uma mudança que humanize e dignifique seu trabalho. Sem desconhecer a
totalidade do significado humano do trabalho, aqui o consideramos como estrutura
intermediária, enquanto constitui a função que dá origem à organização profissional
no campo da produção (Doc. Justiça).
Em Santo Domingo, o tema foi tratado de forma mais sistemática no item
n.2.2.5 – Trabalho). Uma das realidades que mais preocupa a Igreja em sua ação
pastoral
é o mundo do trabalho, por sua significação humanizadora e salvífica, que tem
sua origem na vocação cocriadora do homem como “filho de Deus” (Gn 1,26) e que
foi resgatado e elevado por Jesus, trabalhador e “filho de carpinteiro” (Mt 13,55 e Mc
6,3). A Igreja, como depositária e servidora da mensagem de Jesus, vê o homem
como sujeito que dignifica o trabalho realizando-se a si mesmo e aperfeiçoando a obra
de Deus, para fazer dela um louvor ao Criador e um serviço aos irmãos (Santo
Domingo n.182).

O mundo do trabalho é campo pastoral, por isso


alerta-se para uma deterioração em suas condições de vida e no respeito aos
seus direitos; um escasso ou nulo cumprimento de normas estabelecidas para os
setores mais débeis; uma perda de autonomia por parte das organizações de
trabalhadores devido a dependências ou autodependências de diversos gêneros;
abuso do capital que desconhece ou nega a primazia do trabalho; poucas ou nulas
oportunidades de trabalho para os jovens. Alerta-se para a alarmante falta de trabalho
ou desemprego com toda a insegurança econômica e social que isso implica (Santo
Domingo n.183).
Diante desta dura realidade, a defesa intransigente dos direitos do trabalho
impõe-se como o desafio mais importante: “Os direitos do trabalhador são um
patrimônio moral da sociedade que deve ser tutelado por uma adequada legislação
social e sua necessária instância judicial, que assegure a continuidade confiável nas
relações de trabalho” (Santo Domingo n.184). São propostas três linhas pastorais:
impulsionar e sustentar uma pastoral do trabalho em todas as nossas dioceses, a fim
de promover e defender o valor humano do trabalho; apoiar as organizações próprias
dos homens do trabalho para a defesa de seus legítimos direitos, em especial de um
salário suficiente e de uma justa proteção social para a velhice, a doença e o
desemprego; favorecer a formação de trabalhadores, empresários e gover-nantes em
seus direitos e em seus deveres, e propiciar espaços de encontro e mútua
colaboração (Santo Domingo n.185).
Em Aparecida, os bispos estimularam os empresários, os agentes
econômicos da gestão produtiva e comercial, tanto da ordem privada quanto
comunitária, a serem criadores de riqueza em nossas nações, quando se esforçam
em gerar emprego digno. Igualmente, estimularam “os que não investem seu capital
em ação especulativa, mas em criar fontes de trabalho, preocupando-se com os
trabalhadores, considerando-os ‘a eles e a suas famílias’” (DAp n.404). Um dos
maiores desafios consiste em formar na ética cristã que estabelece como desafio a
conquista do bem comum a criação de oportunidades para todos, a luta contra a
corrupção, a vigência dos direitos do trabalho e sindicais; é necessário colocar como
prioridade a criação de oportunidades econômicas para setores da população
tradicionalmente marginalizados, como as mulheres e os jovens, a partir do
reconhecimento de sua dignidade. Por isso, é necessário trabalhar por uma cultura da
responsabilidade em todo nível que envolva pessoas, empresas, governos e o próprio
sistema internacional (DAp n.406).
Foram indicadas duas linhas de ação voltadas para categorias sociais que
mais sofrem no mundo do trabalho, os jovens e as mulheres: é imperativa a
capacitação dos jovens para que tenham oportunidades no mundo do trabalho e evitar
que caiam na droga e na violência (DAp n.446); promover o diálogo com autoridade
para a elaboração de programas, leis e políticas públicas que permitam harmonizar a
vida de trabalho da mulher com seus deveres de mãe de família (DAp n.458). Em
Aparecida, levantou-se um desafio inédito: “a formação de pensadores e formadores
opinião no mundo do trabalho, dirigentes sindicais, cooperativos e comunitários” (DAp
n.492).

5 Sistematização

A complexidade do mundo do trabalho envolve a antropologia, a política, o


direito, a cultura, a economia e a filosofia. A relação do ser humano com Deus é a
perspectiva do pensamento teológico sobre o trabalho. Qualquer reflexão sobre o
trabalho deve ter como referência o princípio da dignidade humana. Cada pessoa,
independentemente da idade, condição ou capacidade, é uma imagem de Deus e,
portanto, dotada de um valor irredutível. Cada pessoa é um fim em si, nunca um
instrumento valorizado pela sua utilidade. O reconhecimento desta dignidade é o
primeiro critério para avaliar modelos econômicos e a organização da divisão do
trabalho. Seu estatuto está consolidado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU.
O trabalho humano é uma atividade geradora de relações sociais. Em virtude
da imago Dei, os seres individuais são também seres relacionais. Individualidade e
sociabilidade se objetivam em estruturas e relações. O sentido do trabalho não se
esgota no sucesso profissional. Minha relação no trabalho diz quem eu sou para outro.
“O princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais são e devem ser a pessoa
humana, a qual, por sua mesma natureza, tem absoluta necessidade da vida social”
(GS n.25).
Colocar o trabalho a serviço da dignidade humana é ter como meta o bem
comum (GS n.27). Nenhum grupo social, indivíduo, empresa ou estado pode
desentender-se do bem comum. O trabalho humano está na origem da empresa como
organização de pessoas. Por meio do trabalho, as empresas produzem muitas das
condições importantes que contribuem para o bem comum da sociedade. A criação
de postos de trabalho é um aspecto imprescindível para alcançar o bem comum. Não
se entende o trabalho humano desconectado do descanso. Neste sentido, o ápice do
ensinamento bíblico sobre o trabalho é o mandamento do repouso sabático. A
memória e a experiência do sábado constituem um baluarte contra a escravização do
homem ao trabalho, voluntário ou imposto, contra toda forma de exploração, larvada
ou manifesta. O repouso sabático, de fato, mais que para consentir a participação no
culto de Deus, foi instituído em defesa do pobre; tem também uma função liberatória
das degenerações antissociais do trabalho humano (CDSI n.258).
O povo de Israel, que começou com aquela experiência de libertação de um
grupo de trabalhadores submetidos ao trabalho forçado, se alimenta do cumprimento
da promessa da plena libertação, a irrupção do Reino e o descanso em Deus (cf. Hb
4,10-11). Na legislação de Israel, a instituição do sábado como memorial do êxodo da
alienação do trabalho, é o alicerce que sustenta os seis dias restantes.
O Filho de Deus, ao assumir a condição de trabalhador braçal, redimensiona
o sentido do trabalho. O mundo do trabalho é lugar de irrupção do Reino de Deus e
sua justiça (Mt 6,33). Para os cristãos, o verdadeiro sábado é Cristo, celebrado no
domingo. É ele o Senhor do sábado (Mc 2,27) que inaugurou o sábado eterno (Hb
4,10) já prefigurado no sétimo dia da criação (Gn 2,1-3). O domingo revela a dimensão
escatológica do trabalho. O descanso é identificado com a situação da criação de
Deus (Gn 2, citado em Hb 4,4). O domingo é uma prefiguração deste descanso, não
é apenas uma pausa do trabalho. A autorrealização alcançada no trabalho sempre é
penúltima. O trabalho é uma forma de expressão da identidade humana, mas não de
toda a identidade.
A natureza também precisa descansar. O sétimo dia representa um limite ao
poder transformador do trabalho humano entendido como proteção e cultivo da
criação. No trabalho, a pessoa descobre-se criadora, mas também como criatura
frágil. A humanidade, irmanada em sua capacidade de trabalho, também está
irmanada em sua debilidade e nos limites da natureza.
Pio XI afirmou que o maior escândalo do século XIX foi a Igreja ter perdido a
classe operária. Para que este escândalo não volte a repetir-se no século XXI, não
basta acumular documentos e declarações de boas intenções. A solidariedade com
os trabalhadores é uma maneira de concretizar a opção preferencial pelos pobres.
“Os pobres aparecem, em muitos casos, como resultado da violação da dignidade do
trabalho humano” (Laborem exercens, n.8). A partir da Revolução Industrial, a
realidade dos pobres e o mundo do trabalho estão interconectados. A constituição de
uma pastoral operária libertadora é o principal desafio para os cristãos na América
Latina. O compromisso de libertar o trabalho de uma “economia que mata” (papa
Francisco) e emancipar os trabalhadores está implícito na práxis dos cristãos. Libertar
o trabalho dos interesses financeiros, da competitividade desenfreada e da obsessão
pela riqueza. Resgatar a economia como instrumento a serviço da vida.
Élio Gasda, SJ. FAJE, Belo Horizonte, Brasil. Texto original em português.

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JUSTIÇA SOCIAL
Sumário

1 Status questione

2 Escolástica-tomista

3 Da justiça legal à justiça social

4 Doutrina Social da Igreja

5 Novos enfoques e perspectivas

6 Sistematização

7 Referências bibliográficas
1 Status questione

Ao se adentrar em um tema de tamanha complexidade, nos cabe indagar a


possibilidade de realização da Justiça Social a partir das condições evidenciadas na
realidade. As desigualdades sociais vêm aumentando. Para os defensores de um
sistema capitalista neoliberal, a desigualdade não só é necessária, mas ela está na
“essência” deste modelo de sociedade. A forte rejeição do capitalismo liberal à justiça
social é um dado relevante. Ludwig von Mises, um expoente da Escola Austríaca de
economia, justifica a desigualdade social nos seguintes termos: “A desigualdade de
renda e de riqueza é uma característica essencial da economia de mercado. Sua
eliminação a destruiria completamente” (MISES, 2010, p. 347-948).

Friedrich Hayek, um dos principais ícones do pensamento neoliberal,


expressa toda sua aversão ao conceito de justiça social. Primeiro, desclassifica a
Igreja:

Parece ter sido abraçada por amplo segmento do clero de todas as tendências
do cristianismo, as quais, à medida que perderam a fé numa revelação sobrenatural,
parecem ter buscado refúgio e consolo numa nova religião “social” que substitui uma
promessa celeste de justiça por outra temporal, e esperam poder assim prosseguir na
sua missão de fazer o bem. A Igreja Católica Romana, especialmente, fez da meta de
“justiça social” parte de sua doutrina oficial (HAYEK, 1985, p. 84).

Ato seguido, desclassifica seus teóricos:

A expressão “justiça social” não é uma expressão ingênua de pessoas de boa


vontade para com os menos afortunados, tendo, antes, se tornado uma insinuação
desonesta. Para que o debate político seja honesto, é necessário que as pessoas
reconheçam que a expressão é desonrosa do ponto de vista intelectual, símbolo de
demagogia ou do jornalismo barato, que pensadores responsáveis deveriam
envergonhar-se de usar (HAYEK, 1985, p. 118).
A Doutrina Social Igreja (DSI) é reconhecida até pelos seus maiores
adversários como defensora da justiça social. A desigualdade social é intolerável e a
humanidade vive uma grave situação de injustiça social provocada por uma economia
que mata. A justiça é um conceito em torno do qual se estrutura o cristianismo (cf.
verbete Fé e Justiça). Não se trata apenas de distribuição de renda.

Além das formas tradicionais de justiça herdadas do pensamento clássico


(legal/geral, distributiva, corretiva), a DSI apresenta a categoria de justiça social:

O Magistério social evoca a respeito das formas clássicas da justiça: a


comutativa, a distributiva, a legal. Um relevo cada vez maior no Magistério tem
adquirido a justiça social, que representa um verdadeiro e próprio desenvolvimento da
justiça geral, reguladora das relações sociais com base no critério da observância da
lei. A justiça social, exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em
uma dimensão mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e,
sobretudo, à dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções. (CDSI,
2005, n. 201)

2 Escolástica-tomista

O conceito aristotélico-bíblico-patrístico de justiça foi reinterpretado na


escolástica. Santo Tomás de Aquino, no Tratado Da Iustitia, introduziu o termo na
teologia e o inseriu no quadro das virtudes, reformulando assim a justiça legal de
Aristóteles (ST II-II qq. 58-122). Seu estudo é imprescindível para compreender o
conteúdo da justiça social. A justiça é a disposição de caráter que faz as pessoas
agirem justamente e desejarem o que é justo. É a virtude que rege as relações
humanas. O homem justo (dikaios) é aquele que respeita as leis (justiça absoluta) e a
igualdade (justiça particular). Ser justo é viver dentro da legalidade e respeitar a
igualdade.

Na justiça geral, um ato justo é aquele em conformidade com a lei. A lei


estabelece como devidas aquelas ações necessárias para que a comunidade alcance
o bem comum e a eudaimonia. O termo “geral” refere-se à sua abrangência. A justiça
particular é pautada pela noção de igualdade e subdivide-se em justiça distributiva e
justiça corretiva. Justiça distributiva se exerce nas distribuições de honras, riquezas e
tudo aquilo que pode ser repartido. Na distribuição, considera-se a qualidade pessoal
do destinatário. Na oligarquia, o critério de distribuição é a riqueza; na democracia, o
cidadão livre; na aristocracia, a virtude. A justiça corretiva visa o restabelecimento do
equilíbrio nas relações privadas, voluntárias (contratos) e involuntárias (ilícitos civis e
penais).

Tomás de Aquino dá continuidade à tradição aristotélica, acrescentando-lhe


elementos do Direito Romano, da Patrística e da Sagrada Escritura. Para designar a
justiça geral, Tomás utiliza o termo justiça legal, uma vez que os atos devidos à
comunidade para que alcance o bem comum estão dispostos em lei. Esta justiça diz
respeito àquilo que é devido ao outro em comunidade. O objeto da justiça legal é o
bem de todos. A justiça distributiva é aquela que reparte proporcionalmente o que é
comum, trate-se de bens ou encargos, e visa garantir a igualdade na distribuição dos
deveres e direitos. A justiça corretiva aristotélica é denominada comutativa em Tomás.

3 Da justiça legal à justiça social

No século XIX os neotomistas recuperam o conceito de justiça legal em nova


perspectiva. A Ilustração, o estado de direito e o liberalismo exigem repensar o
conceito de justa distribuição. Seguindo Charles Taylor (TAYLOR, 2000, p. 242), a
base de identificação social nas sociedades hierárquicas é a noção de honra. A honra
é um pré-conceito de cada pessoa em sua condição que define privilégios e distinções
por ocupar uma determinada posição (status). Em sociedades hierarquizadas, a
justiça distributiva será o princípio ordenador da vida social. A regra de distribuição
será: a cada um segundo sua posição social. Na sociedade democrática, na qual todos
possuem a mesma “relevância”, substitui-se a noção de honra pela “noção de
dignidade usada em sentido universalista e igualitário que permite falar de dignidade
inerente aos seres humanos (…). A premissa é que todos partilham desta dignidade”
(TAYLOR, 2000, p. 242). Ora, se a igualdade fundamental não é proporcional, mas
absoluta, a justiça distributiva não pode ser o princípio ordenador da sociedade, mas
sim a justiça legal, fundada na igualdade fundamental de todos os seres humanos.
Como todos os membros de uma sociedade são iguais perante a lei, a justiça legal
converte-se em justiça social, aquela em que todos têm o mesmo valor, e todo ato em
conformidade com a lei beneficia a todos. O meio utilizado para alcançar o bem
comum é o sujeito do bem comum – a sociedade em seus membros – justificando a
mudança de denominação, de justiça legal para justiça social.

Neste contexto de transição, Louis Taparelli d’Azeglio (1793-1862), teólogo


neotomista da Universidade Gregoriana, foi o primeiro a utilizar a expressão “justiça
social” na obra Saggio teoretico di diritto naturale. Preocupado com as consequências
do liberalismo, da rápida expansão do capitalismo, através da Revolução Industrial,
este autor buscou uma base teológica que sustentasse a doutrina moral da Igreja. E
conseguiu, pois seu pensamento influenciou a elaboração da Rerum Novarum.
Porém, a expressão justiça social suscitou controvérsias entre setores conservadores
da hierarquia e o “catolicismo social europeu”, pois se suspeitava de certa influência
socialista. Esta parece ser a razão pela qual não foi adotada por Leão XIII.

Taparelli parte do pressuposto da existência de dois direitos. O direito


individual refere-se a Deus e a si mesmo. O direito social especifica as relações
humanas e deve fundamentar a justiça social. “A justiça social é a justiça entre homem
e homem”. Entre os homens considerados somente em sua humanidade, sua
racionalidade e liberdade, existem “relações de perfeita igualdade, por que homem e
homem aqui não significa senão a humanidade reproduzida duas vezes” (TAPARELLI
d’AZEGLIO, 1840-1843). A justiça social, portanto, em uma sociedade na qual as
posições ocupadas por cada um são consideradas secundárias em matéria de justiça,
tem por objeto aquilo que é devido ao individuo somente pela sua condição humana.

Os católicos sociais franceses do final do século XIX, principais responsáveis


pela difusão do termo “justiça social” na Europa, também a vincularam à justiça legal.
Antoine, em Cours d’économie sociale (1899), desenvolve uma teoria da justiça, em
que reitera os significados de justiça legal, justiça distributiva e justiça comutativa. A
justiça legal é a vontade constante dos cidadãos de dar à sociedade o que lhe é
devido, a disposição habitual para contribuir, sob a direção da autoridade suprema,
ao bem comum, eis o que nós chamamos de justiça legal. Portanto, ela se identifica
com a justiça social, uma vez que há identidade de objeto, o bem comum. A justiça
social consiste na observância de todo o direito, tem o bem comum por objeto e a
sociedade civil como sujeito. A sociedade civil só existe na totalidade dos seus
membros e todos eles devem colaborar na obtenção do bem comum (sujeito da justiça
social) e todos devem participar do bem comum (termo da justiça social).

Em âmbito alemão, onde também há um retorno ao neotomismo, os editores


da importante revista Stimmen aus Maria-Laach, Pesch, Gundlach, Messner, Nell-
Breuning e Tischleder adotaram a expressão justiça social. Este fato foi decisivo para
que o termo fosse acolhido pelo Magistério, pois tais autores colaboraram de forma
decisiva na elaboração da encíclica Quadragesimo anno (1931), de Pio XI. Antes,
somente Pio X, na encíclica Iucunda sane (1904), que comemorava São Gregório
Magno, utilizou o termo ao qualificar o santo como defensor da justiça social. O
conceito aparece na encíclica Studiorum Ducem (29 junho 1923), por ocasião do sexto
centenário de canonização de Tomás de Aquino. Nela, Pio XI afirma que nos escritos
do Aquinate encontram-se as refutações das teorias liberais da moral, do direito e da
sociologia.

4 Doutrina social da Igreja

O desenvolvimento do conceito de justiça social a partir da tradição


aristotélico-tomista recebe impulso nas Encíclicas Sociais. O conceito foi introduzido
por Pio XI na Quadragesimo Anno (1931). O termo é citado sete vezes e sempre
acompanhado dos adjetivos comutativa, legal/geral. Trata-se de um conceito que traz
exigências precisas, tendo como critério a dignidade humana, tal como definiu
Taparelli.

A economia é seu campo de aplicação mais imediato. Para Pio XI, existe uma
lei de justiça social que deveria reger qualquer modelo econômico:

É necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da


economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de
tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por
outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei
de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos
lucros. (Q A 57)
Aplica-se à esfera econômica com a mesma universalidade da justiça legal.
Portanto, “cada um deve, pois, ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se
que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social”
(Q A 58). Também em Santo Tomás de Aquino a justiça legal ordena o homem
imediatamente ao bem comum.

A justiça social considera o ser humano na sua condição de pessoa humana,


seus direitos e deveres como membro da sociedade. Assim como todos têm
obrigações, todos têm benefícios, uma vez que o bem comum realiza-se somente
“quando todos e cada um tiverem todos os bens que as riquezas naturais, a arte
técnica, e a boa administração econômica podem proporcionar.” (Q A 75). Na ordem
econômica, a fórmula da justiça social seria: todos os bens necessários para todos.

Ainda na esfera da economia, o mundo do trabalho é o campo principal de


aplicação da lei da justiça social. O salário é um dos seus instrumentos principais.
Para valorizar com justiça o trabalho, deve-se considerar sua dimensão pessoal e
social (QA 69). O bem comum exige que se promovam postos de trabalho como
condição de segurança e bem estar. O desemprego é um reflexo de uma economia
injusta. A justiça social deve regular e determinar o salário do operário e de sua família,
dispensando a exploração do trabalho infantil e da mulher (Q A 71).

A justiça social não se aplica somente ao campo econômico. Também “as


instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às exigências do bem
comum, isto é, às regras da justiça social” (Q A 110). Os seres humanos, considerados
como pessoas, são iguais e, portanto, toda desigualdade em aspectos constitutivos
da pessoa, como é o caso das suas necessidades materiais básicas, deve ser
eliminada. Não basta apelar à moralidade nas relações entre empresários e
trabalhadores, pois o sistema de produção se desenvolve no interior de uma estrutura
social. A justiça social inspira a reforma das instituições. O Estado tem um papel
insubstituível na aplicação desta lei (Q A 79), sempre em colaboração entre Estado,
empresa e sociedade: “É preciso que esta justiça penetre completamente as
instituições dos povos e toda a vida da sociedade. Em defender e reivindicar
eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública” (Q A 88).
O Concílio Vaticano, na Gaudium et spes, confere duas fundamentações
teológicas decisivas. A primeira é a dignidade da pessoa humana criada à imagem e
semelhança de Deus:

A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais
reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus,
todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma
vocação e destino divinos. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à
vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos
direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua
ou religião (…) Com efeito, as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre
os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo
à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social
e internacional (GS 29).

A segunda fundamentação encontra-se na referência “à criação de algum


organismo da Igreja incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do
progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações” (GS 90). A
justiça social como exigência da dignidade humana tem alcance global e encontra sua
fundamentação teológica no principio do destino universal dos bens: “Deus destinou
a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo
que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a
justiça, secundada pela caridade” (GS 69). Paulo VI, seguindo esta orientação do
Concílio, cria a Comissão de Justiça e Paz (Motu próprio Catholicam Christi
Ecclesiam, 6 janeiro1967).

João Paulo II mantém a justiça social como um eixo da doutrina social da


Igreja. Para ele, a “questão social” é identificada como questão de justiça social em
cuja origem se encontram as estruturas de pecado e os mecanismos perversos
(Sollicitudo rei socialis). Ao situar o trabalho humano como chave da questão social,
o compromisso com a justiça se concretiza, em primeiro lugar na luta pelos direitos
trabalhistas (Laborem exercens). A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das
exigências de justiça social e os sindicatos são os expoentes desta luta (LE 8). Bento
XVI, em Caritas in veritate, recorda que a doutrina social nunca deixou de pôr em
evidência a importância que têm a justiça distributiva e a justiça social para a própria
economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e
político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza (CiV 35).

Caberá ao papa Francisco ampliar o conceito de justiça social (TORNIELLI e


GALEAZZI, 2016; FRANCISCO, 2016). Na Evangelii Gaudium, o pontífice recorda que
“ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, pois ninguém pode sentir-
se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (EG 201). E destaca
que a justiça social deve estar na pauta do diálogo entre as religiões: o diálogo inter-
religioso, fundado na atitude de abertura na verdade e no amor, deve procurar a paz
e a justiça social, é um compromisso ético que cria novas condições sociais (cf. EG
250).

Na Laudato sí, o pontífice insere a justiça social no paradigma do cuidado da


casa comum:

muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam
particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de
pessoas (…) Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto
o clamor da terra como o clamor dos pobres (LS 49).

O cuidado da casa comum aponta para a justiça intergeracional:

Se a terra nos é dada, não podemos pensar apenas a partir dum critério
utilitarista de eficiência e produtividade para lucro individual. Não estamos a falar
duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que
recebemos pertence também àqueles que virão (LS 159).

5 Novos enfoques e perspectivas

Na Conferência de Medellín (1968), o CELAM dedicou um documento inteiro


ao tema da justiça. Nele, se denuncia que “a miséria marginaliza grandes grupos
humanos em nossos povos. Essa miséria, como fato coletivo, é qualificada de injustiça
que clama aos céus”. E proclamava a força libertadora do cristianismo: “Cremos que
o amor a Cristo e a nossos irmãos será não somente a grande força libertadora da
injustiça e da opressão, mas também e principalmente a inspiradora da justiça social”
(DM, Justiça, 1).

Em Puebla (1979), os bispos contemplaram a justiça social como um direito


social que integra o processo de evangelização. “Os povos deste continente têm
direito à educação, à associação, ao trabalho, à moradia, à saúde, ao lazer, ao
desenvolvimento, ao bom governo, à liberdade e justiça social, à participação nas
decisões que concernem ao povo e às nações” (DP 1272).

Em Aparecida, o conceito foi ampliado de forma notável. “Reino de Deus,


justiça social e caridade cristã” é o título do primeiro item do capítulo 8. A justiça social
se insere no amplo contexto do anúncio do Reino de Deus e da promoção da
dignidade humana. Primeiramente, recorda que as obras de misericórdia estejam
acompanhadas pela busca de uma verdadeira justiça social (DAp 385).

Em seguida, destaca que os novos pobres que emergem na atualidade


transcendem a dimensão socioeconômica da justiça social:

os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e refugiados, as vítimas


do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os enfermos de HIV e de
enfermidades endêmicas, os toxicodependentes, idosos, meninos e meninas que são
vítimas da prostituição, pornografia e violência ou do trabalho infantil, mulheres
maltratadas, vítimas da violência, da exclusão e do tráfico para a exploração sexual,
pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de desempregados (as), os
excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que vivem na rua das grandes
cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores sem terra e os mineiros. (DAp
402).

A justiça social não se reduz a políticas de distribuição mais equitativa da


renda e riqueza. Um novo tipo de demanda articula a equidade econômica ao
reconhecimento de grupos discriminados. A Igreja reconhece a partir da fé as
sementes do Verbo presentes nas tradições e culturas dos povos indígenas e
originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias (cf. DAp
529-530). Também apoia “o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela
justiça social” (DAp 533).

Entidades e movimentos organizados em torno da etnia, do povo, do gênero


e da sexualidade, da profissão lutam para que suas identidades sejam reconhecidas.
A reivindicação é ser “reconhecido” como ser humano em sua constituição plena”
(HONNETH, 2003). A injustiça social também se expressa em formas de
discriminação cultural. As injustiças de natureza simbólica decorrente de modelos
sociais de representação excluem o “outro” através de seus códigos de interpretação
e de valores morais. Em muitos casos, a injustiça econômica é ampliada por este tipo
de injustiça. As duas formas se reforçam. O pobre não é apenas pobre econômico,
mas também é negro, é indígena, é mulher, é gay, é transexual etc. A superação da
injustiça cultural está no reconhecimento das diversidades das identidades e seus
modelos sociais de representação. Política de reconhecimento e política de
redistribuição integram o conceito de justiça social. Ao combate à desigualdade
socioeconômica somam-se as lutas pelo fim das discriminações. Uma ampla justiça
social visa responder às duas reivindicações. O campo da justiça social é,
simultaneamente, a redistribuição e o reconhecimento (FRASER, 2001).

6 Justiça socioambiental

A distribuição dos bens, as taxas e responsabilidade pelo cuidado são o foco


da justiça ambiental. As questões que envolvem a ecologia e a desigualdade social
entrelaçam-se no conceito de justiça socioambiental. A definição clássica de justiça:
“dar a cada um o que lhe corresponde” aplica-se também aos recursos naturais, não
apenas aos direitos econômicos e sociais. A natureza é um bem público que todos os
seres humanos devem desfrutar. A justiça social é um dos quatro tópicos da Carta da
Terra: respeitar e cuidar da comunidade de vida; integridade ecológica; justiça social
e econômica; democracia, violência e paz. As atividades e instituições econômicas
em todos os níveis deveriam promover, sem discriminação, os direitos de todas as
pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a
saúde corporal e o bem-estar espiritual. Eliminar a discriminação em todas as suas
formas, como as baseadas em raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e
origem nacional, étnica ou social.

A quem pertencem as reservas de petróleo, os rios, as florestas, a atmosfera?


Existem, em linhas gerais, os seguintes enfoques (IBANEZ, 2012): na justiça climática,
os pobres são vistos como as principais vítimas da crise ambiental provocada pelos
ricos. Portanto, os principais culpados pela crise devem pagar por ela; a justiça
ambiental entende que o lixo tóxico e a sucata são depositados nos territórios mais
pobres e nas periferias, afetando grupos específicos: afrodescendentes (racismo
ambiental), pobres (classismo ambiental), mulheres (sexismo ambiental). Esta visão
propõe uma distribuição mais justa dos recursos naturais de tal forma que nenhum
grupo social possa ser prejudicado; os defensores da justiça ecológica incluem os
animais não humanos na distribuição; a justiça socioambiental intergeracional
contempla as gerações futuras como destinatárias da justiça.

7 Sistematização

O bem comum é o conteúdo da justiça social. A justiça social regula as


relações do indivíduo com a comunidade na sua condição de membros da
comunidade. Na justiça social, visa-se diretamente o bem comum e, indiretamente, o
bem deste ou daquele individuo particular. O ser humano é considerado em
comunidade.

O reconhecimento é a atividade própria da justiça social. Ela visa regular a


prática social de considerar o outro como sujeito de direito (ou pessoa), como um ser
que é “fim em si mesmo e possui uma dignidade” (Kant). Um sujeito de direito somente
se constitui como tal se for reconhecido por outro sujeito de direito. A justiça social diz
respeito a esta prática de mútuo reconhecimento no interior de uma comunidade. Ela
suprime toda a sorte de privilégios, no sentido de uma desigualdade de direitos. Cada
um só possui os direitos que aceita para os outros. Na medida em que os demais
membros não reconhecem os direitos de alguém, este fica desobrigado de reconhecer
os direitos dos demais. O sujeito da justiça social é a alteridade.
A pessoa humana é um ser concreto existente. Tem uma natureza humana,
um todo em si mesmo, não podendo ser reduzida a uma parte de um todo maior. A
ela são devidos todos os bens necessários para sua realização nas dimensões
concreta, individual, racional e cultural. A igualdade básica de cada pessoa é a
igualdade nesta dignidade como conceito fundador da experiência jurídico-política
contemporânea.

Mesmo que a justiça distributiva, aplicando critérios pertinentes, como a “cada


um segundo sua contribuição” e “a cada um segundo sua necessidade”, esteja
presente na partilha dos bens produzidos, ainda assim, o sistema econômico pode ser
injusto do ponto de vista da justiça social, se viola a dignidade da pessoa humana
(Mater et magistra 82).

Para determinar o que é devido em um caso concreto, em termos de justiça


social, não basta seguir os cânones de igualdade proporcional da justiça distributiva,
mas faz-se necessário atentar para os bens de que o ser humano é merecedor em
virtude da sua condição humana. A justiça social contempla as seguintes dimensões:
socioeconômica, jurídico-político-institucional, sociocultural, moral/subjetiva.

A justiça social é a sistematização, em termos da teoria da justiça, do valor da


dignidade da pessoa humana presente no desenvolvimento da civilização: age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio (Kant).
“Como quereis que os outros vos façam, fazei também vós a eles” (Lc 6, 31).

Élio Gasda, SJ. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte).


Texto original português.

8 Referências bibliográficas

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O Bem Comum
Sumário

1 Definição

2 História

2.1 Platão

2.2 Aristóteles

2.3 Cícero

2.4 Agostinho

2.5 Tomás de Aquino

3 Magistério eclesial católico

4 Reflexão teológica católica

4.1 Moral social

4.2 Bioética

4.3 Ecologia

5 Conclusão

6 Referências bibliográficas

1 Definição
O bem comum diz respeito à realização última das capacidades individuais,
seja em relação a cada indivíduo em particular, seja no grupo. O bem comum não é a
soma dos bens desejados e buscados individualmente, nem o que concerne a cada
um na busca de obter aquilo que se deseja. O bem comum não é nem mesmo aquilo
que a coletividade impõe de modo totalizante e que não considera ou absolutamente
elimina a atenção a cada cidadão e à autonomia individual.

Tanto no Norte do mundo industrializado (WARD & HIMES, 2014), como no


Sul do mundo, em via de desenvolvimento (OROBATOR, 2010), injustas
desigualdades caracterizam o contexto social, econômico e político. Ao contrário, o
bem comum é restritamente conexo à justiça social e à igualdade. Através da opção
preferencial pelos pobres, o bem comum está a serviço da busca de uma maior
igualdade, através de um empenho firme e eficaz para reduzir e, oxalá, eliminar a
causa da injusta desigualdade e para promover o bem comum em nível global.

Na tradição e reflexão católicas, o bem comum depende tanto da fé cristã, que


se preocupa com o bem de cada um, quanto da reflexão racional sobre a experiência
humana, partilhada por cada um, independente de toda a diferença cultural, religiosa,
linguística, social e política. Deste modo, o bem comum é, ao mesmo tempo,
específico da tradição católica cristã e caracterizante da experiência humana, além de
toda a diferença histórica, cultural, religiosa, política e social.

Na reflexão contemporânea, o bem comum é definido de vários modos[1]. Em


primeiro lugar, o bem comum é identificado com o bem-estar geral, isto é, o bem maior
que é possível conseguir para um maior número de cidadãos. Em tal definição se
reconhece o influxo do pensamento utilitarista. Considerar o bem comum deste modo
privilegia uma aproximação quantitativa (o bem maior) e distributiva (para o maior
número de cidadãos). Ocorre também verificar se o acesso ao bem comum é
garantido a todos os cidadãos igualmente ou se existem cidadãos aos quais o acesso
ao bem comum é limitado, ou se até chegam a ser excluídos de participarem da
promoção do bem comum.

Em segundo lugar, o bem comum é considerado um bem público, isto é, um


bem de todos, que é disponível a cada membro da comunidade civil para todos, ou
para ninguém. Por exemplo, quando um Estado está em paz, a paz é um bem público,
pertence a todos e todos se beneficiam, sem exclusão. Ao contrário, se a paz é uma
ameaça por alguma guerra, ninguém pode beneficiar-se. Isto pode ser afirmado
também por outros bens públicos: a saúde, o trabalho, o ambiente ecológico sadio, a
beleza natural e a fertilidade da natureza. Além disso, o bem comum fundamental, e
o bem público por excelência, diz respeito à pertença de cada indivíduo à comunidade
humana e a certeza de que não pode ser excluído dela. Finalmente ocorre precisar
que há a responsabilidade em proteger e promover tais bens públicos, garantido o
acesso a cada um.

Em terceiro lugar, o bem comum pode ser definido como um bem institucional,
para indicar as condições sociais e institucionais que são necessárias para promover
o bem comum de cada cidadão e de toda a coletividade. Este modo de compreender
o bem comum é considerado por importantes documentos do magistério católico.

Na carta encíclica Mater et magistra (1961), o papa João XXIII afirmou que o
bem comum é “o conjunto daquelas condições sociais que consentem e favorecem
nos seres humanos o desenvolvimento integral da sua pessoa” (João XXIII, 1961,
n.51). Poucos anos depois, o Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral sobre a
Igreja no mundo contemporâneo, a Gaudium et spes, indicou que “o bem comum é o
das condições da vida social que permite tanto aos grupos, quanto a cada um de seus
membros atingir de maneira mais completa possível a própria perfeição” (CONCILIO
VATICANO II, 1965a, n.26). Outros documentos do magistério católico tem
confirmado esta questão: a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae
do Concílio Vaticano II (CONCILIO VATICANO II, 1965b, n.6), o Catecismo da Igreja
Católica (1992, n.1006) e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (PONTIFICIO
CONSIGLIO DELLA GIUSTIZIA E DELLA PACE, 2004, n.164).

Deste modo, o bem comum institucional enfatiza a importância dos bens


comuns produzidos no contexto social, graças aos processos produtivos, econômicos
e financeiros (por ex. alimentos, serviços sanitários e empregos). Além disso, o bem
comum institucional exige verificar como tais bens são distribuídos, quem beneficia e
quem é excluído.
Em quarto lugar, o bem comum é relacional ou solidário, para indicar que se
trata de um bem partilhado entre todos os agentes morais e realizado junto, através
de interações e colaborações. O bem de cada um não se persegue de modo isolado
porque o bem de cada um não é separável do bem de todos, mas é interdependente.
Ao mesmo tempo se define sobre o que o bem comum implica e exige. O bem comum
da coletividade inteira se realiza no conjunto com respeito e sustentação recíprocos.
Além disso, o papa João Paulo II afirmou que a interdependência que o bem comum
pressupõe não é contingente, não é só um dado de fato – vivemos juntos no planeta
terra. Ao contrário, trata-se de uma interdependência do tipo moral, que depende da
dignidade de cada um e que visa a realização e o bem de todos (João Paulo II, 1987,
n.26). Em consequência, como sublinhou João Paulo II, o bem comum depende das
realizações de solidariedade que existem na sociedade civil, incluindo aqueles que
são mais pobres e necessitados (João Paulo II, 1987, n.38).

2 História

O bem comum é um conceito com uma longa história. No âmbito judeu cristão,
o mandamento bíblico que exorta a amar o próximo como a si mesmo pede que se
faça o quanto possível para promover o bem de cada pessoa – perto ou longe,
conhecido ou desconhecido, inclusive. Este mandamento do amor propõe o bem
comum, tende para a sua realização e o torna possível.

2.1 Platão

No contexto filosófico grego, em Platão (428-348 aC) o bem comum é


aparentemente ausente, mesmo sendo explícita a procura do bem em si mesmo.
Buscando o bem em si, Platão o identifica como a ideia suprema da qual depende o
mundo inelegível. A deia do bem é a fonte do conhecer, do ter e do ser e, portanto, de
todas as outras ideias, como é indicado no mito da caverna (PLATÃO, VII, 514 b–520
a). Como o sol ilumina e torna visível todas as coisas concretas, assim a ideia do bem
torna inteligível às outras ideias. Além disso, as ideias são valores morais; a ideia
suprema, da qual dependem as outras ideias, é o supremo valor moral do bem. O bem
em si permite precisar a eudaimonía, isto é a capacidade de conduzir uma vida boa,
feliz, virtuosa.
A felicidade pode ser alcançada somente na vida política, por isso a
comunidade perfeita e feliz é a comunidade política e, mediante as leis, a realização
da pólis precede aquela de um indivíduo ou de classes particulares. Portanto, para
Platão, o bem é o bem comum. A reflexão sobre a vida boa na pólis depende da pólis
ideal da qual a pólis concreta é só uma aproximação. O risco é que isso faça perder
de vista o bem de cada um.

2.2 Aristóteles

Para Aristóteles (384-322 aC), a política consente definir aquilo que é o bem
para o ser humano. “O bem é aquilo a que todas as coisas tendem” (ARISTÓTELES,
I, 1, 1094a, 3) e o tratado sobre o bem é um tratado de política (ARISTÓTELES, I, 2,
1094b, 11). Por consequência, o bem do ser humano, qual animal social, político (zôon
politikón), é inseparável daquele da pólis. É só na pólis que a vida boa e virtuosa do
corpo social é possível. Além disso, o bem da pólis tem a supremacia sobre o bem do
indivíduo, porque o bem cumulativo da coletividade é mais importante do que o bem
de cada indivíduo. A pólis grega, porém, é de elite. É a união de muitas cidades,
famílias, estirpes e o bem da pólis diz respeito apenas aos que são considerados
cidadãos, mas não as mulheres, os escravos e os estrangeiros.

Tanto Platão como Aristóteles situam o tema do bem em um contexto político.


O bem compreende a coletividade, todos aqueles que são considerados cidadãos. Em
consequência, no mundo antigo, a compreensão do termo “bem comum” não indica
uma carência, mas uma superabundância. Era necessário falar do bem comum, pois
era implícito e pressuposto que o bem não pudesse ser senão comum – ao menos
para aqueles que eram considerados cidadãos.

2.3 Cícero

Com Marco Túlio, Cícero (106-143 aC) traz uma visão crítica do bem público
(res pública) porque, nos dez anos que precedem o nascimento de Jesus, o império
romano não possui a capacidade de tender ao bem público, comum, necessário para
ser povo. Não obstante isso, o bem pessoal e social são inseparáveis (Cícero I, 25,39).
Pelo contrário, ocorreria antepor a utilidade geral à própria. Além disso, a existência
da res pública exige um acordo entre a pessoa e aquilo que seja correto, justo e sobre
o bem que se compartilha em comum (HOLLENBACH, 2002, p.122). Tanto para
Cícero, como para Aristóteles, a igualdade entre os cidadãos não é inanimada.

2.4 Agostinho

Em Agostinho (354-430), a expressão bem comum, que os tradutores


reaproximam em suas obras, é utilizada para traduzir múltiplas expressões em textos
que lidam com questões do tipo político. Em particular, o bem comum é aquilo que a
comunidade civil ama. Em consequência, ocorre que o bem comum seja
intencionalmente procurado individualmente pelas autoridades civis. Para o jesuíta
David Hollenbach, isso o leva a afirmar que Agostinho pressupõe a possibilidade de
uma forma de vida política com objetivos comunitários (HOLLENBACH, 1988, p.85).

Agostinho afirma, de um lado, a necessidade de refletir sobre o bem comum


detendo-se sobre a cidade terrena e, de outro lado, convida a concentrar-se sobre a
cidade eterna, reconhecendo Deus, o sumo bem, como único bem comum. Deste
modo, o bem comum admite combinar duas tensões: de um lado a possibilidade de
viver a radicalidade do mandamento evangélico de amar o próximo na vida social
graças a Deus, sumo amor incondicional e gratuito; de outro lado, o bem comum
permite interagir com igualdade, reciprocidade, mutualidade e colabora na sociedade
civil buscando definir e promover o bem comum para todos os cidadãos, vivendo de
tal modo o amor que foi recebido gratuitamente. Em consequência, para Hollenbach,
Agostinho propõe uma modalidade de presença na esfera civil onde a comunidade
cristã é diferenciada da esfera pública, porém sem isolamento ou dominação sobre
ela (HOLLENBACH, 2002, p.121).

Agostinho afirma com clareza que nenhuma cidade terrena poderá realizar a
plena comunhão com Deus que caracterizará a cidade de Deus, mas já agora é
possível a vida comum de uma res pública com o bem comum partilhado
(HOLLENBACH, 2002, p.126). Em outras palavras, a visão teológica agostiniana não
é um obstáculo para a vida comum. De tal modo, Agostinho integra a crítica de Cícero
valorizando a relação fundada sobre a amizade e o amor, que caracterizam a
experiência de cada pessoa e que consentem em construir o bem comum da
sociedade.

Além disso, Agostinho pressupõe que o bem comum de uma sociedade


precisa concordar com o que é verdadeiramente justo, visando o amor recíproco e
exprimindo, assim, o amor de Deus doado a cada um gratuita e incondicionalmente.

O bem comum pode ser encontrado em seu sentido absoluto só na cidade


celeste, mas, em sentido relativo, ele plasma a cidade terrena, a exemplo das
estruturas necessárias para garantir os bens essenciais para viver e morrer bem
(saúde, alimento, abrigo, segurança, educação, trabalho, cultura, possibilidade de
viver e de praticar o próprio credo religioso etc). Agostinho portanto, não partilha da
afirmação de Aristóteles que o bem da polis é o máximo bem humano (HOLLENBACH,
2002, p.124-5). Deste modo, o bem comum político é a imagem imperfeita da vida
eterna. Preservar a paz terrena faz parte, portanto, do bem comum. Em consequência,
podemos também afirmar que o respeito à diversidade e o prover os bens essenciais
a todos os cidadãos fazem parte do bem comum.

Em conclusão, para Agostinho o bem comum terreno é imagem do bem


comum celeste. Enquanto, por um lado, ele dessacraliza a política e insiste sobre a
transcendência da cidade de Deus, por outro, ele tutela a capacidade do âmbito
político de se tornar uma parcial e imperfeita encarnação do bem humano total e de
perseguir os bens, entre os quais os bens comuns que caracterizam a cidade terrestre
(HOLLENBACH, 2002, p.125, 127-9).

2.5 Tomás de Aquino

No conjunto de sua obra, Tomás de Aquino (1225-1274) não consagrou um


tratado completo sobre o bem comum. Ele refletiu primeiramente sobre a noção de
“bem” em relação à noção do “ser” e da “bondade divina”; em segundo lugar, ele
precisou o “bem” moralmente, e, em terceiro, conotou o bem de modo político
mediante a noção do bem comum.
No âmbito do pensamento medieval, ao mesmo tempo que assinala que o
bem comum realizado na comunidade civil é mais divino que o bem de cada pessoa,
Tomás não indica como buscar o bem comum nas diversas circunstâncias, mesmo o
aplicando em situações específicas (por exemplo, o assassinato do outro para legítima
defesa; o assassinato de outros em casos de guerra; a propriedade privada). Todavia,
o bem comum é o critério ético que guia o comportamento individual e social porque
é a finalidade do civitas, isto é, da sociedade política. Devemos também compreender
se o adjetivo “comum” para Tomás compreende uma civitas identica à pólis
aristotélica, ou se se refere a grupos em posições de poder dentro dela, ou, se diz
respeito apenas à autoridade cujas funções são especificadas (por isso, seria mais
público do que o bem comum), ou se inclui a humanidade inteira.

Tomás esclarece, definindo o bem comum de três modos: primeiro, o bem


comum é o bem que diz respeito a cada pessoa, que é predicável a cada um (por
exemplo, a natureza humana é comum a todos); segundo, o bem comum é aquele
partilhado por todos e que pertence a todos (por exemplo, a vitória por um exército);
terceiro, o bem comum define os bens comuns de utilidades, que são ligados à justiça
distributiva, isto é, que dizem respeito à distribuição dos bens a serviço do bem comum
(por exemplo, dinheiro, água e recursos médicos). Enfim, na comunidade política,
estes três significados de bem comum são inseparáveis porque cada pessoa
consegue a felicidade (um bem predicamente comum) só como parte da ordem civil
(um bem causal comum), que é mantido por uma justa distribuição dos bens comuns
de utilidade (FROELICH, 1989, p.55).

Além disso, para Tomás, o adjetivo “comum” pode indicar aquilo que é comum
a muitos por motivo de sua natureza (secundum res), como um lugar comum no qual
nos reunimos, ou então secundum rationem, isto é, que pertence a muitos, mas do
qual a unidade depende de uma abstração, como o gênero animal (TOMÁS DE
AQUINO, I, q. 13, a. 9).

O bem comum não é somente o bem individual, nem a soma aritmética dos
bens individuais e privados. Isto criaria divisões na sociedade. Ao contrário, o bem
comum almeja uma ordem social de grau mais elevado em relação ao que se pode
conseguir somando os bens de cada cidadão. Portanto, em Tomás, a noção de bem
comum depende da convicção que a pessoa humana é intrinsecamente social,
orientada naturalmente ao bem e parte de um universo ordenado naturalmente.
Finalmente, o princípio do bem comum tem um componente sobrenatural (Deus é o
sumo bem comum) e um natural (a exigência prática do viver social).

Como em Agostinho, também para Tomás o bem último de toda a criatura, o


bem comum, no sentido mais pleno e completo, é Deus, enquanto é de Deus que
depende o bem de todas as coisas. Os seres humanos se realizam plenamente
somente quando estão unidos a Deus, e, deste modo, unidos uns aos outros e unidos
à criação.

Por causa da tensão entre o bem temporal e o bem último, entre o cidadão, a
civitas e Deus, a sociedade política é essencialmente relação e é caracterizada pelas
relações dinâmicas entre indivíduos, sociedade de Deus. Quanto mais se compreende
e se vive tais relações, tanto mais cada cidadão compreende e vive na sociedade
política perseguindo o bem comum da sociedade civil. Ao mesmo tempo, cada uma
destas relações, e todas juntas, constituem aproximações do bem comum, em menor
medida do bem comum temporal e, em grau máximo, do bem comum último. Como
consequência, ao se pretender definir o bem comum de modo não aproximado se
recai num bem particular. Tomás define três aproximações.

A primeira aproximação do bem comum indica que o ser humano é


naturalmente social, político e, portanto, destinado a viver em comunidade, tendendo
ao bem pessoal e comunitário.

A segunda aproximação do bem comum é o bem-estar da comunidade social,


isto é, do corpo político. Para Tomás, a comunidade não é um fim em si mesma, mas
existe para facilitar e promover o bem comum, de modo que todos os cidadãos se
beneficiem. Isto requer uma definição articulada da virtude da justiça, capaz de
distinguir uma justiça “particular”, que Tomás elabora a partir de Aristóteles e do direito
romano (segundo o qual um dá a cada um o quanto lhe cabe), e uma justiça geral,
que concerne ao bem comum. As autoridades políticas têm o dever de oportunizar ao
povo o bem comum, sem excluir o bem particular de cada um. Além disso, em âmbito
político e deliberativo, as virtudes da compaixão e da prudência orientam e
enriquecem a capacidade dos cidadãos de promoverem o bem comum (BUSHLACK,
2015). À luz das contribuições dos papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco,
podemos acrescentar a caridade e a solidariedade à lista das virtudes de Tomás de
Aquino.

Enfim, a terceira aproximação do bem comum diz respeito à bondade


universal de Deus, que transcendendo o universo nutre, sustenta e abraça o todo e
cada uma de suas partes.

Em conclusão, ainda que Tomás não descreva como se busca praticamente


o bem comum da comunidade, ele pressupõe uma interação dinâmica entre o bem
humano, o bem individual e o bem da comunidade, entre a justiça que concerne o
cidadão singular e a justiça que diz respeito a toda a comunidade.

3 Magistério eclesial católico

A Doutrina social católica pede de cada crente, ou melhor, de cada cidadão,


um agir com justiça. Neste sentido, as encíclicas sociais, algumas de modo explícito,
outras implicitamente, se voltam a todos os homens de boa vontade para reafirmar os
direitos e deveres de cada um e para convidar a trabalhar juntos por uma sociedade
mais justa (CURRAN, 2002, p.40).

No magistério católico recente, a atenção privilegiada aos menos favorecidos,


aos pobres, é a prioridade que guia o agir moral orientado para o bem comum à luz
do mandamento do amor evangélico. O bem comum permite afirmar que todos, e em
particular os mais pobres, devem dispor do que seja indispensável para viver. Além
disso, a sociedade civil deve prover as necessidades concretas dos mais
necessitados, também em detrimento da abundância dos mais ricos.

Enfim, juntos, como coletividade, deve haver o esforço de compreensão para


mudar as circunstâncias que não favorecem os cidadãos partilharem os benefícios do
bem comum. O princípio do bem comum favorece tal processo transformador no
mundo contemporâneo, globalizado, interdependente e pluralista.
Assim como em Tomás de Aquino, nos documentos magisteriais, a autoridade
pública é considerada um agente moral importante, com a responsabilidade específica
de promover e realizar o bem comum. A Carta Encíclica do Papa Leão XIII, Rerum
novarum (1891), afirma que esta é uma visão autoritária e paternalista do Estado, que
não distingue entre sociedade e estado, no qual o bem comum da sociedade, incluindo
o bem religioso e moral de todos os cidadãos, é confiado aos governantes. Todo o
poder provém de Deus e os governantes participam governando não para o seu
próprio bem, mas para o bem de todos ((Leão XIII, 1891, n.26).

Para o Papa Pio XI, na Encíclica Quadragesimo anno (1931), a autoridade


pública declara o que pode ser considerado o bem comum (PIO XI, 1931, n.49).

O Papa João XXIII, na Encíclica Mater et magistra (1961), afirma que o Estado
existe para organizar o bem comum, com a responsabilidade de promover a justiça
social (GIOVANNI XXIII, 1961, n.12 e 41).

Também na Encíclica Pacem in terris (1963), João XXIII pede que os poderes
públicos se esforcem para realizar o bem comum, promovendo os bens materiais e
espirituais, criando uma comunidade mundial na qual todos os cidadãos sejam iguais.
Ainda exorta que sejam protegidos e promovidos os direitos humanos (GIOVANNI
XXIII, 1963, n.35 e 40). Como na Mater et magistra, a Pacem in terris de João XXIII
alarga a perspectiva de pertença de toda a humanidade ao bem comum (GIOVANNI
XXIII, 1963, n.54).

A Gaudium et spes (1965), a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo


contemporâneo, que emerge do Concílio Vaticano II, de um lado afirma que o bem
comum é responsabilidade da autoridade estatal e dos corpos sociais intermediários;
de outro lado, entende que o bem comum mantém um caráter dinâmico (CONCILIO
VATICANO II, 1965a, n.74). Entre os corpos intermediários, são consideradas as
organizações profissionais, os sindicatos, os organismos internacionais, as famílias,
os grupos sem fins lucrativos, assim como os econômicos, sociais, políticos e
culturais.
O Papa João Paulo II, na encíclica Centesimus annus (1991), reitera que o
Estado deve harmonizar e orientar o desenvolvimento econômico para proteger o bem
comum, bem como fazer intervenções suplementares no sistema social e/ou
produtivo, que ocorrem em “situações excepcional e limitadas no tempo” (JOÃO
PAULO II, 1991, n.11 e 48). Além disso, João Paulo II afirma que “uma economia
social que oriente o funcionamento do mercado em direção ao bem comum deve ser
construída em nível nacional e internacional” (JOÃO PAULO II, 1991, n.52).

Reconhecendo a importância da participação individual dos cidadãos na


promoção do bem comum, o Catecismo da Igreja Católica também aceita que é
sobretudo a comunidade política encarregada desta tarefa (1992, 1913 e 1910). O
Catecismo afirma que os estados também devem apontar para o bem universal
comum, tanto nas áreas da vida social como na gestão da saúde e emergências
políticas, como refugiados e emigrantes (1992, 1911 e 2241). Além disso, é no Estado
que a tarefa de proteger o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos corpos
intermediários é reconhecida (1992, n.1910).

Além disso, a participação dos cidadãos na vida política e o respeito pelas


autoridades responsáveis pela promoção do bem comum não devem ser separados
do controle dos cidadãos diante destas autoridades, a fim de evitar possíveis abusos
e assegurar que o que é exigido pelas autoridades políticas não é contrário aos
requisitos morais da consciência justa. O bem comum é, portanto, apresentado como
critério de discernimento e validação pela autoridade (1992, n. 2242, 1903 e 1900).

Além dos corpos intermediários, o princípio da subsidiariedade é também uma


instância crítica e transformadora, que é acompanhada por reflexão sobre o bem
comum, esclarecendo e qualificando-a. Este princípio foi proposto por Pio XI na
encíclica Quadragesimo anno, para proteger os direitos das comunidades ou grupos
menores de interferências do Estado (PIO XI, 1931, n.81). Em Mater et magistra, ao
reafirmar isso, João XXIII reformulou esse princípio, indicando a obrigação do Estado,
ou da autoridade mundial, de intervir contra as injustiças sofridas por associações e
grupos dentro do país (JOÃO XXIII, 1961, n.40).
Lisa Cahill observa que uma compreensão renovada do bem comum pode dar
valor a redes hierárquicas mais amplas e menos ordenadas, por exemplo, compostas
por organizações, associações e grupos, mas que são capazes de trabalhar
efetivamente para a promoção do bem comum (CAHILL 2004c, 2005a, p.130). Para
Cahill, portanto, diante dos desafios atuais da descentralização progressiva e do
aumento da mobilidade mundial, a multiplicação de redes e instituições internacionais
atestam o princípio do bem comum (CAHILL, 2005a, p.132) .

Uma nova compreensão do princípio da subsidiariedade, que enfatiza a


participação e a igualdade, e que também se expressa em formas de ação social a
partir da base, oferece novas possibilidades. Na verdade, promove a participação
cidadã na promoção do bem comum, por exemplo, delegando poderes a cidadãos,
grupos e organismos internacionais, porque é dever de todos os agentes sociais
definir melhor o que constitui o bem comum, o que requer e como pode ser alcançado
(CATHOLIC BISHOPS CONFERENCE OF ENGLAND AND WALES, 1996, n.22 e 52;
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, 2003, n.13).

Refletir sobre a subsidiariedade exige agir de forma sólida e optar


preferencialmente pelos últimos. No Magistério católico, a ênfase na importância da
solidariedade e a opção preferencial pelos pobres emergiu gradualmente. Nos anos
1980 e 90, durante o pontificado de João Paulo II, a partir das contribuições da teologia
da libertação na América Latina, a opção preferencial pelos pobres e a solidariedade
se tornaram os critérios orientadores para a compreensão do bem comum e para sua
implementação. Em particular, João Paulo II afirmou que a solidariedade “não é um
sentimento de compaixão vaga ou intenção superficial pelos males de tantas pessoas,
próximas ou distantes. Pelo contrário, é a firme e perseverante determinação de se
envolver no bem comum: isto é, para o bem de todos e de cada um, pois somos todos
verdadeiramente responsáveis por todos” (JOÃO PAULO II, 1987, p.38).

Para o Papa Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate (2009), “querer o bem
comum e trabalhar para isso é uma exigência de justiça e caridade. O compromisso
com o bem comum é cuidar, por um lado, e usar, por outro lado, esse complexo de
instituições que legalmente, civilmente, politicamente e culturalmente estruturam a
vida social, que se torna uma cidade” (BENTO XVI, 2009, n.7). Além disso, a atividade
econômica “deve ser voltada para a busca do bem comum, e deve ser cuidada,
sobretudo, pela comunidade política” (BENTO XVI, 2009, n.36).

Concentrando-se na situação do continente africano, Agbonkhianmeghe


Orobator S.J., lembra-nos, no entanto, que cada vez que refletimos sobre o bem
comum é preciso prestar atenção a contextos particulares, como questões
relacionadas ao desenvolvimento econômico, à dinâmica política e ao papel marginal
atribuído a mulheres. Em outras palavras, a promoção do bem comum universal deve
considerar as especificidades de contextos particulares (OROBATOR, 2010). Outros
autores também convidam a refletir sobre outros contextos particulares (NEUTZLING,
2003).

Finalmente, o Papa Francisco, na sua exortação apostólica Evangelii gaudium


(2013) convida a perseguir com determinação o bem comum como meio de promover
a paz social e reafirma que “a dignidade de toda pessoa humana e o bem comum são
questões que devem estruturar toda a política econômica” (FRANCISCO, 2013,
n.203).

4 Reflexão teológica católica

A reflexão teológica enfatiza que o bem comum não é a soma dos bens
particulares, nem a soma dos bens possuídos por muitos cidadãos, visando a sua
utilidade pessoal, nem alguma coisa a ser alcançada (uma herança comum),
contribuindo o mínimo possível e nem substituindo os bens individuais. O bem comum
também não é o bem da maioria dos membros da comunidade (NEBEL, 2006). O bem
comum inclui todos os bens sociais, também os espirituais, morais e materiais, que o
homem busca sobre a terra de acordo com as necessidades de sua natureza pessoal
e social.

O bem comum visa a realização de uma convivência social caracterizada por


uma verdadeira solidariedade, o que implica a vontade de servir aqueles que, na
sociedade civil, têm mais necessidades e são menos beneficiados.
Consequentemente, o bem comum exige justiça, ordem, paz e bem-estar social. Uma
vez que a autoridade política é a principal responsável pelo bem comum, é
responsabilidade das várias autoridades do Estado proteger e promover o bem
comum de todos, sem preferência de algum cidadão ou grupos sociais, com exceção
da opção preferencial pelos pobres. O objetivo é favorecer a promoção social
daqueles atualmente excluídos, marginalizados ou socialmente desfavorecidos.

Ao mesmo tempo, não se deve esperar que somente o Estado promova e


realize o bem comum como o fim da sociedade. Mesmo os cidadãos individuais,
grupos e organizações civis têm responsabilidades sociais e contribuem para o bem
comum. Isso permite que a realidade social seja valorizada em seus aspectos
diversificados e em sua riqueza, no atual contexto globalizado e plural (VALADIER,
1980, p.128-9). No contexto político, o bem comum é, portanto, uma dinâmica, um
processo que requer a contribuição de todos os agentes sociais, desde o Estado até
as organizações sociais e os cidadãos individuais.

Por esta razão, na reflexão católica magisterial e teológica, o bem comum


exige fortalecer e diversificar o princípio da subsidiariedade, a fim de continuar e
amplificar o dinamismo dos grupos e dos corpos intermediários a serviço da
coletividade, para o bem desta e dos sujeitos lhe pertencem.

Além disso, a reflexão teológica chama a atenção para o que já está sendo
implementado na sociedade civil – por exemplo, através das ciências sociais (FINN,
2017) – mesmo quando é tematizada como uma promoção do bem comum. Somos
convidados a reconhecer e identificar o que realmente promove o bem comum local e
universal (MICHELINI, 2007).

Muitos cidadãos e muitas associações, por exemplo, estão comprometidos


com o bem universal, que é a qualidade de vida no planeta Terra, procurando proteger
a qualidade climática e preservar o ecossistema. Outros promovem condições de
desenvolvimento no planeta e a saúde local e global. Outros, ainda, estão construindo
projetos concretos para salvar e usar recursos de energia mais eficientes, de curto,
médio ou longo prazo, não reproduzíveis. Entre esses, acrescenta-se a abnegação
daqueles que lutam de maneira não violenta pela promoção do bem comum que é a
paz, que permite o desenvolvimento das pessoas, dos povos e da humanidade. Trata-
se de prestar atenção, reconhecer (com o olhar agudo e respeitoso de contemplação
e sabedoria do místico) e discernir as muitas maneiras em que o compromisso com o
bem comum já está presente no contexto histórico, político e cultural contemporâneo,
e o quanto ainda pode ser feito para aumentar esse compromisso de promover o bem
comum.

Na realidade contemporânea, caracterizada por desigualdades extremas e


injustiças entre continentes, países e mesmo no interior dos estados, recuperar o bem
comum como justiça geral, assim como na visão tomística, implica um favorecimento
para com os mais pobres, aqueles que foram e continuam sendo defraudados de
bens, respeito, direitos e liberdades e cujo progresso humano, social e cultural é
dificultado por violações manifestas em termos econômicos, políticos, religiosos e
intelectuais, omissões e satisfações menos graves (CHARTERINA, 2013).

4.1 Moral Social

O bem comum é a categoria clássica do pensamento social cristão e é o fim


da sociedade civil (DIETRICH, 2003). Ao mesmo tempo, a ênfase na importância da
dignidade da pessoa, presente na recente reflexão magisterial e teológica, faz do bem
comum da humanidade o fim de todo esforço humano, tanto dos indivíduos como da
comunidade (PORCAR REBOLLAR & COMISIÓN PERMANENTE DE LA
HERMANDAD OBRERA DE ACCIÓN CATÓLICA, 2015).

A opção preferencial pelos pobres caracteriza ulteriormente o empenho pelo


bem comum. Tal opção é específica da doutrina social da Igreja Católica. Esta opção
funda-se na Bíblia, é encontrada na experiência espiritual e na vida cristã ao longo da
história do cristianismo e constitui o compromisso diário de muitos cristãos e não
cristãos. É uma opção prioritária e urgente. Além disso, esta eleição inclui e reforça a
subsidiariedade e a atenção para o que já existe e é implementada em termos de
promoção do bem comum. A opção preferencial pelos pobres convida a sustentar,
aprofundar e ampliar os processos de transformações da sociedade e do mundo com
empenho educativo e formativo apropriado.

Como vários autores apontam, é possível buscar e realizar o bem comum em


uma comunidade civil que seja caracterizada por sólidas formas de solidariedade
entre todos os participantes da comunidade – seja entre indivíduos, grupos ou
instituições. A solidariedade pressupõe não só o envolvimento dos múltiplos agentes
morais, mas também sua igualdade (HOLLENBACH, 2002, p.189; VIDAL, 1995;
MEDINA VILLAGRÁN, 2014).

Lisa Cahill acrescenta que, como parte de uma abordagem abrangente


destinada a alcançar a justiça social, o bem comum pressupõe a dignidade e a
socialidade dos seres humanos, seus direitos e deveres, bem como a interpretação
da dignidade, da socialidade, dos direitos e deveres no contexto das muitas e
interconectadas esferas religiosas, políticas, culturais e econômicas que visam a plena
realização dos indivíduos e dos diversos contextos sociais (CAHILL, 1987, p.393).

4.2 Bioética

Ao abordar as muitas questões que caracterizam a reflexão da bioética no


âmbito teológico, Lisa Cahill sempre recorreu à moral social católica, uma vez que as
questões de bioética dizem respeito à sociedade como um todo. Consequentemente,
o bem comum é eminentemente representado em todos os recursos éticos que nos
permitem examinar e enfrentar os desafios contemporâneos da bioética. Cahill
mostrou que a justiça social e a busca do bem comum que a caracteriza são
essenciais para refletir sobre questões bioéticas no tocante ao início da vida humana
(desde o aborto até técnicas de procriação medicamente assistida), à saúde global e
local (da pandemia da AIDS aos sistemas nacionais de saúde), à pesquisa médica
avançada (por exemplo, a genética) e às questões de bioética relacionadas ao fim da
vida humana (CAHILL, 1987; 2000; 2001; 2004a; 2004b; 2004c; 2005a; 2005b).

Além disso, para Cahill, o bem comum na esfera social exige a promoção da
comunicação social e da cooperação (CAHILL, 2004a, p.8). No atual contexto
globalizado, os problemas individuais e sociais causados pela pobreza, pelo sexismo
e pelo racismo aumentaram o número de pessoas vulneráveis a doenças. Por esta
razão, no campo católico, a bioética deve favorecer o compromisso de promover a
justiça social e o bem comum (CAHILL, 2004a, p.75-6).
Essa abordagem que considera questões bioéticas como questões sociais e
enfatiza a importância de promover o bem comum não está isolada. Na Grã-Bretanha,
os bispos católicos indicaram repetidamente o bem comum como um recurso e um
objetivo ético tanto para enfrentar os desafios políticos como bioéticos (CATHOLIC
BISHOPS OF ENGLAND AND WALES SCOTLAND AND IRELAND JOINT
COMMITTEE ON BIO-ETHICAL ISSUES, 2001; CATHOLIC BISHOPS
CONFERENCE OF ENGLAND AND WALES, 1996, n.66-68).

Muitos autores compartilham essa ênfase (RYAN, 2004; ARIAS, 2007; VICINI,
2011), enquanto outros afirmam que a necessidade de promover o bem comum exige
solidariedade (HOSSNE & LEOPOLDO E SILVA, 2013; GARRAFA & PEREIRA
SOARES, 2013).

Para o brasileiro Márcio Fabri dos Anjos, o bem comum exige uma abordagem
legislativa nacional e internacional, uma vez que muitas empresas de biotecnologia
são multinacionais e porque muitas populações, que são objeto de pesquisas
genéticas – como tribos amazônicas e grupos étnicos em várias partes do mundo –
são geneticamente estudados sem a necessária proteção (FABRI DOS ANJOS, 2005,
p.152-3).

No campo da saúde, o bem comum pressupõe o direito à saúde para todos


os cidadãos, independentemente da renda ou das habilidades de trabalho. Além
disso, cada um é chamado a contribuir para a realização do bem comum no campo
da saúde, uma vez que a saúde – pessoal, local, nacional e global – depende do
envolvimento diversificado de todos, daqueles diretamente envolvidos na promoção
da saúde, médicos, enfermeiros (CAMPOS PAVONE ZOBOLI, 2007), técnicos de
saúde, administradores, a políticos, legisladores e líderes nacionais (responsáveis
pelo desenvolvimento do sistema de saúde em cada país), grupos, organizações,
fundações e instituições que estão a serviço da saúde global por exemplo, Parceiros
na Saúde, Médicos Sem Fronteiras, Fundação Bill & Melinda Gates, Centros para o
Controle e Prevenção de Doenças e Organização Mundial de Saúde) e também cada
cidadão.
Para explicitar seu empenho em favor da promoção do bem comum, no âmbito
sanitário, em dezembro de 2016, a revista Health Progress da Catholic Health
Association – a associação de saúde católica que atende os 639 hospitais católicos
dos Estados Unidos (ASSOCIAÇÃO DE SAÚDE CATÓLICA, 2016) – dedicou toda a
questão ao bem comum [por exemplo: (NAIRN, 2016; CLARK, 2016; SPITALNIK,
2016)].

4.3 Ecologia

Na encíclica Laudato Si (2015), sobre o cuidado da casa comum que é a


nossa terra, o papa Francisco expande a compreensão e o uso do bem comum para
promover a justiça e a sustentabilidade no contexto ecológico. O papa afirma que “o
clima é um bem comum, de todos e para todos. Existe um consenso científico muito
grande que indica que estamos na presença de um aquecimento preocupante do
sistema climático” (FRANCISCO, 2015, n.23). Além disso, “a ecologia integral é
inseparável da noção de bem comum, um princípio que desempenha um papel central
e unificador na ética social” (FRANCISCO, 2015, n.156). Finalmente, reafirma todo o
ensinamento magisterial e a reflexão teológica sobre o bem comum, afirmando que:

O bem comum pressupõe o respeito pela pessoa humana como tal, com
direitos fundamentais e inalienáveis ordenados para seu desenvolvimento integral.
Também requer sistemas de segurança social e o desenvolvimento dos vários grupos
intermediários, aplicando o princípio da subsidiariedade. Entre eles, a família é
especialmente a célula primária da sociedade. Finalmente, o bem comum exige a paz
social, isto é, a estabilidade e a segurança de uma determinada ordem, que não se
realiza sem atenção especial à justiça distributiva, cuja violação sempre levanta
violência. Toda a sociedade – e especialmente o Estado – tem a obrigação de
defender e promover o bem comum (….) Sob as condições atuais da sociedade
mundial, onde há tantas desigualdades e cada vez mais pessoas que estão sendo
privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum se torna
imediato, como consequência lógica e inevitável, em um apelo à solidariedade e em
uma opção preferencial pelos mais pobres. (FRANCISCO, 2015, n.157-158)
Deste modo, o papa Francisco acrescenta as vozes de muitos que nos
convidam a tomar consciência da urgência em proteger nosso planeta, o bem comum
da humanidade (CASTILLA, 2015; SCHEID, 2016).

Para os cristãos, a terra e os recursos naturais terrestres foram criados por


Deus como bens comuns e confiados ao uso responsável da humanidade, para que
todos possam se beneficiar num nível suficiente, correspondente às necessidades de
cada um e, ainda, respeitando a dignidade de cada um. O compromisso com o bem
comum requer uma conversão pessoal e coletiva, implica reconhecer a terra como um
dom de Deus e exige promover a vida comum na terra, habitando-a e tornando-a cada
vez mais o lugar de bênção prometido para a humanidade e para as gerações futuras
(FRANCISCO, 2015, n.159).

5 Conclusão

Como é possível definir e promover o bem comum nas sociedades civis


multiculturais e pluralistas contemporâneas? Nas sociedades contemporâneas,
buscar e promover o bem comum requer a participação e colaboração de todos os
cidadãos e grupos no contexto social pluralista. Além disso, são necessários
compromissos políticos para enfrentar as muitas desigualdades que afligem diferentes
sociedades em nível mundial. Diferentes religiões têm o potencial e a
responsabilidade de contribuir para a promoção do bem comum (VOLF, 2015; 2011).

Enfim, os múltiplos significados do bem comum e as várias dimensões que


precisam ser consideradas para promovê-lo pressupõem que os cidadãos se
esforcem para viver com virtuosidade. Além disso, são necessárias várias iniciativas
políticas – no nível de grupos, associações, instituições, nações e organismos
internacionais – e elas devem ser avaliadas à luz dos dados e análises que as ciências
sociais e políticas oferecem sobre a situação social, política e produtiva
contemporânea, seja no nível dos países seja no nível mundial.

O bem comum pressupõe um grande senso de responsabilidade. A esperança


cristã espera que a humanidade possa promover o bem comum de maneira realista e
eficaz.
Andrea Vicini, S.J. Boston College (USA). Original italiano. Tradução Valdete
Guimarães

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[1] Nesta seção me refiro a um artigo não ainda publicado do professor David
Hollenbach, S.J., apresentado e discutido no contexto do seminário de Ética, em
Boston College em setembro de 2014.

Sexualidade conjungal e extra-conjugal


Sumário

1 Significado da sexualidade

1.1 Definição

1.2 Desafios

2 Significado da sexualidade conjugal

2.1 Matrimônio e sexualidade


2.2 Desafios

3 Significado da sexualidade extraconjugal

3.1 Sexo entre os não casados

3.2 Desafios

4 Por uma nova compreensão da sexualidade

4.1 Ética e sexualidade

4.2 Perspectivas

5 Referências bibliográficas

1 Significado da sexualidade

1.1 Definição

A sexualidade é um “componente fundamental” da personalidade humana,


“parte integrante do desenvolvimento da personalidade e do seu processo educativo”
(CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.4); é “uma das energias
estruturantes do ser humano” (MOSER, 2001, p.35-6) que se apresenta numa
complexidade de dimensões (biopsicológica, sociocultural, político-econômica,
antropológico-religiosa, sanitário-educativa, ético-moral). Sendo uma dimensão
constitutiva do humano, a sexualidade abarca-o na sua totalidade, “pressupõe,
exprime e realiza o mistério integral da pessoa” (VIDAL, 2002, p.23). Ela é, também,
uma “realidade dinâmica”, em contínua evolução, “orientada para a integração
pessoal” (VIDAL, 2002, p.22) e, portanto, capaz de favorecer ou comprometer a
realização da pessoa durante toda a sua existência.

A sexualidade, diferentemente da genitalidade, expressa quem a pessoa é e


o seu modo de colocar-se diante dos outros. Ela caracteriza “um modo de ser, de se
manifestar, de se comunicar com os outros, de sentir, de expressar e de viver o amor
humano” (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.4). Sendo
uma realidade que impele o ser humano a sair de si mesmo e entrar em relação com
os demais, a sexualidade “tem como fim intrínseco o amor, mais precisamente o amor
como doação e acolhimento, como dar e receber” (PONTIFÍCIO CONSELHO PARA
A FAMÍLIA, 2002, n.11) e torna-se, assim, o “lugar” por excelência da abertura, do
diálogo, da comunicação, da comunhão, “da mais genuína experiência de
reciprocidade e de amor” (ZACHARIAS, 2006, p.7).

1.2 Desafios

Para que seja uma realidade personalizada e personalizante, a sexualidade


deve ser abraçada como dom e integrada num projeto de vida que lhe dê significado.
Desvinculada de um projeto de vida, ela corre o risco de tornar-se uma realidade
desumana e desumanizante, pois, assim como ela pode ser o lugar das experiências
mais belas da vida, pode ser, também, o lugar da experiência das consequências da
fragilidade e da vulnerabilidade humanas, “fonte de frustração e sofrimento”
(GUIMARÃES, 2014, p.61).

Integrada num projeto de vida, isto é, fazendo parte do sentido mais profundo
dado à existência, a sexualidade humana é chamada a ser linguagem deste
significado. Por mais diversas que sejam as razões pelas quais as pessoas vivem,
todas querem amar e ser amadas. Neste sentido, o amor, enquanto “afetiva, afirmativa
participação na bondade de um ser” (VACEK, 1994, p.34), não apenas pode ser
assumido como o significado último de todo projeto de vida, mas pode ser “o” projeto
de vida por excelência. É o amor a única realidade que, de fato, humaniza a
sexualidade (CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.6); é ele
que permite discernir os apelos que provêm das relações que estabelecemos com
quem faz parte da nossa vida. Quando autêntico, o amor leva-nos para fora de nós
mesmos e abre-nos ao outro. E, ao reconhecermos o outro como alguém a ser amado,
reconhecemos todos os seus direitos de se realizar como pessoa.

2 Significado da sexualidade conjugal


2.1 Matrimônio e sexualidade

A vivência do amor, como significado mais profundo da própria existência,


pode ser concretizada no matrimônio, entendido como comunhão total de vida e amor
para toda a vida (JOÃO PAULO II, 1981, n.11). É pelo amor conjugal que o homem e
a mulher se dão totalmente um ao outro, num contexto de compromisso definitivo, e
se abrem para o dom pelo qual se tornam cooperadores com Deus ao dar vida a um
novo ser humano. Para o Magistério da Igreja Católica, é somente como parte integral
desse amor que a doação sexual se realiza verdadeiramente e, por isso, “a este amor
conjugal, e somente a este, pertence a doação sexual” (CONSELHO PONTIFÍCIO
PARA A FAMÍLIA, 1995, n.14).

Orientada para o diálogo interpessoal, a sexualidade conjugal contribui para


a maturação integral da pessoa, abrindo-a para o dom de si no amor. E, “ligada, na
ordem da criação, à fecundidade e à transmissão da vida, é chamada a ser fiel
também a esta sua finalidade interna. Amor e fecundidade são, todavia, significados
e valores da sexualidade que se incluem e reclamam mutuamente e não podem,
portanto, ser considerados nem alternativos nem opostos” (CONGREGAÇÃO PARA
A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.32).

2.2 Desafios

De acordo com a Humanae Vitae – que bem sintetiza a doutrina católica até
os dias de hoje – existe uma

conexão inseparável que Deus quis e que o homem não pode alterar por sua
iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado
procriador. Na verdade, pela sua estrutura íntima, o ato conjugal, ao mesmo tempo
que une profundamente os esposos, torna-os aptos para a geração de novas vidas,
segundo leis inscritas no próprio ser do homem e da mulher. Salvaguardando estes
dois aspectos essenciais, unitivo e procriador, o ato conjugal conserva integralmente
o sentido de amor mútuo e verdadeiro e a sua ordenação para a altíssima vocação do
homem para a paternidade (PAULO VI, 1968, n.12).
Fora do contexto matrimonial, portanto, toda relação de intimidade sexual
constitui uma “desordem grave”, porque expressa uma realidade que ainda não existe,
a da comunidade definitiva de vida com o necessário reconhecimento e garantia da
sociedade civil e, para os cônjuges católicos, também religiosa (CONGREGAÇÃO
PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, 1983, n.95). Ao assumir o matrimônio como o
“único” lugar que torna possível a totalidade da doação (JOÃO PAULO II, 1981, n.11)
e, portanto, como “único” contexto lícito para os relacionamentos sexuais
responsáveis, são exclusos “outros contextos” e “outras narrativas” feitas por tantas
pessoas não casadas, pois todas elas, sem exceção, deveriam ser sexualmente
abstinentes (HARTWIG, 2000, p. 90).

3 Significado da sexualidade extraconjugal

3.1 Sexo entre os não casados

Abraçar o matrimônio como opção concreta de vida para se realizar no amor


significa não reduzir o consentimento a “um ato pontual”, mas assumi-lo como “a
expressão do dom recíproco dos esposos durante a totalidade da vida conjugal”
(VIDAL, 2007, p.104). Isso implica, concretamente, o compromisso de realizar-se
sexualmente, exclusivamente um por meio do outro (CONGREGAÇÃO PARA A
DOUTRINA DA FÉ, 1987, II. A1); o esforço contínuo para estar totalmente presente
na relação; a decisão sincera de não mentir ao outro e o empenho para viver em
função do valor que se deseja preservar, isto é, o amor como projeto comum de vida.
Unidade e fidelidade não são apenas exigências que brotam de um contrato, mas
duas dimensões do amor conjugal que, quando não assumidas, impedem que o amor
se faça história, que as pessoas se realizem e realizem a vocação à qual foram
chamadas e sejam, portanto, felizes. São valores não apenas propositivos, mas
imperativos para quem abraça o matrimônio. É por meio da unidade e da fidelidade
do casal que a comunhão de vida e de amor se realiza e se torna fonte de realização
mútua.

A relação sexual, dentro ou fora do matrimônio, concorre para a satisfação do


desejo sexual. Por mais prazerosa que seja a satisfação desse desejo, ela sempre
testemunha que o sexo promete o que não pode dar, pois o prazer em si mesmo é
incapaz de satisfazer a infinita capacidade que a pessoa tem de ser amada. O eu não
pode ter a pretensão de bastar-se para o tu e vice-versa (VALSECCHI, 1989, p.74-
87). Nesse sentido, embora o prazer sexual expresse o desejo e a abertura à
mutualidade, é apenas um meio para isso. Sendo a essência da sexualidade o amor,
entendido como doação e acolhimento, então a intimidade sexual deveria ser uma
expressão dessa essência fundamental. É nesse sentido que o amor se torna a
condição sine qua non para expressar adequadamente a própria sexualidade. O
problema está em que a capacidade de amar da pessoa pode ser destruída quando
se faz do prazer a finalidade da sexualidade, reduzindo as outras pessoas a objetos
da própria gratificação. Sem dúvida alguma, o prazer não pode ser o fim último da
sexualidade, assim como uma pessoa não pode ser usada como meio.

3.2 Desafios

É mister compreender a verdadeira essência do amor: dom de si mesmo e de


acolhida ao outro que suscitam o desejo de responder com amor. Disso deriva a
responsabilidade ético-moral de nos colocarmos diante do prazer para acolhê-lo e
fazer dele fonte de crescimento e de vida (e não de posse ou consumo), descobrir a
realidade da qual é imagem, isto é, da abertura aos outros (e não fim em si mesmo) e
reconhecer que, mesmo satisfazendo todos os nossos desejos, jamais nos sentiremos
plenamente realizados (a experiência do prazer envolve muito mais do que a
satisfação de desejos). Mas o maior dos desafios consiste em fazer uma leitura
interpretativa dos nossos desejos. Alguns poderão ser integrados em nosso projeto
de vida. Outros, não, se formos responsáveis (GUDORF, 1994, p.84). Se assumidos
e integrados a um projeto de vida, nossos desejos e, consequentemente, a
experiência que eles proporcionam, podem-nos ajudar a alcançar a mutualidade a que
tanto aspiramos (ZACHARIAS, 2014, p.161-3).

O matrimônio, compreendido como comunhão definitiva de vida, e o amor


conjugal, como “elemento básico e nuclear da realidade viva do casal” (VIDAL, 2007,
p.123), constituem a chave de leitura para o entendimento do porquê serem
consideradas ilícitas todas as demais relações de intimidade fora dele, sejam entre
pessoas solteiras, envolvidas em novas configurações familiares ou viúvas, sejam
entre pessoas hétero ou homossexuais. Existe, sem dúvida, uma unidade complexa
entre matrimônio e família; mas é apenas a partir do seu núcleo integral – o amor
conjugal – que conseguimos captar mais profundamente a avaliação ética que o
Magistério católico faz dessas relações. Abordar a questão das novas configurações
familiares e até mesmo da intimidade sexual entre pessoas fora do casamento implica
reconhecer que família, casamento e sexo não estão necessariamente ligados entre
si e que, portanto, princípios a priori e status jurídico não podem ser critérios
exclusivos usados para avaliar a vivência sexual das pessoas; que a sexualidade deve
ser considerada mais em referência às pessoas e seus relacionamentos do que aos
atos; que assumir o casamento heterossexual como ideal para as sociedades não
implica negar o reconhecimento ético de outros contextos fundamentados no respeito,
na doação, na responsabilidade, no cuidado, no afeto.

4 Perspectivas para uma nova compreensão da sexualidade

4.1 Ética e sexualidade

Tanto o exercício da sexualidade conjugal quanto o da extraconjugal suscitam


questões ético-morais. Em ambos os contextos, podem-se manifestar tanto a riqueza
quanto a fragilidade da sexualidade. O fato de as pessoas serem casadas não garante
a elas que as suas relações serão, automaticamente, expressão de amor, fidelidade,
abertura, comunhão, doação. E o fato de não serem casadas não significa que suas
relações sejam, automaticamente, expressão de desamor, infidelidade, egoísmo,
violência, abuso. Se não for bem integrada, bem conduzida, bem harmonizada com o
todo da existência, a vivência da sexualidade, seja qual for o seu contexto, pode
destruir as pessoas, desumanizando-as (COELHO, 2010, p.49-50). E temos de admitir
que estado civil e orientação afetivo-sexual se tornam questões secundárias.

Se a ética é a ciência dos valores que orientam a pessoa no seu processo de


humanização (LÓPEZ AZPITARTE, 1983, p.251), precisamos ir além dos meros
dados sociológicos (que nos levariam apenas a reconhecer a existência de contextos
distintos do ideal para a vivência da sexualidade) e da liceidade jurídica (que nos faria
contentar-nos em saber se o contexto garante a licitude ou ilicitude desta ou daquela
prática). No processo de humanização da pessoa, têm sempre primazia a consciência
moral, a escala pessoal de valores e a realização do bem comum como expressão de
justiça. E temos de reconhecer que a vivência do amor pode expressar-se de múltiplas
formas. Todas elas, no entanto, sujeitas à vulnerabilidade e à fraqueza de quem ama.
Praticamente, isso significa que, por mais que o amor seja o sentido mais profundo da
nossa existência e a única realidade que humaniza a vivência da nossa sexualidade,
aprendemos a amar e essa aprendizagem, também ela, depende da nossa maior ou
menor maturidade e integração afetivo-sexual.

4.2 Por uma renovada ética da sexualidade

O amor, quando verdadeiro, gera, expressa e fortifica a mutualidade


(SALZMAN – LAWLER, 2012, p.223). Isso significa que “o amor é verdadeiro e justo,
certo e bom, enquanto for uma resposta verdadeira à realidade da pessoa amada,
uma união genuína entre aquele que ama e a pessoa amada, e uma precisa e
adequada afetiva afirmação da pessoa amada” (FARLEY, 2006, p.198). Para que uma
relação de intimidade seja expressão de amor verdadeiro, deve favorecer a
reciprocidade, isto é, o mútuo dom de si, deve superar os interesses meramente
pessoais, passar do eros ao ágape (BENTO XVI, 2005, n.2-11).

Se o amor se caracteriza por ser uma efetiva e/ou afetiva afirmação do outro,
é preciso que o meu amor seja reconhecido como amor. Se isso não acontecer, não
haverá reciprocidade. Mas, para que isso ocorra, é preciso que haja certo grau de
compromisso entre as partes. Relações extraconjugais que se caracterizam por serem
anônimas, promíscuas, adúlteras, mentirosas carecem de um contexto que favoreça
a mutualidade e, portanto, não poderão contar com legitimidade ética, pois nunca
serão promotoras do humano. Somente um compromisso que se prolongue no tempo
poderá conferir à relação o contexto adequado para o amadurecimento. Pode ser que
tal compromisso dure para sempre; pode ser que não. Isso não é o mais importante,
do ponto de vista ético, pois se trata de uma realidade totalmente dependente da
capacidade de amar e da intensidade do amor das pessoas envolvidas. O mais
importante é que esse compromisso, enquanto durar, expresse-se como afeto,
responsabilidade, cuidado. Tudo isso faz parte da experiência amorosa e, à medida
que as pessoas vão crescendo e amadurecendo na capacidade de amar e, portanto,
na experiência de mutualidade ou reciprocidade, o compromisso também vai
amadurecendo e solidificando-se. Mesmo que o compromisso não seja necessário
como ponto de partida para relações de intimidade sexual, ele deverá ser o ponto de
chegada daquelas que, de fato, são expressão de amor.

Eticamente, está em jogo a qualidade das relações que estabelecemos, pois


nem todas colaboram para a nossa humanização e para a qualidade do modo de nos
colocarmos diante dos outros, pois nem todas geram relações de reciprocidade, sejam
elas conjugais ou extraconjugais. Urge uma ética sexual que reconheça a bondade
moral das relações que expressam os valores próprios do matrimônio mesmo que as
pessoas não sejam casadas; que não exija a definitividade do compromisso para
justificar as relações de intimidade; que reconheça que o amor não precisa ser
necessariamente conjugal e heterossexual para que ele humanize a sexualidade; que
considere mais a qualidade das relações do que o que pode ou não ser feito neste ou
naquele contexto.

Ronaldo Zacharias, sdb. Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Texto


original Português.

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Função social da propriedade no ensino social da Igreja


Sumário

1 Introdução

2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja

2.1 Princípios

2.2 Valores

3 O princípio da destinação universal dos bens

3.1 Significado deste princípio

3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada


3.3 Destinação universal e opção preferencial pelos pobres

4 Função social da propriedade

4.1 Função social ou hipoteca social

4.2 Distribuição da propriedade da terra

5 Outras formas de propriedade

6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade

7 Referências bibliográficas

1 Introdução

O ensinamento social da Igreja sobre a propriedade tem como referência


básica o princípio da destinação universal dos bens. No Compêndio de Doutrina Social
da Igreja (em diante: CDSI), a doutrina sobre a propriedade e sua função social
aparecem como uma decorrência desse princípio básico. Por essa razão, iniciamos
esse verbete com uma análise do significado desse princípio para a doutrina sobre a
propriedade. O ensinamento da Igreja sobre a propriedade e sua função social tem
fortes raízes bíblicas e faz parte do ensino social constante da Igreja nas suas
encíclicas sociais, desde a Rerum Novarum (em diante: RN), do papa Leão XIII (1891),
até a Laudato Si’ (em diante, LS), do papa Francisco (2015).

2 Princípios e valores da doutrina social da Igreja

Inicialmente, convém apresentar brevemente os seis princípios e os quatro


valores que fundamentam a doutrina social da Igreja (em diante, DSI). Já que essa
doutrina tem unidade e coerência interna, a compreensão de cada princípio se
enriquece com a visão do conjunto dos princípios e valores do ensinamento social.

2.1 Princípios
Eis os seis princípios da doutrina social da Igreja (CDSI p.99-122):

1º. A dignidade da pessoa humana: o ser humano é imagem viva do próprio


Deus; a pessoa é titular de direitos e deveres, que são inerentes a cada ser humano.

2º. O bem comum: é o bem de todos e é indivisível (como a saúde, a


segurança e a paz); é responsabilidade de todos, sob a coordenação do poder público.

3º. A destinação universal dos bens: ou princípio do uso comum dos bens,
que precede às diversas formas concretas de propriedade (Sollicitudo Rei Socialis,
em diante SRS, n.42); a distribuição da propriedade deve ser tal que todos tenham
pelo menos o necessário para viver com dignidade.

4º. A subsidiariedade: o maior não deve substituir-se ao menor, nem tolher


sua livre iniciativa; implica no respeito às competências de cada nível de
responsabilidade e no direito de empreender.

5º. A participação: direito e dever de contribuir à vida em sociedade; implica


nos direitos e deveres da cidadania ativa.

6º. A solidariedade: determinação firme e perseverante de empenhar-se pelo


bem comum; opõe-se à “globalização da indiferença”.

2.2 Valores

A seguir, apresentamos os quatro valores da doutrina social da Igreja: (CDSI


n.198-203):

1º. A verdade: é a busca de conformar nossas ações com as exigências


objetivas da moralidade. Afasta-nos do arbítrio e aproxima-nos da retidão, da
transparência e da honestidade.
2º. A liberdade: autodeterminação no horizonte da verdade; podemos
distinguir duas dimensões da liberdade: a liberdade de (coação) e a liberdade para
(fazer o bem).

3º. A justiça: consiste em dar a cada um aquilo que lhe é devido; a justiça pode
ser: comutativa; distributiva; legal; social e restaurativa.

4º. O amor: é a forma de todas as virtudes, que anima por dentro todo
empenho social. Ele se expressa como benevolência e misericórdia.

3 O princípio da destinação universal dos bens

3.1 O significado desse princípio

O Concílio Vaticano II sintetiza o sentido desse princípio da seguinte forma:


“Deus destinou a terra, com tudo que ela contém, para o uso de todos os homens e
de todos os povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com
equidade, segundo a regra da justiça, inseparável da caridade” (Gaudium et Spes, em
diante GS, n.69).

O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito


universal ao uso dos bens. Toda pessoa deve ter a possibilidade de usufruir do bem-
estar necessário para seu pleno desenvolvimento. O princípio do uso comum dos bens
é o “primeiro princípio de toda ética social e o princípio típico da doutrina social cristã”
(SRS n.42). Esse princípio afirma a igualdade básica de todos no que se refere ao
sustento das próprias vidas: “Deus deu a terra a todo gênero humano, para que ela
sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém” (Centesimus
Annus, em diante CA, n.31). Já Pio XII, em sua radiomensagem de Natal de 1941,
afirmava o direito de toda pessoa ao atendimento de suas necessidades básicas,
como base para a paz no mundo: “A pessoa não pode prescindir dos bens materiais
que respondem às suas necessidades primárias e constituem as necessidades
basilares de sua existência”.

Trata-se de um direito natural, original e prioritário. Afirma o papa Paulo VI:


Todos os outros direitos, quaisquer que sejam, incluindo o da propriedade e
do livre comércio, lhe são subordinados; não devem, portanto, impedir, ao contrário,
facilitar sua realização; e é um dever social grave e urgente reconduzi-los à sua
finalidade primeira” (Populorum Progressio, em diante PP, n.22).

Esse princípio também implica na afirmação de que a economia é feita para o


homem e não o homem para a economia. “Devemos educar para um humanismo do
trabalho, onde o homem, e não o lucro, esteja no centro; onde a economia sirva ao
homem, e não se aproveite do homem”, afirmou o papa Francisco, em 16 de outubro
2016, numa audiência aos membros do Movimento Cristão dos Trabalhadores, da
Itália.

A aplicação concreta do princípio da destinação universal dos bens, segundo


os diferentes contextos sociais e culturais, implica em uma definição precisa dos
modos, dos limites e dos objetos. Não significa que tudo esteja à disposição de cada
um e de todos. Por isso, é necessário regular este direito na ordem jurídica. Essa
ordem jurídica deve ser tal que faculte a todos o acesso aos bens necessários a uma
vida digna e a um desenvolvimento integral, numa sociedade “onde o progresso de
uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para
sua sujeição” (Instrução Libertatis Conscientia, em diante LC, n.90). A ordem jurídica
deve respeitar outro princípio enunciado por São Tomás de Aquino: “in necessitate
sunt omnia communia”, isto é, “em caso de necessidade, todas as coisas são comuns”
(Summa Theologica, 2, 2, q. 66, ad 7). De acordo com esse princípio, a DSI considera
lícito que uma pessoa que passa fome lance mão do necessário para se alimentar,
(situação enquadrada na figura jurídica do “furto famélico”). Assim, uma renda mínima
(do tipo “Bolsa Família” ou benefício de prestação continuada) para pessoas
comprovadamente pobres, que não tem outra fonte de renda, não é um favor, mas um
direito.

O princípio da destinação universal dos bens é um convite a cultivar uma visão


de economia inspirada em valores morais, que permitam nunca perder de vista nem
a origem nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um mundo equitativo e
solidário. Esse princípio também corresponde ao apelo do Evangelho a vencer a
tentação da avidez da posse.

3.2 Destinação universal dos bens e propriedade privada

Mediante o trabalho, a pessoa humana, usando sua inteligência, consegue


dominar a terra e torná-la sua digna morada. “Deste modo, ele se apropria de uma
parte da terra, adquirida precisamente com trabalho. Está aqui a origem da
propriedade individual” (CA n.31). A propriedade privada, associada a outras formas
de domínio privado de bens, confere a cada pessoa uma extensão absolutamente
necessária à autonomia pessoal e familiar e “deve ser considerada como um
prolongamento da liberdade humana” (GS n.71). O direito de propriedade não deve
tolher o direito à propriedade. Isto é, o direito de alguns (ricos) não deve ser obstáculo
a que muitos outros (pobres) acessem a propriedade. Nas palavras de Paulo VI, “não
é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos
pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos” (PP n.33).

Essa compreensão da propriedade difere tanto da visão do coletivismo como


da visão do capitalismo, como foi posto em prática pelo liberalismo. Escreve João
Paulo II: “A tradição cristã nunca defendeu tal direito como algo absoluto e intocável;
pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos
a utilizarem os bens da criação inteira” (Laborem Exercens, em diante LE, n.14). E
termina resumindo: “o direito à propriedade privada está subordinado aos direito ao
uso comum, subordinado à destinação universal dos bens” (LE n.14).

A origem primeira da propriedade está no trabalho. O trabalho acumulado em


forma de capital tem a função básica de servir ao trabalho. Daí decorre o “princípio da
prioridade do ‘trabalho’ sobre o ‘capital’” (LE n.12). João Paulo II fundamenta assim
esse princípio:

Este princípio diz respeito diretamente ao próprio processo de produção,


relativamente ao qual o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que
o ‘capital’, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um
instrumento ou causa instrumental. Este princípio é uma verdade evidente, que
resulta de toda experiência histórica do homem (LE n.12).

A propriedade privada estimula ao trabalho e à responsabilidade. É importante


que seja acessível a todos. Assim a propriedade privada se constitui em “um
instrumento para o cumprimento do princípio da destinação universal dos bens”. É um
meio, não um fim (PP n.22-23).

A propriedade pública (estatal ou comunal) é uma forma importante de


propriedade pela qual se realiza a destinação universal dos bens. Uma obrigação que
incumbe aos responsáveis pelos bens públicos é sua administração competente,
dentro de sua finalidade, e o cuidado para que tais bens sejam bem utilizados e
conservados.

3.3 Destinação universal dos bens e opção preferencial pelos pobres

O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com


particular solicitude dos pobres, daqueles que se encontram em posições de
marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida impedem um
crescimento adequado. “A esse propósito deve ser reafirmada, com toda força, a
opção preferencial pelos pobres” (João Paulo II, Puebla, 1979). Trata-se de uma forma
especial de primado na prática da caridade cristã e da prática das nossas
responsabilidades sociais.

A atenção de Jesus aos pobres era constante e prioritária, como revelam os


evangelhos. O cuidado dos cristãos pelos pobres inspira-se no Evangelho e refere-se
tanto à pobreza material como a numerosas formas de pobreza cultural, espiritual,
psicossocial e religiosa.

São louváveis todos os esforços para superar a pobreza e é preciso colocar-


se em guarda contra posições ideológicas e messianismos. Os pobres ficam confiados
a nós e sobre essa responsabilidade seremos julgados por Deus (Mt 25, 31-46).
A destinação universal dos bens exige que a propriedade privada sirva para
atender as necessidades das pessoas, sobretudo dos pobres. Implica também que se
promovam políticas para sua inclusão social. Na Exortação Apostólica Evangelii
Gaudium, o papa Francisco considera a inclusão social dos pobres uma das “grandes
questões que (…) parecem fundamentais neste momento da história” (Evangelii
Gaudium, em diante EG, n.185), junto com a questão da paz e do diálogo social. Em
seu discurso no encontro mundial dos movimentos populares, em Santa Cruz de la
Sierra, Bolívia, no dia 9 de julho 2015, afirmou Francisco:

O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da


Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo
quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades
das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. (…) Os planos de
assistência que acodem a certas emergências deveriam ser pensados apenas como
respostas transitórias. Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que
dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário.

É necessário prestar atenção à dimensão social e política da pobreza. “Não


se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” (Apostolicam Actuositatem,
em diante AA, 8).

4 Função social da propriedade

4.1 Função social ou hipoteca social

A DSI ensina a reconhecer a função social de qualquer forma de propriedade


privada, fazendo referência frequente às exigências imprescindíveis do bem comum
(cf. Quadragesimo Anno, em diante QA, 23). Essas exigências podem ser assim
resumidas: ninguém deve ter os bens como sendo apenas próprios, só dele, mas
como comuns quanto ao uso, para que possam ser úteis também a outros; não se
pode prescindir dos efeitos no uso dos próprios bens e recursos (o que implica, por
exemplo, evitar o desperdício); não é justo manter ociosos os bens possuídos,
sobretudo os bens de produção, mas é preciso confiá-los a quem tem o desejo e a
capacidade de fazê-los produzir. A função social abrange também os frutos do recente
progresso nos campos científico e tecnológico.

Cabe uma responsabilidade especial aos empreendedores, no sentido de


usarem sua capacidade empresarial para criar novos empreendimentos ou
modernizarem empresas tradicionais, visando garantir sua sustentabilidade
econômica, política e socioambiental e promovendo o desenvolvimento com justiça
social. Cristãos e pessoas de boa vontade são chamados a “preocupar-se com a
construção de um mundo melhor” e a cuidar da terra, “nossa casa comum” (EG n.183).
Para o empenho de organizar a economia e promover o bem comum, diz o papa
Francisco, “temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social
da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo” (EG n.184).

Na encíclica Laudato Si’, o papa Francisco associa o uso social dos bens a
uma “ecologia humana”, que por sua vez, “é inseparável da noção do bem comum,
princípio este que desempenha um papel central e unificador na ética social” (LS
n.156). O bem comum “pressupõe o respeito pela pessoa humana enquanto tal, com
direitos fundamentais e inalienáveis, orientados para seu desenvolvimento integral”
(LS n.156), que exige a criação de dispositivos de bem-estar e segurança social e o
desenvolvimento de grupos intermédios. Exige também a aplicação do princípio de
subsidiariedade, com destaque para a família. Requer, ainda, a paz social, a
segurança e a justiça distributiva (cf. LS n.156).

Além disso, exigem-se ações no plano internacional, “para quebrar barreiras


e monopólios”, que impedem ou dificultam o exercício da função social da propriedade
(cf. CA n.35). Ao criticar a falta de ética na gestão das finanças na crise de 2008-2009,
escreve Bento XVI: “As finanças, depois da sua má utilização que prejudicou a
economia real, voltem a ser um instrumento que tenha em vista o desenvolvimento”.
E acrescenta: “Os operadores das finanças devem redescobrir o fundamento ético
próprio da sua atividade” (Caritas in Veritate, em diante CV, n.62-64).

O documento de Puebla assumiu o ensinamento de João Paulo II sobre a


hipoteca social que pesa sobre toda propriedade privada:
Como nos ensina João Paulo II, sobre toda propriedade privada pesa uma
hipoteca social. A propriedade compatível com a destinação universal dos bens é
acima de tudo um poder de gestão e administração, que, sem excluir o domínio, não
o faz absoluto nem ilimitado.” (Documento de Puebla, em diante DP, n.492).

A expressão “hipoteca social” ressalta, assim, o papel de gestores como


inerente aos detentores da propriedade de bens e conhecimentos. A propriedade
privada nunca é um direito absoluto, mas condicionado a regras e limites que a lei
pode estabelecer. A Constituição do Brasil, de 1988, em dois momentos distintos (nos
artigos 5º, inciso XXIII, e 170, inciso III), logo após garantir o direito de propriedade,
estabeleceu a necessidade de se observar a sua função social. Com base nesse
dispositivo constitucional, um município pode estabelecer o IPTU progressivo sobre
terrenos ou prédios ociosos e, no limite, desapropriar esse bem.

Uma forma de realizar na prática a função social da propriedade é promover


formas de participação dos trabalhadores na propriedade das empresas. João Paulo
II propõe as seguintes formas: copropriedade, acionariado do trabalho e participação
nos lucros. Propõe, ainda, associar o trabalho à propriedade do capital através de
“corpos intermediários com finalidades econômicas”, que costumam ser chamados de
“empresas de autogestão” (LE n.14). Nessas empresas, possuídas pelos
trabalhadores, em geral sob a forma de cooperativas, a iniciativa passa às mãos dos
trabalhadores, de onde nunca deveria ter saído. O sistema de empresas autogeridas
mostra que é possível produzir com eficiência, sem patrões capitalistas. Nelas se
realiza a prioridade do trabalho sobre o capital, sendo que o capital nada mais é que
trabalho acumulado. Os bens da natureza, a tecnologia e capital, são fatores
instrumentais, colocados a serviço do trabalho humano, única causa eficiente da
produção.

Uma conclusão lógica da doutrina da função social inerente a toda


propriedade é que uma parte das fortunas cumuladas pelos donos de grandes
empresas pertence, de direito, aos trabalhadores, cujo trabalho foi essencial para a
acumulação desses bens.
A propriedade intelectual é garantida pelas leis em muitos países e constitui
uma forma de recompensar os investimentos feitos em pesquisas que geraram um
invento ou a criação de um medicamento. Mas é importante verificar se essas leis
levam em conta o princípio da função social da propriedade, permitindo o acesso a
esses conhecimentos a um custo adequado, e atendendo a necessidades sociais de
populações inteiras (por exemplo, medicação de controle de epidemias). Outra
discussão que se impõe é em relação à privatização de serviços públicos, como a
água e o saneamento básico. O risco implicado na privatização de tais serviços é que,
ao se converterem em mercadoria, eles se tornem inacessíveis às populações pobres,
devido aos altos preços cobrados pelas empresas concessionárias de tais serviços.

4.2 Distribuição da propriedade da terra

Questão crucial, em todos os povos, é a distribuição equitativa da terra, seja


sob a forma de solo urbano, seja como solo rural. Também em relação a essa questão
vale o princípio da destinação universal dos bens e o da função social da propriedade.
Convém recordar a advertência dos S. Padres: “A terra foi dada a todos, não apenas
aos ricos” (S. Ambrosio, De Nabuthe, c. 12, n. 53; PL 14, 747. apud PP n.23). A
possibilidade de posse de terra nas zonas rurais é condição para o acesso a outros
bens e serviços, como o crédito (cf. Pontifício Conselho Justiça e Paz, “Para uma
melhor distribuição da terra. O desafio da Reforma Agrária”, 1997, n.27-31).

Da propriedade derivam uma série de vantagens objetivas, mas dela podem


provir também promessas ilusórias e tentadoras. Quem absolutiza a propriedade e só
pensa em cumular bens, acaba por experimentar a mais radical escravidão.

Entre os desafios do mundo atual, a Evangelii Gaudium coloca uma economia


de exclusão, uma nova idolatria do dinheiro, um dinheiro que governa ao invés de
servir e a desigualdade que gera a violência (cf. EG n.55-58). A EG pede também que
se pratique o diálogo na construção de novas políticas nacionais e locais, assim como
o “diálogo e transparência nos processos decisórios” (LS n.182), no campo da
economia, do desenvolvimento sustentável e no combate à corrupção.

5 Outras formas de propriedade


Dado o predomínio da apropriação privada de bens nas sociedades
capitalistas, é importante não esquecer as formas tradicionais, como a propriedade
comunitária, que se reveste de particular importância e caracteriza a estrutura social
de numerosos povos indígenas e de quilombolas. A sobrevivência física e cultural dos
povos originários depende em larga medida da garantia da posse e uso dos territórios,
em que já viviam seus ancestrais. A garantia da preservação da posse dessas terras,
matas e subsolo é fator fundamental para sua sobrevivência, segurança e bem-estar.
A defesa e valorização desta forma de propriedade não deve excluir a consciência
que também este tipo de propriedade pode evoluir.

Outra forma de propriedade é a propriedade coletiva, sob a forma cooperativa


ou associativa. Na Mater et Magistra (em diante MM), o papa João XXIII manifesta
apoio ao cooperativismo (MM n.82-87), especialmente no setor agrícola (MM n.143),
que segundo ele tem sido negligenciado por muitos governos. Há um reconhecimento
implícito das formas de propriedade nas quais se assenta o cooperativismo e dos
princípios que esse sistema pratica na gestão dos seus negócios. Um princípio é o da
gestão democrática (uma voz, um voto); outro, o da distribuição das sobras, no fim de
cada exercício, em proporção das operações de cada associado com a cooperativa e
não em função do volume de capital aportado pelo associado (em forma de quotas-
partes), ressaltando assim o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital.

6 Origem das distorções na visão e vivência a propriedade

Podemos perguntar-nos sobre a origem das graves e frequentes distorções


que hoje ocorrem na distribuição dos bens e na gestão dos negócios. A tendência que
os analistas observam em nossa economia globalizada é que a propriedade se
converteu em um direito (quase) absoluto. Constatam o domínio cada vez maior do
capital financeiro sobre o capital produtivo. Essas tendências têm como resultado a
concentração crescente das riquezas nas mãos de poucos, com o crescimento
desmesurado das grandes fortunas. Os estudos do economista Thomas Piketty sobre
a desigualdade, a concentração do capital e a financeirização da economia moderna
oferecem sólidas evidências nesse sentido.
Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate, destaca a função social da
empresa, que se realiza tanto na produção de bens e serviços como na geração de
postos de trabalho. No cumprimento de suas funções, a empresa não pode ter em
conta apenas o interesse dos proprietários ou acionistas:

a empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários


da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de
sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os
fornecedores dos vários fatores de produção, a comunidade de referimento. (CV n.40)

O papa advertia contra o uso especulativo dos recursos da empresa no


mercado financeiro, pondo em risco a sustentabilidade da empresa:

É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja
especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo, sem
cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, de seu serviço
concreto à economia real e de uma adequada e oportuno promoção de iniciativas
econômicas, também nos países necessitados de desenvolvimento. (CV n.40).

O papa Francisco, por sua vez, diagnostica uma crise antropológica profunda
na base do sistema de economia de marcado. Escreve ele na Exortação Apostólica
Alegria do Evangelho:

A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há


uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criamos
novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-5) encontrou uma
nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem
rosto e sem objetivo verdadeiramente humano. A crise mundial que investe as
finanças e a economia, põe a descoberto seus próprios desequilíbrios e, sobretudo, a
grave carência de uma orientação antropológica que reduz o ser humano apenas a
uma de suas necessidades: o consumo” (EG n.55).

A crise antropológica resultante está em consonância com a ideologia de total


liberdade do mercado e da afirmação de um Estado mínimo: “Esse desequilíbrio
provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a
especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados,
encarregados de velar pela tutela do bem comum” (EG n.56). Depois de falar das
dívidas, do juro, da corrupção e evasão fiscal egoísta, que assumem dimensões
mundiais, o papa afirma:

A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema, que tende a
fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil como o
meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado,
transformado em regra absoluta. (EG n56).

Resultado dessa crise antropológica e das ideologias do individualismo e do


materialismo são o maciço desrespeito aos direitos humanos básicos de indivíduos e
povos inteiros, as mudanças climáticas e a degradação ambiental, de dimensões
planetárias, com nos alertou a Encíclica Laudato Si’.

O grande desafio é como fortalecer práticas econômicas e sociais que se


afinem com os princípios da doutrina social da Igreja sobre a propriedade e o uso
comum dos bens, de modo a reverter as atuais tendências nocivas ao bem comum e
autodestrutivas da humanidade.

Matias Martinho Lenz, SJ. Universidade Católica de Pelotas, RS. Texto


original Português.

7 Referências bibliográficas

Lista das grandes encíclicas sociais dos papas, em ordem cronológica, com
sigla e ano de publicação:

LEÃO XIII. Rerum Novarum (RN). Sobre a condição dos operários, 1891.

PIO XI. Quadragesimo Anno (QA). Sobre a restauração e aperfeiçoamento da


ordem social em conformidade com a Lei Evangélica, 1931.
JOÃO XXIII. Mater et Magistra (MM). Sobre a evolução contemporânea da
vida social à luz dos princípios cristãos, 1961.

______. Pacem in Terris (PT). Sobre a paz cristã, 1963.

PAULO VI. Populorum Progressio (PP). Sobre o desenvolvimento dos povos,


1967.

JOÃO PAULO II. Laborem Exercens (LE). Sobre o trabalho humano. No 90º
aniversário da Rerum Novarum, 1981.

______. Sollicitudo Rei Socialis (SRS). Solicitude social da Igreja. No 20º


aniversário da Populorum Progressio, 1987.

______. Centesimus Annus (CA). No centenário da Rerum Novarum, 1991.

BENTO XVI. Caritas in Veritate (CV). Sobre o desenvolvimento humano


integral na caridade e na verdade, 2009.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium (EG). A Alegria do Evangelho. Sobre o


anúncio do Evangelho no mundo atual, 2013.

______. Laudato Si’ (LS) – Louvado Sejas. Sobre o cuidado da casa comum,
2015.

Outros documentos sociais oficiais da Igreja Católica.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et


Spes (GS). Sobre a Igreja no Mundo de Hoje, 1965.

______. Decreto Apostolicam Actuositatem (AA). Sobre o Apostolado dos


Leigos, 1965.
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Libertatis
Conscientia (LC), 1987.

CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Conclusões da II


Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. Documento de Puebla (DP),
1979.

______. Conclusões da II Conferência Geral do Episcopado Latino-


americano. Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Documento de
Aparecida (DA), 1979.

2 Textos e livros de referência

ANTONCICH, R.; SANS, J. M. Ensino Social da Igreja. Petrópolis: Vozes,


1986.

CALLEJA, J. I. Moral Social Samaritana I. Fundamentos e noções de ética


econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2006.

CNBB. Igreja e Questão Agrária no início do Século XXI. Estudos da CNBB n.


99. Brasília: CNBB, 2010.

LENZ, M. M. A propriedade e sua função social. In: CNBB. Temas da Doutrina


Social da Igreja. Projeto Nacional de Evangelização Queremos Ver Jesus, Caminho,
Verdade e Vida. São Paulo: Paulinas e Paulus, 2006, p.77-90.

______ (e equipe do projeto ensino social da Igreja, desafio às comunidades).


Riqueza e Pobreza e o Ensino Social da Igreja. Coleção Ensino Social da Igreja, V.
Petrópolis: Vozes, 1993.

MARTINS, José de Souza. Reforma agrária: o diálogo impossível. São Paulo:


Edusp, 2000.

PIKETTY, T. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.


______. A Economia da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social


da Igreja (CDSI). São Paulo: Paulinas, 2005

Aborto
Sumário

1 Introdução

2 O aborto numa Igreja Mestra e Mãe

3 A Igreja Mestra: defender a vida

4 A Igreja Mãe: crescer na acolhida

5 Considerações finais

6 Referências bibliográficas

1 Introdução

O aborto, compreendido como retirar o feto antes que ele tenha condições de
sobreviver fora do útero, é um dos temas mais debatidos na história da Igreja e
continua a dividir opiniões nos nossos dias. É necessário explicitar que quando se
trata do aborto no contexto da reflexão moral e ética refere-se, evidentemente, ao
aborto provocado. O aborto espontâneo, que ocorre por inúmeras causas, não implica
em questões morais, por mais doloroso que possa ser para as pessoas envolvidas.

A abordagem do tema no âmbito da teologia se torna necessária, para que


possamos ter uma visão mais complexa da problemática. Gostaríamos de ir além da
dicotomia pobre que se instalou sobre o assunto: “ser contra ou a favor”. Certamente
o alerta de Bernard Häring, já pronunciado há quadro décadas, é bastante atual e
propício à Igreja Católica nos nossos dias:

A condenação da Igreja ao aborto é plenamente aceitável apenas se ao


mesmo tempo todos os esforços possíveis forem feitos para eliminar as causas
principais do aborto. Estes esforços deveriam incluir uma verdadeira aplicação
pastoral da doutrina, bem como todo tipo de ação social em favor daqueles que são
especialmente expostos ao perigo de “resolver” seus difíceis problemas pelo aborto
(1970, p.35).

Publicamos recentemente artigos que abordaram a temática do aborto numa


perspectiva pastoral[1] onde apontamos que uma visão mais completa da posição da
Igreja sobre o aborto é possível se o fizermos numa dupla perspectiva: a posição da
Igreja Mestra e a posição da Igreja Mãe. A proposta não sugere um conflito entre estas
duas posições, mas mostra que toda vez que uma é enfatizada em detrimento da
outra, o ensinamento da Igreja sobre o assunto fica gravemente lesado. Entendemos
que a falta de uma visão conjunta destas posições se dá porque o aborto não tem sido
pensado numa dimensão pastoral, ou seja, isto reflete a dificuldade de percebermos
que quando discutimos o aborto estamos avaliando duas realidades: o ato em si e a
pessoa que o praticou. Estas realidades são diferentes: uma coisa é avaliar a
moralidade do ato do aborto, outra coisa é pensar qual a melhor postura pastoral frente
à pessoa que praticou o ato e que está inserida em condições sociais, históricas e
pessoais bem determinadas. Precisamos estar atentos ao fato de que na teologia
católica distinguimos o nível da teologia moral e o nível pastoral (HÄRING, 1970, p.
139).

2 O aborto numa Igreja Mestra e Mãe

Abordar estas duas realidades é extremamente importante para se fazer


justiça à visão da Igreja Católica perante o aborto. Para isto, destacamos que a Igreja
muitas vezes se apresenta como Mestra e Mãe[2]: como mestra ela ensina com
fidelidade a mensagem que recebeu de seu fundador e não poderá ser
condescendente com verdades de ocasião; como mãe ela está ciente dos conflitos e
condicionamentos que envolvem a vida dos seus filhos e filhas e não assume uma
atitude de condenação, ciente de que essa atitude não os ajudaria a crescer e a
cumprir a elevada missão a que são chamados.

Por isso, percebemos que é possível indicar – e o faremos a seguir – que a


Igreja compreende que a questão do aborto, na maioria das vezes, não é um ato de
uma pessoa isolada, mas de uma rede de relações, e que, portanto, antes de culpar
a mulher, a Igreja atribui a responsabilidade do aborto ao homem e ao meio social,
principalmente numa sociedade machista, hedonista, permissiva e agressiva contra a
mulher.

Estamos propondo, portanto, que apresentar uma visão completa sobre o


aborto na Igreja só é possível a partir deste delicado equilíbrio: rejeitar com firmeza o
ato em si e acolher com misericórdia a mulher que praticou o ato. Por um lado, a
misericórdia cristã não poderá ser confundida com falsa piedade. Ela significa todo o
empenho em buscar a “ovelha desgarrada” e não construir mecanismos de
justificação para deixá-la na exclusão. Significa pronto acolhimento de todos que
buscam o perdão e não negar a gravidade do conflito. Por outro lado, a misericórdia
na Igreja não pode ser vista como algo que os fortes dispensam aos fracos, assumindo
a postura daqueles que, na sociedade, têm o poder de distribuir privilégios. Levar a
boa nova aos pobres (Lc 7,22) é a essência da missão da Igreja e não podemos
amaciar a força profética do Evangelho, pois se de fato buscamos o Reino precisamos
nos colocar a serviço dos excluídos, cientes de que a salvação é sempre comunitária,
como nos afirma Bento XVI: “Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se
salva sozinho” (Spe Salvi n.48).

3 A Igreja Mestra: defender a vida

A posição da Igreja sobre o aborto – nesta perspectiva do que estamos


chamando de Igreja Mestra – tem sido muito bem definida nos pronunciamentos
recentes do Magistério. Pio XI, em 1930, na Encíclica Casti Connubii, assinala que
algumas pessoas exigiam o aborto como direito da mulher, enquanto outras o
consideravam aceitável para salvar a vida da mãe ou como controle populacional. O
Pontífice afirma que a vida da mãe e do filho são igualmente sagradas e ninguém,
nem sequer a autoridade pública, pode ter o direito de destruí-las, rejeitando, portanto,
os argumentos que pretendiam justificar o aborto nessas situações.

Grisez (1972) em sua grandiosa obra sobre o aborto, enfatiza que também
Pio XII repete incansavelmente a doutrina católica tradicional – aos médicos, biólogos,
parteiras e políticos de seu tempo – rechaçando a morte direta do feto, dizendo que
nunca se pode suprimir a vida de um inocente e que a paz social depende da
inviolabilidade da vida humana. Pio XII recusa o “ou a mãe ou o filho” em favor de
ambos, “a mãe e o filho”. Levar isto a cabo pertence à técnica médica; quando essa
não consegue, há de recorrer à divina providência e não à escolha humana de uma
vida em preferência à outra.

Quando se precisa escolher entre a vida da mãe ou do filho, a teologia moral


tradicional claramente distinguiu o aborto direto e indireto, condenando o primeiro e
aceitando o segundo. No entanto, aborto indireto pode ser lícito apenas quando não
se trata de um aborto no sentido moral. Os casos aceitos sem questionamento têm
sido a gravidez ectópica ou tubária – quando a gravidez se localiza fora da cavidade
uterina, que é a sede normal de sua implantação e desenvolvimento – e os casos em
que o útero precisa ser retirado por alguma doença, como câncer. Nesses casos, o
objetivo da ação médica é a saúde da mãe, e o aborto ocorre como efeito secundário.
Por outro lado, Noonan observa que o sacrifício da própria vida será sempre um ato
de generosidade, fruto da liberdade e nunca uma obrigação moral (NOONAN JR,
1970, p. xi).

O Concílio Vaticano II aborda diretamente a questão do aborto. A Constituição


Pastoral Gaudium et Spes se refere a ele em duas situações: no número 27 o aborto
aparece entre os crimes contra a pessoa humana, ao lado de homicídio e outros
crimes. No número 51 a outra referência ao aborto está no contexto do matrimônio e
indica formalmente que o aborto é um crime desde o momento da concepção, num
diálogo claro com o conhecimento científico atual e abandonando as distinções entre
embrião inanimado ou animado – muitas vezes presente nos debates sobre o aborto
ao longo da história (GS, n.51).
Em 1968, Paulo VI repetiu a condenação tradicional ao aborto na Humanae
Vitae, e João Paulo II se torna o papa que vai enfatizar a posição da Igreja sobre o
assunto, se pronunciando sobre o tema em vários momentos do seu pontificado e
mais claramente na Encíclica Evangelium Vitae (EV) onde o aborto é classificado
como crime abominável (n.58), numa clara referência ao mandamento divino: não
matarás (Dt 5,17). Nesse documento, João Paulo II se expressa – com toda
consciência e responsabilidade de um sucessor de Pedro: “declaro que o aborto
direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral
grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” (EV n.62).

Um dos aspectos da visão da Igreja que a sociedade nem sempre


compreende é que, juntamente com o conceito de que a vida é dom, também a
dignidade humana é gratuidade. A vida é dom e o reconhecimento de seu valor se
funda no fato ser um dom de Deus, aspecto muito destacado no Documento de São
Domingos (SD n.215). O valor de cada pessoa se funda no modo como o próprio Deus
a cria: como imagem e semelhança sua (Gn 1,27). Exatamente por isso a dignidade
não é uma conquista humana, não é algo que se acrescenta, se perde ou se ganha,
mas é gratuidade e se estabelece no simples existir de cada ser humano, pois cada
um existe por um gesto do Criador que o chama à existência. O mistério da pessoa
de Jesus Cristo – humano e divino – coloca um fundamento ainda mais palpável para
a dignidade humana, pois cada ser humano é co-humano com todos os outros
humanos e igualmente co-humano com Cristo, destinado a participar da vida divina.

É de conhecimento geral na teologia que esta posição do Magistério da Igreja


no século XX sobre o aborto é fruto de uma longa e bem definida tradição cristã sobre
o assunto. Por fim, esta posição da Igreja Mestra representa uma força profética nos
nossos tempos onde o valor da vida humana passa por um processo de relativização.
A legalização do aborto é causa e fruto de uma mudança paradigmática na sociedade
atual, onde o bem estar de alguns se consegue às custas de sacrifícios de muitos. É
bom destacar que a posição da Igreja não é isolada, pois muitas outras Igrejas cristãs
e outras religiões assumem conjuntamente a posição de que o aborto é inaceitável e
configura um grave problema moral.

4 A Igreja Mãe: crescer na acolhida


O mesmo estudo dos documentos da Igreja que revela uma clara posição de
condenação do aborto também indica que a Igreja manifesta claramente a sua
preocupação pastoral ao explicitar uma posição de acolhida às pessoas que
praticaram o aborto. Por mais que esta postura da Igreja – que chamamos aqui de
Igreja Mãe – esteja expressa em inúmeras declarações do Magistério, as nossas
sociedades parecem não receber esta mensagem com clareza, ou talvez não
estejamos insistindo também nessa perspectiva.

Para desenvolver a posição que revela essa Igreja Mãe, podemos iniciar por
um recente documento da Igreja na América Latina e Caribe – o Documento de
Aparecida (DAp) – que em sintonia com o Sumo Pontífice, exorta todos a “acolher
com misericórdia aquelas que abortaram, para ajudá-las a curar suas graves feridas
e convidá-las a ser defensoras da vida” (n.469). Esta exortação a “acolher com
misericórdia aquelas que abortaram” nasce da compreensão que a mulher que
praticou o aborto muitas vezes é uma vítima – e como tal ela sofre com a situação,
mais do que a promove – ou se torna uma vítima de seu ato ao praticá-lo. “O aborto
faz duas vítimas: por certo a criança, mas também a mãe” (n.469). A Igreja na América
Latina tem consciência de que oferece um “serviço de caridade” (n.98) aos povos
deste Continente e, em situações concretas, precisa ser rápida em prestar serviço e
lenta no julgamento, manifestando ciência de que está inserida num contexto
dramático, pois se estima que na América Latina e no Caribe ocorram anualmente 18
milhões de gestações, sendo que, dessas, 23% terminam em abortamento e no Brasil
o índice estimado é de 31% (BRASIL, 2005, p.7).

O papa João Paulo II, no mesmo documento onde confirma a posição de


condenação do aborto, a Evangelium Vitae, demonstra conhecimento do drama em
torno do mesmo, assumindo a face da Igreja Mãe, e assim se expressa:

Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que


recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que
poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se
tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso
espírito ainda não está sarada (EV n.99).
E faz isto sem negar a crueldade do aborto, mas como um serviço de caridade
que acolhe e promove as pessoas, oferecendo-lhes o bem mais precioso da Igreja, o
perdão, num momento em que elas precisam de ânimo e esperança: “o Pai de toda a
misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento
da Reconciliação” (EV n.99). Esta posição do Magistério da Igreja reafirma um ponto
central da moral católica em sua preocupação pastoral, que faz a distinção entre a
moralidade do ato praticado e a pessoa que o praticou, rejeitando o erro e acolhendo
as pessoas. A atitude de acolhida à mulher que praticou o aborto pode se tornar uma
medida eficaz contra o aborto, pois há estudo que indica que dentre as mulheres que
praticaram aborto 12% já haviam feito aborto antes (ASANDI; BRAZ, 2010, p.135).

Quando a Igreja vê a mulher que pratica o aborto como vítima, ela manifesta
uma clara percepção da realidade social que promove uma cultura da morte (EV n.12)
com situações viciadas por uma cultura de “permissividade hedonista e de machismo
agressivo”. É nesse contexto que João Paulo II se pronuncia também na Carta às
Mulheres: “Nestas condições, a escolha do aborto, que permanece sempre um
pecado grave, antes de ser uma responsabilidade atribuível à mulher, é um crime que
deve ser imputado ao homem e à cumplicidade do ambiente circundante” (CM n.5).
Esse pronunciamento de João Paulo II demonstra que a Igreja tem uma visão da
complexidade dos contextos sociais que levam ao aborto, e indica que atribuir a
responsabilidade do aborto primeiramente à mulher que abortou seria injusto, e
refletiria uma visão reducionista que ocultaria – e ocultando inocenta – os outros
agentes morais envolvidos na problemática do aborto. Aqui a Igreja, e junto com ela
muitos movimentos feministas, se perguntam: Onde está o homem? Ou será que a
mulher engravidou sozinha? Qual a atitude do homem quando soube que sua
companheira estava grávida? O aborto começa a ocorrer quando um homem não
assume a paternidade e diz para sua companheira que “isto é problema dela”. Esta
fuga da responsabilidade por parte do homem tem sido denunciada por estudiosos na
América Latina (PESSINI e BARCHIFONTAINE, 1997, p.266) e o próprio João Paulo
II deixa claro que a responsabilidade do aborto – em tal situação – é antes atribuível
a este homem do que à mulher.
O que mais escandaliza a sociedade brasileira atual no contexto da discussão
sobre o aborto é o inaceitável número de casos de violência sexual contra as mulheres
– infelizmente um dado também presente em outras sociedades. Entre as causas do
abortamento está a violência de gênero e, particularmente, a violência doméstica.
Esse tem sido o motivo que leva muitas mulheres a procurar o aborto: quando a
consequência do estupro é uma gravidez indesejada, o que, conforme estudos
indicam, é também uma das causas de mortalidade materna (MARSTON e CLELAND,
2004, p.15).

Outras passagens dos documentos da Igreja já demonstravam o


reconhecimento de que a mulher, muitas vezes, aborta sobre pressão. “A mulher, não
raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a
ceder ao aborto” (EV n.59). Esse trecho não se refere exclusivamente ao caso de
estupro, mas, certamente sofrer violência sexual é um forte fator que constrange a
mulher a “ceder ao aborto”, lembrando a reflexão da teologia moral que reconhece
que há situações onde a pessoa se torna incapaz de lidar com certos imperativos
morais. A passagem da Evangelium Vitae também conclui que, nesses casos, a
responsabilidade moral do aborto “pesa particularmente sobre aqueles que direta ou
indiretamente a forçaram a abortar” (n.59).

O papa fala também da responsabilidade do “ambiente circundante” – e assim


traz para o contexto do debate sobre o aborto, o papel da família, da comunidade e
do Estado[3]. A família – principalmente os pais da mulher e do homem que praticam
o aborto – pode assumir atitudes irresponsáveis frente à notícia de uma gravidez:
indiferença, não aceitação, rejeição e até pressão para que o aborto ocorra para salvar
a honra da família.

A Igreja – como comunidade – está chamando a si também a responsabilidade


e quer desenvolver em seu seio uma postura que possibilite de fato “apoiar e
acompanhar pastoralmente e com especial ternura e solidariedade as mulheres que
decidiram não abortar” (DAp, n.469), esperançosa que o desenvolvimento da acolhida
com ternura e solidariedade leve muitas mulheres a não “ceder ao aborto”. O
acolhimento com misericórdia daquelas que abortaram pode criar, nelas, condições
para que não abortem novamente. Mais ainda, a Igreja acredita que elas possam se
tornar agentes de pastoral em nossas comunidades, como autênticas “defensoras da
vida” (DAp, n.469).

Esta mesma perspectiva de misericórdia tem sido a orientação principal


assumida pelo papa Francisco no seu pontificado. Já na Evangelii Gaudium ele insiste
que a “Igreja é chamada a ser sempre a casa aberta do Pai” (EG n.47), posição
também assumida pastoralmente na Carta por ocasião do jubileu extraordinário da
misericórdia de 2015, em que a questão do aborto foi enfatizada e o papa concede a
“todos os sacerdotes para o Ano Jubilar a faculdade de absolver do pecado de aborto
quantos o cometeram e, arrependidos de coração, pedirem que lhes seja perdoado”.

5 Considerações finais

Indicamos que a posição da Igreja Mestra e Mãe convida à ação. Esta


constatação de que a Igreja assume uma posição de Mestra e Mãe em relação ao
aborto nos desafia a pensar de modo propositivo o papel de cada um em sua família
e em sua comunidade. Visto que estamos evitando reduzir nossas possibilidades a
uma posição dual – ser contra ou a favor – percebemos que o desafio maior da
sociedade é superar a realidade do aborto, senão de todo, ao menos daqueles abortos
que ocorrem por uma gravidez indesejada induzida por fatores socioeconômicos e
culturais. Assumimos, assim, a consciência de que, como Igreja, somos também parte
do “ambiente circundante”, igualmente responsável, principalmente porque as causas
são passíveis de serem trabalhadas numa evangelização integral.

Isto é também um desafio para a teologia. Por isso, gostaríamos de indicar


alguns dos pontos relacionados com a realidade do aborto que precisam ser mais bem
compreendidos e pensados à luz da reflexão teológica, num diálogo com outras
ciências, principalmente na esfera da bioética: altos índices de aborto nos países
latino-americanos; a maternidade no contexto da saúde da mulher e dos altos índices
de morbidade e mortalidade materna; a violência institucionalizada contra a mulher; o
papel da família e da comunidade cristã como espaço de acolhimento; a questão dos
direitos sexuais e reprodutivos; a figura masculina nas relações familiares. Alguns
desses desafios apontam para áreas onde a Igreja tem uma atuação histórica, que a
teologia precisa aprender a valorizar mais. Outros desafios são novos, onde a
presença da Igreja ainda é inusitada.

Podemos, como conclusão, apontar que o fato da Igreja se posicionar


claramente contra o aborto – e o fará sempre, por uma questão de coerência – tem
levado muitos cristãos a concluir que a Igreja condena, exclui e expulsa a mulher que
abortou do convívio eclesial. Essa é uma conclusão precipitada, simplista,
reducionista e que não reflete o ensinamento da Igreja expresso nos documentos do
Magistério. Por uma questão de justiça, não podemos lançar pedras às mães que
julgaram não ter condições de criar um filho não desejado (PESSINI e
BARCHIFONTAINE, 1997, p.270). A Igreja Mestra rejeita sempre o aborto e a Igreja
Mãe quer acolher a mulher que praticou o aborto, como um pai e uma mãe acolhem
os seus filhos sempre, e demostram maior carinho, atenção e amor nos momentos
em que eles enfrentam dificuldades.

Mário Antônio Sanches[4], PUC Paraná

6 Referências bibliográficas

ASANDI, Stella de Faro; BRAZ, Marlene. As mulheres brasileiras e o aborto:


uma abordagem bioética na saúde pública. Revista Bioética, 2010; v.18 n.1, Brasília:
CFM, p. 131-53.

BRASIL, Ministério da Saúde. Atenção Humanizada ao Abortamento: norma


técnica. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

CELAM. São Domingo – conclusões. São Paulo: CELAM / Loyola, 1992.

______. Documento de Aparecida. São Paulo: CNBB / Paulinas / Paulus,


2007.

GRISEZ, Germain G. El aborto: mitos, realidades e argumentos. Edciones


Sígueme, 1972.
FRANCISCO. Carta por ocasião do jubileu extraordinário da misericórdia.
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Acessado em: 3 jan 2016.

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Acesso em: 3 jan 2016.

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JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. São Paulo: Paulinas, 1995.

_____ . Familiaris Consortio. Petrópolis: Vozes, 1992.

_____ . Cartas às Mulheres, São Paulo: Paulinas, 1995.

PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de


Bioética. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1997.

MARSTON, Cicely; CLELAND, John. The effects of contraception on obstetric


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NOONAN JR. John Thomas. The morality of abortion: legal and historical
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SANCHES, M. A. Aborto em uma perspectiva pastoral. Revista Eclesiástica


Brasileira. fasc.285, janeiro, 2012, p.119-37.
VATICANO II. Gaudium et Spes (1965). Disponível em:
http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents. Acesso
em: 3 jan 2016.

[1] SANCHES, M. A. O Aborto numa Perspectiva Pastoral. REB – Revista


Eclesiástica Brasileira, Fasc. 285, Janeiro, 2012, p.119 et seq.. SANCHES, M. A.;
CASAGRANDE, C. H. V.; GOMES, E. M. D. Aborto numa Igreja mestra e mãe: na
perspectiva de agentes de pastoral. Atualidade Teológica (PUC-Rio), v.48, 2014,
p.359 et seq..

[2] Mater et Magistra de João XXIII, em 1961, onde ele aborda o problema de
excesso de população e se refere às leis divinas invioláveis e imutáveis que governam
o matrimônio e a transmissão da vida humana. A expressão em outros documentos
da Igreja, como em Familiaris Consortium, de João Paulo II, é claramente relacionada
ao contexto familiar: “Também no campo da moral conjugal a Igreja é e age como
Mestra e Mãe.” (n.33)

[3] Também na Evangelium Vitae n.59 João Paulo II amplia a


responsabilidade do aborto para a família, os legisladores, os que promovem uma
mentalidade hedonista, enfim, toda a sociedade.

[4] Mário Antônio Sanches é Doutor em Teologia pela EST/IEPG, RS, com
pós-doutorado em Bioética (2011) pela Pontifícia Universidade de Comillas (Madrid).
É professor titular da PUCPR onde atua no Programa de Pós-graduação em Teologia
e coordena o Mestrado de Bioética. E-mail: m.sanches@pucpr.br.

Moral Social
Sumário

1 Evangelho: fonte da preocupação social da Igreja

2 O ensinamento social da Igreja


3 Princípios permanentes

4 Âmbitos de aplicação

5 A solidariedade como proposta ética

6 Os direitos humanos como um desafio urgente

7 Uma releitura da opção pelos pobres

8 Referências Bibliográficas

1 Evangelho: fonte de preocupação social da Igreja

A Sagrada Escritura é a alma da teologia (Dei Verbum, n.24), é a fonte de


inspiração do pensamento social. Dela fluem as interpelações para os grandes temas
da atualidade social; justiça, direitos humanos, a fraternidade e a solidariedade. Jesus
e sua mensagem, o Reino de Deus, são o ponto de partida e de chegada (Mc 1, 15;
Mt 5: 3-12). O amor (ágape) é o conceito mais importante (cf. 1Cor 13) e a regra de
ouro da moral social da Igreja: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem
que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12; Lc 6,31). O Evangelho
deve ser anunciado no mundo do trabalho, da economia, da política, da cultura, da
família. Todas estas realidades são parte da vida humana e, portanto, são alcançadas
pela salvação trazida por Cristo.

A experiência do amor cristão torna-se compromisso por amor; a fé busca a


expressão ética. Isto é afirmado claramente na Carta de Tiago:

De que adianta, meus irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
Acaso a fé pode salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do
alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se
até satisfazer-se’, sem porém lhe dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé,
por si só, se não for acompanhada de obras, está morta (Tg 2,14-17; cf. 1 Jo 4,19-21).
A experiência do amor se faz solicitação e busca de configuração de uma
sociedade justa, onde todos estão incluídos para participar em sua organização e
desfrutar de bem-estar. O social forma parte essencial do ser humano e, por isso, com
toda a razão, os bispos latino-americanos declararam: “o nosso comportamento social
é uma parte integrante do nosso seguimento de Cristo” (Puebla, n.476).

A este respeito, a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37; Mt 22,34-40; Mc


12,28-31) é muito esclarecedora. O escriba ou o jurista pergunta a Jesus “quem é o
meu próximo?”, porque não se deve cometer erros neste ponto em que está em jogo
a vida eterna.

A resposta de Jesus é surpreendente porque não dá uma definição teórica do


próximo, não requer – ao estilo grego – um amor universal pela humanidade, mas
mostra através da parábola, o procedimento concreto de amor autêntico ao próximo.
Ou seja, a Jesus não importa perguntar quem ele é, ou qual sua nacionalidade ou
confissão, mas sim mostrar que todo aquele que precisa da nossa ajuda é nosso
próximo e nós somos o próximo dele.

A partir da parábola, podem ser tiradas as seguintes conclusões éticas sobre


o amor cristão:

a) A ruptura no conceito vigente de próximo. A pergunta inicial do perito da lei


presumia uma delimitação excludente na categoria de próximo (até quem chega a
minha obrigação de amar? ou quem está incluído no conceito de próximo?). Jesus
recusa-se a responder esta questão e sublinha que o próximo é aquele que vem ao
nosso encontro no momento particular e concreto da vida diária. O conceito cristão de
próximo é o resultado da história e não o seu ponto de partida. Em outras palavras,
Jesus não define o conceito de próximo, mas descreve a ação pela qual se faz do
outro um próximo. Em nossa linguagem cotidiana, a palavra “próximo” tem o sentido
geral de “vizinho” ou “fulano”, um significado abstrato, passivo e neutro. Na parábola,
o conceito de próximo está relacionado a uma ação dinâmica, comprometedora e
histórica. O próximo não é apenas outro, mas aquele que eu torno um outro relevante
e significativo; fazer do outro, através de uma ação concreta, o meu próximo.
b) O critério de compaixão. A descrição da ação de proximidade não é definida
pela presença (o sacerdote e o levita estavam presentes), mas pela capacidade de se
compadecer frente a necessidade do outro. Só quem teve compaixão (padecer com)
é identificado por Jesus como alguém que se comportou como próximo. O doutor da
lei perguntou: quem é o meu próximo? E Jesus responde com outra pergunta: a quem
você tratou como próximo? Ou seja, o critério fundamental de proximidade se define
a partir das necessidades do outro. Portanto, o próximo não é definido pela mera
presença, mas através da ação de acudir o outro que é um necessitado.

c) A prática do amor. A capacidade de se compadecer frente as necessidades


do outro faz com que o amor não se manifeste apenas através de sentimentos e
palavras, mas também – e especialmente – em fatos concretos. O samaritano se
preocupou pelo ferido: ele se aproximou, tratou suas feridas, derramando nelas azeite
e vinho, colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou
dele. E a resposta de Jesus foi: “faça o mesmo” e “faça isso e viverá”. Jesus não
estava interessado no desenvolvimento teórico-legalista da delimitação do conceito
de próximo, pois urgia a prática concreta do amor diante da necessidade do outro.

d) Amor sem limites. A verdadeira compaixão leva à radicalidade na prática


do amor. Esta radicalidade é mostrada na ajuda desinteressada do samaritano diante
do desvalido, porque, para além das divisões nacionais e de culto, o outro está ferido.
A vida de Jesus é o exemplo desse amor sem limites, é mediante sua própria vida que
a propõe como um modelo de serviço aos outros.

e) O necessitado como referente primário. O doutor da lei pergunta pelo objeto


do amor (o conhecimento teórico: a quem eu devo amar?) enquanto Jesus responde
em termos de sujeito do amor (a realização prática de como se deve amar). A resposta
de Jesus coloca o sujeito na mesma posição daquele que padece a necessidade e, a
partir dessa situação de abandono, levanta a questão: o que posso fazer? É
precisamente a capacidade de compaixão que o torna sensível às necessidades do
outro e leva a uma prática do amor. O necessitado torna-se a medida específica de
um amor sem limites, expressão e verificação do amor a Deus.
Jesus faz do amor ao outro uma pergunta altruísta (levantar a questão a partir
da necessidade do outro) e não uma observação egocêntrica (como eu posso ajudar
o outro a partir de minha situação confortável de não necessitado). Portanto, a justiça
tem a sua origem em Deus. O amor, a verdade e a justiça são uma unidade em Deus.
“O amor – caritas – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a se
envolverem com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz” (Caritas in
veritate n.1). O amor ganha forma operativa na justiça. Se, por um lado, a justiça não
pode ser separada da caridade (Populorum progressio n.22), por outro lado, é o
primeiro caminho da caridade: reconhecer e respeitar os direitos dos indivíduos e dos
povos! (Caritas in veritate n.6). A justiça que brota do amor de Deus é o fundamento
da justiça social e da opção pelos marginalizados, indefesos e excluídos da
sociedade.

2 O ensinamento social da Igreja

O Ensinamento Social da Igreja (Doutrina Social da Igreja) é a elaboração, de


forma sistemática, da preocupação do Magistério com os problemas sociais,
explicitando as obrigações sociais. Ou seja, o dever cristão de cooperar com a
construção de um mundo humano e justo (Gaudium et Spes, n.34, 43, 72; Octogesima
Adveniens, n.24).

O documento inaugural é a encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII,


publicada em 15 de maio de 1891. É a primeira vez que um documento do Magistério
é totalmente dedicado à denominada “questão social”. A Igreja se volta para os
problemas que afligem aos pobres. Seu contexto é o de uma sociedade
profundamente transformada pela Revolução Industrial: revolução socioeconômica,
com o surgimento e consolidação da indústria; política, por meio do fortalecimento dos
Estados-nação; científica, através do aprofundamento do conhecimento aliado à
técnica; filosófica, fundada no pensamento da razão ilustrada e na emergência da
subjetividade. No final do século XIX, a Igreja se encontra frente ao capitalismo e ao
socialismo marxista.

Lista dos principais documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI) em ordem


cronológica:
Rerum Novarum (RN): Leão XIII de 1891.

Quadragesimo anno (QA): Pio XI, 1931.

Radiomensagem A solennità: Pio XII de 1941.

Mater et Magistra (MM): João XXIII, 1961.

Pacem in Terris (PT): João XXIII, 1963.

Constituição Pastoral Gaudium et Spes: Concílio Vaticano II, 1965.

Declaração Dignitatis Humanae: Concílio VaticanoII, 1965.

Populorum Progressio (PP): Paulo VI de 1967

Octogesima adveniens (OA): Paulo VI 1971.

Justiça no mundo: Sínodo dos Bispos, 1971.

Sollicitudo Rei Socialis (SRS): João Paulo II, de 1987.

Laborem Exercens (LE): João Paulo II de 1981.

Centesimus Annus (CA): João Paulo II, de 1991.

Caritas in veritate (CV): Bento XVI: 2009.

Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CSDC): Conselho Pontifício de


Justiça e Paz, 2004.

Na América Latina e no Caribe, os documentos das Assembleias da


Conferência do Episcopado Latino-americano (CELAM) em Medellín (1968), Puebla
(1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) oferecem elementos para o
pensamento social. São textos caracterizados pelo profetismo, pela opção
preferencial pelos pobres, pela defesa e a promoção da dignidade humana. A
condição fundamental da verdadeira libertação é a superação de todas as formas de
escravidão. O Evangelho deve iluminar o compromisso pela libertação de cada
homem e de todos os homens.

O Documento de Aparecida desenvolveu orientações para uma agenda social


(n.347-546.): globalização da solidariedade e da justiça, o compromisso com os novos
rostos de Cristo (moradores de rua, imigrantes, doentes, dependentes químicos,
prisioneiros); compromisso com a defesa da família e da vida humana (infância,
juventude, idosos, mulheres); a necessidade de uma pastoral da comunicação social;
a presença mais eficaz e profética na política; compromisso de solidariedade com os
povos indígenas e afrodescendentes. A teologia da libertação também oferece uma
contribuição inestimável para a reflexão e a práxis social dos cristãos.

3 Princípios permanentes

Ao longo das várias “encíclicas sociais” surgidas desde a Rerum Novarum


até os dias atuais – e apesar das mudanças que ocorreram durante esse mesmo
período – se repetem um conjunto de princípios éticos que formam a essência do
pensamento social da Igreja.

Primeiro, encontramos a afirmação solene da sagrada dignidade do ser


humano, de cada homem e mulher. O núcleo da antropologia bíblica é a semelhança
do ser humano o seu criador (Gn 1,26-28; cf. Sab 2,23; Eclo 17,3). E, como imagem
e semelhança de Deus, se revela de maneira perfeita e completa na pessoa de Jesus
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (2 Coríntios 4,4; Col 1,15).

Esta dignidade é a raiz dos direitos humanos e deve ser proclamada e


defendida contra todos os tipos de agressão. Portanto, somente o reconhecimento da
dignidade humana é condição de possibilidade de uma sociedade justa. Neste
sentido, o verdadeiro progresso é entendido como um desenvolvimento integral da
transição de condições “menos humanas para condições “mais humanas”; ou seja, o
desenvolvimento autêntico não é medido apenas, nem de maneira privilegiada, pela
quantidade, mas especialmente pela qualidade; e isso significa o dever de
solidariedade, de justiça social e caridade universal e internacional (Mater et Magistra
n.97-103; Pacem in Terris n.123; Populorum Progressio n.65; Laborem Exercens n.15;
Sollicitudo Rei Socialis n.44). “A fé cristã se ocupa do desenvolvimento contando
apenas com Cristo, a quem deve fazer referência toda a autêntica vocação para o
desenvolvimento humano integral” (Caritas in veritate n.18).

A exigência do bem comum é uma das principais chaves da ética social,


porque as suas exigências são o critério da justiça social; o bem comum é entendido
como o conjunto das condições de vida social com que os homens e as mulheres, as
famílias, as associações e os povos podem alcançar, com maior plenitude e
facilmente, a sua própria realização. No princípio da equidade – o cuidado especial
para os mais vulneráveis na sociedade – está incluído no princípio do bem comum,
de modo que o bem de todos tem um correspondente privilegiado (Rerum Novarum
n.24, 25; Quadragesimo Anno n.110; Mater et Magistra n.65; Pacem in Terris n.53-66;
Gaudium et spes n.74; Sollicitudo rei socialis n.42, 43).

O princípio da subsidiariedade enfatiza a dignidade e a responsabilidade do


indivíduo e dos organismos intermediários, evitando o individualismo liberal e o
estatismo totalitário, porque favorece a intervenção do Estado para o bem comum,
facilitando a iniciativa do indivíduo e do grupo como um contributo para a comunidade
humana (Rerum novarum n.26; Quadragesimo anno n.76-80; Mater et Magistra n.51-
58).

O princípio da destinação universal dos bens prevalece sobre o direito de


propriedade, porque é a tradução do bem comum no campo socioeconômico (Rerum
Novarum n.16; Quadragesimo Anno n.45-50; Populorum Progressio n.23-24) “Deus
destinou a terra e tudo o que ela contém para uso de todos os homens e todos os
povos (Gn 1,28-29), de modo que os bens criados devem ser distribuídos
equitativamente a todos, de acordo com a regra da justiça, inseparável da caridade”
(Gaudium et Spes n.69). O direito de acesso universal de todos ao uso dos bens deve
ser equitativamente garantido para cada indivíduo (Centesimus Annus n.6). É um
dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade (Populorum Progressio
n.22).

Reconhece-se o direito à propriedade privada, incluindo os meios de


produção, mas dentro do contexto do princípio primário da destinação universal dos
bens, uma vez que todos os outros direitos lhe estão subordinados (Gaudium et Spes
n.71). Toda propriedade dos meios de produção tem uma função social e deve
contribuir para o bem comum.

O trabalho ocupa a chave essencial e o centro da questão social (Laborem


Exercens n.3). O ser humano é o sujeito do trabalho, de modo que se afirma a
prioridade do trabalho sobre o capital.

Todo trabalho humano procede imediatamente da pessoa, a qual como que


marca com o seu zelo as coisas da natureza, e as sujeita ao seu domínio. É com o
seu trabalho que o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio
dele se une e serve aos seus irmãos, pode exercitar uma caridade autêntica e
colaborar no acabamento da criação divina (Gaudium et Spes n.67).

A questão salarial, a flexibilização, a precarização e o desemprego estão


entre as principais preocupações da moral social. Rejeita-se a redução do trabalho a
uma simples mercadoria ou a uma força anônima, e se sublinha a responsabilidade
do empresário direta e indiretamente sobre o trabalho. Também apela para a
solidariedade de e com os homens e as mulheres no trabalho (Quadragesimo anno
n.53 ; Laborem Exercens n.3, 6, 7, 8, 12, 16, 17). O cumprimento do princípio da
remuneração justa é a medida concreta para cumprir com a justiça social na relação
entre o trabalhador e o empresário.

Bento XVI apela à universalização do trabalho decente:

um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores,


homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste
modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um
trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade
aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita
aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho
que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes em nível pessoal,
familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma
condição decorosa (Caritas in veritate n.63).

A Igreja apoia os sindicatos e as diversas lutas da classe trabalhadora por


seus direitos (Compêndio n.305). Os sucessivos documentos têm procurado
acompanhar a evolução dos desafios sindicais que surgiram com o capitalismo
(Rerum Novarum n.34, 39-40; Gaudium et Spes n.68). As organizações de trabalho
são “protagonistas da luta pela justiça social” (Laborem Exercens n.20).

4 Âmbitos de aplicação

4.1 Economia

O papa Francisco tem uma visão crítico-profética da economia


contemporânea. “Vivemos em uma economia de exclusão e desigualdade. Essa
economia mata!” (Evangelii Gaudium, n.53). Retomando um tema importante da
teologia da libertação, a Igreja condena a idolatria do dinheiro. “Criamos novos ídolos.
A adoração do bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-35) encontrou uma versão nova e cruel
do fetichismo do dinheiro e da ditadura da economia sem rosto e sem objetivo
verdadeiramente humano” (Evangelii Gaudium n.53). “Na vida econômica e social
deve ser respeitada e promovida a dignidade da pessoa humana, a sua vocação e o
bem de toda a sociedade. Porque o homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida
econômico-social” (Gaudium et Spes n.63).

A economia em todas as suas extensões, é um setor de atividade humana. A


relação entre economia e ética é necessária, mesmo que elas sejam reguladas, cada
uma em seu campo, por princípios próprios. Na verdade, para Bento XVI, “a economia
tem necessidade da ética para funcionar corretamente; não qualquer ética, mas uma
ética que seja amiga da pessoa” (Caritas in veritate n.45). O objetivo da economia é
produzir riqueza e seu incremento é voltado para o desenvolvimento global e solidário
do homem e da sociedade. Mas, “o principal objetivo da produção é não apenas o
aumento da quantidade de produtos, nem o lucro ou o poder, mas o serviço do
homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem de suas necessidades
materiais e das exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa”
(Gaudium et Spes n.64).

O desenvolvimento econômico “não deve ser entregue só ao arbítrio de


alguns poucos indivíduos ou grupos economicamente mais fortes ou só da
comunidade política ou de algumas nações mais poderosas” (Gaudium et Spes n.65).
As necessidades dos pobres não permitem prorrogação. Portanto, eles devem ter
prioridade sobre os desejos dos ricos. Há necessidades econômicas que são direitos
humanos fundamentais (Pacem in Terris n.11). “Não é um mero aumento de
produtividade ou lucro, ou poder, mas o serviço do homem integral” (Gaudium et Spes
n.64).

De acordo com Bento XVI, há iniciativas no âmbito da economia que indicam


que “é possível viver relações autenticamente humanas de amizade e camaradagem,
de solidariedade e reciprocidade, mesmo no âmbito da atividade econômica” (Caritas
in veritate n.36). Existem alguns exemplos: fundos de investimento ético,
microcréditos (Caritas in veritate n.45 e 65), cooperativas de consumo (n.66) e a
economia civil e de comunhão (n.46). Na verdade, cada empresa deveria ser
caracterizada pela capacidade de servir o bem comum da sociedade através da
produção e fornecimento de bens e serviços úteis e necessários para as pessoas.
Deve criar riqueza para toda a sociedade, não só para o empresário (Compêndio,
n.344).

4.2 Política

A pessoa humana é o fundamento e objetivo da convivência política (Gaudium


et Spes n.25). A comunidade política vem da natureza das pessoas e existe para obter
o bem comum, que seria de outra forma inatingível (Gaudium et Spes n.74). No
entanto, para auxiliar na transformação de uma sociedade injusta, os cristãos devem
participar da política. “Embora a justa ordem da sociedade e do Estado sejam o dever
central da política, a Igreja não pode nem deve ser deixada de fora da luta pela justiça”
(Evangelii Gaudium n.183; Deus caritas est n.28) . A mensagem bíblica inspira o
compromisso cristão: “a política é uma forma de oferecer adoração a Deus” (Puebla
n.521).

Na sociedade política destacam-se como requisitos éticos os valores da


igualdade e da participação em uma estrutura democrática (democracia), porque
correspondem melhor à dignidade e ao sentido de responsabilidade do cidadão (Mater
et Magistra n.83; Octogesima adveniens n.24, 26, 30-35; Pacem in terris n.159;
Sollicitudo rei socialis n.20-21).

A autoridade política é necessária em função das tarefas que lhe são


confiadas e deve ser um componente positivo e insubstituível da convivência civil
(Pacem in Terris n.279). Essa autoridade deve garantir a harmonia social, sem tomar
o lugar da livre atividade dos indivíduos e dos grupos, mas orientando-a, no respeito
e na proteção da independência dos sujeitos individuais e sociais para a realização
do bem comum.

O sujeito da autoridade política é o povo considerado, na sua totalidade, como


o titular da soberania. Portanto, a Igreja observa com simpatia o sistema da
democracia, enquanto assegura a participação dos cidadãos e garante a possibilidade
de escolher os seus governantes ou de substituí-los (Gaudium et Spes n.75). “É uma
exigência da dignidade humana que todos possam, com pleno direito, se envolver na
vida pública” (Pacem in Terris n.73). Uma autêntica democracia só é possível num
Estado de direito e com base em uma concepção correta da pessoa humana
(Centesimus Annus n.46). A este respeito, os partidos políticos têm a função de
promover a participação e o acesso de todos às responsabilidades públicas e orientar
a sociedade para o bem comum (Gaudium et Spes n.75). Outro instrumento de
participação política é o referendum, no qual se realiza uma forma direta de eleições
políticas.

A Igreja e a comunidade política, embora ambas se expressem com estruturas


organizacionais visíveis, são de natureza diversa, seja por sua configuração ou pela
finalidade perseguida: “no campo que lhes é próprio, a comunidade política e a Igreja
são independentes e autônomas” (Gaudium et Spes n.76). Por esta razão, a Igreja
mantém a sua autonomia frente às ideologias. Qualquer sistema, segundo o qual as
relações sociais estejam determinadas inteiramente por fatores econômicos, é
contrário à natureza humana (Catecismo n.2423-2425). Rejeita-se a ideologia liberal
(Liberalismo, Capitalismo) por seu materialismo prático (hierarquia errada de valores),
bem como a ideologia marxista (Marxismo) por seu materialismo dialético (uma visão
errônea de reduzir o ser humano a um resultado das relações econômicas).

4.3 Questão ambiental

A questão moral contempla a natureza como “expressão de um desígnio de


amor e de verdade” (Caritas in veritate n.48). O meio ambiente foi dado por Deus a
todos, constituindo seu uso uma responsabilidade que temos com os pobres, as
gerações futuras e toda a humanidade (…). Quando falta essa perspectiva, o homem
acaba considerando a natureza um tabu intocável ou, pelo contrário, abusa dela. Nem
uma nem outra atitude corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação de
Deus (Caritas in veritate n.48).

Frente às mudanças climáticas, a extinção da biodiversidade e a poluição, as


questões relacionadas com a preservação do meio ambiente devem levar em
consideração as questões energéticas. O desenvolvimento deve basear-se “no
reconhecimento mais urgente dos limites dos recursos naturais, alguns dos quais são
não renováveis. Usá-los como se fossem inesgotáveis, com controle absoluto,
compromete gravemente a sua disponibilidade não só para a geração presente, mas,
sobretudo, para as gerações futuras” (Sollicitudo Rei Socialis n.34).

A comunidade internacional tem o dever de encontrar formas institucionais


para regular a exploração dos recursos não renováveis, também com a participação
de países pobres, para que eles possam planejar conjuntamente o futuro. Esta
responsabilidade é global, porque não está relacionada apenas à energia, mas a toda
a criação, já que não devemos deixar despojadas de recursos as novas gerações
(Caritas in veritate n.50). Em suma, é necessária uma verdadeira mudança de
mentalidade que nos induza a adotar novos estilos de vida (Centesimus Annus n.36).

Requer-se uma espécie de ecologia humana, entendida no seu justo sentido


(Caritas in veritate n.51). O documento de Aparecida apresenta propostas neste
sentido: aprofundar a presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas
pelo desenvolvimento predatório, e apoiá-las em seus esforços para alcançar uma
distribuição equitativa da terra, da água e dos espaços urbanos; buscar um modelo
de desenvolvimento alternativo integral e solidário baseado em uma ética que inclua
a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana, que se fundamente
no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens (Aparecida
n.474).

5 A solidariedade como proposta ética

A moral social apresenta a solidariedade humana como um requisito


inalienável (Gaudium et Spes n.12-32 ; Sollicitudo Rei Socialis n.38-40). A
solidariedade é a expressão humana da responsabilidade social do indivíduo e da
sociedade com o outro e entre todos. Portanto, a solidariedade é considerada uma
exigência humana, porque cada indivíduo é um ser social, forma parte de uma
sociedade e a realização do indivíduo necessariamente envolve a realização de cada
um. Viver é conviver.

A solidariedade torna-se uma condição de existência para todos. Não se


estende a mão (de cima) para quem está embaixo, mas se caminha junto com o outro;
não é uma visão verticalista da sociedade, mas horizontal, em que não se estende
uma mão paternalista de um grupo social para o outro , senão que se aperta a mão
do outro em reconhecimento da igual dignidade. Por isso, a solidariedade não significa
dar o que se tem de sobra, mas é uma expressão de amor pelo semelhante. O outro
se torna um próximo quando alguém dele se aproxima.

O conceito de solidariedade ocupa um lugar privilegiado na visão cristã. A


Sagrada Escritura é o relato da história solidária de Deus com a humanidade e a
condição humana de criatura, significando uma superação da mera dependência pela
responsabilidade em um contexto dialogal entre Deus e a humanidade. Ou seja, a
comunidade divina (o mistério da Trindade) se revela como comunhão com a
humanidade na pessoa de Jesus, o Cristo, e convida o ser humano a compartilhar
uma vida em comum união com o divino e entre si. A experiência de solidariedade
divina torna-se responsabilidade ética de solidariedade nas relações interpessoais e
sua estruturação em instituições (Jo 13, 34-35).

A solidariedade, explica João Paulo II, não é um sentimento superficial pelos


males sofridos por tantas pessoas, próximas ou afastadas. Pelo contrário, é a
determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; isto é, para o
bem de todos e de cada um, para que todos nós sejamos verdadeiramente
responsáveis por todos (Sollicitudo Rei Socialis n.38).

Esta compreensão da solidariedade tem raízes bíblicas profundas. “Disse o


Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei. Sou eu o guarda
do meu irmão?” (Gênesis 4,9). A resposta de Cain contrasta fortemente com a
afirmação de Jesus: “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Assim, enquanto Caim desconhece
seu próprio irmão, Jesus identifica-se com os membros mais fracos da sociedade,
fazendo-se seu irmão.

Em uma sociedade globalizada, escreve Bento XVI, o sentido cristão da


solidariedade deve ser global.

A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício, mas


também um dever. Hoje, muitas pessoas tendem a alimentar a pretensão que não
devem nada a ninguém, a não ser a si mesmas. Considerando-se titulares só de
direitos, frequentemente deparam-se com fortes obstáculos para maturar uma
responsabilidade no âmbito do desenvolvimento integral próprio e alheio (Caritas in
veritate n.43).

6 Os direitos humanos como desafio urgente

A crescente consciência dos direitos fundamentais da pessoa humana como


uma expressão jurídica e política da dignidade do ser humano tem uma formulação
privilegiada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em Paris em 1948. Esta Declaração é um verdadeiro marco
cultural na história da humanidade, ao afirmar que “todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo 1º) e que estes direitos pertencem a
“toda pessoa, sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de
outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou
qualquer outra condição” (artigo 2º).

Esta proclamação destaca os direitos que correspondem à pessoa humana


como tal e, portanto, são logicamente e historicamente anteriores ao Estado. Assim,
o Estado não concede esses direitos, mas simples e necessariamente tem que
reconhecê-los. Estes direitos são inalienáveis porque correspondem às condições
básicas que permitem a realização do indivíduo na sociedade ou uma sociedade
formada por indivíduos e, portanto, pertencem à mesma natureza humana.

No pensamento pontifício, o autêntico desenvolvimento da sociedade se


baseia no respeito e na promoção dos direitos humanos. “Não seria verdadeiramente
digno do homem um tipo de desenvolvimento que não respeitasse e promovesse os
direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das
nações populares (…). Tanto os povos como as pessoas devem gozar de uma
igualdade fundamental” (Sollicitudo Rei Socialis n.33).

Atualmente, a Igreja entende que a defesa dos direitos humanos como


expressão da dignidade inalienável de cada ser humano é parte essencial de sua
missão evangelizadora. De fato, os bispos latino-americanos proclamaram
solenemente:

sentimo-nos urgidos a cumprir, por todos os meios, o que pode ser o


imperativo original desta hora de Deus, em nosso Continente: uma audaciosa
profissão de cristianismo e uma promoção eficiente da dignidade humana e de seus
fundamentos divinos, precisamente entre os que mais necessitam, ou porque a
desprezam ou sobretudo porque, sofrendo este desprezo, buscam – talvez às cegas
– a liberdade dos filhos de Deus e o advento do homem novo em Jesus Cristo (Puebla
n.320).

A responsabilidade de uma reflexão sobre os direitos humanos dos


esquecidos da história é crucial para que este discurso tenha a legitimidade de uma
ética universal, uma vez que de outra forma o horizonte dos direitos humanos só é
aplicável para alguns na sociedade.

7 Uma releitura da opção pelos pobres

A preocupação com os pobres e explorados sociais é uma das raízes mais


profundas da moral social. A causa dos marginalizados confirma a missão e serviço
da Igreja como prova de sua fidelidade a Cristo, para ser verdadeiramente a Igreja
dos pobres (Laborem Exercens n.8). O papa Francisco proclama uma “Igreja pobre
para os pobres” (Evangelii Gaudium n.198), porque “para a Igreja, a opção pelos
pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica
[...] entendida como uma forma especial de primado na prática da caridade cristã,
testemunhada por toda a Tradição da Igreja” (Evangelii Gaudium n.199).

A visão cristã particular, que sustenta e ilumina os direitos e deveres humanos,


encontra na opção pelos pobres sua verificação de radical autenticidade (Teologia da
Libertação). A finalidade da opção pelos pobres é a sua personalização na sociedade
porque consiste principalmente em um relacionamento, uma aliança, um jogar-se a
sorte com eles. Esta aliança com os perdedores da história (e também as suas
vítimas) é, de certa forma, perder a própria vida. Ao pobre o salva de sua carência e
aquele que opta é libertado da sua alienação. O que salva é a transcendência
implicada na relação: sair para fora de si mesmo e respeitosamente chegar ao outro,
e, nesta dupla transcendência, a transcendência maior de deixar agir o Espírito, de
reconhecer Jesus no pobre, e de fazer o plano do Pai.

Esta opção não é diferente daquela pela humanidade, mas consiste


precisamente no caminho concreto para torná-la eficaz. Deus, em Jesus, estabelece
uma aliança com toda a humanidade e, em primeiro lugar, com os pobres, porque
neles não é reconhecida essa humanidade, por falta do que a cultura atual considera
valioso e digno de ser humano. Assim, optando por aqueles que de acordo com esse
paradigma dominante humano não têm valor, Deus deixa claro que a sua escolha é
pela humanidade e que esta condição é inerente a cada ser humano. “Os pobres são
os destinatários privilegiados do Evangelho” (Evangelii Gaudium n.48).
Deus, ao reconhecê-los (Mt 25, 31-46), mostra que ele não é o Deus dos
sábios ou dos ricos ou poderosos, e sim o Deus dos seres humanos. Mas também
proclama que o indivíduo não chega à categoria de pessoa humana pela posse desses
atributos. Em outras palavras, como os pobres tendem a sentir-se não humanos ao
introjetar a avaliação negativa da cultura dominante, Deus, quando opta por eles,
certifica a condição humana e possibilita que a assumam.

O pobre que aceita essa relação com Deus não se sente excluído, mas
reconhecido. Essa aceitação é a fonte da vida, porque lhe permite encarar a realidade
e se relacionar com outros nela. Já não cabe a resignação, porque a descoberta do
respeito por si próprio se abre em direção ao outro e ao compromisso com a realidade.

Aquele de outro grupo social que opta pelos pobres ingressa em uma relação
que significa dar-se. O dar-se pressupõe criar as condições de igualdade. É a lógica
da encarnação: Jesus não se agarra à sua condição divina, mas se despoja de todos
os privilégios tornando-se semelhante aos seres humanos (Fil 2,6-7). Então, dar a si
mesmo também inclui dar o que se tem. Por isso, Jesus fala àquele que quer segui-
lo para vender tudo e se dar aos pobres (Mt 19,21). Esta opção “está implícita na fé
cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com a sua
pobreza” (Documento de Aparecida: discurso inaugural, n.3).

A superação da pobreza, como uma expressão de respeito eficaz para toda e


qualquer pessoa humana, exige um sujeito universal. O núcleo deste sujeito universal
são os próprios pobres, mas os demais também são necessários para apoiar e facilitar
esse processo. A integração do pobre na sociedade como um sujeito social é uma
condição necessária, mas não suficiente, para superar a pobreza, porque também se
precisa de uma aliança com os não pobres, para que optem por eles. Para que “entre
vocês não haja pobre” (Dt 15,4)!

Esta opção implica um redimensionamento da existência, pessoal e social,


daqueles de outros grupos sociais que a assumem. Por isso, a dinâmica da opção
pelos pobres tende à criação de uma cultura alternativa. Assim, a opção pelos pobres,
que começa como uma maneira de sair de si mesmo para afirmar o outro que é
negado, que começa vivendo-se como perda e sacrifício realizado como
correspondência à fé em Deus que funda a própria vida, torna-se progressivamente
uma oportunidade não só de humanização radical, mas também de progresso
enquanto ser cultural e até mesmo de valorização profissional.

Para superar a pobreza, e afirmar a dignidade do pobre, é preciso


redimensionar o que existe para dar um lugar aos pobres na sociedade. Dar lugar aos
pobres significa um ajuste estrutural tão profundo que equivale a configurar uma nova
figura histórica; significa renunciar a muitos elementos do atual sistema de bem-estar;
renunciar, em primeiro lugar, a esse consumismo frenético e refrear a sede ilimitada
de riqueza e poder. Na verdade,

enquanto não se elimine a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e


entre os diferentes povos, será impossível erradicar a violência (…). Quando a
sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si
mesma, não há programas políticos, nem forças de ordem ou serviços de inteligência
que possam garantir a tranquilidade indefinidamente. Isso não acontece apenas
porque a desigualdade social provoca a reação violenta dos que são excluídos do
sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto em sua raiz. (…) Se cada
ação tem consequências, uma mal imerso nas estruturas de uma sociedade sempre
contém um potencial de dissolução e morte. É o mal cristalizado nas estruturas sociais
injustas, a partir do qual não podemos esperar por um futuro melhor. (Evangelii
Gaudium n.59).

A fundamentação deste sentido vital é o reconhecimento real do outro no ato


de reconhecer-se a si mesmo (filho de Deus e irmão de todos). Mas o reconhecimento
positivo dos pobres – o que é feito tanto nas relações estruturais como nas relações
pessoais – provoca uma transformação tão profunda na própria vida, e é uma
novidade tão radical na figura histórica vigente, que não pode ser realizada se não se
abrem horizontes muito motivadores: sem um coração de carne (cf. Oséias 6,6), nunca
haverá justiça, nem, por conseguinte, será possível a vida humana na terra. Isto é o
que está em jogo na opção pelos pobres. Portanto, de acordo com o papa Francisco,
“ninguém deve dizer que está longe dos pobres porque suas escolhas de vida
implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente
nos meios acadêmicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais (…)
ninguém pode sentir-se dispensado da preocupação pelos pobres e pela justiça
social” (Evangelii Gaudium n.201). Só haverá paz no mundo quando se fizer justiça
para os pobres (Populorum progressio n.76). Justiça e paz se abraçarão! (Sl 85).

Tony Mifsud Buttigieg SJ. Universidad Alberto Hurtado, Chile. Texto original
em espanhol.

8 Referências Bibliográficas

Não foi possível optar apenas por uma referência bibliográfica destes textos
pontifícios da DSI. Assim, a lista já está no início do texto. São documentos de domínio
universal. Todos estão disponíveis na Internet, bem como nas várias versões das
editoras espalhadas por todo o continente latino-americano.

Para saber mais

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CALLEJA, José Ignacio. Moral Social Samaritana I – Fundamentos e noções


de ética econômica cristã. São Paulo: Paulinas, 2006.

_______. Moral Social Samaritana II – Fundamentos e noções de ética política


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papa Benedicto XVI. Revista Agustiniana, v.54, n.164/165. p.369-395.

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CASTILLO GUERRA, Jorge. Teología de la migración: movilidad humana y
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GONZÁLEZ-CARVAJAL, Luis. En defensa de los humillados y ofendidos: los


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ZAMAGNI, Stefano. Por una economía del bien común. Madrid: Ciudad
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A questão do mal
Sumário

Introdução

1 A experiência humana do mal na história da teologia moral

1.1 Primeira experiência humana do mal

1.2 Na historia da teologia moral

2 Características do mal

3 Simbólica do mal

4 Culpa e pecado
5 Formas de expressão

6 Resposta ao mal

7 Jesus frente ao mal

Referências

Introdução

Antes de iniciar o desenvolvimento de cada um dos pontos mencionados, é


necessário situar, de forma muito breve, o assunto do mal. Em primeiro lugar, é
importante notar que o problema do mal tem sido e pode ser abordado de várias
maneiras, por exemplo, a partir de um ponto de vista psicológico; outros acreditam
que o mal é uma questão de natureza metafísica, outros que é quase exclusivamente
moral. Mas, em primeiro lugar, todos concordam que o mal é uma realidade que afeta
os seres humanos. Em segundo lugar, há várias teorias sobre a natureza do mal, entre
as quais estão aquelas que dizem: a) o mal faz parte da realidade; b) o mal é o último
grau de ser, entendido este grau como pobreza ontológica; c) o mal faz parte do real,
mas como uma entidade que opera dinamicamente e contribui para o
desenvolvimento lógico-metafisico do que existe; d) o mal é o sacrifício que executa
uma parte para o benefício do todo; e) o mal é uma completa falta de realidade, é pura
e simplesmente o não ser; f) o mal é concebido como um afastamento de Deus e,
nesta perspectiva religiosa, é concebido como uma manifestação do pecado. Em
terceiro lugar, as doutrinas mais importantes sobre a origem do mal apresentam que:
a) o mal procede de Deus ou da causa primeira; b) o mal tem sua origem no ser
humano; c) o mal é o resultado do acaso; d) é uma consequência da natureza, da
matéria ou de outras fontes. Tradicionalmente, os tipos de males foram classificados
entre o mal físico, o que equivale a dor e sofrimento, e o mal moral, que é identificado
com o pecado (e alguns autores concluem que esta é a origem do mal físico). A partir
de Leibniz, que classificou o mal em três tipos – metafísico, físico e moral –, fala-se
também do mal metafísico. Há, também, as seguintes maneiras de enfrentar o mal,
ou atitudes frente a este que se identificaram: a) a aceitação do mal; b) o desespero;
c) a fuga; d) a adesão; e) a ação individual ou coletiva para transformar radicalmente
o mal (FERRATER MORA, 1979, p. 2079-2086).

Finalmente, é importante ressaltar que a maioria das religiões tem entendido


o problema do mal essencialmente desde sua dimensão moral e não como uma
questão física ou metafísica, mas nas histórias míticas todos estes aspectos estão
sempre relacionados. Para a grande maioria das religiões o mal consistiu em uma
violação da lei divina, portanto, o sofrimento, dor e morte são consequências da
infração (GONZÁLEZ, 2014, p. 49).

1 A experiência humana do mal na historia da teologia moral

1.1 Primeira experiência humana do mal

Devemos começar destacando que abordar uma reflexão sobre a questão do


mal não é uma tarefa fácil ou simples, porque de todos os problemas, a presença do
mal no mundo é, sem dúvida, o que levanta mais perguntas. A dificuldade reside,
também, na multiplicidade de abordagens devido à diversidade de maneiras com que
se apresenta o mal (LATOURELLE, 1984, p. 335-337).

Da mesma forma, devemos esclarecer que levantar a questão do mal em


termos de problema é uma consideração que pode ser incompleta e insuficiente, uma
vez que o mal é uma realidade também apresentada como um mistério (LACOSTE,
2007, p. 733). Podemos dizer que se o mal é tanto problema quanto mistério, a sua
abordagem não pertence exclusivamente ao campo filosófico, mas também ao campo
religioso e teológico (LATOURELLE, 1984, p. 337-339).

Todo o enigma do mal radica em que entendemos sob o mesmo termo, pelo
menos na tradição judaico-cristã ocidental, fenômenos tão diversos como, em uma
primeira aproximação, o pecado, o sofrimento e a morte. Pode-se mesmo dizer que,
se a questão do mal se distingue de pecado e culpa, é porque o sofrimento é
constantemente tomado como um termo de referência (RICOEUR, 2007, p. 23-24).
Além disso, o fenômeno do mal é um fato indiscutível na experiência humana
(BRAVO, 2006, p. 17). De uma coisa, todos os seres humanos, e não apenas os
cristãos, estamos cientes: a existência do mal. Nós não precisamos de uma revelação
particular ou uma demonstração específica para verificar a experiência dos seus
efeitos (GUTIERREZ, 2014, p. 21). Todos nós podemos ver como “o problema do mal
corta como uma espada, dura e terrível, toda a história da humanidade. Nenhuma
cultura, e dentro dela nenhum indivíduo poderia escapar de seu enfrentamento”
(TORRES, 2011, p. 11). A partir desta experiência do mal surgem questões
prementes. Por que a fome? Por que os genocídios? Por que tal crueldade? Por que
tantas guerras sem sentido? Por que o sofrimento de tantos seres humanos
inocentes? (RUBIO, 1999, p. 151-155).

Esta experiência humana do mal é encontrada em fenômenos naturais como


terremotos, secas, vulcões, inundações etc.; em males físicos e psíquicos que estão
relacionados com a doença física e mental. Do mesmo modo a experiência do mal
está presente no mal moral que afeta os indivíduos e grupos. Poderíamos dizer que o
último, o mal moral, desde uma perspectiva teológica, refere-se ao pecado. Tem sua
origem no coração do homem e é a causa da maioria das doenças físicas e psíquicas
(LATOURELLE, 1984, p. 339-340). Portanto, a experiência do mal é teologicamente
ligada ao que chamamos de pecado estrutural, o pecado coletivo ou pecado social
(ESTRADA, 2012, p. 92). Assim, o mal moral refere-se a uma problemática de
liberdade. Intrinsecamente. Assim, é possível ser responsável por ele, assumi-lo,
confessá-lo e combatê-lo. O mal está inscrito no coração do ser humano. O mal
remete a uma questão da liberdade, ou da moral (RICOEUR, 2007, p. 15). Se é assim,
a questão já não é de onde vem o mal, mas de onde vem que o homem faça o mal.

1.2 Na historia da teologia moral

Os Padres da Igreja, desde Orígenes, Clemente de Alexandria, Gregório de


Nissa, até Agostinho, levantaram o problema do mal com referência à criação. No
entanto, e desde Agostinho, o mal é concebido não só como negatividade, mas, acima
de tudo, como a decisão livre da pessoa. A causa é a deficiência da pessoa que se
aplica a toda a sua vontade. Pois, embora o ser humano tenda, por sua natureza, para
o bem, sempre há a possibilidade de escolher o mal. Nisso reside a grandeza do
homem, mas também a maior deficiência do seu ser (GONZALEZ, 2014, p. 5-9). A
partir desta abordagem falamos não de mal, mas do pecado constitutivo, e este como
uma causa do pecado pessoal e do mal moral.

2 Características do mal

No contexto da racionalidade ocidental e da religião judaico-cristã, o mal se


caracteriza por ser universal, irracional, pessoal e social. É universal porque nele
testemunham os mitos mais antigos que procuram explicar a presença do mal no
mundo[1].

Todas as etapas da história são atravessadas pela presença do mal que, sob
diversas formas, chega até o presente. O mal, pelo menos como uma ameaça, é
encontrado em todas as realidades criadas e adota uma multiplicidade de formas,
portanto, podemos dizer que a sua presença é universal e pluridimensional
(GELABERT, 1999, p. 191-192). O mal é irracional. O mal é sempre irracional, não
tem razão de ser e está além de toda razão (GELABERT, 1999, p. 192-193). Como
exemplo, podemos ver essa irracionalidade nos campos de concentração de
Auschwitz, nos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, apenas para ilustrar o que
dizemos. No entanto, são muitas as situações que mostram a irracionalidade do mal.

Uma das características mais importantes é que o mal é um problema da


liberdade humana. Por esta razão, o ser humano pode ser responsável por ele, aceitá-
lo, confessá-lo e combatê-lo. O mal está escrito no coração do homem, portanto, o
mal é também de ordem moral, como já tínhamos apontado (RICOEUR, 2007, p. 15).

3 Simbólica do mal

A simbólica do mal é uma tentativa de interpretar, compreender e explicar a


questão do mal. Em outras palavras, é uma hermenêutica porque, como diz Ricoeur,
“se ‘o símbolo dá que pensar’, o que a simbólica do mal dá que pensar se refere à
grandeza e ao limite de qualquer visão ética do mundo, já que o homem que mostra
esta simbólica não parece menos vítima que culpado” (RICOEUR, 2004, p. 17). Os
símbolos são signos que expressam e comunicam um sentido, Ricoeur justamente diz
que mythos já é logos (RICOEUR, 2004, p. 179-183). Dentro das cosmovisões
religiosas que Ricoeur apresenta, podem ser descritos quatro tipos de mitos sobre o
mal: 1) na primeira narrativa mítica, Ricoeur situa o início do mal na origem mesma do
ser, nos deuses que criam o mundo; 2) em um segundo grupo de mitos, afirma que o
destino marca os acontecimentos e o mal, portanto, é intrínseco à existência e ao
sofrimento permanente; 3) o terceiro é o mito adâmico judaico-cristão, que diz que foi
o ser humano quem introduziu o mal no mundo; 4) finalmente, há o mito órfico, que
indica que uma alma de origem divina é aprisionada em um corpo que a arrasta para
o mal (DE COSSIO, 2011, p. 338-339). Não há, na verdade, uma linguagem direta,
não simbólica, do mal padecido, sofrido ou cometido. Ou seja, o homem já se
reconhece a si mesmo como responsável ou vítima de um mal que o ataca e que é
expresso, desde um princípio, numa simbólica (RICOEUR, 2004, p. 27). No entanto,
os símbolos do mal, por excelência, são a indigência e a finitude (ESTRADA, 2012, p.
74)

4 Culpa e pecado

Foi dito no primeiro ponto deste escrito que o mal é concebido não só como
falta ou negatividade, mas também como livre escolha do ser humano. É que “o mal
pertence ao drama da liberdade humana. É o preço da liberdade” (SAFRANSKI, 2005,
p. 10). Assim, é a partir dessa abordagem que deveríamos falar, já não do mal, mas
do pecado constitutivo[2]. No entanto, falando do pecado, devemos dar um passo
adiante, e é o passo da razão à fé, porque, como Ricoeur observa, o relacionamento
pessoal com Deus estabelece o espaço espiritual no qual se tenta explicar o mal, mas
no nível do pecado. Portanto, a categoria que rege a noção do pecado é a que o
compreende como algo feito “diante de Deus”. Assim, o pecado é uma magnitude
religiosa antes de ser ético, não há a lesão de uma regra abstrata ou a violação de
uma lei ou regulamento, mas, principalmente, é a quebra de uma ligação pessoal
(RICOEUR, 2004, p. 214). E o mal não aparece apenas como uma carência, mas
como o rompimento de um relacionamento (BRAVO, 2006, p. 218).

Além do pecado pessoal, existe a realidade de um pecado social ou estrutural,


no sentido de que todo pecado pessoal tem um impacto sobre toda a comunidade
(MATHIAS, 2011). O autor afirma, em seu livro, que existe um pecado estrutural, cujo
sujeito está constituído pela comunidade presente naquela instituição social que ataca
abertamente a vida humana, analisando os efeitos nos quais se reconhece a
existência de um pecado estrutural num dado sistema social (VIDAL, 2012, p. 261-
292).

5 Formas de expressão

É um fato indiscutível que o ser humano habita um mundo onde o mal existe
e no qual se podem reconhecer vários tipos ou formas como ele se expressa
(MONTERO, 2010, p. 7). Entre as várias manifestações do mal, que o homem
reconhece, estão os desastres naturais, o mal físico que se manifesta em doenças
como o câncer, a AIDS, o Ebola, as doenças mentais etc. No entanto, a presença do
mal moral – como as guerras, o terrorismo, a fome, a crueldade, a pena de morte, a
exploração e o abuso de mulheres e crianças, o mal disfarçado de progresso, a
corrupção e um sem fim de eteceteras (LOPEZ, 2012, 20-49) – deve nos fazer pensar
que somos todos responsáveis. Para ilustrar isso, apresentamos alguns dados. Em
2000, o presidente do Banco Mundial, disse:

São muitos os países onde o HIV/AIDS impediu o aumento da expectativa de


vida e causou tanta dor e sofrimento. São muitos os países onde as armas, a guerra
e os conflitos têm minado o desenvolvimento (…) Vivemos num mundo marcado pela
desigualdade. Algo está errado quando os 20% mais ricos da população mundial
recebem mais de 80% da renda global. Algo está errado quando 10% da população
recebem metade da renda nacional, como acontece num grande número de países.
Algo está errado quando a renda dos 20 países mais ricos é 37 vezes a média da
renda dos 20 países mais pobres, uma diferença que aumentou mais do que o dobro
nos últimos 40 anos. Algo está errado quando 1,2 bilhão de pessoas ainda vivem com
menos de 1 dólar por dia e 2,8 bilhões com menos de 2 dólares. Num momento em
que todas as forças estão fazendo o mundo menor, é hora de mudar nossa maneira
de pensar. É hora de perceber que vivemos juntos em um mundo, não em dois; que
essa pobreza está na nossa comunidade, onde quer que vivamos. É nossa
responsabilidade. É hora de os líderes políticos reconhecerem essa obrigação
(WOLFENSOHN, 2000).
Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, diz que 1% da população tem o que 99%
precisa. Esse 1% da população goza das melhores casas, a melhor educação, os
melhores médicos e o melhor padrão de vida.

Em 1 de abril de 2014, Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial, afirmou:

Vivemos em um mundo de desigualdades. As disparidades entre ricos e


pobres são tão evidentes aqui em Washington como em qualquer outra capital do
mundo. No entanto, para muitos de nós no mundo dos ricos, as pessoas que estão
excluídas do progresso econômico permanecem, em grande medida, invisíveis.
Como o Papa Francisco expressou textualmente: “Que algumas pessoas
desabrigadas morram de frio na rua não é notícia. Pelo contrário, uma queda (…) nas
bolsas é uma tragédia”.

O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, diz:

Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar o
valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer não a uma economia da
exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata. Não é possível que a morte
por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de
dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o fato de se lançar
comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade social.
Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso
engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes massas da população
veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem
saída. (FRANCISCO, 2013, n. 53)

Vivemos em um mundo dilacerado pela injustiça, a fome, as guerras, e assim


por diante. E nós estamos fazendo algo errado, porque estes números e muitos outros
relatórios apresentados a cada ano mostram que a desigualdade no mundo, em vez
de diminuir, está aumentando.

6 Resposta ao mal
Deveria ser um fato indiscutível que “o mal convoca todos para lutar em uma
frente comum: encontrar respostas que, apesar dos terríveis e intermináveis desafios
do mal, permitam viver sem sucumbir ao absurdo e sem render-se para reparar os
danos e procurar as melhorias possíveis” (TORRES, 2011, p. 111). No entanto, contra
o mal encontramos uma variada gama de respostas, entre as quais estão: a aceitação
alegre do mal (atitude que encontra no mal satisfação ou complacência); a aceitação
resignada (atitude passiva ou racionalizada ante o mal); o desespero (atitude de
escape psicológico); a adesão (atitude de submissão ou reconciliação com o mal); e,
finalmente, a ação (atitude de confronto e contestação) individual e comunitária
(FERRATER MORA, 1979, p. 2084).

Não há dúvida que, para a teologia, a realidade do mal é um desafio


(RICOEUR, 2007) e um convite para pensar nele como a raiz comum do pecado e do
sofrimento. A questão do mal exige uma convergência de pensamento e ação que,
política e moralmente, por sua vez, requer uma transformação de sentimentos.
Portanto, a partir dessa transformação surge não a clássica pergunta “por que o mal”,
mas “o que fazer contra o mal?” (Ricoeur, 2007, p. 25, 58, 60).

A resposta da fé em um Deus que livremente e gratuitamente se


autocomunica ao homem (DV n. 2), nos leva a afirmar, com Ellacuría, que é preciso
enfrentar a realidade, carregar a realidade e responsabilizar-se por transformá-la
(ESTRADA, 2012, p. 789). Importante ter em conta que J. Sobrino considera a
misericórdia ante o sofrimento das vítimas como a atitude fundamental de todo ser
humano justo e como uma categoria articuladora da reflexão teológica (TAMAYO-
ACOSTA, 1999, p. 241-242). Esta abordagem para a ação não pretende dar uma
solução pronta, mas apresentar apenas o esboço de uma resposta (BRAVO, 2006, p.
220), porque sabemos que “o triunfo humano sobre o mal é sempre parcial e cada
conquista é precária, prelúdio de novos desafios (…)” (ESTRADA, 2012, p. 87). No
entanto, em face do mal, temos de ter esperança, porque o amor de Deus encarnado
em Jesus capacita o ser humano para gerar o bem a partir da experiência do mal
(ESTRADA, 2012, p. 94). Não há dúvida que o mistério do mal é muito profundo, mas
ainda mais profundo é o abismo do amor de Deus. A força para lutar contra o mal é
encontrada em um Deus que se comprometeu com um amor misericordioso na cruz
e nos dá a esperança da vitória na ressurreição. Consequentemente, o que nos faz
cristãos é acreditar que a última e definitiva palavra de esperança na luta contra o mal
chegou até nós na cruz e ressurreição (TORRES, 2005a, p. 267) de Cristo, de quem
se disse que: “(…) andou fazendo o bem (…)” (At 10,38).

7 Jesus frente ao mal

Na seção anterior, fizemos uma breve aproximação do tema da resposta ao


mal e insinuamos os limites e as possibilidades que tem. Temos também insinuado
que a força e esperança, nesta tentativa de responder ao mal, são encontradas no
amor de um Deus que se autocomunicou em Jesus de Nazaré. Por isso, olhar como
Jesus se posicionou contra o mal pode guiar-nos nesta grande tarefa pendente de
reagir e combater o mal.

Devemos começar por salientar que um dos traços característicos de Jesus é


a sua sensibilidade ao sofrimento. “E, vendo as multidões, teve grande compaixão
delas, porque andavam cansadas e desamparadas, como ovelhas que não têm
pastor” (Mt 9,36). Essa sensibilidade é transformada em compaixão e solidariedade
com aqueles que sofrem e isso é demonstrado na parábola do Bom Samaritano (Lc
10,29-37), em que fica evidente que não é suficiente o cumprimento dos deveres
religiosos, mas o nosso amor por Deus deve ser traduzido em solidariedade efetiva
com os que sofrem (TAMAYO-ACOSTA, 1999, p. 243). Devido à sua sensibilidade ao
sofrimento, Jesus é solidário com aqueles que são estigmatizados e excluídos por
causas religiosas, políticas e sociais, como os leprosos (Lc 5,12-15; 17,11-19; Mt 8,1-
4), os cegos (Mt 9,27-31), os paralíticos (Mt 9,1-8; Lc 5,17-26), os possuídos por
demônios (Mt 8,28-34; 9,32-34), os pecadores (Mt 9,10-13; Lc 5,29-32; Lc 7,36-50) os
samaritanos (Jo 4,9-10) etc. São relações de reconhecimento e acolhida. É uma
solidariedade tão profunda que o próprio Jesus se identifica com todos aqueles que
sofrem:

Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era
forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes;
preso, e fostes ver-me (…). Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um
destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. (Mt 25, 31-46)
Porém, Jesus não fica apenas no tratamento misericordioso, solidário e
compassivo com os que sofrem, Ele vai além e denúncia os poderes religiosos,
políticos, sociais e econômicos que estão causando esse sofrimento (Mt 23,1-32; Lc
11,37-54). Poderíamos dizer que sua atitude com os marginalizados, excluídos e
estigmatizados por todos esses poderes já é uma denúncia e um confronto contra o
mal, esse mal que teologicamente identificamos com o pecado social ou com as
estruturas de pecado (NEBEL, 2001, p. 292-340; SARMIENTO, 1987, p. 869-881;
MOSER, 1992, p. 1369-1383)

Resulta evidente que a perseguição, o juízo, a condenação, a cruz e a morte


que Jesus sofreu foi o resultado da sua vida, da sua luta contra o mal e do seu
compromisso com a justiça e com o bem (GELABERT, 1999, p. 217). Portanto, a cruz
não é um sinal da fraqueza de Deus, mas um símbolo da força do seu amor. A cruz
não é o símbolo de um Deus que pacientemente aceita o sofrimento, ao ser ele próprio
vítima do mal, pelo contrário, a cruz é o grito de protesto mais forte que alguém pode
manifestar contra o mal.

A cruz não é um sinal de fracasso e desespero na luta contra o mal, porque


“(…) Deus se solidariza com a vítima (…) Deus está no crucificado e em todos os
massacrados da história, incluindo aquele que pendurava no arame farpado de
Auschwitz (…) Deus está envolvido no mal não desde o poder, mas desde o amor (…)
Não elimina a morte, mas oferece, desde ela, a vida” (LOIS, 2004, p. 35-36).

Ao observar qual é a atitude de Jesus contra o mal, devemos ter em mente


que “a referência vinculante à memória do crucificado e ressuscitado, memória
subversiva e subjugante (…) permite intuir ao crente o que é que seu Deus quer dele
na relação com o mal existente (LOIS, 2004, 40). Portanto, o Cristianismo não é, em
primeiro lugar, uma doutrina que deve ser mantida o mais pura possível, mas uma
práxis que devemos viver da maneira mais radical possível (METZ, 1982, p. 33).

Algo parece claro a partir da vida e a mensagem de Jesus, da sua morte e


ressurreição, Deus, o seu Deus, como diz Schillebeeckx, é o antimal. Esta é a grande
contribuição da fé cristã ao problema do mal. Ao colocar Jesus no centro da sua vida
e mensagem, o serviço a um reino de justiça e fraternidade, a luta contra o mal torna-
se componente essencial da vida de cada seguidor de Jesus (LOIS, 2004, p. 40).

A atitude de Jesus contra o mal mostra que nem o pecado nem a morte têm
a última palavra. A última palavra é a proximidade amorosa e clemente do Deus que
se comunicou a si mesmo e quis vir fazer parte da nossa história.

María Isabel Gil Espinosa. Pontificia Universidad Javeriana, Colombia. Texto


original em espanhol[3]

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[1] “O mal está nos mitos mais antigos como um poder cujas raízes estão em
um caos primordial ou nos domínios do divino. Pertence, como disse M. Eliade, o
mundo da religião e supera as possiblidades do conhecimento da ação humana até
que, nos tempos modernos, começa a sofrer um processo de secularização.”
(Montero, 2010, 6-7)

[2] “A decisão de entrar no problema do mal pela porta estreita da realidade


humana não expressa, portanto, senão a escolha de uma perspectiva central (…) Vai-
se objetar que a escolha desta perspectiva é arbitrária, que é, em um sentido forte da
palavra, preconceito. Em absoluto. A decisão de enfrentar o mal do ponto de vista do
homem e da sua liberdade não é uma escolha arbitrária, mas adequada à natureza
mesma do problema.” (RICOEUR, 2004, p.14).

[3] Doutora em Teologia Pontifícia Universidade Javeriana, Magíster em


Teologia, Pontifícia Universidade Javeriana, Especialista em Bioética Pontifícia
Universidade Javeriana, Licenciada em Ciências Religiosas, Pontifícia Universidade
Javeriana. Professora de Teologia Moral na Faculdade de Teologia, Pontifícia
Universidade Javeriana – Bogotá. E-mail: maria.gil@javeriana.edu.com

Temas emergentes na ética teológica


Sumário

1 Emergência da justiça na ética sexual

2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça

3 A biotecnologia

4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a


necessidade de uma nova ordem mundial (legal)

5 Horizontes novos na teologia moral fundamental


6 Temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem mundial:
a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade

7 Referências bibliográficas

1 Emergência da justiça na ética sexual

Durante os últimos 50 anos, percebeu-se um deslocamento antropológico


fundamental na teologia moral: do pessoal para o social. Foi um deslocamento
extraordinário, possibilitado pela introdução da justiça hermenêutica global para as
áreas da ética sexual e da bioética.

A hermenêutica da ética sexual focava, em geral, a castidade, virtude que


basicamente dizia respeito ao indivíduo antes que tivesse relação sexual com outra
pessoa e só considerava aquelas relações que são maritais. Portanto, a ética sexual
não tratava do relacionamento, mas era preparatória. Enquanto, assim, a virtude
regulamentava somente a conduta dos que já estavam dispostos a ela, mais
recentemente os teólogos morais começaram a se interessar por uma virtude que se
concentrasse menos na pessoa individual e mais nas relações. Esta decisão, tomada
sobretudo por feministas, de introduzir a justiça na ética sexual foi inovadora.

Primeiro e principalmente, a introdução da justiça na ética sexual nos levou à


questão da “igualdade de gênero” (gender equity), e esse tema vai nos acompanhar
pelos próximos cinquenta anos, enquanto lidarmos com os temas concernentes à
violência sexual e/ou à violação. Suscitou também a questão se a
“complementaridade de gênero” deveria estar no centro do ensino moral referente às
relações conjugais. A questão dos “direitos das mulheres” permanecerá e emergirá
ainda mais como tema central de nosso tempo.

O desenvolvimento destes direitos e movimentos vai mudar radicalmente


nossas noções de gênero, bem como nossa compreensão do masculino e do
feminino, enquanto surge a pergunta se as próprias descrições dos dois vão se
manter. Além disso, a inteira compreensão da família e do compromisso, junto com a
ideia do matrimonio como associação, deverá ganhar mais maturidade enquanto as
questões da igualdade de gênero continuarem emergindo.

Segundo, a discussão sobre a homossexualidade hoje está mudando, visto


que a questão da sexualidade de uma pessoa é, cada vez mais, adjudicada pelos
temas da justiça e da igualdade. A questão já não é o que a pessoa homossexual
deve ou não fazer (ficar no armário, calada, ou casta – temas articulados através de
uma hermenêutica de castidade); cada vez mais, agora, o tema central é como a
sociedade deve tratar as pessoas homossexuais. Enquanto as cortes, as legislações
e as populações votantes concederem às pessoas homossexuais mais direitos,
veremos que, globalmente, o bem-estar delas estará protegido. Por expansão, serão
consideradas também as pessoas transexuais, e a pergunta chave também será como
a sociedade deverá tratá-las.

Como gays e lésbicas estão emergindo normalmente em nossa paisagem,


de modo geral nossos conceitos mais clássicos dos estereótipos dos gêneros
masculino e feminino se verão questionados, e os teólogos morais deverão considerar
com muita atenção a “lei natural”, a igreja e a cultura local. Entretanto, devem se
esperar modificações em relação à lei natural, mudanças que nos provoquem diminuir
o rígido marco clássico da lei natural, cujo fundamento filosófico tem efeito inibidor.
Enfim, o entendimento de nossa sexualidade e sua orientação começará a ser
explorado de maneira nova somente quando as distinções, já problemáticas, entre
homo e hétero forem vistas como socialmente construídas e inadequadas.

2 Emerge na bioética a hermenêutica da justiça

Na bioética, o deslocamento em direção à justiça se deu em duas


plataformas. Primeiro, de modo geral, a bioética emergiu no mundo das economias
fortes, onde as pessoas podiam pagar para ver um médico e custear seu próprio
seguro. Em geral, a hermenêutica da atenção médica se desenvolvia num sistema de
elite, em que a relação paciente-médico era predominante como modelo fundamental.
Não obstante, essa relação determinou a bioética e também os temas concomitantes,
a saber, o das decisões sub-rogadas, dos testamentos de vida, da reanimação e do
uso de meios extraordinários.
Com a introdução da justiça ético-médica, conseguimos entender outros
problemas da ética médica, mais urgentes que os anteriormente mencionados,
sobretudo os que surgem quando nos damos conta de que a maior parte das pessoas
no mundo não tem acesso a nenhum tipo de atendimento médico. As perguntas sobre
o acesso ao atendimento médico se tornaram mais relevantes com o aparecimento
do HIV/AIDS.

Com o HIV/AIDS, nova ética no atendimento médico emergiu como segunda


plataforma, tornando-se um campo próprio, e começou-se a falar para a sociedade
sobre a bioética na linguagem dos direitos humanos. A “hermenêutica dos direitos
humanos” como linguagem da ética do atendimento médico está emergindo hoje em
dia, mas, na realidade, formou-se em 1997, quando Jonathan Mann expôs diante dos
oficiais da saúde pública uma intuição bastante reconhecida, mas até então bem
pouco mencionada: “Está claro, através da história e em todas as sociedades, que os
ricos têm vidas mais longevas e mais sadias que os pobres”. Mas, imediatamente
depois deste comentário, acrescentou: “Uma pergunta mais importante, e que segue
da proporcionalidade socioeconômica entre status e saúde, é: por que existe tal
proporcionalidade”.

A pobreza, finalmente, irrompeu na paisagem bioética. A resposta dos


funcionários da saúde pública aos assuntos da pobreza significou que os especialistas
em ética médica necessitavam de uma hermenêutica que incluísse as questões do
trabalho, da educação, da estabilidade social e política e do salário justo, além das
questões de saúde. Os especialistas da saúde pública instigaram os especialistas em
ética médica para que reconhecessem a utilidade crescente da linguagem dos direitos
humanos para abarcar e analisar os temas vinculados à saúde como
preeminentemente ligados aos indicadores sociais.

O reconhecimento da conexão entre a pobreza e a saúde passou a ser a


intuição fundamental que terminou conduzindo à bioética contemporânea. Logo a
linguagem da justiça deu lugar à linguagem dos direitos humanos, e isso teve impacto
direto nas pessoas mais afetadas pela pandemia de HIV/AIDS. A partir disso, a
comunidade global já não podia falar somente em proporcionar hospedagem para os
afetados na parte sul do hemisfério global. De fato, o Brasil indicaria o caminho para
se dar às pessoas infeccionadas o direito de receber o tratamento com retrovirais.

Claramente, a pergunta permanente se existe um direito universal de saúde


universal agora está emergindo em alguma literatura da Índia e da África, mas não
existe ainda um consenso fundacional entre os especialistas da moral quanto a esse
tema. Inevitavelmente, os especialistas da ética se verão obrigados a desenvolver
um modelo de saúde para o futuro, em um mundo onde a maior parte da saúde é paga
do próprio bolso da pessoa. Tal modelo deverá também atender às questões
financeiras (os preços, as necessidades de investigação, as tarifas) relacionadas às
corporações farmacêuticas.

Enquanto avançamos rumo à saúde universal, os especialistas da ética


deverão desenvolver argumentos de justiça para instigar a indústria da saúde a
encontrar formas de eliminar as doenças curáveis, sobretudo no sul global. Por
exemplo, não haveria mais razões para a existência de malária e tuberculose se
existisse uma vontade coletiva para eliminá-las. Aqui, os fracassos respingam também
sobre os especialistas da ética, porque não souberam liderar uma campanha contra
essas doenças.

À medida que o mundo se tornar mais global, a justiça terá um lugar evidente
também na resposta às possíveis pandemias, como na recente epidemia do vírus
ebola. A decisão de simplesmente fechar as fronteiras já não é uma opção no mundo
globalizado, onde a linguagem da ética da saúde pública é a justiça. No crescente
mundo globalizado, a pergunta é: desenvolveremos um protocolo internacional para
uma “ética pandêmica” (pandemic ethics)?

3 A biotecnologia

A justiça é, também, necessária ao desenvolvimento das questões acerca da


biotecnologia. No passado, as perguntas sobre a engenharia genética nos mantinham
num paradigma simples, que distinguia o ético do aético. Do mesmo modo, a distinção
entre a “manipulação terapêutico-genética” e a “manipulação genética melhorada”
(enhanced), mantinha esse arquétipo. Mas essa divisão não é viável, nem conceptual
nem eticamente. De fato, algumas melhoras (enhancements) encontram-se
exatamente nos desenvolvimentos terapêuticos (p. ex. próteses, produtos
farmacêuticos).

Devemos repensar como traçar as linhas morais e perguntar-nos o que faz


com que algumas melhoras sejam eticamente legítimas. Porque aqui, de novo,
aconteceu uma mudança de hermenêutica. No paradigma anterior, distinguíamos a
terapêutica da melhora a partir da ideia, em verdade bastante simples, de não termos
permissão para fazê-la, como se, ao realizar qualquer melhora, estivéssemos
“brincando de Deus”. Uma melhora em si não é um limite moral significante. As
preocupações recorrentes a respeito das melhoras não concernem à categoria em si
mesma, mas antes à sua relação com os recursos limitados, às prioridades
sustentáveis que considerem as necessidades das pessoas mais marginalizadas, à
maior igualdade entre as pessoas e, também, à possibilidade de dominação. A justiça
nos ajuda a ver que as melhoras que aumentam o poder de um grupo sobre outro
grupo são indicadores de possível aeticidade.

Além disso, precisamos estar atentos aos “trans-humanistas”, interessados


em usar as melhoras para alterar o significado e o destino do ser humano. Precisamos
revisar a antropologia, para que, por um lado, permita o uso de certas melhoras, mas,
por outro lado, tenha consciência do propósito fundamental dos “trans-humanistas”:
transcender a morte e negar a ressurreição corporal.

A biotecnologia, também, precisa ser examinada quanto a seu pressuposto.


Na biotecnologia, muita coisa está voltada para o exótico ou o glamoroso e bem pouca
coisa para as necessidades dos mais marginalizados. Numa palavra, ela tende a ser
“cosmética”. Se todos os eticistas lembrarem as indústrias biotecnológicas da justica
distributiva, da opção pelos pobres, dos padrões mínimos da saúde e de outros temas
pertinentes dos direitos humanos, talvez logremos um mundo biotecnológico, puxado
por pesquisa que vise à saúde em geral de todas as pessoas e não somente daquelas
que têm dinheiro e poder para comprá-la.

Grande problema, infelizmente desconsiderado, é a crescente intrusão do


“poder militar” no campo da biotecnologia. Por exemplo, o Revolutionizing Prosthetics
Program, um componente da United States’ Defense Advanced Research Projects
Agency (DARPA), com orçamento de três bilhões de dólares, é uma agência muito
bem financiada, cujas metas são primordialmente duas: tratar, curar e recondicionar
os soldados feridos que perderam uma extremidade e, ao proporcionar-lhes uma
prótese melhorada, preparar um superexército, “um exército robótico estendido aos
soldados”. Observamos como o governo dos Estados Unidos, ao fornecer próteses
bem sofisticadas para os veteranos que voltaram feridos, responde às necessidades
e ao sofrimento atuais dos soldados, para logo montar um exército mais forte e mais
eficiente no futuro. Este duplo propósito é o modus operandi fundamental do DAPRA:
o incentivo para desenvolver próteses para os feridos é criar, em longo prazo, um
exército robótico indomável.

4 A instabilidade global: militarização, migração, crises ecológicas e a


necessidade de uma nova ordem mundial (legal)

Os especialistas da ética não acompanharam o crescimento do complexo


industrial militar. A venda de armas é uma indústria gigantesca, que a maior parte dos
especialistas da ética não soube examinar. Essas vendas são problemáticas não
somente num mundo de estados-nações, mas, muito mais ainda, num mundo de
governos e organizações terroristas múltiplas.

Além disso, assim como o exército aproveita a situação dos veteranos para
desenvolver um exército robótico, ele está entrando rapidamente em outros campos
na crescente globalização do mundo. Essa crescente militarização tem que ser
examinada, porque seu aceso à tecnologia se desenvolve exponencialmente.

Por exemplo, “as forças policiais das áreas urbanas maiores” são
progressivamente militarizadas com armas sofisticadas para o controle de multidões,
ameaçando as liberdades civis dos cidadãos. Essas capacidades tecnológicas foram
também usadas por estados para escutar ilegalmente as comunicações de outros
governos soberanos, de tal forma que os escândalos de espionagem se tornaram
lugar comum.
De modo similar, não se examinou “a militarização do espaço”, nem a questão
da privacidade das pessoas. A presença dos drones em qualquer lugar aeroespacial
é uma indicação clara da militarização do planeta e de sua capacidade para tomar
decisões baseadas não na lei, mas no poder. Só os drones (e em particular sua
efetividade em matanças seletivas e assassinatos) já requerem que os especialistas
da ética elaborem, urgentemente, ferramentas para avaliar a legitimidade moral
dessas estratégias militares.

A expansão militarista corre em paralelo com o “movimento migratório” e,


além disso, os países com exércitos mais fortes tendem a ter fronteiras mais fortes,
de modo que a migração acontece em outros lugares, em nações que recebem os
migrantes sem poder oferecer uma solução para tais movimentos migratórios. A
migração de pessoas gerada pelo conflito civil, pelas economias em depressão, pela
perseguição religiosa ou política ou pelos desafios ambientais deixa o mundo com
uma instabilidade cada vez maior. Para resolver essa instabilidade perigosa, as
nações, em um número cada vez maior, consideram as “intervenções humanitárias”
justificadas, ainda que tenham evoluído até a “responsabilidade de proteger”.

O número de refugiados e das pessoas sem cidadania continua aumentando,


aproximando-se de figuras que existiam ao final da Segunda Guerra Mundial, e agora
as pessoas deslocadas são confinadas por períodos maiores em áreas muito remotas,
que não apresentam solução adequada.

Essas situações são exacerbadas pelo colapso continuo de nossa ecologia,


que, do mesmo modo que o tema da migração, passa despercebido. A necessidade
de desenvolver economias adequadas continua entravando a questão de responder
às crises ecológicas. As pessoas e os governos se interessam muito mais pelo
emprego e pela economia sustentável do que pela questão se nosso abuso do meio
ambiente é sustentável. Não obstante, arriscamos nosso futuro ecológico apesar das
advertências: o derretimento da capa de gelo, elevando os níveis do mar, a queima
de fluorocarburetos, o corte de madeira, o problema climático universal experimentado
nas secas, nos furacões e nos tufões cataclísmicos. A decisão de olhar somente para
o sustento da economia, sem considerar a sustentabilidade do meio ambiente, é o
tema que mais urge uma conversão internacional.
Neste panorama, todos os que estão observando o desenlace dos desastres
ecológicos temem estar entrando num mundo onde o poder militar vai proteger
aqueles a quem os líderes do mundo escolhem como merecedores de proteção.

Pois bem, estamos no século XXI, marcado por um expansionismo e uma


instabilidade global como nunca antes se viu. De alguma maneira, isso nos recorda o
expansionismo da Europa do século XVI, na conquista das Américas e no comércio
com o Oriente. Naquele tempo, as ambições nacionais incontroladas e motivadas pelo
poder militar talvez passassem despercebidas se pessoas como Francisco Vitoria,
Bartolomé de las Casas e Francisco Suarez não tivessem apresentado uma visão
diferente.

Temos necessidade de eticistas da lei internacional e da economia


internacional. Isso com o fim de reformar o discurso por maior cooperação, um
equilíbrio do poder, o restabelecimento da lei acima do poderio e uma nova visão da
ordem global, que saiba valorizar e priorizar a intuição principal da opção pelos pobres.
A participação e representação internacional tem que idealizar uma distribuição mais
justa dos recursos e da riqueza necessários para uma vida adequadamente
considerada digna.

Cabe aos especialistas da ética trabalhar para que as pessoas, tanto as do


mundo como as da Igreja, saibam diminuir as suspeitas, os prejuízos e os medos,
para poder cultivar confiança, respeito, tolerância e cooperação. Para isso, uma
cooperação global maior entre os moralistas católicos é muito importante para
modelar a cooperação em que o mundo precisa se engajar.

5 Horizontes novos na teologia moral fundamental

O campo da teologia moral fundamental tem sido afetado pela enorme


mudança do perfil antropológico da pessoa. Essa era vista, anteriormente, como
sujeito singular responsável por seus pecados e por sua salvação. Hoje, porém, é
entendida como constitutivamente social e fundamentalmente relacional. Não nos é
possível imaginar uma pessoa que não se relacione com outra ou conosco.
Esta mudança na visão da pessoa como constitutivamente relacional
conectou-se com o aparecimento da justiça como virtude mais importante no discurso
teológico, como foi comentado nos parágrafos anteriores. Esta virtude era pensada
normalmente a partir da ética social, ainda que recebesse alguma atenção na teologia
moral fundamental.

A guinada para a virtude da justiça em todos esses campos emergiu como


resposta à irrupção do sofrimento no discurso teológico. Esta irrupção aconteceu
primeiro pela introdução da teologia da libertação na América Latina. Depois, outros
apropriaram-se dela, sobretudo na África, e também teólogos e feministas afro-
americanos. Responder ao sofrimento passou a ser o tema decisivo em toda a ética
teológica, fazendo uma ponte entre as disciplinas da bioética, a ética sexual, a ética
social e a teologia moral fundamental.

Por esta razão, nos faz muita falta uma teologia moral fundamental na qual
os temas do pecado e da santidade não sejam pensados a partir do indivíduo, e sim
a partir do relacional e coletivo. As noções do pecado e da graça, tão frequentemente
analisadas em relação às ações do individual, já não são adequadas. A linguagem do
pecado social não deve ser vista como secundária, mas deve ser posta em primeiro
plano. Além disso, necessitamos pensar as virtudes e os mandamentos desde seu
aspecto social, e a ação mais na perspectiva da participação, mais institucional e
estrutural.

Junto com isso, carecemos também de uma noção muito mais robusta da
consciência, mais atenta e vigilante às necessidades e ao sofrimento no mundo.
Devemos desenvolver dentro da Igreja uma valorização da consciência como a que
foi reconhecida no Concílio Vaticano II, e precisamos inculcar nos leigos e na
hierarquia um apreço da consciência que não seja conhecida primeiramente por sua
capacidade de discrepar, mas por sua capacidade de ser responsiva socialmente.
Também necessitamos de uma noção da consciência que vá além da “noção medieval
da consciência como ato”: precisamos de uma ideia que represente a consciência
como vigilância moral durável e sustentável que está atenta às necessidades dos
tempos. Aqui nos urge pensar em maneiras para formar a consciência cristã e, neste
sentido, a recuperação da ética da virtude deveria ajudar os especialistas a encarar
os temas emergentes em torno da formação contemporânea da consciência cristã.

Precisamos desenvolver uma teologia moral que seja global, que saiba
valorizar a natureza relacional da pessoa e que mantenha a influência formativa das
forças culturais e sociais. Esta nova teologia moral tem de ser fundamentalmente
bíblica. Já passaram 50 anos desde a famosa admonição de Optatam totius 16, que
nos instruiu ser mais bíblicos. Esses passos são importantes, mas necessitamos de
mais especialistas da ética, especialmente católicos, para enriquecer-nos com uma
nova ética bíblica, que abrace a dupla competência da exegese bíblica e da
hermenêutica ética complementar, sendo assim capaz de aplicar exigências bíblicas
à vida contemporânea. Esta dupla competência talvez exija que os especialistas da
ética colaborem mais extensivamente com os teólogos bíblicos para lembrar-lhes que,
no passado, seus intentos em realizar uma ética bíblica sem uma hermenêutica ética
adequada mostraram que devem procurar uma colaboração mais extensiva com a
ética teológica.

Enquanto buscamos uma hermenêutica ética apropriada, os escritores


contemporâneos da ética bíblica assinalam instrutivamente a ética da virtude, porque
ela representa o tipo de instrução que os evangelistas e Paulo oferecem às
comunidades de fé. Deste modo, a ética da virtude poderia nos ajudar a articular os
traços virtuosos que se devem encontrar no discípulo contemporâneo de Cristo.
Podemos aqui imaginar como a valentia, a misericórdia, a vigilância e a solidariedade
estão intimamente conectadas com o chamado evangélico para trabalhar na
construção do Reino de Deus.

Contudo, esta nova teologia moral deve ser teológica. A Igreja necessita em
suas dioceses e paróquias dessa nova teologia moral. Deve encarar claramente os
temas da graça e do pecado, da criação e da redenção, dos mistérios da encarnação,
da Trindade e da promessa da liberação escatológica; do chamado para o discipulado
e para o Reino de Deus. E, finalmente, tem que encarar os temas das virtudes de fé,
esperança e caridade.
Esta guinada para a antropologia teológica foi acompanhada com uma
mudança no desenvolvimento da ética da virtude. O desenvolvimento da ética da
virtude requer que não somente desenvolvamos as virtudes que adequadamente se
configurem com a imagem de Cristo, mas também que tenhamos consciência
metódica de como essa ética proporciona normas e funciona como guia concreto e
prudente. Ou seja, se as virtudes nos dizem como ser, também nos ensinam o que
fazer.

Simultaneamente, necessitamos ter atenção às estruturas sociais em que


vivemos e perguntar-nos se essas estruturas são adequadamente virtuosas ou
problematicamente viciosas. A linguagem do pecado social, por extensão, deve nos
provocar a observar as estruturas sociais para avaliar o que inibe o pecado e o que
inspira a virtude. Falta-nos muito trabalho neste sentido.

Esta guinada para a ética da virtude, com a concomitante compreensão mais


social da pessoa e da consciência, nos coloca uma pergunta emergente com respeito
ao modelo clássico das quatro virtudes cardeais e se esse modelo é adequado para
pessoas cujas virtudes não devem levá-las à perfeição, mas a melhorar suas
relações. Por exemplo, assim como a justiça nos pede dar a cada um o que merece e
a ser imparcial na hora de julgar as pessoas, a fidelidade nos pede reconhecer que a
amizade, a família e o companheirismo (e outras relações mais íntimas) exigem uma
fidelidade na qual trataremos as pessoas não com imparcialidade, mas com
parcialidade, precisamente porque necessitamos manter essas relações especiais. O
autocuidado poderia acompanhar a justiça e a fidelidade. Mas o autocuidado só se
trona importante quando passamos a ser conscientes da justa relação, porque com a
justiça nos damos conta de que devemos ser imparciais para com todos, dando a cada
um o que merece. E, com a fidelidade, nos damos conta de que devemos nutrir as
relações particulares, especiais e parciais com os amigos, a família, os vizinhos, os
colegas e os concidadãos; e com o autocuidado, vemos que somos responsáveis por
nós mesmos assim como somos responsáveis também com o estrangeiro e o amigo.
A virtude da prudência nos ensina como tratar dessas virtudes, especialmente quando
competem entre si. Serão estas, então, as novas virtudes cardeais?
Ainda nascente, a ética bíblica sublinha o impacto enorme que a misericórdia
exercia nas primeiras comunidades. A misericórdia, entendida como a vontade de
entrar no caos do outro, teve uma relação nítida com o crescimento do cristianismo,
formando a marca determinante da primeira comunidade cristã. Mais recentemente,
outros estudiosos assinalam a humildade, em particular uma “humildade
epistemológica”, que nos faz considerar a comunidade, não a nós mesmos, como o
centro de nosso mundo.

Uma terceira virtude que está recebendo muita atenção é a solidariedade,


virtude que não se identifica facilmente com a tradição. A solidariedade emerge
quando sabemos valorizar o fato de estarmos num mundo global. Enquanto a
prudência instrui a justiça para que saibamos dar o quê a cada um, a solidariedade
descreve como, na ordem da justiça, devemos estar juntos, atentos aos que estão nas
margens ou em situações mais precárias.

Enquanto construímos uma ética teológica global, baseada na Bíblia,


esperamos ver nas virtudes, tanto nas antigas (misericórdia, humildade, justiça e
prudência) como nas novas (fidelidade, autocuidado e solidariedade) muita coisa que
nos possa ajudar na formação das consciências no século XXI.

6 Os temas (ignorados) que necessitam atenção para uma nova ordem


mundial: a raça, o diálogo inter-religioso e a igualdade

Essas virtudes nos devem ajudar a valorizar e a apreciar o número imenso


de desafios que se nos apresentam no horizonte, não só os da ecologia ou do
militarismo, mas também os que vêm de nós mesmos.

Quando começamos a compreender-nos num mundo global, cada vez mais


interessado no diálogo transcultural, precisamos atentar aos temas que podem nos
separar ou alienar e desfazer os passos que levam à solidariedade. Estes três temas
são raramente discutidos pelos especialistas de ética e agora têm que emergir como
questões urgentes.
Sabemos que cada cultura conta com, pelo menos, um grupo de pessoas que
por seu nascimento ou por sua raça são objeto de discriminação. A capacidade
humana para o preconceito é notável, e esse preconceito, muitas vezes, se
desenvolve socialmente, e eventualmente se institucionaliza em estruturas
perniciosas e pecaminosas. Em muitas sociedades, a obscuridade da pele é a medida
permanente do preconceito. Na ética teológica – mesmo se alguns especialistas
como, por exemplo, Shawn Copeland, Jean Marc Ela, Bryan Massingale e
Agbonkhianmeghe Orobator desafiaram outros para encarar este tema moral de longa
data – os especialistas da ética têm que abordar muito mais claramente essa questão
da raça, tanto nacional como globalmente.

De modo similar, a intolerância religiosa é um desafio permanente, mais


recentemente os esforços no discurso da teologia comparativa mostram o valor do
diálogo inter-religioso. É notável que os especialistas católicos da ética não tenham
fornecido uma contribuição significativa a esse discurso.

Finalmente, a questão da desigualdade socioeconômica, um tema que está


em primeira linha para milhões de pessoas, somente agora está emergindo como
merecedor de atenção.

James F. Keenan S.J. – Boston College, Chestnut Hill, US. Texto original
Inglês

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Teologia moral
Sumário

1 Lições da História

2 Ética humana ou moral religiosa?

3 Uma dupla abordagem na moral atual

4 A urgência de uma abordagem científica

5 A busca pelo bem maior


6 Consciência como tema central

7 Pecado e culpa

8 O pecado coletivo

9 Referências bibliográficas

1 Lições da história

Não há dúvida que a teologia moral sofreu uma forte desvalorização em nosso
mundo contemporâneo. Muitas pessoas, educadas em ambiente cristão, deixaram de
acreditar nos ensinamentos éticos recebidos. Durante muito tempo, no entanto, tais
ensinamentos éticos tiveram forte influência entre os crentes e orientavam a vida
concreta. O poder da Igreja para interpretar e aplicar estes ensinamentos éticos à
diferentes situações era considerado uma expressão explícita da vontade de Deus. A
promessa do Espírito dava-lhe uma garantia firme para não cometer um erro em seus
ensinamentos. Os fiéis não tiveram alternativas senão a obediência e a submissão.

Ainda que se tenha promovido o estudo da teologia moral em boas


universidades, sob o ensinamento de grandes teólogos, também é verdade que tal
disciplina nunca perdeu, ao longo da história, seu interesse principal em ajudar os
confessores para o ministério da reconciliação, que era seu centro. O sacerdote
expressava o perdão e a misericórdia de Deus, contudo, também como um juiz, era
necessário que tivesse o conhecimento exato da seriedade e importância do ato
cometido. A maioria dos textos de moral, até recentemente, tinha-se tornado
verdadeiro “pecatômetros”, medindo, com precisão e imaginação, todas as
possibilidades (casuística).

Esta orientação prioritária não impediu, no entanto, as muitas discussões que


ocorreram ao longo da história sobre temas que se referem a certas questões éticas.
Basta lembrar, por exemplo, as diferentes formas de harmonizar as exigências da lei
com as decisões de consciência. Os chamados sistemas morais não se referem, como
pode parecer, aos grandes fundamentos da moralidade, mas à proporção diferente
defendida entre a obrigação legal e a liberdade de cada pessoa para determinar sua
escolha em diferentes circunstâncias. Embora as alegações do passado pareçam
superadas hoje em dia, sem dúvidas ainda são suficientemente influentes para evitar
ou induzir a uma visão mais ou menos rigorista (rigorismo).

O mesmo aconteceu com o núcleo básico da moralidade. Ou seja, em relação


àqueles limites fundamentais que nunca poderiam ser ultrapassados (lei natural). Sua
existência tem sido evocada em muitas ocasiões para impor determinados
comportamentos. Aquilo que pertence a esse âmbito possui maior consistência,
contudo, o risco da ampliação de suas fronteiras tem sido, não obstante, uma
realidade histórica. A questão de saber até onde vão suas exigências permanece
ainda como um ponto pouco evidente. Especialmente quando se percebe que entre
os autores clássicos não existe consenso ou hegemonia quanto à explicação.

Para evitar um pluralismo que poderia ser perigoso para a comunidade


eclesial, a Igreja encontrou em seu magistério um apoio muito importante. A diferença
clássica entre ética e moral encontrou aqui seu ponto de partida. A moral tinha sua
origem na palavra de Deus que a Igreja, com a ajuda especial do Espírito, tem de
interpretar e impor com sua autoridade, de acordo com as diversas situações
históricas e pessoais. Por sua vez, a ética se baseava nas exigências da razão, que
não oferecia maior segurança, estando sujeita a erros humanos. Indicava-se,
inclusive, que até mesmo suas próprias conclusões deveriam estar subordinadas ao
conteúdo da moralidade. A filosofia foi relegada, por um longo tempo, a ser não mais
do que uma simples ajuda para a fé. Não em vão, passou a ser considerada como
escrava da teologia. Não havia outra opção que não fosse a obediência e submissão,
pois o remorso e a ameaça de uma condenação constituíam uma fonte de
extraordinária eficácia.

Surge, portanto, inevitavelmente, a abordagem de um novo problema. Como


seres racionais, devemos agir com uma convicção interior que justifique o
comportamento que adotamos. Um esforço de explicação racional para que nosso
comportamento resultante seja sensato e compreensível. Mas, como crentes, não
podemos eliminar a nossa dimensão transcendente, que nos faz encontrar em Deus
a explicação fundamental de nossa vida. A escuta e a docilidade à sua palavra
também faz parte do nosso horizonte ético.

2 Ética humana ou moral religiosa?

O problema metodológico que emerge é saber qual deve ser nosso ponto de
partida. Se partimos da razão para construir uma ética humana, razoável, válida e
universal para todos, ou se é a revelação que nos deve garantir, como crentes, a
firmeza e a segurança plena de nossa conduta. Devemos evitar as opiniões
extremistas, tanto daqueles que, por um lado, negam a baliza da fé em defesa da
plena autonomia humana, quanto, por outro lado, a visão daqueles que desejam
recorrer apenas à palavra literal das Escrituras. A ética secular seria um bom
representante da primeira opção. Proclama e defende a consistência humana das
regras e obrigações, sem fazer uso de justificativas externas. Na divindade se
encontrava a resposta à ignorância que impedia de descobrir um fundamento racional.
A hipótese de um Deus que se revela ou de uma igreja que ensina com autoridade
passou para o museu da história. O progresso científico certificou sua morte definitiva.

A resposta protestante, ao contrário, defende um radicalismo antagônico.


Para o cristão não existe outra opção que a de uma ética puramente religiosa.
Somente se pode agir honestamente quando se faz ouvinte da palavra e se deixa
dirigir pela mensagem da revelação. Qualquer outra tentativa de guiar a vida através
de valores humanos conduz a um completo fracasso, já que não há capacidade no
ser humano para descobrir o bem a partir de si mesmo. Nenhum moralista pode
usurpar o trono de Deus para determinar o que é bom e o que é inaceitável, como se
possuísse a competência que só a Deus pertence. Surge, então, uma manifesta
contradição entre os imperativos éticos e as exigências religiosas. No horizonte
religioso, a única categoria ética existente é a do absurdo, como a intrigante postura
de Abraão que, a fim de obedecer a Deus, se vê disposto a sacrificar seu próprio filho.

Não tenho a pretensão de explicar agora as nuances existentes em ambas


posturas. Quero ressaltar somente que, dentro do catolicismo, sempre se defendeu
uma posição intermediária. As dimensões humanas e religiosas não são duas
realidades mutuamente excludentes ou contraditórias. Entre fé e razão existe uma
harmonia complementar, sem que nenhuma perca seu valor e utilidade. Busca-se
pensar uma ética que seja profundamente religiosa, sobrenatural e transcendente,
mas que não deixe de ser, ao mesmo tempo, verdadeiramente humana, racional e
compreensível.

3 Uma dupla abordagem na moral atual

Entre os autores católicos, a similitude de pensamento sobre este pressuposto


básico alcança sua unanimidade. Contudo, a insistência e a ênfase colocadas sobre
cada um deles levam a uma dupla abordagem que levanta polêmicas dentro da
comunidade eclesial. Trata-se da inclinação ou para uma ética autônoma, na qual se
enfatiza mais a racionalidade dos conteúdos éticos, ou para uma moral da fé, que
coloca mais acento nos dados da revelação. O problema não é apenas uma questão
especulativa, mas deve nos preocupar por causa de suas implicações pastorais.

Em suma, poderíamos dizer que a ética autônoma possui maior confiança na


capacidade da razão humana, apesar de seus limites e restrições. Busca tornar os
valores éticos compreensíveis num mundo secular e adulto, que exige explicação
racional para a sua própria convicção. O homem de fé sabe que esta capacidade lhe
foi dada como um dom de Deus (autonomia theonomous), contudo sem destruir sua
justificação ou autonomia humana. A moral da fé manifesta certas reservas sobre essa
abordagem, acreditando que é bastante ingênua e otimista, pois sem a ajuda da
revelação cairíamos em muitos erros. É preciso dizer que João Paulo II foi um
defensor entusiasta da primazia e da necessidade da fé sobre qualquer tentativa de
fundamentação meramente racional da moral.

A questão essencial consiste em saber se é possível uma moralidade sem o


auxílio da fé, se acaso esta não nos proporciona conteúdos éticos impossíveis de
serem descobertos sem a ajuda da revelação. Dito de outra forma, consiste em saber
se os valores que nos humanizam podem ou não serem descobertos sem a ajuda do
sobrenatural. Da decisão tomada ante esta alternativa, pode-se prever o desabrochar
de uma moral especificamente cristã, cujo conteúdos não poderão ser conhecidos a
partir de outra perspectiva. Ou, de outra forma, se reconhece que, mesmo sem levar
em conta a dimensão sobrenatural do crente, podemos encontrar uma plataforma
comum, patrimônio de todos os seres humanos.

As divergências inevitáveis não estão baseadas apenas nestes diferentes


pontos de vista. Todo o valor ético é um apelo que sentimos para nos realizarmos
como pessoas. Nascemos inacabados, e não é possível atingir esse objetivo (o da
humanização[1]) deixando-nos levar pelos impulsos primários que experimentamos.
O ser humano, por meio das renúncias e compensações que experimenta em sua
educação, tem a tarefa de descobrir qual a configuração que deseja dar a todos os
elementos encontrados em sua natureza. Ética nada mais é que o estilo de vida que
cada pessoa decide dar à sua existência.

É interessante notar que Santo Tomás, quando explica em que consiste a


ofensa a Deus, o faz a partir de uma perspectiva profundamente humanista: “Deus
não é ofendido por nós, a não ser na medida em que agimos contra nosso próprio
bem” (Summa Contra Gentios, III, 122).

4 A urgência de uma abordagem científica

Quero dizer que tudo que é moralmente considerado inaceitável ou, do ponto
de vista religioso, é classificado como um pecado, tampouco é, do ponto de vista
humano, a melhor maneira de se realizar como pessoa.

Tudo isso significa que não é possível uma moral autêntica sem que se apoie
em bases científicas, pois, de outro modo, suporíamos a defesa de uma moral sem
fundamentação. A dificuldade está no fato de que a ciência nem sempre possui
conclusões unânimes que permitem a avaliação do comportamento. O campo da
bioética é um exemplo claro dessa dificuldade. Também é digno de nota que, com o
progresso e as novas descobertas da ciência, as soluções que têm sido tomadas
antecipadamente devem ser repensadas ou reinterpretadas de forma diferente para
que possam integrar as novas possibilidades.

Neste contexto, existe o perigo de que a moral se torne um obstáculo ao


progresso, ao condenar imediatamente qualquer nova possibilidade que não se ajuste
completamente às normas e ensino anterior. O conflito surge, então, entre a fidelidade
a um valor, tal como apresentado na tradição, e a fidelidade a uma nova verdade que
pode enriquecer a perspectiva precedente. A própria cultura, que se desenvolve ao
longo do tempo, oferece perspectivas diferentes que permitem valorizar qualquer
realidade. Inclusive dentro do mesmo âmbito cultural, como é o caso da Igreja, tem
ocorrido mudanças significativas que afetam a formulação da ética concreta. Durante
séculos, aceitou-se com naturalidade o fenômeno da escravidão; e quase ninguém
ficou escandalizado com o fato de que os hereges fossem queimados na fogueira.

Finalmente, existe hoje uma dupla forma de aplicar à realidade alguns valores
éticos. Nem tudo que na teoria é apresentado como princípio válido e aceitável pode
ser aplicado em situações concretas. Valores evidentes e aceitáveis como não mentir,
respeitar a vida, pagar a cada um conforme seu merecimento etc., devem ser
analisados verificando se vale a pena cumpri-los na eventual possibilidade de que sua
execução provoque uma mal maior. A mesma moral tradicional afirma que quando
uma ação implica consequências boas e negativas, no caso de perplexidade, todos
devem escolher o mal que parece menor. O chamado princípio do duplo efeito, a lei
da gradualidade, a distinção entre a cooperação formal e material e a virtude da
epiqueia indicam que não se pode julgar uma ação enquanto não se considere
especificamente como ela se realiza concretamente.

5 A busca por um bem maior

Devemos descobrir, portanto, qual é o valor mais elevado que precisamos


buscar e situar acima de tudo. Ou se, a fim de evitar consequências negativas piores,
devemos optar pela eliminação de algum bem. Essa moralidade concreta busca-se
hoje a partir de um duplo caminho, através de uma argumentação deontológica, ou
através de um raciocínio teleológico. A diferença entre as duas posições pode ser
sintetizada como se segue. Uma teoria normativa será deontológica quando a
moralidade de um determinado comportamento for deduzida através da análise de
sua natureza, sem dar qualquer importância às consequências ou efeitos negativos
que podem resultar de tal comportamento (deontologia). Já uma teoria normativa na
dimensão teleológica, pelo contrário, mesmo que também considere a natureza da
ação, não se atreve a valorizá-la sem antes considerar as consequências que possa
produzir (teleologia).

Não me parece que esta última perspectiva, à qual a maioria dos atuais
moralistas se inclina, seja contra os ensinamentos fundamentais da Igreja, embora a
doutrina oficial faça críticas a muitas de suas formulações. Tampouco penso que com
essa abordagem estejamos entrando em uma moral de pura eficácia ou de benefícios
imediatos. Também não se nega a existência das chamadas ações intrinsecamente
pecaminosas, quando não existe nenhuma razão ou motivo que pudesse justificar a
sua não observância. Contudo, é verdade que nem sempre coincidem na mesma
valoração.

6 Consciência como tema central

A partir da sua compreensão como o nucleus secretissimus atque sacrarium


hominis, in quo solus est cum Deo (Santo Agostinho), o Concílio Vaticano II define a
doutrina da consciência: “No fundo da própria consciência, o homem descobre uma
lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o
está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na
intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei
escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será
julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se
encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à
consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus
e do próximo” (Gaudium et spes n.16).

Chamado à comunhão com Deus, o ser humano está em escuta contínua de


sua Palavra e a conserva no coração (Jr 17,1; 31,31-34; Ez 14,1-5; 36,26), cujo único
habitante é Deus (Jr 11,20). O Evangelho de Jesus, manso e humilde de coração (Mt
11,28-30), germina no mais íntimo da pessoa (Mt 13,19). Deste núcleo brotam as
palavras, atitudes e comportamentos humanos (Mc 7,18-23). O apóstolo Paulo
interpreta a tradição semítica do coração e a traduz na noção grega de consciência
(syneidesis) como expressão íntima da nova criatura e de seu existir em Cristo (Hb
9,12).
A chave de compreensão da moral cristã é o discernimento (dokimázein):
capacidade de tomar, em determinada situação, a decisão moral conforme o
Evangelho e com conhecimento das implicações da história da salvação. O
discernimento aponta para o caráter pneumatológico da consciência. O conteúdo
primário do discernimento cristão é a vontade de Deus em Jesus Cristo (Rm 12,2; Ef
5,17). O discernimento é o próprio exercício da consciência, é a consciência moral
adulta em ação (Hb 5,14). A Igreja se apresenta como uma comunidade de
discernimento: “que possais discernir o que é melhor ou o que é bom, o que é mais
importante ou o que mais convém e agrada a Deus” ( Rm 2,18; 12,2; Fl 1,10; Ef 5,10).
Essa perspectiva é o fundamento do sensus fidelium. “Os fiéis leigos devem ter
consciência não só de pertencer à Igreja, mas de ser Igreja” (Catecismo da Igreja
Católica n.899). Todo batizado tem o direito, em razão de seu próprio conhecimento,
competência e reconhecimento, de manifestar à comunidade eclesial sua opinião
sobre aquilo que pertence ao bem da Igreja.

A liberdade de consciência tem a última palavra a respeito das prescrições


morais concretas da Igreja. Cada fiel, deixando interpelar-se pela sua consciência,
pela Palavra de Deus e pela Tradição está chamado a assumir-se fazendo a escolha
ética de forma responsável. Ninguém pode ser forçado a agir contra a própria
consciência nem sequer em assuntos de religião (Código de Direito Canônico, 748,
2): “A consciência é o primeiro de todos os vigários de Cristo” (Catecismo da Igreja
Católica, 1778 – citação do Cardeal Neumann). A decisão pessoal adquire, portanto,
um relevo extraordinário (decisão moral). Somente a própria (consciência) possui a
última e definitiva palavra para a moralidade de nossas ações, mas sem esquecer a
validade e obrigatoriedade das normas éticas(norma moral).

Pode-se dizer que, para o legalista, a regra conserva sempre sua validez,
como o caminho mais seguro para evitar erros. O antinomista, pelo contrário, anula
sua validez a fim de seguir os ditames de sua decisão pessoal (ética situacional). Já
a pessoa madura aceita, por um lado, a obrigatoriedade das exigências éticas, mas
sabe também relativizá-las quando se encontra diante de outros valores importantes,
desde que tais ações não sejam consideradas intrinsecamente pecaminosa, como já
dissemos.
Esta visão personalista da consciência integra harmoniosamente a dialética
entre a dupla dimensão objetiva e subjetiva da moral, sem cair nos extremos de uma
moral legalista ou de uma ética subjetivista. Uma pedagogia da moral deveria consistir
em despertar consciências livres e responsáveis, que se deixem conduzir sempre
pelo chamado ou apelo a um bem maior.

7 Pecado e culpa

Como também aconteceu com outras questões, a imagem do pecado sofreu


uma profunda mudança em nossa sociedade. A própria Igreja, em alguns de seus
documentos, expressou sua preocupação. Também aqui são muitos os fatores que
causaram esta situação, como nos aponta, na Exortação Apostólica sobre a
Reconciliação e Penitência, o Papa João Paulo II. Cito, brevemente, três aspectos que
considero importantes.

O primeiro, sem dúvidas, é a perda da visão sobrenatural. O terrível de um


acidente não reside no fato de que o carro tenha ficado destruído, mas a vida que se
perdeu entre seus destroços. Pecar não é simplesmente quebrar uma lei ou não
cumprir uma obrigação, mas implica a ruptura de uma amizade com o Deus que nos
salva. Quando esta dimensão transcendente se esvai, como acontece em nossas
sociedades secularizadas, a imagem do pecado também desaparece.

São muitos os que não querem reconhecer a sua própria sua culpa, como se
fosse uma decisão que brota dela própria. O erro e o equívoco fazem parte do nosso
patrimônio, como uma consequência inevitável de nossa finitude. A falta, no entanto,
não se deve à liberdade de quem assim atua, mas constitui um fracasso pelo qual
ninguém pode sentir-se responsável. É um evento que nos deixa chateado e
magoado, que nos comove, pois afeta as fibras mais íntimas da personalidade, mas
sobre o ser humano, mesmo que ele cometa o mal, não se pode lançar qualquer
condenação acusatória. Ninguém escolhe algo contra si e, por isso, quando rejeita
Deus ou recusa um valor ético, é porque encontrou outra atração pela qual se sente
inevitavelmente seduzido sem outra possibilidade de eleição.
Ainda que pareça estranho, não é fácil uma prova evidente de nossa
liberdade. Aquele que insiste em negá-la verá, por detrás de cada escolha, um mundo
de certas experiências, pressões, lembranças, interesses, expectativas etc., que
inclinam a balança para um lado de uma forma inevitável. A hipótese de sua
existência, no entanto, não é um dado anticientífico. Os múltiplos mecanismos que a
ameaçam não tem porque destruir a capacidade básica da autodeterminação.
Contudo, não devemos defendê-la com uma ingenuidade excessiva. São muitos
fatores que a condicionem, embora não a eliminem. É possível que, às vezes,
queiramos e não possamos, contudo, mais frequente é a situação na qual podemos e
não queremos. A liberdade é também uma conquista que cada pessoa deve realizar
com o seu esforço.

É lógico que a pessoa que não quis responder ao chamado de um valor que
o desumaniza, ou como crente encontra-se fechado para a amizade com Deus,
experimente internamente algum desconforto. O fracasso de um projeto humano ou
religioso, embora não absoluto e definitivo, deve produzir determinadas reações
internas que não nos deixem tranquilos e imutáveis, como se nada tivesse acontecido.
A culpa, como a dor ou a febre nos mecanismos biológicos, faz sentir o mau
funcionamento da pessoa e o desejo de uma cura eficaz.

Este sentimento de culpa poderia ser causado por diferentes fatores. Uma
sensação de angústia por medo de uma perda, ou por medo de uma punição. O que
dói não é o mal praticado, mas as más consequências dele decorrentes. Em outras
ocasiões, é a ferida que causa o próprio narcisismo. É um fato que destrói o Eu ideal,
que humilha e corrói, com um remorso que se faz companheiro constante de
caminhada. Quando, em sua natureza mais profunda, radica na vergonha de haver
atentado contra o meu próprio bem, causado danos aos outros e, sobretudo, ter
quebrado a minha amizade com Deus.

8 O pecado coletivo

Sempre se analisou o conceito de pecado a partir de uma visão demasiado


individualista. O importante era não sentir-se culpado com o desempenho individual.
Se apesar da própria honestidade ainda continua existindo o pecado, semelhante
situação será, então, produto de outras pessoas que colaboram com o mal existente.
Uma abordagem como essa se faz completamente incompreensível em nossa cultura
atual, na qual a dimensão política possui uma extraordinária relevância.

Já o Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja no mundo moderno,


havia desmascarado claramente essa abordagem: “A profunda e rápida
transformação da vida exige com suma urgência que não haja ninguém que, por
despreocupação frente à realidade ou por pura inércia, conforme-se com uma ética
meramente individualista” (n1 30). O pecado coletivo é uma realidade evidente, como
apontaram os bispos latino-americanos, nas assembleias de Medellín e Puebla.

A reflexão fundamental poder-se-ia concentrar em torno dessa questão


básica: qual deve ser a atitude ética e cristã da pessoa consciente de seu
compromisso, frente às injustiças e pecados sociais que não dependem dela nem que
ela poderá eliminar?

Eduardo Lopez Azpitarte, SJ – Facultad Teologica de Granada, España. Texto


original en espanhol. Tradução: José Sebastião Gonçalves

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São Paulo: Ave Maria, 2007.

[1] Elucidação do tradutor.

Ética teológico-cristã da sexualidade


Sumário

1 A ética teológica da sexualidade e existência humana


2 O estatuto teológico da ética da sexualidade

2.1 O caráter plenamente humano da sexualidade

2.2 O caráter crístico da sexualidade

2.3 A sexualidade: entre o sacramental e o sacramento

3 A ética da sexualidade e a Teologia dogmática

4 A tarefa ética da Teologia da sexualidade

4.1 O enigma da sexualidade e a ética

4.2 A Lei e os valores da sexualidade

5 Ética e moral da sexualidade

6 Referências bibliográficas

1 A ética teológica da sexualidade e existência humana

Por muito tempo a Moral da Pessoa ocupou-se das questões concernentes à


sexualidade e a categoria de pessoa destacava-se como estruturante do arcabouço
da reflexão da práxis cristã. No entanto, com os grandes avanços das denominadas
ciências humanas e seu impacto, sobretudo nas últimas décadas, sobre a teologia
moral, tornou-se mais comum denominá-la de Ética teológica da sexualidade. Isso se
deve ao cuidado que se tem tido de deslocar a atenção da “pessoa”, tomada no
sentido essencialista para insistir na existência humana em sua dinamicidade
(SALZMAN; LAWLWER, 2012). Em torno da existência humana sincronizam-se o
caráter subjetivo, intersubjetivo e social da sexualidade, auxiliado pelos
conhecimentos advindos da psicanálise, da sociologia (FOUCAULT, 1977), da
antropologia, da filosofia política e de outros campos do saber que se debruçam sobre
o fenômeno do corpo e da sexualidade humana (BORRILO, 2002).
Nesse sentido, a Ética teológico-cristã da sexualidade está ancorada na
experiência vivida do ser humano concreto ou do sujeito encarnado (HENRY, 2012),
bem como no saber que essa mesma experiência se dá e que se expressa através do
saber das ciências da vida e do corpo. A centralidade da existência sexual faz com
que a ética da sexualidade se oponha à visão do sujeito abstrato e de sua respectiva
consideração a respeito do corpo e do sexo. Pressupõe-se, portanto, uma
antropologia em que o ser humano é corpo e não alguém que apenas tem um corpo
(HENRY, 2012).

Nessa esteira, corpo e sexo não se contrapõem, não estão em concorrência


e, por conseguinte, rechaçam qualquer dualismo entre corpo e alma. A consequência
imediata dessa abordagem é que a sexualidade não aparece mais como sendo da
ordem da mera contingência e da esfera da necessidade da encarnação em função
da individuação do eu como subjetividade ou consciência pura ou espírito.

O ser humano se faz, expressa e se diz no corpo como sujeito sexuado. Por
isso a visão do sexo subjacente a essa antropologia não se restringe ao corpo-objeto
abordado pelas ciências empírico-formais, mas vincula-se ao corpo-subjetivo e à
ontologia do corpo veiculada pela filosofia e a teologia da carnalidade humana. Nessa
perspectiva, a sexualidade não é um dado amorfo nem algo pronto e acabado, já que
sempre referida ao advir da vida no homem com os outros em sociedade. Trata-se,
pois, do ponto de vista fenomenológico, de um evento enquanto a sexualidade já é e
está por edificar-se à medida que a carnalidade situa o ser humano no arco da
existência, isto é, o insere na natureza, na história, na cultura, enfim, no seio das
relações com e para os outros no mundo, na cidade (pólis). Nesse sentido, não há
como se distanciar do fenômeno da sexualidade para tematizá-la. Ela é da ordem do
aparecer e do manifestar-se de modo a escapar do saber teorético que prescinda do
coenvolvimento daquilo que aparece.

2 O estatuto teológico da ética da sexualidade

Em função de uma antropologia que se pretenda unitária e da condição


humana em sua unicidade na diversidade (SALZMAN; LAWLER, 2012), a Ética
teológica da sexualidade leva em conta o fato de a experiência humano-cristã ser
indissociável da encarnação. Que o Filho de Deus tenha assumido a carne na história
da narratividade de seu corpo, isso faz com que esse evento crístico repercuta
imediatamente na condição humana lançada na Existência. Assim, o seguimento do
Cristo como categoria ética incorpora a si um diferencial ou uma novidade com relação
à vivência da sexualidade (FUCHS, 1995). A saber, põe em evidência o impacto da
revelação (cristã) sobre a vida humana e o modo como se segue o Cristo graças à
corporeidade e à sexualidade, ambas assumidas como dom da criação e como graça
da salvação em Cristo.

2.1 O caráter plenamente humano da sexualidade

A ética da sexualidade tem como pressuposto o fato que corpo e sexo não
são considerados meros meios ou trampolim para outro fim (espírito), mas a maneira
pela qual se tem, concretamente, acesso à vida humanizada sexualmente, dita e
experimentada, em Cristo. Desse modo, a reflexão (cristã) da sexualidade trava-se na
interface entre Ética teológica fundamental e Ética teológico-cristã do corpo. Sem uma
antropologia teológica do corpo, a ética da sexualidade corre o risco de ser asséptica
e sem incidência na existência encarnada das pessoas que vivem tendo como
horizonte a fé cristã.

Por um lado, a Ética teológica fundamental inclui no horizonte de sua reflexão


o caráter universal da ação humana. Aquilo que o Cristo revela da e para a
humanidade a partir de sua história (SESBOÜE, 1982, p.227-68) diz respeito, em
primeiro lugar, ao sentido da existência humana enquanto referida à criação. Assim,
essa categoria teológica pode ser traduzida, em termos seculares, como “finitude” e
essa, por sua vez, aparece indissociável da criatividade da condição existencial do ser
humano. Nesse caso, o cristianismo não se pretende como “regime de exceção” no
tocante à vivência da sexualidade (AZPITARTE, 2001). Na ótica do corpo-próprio, a
teologia propugna a humanização do ser humano em consonância com a carnalidade
e a sexualidade plenamente realizadas e não a reboque delas. Logo, a Ética teológico-
cristã da sexualidade não se edifica à margem da condição eminentemente “criatural”
da existência cristã, partilhada por e com o gênero humano.
2.2 O caráter crístico da sexualidade

Por outro lado, a Ética teológica contempla em seu labor a singularidade da


experiência cristã segundo sua diferença específica. Essa refere-se à peculiaridade
da carnalidade que porta em si o caráter crístico. Graças à encarnação, o cristão não
se autocompreende senão intrinsecamente associado ao Cristo, de modo a tecer e
conformar sua vida na carne em constante contato e confronto com o Mistério Pascal.

De maneira explícita, a vivência do Batismo, a celebração da Eucaristia e a


vida eclesial são maneiras concretas pelas quais se gesta a identificação do cristão
com o Cristo. Assim, a configuração da vida cristã se tece na interpelação ou no
embate do corpo a corpo com várias alteridades. A saber, na escuta das Escrituras,
na cumplicidade de vida da comunidade de pertença, na celebração, na Liturgia e no
constante encontro com o rosto/corpo do outro humano é que se retroalimenta a vida
cristã e se descobre e se realiza o sentido da sexualidade em Cristo.

Do ponto de vista da vida especificamente cristã, essas alteridades instigam


o cristão a viver a sexualidade como evento humano associado, por sua vez ao “Fato
cristão” que a inspira. Essa dinâmica relacional se traduz e se cumpre na contínua
incorporação do cristão ao Corpo de Cristo. Desse modo, o corpo e sexo não se
dissociam de certa metáfora esponsal que, por sua vez, se traduz na cumplicidade
amorosa entre Cristo e a Igreja (humanidade).

Em função disso, a sexualidade em perspectiva cristã também assume um


caráter sacramental. Ela é vivida pelos cristãos como testemunho e sinal da entrega
amorosa do Cristo pelo seu corpo (ANATRELLA, 2001). A sacramentalidade da vida
sexual, por sua vez, assume múltiplas formas na diversidade da comunidade cristã
inserida no mundo.

Há aqueles que se sentem chamados a contrair um vínculo amoroso por meio


do matrimônio, cuja união se expressa na relação carnal movida pelo desejo e pelo
amor, graças à experiência do corpo e do sexo que a sustenta, a mantém e a
impulsiona. Há outros que optaram por consagrarem-se à vida religiosa como modo
de serviço ao Reino de Deus. Nela, a sexualidade assume a modalidade de uma vida
consagrada celibatária. Outros optam pela vida clerical na qual, especificamente, o
celibato presbiteral assume o caráter disciplinar. Mas há também aqueles que vivem
uma união estável cuja experiência corpórea-sexual visa a traduzir a experiência de
comunhão de vida entre parceiros homoafetivos, cuja significação procede do desejo
de testemunhar o seguimento de Cristo e expresso em alguns “sacramentais” do
cristianismo (GALLAGHER, 1990, p.31-8).

Todas as modalidades de vida cristã na qual a sexualidade assume uma


configuração muito própria, dependendo do tipo de estilo de vida, partilham, no
entanto, da mesma fecundidade do amor inspiradas no amor de Cristo pela
humanidade.

2.3 A sexualidade: entre o sacramental e o sacramento

Por sua vez, o caráter sacramental da vida cristã abre a reflexão ético-
teológica da corporeidade para a dimensão pneumática da sexualidade. Ao humanizar
a humanidade assumindo-a por dentro – desde o mistério da encarnação e seu
desdobramento na criação, salvação e santificação –, o cristão é santificado na e pela
sexualidade, graças à filiação divina instaurada por Cristo. Sendo ele o Filho, a
encarnação do Verbo inaugura para o gênero humano a possibilidade de viver em
profunda comunhão com Deus e de incorporar-se à vida trinitária (VIDAL, 2002).

Uma vez inabitado pelo Espírito do Cristo, é concedido ao ser humano o dom
e a tarefa da santificação de sua vida a partir do próprio corpo e do sexo. A
sexualidade, portanto, lida à luz da Teologia cristã do corpo, afirma-se como caminho
de uma autêntica e fecunda vida espiritual. Abandona-se, portanto, de vez, o dualismo
entre corpo e espírito em voga na tradição greco-romano que, em certo sentido,
influenciou algumas abordagens depreciativas da sexualidade por parte do
cristianismo ao longo dos séculos (BROWN, 1990). Com isso, evita-se cair em dois
extremos, seja no espiritualismo ingênuo e idealista da sacralização da sexualidade,
seja na visão depreciativa do corpo em detrimento da supervalorização do espírito,
para o qual a encarnação é da ordem da contingência existencial.
A vida em Cristo, movido pelo seu Espírito, assegura a dessacralização da
sexualidade (ela é da ordem da criação e da santidade e não do sagrado). E, ao
mesmo tempo eleva a sexualidade à estatura de um autêntico caminho de
humanidade dos corpos existencialmente vividos na relacionalidade afetivo-sexual. A
vida espiritual já não é alheia à vivência da sexualidade humana. Essa, por sua vez,
é considerada como lugar da experiência da ternura, do amor, do dom e da entrega
mútua e, por isso, associada aos frutos do Espírito.

3 A ética da sexualidade e a Teologia dogmática

Graças aos motivos antropoteológicos evocados, há que se ter presente que


a Ética cristã da sexualidade é inseparável da Teologia Dogmática. Dependendo do
modo como os vários tratados da Teologia – Teologia Fundamental, Cristologia,
Trindade, Pneumatologia, Eclesiologia etc. – abordam a corporeidade, isso determina
a visão ético-teológica da sexualidade e vice-versa.

Dessa relação depreende-se uma ética cristã estoica, uma ética gnóstica da
sexualidade ou, o contrário, uma ética cristã do amor e do desejo calcada na
positividade da carnalidade humana como lugar da experiência salvífica mediatizada
pelo corpo e pelo sexo. Emergem, pois, dessa constatação duas perspectivas que,
em certo sentido, parecem antagônicas: ou ressalta-se o desejo, o erotismo e o prazer
como características inalienáveis da condição humana e da própria vida em Cristo ou,
pelo contrário, acaba-se por subestimá-los a ponto de comprometer inclusive a
novidade da visão cristã do corpo e do sexo (SALZMAN; LAWLER, 2012).

Isso implica dizer que o grande desafio para uma Ética teológico-cristã da
sexualidade na contemporaneidade passa pela premente necessidade de rearticular-
se Amor, Graça e Desejo a partir da relação entre os seres humanos e deles com o
Deus do cristianismo; e entre Prazer e Dom da carne (Eros), que a humanidade
recebeu na criação, e a plenitude da encarnação, na revelação e na redenção,
consumada na santificação (AZPITARTE, 2001).

4 A tarefa ética da Teologia da sexualidade


Em função do arcabouço da ética teológica, há que se ter presente seu labor
com relação à promoção e à proteção da sexualidade humana em suas respectivas
dimensões. Isso se deve, por um lado, ao fato de a sexualidade referir-se ao ser
humano, seja como sujeito em relação (com o outro), seja como membro da
comunidade humana, enquanto o insere na vida pública ou na convivência em
sociedade (LACROIX, 2009).

4.1 O enigma da sexualidade e a ética

Por outro lado, a ética da sexualidade lida com o fato originário de a


sexualidade ser da ordem do “enigma” (RICOEUR, 1967) e, consequentemente, do
regime da ambivalência, na medida em que nela articulam-se o desejo (de outrem) e
o prazer. Enquanto o desejo suscita no indivíduo uma fome insaciável do outro com o
qual se vive o amor erótico, a dinâmica interna do prazer, por sua vez, está à procura
da saciedade, da fruição e do gozo dos corpos que se dão na relação sexual. Nesse
caso, o sentido da sexualidade oscila entre a transcendência e a imanência, entre a
proximidade e o distanciamento que o desejo e o prazer suscitam nos parceiros que
se propõem, em consentimento, contrair um vínculo amoroso de vidas e corpos. Isso
significa que a ética da sexualidade articula-se em torno desses pressupostos
antropológicos, sem os quais corre-se o risco de juricizar a sexualidade e
comprometer seu caráter ético originário.

Ora, seguindo essa dinâmica do amor e do desejo, compete à ética promover


os valores que a própria sexualidade se dá enquanto evento humano-cristão. A ética
da sexualidade visa a cultivar e assegurar o cuidado de si, o cuidado do outro, o
cuidado da relação “como” terceiro e o cuidado do “terceiro” da relação no âmbito da
vida sexual.

4.2 A Lei e os valores da sexualidade

Em torno do desejo e do prazer, a ética assume um caráter, primeiramente,


positivo em função da bondade da sexualidade segundo seu teor eminentemente
relacional, no sentido de orientar os indivíduos a encarnarem, em sua vida sexual, a
ternura, o dom, promessa, oblação, fecundidade, entrega amorosa, fidelidade etc.,
como maneira de levar a cumprimento a humanização da sexualidade vivida em
Cristo. Isso se aplica a toda e qualquer forma ou estilo de vida sexual escolhido e
assumido livremente pelos cristãos.

Entretanto, como a sexualidade também carrega em si a possibilidade da


fixação no gozo e, consequentemente, o risco de desumanização – a categoria
teológica do pecado tem sua correspondência ética na desfiguração da sexualidade –
por conta da possibilidade real de o sujeito involucrar-se em si, da objetivação do
corpo de outrem e/ou da privatização da relação, fechando-a para a vida social,
compete à ética da sexualidade formular interdições com base no sentido originário
humano-cristão da sexualidade.

Como a significação da Lei que ordena a vida sexual assume um caráter


positivo graças à própria interpelação que vem da palavra do outro, a ética da
sexualidade não se impõe de fora como um código de normas jurídicas, essas, por
sua vez, esvaziadas de seu caráter ético fundado na relação. Antes, a Lei que rege a
proteção da sexualidade é aquela da esfera da ética, enquanto ela pretende interditar
tão somente aquilo que conduz à negação do desejo e do amor que deriva do primeiro.

5 Ética e moral da sexualidade

O caráter normativo da ética da sexualidade visa tão somente a proteger a


sexualidade das ameaças da “tirania do prazer” (GUILLEBAUD, 1999). Essa tende a
esvaziar o significado originário do corpo-sujeito e do sexo-sujeito. Compreende-se,
pois, que as leis e as interdições com relação ao autoerotismo (masturbação)
(CAPPELI, 1986, p.255-367), à prostituição, à pedofilia, à pornografia etc., pretendam
proteger os indivíduos contra aquilo que compromete a significação genuína e
originária da sexualidade. Daí as exigências de se ter que associar ao cuidado as
obrigações do respeito ao próprio corpo/sexo, do respeito ao corpo do outro e do
respeito ao corpo do terceiro da relação e na relação. Graças a isso, a ética articula-
se em função de duas dimensões fundamentais, a saber, a do “sentido” da
sexualidade (seu fim) em torno do cuidado e da estima e a das “obrigações” do sexo,
estruturadas ao redor do respeito dos indivíduos e grupos humanos.
Com base na estrutura da ética da sexualidade é que se pode chegar a
formular o juízo ético sobre as diversas expressões da vivência da sexualidade. Ora,
se a vida sexual é inseparável do caráter relacional da existência, não há como pensar
a significação da sexualidade sem evocar a questão da castidade (THEVENOT, 1982,
p.35-90). Essa diz respeito à condição sexual de todo e qualquer ser humano, à
medida que a experiência remete àquilo que a própria palavra sugere – a saber, sexo
se traduz do latim como castus, que significa cortar, separar. Do ponto de vista
simbólico, significa que a sexualidade humana está intimamente associada à
castração.

Por isso compete à ética cuidar que a sexualidade se distancie de todo tipo
de fusão entre seres humanos, de modo a se preservar e promover um de seus
valores fundantes. Em outras palavras, a castidade emerge como exigência da própria
manutenção do caráter humanizante da sexualidade, suscitado pela experiência
vivida e não alheia a ela. Nesses termos a castidade é um valor intrínseco da
sexualidade humana (GONZÁLEZ-FAUS, 1993).

Isso permite também distinguir castidade de celibato. A castidade funciona


como uma espécie de “condição de possibilidade encarnada” para o celibato, embora
o segundo sempre suponha a adesão livre de quem o acolhe como suspensão do
exercício das faculdades sexuais. A ética da sexualidade insiste em que a experiência
do celibato seja fruto de uma escolha realmente ética e que, por isso, seja nutrida pelo
sentido da castidade, a fim de que não seja vivida como mera privação do sexo ou
motivada meramente por um sentido acético (VIDAL, 2002). Isso poderia
comprometer a fecundidade com que o celibato deverá ser expresso do ponto de vista
da vida sexual concreta de quem o assume.

Outra consideração do ponto de vista do juízo moral parece significativa em


função da natureza do desejo. Como a sexualidade é da ordem da relacionalidade
humana, e essa só se explicita na busca ou na procura incessante do outro, é próprio
da vivência sexual sedimentar-se em torno da temporalidade da relação. A ética da
sexualidade insiste no caráter estruturante do desejo, de modo que a responsabilidade
implicada na relação entre as pessoas que se desejam passe pelo crivo do hábito e
da constância. Uma vez que elas pretendem realizar os valores da sexualidade em
função da encarnação dessa relação concreta, urge cuidar, assumir e respeitar o ritmo
de cada um, a maturação de ambos envolvidos na relação e o empenho na construção
paulatina da entrega amorosa efetiva implícita ao cumprimento do desejo.

Nessa perspectiva, as relações sexuais pré-conjugais recebem uma atenção


ética diferenciada segundo o grau de comprometimento que as pessoas envolvidas
mantém entre si. A moralidade das relações sexuais entre namorados terá de ser
discernida à luz da assunção do sentido da sexualidade (LACROIX, 2009), isto é, o
grau de humanização dos envolvidos, segundo a maior ou menor realização dos
valores da sexualidade conforme as duas dimensões morais da sexualidade: o
cuidado e o respeito de si, do outro e do terceiro.

Enfim, o juízo moral sobre as plurivalentes experiências da sexualidade


humana (relações pré-cerimoniais, relações fora do casamento, relações
homoafetivas – diversidade afetivo-sexual: transexualidade, transgênero,
bissexualidade) deve levar em conta dois aspectos fundamentais da existência
humana sexual: a intriga interna entre a individuação e a socialização da sexualidade,
sendo que o entrelaçamento entre esses polos dá-se em função da relacionalidade
humana e dos valores indissolúveis do compromisso entre os parceiros (CORAY,
JUNG, 2005). A ética teológica da sexualidade considera que a dimensão normativa
da sexualidade assume um caráter “ancilar” em relação à primazia dada ao sentido
humano e crístico da sexualidade.

A sexualidade humana é da ordem do dom, da graça, da salvação. Embora


não se possa negar a contingência, a queda, o pecado e a morte implícitos na
experiência humana da sexualidade, isso, porém, não permite esconder e embotar o
caráter vivificante e liberador, estético e místico da sexualidade humana ressignificada
quando referida ao horizonte da vida em Cristo.

Nilo Ribeiro Junior, SJ, FAJE, Brasil. Texto original português.

6 Referências bibliográficas
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Para saber mais

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Aparecida: Santuário, 2008.

Bioética
Sumário

1 Origem e identidade da bioética

2 Bioética Latino-Americana

3 Bioética e Teologia

4 Bioética das situações-limite da vida humana

5 Bioética Clínica

6 Bioética Sanitarista

7 Bioética Ambiental

8 Referências Bibliográficas

A bioética é uma das áreas de saber moral com maior incidência na sociedade
atual, devido aos desafios éticos da gestão da vida, sempre mais presentes nas
biotecnologias e suas dinâmicas políticas e econômicas. A Igreja vem incluindo a
bioética no seu discurso com a preocupação pelo respeito à vida humana nascente
(técnicas de reprodução artificial, anticoncepção, aborto, criogênese, estatuto do
embrião humano) e terminal (eutanásia, cuidados paliativos). Esse interesse levanta
o desafio epistemológico das interfaces entre a teologia e a bioética. Não se trata de
formular uma bioética teológica, mas de discutir sobre o papel da teologia no fórum
interdisciplinar e secular da bioética.

1 Origem e identidade da bioética

A palavra bioética nasceu numa perspectiva ecológica em Fritz Jahr (1927) e


Van Renseleer Potter (1971), preocupados com a sobrevivência da vida no planeta
terra devido às repercussões do desenvolvimento tecnológico no ambiente (ecoética).
Nesta mesma época (1974) André Hellegers tinha uma preocupação com a ética
médica no enfrentamento aos desafios da aplicação das tecnologias médicas nas
situações limites da vida humana. Por isso, propôs um alargamento da ética
hipocrática que chamou de bioética. Assim, desde o início a bioética teve duas
origens: uma ecológica e outra mais clínica. Essa segunda teve mais sucesso, porque
era do interesse de hospitais e empresas biotecnológicas.

A bioética ecológica (ecoética), embora tenha ficado esquecida nos seus


inícios, hoje adquire sempre mais importância. Outro fato central para o surgimento
da bioética foi a reação aos abusos em pesquisas clínicas com pacientes,
denunciados num artigo de Henri Beecher (1966). Essa denúncia provocou reação na
opinião pública americana, obrigando o governo a criar a “Comissão Belmont”,
encarregada de pensar a ética da pesquisa clínica. Depois de quatro anos lançaram,
em 1978, o documento “Relatório Belmont”, com três princípios éticos: respeito às
pessoas, beneficência e justiça. Eles foram assumidos por Beauchamp e Childress
como esquema para ética clínica, no célebre livro Princípios de Ética Biomédica
(1979), propondo a autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça como
princípios éticos da clínica, originando o paradigma principialista que passou a imperar
na bioética. Contudo, pensar que esses fatos e pessoas são os responsáveis pelo
surgimento da bioética é ficar na superfície, porque sua origem tem causas muito mais
profundas que se enraízam em dinâmicas socioculturais e político-econômicas da
gestão da vida, que marcaram os séculos XIX e XX, apontadas com muita maestria
por Foucault nas suas análises do biopoder. A bioética surge como “hermenêutica
crítica dessas dinâmicas” (JUNGES 2011).

2 Bioética Latino-Americana

Na América Latina a bioética foi assumindo uma perspectiva crítica e social


na discussão dos desafios éticos da saúde e da vida, formulando modelos
epistemológicos mais adequados a essa realidade. A bioética principialista, importada
para os ambientes médicos do nosso continente, solucionava os problemas no
“paradigma da autonomia”, como se os dilemas morais se reduzissem à questão de
receber as informações necessárias para dar o consentimento. Daí a centralidade e a
importância do “consentimento informado” no equacionamento dos problemas éticos
ligados à saúde humana. Essa perspectiva não leva em consideração as condições
de vulneração da saúde em que se encontra a maioria da população do continente
latino-americano.

Essa constatação leva a propor o “paradigma da vulneração” como modelo


para pensar as questões éticas da vida. O paradigma principialista de bioética não
pode servir de diretriz moral para o equacionamento e a solução dos problemas. No
paradigma da vulneração, os direitos humanos servem de referências éticas. Para as
sociedades assimétricas e desiguais latino-americanas não pode valer a perspectiva
política da igualdade e isonomia, próprias de países ricos, onde os cidadãos têm
consciência e vigência de seus direitos. Para esses, a exigência de direitos se reduz
à defesa da autonomia e da iniciativa individuais contra o poder do Estado. Onde não
existe essa consciência e vigência plenas, as pessoas sofrem vulnerabilidades sociais
específicas contra as quais o Estado tem o dever de proteger, assegurando direitos
sociais prestativos.

Dando forma a esse enfoque, constitui-se a bioética de proteção como modelo


epistemológico mais adequado para responder às condições específicas e aos
problemas concretos da América Latina (SCHRAMM 2006). Essa bioética pretende
intervir criticamente nas situações em que populações vulneradas pelas condições
sociais não são respeitadas em sua dignidade e seus direitos fundamentais não são
cumpridos. Assim, a bioética latino-americana foi assumindo a mesma perspectiva da
origem da Teologia da Libertação: a opção pelos pobres.

3 Bioética e Teologia

Nas origens da bioética estavam implicados vários teólogos devido à sua


longa expertise em argumentação ética e seu engajamento na discussão de
problemas de ética médica no âmbito da moral católica. Posteriormente houve um
movimento de independência dos bioeticistas em relação aos teólogos, acentuando a
secularização e o pluralismo na reflexão. Isso obrigou os teólogos a explicitar sua
contribuição específica num fórum de discussão secular, interdisciplinar, plural e
racional, sem argumentos de autoridade (CADORÉ 2000). O teólogo não tem nenhum
protagonismo no debate nem pode pretender dar a palavra definitiva sobre
determinado problema. Numa igualdade de condições, sua palavra tem o mesmo valor
que qualquer outra intervenção. Ele deverá ser capaz de situar-se entre sua tradição
teológica e a situação concreta para a qual, junto com outros, tentará encontrar uma
solução. Nas palavras de João Paulo II na Fides et Ratio (48, 2), “à parresia da fé deve
corresponder a audácia da razão”, isto é, a afirmação corajosa e livre da fé deve estar
aliada à busca audaz e criativa de sua compreensão para os nossos dias.

Para entender a relação entre bioética e teologia é necessário compreender


de qual bioética e de qual teologia se está falando (JUNGES 2006). Pode-se
desenvolver uma bioética casuística própria dos comitês que tentam encontrar
caminhos de solução para casos clínicos ou de pesquisa. Para formular essas
soluções é necessária, antes de tudo, sabedoria prática na linha da fronesis
aristotélica. Por outro lado, não pode faltar na bioética uma perspectiva de
hermenêutica crítica que reflete sobre questões de fundo, pressupostos e dinâmicas
biopolíticas, implicadas nos problemas éticos.

Se no cotidiano é preciso sabedoria prática e senso de realismo, não pode


faltar, no longo prazo, a hermenêutica crítica para uma bioética de maior fôlego e
consistência. Nessa segunda perspectiva, a teologia poderá desempenhar papel
importante para ajudar a refletir sobre concepções de fundo implicadas nas soluções
concretas. Portanto, a teologia não pode querer oferecer receitas prontas para os
problemas concretos. A teologia adequada para esse papel assume, por isso, a
perspectiva pública, isto é, reflete a partir da fé no espaço social público, secular e
plural, distinta de uma teologia que confirma os fiéis no espaço eclesial e confessional.

Essa perspectiva pública da teologia pode oferecer contribuições importantes


para a bioética, no sentido de ajudar a refletir e questionar sobre questões mais
profundas da vida e existência humanas, pois uma simples abordagem pragmática da
bioética casuística não pretende nem consegue apontar essas questões. Portanto, a
teologia não pode querer oferecer receitas prontas nem colocar-se ao nível moral do
“pode ou não pode”, típicos do enfoque jurídico. Seu papel é levantar questões de
fundo e refletir criticamente. Do contrário, como diz muito bem o Papa Francisco
(2013), nós “não estaremos a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações
doutrinais e morais que derivam de certas opções ideológicas” (EG 39).
O papel fundamental da teologia, na sua dimensão pública, é abrir os
participantes de um fórum de discussão para o frescor original, a novidade do
Evangelho ao despertar e ativar uma sensibilidade ética mais acurada com respeito à
vida, desconstruindo um uso ideológico da mensagem moral cristã.

4 Bioética das situações-limite da vida humana

Um exemplo da contribuição reflexiva da teologia é no equacionamento ético


de situações-limite de início e fim de vida, não tomando uma posição moral jurídica do
“pode ou não pode”, mas levando a uma reflexão profunda sobre a questão central
ética dos limites da vida. Quanto ao início da vida, é necessário refletir sobre o
“estatuto do embrião”. Segundo Bourguet (2002), essa questão se desdobra em duas:
“o embrião é um indivíduo biológico da espécie humana”, respondida pela biologia, e,
“sendo indivíduo, merece o respeito devido a uma pessoa humana”, respondida pela
ética.

A negação da individualidade biológica do embrião está ligada à assunção de


critérios de individualidade adulta e parâmetros morfológicos já ultrapassados. A
individualidade não depende de um observador, pois não é possível fixar um momento
através de sinais externos, porque é um processo contínuo. Portanto, não se pode
definir o estatuto do embrião marcando um momento de individuação através de sinais
externos morfológicos da individualidade adulta, pois ela depende de uma
processualidade gerida por critérios genéticos. O indivíduo está definido pelo seu
genoma. O próprio aparecimento de gêmeos univitelinos não nega essa constatação,
segundo Bourguet (2002), pois a primeira individualidade não é negada, mas dela
surge uma segunda, possibilitada pela pluripotencialidade, separada no tempo.

Definida a individualidade biológica do embrião, surge a segunda questão:


esse embrião merece o respeito devido a uma pessoa. Aqui pessoa não é uma
categoria ontológica, mas ética. Isso significa que a personalidade do embrião pode
ser definida por referência às regras coletivas (ordem jurídica) ou na perspectiva do
agente moral (ordem ética). A dificuldade da primeira é que o embrião não é um alter
ego que possa participar do contrato social, aceito como igual a mim. Não existe
simetria, mas assimetria para a qual só é adequada a perspectiva ética. Trata-se da
posição de um agente moral em relação a um indivíduo humano, não igual a mim nem
outro sujeito. Para captar o outro como totalmente outro, segundo Lévinas, é
necessário despossuir o ego de impor condições para a definição do outro. A ética
parte da assimetria inicial e não da simetria, típica situação em relação ao embrião
indivíduo biológico humano. Isso significa assumir o paradigma relacional, não o
paradigma individualístico-liberal dos direitos de cada um, para pensar a relação com
o embrião. Segundo Kant, a humanidade é o critério de evidência que tem a
objetividade da natureza para garantir a moralidade do respeito. O respeito à pessoa
é coextensivo a todo aquele que é indivíduo humano, parte da humanidade, não sendo
permitido impor condições para sua definição. Assim, o embrião como indivíduo
humano merece o respeito ético devido à pessoa.

Se o paradigma relacional é assumido para pensar as situações limite do final


da vida, como aparece o significado do “processo do morrer”? Na perspectiva
individualístico-liberal (liberalismo), o momento da morte é objeto de decisão
autônoma. Aqui é possível questionar como a morte, momento de assunção da
totalidade existencial de um ser humano, pode ser objeto de uma decisão, sempre
particular. Não pode haver autonomia numa decisão dessa magnitude. Se o início da
vida se define por sua processualidade, não sendo possível determinar um momento,
a morte igualmente é um processo com várias etapas (KÜBLER-ROSS 1981).

Ser autônomo (autonomia moral) é tornar-se sujeito desse processo,


assumindo-o na perspectiva da vivência do sentido da existência como um todo e das
relações humanas que teceram a vida. O processo do morrer é fazer as contas com
a vida. Por isso, o sujeito moribundo precisa ser acompanhado por diferentes
terapeutas para que possa superar as suas dores, receber a solidariedade na solidão
e sofrimento, encontrando significado para esse processo. Viktor Frankl apontava, por
experiência própria, que a seriedade e densidade de uma vida se revelam no
sofrimento, por seu caráter catártico e interpelante. A teologia cristã, como outras
religiões, tem larga experiência de oferecer recursos simbólicos e espirituais para
enfrentar esse momento. Mas a cultura pós-moderna individualístico-liberal não
encontra sentido para o sofrimento nem quer enfrentar seu caráter catártico e
interpelante, preferindo interromper esse processo pela eutanásia. Essa reflexão ética
racional de defesa da dignidade do embrião e do moribundo é um exemplo de como
a teologia pode atuar no contexto secular da bioética.

5 Bioética Clínica

Contemporaneamente, as relações entre médico e usuário são definidas


eticamente a partir do paradigma da autonomia, como princípio primordial da bioética
clínica, expresso no consentimento informado, a ser solicitado pelo profissional para
qualquer intervenção no corpo do paciente. Os princípios da beneficência (prover
benefícios) e não-maleficência (não provocar danos) são definidos em sua
aplicabilidade a partir da autonomia, e existindo um conflito entre esses princípios e a
autonomia, a ponderação, em geral, pende para esse último (BEAUCHAMP,
CHILDRESS 2002). É claro que o profissional não pode aceder a um pedido que vá
contra uma lei jurídica nem aceitar uma solicitação de intervenção que ponha em
perigo diretamente a vida do paciente. A única possibilidade de verdadeiro conflito
ético nos princípios é entre a autonomia (busca individual de bens pessoais) e a justiça
(distribuição coletiva de recursos comuns), quando existe uma solicitação para o bem
da saúde de um indivíduo que prejudique a aquisição de recursos básicos para o
coletivo. Em geral, os médicos têm dificuldade de ver esse conflito, porque pensam
apenas no bem dos seus pacientes, dificilmente raciocinando a partir da “saúde do
coletivo” (saúde coletiva).

Para que os princípios da bioética não sejam aplicados de uma maneira


mecânica na clínica, sem a consideração do contexto nem a ponderação das
circunstâncias, Jonsen, Siegler e Winslade (1998) propõem analisar eticamente um
caso clínico, tendo presente, por um lado, indicações do médico e preferências do
paciente concernentes ao caso e, por outro, qualidade de vida do paciente nessa
situação determinada e fatores contextuais configuradores do caso.

Esses quatro dados possibilitam uma aplicação mais balanceada e ponderada


dos princípios da bioética. Contudo, para analisar o caso é necessário considerar,
além dos dados, as exigências éticas que nele se manifestam. Essas exigências estão
expressas pelos diferentes modelos de ética, não excludentes, mas complementares
entre si: o utilitarismo, que avalia a ação pelas consequências; o enfoque liberal, que
tem como critério os direitos subjetivos; a perspectiva kantiana, que propõe como
exigência máxima o respeito à pessoa; o ponto de vista rawlsiano da justiça, que
pondera a relação entre igualdade e diferença para alcançar a equidade; e o modelo
aristotélico da virtude, que considera a moralidade a partir das atitudes.

Na análise do caso clínico, é bom ter presente e avaliar todas essas possíveis
exigências éticas do agir, não contraditórias entre si. No aspecto clínico, a teologia é
convidada a contribuir com os recursos simbólicos da rica tradição cristã concernente
ao enfrentamento da dor e do sofrimento.

6 Bioética Sanitarista

Um princípio ético fundamental para os sistemas de saúde: não se pode cuidar


da saúde individual sem se preocupar com a promoção da saúde coletiva; nem se
protege universalmente a saúde das populações sem um cuidado particular pela
saúde dos indivíduos. Esse pressuposto é base para qualquer política pública de
saúde e fundamento do que se poderia chamar de bioética sanitarista, que se propõe
refletir sobre os desafios éticos da saúde coletiva. No nível coletivo trata-se da criação
de políticas públicas de prevenção de riscos que protejam as populações das
condições socioculturais e político-econômicas que vulneram a sua saúde e políticas
de promoção da saúde, propiciadoras de espaços de sociabilidade que possibilitem a
reprodução social da vida. Portanto, as políticas públicas visam a proteção da saúde
da população contra riscos e a construção de condições sociais que efetivem o direito
à saúde do cidadão como dever moral do Estado. Os princípios éticos que pautam
essas políticas e sua concretização num sistema coletivo de saúde são a
universalidade do acesso (todos tem o direito à atenção em suas necessidades), a
integralidade do atendimento (focada nas necessidades da totalidade da pessoa e
ampliada pela rede de atenção na busca de solução) e a equidade na distribuição dos
recursos orçamentários, humanos e tecnológicos segundo as vulnerabilidades e
necessidades diferenciadas dos grupos sociais. A realização desses princípios, na
consecução do direito à saúde e na proteção contra as condições sociais de
vulneração, acontece primordialmente nas Unidades de Atenção Básica (UBS), portas
de entrada do sistema de saúde, inseridas no território e no contexto cultural da
população adscrita à equipe de saúde e responsáveis pelos cuidados primários e
longitudinais dos usuários. A efetivação individual e coletiva do direito à saúde é uma
exigência de justiça social para cuja compreensão pode contribuir a reflexão teológica
sobre justiça do Reino.

7 Bioética Ambiental

Martínez Alier (2009) aponta três tendências de ambientalismo. O


“ecoeficientismo econômico” da proposta do desenvolvimento sustentável e da
economia verde que, sem questionar o atual sistema capitalista, oferece soluções
para a crise, tidas como eficientes, em coerência com as dinâmicas econômicas desse
sistema, tendo a natureza como estoque de recursos. A perspectiva é antropocêntrica,
centrada nos interesses dos seres humano. Outra tendência é o “culto ao silvestre”,
presente em muitas ONGs de ecologia do primeiro mundo que defendem uma visão
museificada da natureza, porque lutam por preservar certos ecossistemas como
intocáveis sem presença humana. Essa tendência é biocêntrica, focada nos
interesses dos seres vivos. Uma terceira tendência é o assim chamado ecologismo
popular, típico das populações indígenas e camponesas da América Latina, que
defendem a natureza como oikos, casa, lugar da sobrevivência e reprodução social
da vida, não aceitando que ela seja reduzida a estoque de extração de recursos, como
acontece quando grandes empresas petroleiras, mineradoras e de agronegócio
instalam-se em seus territórios seculares de origem.

A luta ambiental dessas populações é acusada por seus governantes como


contrários ao progresso dos seus países, quando é necessário questionar qual
desenvolvimento e para quem, pois esses povos originários defendem o seu
ecossistema de sustentabilidade biossocial em integração com os outros seres vivos
que lá habitam. Eles são movidos por uma perspectiva ecocêntrica, único enfoque
adequado para a ética ecológica e para o enfrentamento da crise ambiental. Nesse
embate existe uma visão antagônica e irreconciliável sobre a natureza: como estoque
de recursos para extração ou como ecossistema de sobrevivência e sustentabilidade
vital. Outra versão do ecologismo popular é o movimento “Justiça Ambiental”
(ACSELRAD, MELLO, BEZERRA 2008) que denuncia o descarte de danos
ambientais de processos econômicos industriais, agrários e governamentais para
territórios de populações pobres, que sofrem as consequências negativas do atual
metabolismo social da economia globalizada.

Injustiça ambiental é o mecanismo pelo qual sociedades desiguais,


econômica e socialmente, destinam maior carga de danos ambientais do
desenvolvimento às populações marginalizadas. Esse enfoque do ecologismo
popular, que concebe a natureza como ambiente da sustentabilidade ecossistêmica e
denuncia o metabolismo social do descarte de danos ambientais para populações
fragilizadas, pode oferecer uma perspectiva ecológica para repensar em outros
moldes a tradicional teologia da criação (JUNGES 2001), concebendo a natureza
criada não como estoque de recursos, mas como ecossistema vital para todos os
seres vivos.

José Roque Junges, SJ, UNISINOS, Brasil.

8 Referências Bibliográficas

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Rio de Janeiro: Garamond, 2008;

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