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ANO 12 / NÚMERO 139 R$ 14,90

3 18 20
COLETES AMARELOS OS IDEÓLOGOS DE BOLSONARO NOVA SÉRIE
A LUTA DE CLASSES OLAVO DE CARVALHO ESTADO DE
NA FRANÇA E PAULO GUEDES CHOQUE
POR SERGE HALIMI E OUTROS POR CAMILA ROCHA E LEO PUGLIA POR VERA TELLES

LE MONDE

diplomatique
BRASIL
2 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

EDITORIAL

de regulação, fiscalização e punição


das mineradoras por parte do governo
federal e da justiça.
No entanto, as Marianas e os Bru-
madinhos vão se repetir, pois essa for-
ma predatória de extração de riquezas,
de ação dos interesses privados, sem
nenhuma consideração pela popula-
ção local e pelos danos ambientais, en-
contra um Estado conivente que não
lhe coloca limites. Isso é na minera-
ção, no agronegócio, na exploração da
Amazônia...
Reforçar a posição nos territórios é
outra estratégia que se apresenta para
o momento e traz um conjunto de im-
plicações: romper o isolamento das
experiências, armar redes de redes, es-
tabelecer diálogos com os parlamen-
tos locais e estaduais.
Recuamos na disputa de políticas
nacionais para a resistência por meio
da mobilização no território. São as ex-
periências solidárias, cooperativas,
especialmente as de enfrentamento
da pobreza e da fome, que podem abrir
alternativas sociais para o engajamen-
to de setores mais amplos da socieda-
de a uma agenda progressista. A dispu-
ta de valores pode ser feita pelo relato

Roteiro da resistência
de experiências exitosas, reais.
As redes de defesa da democracia e
dos direitos humanos terão de expan-
dir sua relação com grupos na socieda-
de e ampliar seu discurso para ganhar
POR SILVIO CACCIA BAVA a participação de maiores parcelas da
sociedade.
Sobre as questões do trabalho, do
emprego, do salário e da previdência,

V
ivemos um momento de ruptu- interesses populares na elaboração Elegeram “os esquerdopatas, os petra- as representações sindicais são os ato-
ras. Não se trata apenas de uma das políticas nacionais. lhas, os comunistas, os marxistas cul- res mais relevantes nesses campos de
mudança de governo; é uma mu- As últimas eleições colocaram a ex- turais, os movimentos sociais” como conflito. Elas devem liderar a resistên-
dança no regime político e talvez trema direita também em governos es- os inimigos do Brasil que precisam ser cia nesses temas.
a abertura de um novo ciclo histórico. O taduais muito importantes, como São erradicados. Não sabemos muito bem A violência e a discriminação con-
capitalismo global, dominado pelas Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o significado desses termos. tra os negros, as mulheres e os grupos
instituições financeiras, fortalece as di- todos comprometidos com a mesma A defesa dos valores democráticos, LGBT estão também em questão. E
reitas autoritárias em todo o mundo e agenda ultraliberal, com a mesma dos direitos humanos e do meio am- aqui se reafirma o desafio de tecermos
impõe um novo padrão predatório de agenda de valores conservadores. biente torna-se uma prioridade, mas redes de redes, construindo solidarie-
exploração dos trabalhadores e do A restrição do espaço político leva como fazê-lo? Não podemos cair na ar- dades. Isoladamente, cada grupo terá
meio ambiente que não comporta regi- ao confronto e, para o governo Bolso- madilha de disputar a agenda com as de enfrentar um Estado forte e grupos
mes democráticos e instituições regu- naro acabar com essas mobilizações, fake news, contrapondo um discurso sociais mobilizados em seu combate.
ladoras que limitem sua voracidade. é preciso acabar com seus protago- genérico da defesa de direitos às bar- Índios, quilombolas, movimento fe-
De um período de uma democracia nistas. Os sindicatos estão sendo su- baridades que serão, uma após a outra, minista, religiões afro, agricultores fa-
ainda precária, em construção, com focados pela perda de receita. Além postas em debate. Tampouco podemos miliares, movimentos de juventude,
pesadas heranças do período autoritá- disso, estão sendo cortados os finan- ignorá-las, já que chegam a milhões de todos estão sob ataque.
rio, mas com algumas importantes ciamentos públicos de projetos im- pessoas que declaram acreditar no que Nesta nova conjuntura há algumas
iniciativas de redução da pobreza e de plementados por ONGs, e o MST e o leem. A disputa da agenda é crucial: prioridades: denunciar e resistir ao
inclusão social, vivemos hoje uma MTST estão ameaçados de ser enqua- quais serão os assuntos na boca do po- processo de espoliação e opressão;
ruptura democrática: passamos a uma drados como terroristas. vo? Aumento do salário mínimo ou a buscar formular uma política de co-
democracia tutelada pelos militares, O que já se pode observar é que es- mamadeira de piroca? municação mais ampla para enfrentar
um Estado policial, violento e repres- ses governos – nacional e estaduais – Esse momento de resistência re- a disputa das narrativas; investir forte-
sor, disposto a aprofundar a espolia- criminalizam os protestos sociais, ata- quer atuação vigilante sobre os acon- mente na comunicação digital para
ção das maiorias e calar o dissenso. cam as entidades e os movimentos tecimentos e as medidas de governo atingir um público mais vasto; expan-
A restrição do espaço político se ex- sociais, prendem lideranças e liberam que imponham restrições às liberda- dir o diálogo com novos atores; apoiar
pressa também pelo desmonte de todo a ação de grupos violentos de extrema des e aos direitos. a construção de redes de redes de defe-
sistema de participação – conselhos e direita na sociedade. Se as denúncias sobre a tragédia de sa da democracia e da cidadania; ex-
conferências – que influía nas políticas Essa polarização política precisa Mariana não foram suficientes para plorar experiências de sucesso para
nacionais. Mesmo antes de 2016 já fi- ser entendida como uma estratégia de fazer o governo impor às mineradoras expressar e defender valores como jus-
cava claro que essas formas institucio- governo. Ela vai continuar e ser ali- limites de respeito à vida e à natureza, tiça social, solidariedade, cooperação
© Claudius

nalizadas de participação estavam ul- mentada pelas fake news e pelas de- agora essas denúncias devem ser re- e direitos humanos; articular a denún-
trapassadas, não funcionavam mais. núncias que atribuirão ao campo pro- forçadas pela tragédia de Brumadinho cia das violações de direitos com redes
Não há mais espaço de negociação dos gressista todos os males do Brasil. e devem ser cobradas medidas efetivas internacionais de solidariedade.
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3

RECOMPOSIÇÃO POLÍTICA E SOCIAL

Luta de classes na França


O chefe de Estado francês respondeu ao movimento dos “coletes amarelos” propondo um “grande debate nacional”.
Esse tipo de exercício sugere que os conflitos sociais se explicam por problemas de comunicação entre o poder e seus
opositores, não por antagonismos fundamentais. Uma hipótese perigosa...
POR SERGE HALIMI E PIERRE RIMBERT*

O
medo. Não o de perder uma
eleição, fracassar em “refor-
mar” ou ver derreter seus ativos
no mercado de ações, mas sim
da insurreição, da revolta, da destitui-
ção. Há meio século, as elites francesas
não tinham mais experimentado um
sentimento como esse. No sábado, 1º
de dezembro de 2018, ele de repente
congelou algumas consciências. “O
mais urgente é que as pessoas voltem
para casa”, disse aflita Ruth Elkrief, re-
pórter pop star da BFM TV. Nas telas
de sua rede de TV desfilavam imagens
de “coletes amarelos” determinados a
arrancar uma vida melhor.
Alguns dias depois, uma jornalista
do jornal L’Opinion, ligado ao patro-
nato, revelou em uma bancada de TV
o quanto a borrasca soprara forte:
“Todos os grandes grupos vão distri-
buir bônus, porque eles realmente fi-
caram com medo em um momento de
ter a cabeça sob espadas. Ah, sim, as
grandes empresas, quando houve o
terrível sábado, lá, com todos os estra-
gos, tinham chamado o chefe do Me-
def, Geoffroy Roux de Bézieux, dizen-
do a ele: ‘Libere tudo! Libere tudo,
porque senão...’. Eles se sentiam
ameaçados fisicamente”.
Sentado ao lado da jornalista, o di-
retor de um instituto de pesquisas
evocou, por sua vez, “grandes empre-
sários realmente muito preocupados”,
uma atmosfera “que parece com o que
li sobre 1936 ou 1968. Há um momento
em que dizemos a nós mesmos: ‘Você
© Flavia Bomfim

tem de saber liberar grandes somas,


em vez de perder o essencial’”.1 O se-
cretário-geral da Confederação Geral
do Trabalho (CGT), Benoît Frachon,
lembrou que, de fato, quando da Fren-
te Popular (1936-1938), durante as ne-
gociações de Matignon, que se segui- gem desconhecida das instituições, te- Tomados de pavor, perdem o san- dez suja, a aparência de um corpo mo-
ram a uma onda de greves inesperadas naz apesar da repressão, popular ape- gue frio, como Alexis de Tocqueville fado [...]. Ele parecia ter vivido em um
com ocupações de fábricas, os patrões sar da divulgação maldosa pela mídia quando evoca em suas Lembranças as esgoto e saído dele. Ele me dava a im-
tinham “cedido em todos os pontos”. sobre as depredações – provocou, por- jornadas de junho de 1848 – os traba- pressão de uma cobra da qual se pren-
Esse tipo de decomposição da clas- tanto, uma reação rica de precedentes. lhadores parisienses reduzidos à misé- de a cauda”.
se possuidora é raro, mas tem por coro- Nos momentos de cristalização so- ria foram massacrados por uma tropa Uma metamorfose similar de civili-
lário uma lição que atravessou a histó- cial, de luta de classes sem disfarces, que a burguesia no poder, persuadida dade em fúria ocorreu na época da Co-
ria: aqueles que tiveram medo não cada um deve escolher seu lado. O de que “só o canhão pode resolver as muna de Paris. E daquela vez ela atin-
perdoam nem os que os amedronta- centro desaparece, o pântano seca. questões de nosso século”,3 tinha mo- giu muitos intelectuais e artistas, às
ram nem os que foram testemunhas de E então, mesmo os mais liberais, os bilizado contra eles. Descrevendo o lí- vezes progressistas – mas de preferên-
seu medo.2 O movimento dos “coletes mais cultos, os mais distintos esque- der socialista Auguste Blanqui, Toc- cia em clima calmo. O poeta Leconte
amarelos” – duradouro, incontrolável, cem os maneirismos afetados do “vi- queville esquece as boas maneiras: “O de Lisle se lançou contra “essa liga de
sem liderança, falando uma lingua- ver junto”. ar doente, malvado, imundo, uma pali- todos os desclassificados, de todos os
4 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

incapazes, de todos os invejosos, de to- tir, sem pensar” (BFM TV, 8 dez.). “Os leitor. “O problema patológico dos po-
dos os assassinos, de todos os ladrões”. baixos instintos se impõem ao despre- bres: sua capacidade de viver além de
Para Gustave Flaubert, “o primeiro re- zo da civilidade mais elementar”, alar- seus recursos”, acrescentou um segun-
médio seria acabar com o sufrágio uni- mou-se por sua vez o plebeu Vincent do. “Não imagine fazer deles pesquisa-
versal, a vergonha do espírito huma- Trémolet de Villers (Le Figaro, 4 dez.). dores, engenheiros ou inventores. Es-
no”. Tranquilizado pela punição (20 Porque esse “movimento de rea- sas quatro crianças serão como seus
O olhar da cidadania mil mortes e quase 40 mil prisões), cionários corporativistas e facciosos” pais: um fardo para a sociedade”, ata-
Émile Zola tiraria daquilo as lições pa- (Jean Quatremer), liderado por uma lhou um terceiro. “Mas o que eles espe-
ra o povo de Paris: “O banho de sangue “minoria odiosa” (Denis Olivennes), é ram do presidente da República?”, in-
que ele acabou de tomar foi talvez de facilmente assimilado a um “aumento surgiu-se outro: “Que ele viaje todos os
uma horrível necessidade para acal- repentino de raiva e de ódio” (edito- dias a Sens para se certificar de que Jes-
mar algumas de suas febres”.4 rial do Le Monde), em que as “hordas sica toma pílula direitinho?!”. A jorna-

Na luta Da mesma forma, em 7 de janeiro,


Luc Ferry, formado em Filosofia e
de gente baixa, de saqueadores”, “cor-
roídos por seus ressentimentos como
lista autora da matéria cambaleou
diante desse “dilúvio de ataques” às
Ciência Política, mas também ex-mi- por pulgas”, (Franz-Olivier Giesbert) “ênfases paternalistas”.7 “Paternalis-
nistro da Educação, poderia ter em dão livre curso às suas “pulsões mal- tas”? Não se tratava, no entanto, de

pela mente os excessos de personagens pe-


lo menos tão distintos quanto ele
sãs” (Hervé Gattegno). “Quantas mor-
tes esses novos reacionários terão em
uma disputa familiar: os leitores de um
jornal conhecido por sua moderação
quando a repressão dos “coletes ama- sua consciência?”, alarmou-se Jac- soavam mais como o botão de alarme
relos” (ler a página 4), muito indolente ques Julliard. de uma guerra de classes.

construção a seu ver, arrancou dele – na Radio


Classique... – esta injunção aos guar-
diões da paz: “Que eles possam usar
Preocupado ele também com “as
execrações nuas e cegas à sua própria
vontade”, Bernard-Henri Levy, no en-
ESCLARECIMENTOS SOCIOLÓGICOS
O movimento dos “coletes amare-
suas armas de uma vez por todas” con- tanto, aceitou assinar no... Le Parisien los” marca, de fato, o fracasso de um

de uma
tra “essa espécie de bandidos, essa es- uma petição, adornada com os nomes projeto nascido no final da década de
pécie de bastardos de extrema direita de Cyril Hanouna, Jérôme Clément e 1980 e defendido desde então pelos di-
ou de extrema esquerda ou dos bairros Thierry Lhermitte, para convidar os fusores do social-liberalismo: o de uma
que vêm agredir o policial”. Então Fer- “coletes amarelos” a “transformar a “República do centro”, que teria acaba-

sociedade
ry foi almoçar. raiva em debate”. Em vão... Mas, gra- do com as convulsões ideológicas ex-
Normalmente, o campo do poder ças a Deus, suspira Pascal Bruckner, “a pulsando as classes populares do deba-
se desdobra em componentes distin- polícia, com sangue frio, salvou a Re- te público como instituições políticas.8
tos e às vezes concorrentes: altos fun- pública” contra “os bárbaros” e a “es- Ainda majoritários, mas muito preocu-
cionários franceses ou europeus, inte- cória encapuzada”.5 pados, eles deveriam ceder o lugar – to-
mais justa, lectuais, patrões, jornalistas, direita
conservadora, esquerda moderada. É
Do Europe Écologie – Les Verts
(EELV) aos escombros do Partido So-
do ele – à burguesia culta.
A “virada do rigor” na França (1983),
nesse ambiente agradável que ocorre cialista, da Confederação Francesa a contrarrevolução liberal promovida
uma alternância calibrada, com seus Democrática do Trabalho (CFDT) aos na Nova Zelândia pelo Partido Traba-

solidária e rituais democráticos (eleições, depois


hibernação). Em 26 de novembro de
dois apresentadores do programa ma-
tinal da França Inter (uma “parceria
lhista (1984) e, no final dos anos 1990, a
“terceira via” de Tony Blair, Bill Clinton
1900, em Lille, o líder socialista Jules de inteligência”, de acordo com a dire- e Gerhard Schröder pareceram reali-
Guesde já dissecava esse pequeno jogo toria da emissora), todo um universo zar esse projeto. À medida que a social-

sustentável. político ao qual a “classe capitalista”


devia sua longevidade no poder: “Nós
social uniu forças para atingir as per-
sonalidades políticas solidárias ao
-democracia se enrodilhava no apara-
to estatal, ganhava asas nos meios de
nos dividimos em burguesia progres- movimento. Seu erro? Atacar a demo- comunicação e colocava de joelhos os
sista e burguesia republicana, burgue- cracia sem compartilhar seu medo. conselhos das grandes corporações,
sia clerical e burguesia livre-pensado- Como combater esses estorvos? Usan- ela relegava às margens do jogo políti-
ra, de modo que uma facção vencida do um velho artifício: procurar tudo co sua base popular do passado. Nos
sempre poderia ser substituída no po- que poderia associar um porta-voz dos Estados Unidos, não foi surpreendente
der por outra facção da mesma classe “coletes amarelos” a um ponto de vista que, diante de uma assembleia de pro-
Quartas, às 17h, igualmente inimiga. É o navio com an- que a extrema direita teria um dia de- vedores de fundos eleitorais, Hillary
Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM teparos estanques que pode fazer água fendido ou retomado. Mas, sendo as- Clinton tenha classificado na “cesta de
de um lado e que nem por isso se torna sim, deveríamos também encorajar a pessoas dignas de piedade” os apoia-
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
passível de afundar”. Acontece, no en- violência contra os jornalistas, alegan- dores de seu adversário. Mas a situa-
tanto, de o mar se agitar e de a estabili- do que Marine Le Pen, em seus votos à ção francesa é pouca coisa melhor. Em
Quartas, à meia-noite dade do navio ser ameaçada. Nesse ca- imprensa, viu nisso “a própria negação um livro de estratégia política, Domi-
TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da so, as brigas devem desaparecer diante da democracia e do respeito pelo outro nique Strauss-Kahn, um socialista que
da necessidade de uma frente comum. sem o qual não há troca construtiva, já formou muitas pessoas próximas do
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
Em relação aos “coletes amarelos”, nem vida democrática, nem vida so- atual presidente francês, explicava já
a burguesia fez um movimento desse cial”? (17 jan.) há dezessete anos que seu partido dali
tipo. Seus porta-vozes costumeiros, Nunca o sobressalto do bloco bur- em diante tinha de confiar “nos mem-
que, em tempos tranquilos, buscam guês que forma a base eleitoral de bros do grupo intermediário, compos-
manter a aparência de um pluralismo Emmanuel Macron6 se revelou de for- to em imensa parte de assalariados,
de opiniões, associaram com uma ma tão crua como no dia em que o Le prudentes, informados e educados,
observatorio3setor mesma voz os manifestantes a um Monde publicou o retrato empático de que formam a espinha dorsal de nossa
bando de racistas, antissemitas, ho- uma família de “coletes amarelos”, “Ar- sociedade. Eles garantem a estabilida-
mofóbicos, facciosos, conspiradores. naud et Jessica, la vie à l’euro près” [Ar- de, por causa de [...] seu apego à ‘eco-
Mas, principalmente, ignorantes. “‘Co- naud e Jessica, a vida com cerca de um nomia de mercado’”. Quanto aos ou-
observatorio3setor letes amarelos’: a estupidez vai ven- euro] (16 dez.). Mil comentários furio- tros – menos “prudentes” –, seu destino
cer?”, perguntou Sébastien Le Foll na sos invadiram o site do jornal. “Casal foi selado: “Do grupo mais desfavore-
Le Point (10 jan. 2019). “Os verdadeiros não muito esperto... A verdadeira misé- cido, infelizmente nem sempre pode-
www. observatorio3setor.org.br ‘coletes amarelos’”, confirmou o edito- ria não seria, em alguns casos, mais mos esperar uma participação serena
rialista Bruno Jeudy, “lutam sem refle- cultural que financeira?”, avaliou um em uma democracia parlamentar. Não
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5

que ele não tenha interesse pela histó- dos “extremos” qualquer posição que União Europeia e na globalização. ‘imigração’”. A ironia seria que, depois
ria, mas suas irrupções às vezes se ma- questionasse o “círculo da razão” libe- Claro, os movimentos aprendem de ter feito sermões aos governos “não
nifestam pela violência”.9 Nós nos ral – uma expressão do ensaísta Alain andando; eles estabelecem novos ob- liberais” do planeta, Macron acabasse
preocuparíamos, portanto, com essas Minc. Assim, a legitimidade política jetivos à medida que percebem obstá- por plagiar suas receitas.
populações apenas uma vez a cada não seria mais baseada em uma ma- culos imprevistos e oportunidades
cinco anos, geralmente para culpá-las neira de ver o mundo, capitalista ou inesperadas: na época dos Estados Ge- *Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é
pelas pontuações da extrema direita. socialista, nacionalista ou internacio- rais, em 1789, os republicanos eram da direção do Le Monde Diplomatique.
Depois elas retornariam ao nada e à nalista, conservadora ou emancipado- apenas um punhado na França. Mar-
invisibilidade – a segurança das estra- ra, autoritária ou democrática, mas na car sua solidariedade com os “coletes
das ainda não exige que todos os mo- dicotomia entre razoáveis e radicais, amarelos” é, portanto, atuar para que
toristas tenham um colete amarelo. abertos e fechados, progressistas e po- o aprofundamento de sua ação se faça
1 L’Info du vrai, Canal Plus, 13 dez. 2018.
A estratégia funcionou. As classes pulistas. A recusa em distinguir direita no bom sentido, o da justiça, da eman-
2 Cf. Louis Bodin e Jean Touchard, Front populaire
populares estão excluídas da repre- e esquerda, uma recusa que os profis- cipação – sabendo, no entanto, que ou- 1936 [Frente Popular: 1936], Armand Colin, Paris,
sentação política (ler artigo na página sionais da representação reprovam tros estão trabalhando pelo contrário 1961.
3 Auguste Romieu, Le Spectre rouge de 1852 [O
6) e também do coração das metrópo- nos “coletes amarelos”, reproduz, em e esperam que a raiva social vá benefi-
espectro vermelho de 1852], Ledoyen, Paris,
les: com 4% dos novos proprietários suma, nas classes populares, a política ciar a extrema direita nas eleições eu- 1851, citado por Christophe Ippolito, “La Fabrique
trabalhadores ou empregados a cada de estabelecer a confusão seguida há ropeias em maio próximo. du discours politique em 1848 dans L’Éducation
sentimentale” [A fábrica do discurso político em
ano, a Paris de 2019 se assemelha à décadas pelo bloco burguês. Tal resultado seria favorecido pelo
1848 em A educação sentimental], Op. Cit., n.17,
Versalhes de 1789. Excluídas, por fim, isolamento político dos “coletes ama- Pau, 2017.
das telas de televisão: 60% das pessoas relos”, que o governo e a mídia traba- 4 Paul Lidsky, Les Écrivains contre la Commune [Os
escritores contra a Comuna], La Découverte, Pa-
que aparecem nos noticiários perten- lham para tornar infrequentados, exa-
ris, 1999 (1. ed.: 1970).
cem aos 9% dos mais diplomados.10 E, A estratégia funcionou. gerando o escopo de cada uma de suas 5 Respectivamente: Twitter, 29 dez. 2018; Marianne,
aos olhos do chefe de Estado, elas não observações deslocadas de contexto. Paris, 9 jan. 2019 e 4 dez. 2018; Le Point, Paris, 13
existem. A Europa, ele acredita, não
As classes populares O eventual sucesso dessa empreitada dez. 2018 e 10 jan. 2019; The Sunday Journal, Pa-

passa de um “velho continente peque- estão excluídas de desqualificação validaria a estraté-


ris, 9 dez. 2018; Le Figaro, Paris, 7 jan. 2019; Le
Point, 13 dez. 2018; Le Parisien, 7 dez. 2018; Le
no-burguês sentindo-se seguro no da representação gia seguida por Macron desde 2017, Figaro, 10 dez. 2018.
6 Ler Bruno Amable, “Majorité sociale, minorité poli-
conforto material”.11 Porém, tem o se- política e também que consiste em resumir a vida políti-
tique” [Maioria social, minoria política], Le Monde
guinte: esse mundo social obliterado, ca a um enfrentamento entre liberais
decretado relutante ao esforço escolar
do coração e populistas.12 Uma vez que essa cli-
Diplomatique, mar. 2017; e, do mesmo autor, com
Stefano Palombarini, L’Illusion du bloc bourgeois.
e à formação e, portanto, responsável das metrópoles vagem tenha sido imposta, o presi- Alliances sociales et avenir du modèle français [A
ilusão do bloco burguês. Alianças sociais e o futuro
por seu destino, ressurgiu sob o Arco dente da República poderia amalga- do modelo francês], Raisons d’Agir, Paris, 2017.
do Triunfo e na Champs-Élysées. Con- mar num mesmo opróbrio seus 7 Faustine Vincent, “Pourquoi le quotidien d’un cou-
ple de ‘gilets jaunes’ dérange les lecteurs” [Por que
fuso e chocado, o conselheiro de Esta- Neste inverno, as reivindicações adversários de direita e esquerda, e
a vida cotidiana de um casal de ‘coletes amarelos’
do e constitucionalista Jean-Éric por justiça fiscal, melhoria do padrão então associar qualquer contestação perturba os leitores”], Le Monde, 20 dez. 2018.
Schoettl diagnosticou no site do Figaro de vida e rejeição ao autoritarismo do interna à ação de uma “internacional 8 Ler Laurent Bonelli, “Les architectes du social-li-
béralisme” [Os arquitetos do social-liberalismo],
(11 jan. 2019) uma “recaída em uma poder ocupam um lugar central, mas a populista” em que, na companhia do
Le Monde Diplomatique, set. 1998.
forma primitiva de luta de classes”. luta contra a exploração salarial e a húngaro Viktor Orbán e do italiano 9 Dominique Strauss-Kahn, La Flamme et la Cendre
propriedade social dos meios de pro- Matteo Salvini, estariam lado a lado, [A chama e a cinza], Grasset, Paris, 2002. Ler Ser-
ge Halimi, “Flamme bourgeoise, cendre proléta-
BARREIRA IDEOLÓGICA dução está praticamente ausente. Po- segundo ele, conservadores polone-
rienne” [Chama burguesa, cinza proletária], Le
Se o projeto de retirar do campo rém, nem o restabelecimento do im- ses e socialistas britânicos, insub- Monde Diplomatique, mar. 2002.
político a maioria da população fra- posto de solidariedade sobre a riqueza, missos [insoumis] franceses e nacio- 10 “Baromètre de la diversité de la société française.
Vague 2017” [Barômetro da diversidade da socie-
cassou, outro capítulo do programa nem o retorno aos 90 quilômetros por nalistas alemães...
dade francesa. Onda 2017], Conselho Superior
das classes dominantes – aquele que hora nas estradas secundárias, nem o Seja como for, o presidente francês do Audiovisual, Paris, dez. 2017.
pretendia tornar imprecisos os pontos controle mais rigoroso dos relatórios terá de resolver um paradoxo. Apoiado 11 “Emmanuel Macron – Alexandre Duval-Stalla – Mi-
chel Crépu, l’histoire redevient tragique (une ren-
de referência entre direita e esquerda de despesas das autoridades eleitas, numa base social restrita, ele só pode-
contre)” [Emmanuel Macron – Alexandre Duval-S-
– experimentou, em contrapartida, nem mesmo o Referendo da Iniciativa rá colocar em prática suas “reformas” talla – Michel Crépu, a história se torna trágica
uma sorte inesperada. A ideia inicial, Cidadã questionariam a subordinação de seguro-desemprego, previdência e novamente (um encontro)], La Nouvelle Revue
Française, n.630, Paris, maio 2018.
que se tornou dominante após a queda dos empregados na empresa, a distri- serviço público ao preço de um autori-
12 Ler “Libéraux contre populistes, un clivage trom-
do Muro, consistia em empurrar de buição fundamental da renda ou o ca- tarismo político reforçado, repressão peur” [Liberais contra populistas, uma clivagem
volta para as margens desacreditadas ráter fictício da soberania popular na policial e um “grande debate sobre a enganosa], Le Monde Diplomatique, set. 2018.
6 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

ESCALADA REPRESSIVA CONTRA OS “COLETES AMARELOS”

Das violências policiais


às violências judiciárias
Atordoado por um movimento social inédito, o governo francês lança uma ofensiva legislativa, arriscando impedir a liberdade
de manifestação. Ele estimula a condenação da violência, exceto quando esta é de sua responsabilidade. Na falta de resultados
concretos, o governo aposta no desgaste e enseja uma repressão sem precedentes desde os anos 1960
POR RAPHAËL KEMPF*

E
m uma visita à cidade de Carcas- DISSUADIR AS MANIFESTAÇÕES ao ouvido. [...] Como se trata de um la primeira vez na vida. Pode-se per-
sonne, em 15 de janeiro de 2019, Em seu relatório de dezembro de dispositivo pirotécnico, investidas na guntar se a obstinação do governo em
Christophe Castaner desempe- 2017 consagrado ao tema,3 o defensor cabeça ou no tecido facial não podem utilizar armas e técnicas que podem
nhou seu papel de ministro do Jacques Toubon retomou os princípios ser totalmente excluídas”. O Estado, matar ou mutilar não se trata de uma
Interior: “Não conheço nenhum poli- tradicionais. Empreendida por unida- portanto, incorre nesses riscos aos estratégia deliberada para dissuadir ci-
cial, nenhum integrante das Forças des especializadas – empresas repu- manifestantes com todo conhecimen- dadãos de se manifestarem.
Armadas que atacou os ‘coletes ama- blicanas de segurança (CRS) e esqua- to de causa. No fim de novembro e iní- Desde o início do movimento, San-
relos’; por outro lado, conheço poli- drões do Exército –, a manutenção da cio de dezembro de 2018, diversos ad- drine Pêcheur6 faz parte de uma con-
ciais e integrantes das Forças Armadas ordem se aplicaria a uma lógica de vogados, entre eles o autor destas centração perto de sua casa, entre
que utilizam meios de defesa”. A frase ação coletiva e hierarquizada. O uso linhas, escreveram a Castaner e ao pri- Douai e Valenciennes. Há quase qua-
arrancou uma gargalhada de Antonio da força não pode reprimir iniciativas meiro-ministro Édouard Philippe pe- renta anos, essa assistente maternal
Barbet. Aos 40 anos, ele vive perto de individuais, exceto em casos de legíti- dindo que essas granadas fossem ba- cria três crianças com o marido, ven-
Compiègne, no departamento de Oise, ma defesa, e deve responder a princí- nidas. Ainda aguardam uma resposta. dedor em uma grande fábrica. Com os
onde ocupava até dois meses atrás um pios de “absoluta necessidade e grada- Utilizado milhares de vezes desde “coletes amarelos”, descobriu o senti-
cargo como interino, no qual ganhava ção, assim como de reversibilidade”. A meados de novembro contra manifes- do de um engajamento coletivo e polí-
um salário mínimo. Presente no cen- intervenção de unidades não especia- tantes, o “lançador de balas de defesa” tico. No início de janeiro, deparou-se
tro do movimento desde o início dos lizadas, em particular empresas de se- (LBD) carrega um nome no mínimo com a violência da polícia durante
“coletes amarelos”, manifestou-se em gurança e intervenção (CSI), e as bri- eufemístico. Em 5 de julho de 2018, a uma manifestação em Lille. Nenhum
Paris pela primeira vez no dia 24 de gadas anticriminalidade (BAC) Corte Administrativa de Nantes consi- ferimento grave, mas sofreu os efeitos
novembro. No fim da tarde, em uma mobilizadas como reforço colocam derou o emprego dessa arma “perigo- do gás lacrimogêneo e a nova convic-
rua então calma nas proximidades da em xeque esse esquema. “Geralmente so” durante uma manifestação em ção de que as forças da ordem podem
Champs-Elysées, as forças da ordem sem formação em relação à doutrina e 2007: um garoto de 16 anos que sim- ser realmente perigosas. No dia 12 de
lançaram uma arma, muito provavel- aos princípios de manutenção da or- plesmente estava próximo ao lançador janeiro, ela retornou a Lille munida de
mente uma granada de gás lacrimogê- dem”, dizia o relatório, essas forças de projéteis foi atingido, e o Estado, óculos de mergulho, uma máscara e
neo do tipo GLI-F4. O artefato explo- buscam interpelar e se comportam responsabilizado e condenado a pagar frascos de soro fisiológico. Mas não
diu no pé de Barbet. Dois meses pelo contato, em vez de seguir os prin- uma graúda indenização.5 Desde de- chegou em tempo de se juntar à mani-
depois, ele continua se movimentando cípios de controle e distância. zembro de 2017, o defensor julgava as festação: interpelada fora do cortejo
com muletas, e seu contrato de interi- Tal transformação decorre de uma características e condições de empre- junto a três companheiros, foi detida,
no não foi renovado. decisão política. Nessas condições, o go do LBD “inadaptadas à utilização levada para a delegacia de polícia de
Jornalista independente, David ferimento no pé de Barbet, assim como em operações de manutenção da or- Lille e mantida em observação. Moti-
Dufresne registra de forma metódica, outras centenas de ferimentos graves e dem”. E concluía que “o artefato deve vo: participação em “um agrupamen-
no Twitter, as violências policiais sofri- mutilações, em particular nos olhos e ser retirado do armamento das forças to, mesmo que temporário, caracteri-
das pelos “coletes amarelos” desde o nas mãos, registradas desde o início do de segurança no âmbito de operações zado por um ou mais fatos materiais
início do movimento. No dia 19 de ja- movimento dos “coletes amarelos”, de manutenção da ordem”. Esse alerta de violências voluntárias contra pes-
neiro, na noite do ato X, ele já havia não pode ser considerado acidente de foi novamente enviado em janeiro de soas ou de destruição ou degradação
contabilizado 330, com imagens com- autodefesa. 2019. O apelo teria sido inútil mesmo de bens”.7 Esse delito foi criado pela lei
probatórias. Em uma obra sobre a ma- Em um relatório conjunto4 redigi- se aceito: em 2017, o chefe de polícia de de 2 de março de 2010, cujo redator é
nutenção da ordem, em 2007,1 ele reto- do em 2014, a Inspeção Geral da Polí- Paris havia afirmado a Toubon que ha- Christian Estrosi, deputado dos Repu-
mou as palavras do ministro do cia e das Forças Armadas lembrava via “decidido proibir o uso do LBD blicanos, e visa combater “grupos vio-
Interior da época, Dominique de Vil- que a França era – e permanece – o 40x46 nas operações de manutenção lentos” em “bairros considerados vul-
lepin, sobre a doutrina hexagonal de único país europeu a utilizar muni- da ordem por sua periculosidade e seu neráveis”. Tratava-se de uma punição
manter os manifestantes a distância: ções explosivas em operações de ma- caráter inadequado para esse tipo de prévia ao cometimento de uma infra-
“Essa visão de ordem pública faz parte nutenção da ordem, notadamente as contexto” – decisão sem nenhuma ção, partindo do postulado implícito
do espírito francês”. Uma década de- granadas de gás lacrimogêneo do tipo consequência prática. de que jovens reunidos no espaço pú-
pois, pesquisadores denunciam o “es- GLI-F4: “Os dispositivos que causam Essas armas, assim como o com- blico não podem ter nenhuma outra
plêndido isolamento” da doutrina lesões por ondas expansivas produzi- portamento às vezes inapropriado das intenção além de fomentar confusão.
francesa de manutenção da ordem, dos com substância explosiva ou de- forças da ordem, provocaram centenas
ainda baseada na repressão e surda flagrante são suscetíveis de mutilar e de ferimentos aos “coletes amarelos”. O PENAS CADA VEZ MAIS DURAS
aos métodos de diálogo e desescalada ferir mortalmente um indivíduo, en- caráter excepcional desse balanço sus- Pouco utilizado durante anos, esse
da violência, colocadas em prática em quanto aquelas de efeito sonoro inten- citou a cólera de vários manifestantes texto foi retomado por iniciativa do
outros países europeus.2 so podem provocar lesões irreversíveis que, com frequência, saíam às ruas pe- parlamentar Jean-Jacques Urvoas8 na
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7

procurador criticar os “coletes amare-


los” por saírem de suas casas para se
manifestar. Essa violência simbólica
lhes nega implicitamente o direito de
ir até a capital para participar das
manifestações.
Essas condenações, obtidas graças
ao uso extensivo do delito de agrupa-
mento em detrimento do princípio de
interpelação na forma estrita como fi-
gura do Direito Penal, desempenham
de fato um papel de manutenção da or-
dem. Elas se apoiam na violência poli-
cial para acabar com a mobilização e
impedir o exercício de direitos funda-
mentais. Mas, se a polícia e os tribunais
imprimem medo, seus abusos reforçam
também a raiva e a determinação des-
ses neomanifestantes.
“Castaner mente!”, lança Barbet,
olhando para o pé ainda dolorido. “Eu
mesmo, que sou um dos primeiros fe-
ridos, criei uma página no Facebook
exclusivamente gerida por atingidos11
e tento recolher testemunhos das víti-
mas.” Seu acidente, ou agressão, de-
pendendo do ponto de visa, é para ele
o início e um engajamento contra as
violências policiais. E, se não pode se
manifestar desde 24 de novembro, es-
pera poder ir a Paris no dia 2 de feve-
reiro para participar de uma manifes-
tação de “coletes amarelos” feridos
que está ajudando a organizar.
© Flavia Bomfim

*Raphaël Kempf é advogado da Ordem dos


Advogados de Paris e defensor de vários “co-
letes amarelos”.

1 David Dufresne, Maintien de l’ordre [Manutenção


da ordem], Fayard, Paris, 2013 (1. ed.: 2007).
2 Olivier Fillieule e Fabien Jobard, “Un splendide iso-
época dos movimentos sociais contra que os “coletes amarelos” exercessem consequência jurídica, ele compare- lement. Les politiques françaises du maintien de
l’ordre” [Um esplêndido isolamento. As políticas
a lei trabalhista, em 2016. Desde então, seu direito de se manifestar. ceu sozinho e foi condenado em pri- francesas de manutenção da ordem], La Vie des
os procuradores da República perse- Dois dias depois, em 10 de dezem- meira instância a seis meses de prisão Idées, 24 maio 2016. Disponível em: <https://la-
guem manifestantes com esse caráter bro, Pierrick P.10 chega atordoado à au- (a serem cumpridos se reincidir), ape- viedesidees.fr>.
3 “Le maintien de l’ordre au regard des règles de
“prévio”, sem que tenham cometido diência do tribunal de Paris. Depois sar do delito de agrupamento suposta- déontologie” [A manutenção da ordem vista sob a
nenhum ato de violência ou degrada- de 48 horas de detenção, foi julgado – mente ser uma intenção coletiva. Deci- ética], relatório da Defensoria, Paris, dez. 2017.
ção. Com o movimento dos “coletes sozinho – pelo famoso delito de “par- diu não apelar para não passar outra 4 “Rapport relatif à l’emploi des munitions en opéra-
tions de maintien de l’ordre” [Relatório relativo ao
amarelos”, em particular no dia 8 de ticipação de um grupo com objetivo vez pela experiência traumatizante de emprego de munições de operações de manuten-
dezembro, o uso desse “delito de agru- de cometer violências ou degrada- comparecer diante de juízes. Se por ção da ordem], Inspeção Geral da Polícia Nacio-
pação” tornou-se industrial, conduzin- ções”. Vindo da Bretanha com quatro um lado não foi proibido de se mani- nal (IGPN) e Inspeção Geral das Forças Armadas
Nacionais (IGGN), Ministério do Interior, Paris,
do a um número jamais observado de amigos, esse ex-trabalhador da indús- festar, por outro se recusa a participar nov. 2014.
interpelações e detenções preventivas. tria suína está parado desde um grave das manifestações com medo de ser 5 Processo n.17NT00411 relativo a Pierre Douillard-
No fim de novembro, em uma cir- acidente ocorrido na fábrica em feve- pego novamente. Atualmente, fre- -Lefèvre, autor de L’Arme à l’œil. Violences d’État et
militarisation de la police [Arma no olho. Violências
cular especial sobre os “coletes amare- reiro de 2016. Para ele, assim como os quenta esporadicamente as concen- de Estado e militarização da polícia], Edições Le
los”, o ministro da Justiça, Nicole Bel- outros, o movimento dos “coletes trações perto de sua casa. Bord de l’Eau, Lormont, 2016.
loubet, convidou os magistrados a amarelos” é uma forma de clamar co- Ainda é cedo para analisar as esta- 6 Nome fictício.
7 Artigo 222-14-2 do Código Penal.
autorizar policiais a controlar e revistar letiva e politicamente sua cólera. In- tísticas de condenações dos “coletes 8 “Circulaire du 20 septembre 2016 relative à la
qualquer indivíduo nos sábados de ma- terpelado com seus amigos no dia 8 de amarelos”. Contudo, há indícios de lutte contre les infractions commises à l’occasion
nifestação em Paris, em outras grandes dezembro, às 7 horas da manhã, em que as penas pronunciadas em Paris des manifestations et autres mouvements collec-
tifs” [Circular de 20 de setembro de 2016 relativa
cidades e nos eixos que conduzem a um estacionamento longe do oeste sejam cada vez mais duras. Os juízes à luta contra as infrações cometidas durante ma-
elas.9 O caráter arbitrário da imensa parisiense, onde se desenrolaria a ma- não hesitam em pronunciar condena- nifestações e outros movimentos coletivos], Lé-
maioria dessas privações de liberdade nifestação, foi encontrado com mate- ções de prisão em regime fechado e, de gifrance. Disponível em: <http://circulaires.legi-
france.gouv.fr>.
aparece na comparação entre o núme- rial de proteção (notadamente um ca- forma quase sistemática, proibições 9 “Circulaire du 22 novembre 2018 relative au traite-
ro de interpelações e o número de con- pacete e uma proteção para o torso de entrada na capital por vários anos ment judiciaire des infractions commises en lien
denações. Das 1.082 pessoas interpela- que ele usa habitualmente para prati- aos interpelados de outras regiões do avec le mouvement de contestation dit ‘des gilets
jaunes’” [Circular de 22 de novembro de 2018 re-
das na capital no dia 8 de dezembro, a car motocross) e, em seu carro, um país. Ao desequilíbrio social – magis- lativa ao tratamento judiciário de infrações cometi-
grande maioria foi colocada em liber- cassetete. Todos os cinco passaram o trados julgando trabalhadores, em- das em relação ao movimento de contestação
dade sem desdobramentos judiciários. fim de semana detidos. pregados e desempregados – soma-se chamado “coletes amarelos”], Légifrance. Disponí-
vel em: <http://circulaires.legifrance.gouv.fr>.
Esses procedimentos abusivos não ti- Enquanto os quatro amigos foram a segregação geográfica. Assim, não é 10 Nome fictício.
nham outro objetivo além de impedir colocados em liberdade sem nenhuma raro escutar em uma audiência um 11 <www.facebook.com/FranceBlesseeGJ>.
8 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

O PRESIDENTE DOS ULTRARRICOS

A casta que manda na França


Especialistas em burguesia e oligarquia francesas, os sociólogos Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot publicam
uma crônica social da França de Emmanuel Macron. Sua síntese dá vertigem. Ela explicita o desprezo elitista de um
presidente recém-eleito e o apego ao poder de uma casta de ultrarricos – dois detonadores do levante francês
POR MICHEL PINÇON E MONIQUE PINÇON-CHARLOT*

esse tipo de patrimônio – uma das pri-


meiras medidas de Macron, cujo cus-
to, é bom lembrar, é estimado em 4,6
bilhões de euros por ano para as finan-
ças públicas.
Ministro da Transição Ecológica e
Solidária, Nicolas Hulot ocupava o se-
gundo lugar no ranking, com um pa-
trimônio de 7,2 milhões de euros,
composto de uma casa de 300 metros
quadrados na Córsega, avaliada em 1
milhão de euros, e de diversos bens
imobiliários nas regiões de Savoie e
Côtes-d’Armor, por um valor de 1,9 mi-
lhão de euros. Os valores mobiliários
representam 1,2 milhão, e a empresa
Éole, que recebe seus direitos autorais
e os dos produtos derivados Ushuaia,
foi estimada em 3,1 milhões de euros.
Sua declaração também indica seis
carros, um barco, uma moto e uma
scooter elétrica.
Ministra da Cultura no governo de
Édouard Philippe (nomeado primeiro-
-ministro por Macron em maio de
2017) e proprietária da editora Actes
Sud, Françoise Nysse mencionava
© Alpino

mais de 600 mil euros em bens imobi-


liários e 4 milhões de euros por sua
empresa. Agnès Buzyn, ministra da
Saúde, encabeça um patrimônio de
pouco mais de 3 milhões de euros. Flo-

E
ntre o resultado de Emmanuel France Insoumise, divulgou um gráfi- UM “GOVERNO DE RICOS” rence Parly, ministra do Exército, rei-
Macron no primeiro turno da co que mostrava a composição so- Em 2017, Macron se cercou, logo de vindica um patrimônio de mais de 2
eleição presidencial, em 7 de cioprofissional da nova Assembleia início, de um primeiro “governo de ri- milhões de euros, com um aparta-
maio de 2017, e o resultado do Nacional. Esta pende claramente para cos”, com quinze de 32 ministros ou mento parisiense de 200 metros qua-
movimento La République en Marche o lado dos executivos e das profissões secretários de Estado milionários.1 drados e uma residência secundária
(LRM) no primeiro turno das eleições intelectuais superiores, que represen- Muriel Pénicaud, ministra do Tra- na região de Loiret.
legislativas, em 11 de junho do ano se- tam 76% dos deputados, enquanto es- balho, declarou o patrimônio mais al- Ainda que esses cinco ministros
guinte, houve uma erosão de mais de 2 sa mesma categoria socioprofissional to, com mais de 7,5 milhões de euros. formassem o primeiro pelotão desse
milhões de votos. só dizia respeito, em 2017, a 18% da po- Ela é proprietária de uma casa na re- primeiro governo, seus colegas esta-
Além dessa mudança de tendência, pulação ativa, segundo o Instituto Na- gião Hauts-de-Seine estimada em 1,3 vam longe de se encontrar na miséria.
a abstenção bateu recordes no segun- cional de Estatísticas e de Estudos milhão de euros e de uma residência Alguns exemplos: Nathalie Loiseau,
do turno das eleições legislativas: mais Econômicos (Insee). secundária de 340 mil euros na região ministra encarregada das relações eu-
de 20 milhões de eleitores, ou seja, Sem surpresas, na outra ponta da da Somme. Mas, como é de costume ropeias, declarou um patrimônio de
mais da metade dos inscritos, preferi- escala social é o inverso. Os 20,8% de nas grandes fortunas, a maior parte do cerca de 1,9 milhão de euros. Philippe
ram, nesse dia, ir pescar. O LRM con- operários da sociedade francesa têm seu patrimônio, 5,9 milhões de euros, é também milionário, com um patri-
seguiu a proeza de obter, com dificul- apenas 0,2% de representação. Mesma é constituída de valores mobiliários: mônio estimado em 1,7 milhão de eu-
dade, 7.826.432 votos, 308 cadeiras na constatação para os trabalhadores as- ações, obrigações, contratos de seguro ros, composto de um apartamento em
Assembleia – ou seja, uma maioria ab- salariados, com respectivamente de vida... Apostamos que aquela que Paris (1,25 milhão de euros) e outro na
soluta que permite que Macron consi- 27,2% na população ativa e 4,58% dos desconstruiu o direito do trabalho região da Seine-Maritime avaliado em
ga aprovar seu programa neoliberal. deputados; e, para as profissões inter- desfavorecendo os trabalhadores deve 400 mil euros. Os valores mobiliários
Em julho de 2017, François Ruffin, mediárias, 25,7% dos ativos e 6,3% da ter apreciado a supressão do imposto de seu patrimônio são de cerca de 56
novo parlamentar do movimento La Assembleia. de solidariedade sobre a fortuna sobre mil euros. Bruno Le Maire, ministro
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9

da Economia, declarou partes de uma tra do Trabalho, exercia antes as fun- pequenos escândalos explodem na
empresa, avaliadas em 1,5 milhão de ções de diretora de recursos humanos imprensa, mas a árvore oculta a flores-
UM MINISTRO DA CULTURA
euros, e cerca de 168 mil euros em da Danone. Já seu diretor de gabinete ta. Quando de sua entrada no governo,
CORPORATIVA
aplicações financeiras. Vinham em encarregado do social, Antoine Fou- Buzyn renunciou à tutela do Instituto
seguida Christophe Castaner, então chet, trabalhava antes como diretor- Nacional da Saúde e da Pesquisa Mé-
porta-voz do governo (1,34 milhão de
euros), Sophie Cluzel, secretária de
-geral adjunto do Movimento das Em-
presas da França (Medef).
dica (Inserm) porque esta era realiza-
da por seu marido, Yves Lévy. Da mes-
N omeado ministro da Cultura e
da Comunicação em 16 de ou-
tubro de 2018, Franck Riester, ex-
Estado, encarregada das pessoas com ma forma, depois de 10 de julho de -deputado da União por um Movi-
deficiência (1,33 milhão de euros), 2018, Myssen, coproprietária da edito- mento Popular (UMP) da região
Mounir Mahjoubi, secretário de Esta- ra Actes Sud, criada por seu pai e diri- Seine-et-Marne, é diplomado pelo
do encarregado das novas tecnologias O pertencimento gida por muito tempo por ela, recebeu Instituto Superior de Gestão (ISG) e
titular de um mestrado de Gestão
(1,26 milhão de euros), Jacqueline de classe não ordens de não cuidar mais do setor do
das Coletividades Territoriais pelo
Gourault, ministra junto ao ministro livro, por pedido da Alta Autoridade
do Interior (1,27 milhão de euros), Eli-
se define apenas para a Transparência da Vida Pública Essec. Sua carreira atesta essa
sabeth Borne, ministra encarregada pela riqueza (HATVP).
coexistência constante entre negó-
cios e política. Ele foi vereador de
dos transportes (1,22 milhão de eu- econômica. Além Coulommiers ao mesmo tempo que
ros), Jacques Mézard, ministro da dos bens, existem O “CASO KOHLER”
era consultor no escritório Arthur
Coesão dos Territórios (1,14 milhão de Superdiplomado – pela Escola Na-
euros), e Jean-Baptiste Lemoyne, se-
as relações cional de Administração (ENA), pela
Andersen, depois diretor da Riester
SA (concessões Peugeot) ao mes-
cretário de Estado junto ao ministro Escola Superior de Ciências Econômi- mo tempo que era prefeito, deputa-
da Europa e das Relações Exteriores (1 cas e Sociais (Essec) e pela Escola de do e membro do escritório político
milhão de euros). Conselheiros próximos de Macron Ciências Políticas (Science Po) – e filho dos Republicanos. Escolher um mi-
O pertencimento de classe não se também são oriundos do mundo das de um antigo alto funcionário euro- nistro da Cultura diplomado na área
define apenas pela riqueza econômi- empresas e do setor privado. Cédric O., peu, Alexis Kohler ocupa a função de de gestão, que se reivindica no
ca. Além dos bens, existem as relações. conselheiro sobre as participações pú- secretário-geral no Élysée. Ele foi obje- who’s who empresário e “ao mes-
mo tempo” figura política, é um si-
As mulheres e os homens que hoje dis- blicas, exercia antes um cargo a servi- to de uma queixa, em 1º de junho de
nal forte por parte de Macron e diz
põem do poder político, mesmo que ço do grupo aeronáutico Safran; Clau- 2018, junto ao tribunal nacional finan-
muito sobre sua nova concepção da
distantes da antiga figura dos “servi- dia Ferrazzi, conselheira da Cultura, ceiro por “utilização ilegal de interes- criação, das artes e das letras.
dores do Estado”, mantêm relações es- começou sua carreira na Cap Gemini e ses” e “tráfico de influências” por par- (M.P. e M.P.-C.)
treitas com uma miríade de interesses no Boston Consulting Group. A conse- te da associação de luta contra a
privados com os quais eles frequente- lheira de Agricultura, Audrey Bourol- corrupção Anticor, coordenada pelo
mente têm obrigações a cumprir. leau, trabalhou a serviço de um im- advogado William Bourdon.
Antes de se tornar primeiro-minis- portante organismo de influência no Em maio de 2018, o Mediapart re- ções multidirecionais que tece o poder
tro, Philippe foi, de 2007 a 2010, diretor mundo vinícola, Vin et Société. Entre velou as ligações que uniam, por parte oligárquico. As múltiplas funções do
de negócios públicos – em outras pala- os 298 colaboradores ministeriais, 43 de sua mãe, Kohler à família italiana personagem fazem que ele seja ao
vras, responsável pelo lobby – do gi- trabalharam com lobby em algum Aponte, proprietária da Mediterra- mesmo tempo antigo alto funcionário
gante nuclear Areva. Benjamin Gri- momento de sua carreira.2 nean Shipping Company (MSC), nú- de Bercy, antigo diretor financeiro de
veaux, porta-voz do governo, exerceu Entre função pública e administra- mero dois mundial do transporte de um grupo familiar que tem interesses
funções de lobista na Unibail-Ro- ção privada, as interconexões desse mercadorias por navios de tráfego de nos estaleiros e um dos mais próximos
damco. A secretária de Estado para a pessoal tecnocrático são tão densas contêineres. Essa empresa é um dos colaboradores do presidente da Repú-
Transição Ecológica, Brune Poirson, é que os conflitos de interesses são a re- clientes mais importantes dos estalei- blica. Nessas condições, o tribunal na-
uma antiga executiva de alta respon- gra, ao invés de serem a exceção. ros de Saint-Nazaire e do porto de Ha- cional financeiro vai dar uma conti-
sabilidade da Veolia. Pénicaud, minis- Quando se tornam flagrantes demais, vre. Kohler, que tinha a responsabili- nuidade judiciária à queixa deposta
dade dos transportes em 2010 na pela Anticor? Em todo caso, só pode-
Agência das Participações do Estado mos, por enquanto, lamentar a exclu-
(APE), trabalhava a esse título no con- são dos altos funcionários da lei de
COMO COMER EM TODOS OS PRATOS selho de vigilância do porto de Havre moralização da vida política votada
(ao mesmo tempo que Philippe, então em 2017.
prefeito da cidade). Sem declarar suas
E leito pelo La République en Marche da região Hauts-de-Seine, Thierry Solère
foi preso no dia 17 de julho de 2018 pela polícia judiciária de Nanterre. Desde
setembro de 2016, ele é alvo de uma investigação por suspeitas de fraude fiscal,
relações familiares com o armador, ele
pôde influenciar as decisões que tive-
*Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot,
sociólogos, são ex-diretores de pesquisa do
tráfico de influência, corrupção, abuso de bens sociais, financiamento ilícito de des- ram impacto sobre os interesses. Centro Nacional de Pesquisa Científica (CN-
pesas eleitorais e desrespeito às declarações junto à Alta Autoridade para a Trans- Tendo se tornado depois diretor RS). Este texto é um trecho de seu livro Le
parência da Vida Pública (HATVP). Esse deputado, um dos mais ricos da Assem- adjunto do gabinete do ministro da Président des ultrariches. Chronique du mépris
bleia Nacional, é suspeito de ter se servido de sua posição para favorecer empresas Economia e das Finanças, à época de classe dans la politique d’Emmanuel Ma-
para as quais ele trabalhava por fora. Um emprego como assistente parlamentar da Pierre Moscovici (2012-2014), seguido cron [O presidente dos ultrarricos. Crônica do
esposa de um de seus antigos empregadores poderia ser considerado fictício.
por Macron (agosto de 2014 a agosto desprezo elitista na política de Emmanuel
Antes de se vincular ao movimento de Macron, Solère era membro dos Republi-
de 2016), Kohler ocupou um cargo- Macron], que será publicado em 31 de janei-
canos e porta-voz do ex-primeiro-ministro François Fillon. Isso não impediu o então
ministro da Justiça socialista, Jean-Jacques Urvoas, de lhe fazer um pequeno favor -chave em Bercy, no mesmo momento ro de 2019 pelas edições Zones, Paris.
entre os dois turnos da eleição presidencial de 2017, pedindo para a Direção de em que o futuro dos estaleiros de
Casos Criminais e Perdões (DACG) a ficha da ação penal da apuração preliminar Saint-Nazaire e do porto de Havre
1 Cédric Pietralunga e Anne Michel, “De nombreux
aberta a seu respeito. Por precaução, os dois homens se comunicavam pelo aplica- eram regularmente discutidos ali. Is- millionnaires parmi les membres du gouverne-
tivo de mensagens criptografadas Telegram.3 so não o impediu de ir, em setembro ment” [Muitos milionários entre os membros do
Em 19 de junho de 2018, Urvoas foi investigado por “violação de segredo profis- de 2016, à sede social da MSC em Ge- governo], Le Monde, 16 dez. 2017; Jean-Louis
Dell’Oro, “Voiture, immobilier, actions... Le patri-
sional” pela comissão de instrução da Corte de Justiça da República. Se um minis- nebra como diretor financeiro desse moine du gouvernement Philippe ministre par mi-
tro da Justiça correu tais riscos (esse delito sendo passível de um ano de prisão e grupo italiano ligado ao direito suíço, nistre” [Carro, imóveis, ações... O patrimônio do
15 mil euros de multa), talvez seja porque ele esperava um agradecimento em retor- cujo valor de negócios ultrapassa os governo Philippe ministro por ministro], Challenges,
no por parte daquele que aparecia então como a estrela em ascensão da “Macrô- Paris, 26 dez. 2017.
20 bilhões de euros. Ao mesmo tempo, 2 Linh-Lan Dao, “Les stratégies des lobbys” [As es-
nia”. Em 17 de dezembro de 2018, o tribunal geral junto à Corte de Cassação demi-
ele se implicava ativamente na cam- tratégias dos lobbies], rádio France Info, 18 jun.
tiu Urvoas diante da comissão de instrução da Corte de Justiça da República. (M.P. 2018. Disponível em: <www.francetvinfo.fr>.
e M.P.-C.) panha de Macron.
3 Simon Piel, “Pourquoi la justice veut entendre
O novelo é complexo e ilustra bem Thierry Solère” [Por que a justiça quer ouvir Thierry
o estreito emaranhamento das liga- Solère], Le Monde, 3 jul. 2018.
10 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

ASPIRAÇÕES DEMOCRÁTICAS

Quem tem medo dos referendos?


Ao pedirem a realização de um Referendo de Iniciativa Cidadã (RIC), os “coletes amarelos” levantaram um debate centrado
na consulta popular. No entanto, essa é apenas uma via de expressão da iniciativa cidadã, estimulada em vários países.
As condições para compartilhamento de informações e para o debate público continuam sendo cruciais para isso
POR GUILLAUME GOURGUES E JULIEN O’MIEL*

D
esde o início do século XX, o de-
sejo de incentivar a iniciativa
cidadã inspirou vários disposi-
tivos. Estes permitem aos elei-
tores impor às instituições a realiza-
ção de um debate, o questionamento
de uma lei, a análise de um problema
ou a organização de uma votação. As-
sim, em teoria, os cidadãos podem
contribuir para definir a ordem e a na-
tureza das políticas a serem conduzi-
das. Embora seja difícil extrair lições
gerais de experiências tão díspares
quanto referendos populares no Colo-
rado ou a lei de participação na Tosca-
na, duas dimensões recorrentes emer-
gem: a iniciativa cidadã é altamente
engessada e corre o risco de dar ori-
gem a uma reinvenção das regras do
jogo quando envereda por temas que
as elites políticas não desejam colocar
em debate.
Pode-se também relembrar um fa-
to óbvio: como muitas reformas “par-
ticipativas” da democracia represen-
tativa, a introdução do princípio de
uma iniciativa cidadã é quase sempre
decidida por representantes eleitos.
Logicamente ansiosos por não se ve-
rem tão facilmente desapossados de
sua capacidade de organizar os deba-
tes e as decisões públicas, eles impõem
às vezes atordoantes obstáculos pro-
cessuais à ativação do direito de ini-
ciativa, de tal forma que este pode se
tornar um “direito de fachada”, isto é,
© Rafael Correa

“um desses direitos que temos muito


orgulho de possuir, mas que não exer-
cemos porque sabemos que ele é mar-
cado pela impotência”.1
Assim, na França, a portaria de 3 de
agosto de 2016 introduz uma iniciativa
cidadã no campo da democracia am-
biental. Quando as pessoas responsá-
veis por um projeto de desenvolvimen- ração de interesse do projeto. Além missão de sete cidadãos oriundos de apenas aos lobbies e organizações
to não tiverem respeitado a obrigação disso, esse direito aplica-se apenas a sete Estados-membros, aceitação pela profissionais da sociedade civil euro-
de uma consulta prévia na forma pres- determinados projetos que afetam o Comissão Europeia, período de um peia”.2 Os números falam por si: das
crita pela lei, “um direito de iniciativa meio ambiente, e o prefeito pode não ano para obter pelo menos 1 milhão de cerca de cinquenta iniciativas apre-
está aberto ao público para solicitar ao dar seguimento a uma iniciativa per- assinaturas em pelo menos um quarto sentadas, apenas quatro foram bem-
representante do Estado interessado feitamente aceitável. dos Estados-membros... Segundo os -sucedidas. A comissão foi obrigada a
que organize uma consulta prévia, No âmbito da União Europeia, des- cientistas políticos Philippe Aldrin e responder a esses pedidos relativos ao
respeitando essas condições”. Mas is- de 2007 o Tratado de Lisboa permite Nicolas Hubé, tal abordagem “pressu- direito à água, à proteção de embriões
so requer a assinatura de pelo menos aos cidadãos apresentar uma proposta põe o domínio de um know-how técni- humanos, à cessação de experiências
20% da população das comunas afeta- legislativa às instituições europeias. co e o apoio de uma estrutura organi- em animais e à proibição do glifosato.
das (ou 10% se vários departamentos Mas as condições de ativação da Ini- zacional, mas também a posse de Mas nada a forçou a legislar em conse-
ou regiões estiverem envolvidos), no ciativa Cidadã Europeia (ICE) evocam consideráveis recursos relacionais e quência disso, o que ela teve o cuidado
prazo de dois meses a contar da decla- um calvário: constituição de uma co- institucionais, que parecem limitá-los de evitar fazer...
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11

EVASÃO DE AUTORIDADES decidido em um contexto de redução mosfera serena. Se, devido à falta de fi- medidas que tomamos [...] para incen-
Quando os cidadãos – especial- de dotações estatais,5 viram sua vota- nanciamento, a mesquita ainda está tivar o investimento e fazer o trabalho
mente os mais mobilizados, organiza- ção recusada. A equipe municipal de em fase de projeto, o debate tornou pagar mais”, escreveu Emmanuel Ma-
dos e politizados – conseguem ativar Éric Piolle considerou que “esforços possível estabelecer critérios consen- cron em sua “Carta aos franceses”. O
seus direitos, as autoridades não hesi- substanciais” já haviam sido feitos em suais de localização. Acima de tudo, debate público é praticado como uma
tam em mudar as regras do jogo para resposta à contestação. Em maio de graças à iniciativa cidadã, pessoas per- espécie de concessão sob controle, su-
evitar certos debates. A apreensão de 2018, e depois de uma primeira vota- tencentes a grupos sociais dominados postamente para substituir a relação
petição experimentada na França pelo ção sobre as tarifas de estacionamen- – no caso, muçulmanos que, em sua direta de forças engajadas pelos “cole-
Conselho Econômico, Social e Am- to, o juiz administrativo acionado pelo maioria, não têm nacionalidade italia- tes amarelos”.
biental (Cese) entre 2009 e 2013 é um prefeito de Isère chegou a cancelar to- na – tiveram acesso à discussão coleti- O medo óbvio dos governantes, que
dos casos mais marcantes dessa im- do o dispositivo, considerando que ele va e ao reconhecimento público. muitas vezes apresentam a iniciativa
provisação. Extremamente complica- não tinha a ver com as competências cidadã como uma caixa de Pandora,
do de ativar (são necessárias 500 mil de um conselho municipal. testemunha uma determinação feroz
assinaturas), esse mecanismo foi con- A iniciativa cidadã, no entanto, não de manter as instituições da mesma
cebido para permitir aos cidadãos está condenada à evasão ou à camisa Em 2011, muçulmanos maneira. No contexto francês de afir-
abordar o Cese sobre um tema de sua de força liberal. No começo do século florentinos se mação do caráter tecnocrático e auto-
escolha. Mas, quando os ativistas do XX, em vários estados americanos ritário das decisões políticas, deixando
“Manif pour tous” [Manifestações pa- (Oregon, Colorado, Arizona), referen-
mobilizaram para pouco espaço a não ser para as institui-
ra todos] usaram esse direito em 2013 dos lançados por moradores resulta- colocar em discussão a ções parlamentares e mantendo as
para se opor à lei que estendia o casa- ram na obtenção de novos direitos e de localização de uma futura questões econômicas distantes do de-
mento a casais de pessoas do mesmo progresso social: direito das mulheres mesquita, um tema bate público, a iniciativa popular só
sexo, foi pânico total. A autoridade re- ao voto, abolição do trabalho infantil, poderia ser um gadget. Poderia limitar-
jeitou a petição, mas perfeitamente jornada de trabalho de oito horas. Mais
controverso na Itália -se a recolher as opiniões dos cidadãos
nas regras, declarando-se incompe- recentemente, os votos diretos leva- sem nenhuma consequência decisória
tente diante de um texto de lei sob exa- ram à legalização da maconha. Acon- e rapidamente liquidados em caso de
me. Após uma decisão desfavorável do tece também que a iniciativa cidadã Para alcançar esse resultado, as “subversão”. Para aparecer como uma
Tribunal Administrativo de Paris, o pode desbloquear o monopólio dos po- informações devem ser de alta quali- alavanca do autogoverno popular, ela
Cese foi finalmente apoiado pelo Con- líticos eleitos na construção dos deba- dade, e o debate deve ser aberto e es- não pode ser dissociada de uma refor-
selho de Estado em 2017.3 Essa batalha tes públicos. Assim, na Itália, em 2007, truturado, e não instrumentalizado, mulação global das instituições e da vi-
legal revela os “muros de vidro” nos o Conselho Regional da Toscana pro- como foi o caso na Suíça com a inicia- da política.
quais a iniciativa cidadã é pensada pe- mulgou uma lei sobre a participação, tiva popular “Contra a construção de
las autoridades. fruto da reflexão de mais de 2 mil pes- minaretes”, encaminhada em 2008 *Guillaume Gourgues e Julien O’Miel são
soas. Esse texto prevê um sistema de por 113 mil eleitores e aprovada um professores de Ciência Política, respectiva-
apoio aos dispositivos locais de parti- ano depois. Em contraste com o que mente, da Universidade Lyon 2 e da Universi-
cipação, em especial por meio de uma aconteceu no caso da Toscana, essa dade de Lille.
A iniciativa autoridade com um orçamento de 1 iniciativa foi oportunamente apro-
cidadã, no milhão de euros e regida por um “pe- veitada pela União Democrática do
1 Marie de Cazals, “La saisine du Conseil économi-
entanto, não rito em democracia participativa” es- Centro (UDC, partido conservador e que, social et environnemental par voie de pétition
colhido por consenso pelo conselho nacionalista) para estigmatizar os citoyenne: gage d’une Ve République ‘plus démo-
está condenada regional. A lei também prevê um me- muçulmanos, no contexto de um cratique’?” [A solicitação ao Conselho Econômi-
à evasão ou canismo de solicitação que permite confronto partidário e jurídico en-
co, Social e Ambiental por meio de petição cidadã:
garantia de uma Quinta República “mais democrá-
à camisa de que grupos de pessoas peçam apoio volvendo apenas formas mínimas e tica”?] Revue Française de Droit Constitutionnel,
financeiro e logístico para colocar em indiretas de “abertura de debate”.8 n.82, Paris, abr. 2010.
força liberal 2 Philippe Aldrin e Nicolas Hubé, “L’Union euro-
debate um projeto de sua escolha, O sistema suíço de democracia dire- péenne, une démocratie de stakeholders” [A
desde que coletem 2 mil assinaturas – ta não deve, no entanto, ser reduzido a União Europeia, uma democracia de stakehol-
um limiar particularmente baixo em esse exemplo. No âmbito do cantão ou ders] Gouvernement et Action Publique, v.5, n.2,
Paris, abr.-jun. 2016.
O muro mais flagrante parece in- uma cidade de 380 mil habitantes co- do Estado, o papel do governo consiste 3 Conselho de Estado, pedido n.402259, decisão
questionável quando se trata de defen- mo Florença. essencialmente em implementar as de- de 15 dez. 2017.
der políticas econômicas e orçamen- cisões dos cidadãos, que detêm a últi- 4 Processo n.T754/14, Tribunal Europeu de Justiça,
Luxemburgo, decisão de 10 maio 2017.
tárias. No âmbito europeu, quando os MESQUITA TOSCANA, MINARETES SUÍÇOS ma palavra e podem retomar a iniciati- 5 Guillaume Gourgues e Matthieu Houser (dirs.),
cidadãos conseguiram, em junho de Esse dispositivo original, que com- va sobre qualquer texto que julguem Austérité et rigueur dans les finances locales. Une
2014, ativar uma ICE para impor um bina iniciativa cidadã e independência importante demais para ficar somente approche comparative et pluridisciplinaire [Auste-
ridade e rigor nas finanças locais. Uma aborda-
debate público sobre o Grande Merca- da instituição tomadora de decisões, na esfera dos deputados. Mais de 210 gem comparativa e multidisciplinar], L’Harmattan,
do Transatlântico – um projeto de tra- deu origem a um debate que desembo- referendos foram realizados no âmbito Paris, 2017.
tado de livre-comércio entre a União ca na galáxia de experiências participa- da confederação desde o final do sécu- 6 Julien O’Miel e Julien Talpin, “Espace et conflits
dans la participation. Luttes symboliques et maté-
Europeia e os Estados Unidos –, a co- tivas europeias. Em 2011, muçulmanos lo XIX. Mas, mesmo quando a prática rialité d’une controverse autour de la localisation
missão simplesmente optou por rejei- florentinos se mobilizaram para colo- das votações está largamente enraiza- d’une mosquée à Florence” [Espaço e conflitos na
tá-la, assumindo uma postura ilegal, car em discussão a localização de uma da na vida política, ela não parece ser participação. Lutas simbólicas e materialidade de
uma controvérsia em torno da localização de uma
além disso condenada por decisão de futura mesquita, um tema controverso suficiente para conter a desconfiança e mesquita em Florença], Lien Social et Politiques,
10 de maio de 2017 do Tribunal Euro- na Itália.6 Eles rapidamente coletaram a despolitização dos cidadãos.9 n.73, Montreal, primavera de 2015.
peu de Justiça,4 sem que isso em nada as assinaturas necessárias, e a autori- Essas diversas experiências de ini- 7 “Moschea si o no? Ele percorso partecipativo”
[Mesquita sim ou não? O percurso participativo],
tenha influenciado o procedimento. dade decidiu alocar uma subvenção ciativas cidadãs evidenciam a crise La Nazione, edição de Florença, 22 set. 2011.
Em outra escala, a nova equipe para a organização desse debate. O imã provocada pelo movimento dos “cole- 8 Hervé Rayner e Bernard Voutat, “La judiciarisation
municipal de Grenoble (ecologistas, de Florença disse na imprensa que os tes amarelos”: o governo concorda em à l’épreuve de la démocratie directe. L’interdiction
de construire des minarets en Suisse” [Judicializa-
França Insubmissa e cidadãos) esta- muçulmanos não pedem “nada além debater, mas de forma precipitada e ção sob o teste da democracia direta. A proibição
beleceu um voto cuja originalidade era de um local de culto digno desse nome” improvisada, sobre temas que ele es- de construir minaretes na Suíça], Revue Française
reduzir as barreiras processuais: eram e “querem que a decisão final seja com- colheu e dos quais está excluída desde de Science Politique, v.64, n.4, Paris, 2014.
9 Anna Kern, “The effect of direct democratic partici-
necessárias apenas 2 mil assinaturas partilhada tanto pela comunidade mu- o início a possibilidade de restabelecer pation on citizens’ political attitudes in Switzerland:
para solicitar uma votação sobre um çulmana quanto pelo município de o imposto sobre as fortunas ou de re- the difference between availability and use” [O efei-
tema escolhido pelos cidadãos. Mas, Florença”.7 Contra todas as expectati- vogar ou modificar o Crédito de Im- to da participação democrática direta nas atitudes
políticas dos cidadãos na Suíça: a diferença entre
em 2017, coletivos militantes opostos vas, especialmente a dos políticos, os posto para a Competitividade e o Em- disponibilidade e uso], Politics and Governance,
ao fechamento de certas bibliotecas, intercâmbios aconteceram em uma at- prego (Cice). “Não vamos rever as v.5, n.2, Lisboa, 2017.
12 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

CAPA

A santíssima trindade: nação,


Deus e os inimigos disso daí
Bolsonaro não inova ao invocar nação e Deus, colocando ambos na arena política junto de seu nome.
Sabe que com isso os conceitos totalizantes tornam-se ao mesmo tempo excludentes.
Quem ataca Bolsonaro é inimigo “da pátria”, logo de Deus
POR GILBERTO MARINGONI*

J
air Bolsonaro pavimentou a vitó- DISPUTA IDEOLÓGICA
ria ao vincular sua candidatura O nacionalismo é um atributo
ao que seriam os interesses ideológico de grande apelo. No caso
maiores da nação. Sem propos- de Bolsonaro, há um dilema aparente-
tas claras de governo, bancou uma ou- mente insolúvel na composição de seu
sada disputa ideológica. Tocou fundo governo. A agenda econômico-finan-
em aspectos afetivos, históricos e iden- ceira é fortemente liberal, globalizan-
titários da população. Aliás, não ape- te e oposta a qualquer defesa real de
nas ele, mas a extrema direita brasilei- interesses nacionais. Suas linhas de
ra agiu com competência ao valer-se de força envolvem a entrega do pré-sal às
uma estética nacionalista para tirar transnacionais, a venda da Embraer à
proveito da insatisfação social presen- Boeing, a diplomacia alinhada à Casa
te nas manifestações de junho de 2013. Branca e privatizações no atacado, em
Diante das bandeiras vermelhas da es- meio a um extemporâneo palavreado
querda, tivemos a ressurreição do slo- místico e anticomunista em prol da
gan pré-1964, “Verde e amarelo sem “civilização judaico-cristã ocidental”.
foice nem martelo”. Nas passeatas que É uma combinação inusitada, mas
precederam o golpe seguinte, em 2016, o nacionalismo é conceito ambíguo. É
houve farto uso do auriverde pendão e também totalizante – ou includente –
de camisetas da CBF. e excludente. Tem como fundamento
Não é algo superficial. Quem dis- o contraste entre o nacional e o não
puta símbolos nacionais trava um en- nacional. Unir a nação – ou um grupo
frentamento de envergadura. Há três – contra o inimigo comum é sua mar-
anos, a apropriação dessas marcas por ca essencial.
parte do conservadorismo mais trucu- O problema de Bolsonaro e de líde-
lento visava escancarar a ideia de que res autoritários é que a prática exige a
o Brasil inteiro estaria contra o gover- criação de “um grande mal” a todo ins-
no Dilma Rousseff. Não seria uma fac- tante, fazendo do tensionamento entre
ção contra outra, mas a sociedade in- setores sociais um método de governo.
teira fazendo carga a um grupo isolado Se o atentado ao então candidato
no poder de Estado. foi planejado pelos “inimigos da pá-
A frase reúne duas ideias ou cren- com isso os conceitos totalizantes tor- tria”, os adversários do governo por ele
IDEIA REDONDA ças inatacáveis: Brasil (nação) e Deus. nam-se ao mesmo tempo excludentes. comandado estão fora da pátria e da
Setores extremistas, como o Movi- Em seu discurso de posse, no púlpito Quem ataca Bolsonaro é inimigo “da nação – e, por extensão, da bênção de
mento Brasil Livre (MBL), o Vem Pra do Palácio do Planalto, em 1º de janei- pátria”, logo de Deus. Deus. Vermelhos, petistas, comunis-
Rua, o Endireita Brasil e outros alinha- ro, o eleito agregou uma terceira enti- O uso de Deus e de um nacionalis- tas, esquerdistas em geral, indígenas,
dos a Bolsonaro, são partidários de dade: “Quando os inimigos da pátria, mo instrumental tem tradição em a população LGBT, quilombolas e
uma totalização, de uma ideia redon- da ordem e da liberdade tentaram pôr embates políticos. O dístico “Francis- muitos outros não são opositores num
da e indivisível acima de todos os inte- fim à minha vida [no atentado sofrido co Franco Caudillo de España por la ambiente democrático. São inimigos
resses particulares. É uma concepção durante a campanha], milhões de gracia de Dios” aparecia em moedas de todos nós, e qualquer mediação é
abrangente e ao mesmo tempo sedu- brasileiros foram às ruas”. Pronto, tá e emblemas espanhóis entre os anos impossível. Por esse motivo, as solu-
tora. Ela mascara diversidades e desi- oquei? Revelou-se ali a santíssima 1930 e 1970. Na Venezuela, o grande ções propostas são extremas: zero de-
gualdades sociais e a própria luta de trindade bolsonariana: Deus, pátria e símbolo nacional, a imagem de Si- marcação de terras indígenas, fim do
classes, e se manifesta no discurso do o próprio capitão. món Bolívar (1783-1830), é disputado ativismo, expulsão dos doutrinadores
povo ordeiro e pacífico que teria sido Os três entes indivisíveis têm a ta- pela esquerda e pela direita há mais em sala de aula, riscar do mapa o
dividido pela esquerda. refa de “fazer a maior limpeza que este de um século. Donald Trump cha- “marxismo cultural” etc. São gritos de
© Juan Pablo Martinez

A nação, ao contrário, uniria a to- país já viu”, combater a “ideologia de mou para si “America first!”. A ditadu- um jihad infindável em nome da nova
dos e seria a grande mãe a acolher gênero”, defender a família e impedir ra militar (1964-1985) valeu-se não santíssima trindade.
seus filhos, à exceção dos que a rene- que nossa bandeira seja vermelha. apenas do lema “Brasil, ame-o ou O uso do nacionalismo por parte
gam. Daí o brado patrioteiro-religio- Bolsonaro não inova ao invocar na- deixe-o”, como também os opositores de Bolsonaro não se deve apenas a um
so “Brasil acima de tudo, Deus acima ção e Deus, colocando ambos na arena eram classificados de maus brasilei- comportamento demagógico. Eleito
de todos”. política junto de seu nome. Sabe que ros pelas vozes das casernas. em um quadro de descrédito das ins-
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13

tituições representativas e com um meio século no Brasil. A popularidade APOIO À DEMOCRACIA – BRASIL
discurso fortemente antissistêmico, o oficial levou um tombo. O Datafolha,
ex-militar é caudatário de uma opor- no fim de junho de 2013, indicava que 2010 2011 2013 2015 2016 2017 2018
tunidade histórica especial. a aprovação de Dilma caíra de 57% pa- 54% 45% 49% 54% 32% 43% 34%
Embora o processo esteja em curso, ra 30% em vinte dias. Esboçou-se ali o
Fonte: Latinobarómetro, Informe 2018.
há indicações de que a institucionali- arranjo de forças que assumiria o co-
dade baseada na Constituição de 1988, mando do país a partir de 2018.
responsável por estabelecer um presi- A presidenta recuperaria seus in-
dencialismo de coalizão (expressão dicadores nos meses seguintes, a tenha levado vastos contingentes da bém se permite ser vago e impreciso.
cunhada pelo cientista político Sérgio ponto de vencer, por pequena mar- população à descrença política. Unir a nação é unir o cidadão de bem,
Abranches), entrou em crise e o bipar- gem (51,64% a 48,36%) a reeleição A única sondagem específica sobre é deixar que este se arme, é colocar as
tidarismo informal entre PT e PSDB contra Aécio Neves (PSDB), em 2014. essa questão foi feita pelo Instituto La- “coisas no lugar” e é “menino de azul e
deixou de existir. Agremiações tradi- Mas a vitória eleitoral logo se trans- tinobarómetro. O índice de aprovação menina de rosa”. Assim, o universo
cionais – à exceção do PT – tiveram de- formaria em derrota política diante da democracia no Brasil, nos últimos pode se reconstruir “sem ideal nem
sempenho eleitoral pífio e tornaram-se da capitulação do governo à pressão anos, está demonstrado na tabela des- esperança”, como num poema de Fer-
figurantes na grande política. Há um do capital financeiro. ta página. nando Pessoa.
colapso dos canais da democracia Para surpresa de seu eleitorado, Entre 2015 e 2016, a confiança na O cientista político e historiador
representativa. Dilma deu um giro de 180 graus e ado- democracia caiu 22 pontos percen- Benedict Anderson, em seu Comuni-
tou um programa recessivo, seme- tuais. Ela voltou a subir logo após o im- dades imaginadas (Cia. das Letras),
CRISE DE REPRESENTAÇÃO lhante ao de seu opositor. Ao longo da peachment e baixou de forma expres- afirma o seguinte: “Dentro de um es-
O primeiro sinal de uma possível campanha, ela prometera desenvolvi- siva no ano seguinte. pírito antropológico, proponho a se-
crise de representação se deu em ju- mento, emprego, renda e manutenção É possível que os números tenham guinte definição de nação: uma comu-
nho de 2013, na espantosa onda de de direitos. A opção da nova gestão se captado a perda de confiança não ape- nidade política imaginada – e
mobilizações iniciada com a reação materializou em um forte tarifaço em nas na democracia, mas também na imaginada como sendo intrinseca-
ao reajuste das tarifas de transporte janeiro de 2015, sucessivos aumentos própria institucionalidade que a sus- mente limitada e, ao mesmo tempo,
público, em São Paulo. Havia tam- da taxa Selic e uma sequência de cortes tentava. Foi nesse terreno de desen- soberana. Ela é imaginada porque
bém uma ampla e difusa demanda orçamentários que alcançou R$ 100 bi- canto que a pregação salvacionista da mesmo os membros da mais minús-
por mais serviços e políticas públi- lhões naquele ano. extrema direita cresceu. cula das nações jamais conhecerão,
cas. As turbulências em vários esta- A administração petista cometeu o Foi num país fragmentado e deses- encontrarão, ou sequer ouvirão falar
dos colocaram frente a frente “uma que se convencionou chamar de este- perançado que a retórica fincada na da maioria de seus companheiros, em-
esquerda extrapetista em busca de lionato eleitoral e perdeu bases de sus- agressividade sem freios e no naciona- bora todos tenham em mente a ima-
conectar-se com a ‘inquietação’ da tentação entre os trabalhadores orga- lismo religioso totalizante/excludente gem viva da comunhão entre eles”.
nova classe trabalhadora [...] e uma nizados. Em dezembro de 2014, o encontrou eco. Não se pode desconsi- A disputa pela nação, por essa co-
classe média tradicional cansada do desemprego era de 6,5%. Em abril de derar a prisão de Lula como parte des- munidade que em maior ou menor
‘populismo’ do PT”.1 As várias verten- 2016, mês do impeachment, segundo o se desencanto popular. grau está nos corações e mentes de
tes da esquerda não conseguiram en- Caged (Ministério do Trabalho), a taxa todos, é importante demais para que
frentar a ruidosa vaga de contestação dobrou, chegando a 11,2%. O AVENTUREIRO PROVIDENCIAL parte da esquerda a deixe nas mãos
e canalizar as insatisfações para um Entre 2015 e 2016, o PIB caiu 7,2%, A crise de representação abriu es- da direita.
programa de mudanças. Houve um o pior resultado desde 1900.2 A sensa- paço para o líder providencial, o sal-
embate de agendas. O conservadoris- ção de insegurança e descrédito com vador da pátria que se oferece para *Gilberto Maringoni é professor de Rela-
mo e os meios de comunicação logra- a política se disseminou pela base da unir a nação, defender nossas tradi- ções Internacionais da Universidade Fede-
ram tirar de cena as demandas so- sociedade. O Datafolha aponta que, ções e acabar com supostas ideolo- ral do ABC.
ciais e colocar a corrupção como o logo após a posse, em fevereiro de gias que nos dividem. Não é à toa que
grande mal a ser combatido. 2015, 56% população avaliava o gover- o condutor exalte seu passado mili-
A espiral de protestos – sem lide- no como ótimo/bom. Em abril de tar, abuse da retórica castrense e te- 1 André Singer, O lulismo em crise: um quebra-ca-
beça do período Dilma (2011-2016), São Paulo,
ranças aparentes, autoconvocada em 2016, pouco antes do golpe, o patamar nha nas Forças Armadas seu princi- Companhia das Letras, 2017, p.99.
redes sociais e com estrutura “hori- caíra para 37%. pal sustentáculo. 2 Fundação Getulio Vargas, Centro de Contas Na-
zontal” – foi a força motriz de um em- É bem possível que a decepção en- Como a fonte básica do nacionalis- cionais, diversas publicações, período 1947 a
1989; IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordena-
bate no qual a direita ganhou autori- tre o prometido em campanha e a rea- mo – o conceito de nação – é vaga e ção de Contas Nacionais. Disponível em: <http://
dade nas ruas, algo não visto havia lidade dos primeiros meses de governo imprecisa, o chamado “Mito” tam- bit.ly/2Cz8t6x>.
14 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

CAPA

Não é possível ser internacionalista


sem ser anti-imperialista
Em tempos passados, toda a esquerda compreendia como progressivas as reivindicações de um programa nacional nos
países periféricos que sofrem a opressão imperialista. Mas não nos países centrais que dominam o mundo, porque, nestes,
o nacionalismo equivalia – e continua sendo indivisível dela – à defesa de um imperialismo contra outro
POR VALERIO ARCARY*

O
nacionalismo é hoje o vocabu- tros, inferiores. Quanto mais exaltado mã apoiaram suas respectivas classes de classe seriam os conflitos decisivos
lário de uma extrema direita o nacionalismo, mais formidável seria dominantes, no alvorecer da Primeira no mundo contemporâneo, embora
neofascista em inúmeros paí- sua história, mais extraordinário seu Guerra Mundial. não fossem, evidentemente, os únicos.
ses. “Brasil acima de tudo” foi caráter e mais grandioso seu destino. Acontece que, sobretudo depois da Inúmeras lutas democráticas desen-
um dos slogans que levaram Bolsona- O nacionalismo dos países centrais restauração capitalista, nem toda es- volvem-se simultaneamente e, incon-
ro à vitória eleitoral. Esse discurso tem sempre foi racista e reacionário. Sua querda é socialista. E, claro, nem toda táveis vezes, inseparáveis do enfrenta-
uma história. versão totalitária foi o nazifascismo. esquerda socialista é marxista. Há uma mento entre capital e trabalho: lutas
O nacionalismo é a ideologia do Es- A esquerda já foi internacionalista. esquerda que defende a regulação da democráticas contra regimes autoritá-
tado-nação. Ela nos remete a uma tra- Em tempos passados, toda a esquerda economia de mercado, com políticas rios, tirânicos, ditatoriais; lutas demo-
dição ideológica que nasceu com a Re- compreendia como progressivas as públicas que ofereçam compensações cráticas contra as opressões racistas,
volução Francesa. Conquistou peso reivindicações de um programa na- para diminuir o aumento da desigual- machistas, lgbtfóbicas; lutas democrá-
político de massas na Europa, em dis- cional nos países periféricos que so- dade social. Há outra esquerda que de- ticas pela defesa de um programa am-
puta contra o conservadorismo, o libe- frem a opressão imperialista. Mas não fende o socialismo, mas é hostil ao pro- biental contra a iminência de uma ca-
ralismo e o socialismo nas últimas dé- nos países centrais que dominam o jeto revolucionário. E há uma esquerda tástrofe ecológica provocada pelo
cadas do século XIX. mundo, porque, nestes, o nacionalis- anticapitalista e internacionalista. En- aquecimento global; e, não menos im-
O nacionalismo foi a ideologia que, mo equivalia – e continua sendo indi- tre esses três grandes blocos, presentes portante, a luta democrática das na-
em distintas versões, turbinou a legiti- visível dela – à defesa de um imperia- na maioria dos países mais urbaniza- ções oprimidas pelo direito à liberta-
mação dos imperialismos modernos e lismo contra outro. dos e industrializados, há várias for- ção nacional. Todas essas lutas são
conduziu a humanidade à beira do Progressiva é toda luta que, embora mas híbridas intermediárias. progressivas e devem ser incorporadas
abismo da destruição da vida civiliza- parcial ou incompleta quando em Não obstante, a necessidade da luta ao programa dos socialistas.
da, em guerras totais, por duas vezes comparação com o programa socialis- anti-imperialista não diminuiu. Isso O marxismo sublinhou que, se a lu-
no século XX. ta, se apoia em uma dinâmica histori- hoje significa, por exemplo, defender a ta entre as classes era um combate que
A força do conceito de nação na camente justa. A esquerda apoiava a Venezuela contra a iminência da pre- se iniciava dentro de fronteiras, ela se
percepção burguesa do mundo residia luta nacionalista nos países periféri- cipitação de uma guerra civil incenti- decidiria na arena mundial. Toda re-
© Juan Pablo Martinez

na ideia de que o Estado deveria ser a cos e, ao memo tempo, denunciava as vada pelos Estados Unidos e pelo Gru- volução socialista nacional, mais cedo
“expressão de um povo”, e cada povo ambições nacionalistas nos países po de Lima, independentemente de ou mais tarde, teria de medir forças
teria uma tradição própria, um caráter centrais, ou seja, era anti-imperialista. uma posição energicamente crítica com a contrarrevolução internacional.
singular e um destino único. Portanto, A II Internacional explodiu quando o em relação ao governo Maduro. Essa bússola é o fundamento granítico
alguns povos, ou até raças, como en- nacionalismo contagiou suas fileiras e O marxismo sempre se distinguiu do internacionalismo. O nome desse
tão se dizia, seriam superiores, e ou- as sociais-democracias francesa e ale- por considerar que os antagonismos programa é revolução permanente.
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15

A ORDEM IMPERIALISTA MUNDIAL NÃO PODE TURBULÊNCIAS CRESCENTES DENTRO restaurado o capitalismo, recorrendo futuro do governo da União Soviética e
SER MANTIDA INDEFINIDAMENTE SEM GUERRA DO SISTEMA INTERNACIONAL DE ESTADOS inclusive a endividamento no mercado seus aliados. Infelizmente, o interna-
Essas conclusões repousam em Seria obtuso não reconhecer que mundial, e exercem papel protoimpe- cionalismo quase desapareceu.
uma análise de nossa época. Em pers- as burguesias dos principais países rialista em suas regiões de influência. Esse “nacionalismo da URSS”, ou
pectiva histórica, a obra mais impor- imperialistas conseguiram cons- No entanto, mudanças ocorreram na stalinismo, não deve ser confundido
tante do capitalismo foi impulsionar a truir um centro no sistema interna- inserção dos Estados da periferia. Al- com o internacionalismo e merece ser
formação do mercado mundial, libe- cional de Estados, depois da destrui- guns têm uma situação de dependência denominado de campismo socialista. A
rando forças produtivas até então ini- ção quase terminal da Segunda maior, e outros, de dependência menor. existência de países onde a proprieda-
magináveis. Mas essa façanha teve um Guerra Mundial. Institucionalmen- O que predominou, depois dos anos de privada dos grandes meios de pro-
custo catastrófico para a humanidade: te, ele se expressa ainda hoje, 25 anos 1980, foi um processo de inserção subal- dução foi expropriada, ainda que seus
a luta pelo domínio imperialista do depois do fim da União Soviética, terna, ou “recolonização”, ainda que regimes políticos fossem aberrações
mundo. Alguns poucos Estados con- nas organizações do sistema ONU e com oscilações. Há uma dinâmica his- burocráticas, um híbrido histórico, ne-
trolam, comandam e oprimem a imen- Bretton Woods – portanto, por meio tórico-social em curso, e ela é inversa cessariamente transitório, colocou a
sa maioria dos países e impõem sua or- do FMI, do Banco Mundial, da OMC daquela que predominou entre 1945 e esquerda internacionalista, no pós-
dem. E disputam para manter suas e no BIS de Basileia – e, finalmente, 1975, depois da derrota do nazifascismo, -guerra, em uma situação paradoxal e
posições de poder, ameaçando regu- no G7. A contrarrevolução aprendeu quando a maior parte das antigas colô- desconcertante. Ela deveria defender a
larmente a paz mundial. com a história. nias na periferia conquistou parcial- natureza social dos Estados diante da
O nome desse sistema é ordem No centro de poder da ordem im- mente a independência política, ainda pressão imperialista pela restauração
mundial imperialista. Ela não pode ser perialista está a Tríade: Estados Uni- que no contexto de uma condição de- capitalista, mas, ao mesmo tempo,
preservada sem guerras. O capitalis- dos, União Europeia e Japão. União pendente ou mesmo semicolonial. apoiar as mobilizações dos trabalhado-
mo é um obstáculo intransponível pa- Europeia e Japão têm relações asso- A maioria dos Estados que conquista- res pelas liberdades democráticas. Ou
ra a tendência mais profunda do de- ciadas e complementares com ram independência política na onda de seja, uma defesa condicionada ao signo
senvolvimento histórico que o próprio Washington e aceitam sua superiori- revoluções anti-imperialistas que se se- de classe do conflito, algo muito mais
capital potencializou. Essa tendência é dade desde o fim da Segunda Guerra guiram à vitória da revolução chinesa, co- intricado do que uma defesa incondi-
somente uma possibilidade, não um Mundial. A mudança de etapa histó- reana e vietnamita perdeu essa conquis- cional ou uma oposição incondicional.
destino: a crescente unificação da hu- rica em 1989/1991 não alterou esse ta: Argélia e Egito, ou Líbia, Iraque e Síria A oscilação do pêndulo foi sempre mui-
manidade em uma civilização mun- papel da Tríade e, em especial, o lu- são exemplos, entre outros, dessa regres- to complexa, originando desequilí-
dial. Mas o capitalismo não pode uni- gar dos Estados Unidos. são histórica, posterior a 1991. Alguns re- brios: stalinofilia ou stalinofobia.
ficar a humanidade. O socialismo é o Embora sua liderança tenha di- grediram à condição de protetorados. O mesmo problema político se co-
nome desse programa. Ser de esquer- minuído, ainda prevalece. A di- Ainda existem, porém, governos inde- loca hoje diante da Venezuela ou de
da é ser anti-imperialista. mensão de sua economia com um pendentes, como Venezuela, Irã e Cuba. Cuba. A defesa de países independen-
Quando dizemos que a ordem PIB acima de US$ 21,5 trilhões (o tes perante a agressão imperialista não
mundial se estrutura – pelo menos PIB mundial está estimado em US$ NÃO SE PODE SER INTERNACIONALISTA desobriga da crítica contra esses regi-
nos últimos cem anos – como uma or- 88 trilhões; o da China, em US$ 14 PELA METADE mes. O desafio é a análise concreta de
dem imperialista, não estamos afir- trilhões),1 o peso de seu mercado Uma análise que equaciona os con- qual é, em cada conjuntura, o maior
mando que exista um governo mun- interno, o apelo do dólar como flitos entre as classes nos países ou con- perigo imediato para os trabalhadores.
dial. O capitalismo não conseguiu moeda de reserva ou entesoura- tinentes decisivos ignorando o lugar e a Porque nunca é possível lutar contra
superar as fronteiras nacionais de mento, a superioridade militar e a política dos Estados na situação mun- todos ao mesmo tempo. Os dilemas do
seus Estados imperialistas. O Brexit é capacidade de iniciativa política dial diminui a força da contrarrevolu- internacionalismo são complicados.
mais uma demonstração de que per- permitiram, entre outros fatores, ção. O caminho inverso é ainda mais Só uma esquerda internacionalis-
manece intensa a competição entre as apesar de uma tendência de debili- desanimador. Quando se subestimam ta, porém, é digna de futuro.
burguesias dos países centrais na dis- tamento, manter sua posição de li- os conflitos entre as classes em cada so-
puta por espaços econômicos e arbi- derança no sistema de Estados. O ciedade, a análise redunda, fatalmente, *Valerio Arcary é professor titular de Histó-
tragem de conflitos políticos. Não se papel de Trump é preservar esse lu- em avaliações superficiais, exagerando ria do IFSP, doutor pela USP, autor de O mar-
confirmou a hipótese de um superim- gar, em especial diante da China. a força da contrarrevolução. telo da história (Sundermann, 2016), entre
perialismo, discutida na época da II Nenhum Estado da periferia pas- Esse segundo caminho foi percorri- outros livros, e militante do Psol.
Internacional: uma fusão dos interes- sou a ser aceito no centro do sistema do por boa parte da esquerda mundial
ses imperialistas dos países centrais. nos últimos 25 anos. China e Rússia no século XX, sobretudo aquela que con-
O ultraimperialismo nunca foi senão são Estados que preservaram a inde- siderou que o destino da causa socialista 1 FMI, “GDP, current prices” [PIB, preços corren-
uma utopia reacionária. pendência política, embora tenham estava indissoluvelmente associado ao tes]. Disponível em: <http://bit.ly/2TdiLAg>.
16 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

FRAGILIDADE DO PODER DE JAIR BOLSONARO

O que querem os
militares brasileiros?
No Brasil, a posse de Jair Bolsonaro foi acompanhada do barulho de coturnos. Nos ministérios, os altos funcionários
aproximam-se cada vez mais de ideólogos neoliberais – um casamento que pode ser tempestuoso. Diferentemente do general
chileno Augusto Pinochet, os militares brasileiros defendem o intervencionismo econômico e a soberania nacional
POR RAÚL ZIBECHI*

E
m 28 de outubro de 2018, o ex- Vice-Presidência, Defesa, Ciência e hesitaram em se opor a uma oligar- Em 1952, a direção do departa-
-capitão de artilharia Jair Bolso- Tecnologia, Minas e Energia, assim co- quia rural relutante à modernização mento de estudos da ESG foi confiada
naro venceu o segundo turno da mo no gabinete do governo, encarre- do país. A maior parte das grandes em- ao general Golbery do Couto e Silva,
eleição presidencial brasileira gado da relação com o Congresso. De presas que hoje orgulham o país foi especialista em geopolítica que for-
com 55% dos votos. Na mesma noite, 22 ministros, sete são oriundos do criada nessa época pelo Estado. malizou os objetivos de longo prazo da
milhares de pessoas saíram às ruas pa- Exército e alguns fizeram parte de go- instituição militar: aliança com os Es-
ra celebrar “o retorno dos militares ao vernos durante a ditadura militar “SENTIDO DE GRANDEZA” tados Unidos contra o comunismo
poder”. Em Niterói, no Rio de Janeiro, (1964-1985). Assistimos à formação de Entre as companhias idealizadas (sem que essa opção pró-norte-ameri-
um comboio de soldados foi aclamado um governo civil-militar? pelo Exército, a Escola Superior de cana impedisse os militares de privile-
por apoiadores vestindo camiseta com O Brasil possui as Forças Armadas Guerra (ESG) constitui seu principal giar os interesses nacionais); projeção
as cores da seleção brasileira e os dize- mais poderosas da América Latina (ver instrumento de disseminação políti- em direção ao Pacífico com o objetivo
res “Nossa bandeira jamais será ver- boxe), apoiadas sobre um antigo com- co e geopolítico. Foi criada em 1949, de realizar o “destino manifesto” do
melha” – em referência ao comunismo plexo militar-industrial e eficazes cen- de acordo com o modelo do National país; e controle da Amazônia.
em que o Partido dos Trabalhadores tros de inteligência estratégica. Capaz War College nos Estados Unidos, país O período neoliberal dos anos 1990
(PT) teria, segundo eles, mergulhado o de influenciar a administração e o com o qual os militares brasileiros es- freou as ambições das Forças Arma-
país entre a eleição de Luiz Inácio Lula funcionamento da economia, ou mes- tabeleceram laços próximos. Esse das. Além da instabilidade política – da
da Silva, em 2002, e a destituição de sua mo exercer diretamente o poder, como centro de reflexão estratégica finan- qual os militares não gostam nada –, a
sucessora, Dilma Rousseff, em 2016. na última ditadura, o Exército desem- ciado pelo Ministério da Defesa for- desaceleração da economia “golpeou
Pendurados em veículos blinda- penha um papel decisivo na política mou mais de 8 mil pessoas em setenta fortemente a indústria militar brasilei-
dos, os soldados respondiam aos ma- do país. Seu projeto: defender uma vi- anos, das quais a metade eram civis. ra, até então próspera, infligindo-lhe
nifestantes acenando com o punho fe- são de desenvolvimento nacional for- Entre estes últimos, o site da organi- um golpe do qual demoraria a se re-
chado. A imagem foi capturada pela jada ao longo do século XX, que emer- zação se gaba de ter abrigado grandes compor”, avalia Joám Evans Pim.2 Até
© Andrício de Souza

imprensa para ilustrar o apoio dos mi- giu em particular sob o governo militar empresários, mas igualmente “quatro hoje, as exportações de armamento se
litares ao novo presidente. Empossado de Getúlio Vargas (1930-1945). As For- presidentes da República, ministros limitam ao sistema de lança-foguetes
em 1º de janeiro, Bolsonaro está acom- ças Armadas defendiam que a indus- de Estado e numerosas personalida- Astros II (da Avibras) e ao avião Em-
panhado de militares em alguns dos trialização era determinante para ga- des importantes do campo político”,1 braer EMB 314 Super Tucano, ambos
cargos mais importantes do governo: rantir a soberania geopolítica e não sem, contudo, citar nomes. concebidos nos anos 1980. Daí, sem
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 17

interesse em aumentar a cooperação “oxigenar os programas e projetos es-


com Estados Unidos em todas as áreas. tratégicos das três Forças” para além
O EXÉRCITO EM NÚMEROS [A base] seria parte de uma agenda da “questão orçamentária”.8 De modo
muito mais ampla que queremos ter que aparece desde já uma linha de fra-
A s Forças Armadas Brasileiras con-
tam com 339 mil soldados e dis-
põem de um orçamento de US$ 22
A Marinha conta com 60 mil membros
e cem embarcações, das quais cinco são
submarinos ativos, oito fragatas, três lan-
com Estados Unidos, que creio que os
Estados Unidos querem ter conosco”5
tura entre, de um lado, os polos da aus-
teridade e monetaristas do novo gover-
milhões, o que corresponde a 1,3% do chas, um porta-helicópteros, três embar- – o que acontecerá quando da visita do no e, de outro, os setores militares
PIB. É menos da metade das despe- cações anfíbias, trinta patrulheiros mari- presidente norte-americano, Donald portadores de uma ambição geopolíti-
sas militares no conjunto da região la- nhos e vários outros fluviais. Possui Trump, ao país, prevista para março ca exigindo uma forma de intervencio-
tino-americana (1,6% do PIB em também oitenta helicópteros e uma pe- deste ano. No mesmo dia, o anúncio nismo de Estado. Durante a campanha
2016) e menos que na Colômbia quena frota de aviões de combate. suscitou a reação de três generais e presidencial, o ministro da Economia,
(3,4% do PIB), Equador (2,2%), Uru- A Força Aérea conta com 73 mil milita- três oficiais superiores. Por eles, esses Paulo Guedes, deu a entender que as
guai (2%) e Chile (1,9%). res e 770 aeronaves, e supera qualquer acordos apenas se justificam em um grandes empresas públicas de produ-
Com 220 mil pessoas, o Exército é o exército latino-americano em termos de contexto de ameaça exterior superior à ção de energia elétrica poderiam ser
efetivo mais importante. Dispõe de efetivo e poder de fogo. É capaz, por
capacidade de reação de uma nação: privatizadas, sem que Bolsonaro de-
581 tanques, dos quais 469 pesados, meio da Embraer, de fabricar aviões de
“é o caso do menino fraco que chama o monstrasse um entusiasmo desmesu-
e cerca de cem helicópteros de trans- combate leves, como o Super Tucano, do
porte e combate. qual possui quase duzentas unidades. amigo forte para enfrentar os valen- rado. Do lado dos militares, essa pers-
tões da rua; estamos longe disso”.6 pectiva suscita preocupação, e o
Dois outros problemas se colocam processo de nomeação do ministro de
para os militares: a eventual “politiza- Minas e Energia cristalizou as tensões.
dúvida, a aliança a priori antinatural sociais: “O Brasil não será indepen- ção” dos quartéis e a política de priva- Os dirigentes das maiores empresas
entre a instituição – associada à direita dente se uma parte da população não tização anunciada pela ala mais libe- privadas de produção e distribuição de
do espectro político – e o presidente dispuser de meios de aprender, traba- ral do governo, liderada pelo ministro energia tentaram durante longo tempo
Lula. Ela se explica por uma união de lhar e produzir”.3 A exemplo da ESG, a da Economia, Paulo Guedes, formado colocar alguém próximo, propondo lis-
visões sobre a necessidade de o Estado END considera que a luta pela sobera- pela Escola de Chicago. tas de nomes, antes de os militares ga-
recuperar um papel ativo e afirmar a nia depende de considerações não so- nharem o posto e nomearem o almi-
soberania geopolítica do país. mente militares, mas também econô- rante Bento Costa Lima Leite.
A chegada de Lula ao poder tam- micas, sociais e geopolíticas. O destino da Petrobras permanece
bém marcou uma ruptura. À exceção Entre os principais beneficiários Em 2047, o Brasil deveria incerto. Guedes quer privatizá-la inte-
do regime militar, nenhum governo industriais desse projeto nos governos ter vinte submarinos, gralmente. Apesar de nenhum plano
havia dado tanta atenção às preocu- petistas, está a Odebrecht. Criada em concreto ter sido traçado, alguns espe-
pações do Exército, notadamente às meados dos anos 1940 como empresa
seis submarinos a culam sobre uma venda “por departa-
questões centrais levantadas por Cou- de construção, ela se diversificou sob o propulsão nuclear e mento”, que se daria apenas em alguns
to e Silva. O processo de integração re- regime militar.4 Em 2010, ostentava o um porta-aviões, serviços da empresa petroleira (nota-
gional sobre o qual trabalhou o ex-pre- mais insolente dinamismo no setor da a maior frota naval damente no âmbito da comercializa-
sidente entrou em perfeita ressonância, defesa. Próximo ao núcleo de Lula, pa- ção e da distribuição). Uma venda em
por exemplo, com a ambição militar de ra quem financiou campanhas muito
do Atlântico Sul bloco da maior empresa do país pode-
melhor controlar a região amazônica antes de sua chegada ao poder, a em- ria de fato desencadear uma crise polí-
e projetar a influência do Brasil para presa foi encarregada de equipar a tica que Bolsonaro, que não dispõe da
além de suas fronteiras, em direção ao Marinha para a vigilância das rique- Apenas quinze dias após a vitória maioria no Congresso, buscaria evitar.
Pacífico, em particular. Assim, a cria- zas petroleiras – além de vários sub- de Bolsonaro, o general Eduardo Villas Como o novo presidente – sem ne-
ção da União das Nações Sul-Ameri- marinos, a END previa que a empresa Bôas, comandante do Exército, con- nhum indício de ser um negociante
canas (Unasul), em 2008, facilitou o construísse 62 navios patrulheiros, fiou em entrevista à Folha de S.Paulo particularmente hábil –, ele garantirá
progresso de um imenso projeto de dezoito fragatas e dois porta-aviões. sua inquietude quanto a uma possível a estabilidade da base que o apoia? A
desenvolvimento de infraestrutura Os escândalos de corrupção que asso- porosidade dos quartéis às questões questão preocupa para além das fron-
pilotado no âmbito dos Estados lati- laram a Odebrecht comprometeram a políticas. Ele afirma sua vontade de teiras brasileiras.
no-americanos: construção de estra- maior parte desses projetos. traçar uma linha de demarcação clara
das, elaboração de canais de circula- A END representa um atraso na entre a instituição militar e o gover- *Raúl Zibechi é autor, notadamente, de
ção fluvial, estruturação de redes de mesma medida em que o país atraves- no.7 Em abril de 2018, na véspera do Brasil Potencia. Entre la integración regional
comunicação etc. sa uma séria crise econômica: em 2047, dia em que a justiça decidiu prender y un nuevo imperialismo, Desde Abajo, Bo-
o Brasil deveria ter vinte submarinos Lula, contudo, o que se viu foi a pres- gotá, 2012.
convencionais, seis submarinos a pro- são militar sobre o Supremo Tribunal
pulsão nuclear e um porta-aviões, o Federal. As Forças Armadas permane-
“O Brasil não será que formaria a maior frota naval do cerão atentas “às suas missões institu-
independente Atlântico Sul. Abatido, o país precisou cionais”, alertou Villas Bôas em sua
1 “Escola Superior de Guerra inicia curso inédito em
recuar suas ambições na maior parte conta do Twitter (4 abr. 2018): uma
se uma parte da das áreas, e o primeiro motor nuclear ameaça velada de golpe de Estado caso
Brasília”, Ministério da Defesa, 27 mar. 2018. Dis-
ponível em: <www.defesa.gov.br>.
população não não funcionará antes de 2029 (em vez Lula fosse absolvido. 2 Joám Evans Pim, “Evolución del complejo industrial
dispor de meios de de 2023). É por isso que os militares vi- Em sua entrevista, o general reivin-
de defensa en Brasil”, Universidade Federal de Juiz
de Fora, 2007.
aprender, trabalhar ram com bons olhos a destituição de dica a “ideologia do desenvolvimento”, 3 “Estratégia Nacional de Defesa”, Ministério da De-
Rousseff em agosto de 2016, o encarce- oriunda dos serviços de informação fesa, Brasília, 2008.
e produzir” 4 Ler Anne Vigna, “Les Brésiliens aussi ont leur Bou-
ramento de Lula em abril de 2018 e, em militares, e a elogia por seu “sentido de ygues” [Os brasileiros também possuem suas
seguida, o triunfo de Bolsonaro. grandeza” e projeto para o Brasil: “A Bouygues], Le Monde Diplomatique, out. 2013.
Para além dos festejos de grande eleição de Bolsonaro liberou uma ener- 5 Citado em Paulo Rosas, “Chanceler confirma in-
tenção de sediar base militar americana no Brasil”,
Sob os governos de Lula, o Brasil, parte dos militares, nem todas as suas gia nacionalista que estava latente e UOL, 5 jan. 2019.
pela primeira vez em sua história, ado- preocupações desapareceram. No dia não podia se expressar”, conclui ele, 6 Citado em Roberto Godoy, “Oferta de Bolsonaro
tou uma visão estratégica oficial de 4 de janeiro de 2019, o novo ministro antes de designar o resultado das elei- aos EUA para instalação de base gera críticas en-
tre militares”, UOL, 5 jan. 2019.
longo prazo, consolidada por um do- das Relações Exteriores, Ernesto de ções de outubro de 2018 como “positi- 7 “‘Bolsonaro não é volta dos militares, mas há o ris-
cumento intitulado Estratégia Nacio- Araújo, anunciou, por exemplo, que o vo”. O general Fernando Azevedo e co de politização de quartéis’, diz Villas Bôas”, Fo-
nal de Defesa (END), publicado em presidente “não excluiria” a possibili- Silva, novo ministro da Defesa, com- lha de S.Paulo, 10 nov. 2018.
8 “‘A política não está e não vai entrar nos quartéis’,
2008. Às ambições técnicas, o docu- dade de uma base militar norte-ame- partilha o mesmo sentimento: consi- afirma futuro ministro”, Correio Braziliense, Brasí-
mento soma reflexões econômicas e ricana em solo brasileiro: “Temos todo dera que sua missão principal será lia, 25 nov. 2018.
18 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

OLAVO DE CARVALHO E PAULO GUEDES

Os ideólogos de Jair Bolsonaro


Tanto Paulo Guedes como Olavo de Carvalho são representativos de uma amálgama ultraliberal conservadora defendida por
um corpo amplo de ideólogos que passaram a assumir postos-chave na atual administração e atuam com base em um grau
razoável de coesão em torno de duas ideias principais: “privatizar tudo” e “combater a hegemonia cultural esquerdista”
POR CAMILA ROCHA E LEO PUGLIA*

Q
uando Jair Bolsonaro se apre- de seu reduzido staff do que em seus
sentou como pré-candidato às parcos recursos materiais. Santoro,
eleições presidenciais de 2018, a assim como o presidente do instituto,
maior parte dos analistas polí- o economista Rodrigo Constantino,
ticos não tinha dúvidas de que ele ja- militava havia anos na internet e fora
mais seria eleito. Seriam determinan- dela em prol de uma defesa radical do
tes para seu fracasso a falta de tempo capitalismo de livre-mercado: o ultra-
na televisão, a ausência de estrutura liberalismo, corrente de pensamento
partidária, os escassos recursos mate- econômico associada à chamada Es-
riais para levar a cabo sua campanha e cola Austríaca de Economia.
o fato de que suas propostas para o Passada a campanha de Everaldo,
país seriam muito frágeis, de modo Santoro concentrou seus esforços em
que o candidato poderia ser facilmen- influenciar ativamente Jair Bolsonaro e
te desconstruído por seus oponentes e seus filhos para que aderissem ao radi-
por uma maior exposição na mídia du- calismo de mercado quando estes pas-
rante a corrida eleitoral. De fato, para saram a fazer parte do PSC, no início de
além da retórica antissistema, do anti- 2016. Na época, o capitão da reserva era
petismo radical e do discurso contra a visto pelos defensores do livre-merca-
corrupção, as poucas políticas públi- do como um adepto inflexível do de-
cas que Bolsonaro defendia enfatica- senvolvimentismo nacionalista vigente
mente se limitavam ao combate da na ditadura militar; porém, o jovem ad-
adoção de materiais didáticos consi- vogado não desistiu.
derados impróprios, ao anúncio de Em março daquele mesmo ano,
que facilitaria a posse de armas para o Eduardo Bolsonaro anunciou sua ma-
cidadão comum e à possibilidade de o trícula na primeira turma de pós-gra-
© Daniel Lafayette

Brasil se beneficiar da exploração de duação em Economia Austríaca ofere-


nióbio. A despeito disso, sua candida- cida pelo Instituto Mises Brasil (IMB),
tura era uma das únicas que realmen- fundado em 2006 e logo alçado à prin-
te estavam assentadas em um projeto cipal referência institucional da mili-
ambicioso e radical para o país e que tância ultraliberal brasileira. Além
pouco foi discutido durante seu curto disso, Flávio Bolsonaro, que atuava
período de campanha: a reestrutura- como deputado estadual no Rio de Ja-
ção da economia de acordo com um neiro, resolveu se lançar à prefeitura
cânone ultraliberal e a eliminação de da cidade nas eleições daquele ano
todo e qualquer traço de uma suposta que abrange partidos, movimentos so- mobilização popular e, em abril do com um discurso estritamente ali-
“hegemonia cultural esquerdista”, que ciais e lideranças políticas diversas, mesmo ano, o então deputado federal, nhado às pautas defendidas por San-
teria atingido seu auge durante os go- Guedes e Carvalho não atuam de mo- atento à dinâmica política e social que toro, que passou a acompanhar o can-
vernos do PT. do isolado. Ambos são representativos lhe parecia ser cada vez mais favorá- didato em praticamente todos os
Logo após a vitória do militar, as de uma amálgama ultraliberal conser- vel, resolveu anunciar sua desfiliação eventos de campanha.
atenções dos desnorteados observado- vadora que é defendida por um corpo do Partido Progressista com a inten- Em comparação com seus filhos,
res da política nacional se voltaram pa- mais amplo de ideólogos que passa- ção de alçar voos mais altos em dire- Jair Bolsonaro parecia ser mais refratá-
ra duas das figuras mais representati- ram a assumir postos-chave na atual ção ao Senado ou à Presidência em rio ao radicalismo de mercado, mas
vas de tal agenda: Paulo Guedes e administração e/ou atuam na socieda- 2018, e logo encontrou guarida no par- passou a participar como pré-candida-
Olavo de Carvalho. Tanto o primeiro de civil, com base em um grau razoável tido liderado pelo pastor Everaldo. to à Presidência de alguns eventos pro-
como o segundo são, como o próprio de coesão em torno de duas ideias Everaldo havia concorrido à Presi- movidos pelo circuito brasileiro de or-
presidente recém-empossado, perso- principais: “privatizar tudo” e “comba- dência em 2014 com o bordão “Privati- ganizações pró-mercado e, em 2017, foi
nagens tidos como polêmicos e pouco ter a hegemonia cultural esquerdista”. za tudo!”, elaborado por Bernardo apresentado pelo empresário Winston
flexíveis, o que começou a alimentar A ideia de “privatizar tudo” passou Santoro, jovem advogado e então dire- Ling, fundador do Instituto de Estudos
em alguns meios uma percepção de a fazer parte do discurso de Jair Bolso- tor do Instituto Liberal do Rio de Janei- Empresariais (IEE), ao economista
que o programa que defendem jamais naro, ainda que de forma tímida, logo ro. O Instituto Liberal foi fundado por Paulo Guedes. Guedes, assim como
será colocado em prática de fato (do após seu ingresso no Partido Social um rico empresário de origem cana- Ling, também foi fundador de uma or-
mesmo modo como a eleição de Bolso- Cristão (PSC), no início de 2016. Em dense em 1983; porém, na época da ganização pró-mercado, o Instituto
naro jamais ocorreria...). Contudo, as- março de 2015, a Campanha Pró-Im- campanha de Everaldo, experimenta- Millenium, criado entre 2005 e 2006 na
sim como Bolsonaro se tornou líder de peachment de Dilma Rousseff havia va uma decadência acentuada e se cidade do Rio de Janeiro com a ajuda de
um movimento político mais amplo experimentado um pico em termos de apoiava mais no entusiasmo militante Rodrigo Constantino e de Hélio Beltrão
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19

Jr., presidente do IMB, onde Eduardo a equipe liderada por Paulo Guedes, da ao mesmo tempo que teriam silencia- Brasil ao reunir “as ideias de Olavo de
Bolsonaro cursava a pós-graduação. qual fazem parte Sachsida e vários no- do vozes divergentes, justificando as- Carvalho com a determinação e o pa-
Ao mesmo tempo que o capitão- mes ligados ao circuito pró-mercado, sim a narrativa de resistência adotada triotismo de Bolsonaro”.1
-candidato procurava contornar as como Sallim Mattar, Paulo Uebel, Ru- pela direita brasileira contemporânea. De acordo com Araújo, Carvalho
desconfianças que continuava a susci- bem Novaes, entre outros, está comple- Carvalho provou ser um comuni- teria sido um dos primeiros a com-
tar entre os defensores do livre-merca- tamente unificada em torno do mote cador extremamente hábil ao dominar preender a gravidade do “globalismo”,
do, cresciam as tensões com as lideran- elaborado há mais de quatro anos pelo a utilização de novas linguagens e pla- que implicaria a retirada do poder do
ças de seu novo partido, que vinham jovem advogado: “Privatiza tudo!”. taformas digitais para apresentar aos povo para entregá-lo nas mãos de uma
sacrificando as pautas defendidas pu- Já o combate à suposta hegemonia seus seguidores suas ideias e apontar elite cosmopolita. Tal elite seria redu-
blicamente por Bolsonaro em nome do cultural esquerdista encontra seu um inimigo comum que pudesse dar zida em termos numéricos, mas hete-
pragmatismo político. Sem maiores de- principal estrategista em Olavo de Car- sentido à luta que anunciava. E foi as- rogênea o suficiente para comportar
longas, em agosto de 2017 foi anunciada valho, escritor que tem sido apontado sim que, nos últimos quinze anos, se tanto comunistas quanto megainves-
oficialmente a migração da família pa- como um dos mais influentes persona- difundiu entre a nova direita em for- tidores como George Soros, daí a ne-
ra o Partido Ecológico Nacional, que gens do governo, apesar de ter recusa- mação uma leitura das ideias de cessidade de alinhar o Brasil a outras
mudou seu nome para Partido Patriota. do indicações para ministérios. Às alu- Gramsci maleável o suficiente para forças conservadoras emergentes, co-
Na condição de secretário-geral do Pa- sões de que seria o principal “ideólogo” viabilizar a interpretação de qualquer mo a Hungria de Viktor Orbán, num
triota, Bernardo Santoro apresentou a de Bolsonaro, Carvalho alega ter tido acontecimento social dentro de um esforço de combater a lógica globalis-
Bolsonaro um economista conhecido poucos contatos com o presidente, que enquadramento binário em que a es- ta, como propõe o atual ministro.
no circuito pró-mercado, Adolfo Sach- seria apenas mais um entre os milha- querda seria um mal a ser combatido. No entanto, é na área da educação
sida, doutor pela Universidade de Bra- res de admiradores de sua obra. Essa atualização do anticomunismo que o escritor deve deixar sua princi-
sília e funcionário de carreira do Ipea, não apenas tornava a complexidade da pal marca, tendo indicado não so-
que, a pedido de Santoro, montou um vida social compreensível para um nú- mente o secretário de Alfabetização,
grupo de onze economistas que sema- mero maior de pessoas, como também Carlos Nadalim, como também o mi-
nalmente passaram a trocar ideias Ao romper com a fornecia uma justificativa para o enga- nistro Ricardo Vélez Rodriguez, discí-
com o político. jamento de conservadores na luta pela pulo de antigos intelectuais conserva-
As resistências dos defensores do
mídia tradicional, preservação de conquistas civilizacio- dores brasileiros, como o filósofo
livre-mercado em relação a Jair Bolso- ainda no fim dos anos nais ameaçadas. Antonio Paim e o já falecido jurista
naro pareciam começar a ceder aos 1990, Carvalho enxergou Olavo de Carvalho, porém, não foi Miguel Reale. Tanto Nadalim como
poucos e, em dezembro de 2017, o no- na internet a arena apenas pioneiro na difusão teórica de Rodriguez já se mostraram bastante
me de Paulo Guedes foi sugerido pu- seus argumentos, mas também se de- comprometidos com o combate à
blicamente por Constantino para ocu-
fundamental de disputa dicou a combater a esquerda com as “doutrinação marxista” e à difusão da
par o Ministério da Fazenda em um de hegemonia mesmas armas adotadas por Gramsci, “ideologia de gênero”, tidas como
possível governo do militar. Contudo, adaptadas para a era digital. Assim, duas ameaças graves à sociedade bra-
no início de 2018, o pré-candidato re- quando a popularidade de Dilma Rou- sileira e mencionadas pelo presidente
solveu romper com o Patriota e se filiar A aura de guia da nova direita bra- sseff passou a ruir a partir das Jorna- em seu discurso de posse.
ao Partido Social Liberal (PSL) sem sileira atribuída a Carvalho pode ser das de Junho de 2013, o escritor já ha- Evitando se comprometer direta-
nem mesmo comunicar Santoro, que considerada um dos resultados de seu via criado uma rede de comunicação mente com a política institucional,
ficou sabendo do ocorrido pelos jor- inegável pioneirismo, na medida em alternativa na internet suficientemen- Carvalho tem, por meio dessas indica-
nais. A filiação-relâmpago ao novo que foi dos primeiros conservadores te ampla para acolher uma geração de ções, a chance de influenciar a imple-
partido logo causou imenso descon- brasileiros a perceber que o centro da jovens unidos pelo repúdio a formas mentação de políticas públicas por ele
forto entre os militantes antibolsona- disputa política havia se deslocado pa- tradicionais de representação e por defendidas, que visam à construção de
ristas do PSL, reunidos na tendência ra temas morais. Ainda em 1994, em um sentimento comum de silencia- um novo consenso social no que tange
LIVRES desde 2016 e que deixaram o seu livro A Nova Era e a Revolução Cul- mento diante do “politicamente corre- à educação no país: a eliminação da
partido logo após seu ingresso. O pré- tural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci1 to”. Ao romper com a mídia tradicio- pedagogia emancipatória de Paulo
-candidato ainda causaria mais um (IAL & Stella Caymmi, Rio de Janeiro, nal, ainda no fim dos anos 1990, Freire; o questionamento do papel
choque no circuito pró-mercado ao re- 1993), o autodenominado filósofo cha- Carvalho enxergou na internet a arena educador do Estado estabelecido pela
cusar a participação no debate presi- mava a atenção para um suposto pre- fundamental de disputa de hegemo- Constituição de 1988; e o financia-
dencial promovido naquele ano pelo domínio da esquerda na vida cultural nia na sociedade contemporânea e mento do sistema de ensino por insti-
Fórum da Liberdade, evento anual or- do país. Segundo a historiografia pro- passou a difundir suas ideias e a arti- tuições privadas. É nesse último ponto
ganizado pelo IEE. posta no livro, os comunistas brasilei- cular militantes por meio de sites, re- crítico que a reforma cultural conser-
Com a intenção de afastar as des- ros teriam desistido da via armada fra- des sociais e de seu Curso Online de vadora proposta por Carvalho e o “Pri-
confianças suscitadas por tais movi- cassada e passado a concentrar seus Filosofia, pelo qual teriam passado vatiza tudo!” de Paulo Guedes se fun-
mentações bruscas, Bolsonaro resol- esforços em disputar a hegemonia cul- mais de 20 mil alunos. dem de forma mais coesa, lançando
veu de uma vez por todas selar sua tural no âmbito da sociedade civil, se- Atualmente, o escritor conta com dúvidas sobre a esperança da esquer-
aliança com os defensores do livre- guindo à risca a formulação do mar- mais de meio milhão de seguidores no da de que um possível fracasso do no-
-mercado ao apontar Paulo Guedes xista Antonio Gramsci. Twitter, Facebook e YouTube, entre os vo governo seja suficiente para retirar
como seu futuro ministro da Fazenda, Focados na luta armada, os milita- quais estão a família Bolsonaro e discí- a agenda ultraliberal conservadora do
ainda no primeiro semestre de 2018. res teriam sido coniventes com a ocu- pulos fieis às suas ideias que acabaram horizonte de disputas nacionais.
Assim, a despeito de toda sorte de sus- pação por parte da esquerda de uni- sendo indicados para postos-chave no
peitas, tensões e ressentimentos, pra- versidades, jornais, editoras e outras novo governo – fato que parece ter pe- *Camila Rocha é doutora em Ciência Polí-
ticamente toda a militância pró-mer- associações civis como forma de cons- gado a mídia de surpresa, apesar de tica pela Universidade de São Paulo; Leo
cado brasileira apoiou de forma ativa truir um consenso social em torno de Jair Bolsonaro ter dado pistas ao deixar Puglia é doutorando em Ciências Sociais
sua campanha presidencial, incluin- suas propostas. Com o passar dos sobre a mesa um dos best-sellers do es- pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
do Bernardo Santoro, que atuou como anos, os esquerdistas teriam obtido critor em seu primeiro pronunciamen- de Janeiro.
coordenador do plano de governo do sucesso em assumir a direção intelec- to após a vitória nas urnas. O termo
candidato do PSC, Wilson Witzel, e re- tual da maior parte dos espaços de dis- “discípulo”, comumente utilizado co-
centemente se tornou assessor espe- puta da sociedade civil, com destaque mo desqualificação, não soa exagerado
cial da Casa Civil do Governo do Esta- para as universidades e a mídia tradi- quando Ernesto Araújo é o persona- 1 Ernesto Araújo, “Now we do: on politics and reli-
do do Rio de Janeiro. Assim, ainda que cional, particularmente decisivas no gem em questão. Em artigo recém-pu- gion in Brazil after their recent presidential election”
Santoro não tenha acompanhado Bol- sorrateiro processo de contaminação blicado, o novo ministro das Relações [Agora fazemos: sobre política e religião no Brasil
após sua recente eleição presidencial], The New
sonaro até sua chegada ao Executivo, da vida social destinado a implemen- Exteriores afirmou, por exemplo, que a Criterion, jan. 2017. Disponível em: <www.newcri-
seus esforços não foram em vão, já que tar uma ditadura comunista no país, “Divina Providência” havia guiado o terion.com/issues/2019/1/now-we-do>.
20 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE

A violência como forma de governo


Sob a égide das obsessões securitárias e da lógica bélica e militarizada de gestão das populações indesejáveis, vai se difundindo,
como bem mostra Mbembe, a fantasia da separação e do extermínio, projetando “um mundo que se desembaraça” de muçulmanos,
negros, migrantes e todos os deserdados das tormentas mundiais. Confira abertura do dossiê “Estado de choque”, série de cinco
artigos que o Le Monde Diplomatique Brasil publica até junho de 2019
POR VERA TELLES*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama- publicamente aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tem-
dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou pos sombrios – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a re-
paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do po- solução de conflitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins
der político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais –, o presente dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abo-
mobilizam técnicas de fazer sumir, que são parte integrante de uma ampla maquinaria da minável que marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
produção de morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia polí-
tica na luta por direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

E
m 15 de janeiro de 2019, o presi- zação para o abate” que Wilson Witzel, dispositivo de gestão de populações. postas ao poder de matar, “necropolí-
dente recém-empossado Jair advogado, ex-juiz e atual governador Muito concretamente, facetas de um tica”, e às topografias diversas de
Bolsonaro, em uma de suas pri- do Rio de Janeiro postulou em sua Estado policial que ganha forma por crueldade que se constelam nos “mun-
meiras medidas de ampla reper- campanha e parece empenhado em entre os protocolos de uma suposta dos de morte” que se multiplicam nos
cussão nacional, assinou o decreto efetivar – “a polícia vai fazer o correto: normalidade democrática. campos de refugiados, prisões, zonas
que “facilita” a posse de armas. Pro- vai mirar na cabecinha e... fogo! Para Sim, e isso tem sido notado e am- ocupadas e outras tantas formas de
messa de campanha. Confere forma não ter erro”.3 Também João Doria, go- plamente discutido nesses meses to- confinamento e exclusão.
legal e estatuto de política de governo vernador recém-empossado de São dos – algo como um Brasil real, a som- Com essas noções de políticas da
a algo que vem do fundo de nossa his- Paulo: “Bandido que enfrentar a polí- bra de uma história sempre negada, inimizade e necropolítica, Mbembe
tória, reconhecendo aos ditos “cida- cia vai pro chão ... porque se não se ren- recusada, sublimada, ocultada de mil introduz uma cunha importante – e
dãos de bem” o chamado “excludente der vai pro chão ou vai pro cemitério”.4 formas, vem à tona e ganha contornos decisiva para as nossas questões – no
de ilicitude”, defendido como prerro- de formação política, sem retoques, debate hoje corrente sobre a “crise da
gativa policial e agora generalizado sem mascaramentos, sem eufemis- democracia”, ou então, para colocar
para todos – a licença para matar. Quer mos. Como bem diz a antropóloga nos termos de Wendy Brown, os pro-
dizer: o direito ao extermínio. Sabe- “Bolsonaro é Alana Moraes, “Bolsonaro é um casa- cessos de desdemocratização em cur-
mos: o decreto é uma das pontas do mento arranjado entre o nosso velho so nas últimas décadas.8 Pois são as
um casamento
que o novo governante propõe como colonialismo com um novo delírio tro- “experiências contemporâneas de
política de (in)segurança, postulando arranjado entre pical fascista”.5 Pois o poder cinegético destruição humana” que estão postas
abertamente a impunidade da polícia o nosso velho (captura, predação, expropriação, ex- e expostas nesse cenário em que vão se
em suas operações letais, o endureci- colonialismo com termínio) é também algo definidor da proliferando os deserdados e despos-
mento penal e a amplificação do en- um novo delírio matriz colonial inaugurada nos países suídos de vários matizes.9 Mas isso sig-
carceramento em massa. Analistas já atlânticos, com o extermínio das po- nifica reconhecer, sugere o autor, que
alertaram: o resultado mais do que tropical fascista” pulações indígenas e a escravidão de as questões da vida e da morte estão
provável, quase certo, é a expansão das povos negros.6 Mas então poderíamos inscritas no nomos do espaço político
milícias e grupos de extermínio, que dizer: o governo Bolsonaro parece ser em que estamos mergulhados.
assombram nossa história desde há Violência policial, chacinas e exter- o operador político que atualiza essa É o que está inscrito nos “devires
muito.1 Estamos agora vendo ao vivo e mínios acompanham nossa história matriz e essa funesta tradição, colo- negros”, fórmula sintética cunhada
em cores as figurações de uma versão desde sempre e já há indicadores de cando-as na linha de atualidade que por Mbembe e poderosa em sua capa-
atualizada do que Grégoire Chamayou que tudo isso vem aumentando em ín- atravessa o cenário contemporâneo cidade de dizer o drama do mundo
chama de poder cinegético, que se dices alarmantes desde a guinada à por todos os lados. Versão local das que se configura nos tempos que cor-
exerce pelo princípio da caçada aos ho- direita conservadora-punitivista dos “políticas de inimizade”, como diz rem.10 Como diz o autor, no século XXI,
mens, tem uma genealogia e uma larga modos de governo (2016), ao lado das Achille Mbembe, definidoras dos colo- em um cenário marcado pela planeta-
história, e, sob diferentes modalidades violências predatórias e letais contra nialismos históricos, que se reatuali- rização dos mercados e pela privatiza-
e regimes, sempre figurou como técni- populações indígenas, assentamentos zam e hoje se instalam também no co- ção do mundo sob a égide do neolibe-
ca de poder e modo de governo das po- rurais do MST, populações ribeirinhas ração dos países do Norte, fazendo ralismo, na conjugação entre
pulações indesejáveis, apesar de não afetadas pelas grandes barragens, li- erodir as regulações democráticas da economia financeira, complexo mili-
figurar entre as “artes da política de deranças e ativistas da causa ambien- convivência política. Sob a égide das tar e tecnologias digitais, vão se proli-
pleno direito”.2 Ao trazer à luz as for- tal, e outros tantos. Mas nem por isso obsessões securitárias e da lógica béli- ferando populações despossuídas de
mas de poder cinegético que parecem podemos acatar a fórmula cômoda do ca e militarizada de gestão das popu- seus ancoramentos de trabalho, prote-
hoje primar nas combalidas democra- “sempre foi assim”, como se estivésse- lações indesejáveis, vai se difundindo ção social e territórios de referência.
cias ocidentais assombradas por xeno- mos testemunhando um “mais do e se generalizando a fantasia da sepa- Populações sujeitas a formas de vio-
fobias, intolerâncias e obsessões se- mesmo” apenas muito piorado e am- ração e do extermínio, projetando “um lência, estatais e não estatais, que
curitárias, o autor coloca em novos plificado. Pois não é indiferente que, mundo que se desembaraça” dos mu- acompanham práticas e mecanismos
termos as relações entre violência e po- para retomar os termos de Chamayou, çulmanos, dos negros, dos migrantes, de racialização, os quais objetivam es-
lítica, violência como técnica de poder o modelo cinegético seja posto e ex- dos estrangeiros, dos refugiados e de sas populações como figuras indesejá-
e modo de governo. Sem eufemismos, posto como referência normativa do todos os deserdados e náufragos das veis a serem controladas, colocadas à
é o que está posto e exposto na “autori- Estado, inscrevendo a violência como tormentas mundiais7 – populações ex- parte ou então administradas em sis-
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21

vistas como espaços intrinsecamente liar o que está em jogo nos cenários
problemáticos, pontilhadas por luga- necropolíticos trabalhados pelos arti-
res de concentração de populações sob gos que compõem este dossiê. Para
suspeita, insurgentes, protagonistas de além das operações policiais altamen-
mobilização, dissensão, insubordina- te performáticas em sua letalidade, a
ção e protestos que ameaçam a segu- necropolítica opera silenciosamente,
rança dos mercados.12 em práticas recorrentes, e nos faz en-
Pois bem. E este é o ponto que inte- tender o quanto isso está entranhado
ressa aqui enfatizar: “o novo urbanis- nas rotinas e procedimentos das for-
mo militar”, diz o autor, alimenta-se ças da ordem, em seus modos de fazer
de experimentos, procedimentos, téc- a gestão das vidas e das mortes sob
nicas e tecnologias testados em zonas uma peculiar modalidade que tenta
de guerras coloniais – Iraque, Afega- fazer submergir, ocultar, quando não
nistão e, sobretudo, Gaza. Modelos ex- fazer desaparecer os corpos afetados –
plicitamente coloniais de pacificação, vivos ou mortos. Mas as questões da
militarização, controle e contenção, vida e da morte conformam uma ex-
testados e afinados nas ruas do Sul periência política, individual e coleti-
global, estão espalhados pelas cidades va – a necropolítica é atravessada por
do centro capitalista do mundo e ten- linhas de fuga que sugerem formas
dem a se difundir por todos os lados, moleculares de resistência que fazem
nas trilhas do hoje expansivo e alta- do próprio corpo afetado, mas tam-
mente lucrativo mercado da seguran- bém do sofrimento e do luto dos que
ça, também ele globalizado, por onde perderam seus familiares, um campo
circulam, junto com equipamentos, político de experimentação, e de luta.
dispositivos de vigilância e armamen- Nas filigranas dessas micro-histórias,
tos, os escritórios de assessoria, agên- é possível apreender as defesas da vi-
© Allan Sieber

cias de treinamento, manuais e seus da e das formas de vida como um


protocolos e recomendações para li- campo de batalha. É isso também que
dar com a “guerra urbana” e ensinar as está em fina sintonia com a linha de
forças da ordem a fazer uso das técni- atualidade que atravessa o cenário
cas da chamada “gestão de multidão”, contemporâneo, aqui e alhures, em
testadas nos Territórios Ocupados Pa- todos os lugares. Miríades de conflitos
lestinos. Jeff Halper vai mais longe e e modos de resistência, redes de apoio
fala de uma palestinização do mundo, e dispositivos variados de denúncia,
da qual é expressão justamente o ur- protesto, ação e rebeldia, fazendo da
banismo militarizado discutido por defesa da vida – vidas passíveis de se-
Graham. Antropólogo israelense e ati- rem vividas – um campo político,
vista da causa palestina, em um livro campo de batalha. É uma aposta que
intitulado Guerra contra populações, será preciso assumir e em torno da
temas de controle e contenção. Tudo por sob a condição de conter e subju- Halper trata de reconstituir os mean- qual será preciso se empenhar nos
aquilo que era exclusivo do preto no gar todas as populações indesejadas, dros pelos quais o hoje poderoso e ex- tempos turbulentos e sombrios que se
primeiro capitalismo, diz o autor, pas- potencialmente insubordinadas e in- pansivo complexo militar de seguran- descortinam à nossa frente.
sou a ser se não a norma, ao menos “o surgentes, pois vão se colocando em ça israelense foi ganhando o mercado
lote de todas as humanidades subal- ação dispositivos de controle regidos global e se espalhando mundo afora *Vera Telles é professora do Departamento
ternas”. Trata-se, diz ele, de uma uni- pela lógica da guerra – guerra ao es- (também no Brasil, ao qual o autor de- de Sociologia da Universidade de São Paulo
versalização da condição preta, aliada trangeiro, ao imigrado, ao muçulma- dica um tanto de páginas), tendo co- (USP).
ao surgimento de práticas imperiais no, aos precários, mas também guerra mo base – e algo como garantia de
inéditas, que utilizam tanto lógicas es- contra a autonomia das mulheres, os qualidade e eficácia – técnicas e tecno-
cravagistas de captura e predação devires minoritários da sexualidade. E logias de controle e contenção testa-
1 Ver Felipe Betim, “Planos de Bolsonaro elevam ris-
quanto lógicas coloniais de ocupação vai se processando, dizem os autores, dos e experimentados nos territórios co de expansão de milícias e grupos de extermí-
e extração, para não falar das guerras a extensão do domínio endolocolonial palestinos ocupados. Trata-se de uma nio”, El País, 13 nov. 2018.
civis ou razias das épocas anteriores. da guerra civil – “a população é o cam- indústria global de pacificação – siste- 2 Grégoire Chamayou, Les chasses à l’homme, La
Fabrique, Paris, 2010.
Não por acaso a questão do neoco- po de batalha no interior do qual se mas globais de controle e tecnologias 3 Roberta Pennafort, “‘A polícia vai mirar na cabeci-
lonialismo ou endocolonialismo está exercem operações contrainsurrecio- de segurança, testados nos territórios nha e... fogo’, diz novo governador do Rio”, O Esta-
na pauta dos debates, cada vez mais nais de todos os gêneros”. E guerra ocupados, afinados em centros de pes- do de S. Paulo, 1º nov. 2018.
4 Arthur Rodrigues, “A partir de janeiro, polícia vai
presente nos debates, nas pesquisas, contra as populações é propriamente quisa, sustentados por fundos corpo- atirar para matar, afirma João Doria”, Folha de S.
nas discussões, aqui e alhures. E tam- o que define a matriz colonial – matriz rativos poderosos e vendidos nesse ex- Paulo, 2 out. 2018.
bém não por acaso o tema da guerra colonial que se atualiza, que deixa de pansivo mercado global de segurança. 5 Alana Moraes, “Estamos condenados a sobrevi-
ver”, Urucum, 1º nov. 2018.
entrou em circulação nos debates re- ser exclusiva dos países do Sul para se E, como ele diz, essa indústria global 6 Chamayou, op. cit.
centes – como sugere Mbembe (e ou- instalar também no coração dos paí- de pacificação deveria estar no centro 7 Achille Mbembe, Políticas da inimizade, Antígona,
tros), a guerra deixou de ser um evento ses do Norte. de políticas de esquerda, ao lado de Lisboa, 2017, p.66.
8 Wendy Brown, Undoing the Demos: Neoliberalis-
histórico das disputas entre nações e Esta é questão que pode ser aqui re- outros movimentos transnacionais mo’s Stealth Revolution [Desfazendo o demos: a
passou a se constituir como exercício tomada sob um lado bem concreto, nas (feminismo, meio ambiente).13 revolução furtiva do neoliberalismo], Zone Books,
permanente da gestão das populações materialidades das formas de controle A discussão é vasta. Mas, se estou Nova York, 2015
9 Mbembe, op. cit., p.111.
e também da micropolítica. “Nós vive- e gestão dos espaços urbanos e suas aqui arriscando jogar um tanto apres- 10 Achille Mbembe, Crítica da razão negra, N-1 Edi-
mos no tempo da subjetivação das populações. É questão trabalhada por sadamente questões bem mais com- ções, São Paulo, 2018.
guerras civis”, dizem Eric Alliez e Mau- Stephen Graham ao discutir a lógica plicadas do que está sendo dito, é por- 11 Eric Alliez e Maurizio Lazzarato, Guerres et capital,
Éditions Amsterdam, Paris, 2016.
rizio Lazzarato em livro recente.11 No militarizada de controle e gestão dos que isso nos ajuda a situar, de uma 12 Stephen Graham, Cidades sitiadas: o novo urba-
contexto de uma pós-democracia au- espaços das cidades, sob a figuração perspectiva transnacional, as ques- nismo militar, Boitempo, São Paulo, 2016.
toritária e policial gerida pelos técni- das “guerras urbanas”, essa noção que tões hoje postas no cenário brasileiro. 13 Jeff Halper, War against people: Israel, the palesti-
nians and global pacification [Guerra contra popu-
cos do mercado, dizem os autores, o circula amplamente entre autoridades Mais concretamente, uma perspectiva lações: Israel, os palestinos e pacificação global],
primado dos mercados só pode se im- policiais e gestores urbanos – cidades ampliada que talvez nos ajude a ava- Pluto Press, Londres, 2015.
22 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

QUAIS SÃO AS PRIORIDADES DE JEREMY CORBYN?

Brexit de esquerda,
um caminho bastante estreito
Considerado uma ameaça por alguns conservadores, o Brexit pode representar uma oportunidade para os trabalhistas caso
estes cheguem ao poder. Livres dos tratados neoliberais que regem a União Europeia, eles teriam mais margem para colocar
em prática seu programa. Falta convencer seus militantes de que é possível um Brexit que não seja de direita
POR CHRIS BICKERTON*

“E
u amo Corbyn / Eu odeio o visava especificamente impedir o es- da de iniciativas: a melhoria das in- mente, ele é baseado no consumo. Em
Brexit.” Há alguns meses, esse tatismo e o coletivismo que eles ob- fraestruturas locais, a proteção dos um contexto em que a fraca produtivi-
slogan adorna camisetas de al- servavam do outro lado da Cortina de “locais de memória”... Mas um gover- dade puxa os salários para baixo, seu
guns ativistas trabalhistas. Ele Ferro e que eram defendidos sobretu- no que trabalhasse para fazer reviver financiamento depende em grande
ilustra o paradoxo com que o Brexit do pelos poderosos partidos comunis- economias regionais estagnadas se ve- parte do boom imobiliário. Mas o au-
confronta a esquerda britânica. Desde tas da França e da Itália. Assim, apesar ria imediatamente criticado por Bru- mento no valor da habitação favorece
que Jeremy Corbyn assumiu as rédeas de sua neutralidade teórica, a União xelas, por causa de suas políticas dis- os baby boomers, que compraram suas
em 2015, o Partido Trabalhista reto- Europeia tem sistematicamente favo- criminatórias. Trabalhar em favor de casas na década de 1990. Ele exclui, em
mou projetos que negligenciara havia recido a abertura dos mercados. Des- uma região específica, às vezes em de- contrapartida, as gerações nascidas
muito tempo: renacionalizar os servi- de a assinatura do Ato Único em 1986, trimento de seus concorrentes, não entre os anos 1980 e 2000. Romper com
ços públicos dilapidados após sua pri- o Tribunal de Justiça Europeu decidiu constitui, no entanto, a própria defini- essa arquitetura econômica para de-
vatização; reabilitar o investimento a maioria dos conflitos que opunham ção de uma política regional? senvolver a economia produtiva, fonte
público, em particular no setor indus- o interesse nacional e o setor privado O mesmo acontece com a liberda- de empregos, exigiria ferramentas que
trial, um gerador de empregos; enqua- em favor deste último. Em tal contex- de de circulação dos trabalhadores. permitissem controlar o fluxo de capi-
drar as finanças de modo que elas já to, o Brexit poderia oferecer um banho Criticar esse direito é agora um tabu tal, o que é proibido por Bruxelas. De
não ditem sua lei para a população. de juventude à esquerda, permitindo entre a esquerda. Arriscar-se a isso é o fato, o mercado imobiliário britânico
Rompendo com anos de recuos ideoló- que ela se refizesse ideologicamente e caminho mais seguro para ser rotula- há muito tempo é um setor especulati-
gicos, essas perspectivas atraíram se reconectasse com sua base social do como “xenófobo”, “racista” ou “ver- vo: as moradias às vezes são mais in-
grandes setores da população. Em original: as classes populares. melho-marrom” (termo pejorativo vestimentos que locais de residência.
poucos meses, o Partido Trabalhista para definir quem, a exemplo do ex- Reabilitar o setor industrial tam-
subiu para o posto de maior partido -presidente sérvio Slobodan Miloševic, bém envolve sacudir a arquitetura con-
europeu em número de filiados.1 passou do comunismo para um na- temporânea das cadeias de valor, em
Mas, enquanto Corbyn sempre se O Brexit já começou cionalismo étnico). Nas origens da que os fornecedores (principalmente
mostrou crítico em relação à orienta- a transformar construção europeia, essa “liberdade” pequenas e médias empresas) enfren-
ção neoliberal da construção europeia, o mercado de trabalho foi exigida pelo governo italiano, que, tam um pequeno número de compa-
a maioria dos novos ativistas de seu na década de 1950, queria exportar nhias dominantes no mercado que po-
partido votou pela permanência do
britânico, sob o seus desempregados para se proteger dem exercer pressão de baixa sobre os
Reino Unido na União Europeia no re- olhar preocupado dos de suas reivindicações. Hoje, a flexibi- rendimentos de seus beneficiários. Se-
ferendo de 23 de junho de 2016 – em es- lobistas do setor lidade e a abertura do mercado de tra- rá difícil mudar esse equilíbrio de po-
pecial nos grandes centros urbanos e empresarial balho britânico liberam os emprega- der sem uma política industrial volun-
entre a população jovem que aprendeu dores de se preocupar com a formação tarista que combine investimentos de
a associar a ideia de Europa a uma for- profissional: o fluxo de migrantes per- longo prazo com formas de proteção da
ma de internacionalismo benigno. Es- mite que eles utilizem as habilidades produção local, a fim de permitir o de-
se fato implicitamente levanta esta A PERGUNTA ERRADA adquiridas (e financiadas) em outros senvolvimento de novos setores, bem
questão: podemos ao mesmo tempo Uma política regional destinada a lugares. Também não há nenhuma ne- como de suas cadeias logísticas e de
defender o programa econômico e so- revitalizar a economia do Mezzogior- cessidade de aumentar os salários para distribuição. Investimentos públicos?
cial de Corbyn e a permanência do Rei- no italiano, dos Hauts-de-France ou atrair novas capacidades de trabalho. Protecionismo? A União Europeia priva
no Unido na União Europeia? Em ou- das antigas aldeias mineiras do País de O Brexit já começou a transformar os Estados de tais ferramentas.
tras palavras, é possível transformar o Gales enfrentaria o enquadramento o mercado de trabalho britânico, sob o Corbyn tentou não isolar a parte de
funcionamento da economia britânica europeu das ajudas públicas. Em âm- olhar preocupado dos lobistas do setor seu eleitorado que defende ao mesmo
no contexto dos tratados europeus? bito nacional, estas últimas só são per- empresarial. No setor da construção, tempo seu programa econômico e a
“Sim!”, afirmam os apoiadores de mitidas na medida em que não preju- em que a porcentagem de trabalhado- permanência do Reino Unido na
Bruxelas, esquecendo-se de dizer que diquem a “livre e não distorcida res dos Estados-membros da União União Europeia – ainda que para man-
a União Europeia só tolera as mudan- concorrência” consagrada no mármo- Europeia é particularmente elevada ter a ambiguidade. Dessa forma, o Par-
ças econômicas quando elas aceleram re dos tratados. Existem diferenças (35% em Londres e no sudeste da In- tido Trabalhista prometeu que, se che-
o processo de liberalização. Os trata- importantes entre os países da União glaterra), os salários estão crescendo gasse às negociações, lutaria por um
dos não sancionam automaticamente Europeia em termos de ajudas esta- mais rapidamente do que a média: acordo para o estabelecimento de uma
políticas progressistas, mas impõem tais: em 2016, a França gastava com 4,6% entre maio e agosto de 2018, con- união aduaneira permanente – um ar-
sérios limites a elas. Uma surpresa? elas 0,65% de seu PIB; a Dinamarca, tra 3,1% no restante da economia. ranjo que obrigaria o Reino Unido a
Na verdade, não, já que em suas ori- 1,63%.2 De acordo com os tratados da Sair dos tratados europeus tam- respeitar todas as regras estabelecidas
gens o projeto europeu, concebido por União Europeia, o investimento públi- bém poderia ajudar a repensar o mo- pela União Europeia –, sem em nada
conservadores e democratas cristãos, co é permitido para uma gama limita- delo de crescimento britânico. Atual- renunciar ao seu programa no que
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23

concerne a nacionalizações ou ao in-


tervencionismo econômico.3
Hoje, cresce a pressão para obter a
organização de um segundo referendo
sobre a saída da União Europeia – exi-
gido pelos principais editorialistas,
por uma grande parte do patronato e
pelos setores mais europeístas dos
partidos Conservador e Trabalhista.
Corbyn, por sua vez, avança a ideia de
que a saída para o atual caos passa so-
bretudo por uma eleição geral. “Quer
tenham votado pela permanência na
União Europeia ou pela saída”, ele ex-
plicou em um discurso em 10 de janei-
ro de 2019, “as pessoas sabem que o
sistema não serve a elas. Alguns acre-
ditam que essa Europa os protege con-
tra a precariedade e a insegurança.
Outros pensam que ela justamente faz
parte dessa elite que os mergulha na
precariedade e na insegurança. [...]

© Garry Knight / cc
Mas, em ambos os lados dos campos
que se desenharam nessa ocasião, o
referendo sobre a Europa abrangia
muito mais que nosso relacionamento
com nossos parceiros comerciais e as
regras que o cercam. Ele tinha a ver Jeremy Corbyn: “s pessoas sabem que o sistema não serve a elas”
com o ato de nos expressarmos sobre
como fomos tratados por décadas e
com o modo de construirmos um fu- conseguiram encontrar seu lugar na vivem em Clacton ou em lugares desse Por sua parte, os conservadores pa-
turo melhor.” Nessas circunstâncias, a economia pós-industrial – conhecida tipo”, ele havia explicado. “Mas, muito recem no momento determinados a
empolgação da mídia em torno do como “do conhecimento” – votaram honestamente, apoio a ideia de que salvar o essencial. Eles ajudaram a in-
Brexit distorce, segundo ele, as priori- esmagadoramente pela saída da União não deveríamos nos incomodar com a fligir a mais severa humilhação na his-
dades dos britânicos. Estes últimos es- Europeia.4 opinião delas.”5 Em 2016, mais de 70% tória do Parlamento britânico a There-
tariam menos dispostos a responder à dos eleitores de Clacton-on-Sea vota- sa May ao rejeitar seu projeto de acordo
pergunta “A favor ou contra a Euro- ram pela saída da União Europeia. com Bruxelas por 432 votos contra 202
pa?” que a outra: “A favor ou contra as No entanto, um abismo permane- em 15 de janeiro. Mas rapidamente su-
políticas conduzidas desde que Mar- O voto a favor do ce entre aquela parte da população peraram suas divisões sobre a questão
garet Thatcher chegou ao poder, em Brexit revela menos cuja angústia social levou ao voto no europeia para rejeitar o voto de des-
1979?”. A primeira das duas perguntas “intolerância” ou Brexit, sub-representada no Partido confiança proposto pelos trabalhistas
convida a outro referendo; a segunda Trabalhista, e a maioria dos ativistas no dia seguinte, cuja adoção teria pre-
exige novas eleições. Problema: qual-
“racismo” população pró-Corbyn, seduzidos por seu proje- cipitado a realização de novas elei-
quer voto de desconfiança ao governo que a profundidade da to político, mas convencidos de que a ções. Favorável a um “Brexit duro” e
de Theresa May requer o apoio de uma angústia social da maioria saída da União Europeia denota um contrário ao arranjo elaborado pela
parte dos conservadores ou do Partido dos britânicos movimento xenófobo e intolerante – primeira-ministra, o deputado Mark
Unionista Democrático da Irlanda do em suma, que só existe Brexit de direi- Francois justificou sua decisão de
Norte (DUP), ultraconservador e hostil ta. Estes exigem um segundo referen- apoiá-la: “Podemos ter nossas diferen-
à ideia de uma união aduaneira... do, em especial se ele propuser anular ças na questão europeia, mas eu sou,
No entanto, o voto a favor do Brexit Esse foi o caso de Clacton-on-Sea, o resultado do anterior. Eles podem acima de tudo, um conservador”.
revela menos “intolerância”, “racismo” estância balneária do Mar do Norte, contar com o apoio de uma parte dos
ou “insularidade” da população – co- famosa nos anos 1960 e 1970, mas es- deputados trabalhistas, que, no Con- *Chris Bickerton é cientista político da Uni-
mo a mídia eurófila se empenhou em quecida desde então. Dinâmica no gresso de setembro de 2018, forçaram versidade de Cambridge.
ressaltar – que a profundidade da an- passado, a cidade agora depende de Corbyn a “aceitar considerar a possi-
gústia social da maioria dos britâni- subsídios do Estado para sobreviver. bilidade” de apoiar a ideia de uma se-
cos. A votação de 23 de junho de 2016 Ela voltou à tona quando elegeu o pri- gunda votação, se ele não conseguisse
foi caracterizada por uma alta partici- meiro (e único) deputado oriundo do realizar uma eleição geral. Em 18 de
pação (mais de 72%, contra 68% nas Partido de Independência do Reino janeiro, no entanto, o site do bastante
eleições gerais de 2017 e 66% nas de Unido (Ukip), hostil à imigração, em eurófilo Guardian abria outra ameaça
2015), marcando o retorno às urnas de 2014. Na época, o jornalista e ex-depu- para o Partido Trabalhista: a renúncia 1 Ler Allan Popelard e Paul Vannier, “Renaissance
pessoas que não votavam havia déca- tado conservador do distrito de West dos deputados mais próximos da li- des travaillistes au Royaume-Uni” [Renascimento
dos trabalhistas no Reino Unido], Le Monde Diplo-
das. Obviamente, a questão levantada Derbyshire, Matthew Parris, argu- nha de Corbyn, convencidos de que matique, abr. 2018.
fez as pessoas quererem responder. O mentou que seu partido deveria “virar pedir uma nova votação seria o mes- 2 “State Aid Scoreboard 2017” [Painel de avaliação
voto pela permanência na União Euro- as costas” para Clacton-on-Sea, “uma mo que atropelar os princípios demo- dos auxílios estatais 2017], Comissão Europeia.
Disponível em: <http://ec.europa.eu>.
peia registrou suas maiores pontua- cidade que não tem futuro algum”, cráticos e, por fim, afastar definitiva- 3 Ler Renaud Lambert, “Un sourire derrière la barbi-
ções nas zonas eleitorais urbanas: “cujos eleitores não têm futuro algum”, mente as pessoas hostis à União che” [Um sorriso por trás do cavanhaque], Le Mon-
Londres e seus bairros jovens e elegan- um concentrado dessa “Grã-Bretanha Europeia... Tais contradições têm ori- de Diplomatique, abr. 2018.
4 Ler Paul Mason, “‘Brexit’, les raisons de la colère”
tes, como Lambeth (78,6%) e Islington que só se sustenta graças a muletas, gem na evolução sociológica e ideoló- [“Brexit”, as razões para a raiva], Le Monde Diplo-
(76,4%), mas também em cidades im- uma Grã-Bretanha que se veste de gica do Partido Trabalhista nos últi- matique, ago. 2016.
pulsionadas por um forte crescimento agasalho e usa tênis”. “Não estou suge- mos trinta anos. O Brexit os cristaliza 5 Matthew Parris: “Tories should turn their back on
Clacton” [Os conservadores deveriam voltar as
econômico, como Cambridge (73,8%) rindo que não devamos nos preocupar de forma repentina, de um modo par- costas a Clacton], The Times, Londres, 6 set.
e Oxford (70%). Já as regiões que não com as necessidades das pessoas que ticularmente agudo. 2014.
24 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

A BURRICE NO PODER

Um pouco de bom senso, por Dios!


Embora cercados de meios de comunicação, nós vivemos em uma sociedade profundamente desinformada.
Entre fatos e opiniões, preferimos tranquilizar o fígado, deformando os fatos para justificar nossas crenças.
Mobilizar as pessoas pelo ódio rende muito mais que tentar explicar a realidade
POR LADISLAU DOWBOR*

A história nos ensina


que no início das maiores tragédias
havia ignorância.
Ai Weiwei

A
burrice no poder tende não só a
se perpetuar, como também ne-
la se afundar. A quantidade de

© Daniel Kondo
tragédias que promove exigiria
tamanha confissão de incompetência
que assumir a burrice seria demasiado
penoso. “Uma vez que uma política foi
adotada e colocada em prática, toda
atividade subsequente se transforma
num esforço para justificá-la”, destaca
a historiadora Bárbara Tuchman, que
chama esse movimento de “marcha da
insensatez”. Apontar absurdos não é
negativo. Corrigir os erros óbvios pode
ser mais factível do que buscar distan-
tes utopias.

A BURRICE DA AUSTERIDADE
A austeridade nunca funcionou
porque o capitalismo, para se expan-
dir, precisa de produtores e de consu-
midores. Segundo os defensores da A BURRICE DO GOLPE ração, em 2018, de 64 milhões de adul- brevivência é deixar a oligarquia e os
austeridade, não haveria recursos sufi- O Banco Mundial qualificou os tos endividados. Acrescentem as famí- interesses internacionais livres para
cientes para incluir os mais pobres, anos 2003 a 2013 de “a década doura- lias e estamos falando da massa da aprofundar seus desmandos.
afinal políticas sociais e salário míni- da” da economia brasileira, com base população. Quando Dilma tentou, em
mo decente não caberiam no orça- na queda do desemprego de 12%, em 2012, reduzir as taxas de juros, come- A BURRICE DO RENTISMO
mento. A fase do lulismo mostrou jus- 2002, para 4,8%, em 2013; na abertura çou a guerra política, com manifesta- Diferenciar investimento produti-
tamente o contrário disso: a economia de 18 milhões de empregos formais; na ções, boicote e denúncias. A partir de vo e aplicação financeira é fundamen-
cresceu, a renda dos mais pobres e das retirada de 38 milhões de pessoas da meados de 2013 não houve mais gover- tal. Lucro sobre investimento gera
regiões mais pobres aumentou mais pobreza; na redução do desmatamen- no e, em 2016, a burrice atingiu o ápice empregos e produtos e paga impostos.
do que a renda dos mais ricos. Todos to da Amazônia de 28 mil para 4 mil com a lei do teto de gastos. Investi- Lucro sobre aplicações financeiras
ganharam; os pobres, de maneira quilômetros quadrados; no acesso à mentos sociais foram cortados, mas as constitui dividendos e assegura gran-
mais acelerada, reduzindo a desigual- luz elétrica para 15 milhões de pes- taxas de juros foram mantidas. O siste- des retornos para quem não produz
dade. A ascensão dos pobres, porém, soas, e assim por diante. Um processo ma financeiro travou a economia. Só nada. Nas últimas décadas, os papéis
gerou nos ricos a reação esperada: re- firme durante dez anos seguidos é um em termos de comparação, com R$ 30 financeiros renderam no mundo en-
conhecer que funciona o que eles sem- caminho, não oportunismo. E o Brasil bilhões ao ano, o Bolsa Família vinha tre 7% e 9% ao ano; já a produção de
pre disseram que não funciona seria conta com 150 milhões de pessoas que gerando demanda e dinamizando a bens e serviços cresceu 2% a 2,5% ape-
penoso demais. Com o golpe e a lei do precisam melhorar seu consumo indi- economia, enquanto centenas de bi- nas, ou seja, o investimento produtivo
teto de gastos, o aprofundamento da vidual e coletivo, constituindo imensa lhões de reais por ano, gastos apenas cresceu muito menos que a especula-
desigualdade foi institucionalizado. oportunidade de dinamização econô- com juros sobre a dívida pública – dez ção. É o chamado “efeito bola de ne-
O Brasil produz R$ 6,3 trilhões de mica, um horizonte de expansão. Nos- vezes o Bolsa Família –, foram drena- ve”: um bilionário que aplica seu di-
bens e serviços, o montante de nosso so mercado externo representa apenas dos dos cofres públicos para os cofres nheiro a modestos 5% ao ano ganha
PIB, ao ano. Dividido por 208 milhões 10% de nossa economia. dos rentistas. E mais: como as finan- US$ 137 mil ao dia, sem precisar pro-
de habitantes, isso dá R$ 30 mil ao ano Apesar dos dados, persiste a narra- ças deformadas quebraram a econo- duzir nada. A cada dia, a maior parte
per capita, ou seja, R$ 10 mil por mês tiva de que Dilma quebrou a econo- mia, o déficit aumentou. Derrubamos desse dinheiro é reaplicada, garantido
por família de quatro pessoas, o que mia. Não foram as políticas econômi- políticas que estavam dando certo, um enriquecimento improdutivo que,
asseguraria o suficiente para uma vida cas e sociais que geraram o déficit, desfiguramos a Constituição que nos gradualmente, multiplica os bilioná-
digna e confortável. Nosso problema mas juros escorchantes sobre a dívida protegia de absurdos, elegemos um rios e trava a economia. É o capitalis-
nunca foi a escassez de recursos, mas a pública e a dívida privada, a chamada personagem fraco e sem base organi- mo perdendo sua principal justificati-
burrice em sua distribuição. financeirização, responsável pela ge- zada, cuja única possibilidade de so- va, a produtividade.
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25

De crise em crise, vimos o 1% dos financiamento das políticas sociais, e individual estejam no âmbito empre- COMPETIÇÃO OU COLABORAÇÃO
mais ricos do planeta se apropriar de uma população com mais saúde e sarial, que políticas sociais e infraes- Nós privilegiamos a guerra de to-
mais riqueza do que os 99% seguin- educação é mais produtiva. truturas estejam no âmbito do Estado e dos contra todos. Em grande parte,
tes. A curto e médio prazo, funciona Não são necessárias ideologias e que seja assegurado, de modo articula- trata-se de nossa natureza. O essen-
muito para o 1%, mas não funciona ódios, basta observar o que funciona: do com as organizações da sociedade cial é que constatamos, em tantos
para o conjunto. A institucionaliza- a economia orientada segundo as civil, o ajuste entre ambas as políticas exemplos pelo mundo, que a guerra de
ção da remuneração dos improduti- prioridades e o bem-estar das famí- (privadas e públicas). todos contra todos também se deve a
vos muito superior à dos que produ- lias. A desigualdade mantém uma ati- dimensões irracionais. Mas o desen-
zem é sistemicamente disfuncional. vidade de base estreita e de baixa pro- A SOCIEDADE DESINFORMADA volvimento funciona em sociedades
Hoje, os “mercados”, grupo limitado dutividade. Todos os exemplos Embora cercados de meios de co- centradas na colaboração, como o Ca-
de especuladores, apresentam um positivos – do Canadá à Coreia do Sul, municação, nós vivemos em uma so- nadá ou os países nórdicos, que pros-
surto de otimismo a cada redução passando pela Alemanha, os países ciedade profundamente desinforma- peram não só em termos de qualidade
dos direitos da população. É a lógica nórdicos e, evidentemente, a China – da. Entre fatos e opiniões, preferimos de vida, como também de produtivi-
da insensatez. O que funciona é di- basearam-se em expandir o mercado tranquilizar o fígado, deformando os dade econômica. A vida é o próprio
nheiro investido produtivamente em interno e as políticas sociais, em vez fatos para justificar nossas crenças. caminhar, e tornar o caminho menos
projetos e programas geradores de de privilegiar minorias. Mobilizar as pessoas pelo ódio rende espinhoso pode ser mais importante
efeitos multiplicadores em termos de muito mais que tentar explicar a reali- que chegar mais rápido. Já é tempo de
dinamização econômica, de prote- ESTADO, EMPRESA E SOCIEDADE CIVIL dade; encontrar um culpado para to- começarmos a nos civilizar. Temos
ção do meio ambiente e de melhoria ORGANIZADA dos odiarem gera uma catarse popu- ciência e riqueza necessárias para as-
do bem-estar das famílias. Precisamos de instituições que lar poderosa. segurar o bem-estar de todos, sem es-
garantam a realização de políticas Uma gigantesca indústria planetá- sa ideologia obsessiva do “sucesso in-
A BURRICE DA DESIGUALDADE que façam sentido. Onde funciona- ria se aproveita de nossa fragilidade no dividual”. Quando as regras se tornam
Manter a desigualdade está no ram, as políticas se apoiaram na arti- uso da razão, de demagogos políticos fluidas e as leis ajustáveis, impera o
centro das propostas do poder, po- culação equilibrada entre Estado, em- com discursos de ódio e de grandiosi- arbítrio do mais forte. Realização,
rém, a partir de certo nível de desi- presas e organizações da sociedade dade a gigantes do carvão e petróleo, sim, naturalmente, mas não sobre as
gualdade, o sistema se torna disfun- civil. As corporações sem controle do financiadores de campanhas mun- costas dos outros e muito menos sobre
cional. Inúmeros estudos mostram interesse público viram máfia; o Esta- diais que afirmam que “mudanças cli- seus cadáveres.
uma radical melhoria na sociedade do sem controle público vira ditadura; máticas são invenção acadêmica”.
quando os pobres obtêm acesso a ren- o interesse público sem organizações Uma sociedade sobrecarregada de in-
das decentes e quase nenhuma quan- da sociedade civil para enfrentar de formação, mas profundamente desin- ***
do os milionários ganham mais mi- maneira articulada os desmandos é formada, apenas evidencia a forma
lhões. Quanto mais dinheiro chegar à simplesmente desconsiderado. O ob- idiota como organizamos o acesso ao Voltamos ao problema básico: a
base da pirâmide social, maior será o jetivo é o desenvolvimento sustentá- conhecimento. imensa dificuldade de nos governar-
dinamismo econômico e a capacida- vel equilibrando interesses econômi- mos com um mínimo de bom senso.
de multiplicadora de felicidade. cos, sociais e ambientais. O PARADOXO DAS TECNOLOGIAS Visões estratégicas existem e são ra-
A desigualdade é, sobretudo, um Avanços tecnológicos exigem for- zoavelmente óbvias: resgate da di-
problema ético. Morrem de fome ou mas inovadoras de organização social. mensão pública do Estado, taxação
de falta de acesso a água segura cerca No vale-tudo do liberalismo ou neoli- dos capitais improdutivos que nos go-
de 6 milhões de crianças por ano, e Manter a desigualdade beralismo, as novas tecnologias permi- vernam, reforma do sistema tributá-
850 milhões pessoas passam fome no está no centro das tem, por exemplo, liquidar a vida nos rio, obrigação de transparência dos
mundo, quando produzimos (só de mares em escala sem precedentes. É a fluxos financeiros, renda básica de ci-
grãos) mais de 1 quilo por pessoa por
propostas do poder, catástrofe em câmera lenta, resultante dadania, redução da jornada de traba-
dia. Ela é também disfuncional em porém, a partir de certo do descompasso entre a criatividade lho conforme o avanço da produtivi-
termos sociais e políticos. A partir de nível de desigualdade, (que permite o avanço tecnológico) e o dade, resgate do papel das cidades
determinado nível de desigualdade o sistema se torna pensamento sistêmico sobre como se como unidades básicas de governan-
não há solidariedade social ou conví- articulam essas transformações a lon- ça, constituição de um mínimo de go-
vio democrático que sobrevivam. A
disfuncional go prazo. Ao mesmo tempo, as oportu- vernança global no caos internacional
violência se torna latente em todas as nidades são imensas. Em vez de desem- que se constata e, obviamente, uma
esferas. Pessoas reduzidas ao deses- prego, a maior produtividade (garantida democratização da mídia que permita
pero reagem de maneira desesperada Tanto o consumo direto como a ati- pela tecnologia) deveria significar me- a existência de uma sociedade efetiva-
e, evidentemente, há limites no bom vidade empresarial geram receitas para nos tempo de trabalho e mais tempo mente informada. É preciso enfrentar
senso de milhões de indivíduos que o Estado, que, por sua vez, poderá utili- dedicado à cultura, ao lazer, ao conví- a dimensão essencialmente política
encontram todas as portas fechadas. zar esses recursos no chamado salário vio. Distribuir melhor a jornada de tra- desses desafios, a centralidade da
No plano econômico, por sua vez, indireto, assegurando o consumo cole- balho, deixar a economia se expandir questão do poder. O tempo não ajuda:
a desigualdade constitui uma imensa tivo de serviços como saúde, educação, em áreas que nos permitam aproveitar estamos apenas adiando medidas até
burrice. O New Deal de Roosevelt, o cultura, rio limpo, infraestruturas e se- a vida e assegurar a renda básica são que uma catástrofe planetária gere a
Welfare State dos países hoje desen- melhantes. O acesso ao consumo cole- medidas que permitiriam, durante a força política necessária.
volvidos, a “década dourada” do Bra- tivo é muito mais barato. É muito mais transição, que ninguém permanecesse Paulo Freire declarou um dia que
sil, todos tiveram em comum a expan- eficiente ter um serviço público gratui- em situação de desespero. queria “uma sociedade menos malva-
são da capacidade de compra da base to e universal de saúde como no Cana- Precisamos de instrumentos de re- da”. Nossos desafios são imensos e a
da população e o acesso a políticas so- dá do que um sistema privatizado como gulação que evitem a destruição do pla- nós cabe a tarefa de explicar o óbvio:
ciais públicas e universais, que permi- nos Estados Unidos: o norte-americano neta. Quem maneja tecnologia precisa uma sociedade que funcione tem de
tiram ampliar a escala de produção e gasta US$ 9.400 por ano com doenças; o assumir a responsabilidade de ela não ser uma sociedade para todos. A bur-
o emprego. O que a empresa mais quer canadense, US$ 3.400 por ano com saú- ser apenas economicamente viável, rice se enfrenta, de preferência, com
é ter mercado. Investir no bem-estar de, e vive melhor. mas socialmente justa e ambiental- inteligência.
das populações gera demanda que É ridículo chamar investimentos mente sustentável. O vale-tudo organi-
amplia a produção e assegura mais públicos de “gastos” quando se trata de zacional do século XX com as tecnolo- *Ladislau Dowbor, economista, é professor
empregos, aumentando mais ainda a assegurar o acesso a bens de consumo gias do século XXI não tem como da PUC-SP, consultor de diversas agências
demanda. O consumo das famílias e a coletivo essenciais, da forma mais efi- funcionar. Utilizar tanta tecnologia e das Nações Unidas e autor de numerosos li-
produção empresarial geram impos- ciente possível. É burrice desenvolver conhecimento sofisticado para apro- vros e estudos técnicos disponíveis de forma
tos que aumentam as receitas do Esta- uma guerra ideológica pró ou anti-Es- fundar a crise ambiental e o desastre aberta e gratuita em: <http://dowbor.org>.
do, fechando a conta. Isso permite o tado. É natural que bens de consumo social constitui burrice sistêmica. Contato: ldowbor@gmail.com.
26 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

A REBOQUE DA POLÍTICA PARA O ORIENTE MÉDIO DE DONALD TRUMP

Israel perde o apoio dos


judeus norte-americanos
As relações entre o governo de Israel e os judeus dos Estados Unidos estão cada vez mais distantes.
Enquanto o primeiro aprofunda sua opção pela extrema direita, os segundos ancoram-se mais e mais no campo
progressista, fustigando a ocupação e a colonização – políticas apoiadas pela Casa Branca
POR ERIC ALTERMAN*
© Suryara

A
lista de convidados na inaugura- a senhora Adelson tornou-se recente- do crescente antissemitismo na Euro- redes sociais. “Por outro lado, os ar-
ção da nova embaixada dos Es- mente a editora de Israel Hayom, um pa e nos Estados Unidos. Em agosto de ruaceiros antirracistas e aqueles do
tados Unidos em Jerusalém, em folheto de propaganda pró-“Bibi” (di- 2017, militantes neonazistas desfila- Black Lives Matter que odeiam meu
14 de maio de 2018, era sur- minutivo de Benjamin) amplamente vam em Charlottesville gritando: “Não país (e os Estados Unidos também, na
preendente. Ao lado do primeiro-mi- financiado por seu marido. vamos deixar os judeus nos substituí- minha opinião) estão se tornando ca-
nistro israelense, Benjamin Netanya- Em contrapartida, o público não rem”. Um dos manifestantes avançou da vez mais fortes e começando a do-
hu, estavam os pastores evangélicos incluía judeus progressistas. Estes não com seu carro sobre uma multidão de minar as universidades e a vida públi-
John Hagee e Robert Jeffress. Hagee tinham sido convidados para a ceri- opositores antirracistas e matou uma ca norte-americanas.”
considera que Adolf Hitler foi o “braço mônia. Eles são, no entanto, maioria mulher. Como reação, Trump deu as Mais recentemente, enquanto um
armado de Deus”;1 Jeffress acredita nos Estados Unidos: nas eleições de costas a ambos os lados, explicando admirador fanático de Trump acabava
que todos os judeus estão destinados meio de mandato de novembro de que as reuniões de extrema direita de assassinar onze judeus em uma si-
ao inferno. Um e outro animam a cor- 2018, três quartos dos eleitores judeus contavam também com “pessoas mui- nagoga de Pittsburgh, em 27 de outu-
rente mais favorável a Israel na socie- teriam votado num candidato demo- to boas”. Por seu lado, o primeiro-mi- bro de 2018, representantes do governo
dade norte-americana: a dos cristãos crata, de acordo com as pesquisas rea- nistro israelense esperou três dias an- israelense se dirigiram precipitada-
conservadores sionistas.2 Sheldon lizadas na boca de urna. tes de reagir e depois se contentou com mente ao local do crime sem terem sido
Adelson e Miriam Adelson também es- um tuíte lacônico que nem sequer convidados. Recusando-se a atribuir
tavam presentes. Esse casal de magna- “OS ARRUACEIROS ANTIRRACISTAS” mencionava o nome do presidente qualquer responsabilidade pelo evento
tas do setor dos cassinos é o principal Donald Trump e Netanyahu não norte-americano. Ele preferiu deixar à retórica cheia de ódio do presidente
doador do Partido Republicano, para o têm em comum apenas o apoio dos para seu filho o cuidado de se dirigir à norte-americano, eles acusaram mais
qual contribuiu com US$ 82 milhões cristãos sionistas e do casal Adelson. sua base política, como Trump por ve- uma vez a esquerda. Naftali Bennett,
em 2016 e com US$ 113 milhões para Ambos gostam de justificar seus fra- zes faz com sua filha ou seu genro. Os ministro da Diáspora e da Educação,
as eleições de 2018.3 Ambos demons- cassos apoiando-se em teorias da neonazistas “pertencem ao passado. chefe do Lar Judaico, um partido nacio-
tram apoio inabalável ao governo con- conspiração. Eles também se mostram Sua raça está em via de se extinguir”, nalista ultrarreligioso, refutou – sem
servador de Netanyahu. Por exemplo, surpreendentemente relaxados diante assegurou então Yair Netanyahu nas fornecer a mínima prova – as estatísti-
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27

cas da Liga Antidifamação sobre a as- em buscar uma solução para a situa- do por Edward W. Said em 1979, multi- humanísticos, disposição de manter a
censão do antissemitismo de extrema ção dos refugiados palestinos.5 plicaram os fóruns para defender a memória do Holocausto, simpatia por
direita desde a entronização de Trump. A vitória israelense de 1967 consti- causa palestina. Jornais progressistas Israel, ou mesmo alimentação e senso
O cônsul-geral de Israel em Nova York, tuiu um motivo para celebrações in- (The Nation e The New York Review of de humor. Mas ninguém mencionou o
Dani Dayan, invocou, por seu lado, o tensas e até de júbilo para os judeus Books, por exemplo) começaram a se apego às políticas conservadoras ou à
antissemitismo (imaginário) do líder norte-americanos. Assustados com os confrontar com publicações conser- colonização israelense. Além disso, o
trabalhista britânico Jeremy Corbyn. discursos do presidente egípcio à épo- vadoras alinhadas à direita israelense, apoio a Israel está diminuindo ano a
Essas declarações tomavam o caminho ca, Gamal Abdel Nasser, contra Israel, como The New Republic, então lidera- ano, especialmente entre os judeus de
oposto da marcha silenciosa organiza- eles temiam a perpetração de um “se- do por um apoiador incondicional de 18 a 29 anos.
da pela comunidade judaica de Pitts- gundo Holocausto”. Portanto, viram Israel, Marty Peretz, e Commentary, De maneira mais geral, o Pew Cen-
burgh em sinal de protesto contra com bons olhos o esmagamento dos revista pertencente ao American Je- ter trouxe à luz uma reversão comple-
Trump. Elas também contradizem as exércitos árabes. “[A Guerra dos Seis wish Committee, então editada pelo ta dos simpatizantes democratas. Em
palavras de Jeffrey Myers, o rabino da Dias] uniu os judeus norte-america- neoconservador Norman Podhoretz. 2001, 48% deles apoiavam Israel, em
sinagoga visada, em um sermão curto nos de uma forma nunca antes vista e A estreita cooperação de Tel Aviv com a comparação com 18% que disseram
em 3 de novembro: “Senhor presidente, deu origem a um envolvimento por África do Sul e com várias ditaduras la- ser a favor dos palestinos. Agora, são
discursos de ódio levam a atos de ódio. parte de muitos judeus que antes não tino-americanas – particularmente 35% a apoiar os palestinos, em com-
Discursos de ódio levam a isso que se importavam”, escreveu o rabino Ar- nos campos militar e de inteligência – paração com 19% para Israel.9 Organi-
aconteceu no meu santuário”. thur Hertzberg dois meses após o fim acabou por desiludir muitos judeus zações dirigidas por jovens judeus
Todas as pesquisas recentes mos- do conflito. “Nenhum termo da teolo- norte-americanos progressistas. norte-americanos, como IfNotNow e J
tram:4 o fosso se aprofunda entre os ju- gia ocidental permite explicar esse fe- Street U (o ramo universitário da J
deus israelenses, que levaram ao po- nômeno. A maioria dos judeus experi- Street), reúnem pessoas que odeiam a
der um governo próximo da extrema menta essas emoções sem saber como ocupação e a colonização pelo menos
direita, e seus correligionários norte- defini-las [...]. Pode ser que Israel sirva A invasão do Líbano tanto quanto amam Israel. Leitoras do
-americanos, sempre mais próximos como um catalisador da lealdade emo- por Israel em 1982 diário esquerdista israelense Haaretz,
do lado progressista. Uma maioria de cional em relação ao judaísmo e per- elas esperam cooperar com grupos de
israelenses odiava Barack Obama; ho- mita, assim, conservar o senso da
e o massacre dos defesa de direitos humanos e de crítica
je eles adoram Trump e votam em par- identidade judaica”.6 No entanto, uma campos de refugiados à ocupação, como Breaking the Silence,
tidos que apoiam a colonização e a minoria de judeus, em boa parte jo- de Sabra e Shatila The New Israel Fund, B’Tselem, Molad,
ocupação sem fim da Cisjordânia. Por vens simpatizantes de esquerda, esca- acentuaram ainda mais Peace Now, e a publicação on-line +972.
outro lado, uma grande proporção de pou dessa tendência, sem dúvida por O governo de Netanyahu, no en-
judeus norte-americanos apoiava aderir à leitura revolucionária segun-
o rompimento tanto, parece pensar que pode pres-
Obama e denunciava a colonização. do a qual a Palestina, o Vietnã, a Argé- cindir do apoio dos judeus e dos pro-
lia, Cuba e até a América negra faziam gressistas norte-americanos, que às
SOLDADOS E FUNDADORES DE KIBUTZIM parte da mesma luta anti-imperialista. Em nome do apoio a Israel e de seus vezes considera traidores, e se conten-
Estes últimos estiveram por muito Mas essa posição quase não tinha res- próprios interesses econômicos, os ju- tar com o de Trump e da extrema direi-
tempo divididos entre o progressismo sonância política. Ela não contava deus neoconservadores muitas vezes ta de uma boa parte do mundo.
político e o desejo de apoiar Israel. An- com nenhum representante nas orga- tentaram persuadir seus correligioná-
tes de 1948, a ideia de que um “povo” nizações profissionais judaicas nem rios a desistir do voto democrático. *Eric Alterman é jornalista.
judeu deveria se encarnar por meio da nas sinagogas, muito menos no Con- Ansioso por colocar seus compatriotas
fundação de um Estado estava longe de gresso ou na Casa Branca. de volta nos trilhos, Podhoretz per-
ser evidente nos Estados Unidos. Ela O vento começou a mudar em 1977, guntava em 2008 em Commentary: 1 Citado em David Usborne, “McCain forced to ditch
desagradava particularmente aos ju- quando o Likud, então liderado por “Por que os judeus são progressistas?”7 pastor who claimed God sent Hitler” [McCain for-
deus abastados que tinham imigrado Menachem Begin, pôs fim ao longo – uma pergunta já formulada por Mil- çado a abandonar o pastor que alegou que Deus
enviou Hitler], The Independent, Londres, 24 maio
da Alemanha, muito influentes nos cír- domínio dos trabalhistas em Israel. As ton Himmelfarb na mesma revista em 2008.
culos intelectuais: com frequência grandes figuras do Partido Trabalhista 1967. Segundo ele, essa sensibilidade 2 Ler Ibrahim Warde, “Il ne peut y avoir de paix avant
membros de congregações reformis- posavam de heróis na comunidade ju- resultava de um problema de com- l’avènement du Messie” [Não pode haver paz antes
da vinda do Messias], Le Monde Diplomatique,
tas, eles desconfiavam do sionismo daica norte-americana. Soldados, uni- preensão: os judeus norte-americanos set. 2002.
porque consideravam o judaísmo prin- versitários e fundadores de kibutzim teriam dificuldade em entender seu 3 Devin O’Connor, “Casino tycoon Sheldon Adelson
cipalmente uma religião e não que- pareciam capazes de “fazer florescer o lugar na sociedade e seriam incapazes threatens to cut off Republican Party following
midterm losses” [Magnata dos cassinos, Sheldon
riam que se pudesse colocar em dúvida deserto” com uma das mãos e defen- de reconhecer os verdadeiros amigos Adelson ameaça cortar o Partido Republicano de-
seu patriotismo. Depois de 1945, no en- der seu país com a metralhadora na de Israel. Em 2012, a Republican Je- pois de derrotas nas eleições de meio de manda-
tanto, sua relutância foi varrida pelo outra. Mas Begin estava muito distan- wish Coalition, organização judaica to], Casino.org, 5 dez. 2018.
4 Cf., sobretudo, William A. Galston, “The fracturing
genocídio. Os judeus muito religiosos e te desse ideal. Seu formalismo arcaico, conservadora, lançou uma campanha of the Jewish people” [A fratura do povo judeu],
tradicionalistas também rejeitavam o sua incapacidade de considerar os ára- de comunicação chamada “Meus re- The Wall Street Journal, Nova York, 12 jun. 2018.
sionismo, convencidos de que o adven- bes com benevolência – ele os via co- morsos”, financiada por Adelson e des- 5 A criação de Israel em 1948 foi acompanhada pelo
êxodo de mais de 700 mil refugiados palestinos.
to de um reino hebreu era responsabi- mo um povo atrasado – e seu apoio sis- tinada a convencer os judeus norte-a- Ler Micheline Paunet, “La naissance de la question
lidade de Deus, não dos homens. temático aos colonos colocaram fim à mericanos a se voltarem para o Partido des réfugiés” [O nascimento da questão dos refu-
Nas três décadas seguintes, insta- longa lua de mel entre seu país e os ju- Republicano. Mas, novamente, a ten- giados]. In: “Palestine. Un peuple, une colonisa-
tion” [Palestina. Um povo, uma colonização], Ma-
lou-se a unanimidade no que se referia deus norte-americanos. tativa não alcançou nenhum sucesso. nière de Voir, n.157, fev.-mar. 2018.
ao apoio a Israel. Judeus norte-ameri- A invasão do Líbano por Israel em 6 Citado em Edward S. Shapiro, A Time for Healing:
canos que podiam falar ao público – 1982 e o massacre dos campos de refu- REJEIÇÃO EM MASSA À COLONIZAÇÃO American Jewry since World War II [Um momento
para curar: judeus norte-americanos desde a Se-
jornalistas, intelectuais, líderes políti- giados de Sabra e Shatila acentuaram Em 2013, o Departamento Religião gunda Guerra Mundial], Johns Hopkins University
cos, artistas etc. – começaram a ainda mais o rompimento. Pela pri- e Vida Pública do Centro de Pesquisas Press, Baltimore, 1992.
celebrar insistentemente o novo Esta- meira vez nos Estados Unidos, a gran- Pew publicou a maior pesquisa já rea- 7 Norman Podhoretz, Why Are Jews Liberal? [Por
que os judeus são liberais?], Random House, Nova
do, relegando à margem as poucas vo- de mídia tratou os eventos de uma for- lizada entre judeus norte-americanos York, 2009.
zes dissonantes, como as do linguista ma desfavorável aos israelenses. Em (3.500 entrevistas qualitativas, 70.000 8 “A portrait of Jewish Americans” [Um retrato de ju-
Noam Chomsky ou do jornalista inde- uníssono com vários rabinos de reno- questionários preenchidos por com- deus norte-americanos], Pew Research Center,
Washington, DC, 1º out. 2013.
pendente Isador Feinstein Stone (fale- me, o New York Times condenou o cer- putador...).8 Para definir sua identida- 9 “Republicans and Democrats grow even further
cido em 1989). Durante essas décadas, co de Beirute durante o verão de 1982. de coletiva, a esmagadora maioria dos apart in views of Israel, Palestinians [Republicanos
ambos continuaram a criticar o trata- Como Anthony Lewis, jornalistas que entrevistados citou uma combinação e democratas ficam ainda mais distantes quanto às
formas de encarar Israel, palestinos], Pew Resear-
mento dado por Israel à sua minoria se proclamavam judeus, influenciados de fatores: práticas religiosas, senso de ch Center, 23 jan. 2018. Disponível em: <www.
árabe, assim como sua absoluta recusa pelo livro A questão palestina, publica- pertencimento à comunidade, valores people-press.org>.
28 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

VIETNÃ

Resistência camponesa
ao confisco de terras
Sedento por crescimento, o Vietnã aposta no boom das indústrias com uso intenso de mão de obra
e no desenvolvimento imobiliário – sem prestar atenção às consequências para o meio ambiente e para
as terras agrícolas. Essa política desperta a indignação de muitos camponeses
POR PIERRE DAUM*, ENVIADO ESPECIAL

ta Danielle Labbé, pesquisadora de ur-


banismo da Universidade de Montreal,
que há quinze anos trabalha com esse
tema. “Suponho que as autoridades se
abstenham de produzi-los, por medo de
revelar a extensão do fenômeno.”
A questão da expropriação das ter-
ras agrícolas tornou-se central no Viet-
nã, pois toca o cerne do modo de de-
senvolvimento escolhido pelo país há
trinta anos. Em 1986, convencidos do
fracasso de uma economia centraliza-
da ao estilo soviético – introduzida no
norte do país nos anos 1950 e, depois,
no sul, com a reunificação em 1976 –,
os dirigentes vietnamitas lançaram
um vasto programa de reformas eco-
nômicas chamado doi moi [“renova-
ção”]: desaparecimento gradual das
cooperativas agrícolas, introdução da
noção de lucro nas empresas públicas,
© Ratclima

autorização para criar empresas pri-


vadas e abertura aos investimentos
estrangeiros.2
Pequenos produtores rurais comercializam flores na cidade de Ho Chi Minh Na urgência de alimentar a popula-
ção, as primeiras medidas estiveram

E
m abril de 2017, a vila de Dong estão nas mãos dos membros proemi- alguns desses movimentos, especial- relacionadas ao desmantelamento das
Tam, na periferia de Hanói, foi nentes do Partido Comunista. mente quando uma autoridade do fazendas coletivas, cujas terras foram
palco de uma notícia surpreen- Essa contestação pode incluir partido se desloca para tentar um distribuídas equitativamente a uma
dente. Centenas de camponeses, muitos aspectos. Em Nam Ô, no cen- acordo com os recalcitrantes. Mais in- população ainda essencialmente cam-
que havia meses protestavam contra a tro do país, uma vila litorânea conhe- formações aparecem todos os dias no ponesa. “Os resultados positivos logo
expropriação de suas terras para a reali- cida pela excelência de seu nuoc Facebook, do qual os vietnamitas gos- apareceram”, diz Tran Ngoc Bich, ex-
zação de um projeto imobiliário, atreve- cham, diversas famílias recusam-se a tam muito – o país tem mais de 30 mi- -economista do Centro Nacional de
ram-se a sequestrar por mais de uma deixar suas casas para dar lugar à lhões de inscritos na rede social, em Pesquisa Científica (CNRS). “Em três
semana 38 policiais que foram executar construção de um imenso complexo uma população de 95 milhões de habi- anos, a escassez de alimentos desapa-
o despejo. Em vez de recorrerem à força turístico. O projeto tomaria toda a tantes. “Além disso”, diz Ly, jornalista receu, e o Vietnã passou a produzir
para libertar seus agentes, as autorida- praia e impediria a continuidade da da televisão estatal Vietnam Television mais arroz do que consumia.” Mas es-
des vietnamitas enviaram o presidente atividade pesqueira, essencial para a (VTV), “aquilo que conseguimos ver é sa abertura à economia de mercado
do Comitê Popular de Hanói, Nguyen fabricação de seu famoso condimen- só uma parte do fenômeno. Muitos ca- não foi acompanhada do questiona-
Duc Chung, para negociar com os se- to à base de peixe fermentado. sos de protestos camponeses passam mento de princípios como a proprie-
questradores. Estes finalmente liberta- Na cidade de Ho Chi Minh, a capi- completamente despercebidos”. Isso dade comum da terra. Em todas as leis
ram os prisioneiros, em troca da pro- tal econômica do Vietnã, localizada no porque as condições para investigar fundiárias aprovadas desde então,
messa de indenizações mais elevadas. sul do país, a última área verde do cen- continuam sendo perigosas. Muitos reafirma-se que o Estado continua
Por mais surpreendentes que se- tro da cidade, no bairro de Thu Thiem, pesquisadores e jornalistas nos alerta- sendo proprietário, “em nome do po-
jam, os protestos contra a expropria- resiste há vinte anos à chegada do con- ram: “Não vá para tal aldeia, há muita vo”, de todas as terras, o que lhe permi-
ção de terras agrícolas destinadas a creto. Um punhado de agricultores tensão, você vai ser preso!”. Outros se te “recuperá-las” (esse é o termo utili-
projetos industriais, turísticos ou imo- obstinados não se cansa de abrir ações recusaram a falar conosco. zado) com muito mais facilidade.
biliários são comuns. Segundo as pes- na justiça contra as ordens de despejo, Embora se sintam proprietários, os
quisadoras Marie Gibert e Juliette Se- alegando que os procedimentos legais EM TRÊS ANOS, A FOME DESAPARECEU camponeses têm da terra apenas o di-
gard, eles podem ser considerados “a para a expropriação não foram todos O assunto se torna ainda mais deli- reito de uso agrícola (e somente agríco-
maior fonte de tensões sociais do Viet- respeitados – e eles são mesmo muito cado pelo fato de as expropriações esta- la), inscrito em uma “caderneta verme-
nã contemporâneo”1 e certamente numerosos, já que as leis fundiárias no rem em contradição direta com o dis- lha”. Mas podem vender parte ou todos
constituem a única forma de contesta- Vietnã tendem a se acumular. curso comunista ainda muito presente os seus direitos de uso. Se não vende-
ção política que a população se permi- Os meios de comunicação, mesmo (ver boxe). “É praticamente impossível rem, seus filhos herdam a caderneta.
te, em um país onde todos os poderes vigiados de perto, acabam divulgando conseguir dados quantitativos”, lamen- Além disso, o Estado mantém o mono-
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29

pólio das mudanças no uso autorizado de Hoi Na, no centro do país, uma praia para a de terra edificável. “É um es- O PODER É SUSTENTADO PELA CLASSE MÉDIA
para a terra, podendo mudá-lo de agrí- hoje totalmente urbanizada e privati- cândalo! O governo toma nossa terra Essa corrupção de altos funcioná-
cola para industrial ou imobiliário. zada pelos grandes nomes da hotelaria em troca de uma indenização baixís- rios que vendem caro cada um de seus
Ainda que haja um procedimento con- de luxo internacional: Four Seasons, sima, dizendo que é terra agrícola, e a preciosos carimbos é estrutural: mui-
sultivo a ser seguido, a lei dá aos altos Hyatt, Pullman, Sheraton etc. revende cem vezes mais caro, mudan- tos atores do mercado imobiliário são
funcionários um poder quase total pa- “Quando o governo veio tomar do seu uso. É inaceitável!”, brada empresas estatais “acionarizadas”,
ra validar os projetos. nossos arrozais, há quinze anos, para Nhung. Nós a encontramos em casa, cujos donos são altos funcionários do
Após o primeiro momento, de dis- transformá-los em um campo de golfe, na vila de Duong Noi, a uma hora de partido ou têm laços muito estreitos
tribuição das terras, iniciou-se uma nós resistimos”,4 conta o senhor, vete- mobilete do centro de Hanói, em um com os membros da elite comunista.
segunda etapa – com a abertura para a rano da “revolução” contra os norte-a- desses subúrbios distantes pouco a Quanto aos atores privados, vietnami-
economia de mercado, a suspensão do mericanos. “Mas deve-se dizer que pouco conquistados pelo concreto. Há tas ou estrangeiros, é a priori muito di-
embargo norte-americano em 1994 e a nos ofereceram um preço ridículo: 200 oito anos, toda a vila se levantou con- fícil provar a existência de uma cor-
entrada na Organização Mundial do mil dongs [R$ 33] por metro quadrado, tra o projeto de construção de um rupção clássica, sob a forma de pacotes
Comércio (OMC) em 2007 –, na qual enquanto hoje o preço é cem vezes imenso bairro com casas e aparta- de dinheiro ou presentes luxuosos. No
interessava “passar de uma agricultu- maior!” Obrigados a ceder, os habitan- mentos de luxo – um hospital e uma entanto, Kimberly Kay Hoang, pesqui-
ra de subsistência, que ocupa a grande tes da vila conseguiram manter um escola também estão previstos... em sadora da Universidade de Chicago,
maioria da população, para uma eco- pequeno lote, transformado em terra teoria. “Ofereceram 270 mil dongs [R$ conseguiu coletar as confidências de
nomia industrial e terciária”, explica para construção. “Dos 4 mil metros 44] pelo metro quadrado; agora, os uma centena de vietnamitas e estran-
Vu Dinh Ton, reitor da Universidade de quadrados que eu tinha, eles me dei- primeiros lotes do novo bairro já estão geiros sobre isso. O resultado é edifi-
Agricultura de Hanói. Em 1995, a agri- xaram com dois sào5 [720 metros qua- sendo vendidos a 30 milhões [R$ cante, provando com força a escala do
cultura ainda ocupava 80% da popula- drados]. Um deles eu vendi por um 4.872] o metro quadrado!” fenômeno.7 “Neste país, tudo são as re-
ção ativa, contra 40% hoje. Em 1988, o bom preço e, com o dinheiro, construí Recusa em receber as indeniza- lações que você estabelece”, diz um de-
setor agrícola era responsável por 46% minha casa no outro.” ções, ações na justiça, petições, pas- les. “Quem ganha [no mercado imobi-
do PIB, contra 15% em 2017. Um dos filhos de Dang trabalha seatas até o centro da capital, protes- liário] é quem sabe com quem jogar. E,
Para os líderes vietnamitas, “mo- para a administração local; o segundo tos diante da sede do comitê popular, para jogar, tem de pagar. Você paga um
dernização” e “desenvolvimento” tor- é operário na fábrica de calçados Rie- manifestações diante das escavadei- suborno para conseguir a terra, depois
naram-se as palavras de ordem. “Mas ker, uma marca suíça de origem alemã ras para impedir o início da constru- outro cada vez que eles vêm inspecio-
há um problema de geografia”, prosse- instalada a alguns quilômetros, que ção, mensagens no Facebook: os mo- nar a área.” Outro: “Ninguém respeita
gue o acadêmico. Com dois terços da emprega 16 mil pessoas. “Ele ganha 5 radores de Duong Noi tentaram de a lei neste país. A única maneira de ga-
área do país ocupados por montanhas milhões [R$ 812] por mês, está muito tudo para que fossem ouvidos. Dessa nhar dinheiro é conhecer a pessoa cer-
e terras altas, a terra disponível para a feliz. É mais do se ganha com o arroz vez, a reação das autoridades foi extre- ta”. Ou ainda: “Quando você vem do
“modernização” é escassa, porque é e, principalmente, é muito menos mamente violenta. Como mostram os Ocidente, acha errado pagar um fun-
muito densamente povoada e já am- cansativo!” Ele próprio recebe uma vídeos postados na internet, centenas cionário público. Mas é assim no Viet-
plamente utilizada para a agricultura. aposentadoria do funcionalismo no de policiais invadiram a vila, atingin- nã! Pense por um instante: um alto
Assim, o governo decidiu transformar valor de 4,5 milhões de dongs (R$ 731) do os manifestantes com cassetetes, funcionário recebe apenas US$ 200 ou
grandes áreas agrícolas em zonas de por mês, mais os 2 milhões (R$ 325) da enquanto uma escavadeira avançava 300 por mês. Como ele vai viver com is-
desenvolvimento urbano (nos bairros pensão de ex-combatente. “Na vila, fi- contra a multidão, nocauteando uma so? Nós pagamos simplesmente para
periféricos das cidades),3 industrial nalmente todo mundo está feliz. Os manifestante – que escapou depois de que ele faça seu trabalho...”. No ran-
(em torno das cidades e ao longo das jovens têm sua moto e podem se di- ter passado vários dias no hospital. king sobre percepção da corrupção
principais rodovias) ou turístico (ao vertir na cidade. E nós, os velhos, não realizado pela Transparência Interna-
longo dos 3 mil quilômetros de costas) somos mais obrigados a trabalhar nos “O GOVERNO ESTÁ PODRE POR DENTRO” cional, o Vietnã está em 107º lugar (do
– em detrimento da agricultura tradi- campos, enfiados na lama e devora- “Em 2014, a polícia me prendeu em menor para o maior, em um total de
cional e dos milhões de famílias que dos pelas sanguessugas. Ficamos no uma manifestação”, conta o pai de 180 países – o Brasil está em 96º).
dela vivem. “Na cabeça dos dirigentes, café jogando cartas.” Nhung, um senhor de seus 60 anos. Conscientes de terem suas terras
esse mundo pertence ao passado”, Ao redor da vila de Viem Dong, a “Passei dezoito meses na prisão por roubadas por políticos e funcionários
destaca Danielle Labbé. Há vinte anos, paisagem sofreu uma mudança drásti- ‘violação da ordem pública’”. O vetera- corruptos, os camponeses ficam ainda
as leis fundiárias convidam empresas ca. Acabaram os belos arrozais que se no da guerra contra a China, em 1979,6 mais furiosos quando descobrem que
– sejam elas estatais, privadas ou es- estendiam a perder de vista. Restam acrescenta: “Quando eu era jovem, era nem eles nem seus filhos terão os em-
trangeiras – a apresentar projetos de apenas imensos lotes vazios, à espera natural pegar em armas: estávamos pregos prometidos – seja porque a fá-
desenvolvimento às autoridades, que, de novas construções. A cada 100 me- lutando contra um inimigo estrangei- brica ou o complexo hoteleiro preferem
caso os aprovem, colocarão à sua dis- tros há uma tenda com um agente ro, tínhamos de salvar a pátria. Hoje é contratar outros funcionários, talvez
posição as terras necessárias. “Em tro- imobiliário pronto a vender na planta uma coisa horrível: tenho de lutar con- mais qualificados, seja porque o proje-
ca”, explica Sylvie Fanchette, geógrafa a casa dos sonhos. Preço do terreno: tra meu próprio país, porque o gover- to que criaria empregos se transfor-
especialista em Vietnã do Instituto de R$ 4.300 o metro quadrado. Quando as no está podre por dentro”. mou em um terreno especulativo. “De
Pesquisa para o Desenvolvimento construções vão começar? “Não sei”, “Podre” deve ser entendido como qualquer forma”, diz Dao The Anh,
(IRD), na França, “a empresa se com- responde um deles. “A maioria das um eufemismo para “corrupto”. To- agrônomo da Academia de Ciências
promete a criar empregos para os agri- pessoas compra lotes para revendê-los dos os nossos interlocutores, fossem Agrícolas do Vietnã, “a indústria viet-
cultores expropriados e a realizar quando o preço subir. O lote que está eles camponeses, professores univer- namita continua fraca, não tendo a
obras de infraestrutura (pontes, estra- na sua frente custava apenas 500 euros sitários ou simples trabalhadores, menor condição de absorver todos es-
das, clínicas, escolas etc.), as quais o há dois anos; hoje, vale o dobro.” concordam que a corrupção está no ses novos camponeses sem trabalho.”
Estado, que permanece pobre, não é Chegamos assim a um dos maiores centro desse movimento de urbani- Outro motivo de cólera: a poluição.
capaz de financiar”. desvios engendrados por essa política zação intensiva pelo qual passa o Na vila turística de Sam Son, na costa
“No papel, essa política pode se jus- de construção sem freios: a especula- Vietnã e que ela é a explicação para norte, os pescadores lutaram durante
tificar”, avalia Nguyen Van Phu, econo- ção. Como a terra é muito escassa, os todos os desvios. Como justificar a fa- muito tempo para conservar 300 me-
mista e diretor de pesquisa do CNRS. investidores logo entenderam que se- cilidade com que os investidores con- tros de praia onde manter seus barcos,
Alguns camponeses expropriados se ria mais lucrativo não realizar os pro- seguem autorizações para transfor- enquanto uma das maiores empresas
saíram bem, como Dang Van Bien. Nós jetos prometidos às autoridades, ou mar seus projetos iniciais (uma do país, o grupo FLC, se preparava pa-
o encontramos em sua bela casa novi- realizar apenas parte deles, e revender fábrica acaba se transformando em ra construir um gigantesco complexo
nha em folha em Viem Dong, um anti- as terras divididas em lotes – depois um conjunto de casas), para não turístico de frente para o mar, com ho-
go vilarejo agrícola situado atrás de de obtido o precioso documento que construir toda a infraestrutura ini- tel cinco estrelas, casas privativas e
uma praia que se estende entre a gran- modifica o uso da parcela, fazendo-a cialmente prometida ou para ignorar campo de golfe. O estabelecimento
de cidade de Da Nang e a turística vila passar da condição de terra agrícola suas obrigações ambientais? abriu há dois anos, “mas nós continua-
30 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

mos a protestar diante do Comitê Po-


pular, porque eles despejam esgoto di-
retamente no mar”, explica um grupo
CAPITALISMO E PROPAGANDA COMUNISTA
de pescadores reunidos na praia. “Ho-
je, há menos peixes, e os que sobraram
estão doentes.”
N o Vietnã, o capitalismo mais brutal –
ilustrado pela corrida às terras cam-
ponesas – anda de mãos dadas com uma
sair de pijama na rua, não cuspir no chão.
No imaginário vietnamita, esses compor-
tamentos ‘incivilizados’ pertencem ao
Frente da Pátria – que reúne várias asso-
ciações de mulheres, veteranos, trabalha-
dores, jovens etc.1
Embora em seus contratos as em-
propaganda comunista sempre muito nosso passado de camponeses, do qual Por outro lado, os camponeses expul-
presas sempre se comprometam a res- presente. Dos edifícios, nas ruas e na bei- queremos nos livrar.” As casas baixas e sos de suas terras são rápidos em denun-
peitar o meio ambiente, são inúmeros ra das estradas, continuam tremulando irregulares, assim como o comércio de ciar as contradições entre os discursos e
os casos de poluição, em um país onde, bandeiras cujo fundo vermelho destaca a rua, não pertencem à urbanização “civili- as ações de seus líderes. “Em princípio, o
para obter um certificado de conformi- foice e o martelo, e às vezes o rosto de zada”. “As massas camponesas, mesmo comunismo é para o bem do povo, não?”,
dade, basta molhar a mão do inspetor Ho Chi Minh, exibindo frases elaboradas sofrendo expropriações, admiram esses finge interrogar-se um morador de Thu
que vem verificar as instalações – ou para justificar a política de urbanização grandes complexos de concreto que ago- Thiem, em Ho Chi Minh. Mien, cuja mãe
oferecer uma bolsa de luxo Hermès pa- decidida pelo partido: “Desenvolver o es- ra brotam em toda parte”, explica a pes- passou quatro anos na prisão por protes-
ra a esposa de seu superior, como em pírito revolucionário, implantar vitoriosa- quisadora Danielle Labbé. “Para elas, a tar em frente aos tratores em Duong Noi,
um dos testemunhos coletados por mente a industrialização, a modernização terra e os arrozais não são românticos lembra que, “durante a guerra contra os
e a integração internacional do país!”. Ou: nem charmosos. Eles são sinônimo de la- franceses, Ho Chi Minh recrutou campo-
Kimberly Kay Hoang. Em 2016, a des-
“Todos juntos por um mesmo objetivo: ma, sanguessugas, cansaço e pobreza.” neses miseráveis prometendo devolver
coberta de milhares de peixes mortos
povo rico, país forte, sociedade justa, de- Grande parte dos vietnamitas, espe- suas terras, saqueadas pelos colonizado-
na costa de Hué, por causa de rejeitos mocrática e civilizada!”. Algumas palavras cialmente entre as novas gerações, não res. Hoje é o Partido Comunista que as
da siderúrgica Formosa, de Taiwan, ge- retornam sistematicamente. “O termo ‘ca- se importa com esses slogans. “Mas eu rouba de nós!”
rou uma onda de protestos em todo o pitalismo’ continua tendo uma conotação sei que meus pais ainda são influencia- Em algumas aldeias que se revoltam
país. O governo, que havia concedido muito negativa”, explica Pham Duc Thang, dos por eles”, diz Ly, uma garota de Sai- contra as expropriações, a célula do par-
condições muito vantajosas para a jovem urbanista que leciona na universi- gon de 28 anos que trabalha com moda. tido pode decidir pendurar uma faixa ver-
companhia taiwanesa, prometeu “pu- dade politécnica de Ho Chi Minh. “Por- “É importante lembrar que eles só têm a melha na casa de uma família considera-
nir com severidade” os culpados pelo tanto, é proibido. Em seu lugar, o partido mídia estatal para se informar. Isso muitas da particularmente ativa no movimento,
desastre. Mas a falta de uma imprensa usa as palavras ‘desenvolvimento’, ‘mo- vezes causa discussões acaloradas.” Pa- com a inscrição “Traidores da pátria”.
independente alimenta todos os boa- dernização’ ou ‘integração internacional’.” ra divulgar suas mensagens, o partido, (P.D.)
Também retorna o termo “civilização”. que tem 4,5 milhões de membros, tam-
tos: “Dizem que muitos líderes locais
“Por trás dessa palavra”, comenta o eco- bém conta com uma vasta rede de insti-
receberam suborno”, afirma Lien, pro- 1 Benoît de Tréglodé (org.), Histoire du Vietnam
nomista Nguyen Van Phu, “devemos en- tuições e organizações de massa: a polí- de la colonisation à nos jours [História do Vietnã
fessora universitária aposentada, mui- tender o modelo de Cingapura ou do Ja- cia (1,2 milhão de membros), as Forças da colonização aos dias atuais], Paris, Éditions
to ativa no Facebook. “Mas o pior é a pão: comportar-se educadamente, não Armadas (5 milhões de reservistas) e a de la Sorbonne, Paris, 2018.
invasão chinesa! Por trás das grandes
empresas vietnamitas se esconde di-
nheiro chinês. Eles compram faixas in-
teiras de nossa costa, que são lugares Nenhuma das três partes deve ser pri- 6% e 7%,9 com sucessos reais em ter- lei exige que as plataformas da web re-
estratégicos para a defesa nacional. E, vilegiada. Estamos todos trabalhando mos de redução da pobreza: de acordo movam dentro de 24 horas todos os co-
se o governo não diz nada, obviamente juntos pela modernização do país. Se- com o Banco Mundial, a parcela da mentários considerados uma “ameaça
é porque recebe grandes propinas!” jam compreensivos. As autoridades população que vive abaixo da linha de à segurança nacional”.
Afirmações como essas, naturalmente distritais defendem os interesses dos pobreza (estimada em US$ 3,50 ao dia)
não verificáveis, abundam nas conver- habitantes”.8 Embora raramente essas passou de 60% em 1990 para menos de *Pierre Daum é jornalista.
sas privadas e nas redes sociais. palavras satisfaçam os manifestantes, 10% hoje. Entretanto, a predação da
As consequências dessa política de o governo tem o apoio de uma classe terra não está perto de acabar. Permi- 1 Marie Gibert e Juliette Segard, “L’aménagement
desenvolvimento baseada em uma ur- média em pleno crescimento – 13% da tindo que a elite local enriqueça rapi- urbain au Vietnam, vecteur d’un autoritarisme négo-
cié” [O planejamento urbano no Vietnã, vetor de
banização excessiva, desviada pela população atual, devendo chegar a damente, ela despeja no mercado de um autoritarismo negociado], Justice Spatiale, n.8,
corrupção generalizada, não se limi- 20% em cinco anos –, que se aproveita, trabalho centenas de milhares de jo- jul. 2015. Disponível em: <www.jssj.org>.
tam às revoltas camponesas ou à reati- sem muitos escrúpulos, da situação. vens camponeses sem formação, feli- 2 Ler Martine Bulard, “Le Vietnam se rêve en atelier
de la planète” [Vietnã sonha ser a fábrica do plane-
vação do medo ancestral do “invasor Um dos símbolos mais marcantes dis- zes em se juntar a empresas transna- ta], Le Monde Diplomatique, fev. 2017.
chinês”. “Todo o Vietnã habitado está so é o Ecopark, novo bairro chique da cionais (dos setores têxtil, eletrônico10 3 Ler Xavier Monthéard, “À Hanoï, les gratte-ciel dé-
muito próximo do nível do mar”, lem- capital, construído após anos de resis- e agora automobilístico) que se insta- vorent les rizières” [Em Hanói, arranha-céus devo-
ram os campos de arroz], Le Monde Diplomatique,
bra Sylvie Fanchette. “O Rio Vermelho, tência dos antigos moradores do local, lam no Vietnã precisamente para po- abr. 2010.
em Hanói, às vezes invade a planície. que no final foram arrancados pela der usar essa mão de obra. 4 A resistência dos moradores de Viem Dong foi
Tamanha impermeabilização do solo polícia na base do cassetete. “Uma vez, Apesar de sua escala, as resistên- tema de um documentário feito em 2009, À qui
appartient la terre? [A quem pertence a terra?], di-
deveria ser necessariamente acompa- minha faxineira me explicou que nos- cias dos camponeses sempre acabam rigido por Doan Hong Le e distribuído na França
nhada por um enorme esforço de dre- sa casa foi construída no local onde fi- perdendo a batalha – elas podem, na pela Ateliers Varan.
nagem – o que não ocorre. Qualquer cava a pequena propriedade de onde melhor das hipóteses, atrasar alguns 5 Antiga unidade de medida fundiária.
6 Iniciada pela China, essa guerra atingiu o norte do
monção mais forte pode hoje causar ela foi despejada”, admite corando projetos. Espalhados pelo país, sem Vietnã em 17 de fevereiro de 1979 e terminou um
catástrofes terríveis.” Segundo a ONG Phuong, jovem burguesa proprietária possibilidade legal de se organizar, os mês depois, em 16 de março.
GermanWatch, a crescente fragilidade de uma pequena rede de floriculturas, recalcitrantes parecem ridiculamente 7 Kimberly Kay Hoang, “Risky investments: How lo-
cal and foreign investors finesse corruption-rife
de seu ecossistema coloca o Vietnã em que mora no Ecopark há dois anos, em fracos contra o poder coercitivo do Es- emerging markets” [Investimentos arriscados:
quinto lugar na lista dos países mais uma casa de 190 metros quadrados tado. Sendo toda a mídia rigorosa- como investidores locais e estrangeiros manipulam
vulneráveis às mudanças climáticas. com jardim. “Fiquei um pouco enver- mente controlada pelo poder, só o Fa- mercados emergentes marcados pela corrupção],
American Sociological Review, v.83, n.4, Los An-
Diante do descontentamento dos gonhada, mas o que eu poderia fazer?” cebook teria hoje a capacidade de geles, ago. 2018.
camponeses expropriados, as autori- Thanh, homem de 30 anos que dirige unificar as resistências em uma mobi- 8 Trecho do filme À qui appartient la terre?, de Doan
dades geralmente começam com uma uma empresa de comunicação, fala lização nacional, ou mesmo regional. Hong Le. As afirmações são do vice-presidente do
distrito de Viem Dong.
fase de diálogo. Os moradores da vila sem rodeios: “Para mim, esses campo- O governo está ciente disso e prende 9 Ler Jean-Claude Pomonti, “Ébullition vietnamien-
atingida são convidados a conversar neses são obstáculos ao progresso. Se cidadãos apenas por militar na inter- ne” [Ebulição vietnamita], Le Monde Diplomatique,
com membros intermediários do par- quisermos nos desenvolver, teremos net. Em abril de 2018, a Anistia Inter- fev. 2007.
10 O Vietnã é o segundo maior exportador mundial de
tido, que sempre os abordam da mes- de aceitar alguns danos colaterais”. nacional registrou “pelo menos 97 pri- telefones celulares, e mais da metade dos smart-
ma maneira, muito paternalista: “Vo- O Vietnã é mimado pelas princi- sioneiros de consciência”, um número phones da marca Samsung são montados lá. Cf.
cês precisam ser razoáveis. Estamos pais democracias ocidentais, que ad- que a organização considera “certa- “Why Samsung of South Korea is the biggest firm
in Vietnam” [Por que a sul-coreana Samsung é a
pedindo para harmonizar os interes- miram sua taxa de crescimento anual, mente muito abaixo da realidade”. maior empresa do Vietnã], The Economist, Lon-
ses do Estado, da empresa e os seus. que há duas décadas se mantém entre Desde 1º de janeiro de 2019, uma nova dres, 12 abr. 2018.
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 31

ENCAMINHAR AS RIQUEZAS DO CONTINENTE PARA OS PORTOS

O grande retorno do
trem à África Oriental
O dinamismo do mercado de matérias-primas suscita uma forte demanda por infraestruturas de transporte na
África Oriental. Após anos de abandono, as ferrovias atraem a competição entre investidores. Mas esse entusiasmo
desordenado, que deve permitir o escoamento de minérios para os portos do Oceano Índico, vai beneficiar a população?
POR ANNE-CÉCILE ROBERT*, ENVIADA ESPECIAL

transporte de mercadorias explode


desde 2015”, explica Bruno Ching’an-
du, diretor executivo da Tanzania-
-Zambia Railway Authority (Tazara).
“O tráfego proveniente de Kisangani e
Kasai, na RDC, aumentou 18%.”
Com o aumento dos preços, o mer-
cado de commodities (petróleo, ouro,
diamante, bauxita, rutilo, madeira,
cobre etc.) está em ebulição desde o
início dos anos 2000, embora 2018 te-
nha marcado uma clara desacelera-
ção. A produção congolesa está au-
mentando, sobretudo na província do
Equador, rica em diamante, cobre,
bauxita etc. Durante a guerra que de-
vastou a RDC após a queda de Mobutu
Sese Seko, em 1997, a produção caiu; as
vias de comunicação foram danifica-
das.1 Com a relativa estabilidade que
progressivamente o país alcançou,
embora as eleições gerais de dezembro
2018 tenham sido contestadas e a por-
ção oriental do país ainda esteja pas-
sando por uma grande violência, a ex-
tração e a exportação de suas riquezas
aguçam os apetites.

FALTA DE COORDENAÇÃO
“É óbvio que é o cinturão de extra-
ção de cobre, o Copperbelt, que inte-
ressa aos investidores”, comenta Jovin

D
ar es Salaam, Tanzânia, 12 de 400 quilômetros ligando a Tanzânia a Na Tanzânia, assim como em toda Mwemezi, especialista na Comunida-
outubro de 2018. Com um orgu- Ruanda. Custo: US$ 8 bilhões, que ain- a África, a ferrovia faz seu grande re- de da África Oriental (CAO). O Congo
lho não dissimulado, o ministro da não se sabe de onde virá. torno, após anos desaparecida em prol passou a receber propostas discretas
dos Transportes, Isack Aloyce A indigesta apresentação inaugura do transporte rodoviário. Por sua loca- de países da costa atlântica, pelo Cor-
Kamwelwe, recita um por um todos os a nona East and Central Africa Roads lização geográfica, a África Oriental redor do Lobito, em Angola. Acessível
quilômetros de vias férreas em cons- and Rail Summit. Vindos de toda a re- concentra todas as atenções: ponto de por Kolwezi (RDC), esse corredor so-
trução em seu país. Com a ajuda de gião (Etiópia, Quênia, Uganda, Zâm- contato com a Península Arábica, sua freu com a violência da guerra civil,
mapas projetados em uma tela e gráfi- bia, RDC), cerca de cinquenta investi- orla marítima também abre o conti- tanto em Angola como na RDC. As
cos coloridos, ele descreve detalhada- dores, pesquisadores, empresários e nente para a Ásia. A imensa riqueza perspectivas de estabilização política
mente o traçado das futuras linhas, o autoridades políticas fazem anota- mineral da RDC, país gigantesco en- desta última são de grande interesse
número de estações, as toneladas de ções em silêncio, enquanto espiam a cravado no interior do continente, é para as empresas de mineração, que
cimento e de lastro necessários na tela de seus celulares. Entre eles, re- escoada para o mar a fim de abastecer hoje dedicam grandes somas para ga-
construção... Ele se demora minucio- presentantes de empresas e empre- as grandes potências orientais, espe- rantir a segurança das vias de comuni-
samente no projeto de linha eletrifica- sários turcos, chineses, israelenses, cialmente a China. Os grandes portos cação, uma vez que os caminhões são
da que vai de Dar es Salaam – a capital belgas, coreanos, japoneses, ale- de Mombaça (Quênia), Durban (África frequentemente parados por quadri-
– rumo à fronteira com a República De- mães, um representante da União do Sul) e Dar es Salaam estão quase sa- lhas rodoviárias e os trens são ataca-
mocrática do Congo (RDC): 711 quilô- Europeia e... uma jornalista. A cúpu- turados. Outros estão sendo construí- dos por bandos na região de Kasai. O
© Cau Gomez

metros, 25 pontes, trinta túneis... Em la foi organizada por uma empresa dos, como o de Lamu (Quênia), ou pro- custo do transporte tornou-se uma
seguida, fala da assinatura, em feverei- de eventos, a Magenta Global, com jetados, como o de Bagamoyo, ao norte questão crucial: na África, ele repre-
ro de 2018, de um projeto de linha de sede em Hong Kong. de Dar es Salaam. “A demanda por senta 50% do preço de um produto,
32 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

tima Lievin Chirhalwirwa, diretor de


desenvolvimento de infraestrutura
A EPOPEIA DA TANZAM da Autoridade de Coordenação dos
Transportes e do Trânsito do Corre-
“A ferrovia Tanzânia-Zâmbia é um mo-
numento da amizade China-África;
ela deve continuar existindo”, afirma, um
de transporte marítimo. As siderúrgicas
chinesas trabalharam a todo vapor: a
aposta simbólica e política era tamanha
anos”, diz Du. Pequim montou um serviço
postal especial para as cartas enviadas
às famílias.
dor Norte. Os especialistas sabem:
projetos tão grandes, que só serão
pouco nostálgico e preocupado, Du Jian.1 que, no período de conclusão da linha, as Cinquenta anos após a conclusão das rentáveis depois de quinze ou vinte
Há cinquenta anos, esse engenheiro chi- fábricas funcionaram dia e noite, obri- obras, a linha operada pela Autoridade anos, precisam de coordenação e
nês participou da construção da linha fér- gando os operários a exaustivas horas Ferroviária Tanzânia-Zâmbia (Tazara) ain- apoio públicos. E é aí que está o pro-
rea que ainda liga Dar es Salaam, na Tan- extras. Mais de 1 milhão de toneladas de da existe. A Tazara continua sendo uma blema: os Estados africanos saíram
zânia, a Kapiri Mposhi, na Zâmbia. Em material (cimento, ferramentas, dinamite empresa pública de propriedade da Zâm- exaustos e desacreditados de trinta
1968, no auge da Revolução Cultural, etc.) deixaram o porto de Guangzhou. O bia e da Tanzânia. A solidez da infraestru- anos de neoliberalismo. Isso sem
Pequim embarcava na construção faraô- custo da empreitada foi oficialmente de tura, embora marcada pelo tempo e pela contar a má gestão de alguns poten-
nica dos 1.860 quilômetros de ferrovias US$ 500 milhões, aos quais se somam falta de manutenção, sempre desperta a
tados. Desde a morte de Julius Nyere-
necessárias para essa ligação estratégi- 980 milhões de yuans (R$ 547 milhões) admiração e o orgulho dos países envol-
re, em 1999, a Tanzânia socialista é
ca. Os objetivos eram dois: ligar o interior em empréstimos sem juros para a Tanzâ- vidos. A imensa estação de Dar es Sa-
dedicado à mineração aos portos do nia e o Zâmbia. laam, construída na época, parece uma uma sombra do que já foi. Mas, prova
Oceano Índico e dar fôlego à economia Os engenheiros chineses tiveram de catedral de aço e vidro. No hall, um afres- de que o mito continua, seus líderes
da Zâmbia, que, além de ser um enclave enfrentar desafios geológicos e meteo- co ilustra o traçado da linha e uma placa sempre se referem ao pai da indepen-
continental, sofria o embargo dos regi- rológicos: cavar túneis e construir pontes celebra a amizade entre a Tanzânia e a dência. Diante da dificuldade da em-
mes racistas da África do Sul e da Rodé- nas montanhas quando as temperaturas China. Em 2005, Dar es Salaam e Lusa- preitada, o representante da União
sia do Sul. Favorecendo os interesses superavam os 40 graus ou quando a es- ka concordaram em privatizar a Tazara. Europeia, Jocelyn Cornet, zomba dos
chineses no continente, Mao Zedong tação chuvosa produzia torrentes de la- Mas, considerando-se a história, os in- “aiatolás da ferrovia”.
também queria mostrar sua solidarieda- ma. Os trabalhadores, que não falavam a vestidores chineses serão privilegiados.
de aos países ligados pela ferrovia, so- mesma língua, comunicavam-se por ges- (A.-C.R.) CONSTRUIR EM VEZ DE MANTER
bretudo a seu colega tanzaniano, Julius tos. As condições de trabalho eram muito
O velho debate sobre a falta de in-
Nyerere, uma personalidade do pan-afri- difíceis, e eles às vezes tinham de criar
1 Lu Rucai, “Témoin de l’histoire du chemin de fer fraestrutura da África voltou a ganhar
canismo e do socialismo africano.2 galinhas, com a ajuda das populações lo-
A construção da obra, que logo ficou cais, para se alimentar. A malária alcan-
Tanzanie-Zambie” [Testemunha da história da impulso no novo contexto das rela-
ferrovia Tanzânia-Zâmbia], China-info.com, 21 ções Sul-Sul. Na Tanzânia, a empresa
conhecida como “Tanzam”, durou seis çou oficialmente 65 trabalhadores chine- jan. 2016.
anos, mobilizando 16 mil trabalhadores ses, mas certamente um número muito 2 Ler Dmitri-Georges Lavroff, “Le président Nye- turca Yapi Merkezi venceu largamente
chineses e 60 mil locais. Para levar ope- maior deles pagou com a saúde ou com a rere a réussi en dix ans à jeter les bases d’un a empresa chinesa (e outras quinze)
socialisme africain” [Presidente Nyerere conse- para construir o trecho Dar es Sa-
rários e engenheiros ao continente afri- vida pela construção desse caminho míti-
guiu em dez anos lançar as bases do socialismo
cano, Pequim abriu cinco linhas especiais co. “Só íamos para casa a cada dois africano], Le Monde Diplomatique, fev. 1972. laam-Morogoro: 300 quilômetros de
vias eletrificadas financiadas pelo
Banco Mundial e o Estado da Tanzâ-
nia, primeira parte de um vasto plano
duas a três vezes mais do que em ou- Porta de entrada para o mar, Ugan- manutenção e reparo não resistiram ferroviário que vai até Kigoma, no La-
tros lugares. Na porção oriental do da também é cortejada por países vizi- ao empobrecimento dos Estados nem go Tanganica, na fronteira com a RDC.
continente, apenas um terço das es- nhos e investidores. Os benefícios des- às privatizações desordenadas dos A empresa conquistou a vitória em ra-
tradas é pavimentado. Frequentemen- sa situação revelam-se limitados pela anos 1990-2000. As linhas existentes zão de seus orçamentos mais baixos e
te malconservadas e dependentes do necessidade de viver em harmonia receberam pouca ou nenhuma manu- de sua conformidade com os padrões
clima, elas não constituem o meio com os vizinhos. “A ferrovia deve ser tenção. A ferrovia é tratada como cida- europeus, o que, além das garantias
mais rápido e seguro de escoar miné- um fator de integração”, destaca Char- dã de segunda classe: as estradas ab- de segurança, facilita uma possível li-
rios para os portos. Secas, inundações les Kateeba, diretor executivo da Com- sorvem 80% do tráfego de mercadorias gação com outros projetos internacio-
e buracos atrasam os caminhões. panhia Ferroviária de Uganda, que la- e 90% do transporte de pessoas. nais. Hoje, a viagem leva 36 horas, in-
Os esforços de construção de in- menta a falta de coordenação dos Com o aumento do preço das com- cluindo as paradas e desacelerações;
fraestrutura inserem-se no contexto planos nacionais de desenvolvimento modities e dos investimentos chineses quando a linha estiver concluída, se-
de um mercado aberto no qual os go- de infraestrutura. O risco político per- (ler artigo na pág. 34), a demanda por rão apenas seis horas.
vernos africanos, financeira e politi- manece: a decisão de criar o porto de infraestrutura explodiu. A União Afri- A Yapi Merkezi ganhou fama no
camente frágeis, respondem às solici- Bagamoyo foi tomada apenas pelo cana colocou o setor como principal continente ao conquistar o mercado de
tações dos países estrangeiros e dos presidente Magufuli. Seu objetivo é prioridade de sua Agenda 2063 para o bondes de Casablanca, no Marrocos, e
investidores. Ciente da oportunidade, descongestionar o porto de Dar es Sa- Desenvolvimento. “Os projetos se mul- o da ligação entre Dacar e o novo aero-
o truculento e eruptivo chefe de Esta- laam, mas a relevância de sua localiza- tiplicam”, confirma Hinrich Brümmer, porto internacional Blaise-Diagne, a 40
do da Tanzânia, John Magufuli, auto- ção não foi discutida. A construção es- diretor de transporte e mobilidade da quilômetros da capital senegalesa.
proclamou-se “o presidente da in- tá atrasada, assim como a do porto de consultoria alemã ETC Gauff, lembran- “Essa empresa faz parte da influência
fraestrutura”. A CAO tenta coordenar Lamu, no Quênia. do que, segundo o Banco Mundial, “um turca na África Oriental, através do
o movimento, mas ela não inclui a aumento de 10% na infraestrutura Mar Vermelho e do Sudão”, explica um
RDC, que faz parte da Comunidade REDE REFLETE HERANÇA COLONIAL equivale a uma elevação de 1% no PIB”. engenheiro marroquino que veio ob-
Econômica dos Estados da África Cen- Desde sempre, a infraestrutura é o Menos destrutivo para o meio am- servar as obras como parte de um pro-
tral (Ceeac). Isso não impediu o país ponto fraco do continente africano, e biente, o trem também é duas vezes grama de treinamento. Como frequen-
de adotar um plano diretor para o de- isso inclui as ligações internas. Ainda mais rápido e permite transportar em temente ocorre na África, trata-se de
senvolvimento ferroviário, e três cor- hoje, as redes de comunicação refle- um único carregamento grandes uma linha de via única, que permite a
redores de desenvolvimento de comu- tem o legado colonial: as costas, que quantidades de minério por longas dis- passagem de apenas um trem por vez e
nicação foram projetados para a eram estratégicas para a exportação tâncias. As vias elevadas, os dormentes serve tanto ao transporte de passagei-
sub-região.2 No norte, a RDC será co- rumo às metrópoles, são mais bem de concreto e o uso de lastro tornam- ros como de mercadorias.
nectada ao Quênia (porto de Momba- equipadas que o interior. As potências -no mais resistente às intempéries do A alguns metros dos primeiros tri-
ça); no sul, à Tanzânia (porto de Dar europeias investiram no transporte que a estrada. Mas a construção das li- lhos novinhos em folha – de fabricação
es Salaam). A concorrência entre os ferroviário a partir das áreas de mine- nhas é cara: um quilômetro custa en- japonesa – apoiados em dormentes de
dois está aberta, especialmente por- ração ou de produção algodoeira. A tre US$ 4 milhões e 5 milhões, 25% a concreto (em vez dos de madeira, fre-
que a China parece preferir Momba- construção dessas linhas chegou a mais que seu equivalente rodoviário. quentemente danificados pelas en-
ça, que acaba de ser conectada à capi- custar muitas vidas humanas, como “Faltam 10 mil quilômetros de fer- chentes) e produzidos pela empresa
tal, Nairóbi, por uma via férrea de 472 ilustra o caso emblemático de Dakar- rovias na África, o que exigiria US$ 25 turca, é possível notar, no meio do ma-
quilômetros de extensão. -Saint-Louis-Bamako. Os requisitos de bilhões de investimento por ano”, es- to desordenado e dos redemoinhos de
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33

poeira, trilhos enferrujados. São os Nyerere ainda paira sobre a Tanzânia:


restos da linha construída no tempo marcado pelo pan-africanismo e so-
da colonização alemã, depois britâni- cialista convicto, o pai da independên- SOCIALISMO AFRICANO | POR JEAN-CHRISTOPHE SERVANT*
ca, da Tanzânia, entre 1889 e 1926. Es- cia pensava o desenvolvimento para
sa linha ainda leva, ano após ano, as
populações do centro do país em dire-
os habitantes, sobretudo os mais mo-
destos. Essa preocupação não é neces-
J ulius Nyerere (1922-1999), primeiro
presidente da Tanzânia após a inde-
pendência em 1961, também foi o inven-
rece ser o mais adequado para nosso
continente. Mesmo que nosso socialis-
mo seja baseado em valores culturais
ção à capital. Os 2.600 quilômetros de sariamente compartilhada em outros tor do socialismo “Ujamaa”, um termo africanos, não científicos, como na Chi-
trilhos que vão para Kigoma, no leste, lugares: no Mali, a privatização da fer- suaíli que significa “família” no sentido na, existem correlações, por exemplo,
e para Arusha funcionam em marcha rovia levou ao abandono das linhas de amplo.1 Em 1977, ele fundou o Chama em matéria de protecionismo.”
lenta: os dormentes de madeira estão passageiros, em favor das de mercado- cha Mapinduzi (CCM), ou “Partido da Polepole ambiciona agora elevar o
gastos, os aparelhos de mudança de rias. Na Tanzânia, a construção das Revolução”. Marcado pelo anti-imperia- CMM “ao nível intelectual e moral em
via precisam de reparos, e os trens não novas vias vem acompanhada de ope- lismo e pelo pan-africanismo, Nyerere que estava antes, a fim de sensibilizar os
passam de 75 quilômetros por hora, al- rações de “desapropriação”: as popu- expôs sua visão em 1967, na Declaração tanzanianos para as questões da liberta-
de Arusha: nacionalizações, criação de ção econômica” e permitir que seu país
ternando frete e passageiros. lações modestas, outrora afagadas por
comunidades agrícolas por aldeias, am- “se torne novamente um laboratório da
Apesar dos custos mais elevados, Nyerere, precisam deixar suas casas
pla política educacional. O trabalho des- África do amanhã, como foi sob Nyere-
as autoridades da Tanzânia preferi- improvisadas para permitir o avanço se que foi apelidado de mwalimu, “o pro- re”. Para esse fim, o CCM está criando a
ram construir uma nova linha a reno- dos canteiros de obras e ajudar na fessor”, continua a inspirar a vida política Future Mwalimu Nyerere Leadership
var a antiga. Eric Peiffer, representante “modernização” dos bairros. do país, ainda que tenha passado pelas School, um projeto de US$ 45 milhões
da consultoria de logística ferroviária Primeira fase de um vasto plano de forquilhas das instituições financeiras in- financiado pela China e confiado à China
belga Vecturis, não se surpreende, já construção, a linha Dar es Salaam- ternacionais após sua morte. O chinês Railway Jianchang Engineering Com-
tendo observado a mesma atitude em -Morogoro será estendida para Dodo- Mao Tsé-tung foi um dos grandes apoia- pany. Essa escola receberá ativistas de
muitos países do continente. “Os diri- ma e depois para Kigoma, assim que dores da Tanzânia nos anos 1960. cinco partidos na África Austral “ligados
gentes preferem construir a fazer a forem obtidos os fundos necessários. Humphrey Polepole, líder ideológico às lutas de libertação”: o Congresso Na-
manutenção do que já existe”, explica. Ela transportará mercadorias (5 mi- do CCM e de sua comunicação, recebe cional Africano (ANC), da África do Sul;
os visitantes da sede do partido no cen- a União Nacional Africana do Zimbábue-
“É mais espetacular, portanto mais in- lhões de toneladas por ano) e passa-
tro histórico de Dar es Salaam. O prédio, -Frente Nacional Patriótica (Zanu-PF); a
teressante do ponto de vista político.” geiros (1,2 milhão por ano). A velocida-
construído por Pequim, acolhe regular- Organização do Povo do Sudoeste Afri-
Com um sorriso no canto da boca de de dos trens é estimada em 160 mente delegações do Partido Comunis- cano (Swapo), da Namíbia; o Movimento
quem já viu a mesma situação outras quilômetros por hora. A 10 quilôme- ta Chinês (PCC). Por seu lado, todos os Popular para a Libertação de Angola
vezes, o homem de seus 50 anos tam- tros da capital, a pequena cidade de executivos do CCM fizeram uma viagem (MPLA); e a Frente de Libertação de
bém fala da “cultura do imediatismo” Pugu abrigará uma nova estação, com à China. No escritório de Polepole, uma Moçambique (Frelimo). Localizada em
das populações africanas, antes de suas cintilantes plataformas de con- curva desenhada em um gráfico compa- Kibaha, perto de Dar es Salaam, essa
lançar: “Eles ficam cansados de nossos creto e portões automáticos. A poucos ra os anos que permitiram que os Esta- “escola de ciências políticas” vai treinar
planos de dez anos”. A Vecturis acom- metros do local das obras, as casas de- dos Unidos e a China se impusessem, “líderes de amanhã”, continua Polepole.
panha de perto o desenvolvimento dos crépitas e o mercado de gado dão ao “em apenas sessenta anos”, como as pri- “Precisamos de uma liderança forte e
corredores de mineração africanos: conjunto uma aparência meio irreal. meiras economias do mundo. Em sua ética, que garanta o desenvolvimento
mesa de trabalho, velhos fac-símiles das econômico para seu povo”, disse o pró-
RDC, Zâmbia, Tanzânia e Angola. Porta da Tanzânia para o Oceano Índi-
obras de Nyerere ficam lado a lado com prio presidente da Tanzânia, John Magu-
A opção por construir uma nova li- co, Dar es Salaam é uma metrópole de
uma Bíblia, um Alcorão, The Looting fuli, ao lançar a pedra fundamental da
nha na Tanzânia também reflete a 12 milhões de habitantes. O trem tam- Machine [A máquina de saques], de escola. A cerimônia contou com a pre-
adoção do sistema de bitola-padrão bém deve ajudar a descongestioná-la, Tom Burgis, jornalista do Financial Ti- sença de Song Tao, diretor de Relações
(60% das vias no mundo), mais amplo pois o desenvolvimento das linhas mes, e The Governance of China [A go- Internacionais do PCC, que se compro-
que aquele utilizado pelo colonizador principais se combina com um plano vernança da China], de Xi Jinping. Pole- meteu a fornecer formadores.
britânico. Dominante no sul da África, de desenvolvimento urbano, com uma pole mostra a frase que ele enfatizou
este foi logicamente adotado para a li- moderna rede de ônibus administrada com o marcador de texto: “Aqueles que *Jean-Christophe Servant é jornalista.
nha histórica Tanzânia-Zâmbia (cha- por uma empresa israelense. conquistam o coração de uma popula-
mada de “Tanzam”), construída pelos ção a ganham”. “Os ocidentais podem
chineses entre 1968 e 1976 (ver boxe). INCERTEZAS QUANTO AO FORNECIMENTO ter nos libertado politicamente, mas
1 Ler Christiane Chombeau e Pierre Haski, “Es-
nunca economicamente. Seu modelo de
Em 2012, a CAO adotou o sistema de Embora os anúncios grandiosos das poirs et difficultés d’un socialisme africain” [Es-
desenvolvimento da África falhou”, ele peranças e dificuldades de um socialismo afri-
bitolas-padrão como norma para a re- autoridades nacionais e municipais
explica. “O que a China nos oferece pa- cano], Le Monde Diplomatique, nov. 1975.
gião. Também é preciso fazer a ligação possam provocar euforia, sua concreti-
entre as vias, ou seja, a instalação dos zação ainda levanta muitas questões. A
aparelhos de mudança de via e as esta- primeira diz respeito à manutenção.
ções de conexão entre as duas redes. Quando as obras terminarem e a cons-
Essa escolha foi bastante discutida, trutora for embora, quem fará a manu- terços são fornecidos por centrais ter- exige a mobilização de bilhões de dó-
considerando os custos e a falta de re- tenção da rede ferroviária? A história da melétricas, que operam com gás natu- lares ao longo de vários anos. Além de
flexão sobre suas consequências para África está cheia de tratores enferruja- ral (44%) ou petróleo (22%). O outro cara, a escolha pelas linhas catenárias
a integração do transporte na sub-re- dos; o documentarista belga Thierry terço vem de usinas hidrelétricas. O requer manutenção permanente. O re-
gião. Uma bitola mais larga permite Michel filmou as locomotivas abando- governo elaborou um plano diretor torno não demorará menos de quinze
conversões mais rápidas. nadas nas florestas do Congo no final para a energia, que inclui a construção anos. Como lamenta Peiffer, “o mode-
“A África hesita entre dois modelos: de 1990. A Yapi Merkezi tem planos de de uma grande barragem, na Garganta lo econômico não está claro, e o pró-
o do trem rápido para passageiros e o formar engenheiros tanzanianos, que de Stiegler, no Rio Rufiji, e de uma cen- prio preço das passagens ainda se está
do trem projetado para mercadorias, deverão ser viabilizados por meio de tral elétrica na reserva de Selous, no por definir”.
segundo o exemplo norte-americano um contrato de formação com uma coração da região de Morogoro. Esse
de cadeias intermináveis de vagões empresa sul-coreana. projeto, que há anos se arrasta entre as *Anne-Cécile Robert é jornalista do Le
com quilômetros de comprimento que Outro problema: a energia. A Tan- pastas ministeriais, foi relançado pelo Monde Diplomatique.
se deslocam lentamente”, explica Peif- zânia escolheu o trem elétrico em vez presidente Magufuli em setembro de
fer. Investimentos e pré-requisitos de do trem a diesel adotado na Tanzam. 2017. A grande barragem deve ter uma
segurança não são os mesmos. “Do Isso implica garantir o fornecimento capacidade de 2.100 megawatts e pro- 1 Ler Sabine Cessou, “Transition à haut risque en
République démocratique du Congo” [Transição
ponto de vista comercial, o transporte de motrizes ao longo do percurso. Um duzir sozinha quase 6 terawatts/hora, de alto risco na República Democrática do Con-
de mercadorias parece prioritário, grande desafio, uma vez que a capital quase a produção atual do país. go], Le Monde Diplomatique, dez. 2016.
mas, do ponto de vista político, não é já passou por inconvenientes apagões. A escala dos investimentos leva os 2 Ler Tristan Coloma, “En attendant le port qui doit
sauver le Kenya...” [Esperando o porto que deve
possível abandonar os passageiros”, O país produziu 6,3 terawatts/hora em países envolvidos para a espiral do en- salvar o Quênia...], Le Monde Diplomatique, abr.
avalia Chirhalwirwa. A sombra de 2015, o dobro de onze anos atrás. Dois dividamento. A construção dos trilhos 2013.
34 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

INFRAESTRUTURAS ESSENCIAIS FINANCIADAS POR PEQUIM

A Tanzânia aposta na China


Mais de vinte pessoas foram mortas em 16 de janeiro de 2019 em um atentado contra um hotel de Nairóbi. Na competição
por investidores que o opõe à Tanzânia, o Quênia sofre com a insegurança. Pilar histórico da cooperação sino-africana,
o país de Julius Nyerere é cada vez mais palco de um enfrentamento econômico entre China e Estados Unidos
POR JEAN-CHRISTOPHE SERVANT*, ENVIADO ESPECIAL

-africana (ler o boxe na pág. 32). O pe-


queno porto de pesca para o qual as
duas potências voltaram sua atenção
foi, até meados do século XIX, um lu-
gar importante de trânsito de copra
[polpa seca do coco] e de marfim, mas
também de escravos. Seguindo os ras-
tros abertos pelos traficantes de escra-
vos árabes, muitas expedições, in-
cluindo as dos britânicos Richard
Francis Burton e Henry Morton Stan-
ley, foram realizadas rumo ao interior
partindo de Bagamoyo. A cidade abri-
gou em seguida a primeira missão ca-
tólica na África Oriental, depois se tor-
nar por um curto tempo a capital da
colônia da África Oriental Alemã, an-
tes de passar para o controle de Lon-
dres. Com a anexação de Zanzibar em
1964, Tanganica, três anos após a in-
dependência, tornou-se a Tanzânia.
Pioneira do eixo Sul-Sul, a China
parece aqui fechar o ciclo da história
da globalização da África, abrindo ca-
minho adiante dos operadores turcos,
egípcios, indianos ou aqueles do Gol-
fo. O acordo para o lançamento do no-
vo porto foi divulgado no final de mar-
ço de 2013, quando o presidente chinês
fez sua segunda viagem oficial ao con-
© Alves

tinente, reservando sua primeira pa-


rada para a Tanzânia. Xi ainda faria
mais três viagens ao continente. Nun-
ca desde o lançamento da política de
abertura sob Deng Xiaoping, em 1978,

E
m algum lugar na costa da Tan- nas últimas quatro décadas”:1 um in- em 1977 por Julius Nyerere (ler o boxe um chefe de Estado chinês visitara
zânia, três pescadores originá- vestimento de US$ 10 bilhões, forneci- na pág. 33). A linha original do CCM tanto a região.
rios de Cantão (Guangzhou, dos em parte pelo fundo soberano do não resistiu aos “ataques neoliberais Nyerere tinha ido trinta vezes ao
China) descansam à sombra de sultanato de Omã e pelo Exim Bank do final dos anos 1980 e 1990, que Império do Meio, “contra apenas uma
uma árvore curtindo cigarros Safari. chinês. O alinhamento dos cais e das desnacionalizaram a própria noção vez à União Soviética”, recorda Charles
As volutas de fumaça sobem lenta- bacias se estenderá por mais de 20 qui- de nacionalismo”, analisa Daudi Mu- Sanga, seu último assistente pessoal.
mente. Poder-se-ia acreditar em uma lômetros de costa. Além disso, haverá kangara, professor de Ciência Políti- “No final de sua vida, em 1999, ele
representação chinesa de Esperando uma zona econômica especial baseada ca da Universidade de Dar es Salaam. achava que só tínhamos um amigo ge-
Godot às margens do Oceano Índico. no modelo de Shenzhen, na China, e Impulsionada por um dos mais fortes nuíno: a China.” Sanga também foi
Até que punhos vingativos se esten- capaz de embarcar e descarregar 20 crescimentos do continente – 5,8% embaixador da Tanzânia em Pequim
dem para o céu azul: o nome do presi- milhões de contêineres por ano, o em 2018 e uma previsão de 6% para na primeira reunião de cúpula China-
dente Xi Jinping e o de Bagamoyo aca- equivalente ao porto de Roterdã, e cau- 2019, de acordo com o FMI –, a Tanzâ- -África, realizada em setembro de 2000
bam de ser pronunciados. sar, de acordo com as autoridades da nia está engajada em um vasto pro- “na presença de apenas quatro chefes
Pequeno porto de pesca a 70 quilô- Tanzânia, uma “revolução industrial” grama de construção de infraestru- de Estado africanos, entre eles nosso
metros ao norte de Dar es Salaam, Ba- nesse país predominantemente rural, tura (ler o artigo na pág. 31). então presidente, Benjamin Mkapa”.
gamoyo abrigará dentro de dez anos o onde 80% da população continua a vi- Em Bagamoyo, o sultanato de Omã Dez anos se passaram.3 Por nove
maior porto do continente africano. A ver abaixo da linha de pobreza.2 retomou força a poucos passos de Zan- anos, a China tem sido o maior parcei-
China Merchant Holdings, primeiro Exemplo de rara estabilidade na zibar, onde brilhou até 1861, em parti- ro comercial do continente, à frente
operador portuário público chinês, es- região, a Tanzânia vem sendo dirigi- cular graças ao comércio de escravos dos Estados Unidos. Na oitava cúpula
tá prestes a lançar ali o que a agência da desde o final de 2015 por John Ma- negros para os Estados do Golfo. Já a China-África, sob a bandeira das no-
Ecofin não hesita em chamar de “o gufuli, um herdeiro do histórico par- China amplia sua influência na África vas “rotas da seda”, em setembro de
canteiro de obras mais significativo tido Chama cha Mapinduzi (CCM), Oriental a partir de um país que foi um 2018, em Pequim, ela prometeu US$ 60
nas relações da Tanzânia e da China ou “Partido da Revolução”, fundado pilar histórico da cooperação sino- bilhões, incluindo um quarto dos em-
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 35

préstimos sem juros, um terço do cré- Eles denunciam as restrições à liber- em guerra aberta com seu concorren- tido, chamado “Declaração de Tabo-
dito e US$ 10 bilhões destinados a um dade de imprensa e à liberdade de re- te. A Tanzânia é oficialmente um dos ra”, “é inspirado na Declaração de
fundo para o financiamento de proje- união, uma lei considerada abusiva quatro países africanos (com Etiópia, Arusha, de 1967, que foi a certidão de
tos de desenvolvimento, enquanto sobre a segurança cibernética e a Quênia e Egito) selecionados em 2015 nascimento do Ujamaa [família]” e
US$ 5 bilhões deverão apoiar as expor- promulgação do Statistics Act, que para receber empresas chinesas; Ma- pretende estabelecer as bases “de um
tações africanas. Na ocasião, o presi- impede qualquer publicação de ci- gufuli pretende transformá-la em uma socialismo adaptado para a Tanzânia
dente Xi prometeu não financiar ne- fras que não sejam as produzidas pe- nação “semi-industrializada” até 2025. do século XXI”. Kabwe se mostra críti-
nhum projeto “fútil”; unicamente lo governo; mas também as tentati- Ele espera que o setor industrial repre- co em relação às instituições de Bret-
“infraestruturas capazes de eliminar vas de assassinar os opositores e o sente então pelo menos 40% de sua ri- ton Woods (Banco Mundial e FMI),
os gargalos que bloqueiam o desenvol- misterioso desaparecimento, no final queza, contra menos de 10% hoje. “que impuseram o Código de Minera-
vimento do continente”.4 Entre 2000 e de 2017, do jornalista Azory Gwanda. ção de 1998, favorável às multinacio-
2016, de acordo com dados da China Em novembro de 2018, por ocasião nais da extração, e nos fizeram afun-
Africa Research Initiative, em Washin- da inauguração da biblioteca da Uni- dar na armadilha da dívida”. Mas o
gton, a China já teria emprestado US$ versidade de Dar es Salaam – um ele- “Nossa dívida pública mesmo ocorre com a China, que
125 bilhões para o continente. Em gante conjunto de edifícios financiado externa pertence “avança seus peões a toda velocidade
2017, o comércio bilateral teria alcan- pela China, ao lado do Instituto Con- na África em seu próprio interesse”. No
çado US$ 180 bilhões, incluindo US$ fúcio –, Magufuli fez um discurso ine-
em 60% a organizações entanto, ele também pede que se te-
75,3 bilhões em importações. Em com- quívoco: “A China é uma verdadeira multilaterais como nha cuidado com a narrativa antichi-
paração, o comércio da África com os amiga, que oferece ajuda sem impor as de Bretton Woods nesa simplista, tão útil aos interesses
Estados Unidos não ultrapassava US$ condições. [...] Coisas gratuitas são e apenas em ocidentais: “Nossa dívida pública ex-
39 bilhões. muito caras, especialmente quando terna pertence em 60% a organizações
“O presidente Magufuli foi eleito vêm de certos países. As únicas que
10% à China” multilaterais como as de Bretton
em 2015 num programa de recon- não nos custarão nada são as que vêm Woods e apenas em 10% à China”.
quista da soberania econômica da da China”. Em 2016, Washington tinha Consultor fiscal e um dos 4 mil a 5
Tanzânia diante dos investidores oci- anulado uma dotação de US$ 470 mi- Para financiar esse programa, o mil empreendedores chineses do setor
dentais”, explica o professor de Ciên- lhões do Millennium Challenge Ac- governo declarou uma guerra feroz privado que estariam presentes na
cia Política Rwekaza Mukandala, ex- count, um fundo de desenvolvimento contra a corrupção e o desperdício de Tanzânia, Andrew Huang, instalado
-vice-reitor da Universidade de Dar bilateral, em resposta às violações das dinheiro público, mas também contra no país desde o final da década de
es Salaam. “Para ele, a China é a que liberdades civis. o “voo em grande escala” constatado 1990, reconhece que as medidas toma-
tem mais condições de ajudar nesse na indústria de mineração. Quarta das pelo governo no setor de minera-
projeto.” A opinião é compartilhada GUERRA DE INFLUÊNCIA COM OS EUA maior produtora de ouro do continen- ção “esfriaram” alguns de seus com-
por Octavian Mshiu. O presidente da A Tanzânia e sua vizinha, a Zâm- te, a Tanzânia alterou as leis que re- patriotas, acreditando que “alguns
Câmara de Comércio e Agricultura bia, estão entre os principais teatros gem a atribuição de contratos de mi- não pagavam impostos”. “Demonstrar
da Tanzânia assume o papel estraté- africanos da nova “guerra de influên- neração para empresas extrativas, firmeza, como faz o presidente Magu-
gico conferido a Bagamoyo, que “per- cia entre as duas maiores economias dando-se o direito de renegociá-los ou fuli, é uma coisa boa para este país”,
mitirá associar firmemente a Tanzâ- do planeta”.5 O “consenso de Pequim” encerrá-los no caso de comprovada considera Huang, cujo negócio é regi-
nia ao projeto de novas ‘rotas da seda’ opõe-se ao “consenso de Washing- fraude fiscal. A nova legislação retira do pelo direito tanzaniano. Fabrica-
e fazer dela a líder da realocação de ton”: por um lado, a ajuda não condi- ainda o direito das empresas de mine- ção de motocicletas, processamento
algumas empresas manufatureiras cional, fora das regras do jogo interna- ração de recorrer à arbitragem inter- de produtos agrícolas... Ele promete
chinesas na África Oriental”. O vizi- cional, concedida em troca de acordos nacional. O contencioso tributário um afluxo de empresas chinesas: “O
nho Quênia, com o qual a Tanzânia comerciais ditados pela China; no lado com a Acacia Mining, subsidiária da desenvolvimento da Tanzânia está
compete para servir de canal para os ocidental, empréstimos (FMI, Banco gigante do ouro Barrick Gold, acusada apenas começando. Graças a Baga-
países sem litoral na África Oriental, Mundial) acompanhados de condi- de avaliar por baixo sua produção de moyo, a Tanzânia se tornará em breve
apresenta muitos problemas para Pe- ções políticas e sociais: privatização, ouro durante anos para economizar a Dubai da África”.
quim. Está sob a influência dos Esta- menor gasto público etc. O governo de bilhões de dólares em royalties e im-
dos Unidos, que fizeram dele um de Donald Trump agora exibe aberta- postos, resultou em um acordo amigá- *Jean-Christophe Servant é jornalista.
seus parceiros estratégicos no conti- mente a disposição de se contrapor a vel cujas cláusulas resta determinar. A
nente. Por outro lado, é um Estado uma China acusada de “organizar de- Tanzânia obterá uma participação de
instável, confrontado com o terroris- savergonhadamente sua política de 16% nas três minas de ouro da Barrick
mo e ainda sujeito ao tribalismo. investimento na região para obter Gold e 50% dos rendimentos delas
vantagens competitivas sobre os Esta- decorrentes.
dos Unidos”, como afirmou John Bol- A política brutal de Magufuli, “tão
ton, conselheiro de segurança nacio- errática quanto imprevisível”, de acor-
“Coisas gratuitas nal, em 13 de dezembro à Heritage do com um jornalista local, foi de iní- 1 Cf. “La Tanzanie entame la construction d’un port
et d’une zone économique spéciale pour 10 mil-
são muito caras, Foundation, em Washington. O Impé- cio apoiada com entusiasmo pela jo-
liards de dollars” [A Tanzânia começa a construir
rio do Meio também se vê acusado de vem geração intelectual de Dar es
especialmente quando “distribuir subornos, assinar acordos Salaam. “Então, desde 2016, o regime
um porto e uma zona econômica especial por US$
10 bilhões], Ecofin, Paris, 19 out. 2015.
vêm de certos países. opacos e fazer uso estratégico da dívi- começou a mergulhar no autoritaris- 2 Cf. Nick Van Mead, “China in Africa: win-win deve-
lopment, or a new colonialism” [China na África:
As únicas que não nos da para submeter os Estados africanos mo”, diz o ex-deputado de 42 anos Zit- desenvolvimento ganha-ganha ou um novo colo-
custarão nada são as aos seus desejos e demandas”. Essas to Kabwe, líder da Aliança para a Mu- nialismo?], The Guardian, Londres, 31 jul. 2018.
3 Ler “La Chine à l’assaut du marché africain” [A Chi-
acusações da virtuosa América em na- dança e a Transparência, à esquerda
que vêm da China” da atingem a China. O país reafirma do partido de oposição Chadema. Ele
na se lança sobre o mercado africano], Le Monde
Diplomatique, maio 2005.
sua promessa de “contribuir para o de- critica a “retórica patriótica do gover- 4 Christian Shepherd e Ben Blanchard, “China’s Xi
senvolvimento da África, aproveitan- no”, que “ainda não teve impacto no offers another $60 billion to Africa, but says no to
‘vanity’ projects” [Xi da China oferece outros US$
Maior parceiro comercial da Tanzâ- do seu próprio desenvolvimento”.6 dia a dia dos tanzanianos”. Segundo 60 bilhões para a África, mas diz não a projetos
nia, a China manteve um silêncio notá- Em seu discurso sobre a nova es- ele, essa política, “apesar de levantar a ‘fúteis’”], Reuters, 3 set. 2018.
vel sobre a deriva autoritária do presi- tratégia norte-americana para o conti- questão fundamental da propriedade 5 Cf. Sébastien Le Belzic, “L’Afrique devient un échi-
quier où les États-Unis et la Chine avancent leurs
dente Magufuli, enquanto Washington nente, Bolton falou sobre a África dos recursos, enfraqueceu o cresci- pièces” [A África se torna um tabuleiro de xadrez
e outras chancelarias ocidentais estão Oriental: as dívidas das empresas pú- mento do setor de mineração e assus- onde os Estados Unidos e a China avançam suas
preocupadas com os abusos dos direi- blicas, especialmente na Zâmbia, as tou os investidores, que agora estão peças], Le Monde, 9 jan. 2019.
6 “La Chine contribuera au développement de l’Afri-
tos humanos e os riscos que repre- colocariam à mercê de Pequim. Em com medo de ter de lidar com a justiça que” [A China contribuirá para o desenvolvimento
sentam para o desenvolvimento. Lusaka, os Estados Unidos estão agora da Tanzânia”. O programa de seu par- da África], FrenchXinhuanet, 8 maio 2018.
36 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

TV, CELULAR, COMPUTADOR, TABLET...

As receitas da Netflix
Uma pequena empresa de aluguel de DVD por correspondência foi criada em 1997 e, batizada com o nome de Netflix,
tornou-se uma plataforma de vídeo sob demanda que conta com 140 milhões de assinaturas em 190 países. O acesso é
ilimitado, sem publicidade e personalizado. Todos os aparelhos levam a partir de então à Netflix, que procura impor suas regras
POR THIBAULT HENNETON*

© Divulgação
Produzido pela Netflix, Roma concorre ao prêrmio de melhor filme no Oscar de 2019

A
história começa por uma proeza cando? Tem uns trinta? Vamos levar tos – e mirar seus assinantes. Essa fer- juntaram 80% de produções holly-
tecnológica: tratava-se, inicial- tudo!’.”2 Em seguida, a empresa gastou ramenta lhe permite saber que as woodianas que todo o mundo conhe-
mente, de um xeque-mate ao cada vez mais para comprar conteúdo, comédias alemãs fazem sucesso no cia e, em massa, já fazia o download,
download ilegal. A Netflix então endividando-se no mercado de inves- Brasil, em que momento preciso de ainda que ilegalmente. Os primeiros
concebeu uma interface com uma flui- timentos de risco – um método viven- um episódio os espectadores ficam assinantes compartilhavam seus có-
dez extraordinária. Em todos os luga- ciado pela Amazon. À medida que o “viciados” em uma série, em que te- digos de acesso; seria fácil impedi-los,
res, o tempo inteiro, a resolução de uma número de assinantes cresceu, a Net- máticas ou em quais atores seria perti- mas a Netflix mostrou-se tolerante: era
imagem se adapta à velocidade de co- flix ganhou a confiança dos investido- nente investir etc. A multinacional op- bom tanto para sua imagem quanto
nexão de um número exponencial de res. Mas, sendo proprietária de apenas tou pela produção local, na língua dos para os servidores, que registravam,
usuários. A Netflix realiza essa “exten- 8% de seu catálogo, a plataforma con- países visados, indo atrás de atores co- assim, uma quantidade de dados bem
sibilidade” (scalability) por meio de seu tinua muito dependente das licenças nhecidos, o que lhe permite se enrai- maior do que o número de assinantes,
programa Open Connect e graças ao que obtém junto aos grandes estúdios zar e, ao mesmo tempo, atrair a aten- que, em seguida, eram analisados pa-
serviço de nuvens (cloud) da Amazon. (20% pertencem à NBCUniversal, à ção da mídia. Assim, a série Narcos, ra determinar o gosto do público. Uma
O custo estimado fica entre US$ 30 mi- Disney e à Warner), correndo o risco ficção muito documentada sobre os vez que se tornou suficientemente
lhões e 80 milhões por mês, condição de elas retomarem rapidamente seu cartéis do narcotráfico, inspirada nu- bem conhecida, a Netflix pôde lançar
necessária para desviar do download acervo para seus próprios serviços de ma série de TV colombiana de sucesso, suas próprias séries sem correr muito
pirata os clientes em potencial. vídeo sob demanda (subscription video El Cartel de los Sapos (2008) [na gíria risco. Assim nasceu Narcos, em 2015.
Para garantir a fidelidade, é preciso on demand, SVOD). Por isso, ela redo- do tráfico, sapo quer dizer “informan- A empresa produz filmes também
um conteúdo que seduza. Desde os bra seus esforços para acumular pro- te”], foi coproduzida com a Gaumont e – cerca de oitenta em 2018, duas vezes
anos 2000, a Netflix negocia direitos de gramas originais. teve uma parte (três quartos) filmada mais que a Disney e a Warner Bros jun-
difusão com os estúdios hollywoodia- Em 2013, a empresa começou a em espanhol, pouco tempo após a tas. Alguns começam a ganhar prê-
nos e se beneficia da moda planetária produzir e, em 2016, criou seu estúdio. chegada da Netflix a 43 países da Amé- mios nos grandes festivais. Dois deles
das séries1 (Friends, La Casa de Papel Com um sucesso fulgurante. Efetiva- rica Latina e do Caribe, em 2011.3 na última Mostra de Veneza, em se-
etc.), que representam, em horas de mente, seu fundador e diretor, Reed Antes de criar seu próprio conteú- tembro de 2018: o Leão de Ouro para
programas, mais de dois terços do ca- Hastings, formado em Informática na do, a plataforma beneficiou-se – no Roma, do diretor argentino Alfonso
tálogo e das emissões. Mas, desde o Universidade Stanford, berço do Goo- México, por exemplo – da ausência de Cuarón, e o prêmio de melhor roteiro
início, ela visa também a públicos se- gle, também sabe tirar o melhor parti- regulamentação concernente aos ser- para La Ballade de Buster Scruggs [no
lecionados. “Seus representantes vi- do dos vestígios deixados pelos usuá- viços de SVDO. Ela negociou com as Brasil, A balada de Buster Scruggs], de
nham me ver e me pediam: ‘O que vo- rios: observar os comportamentos, grandes difusoras latino-americanas Joel e Ethan Coen. Um reconhecimen-
cê tem de cinema iraniano?’”, lembra classificar as preferências, sugerir per- (Telemundo, Telefe na Argentina, RCN to como esse legitima artisticamente a
Vincent Maraval, um distribuidor cursos em seu catálogo, em suma, nu- na Colômbia) os direitos das obras que recém-chegada e ao mesmo tempo
francês. “Eu lhes respondia: ‘Este aqui trir-se de algoritmos. tinham grande audiência local, com suscita a inquietação das instituições
é interessante? Ou aquele lá?’. Eles me A Netflix construiu uma ferramen- milhares de horas de telenovelas – en- estabelecidas, do que a plataforma sa-
respondiam: ‘Mas não, você está brin- ta poderosa para calibrar seus produ- tre 15% e 20% do catálogo. A estas se be perfeitamente tirar proveito no que
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37

se refere à sua imagem. Tanto é que, Certamente. Mas, para que possa posto sobre os lucros na França. E nem pornográficos analisa os últimos mo-
por outro lado, a Netflix se coloca como perdurar alguma diversidade, pelo sempre está sujeita a alguma obriga- delos de videocassete, provas da “guer-
mecenas dos jovens talentos promis- menos na França, foram estabelecidas ção de financiamento, como as salas ra do formato” em que entraram então
sores esnobados pelo establishment. Na regras, entre elas a da “cronologia das de cinema (uma porcentagem do pre- os fabricantes dos aparelhos de video-
França, ela distribui, por exemplo, Pa- mídias”, ou seja, o tempo de espera ço do ingresso vai para o CNC) e as re- cassetes. Essa inovação modificaria
ris est à nous [Paris é nossa], um filme entre o período em que fica em cartaz des de televisão francesas. profundamente as práticas culturais,
de época sobre a juventude realizado nas salas de cinema e sua difusão em De acordo com o novo contrato in- levando todos os tipos de filme a pene-
por jovens e rodado em Paris, fora de outros suportes, que depende do fi- terprofissional negociado em dezem- trar nas residências e dando início ao
estúdios, o que já dá muito o que falar. nanciamento de diversas difusoras. bro, a Netflix deveria, sobretudo, abs- comércio de aluguel de vídeos, fazen-
Não é raro que um cineasta receba da Quanto mais uma difusora participa ter-se de disponibilizar os filmes do tremer as salas de cinema. Meio sé-
Califórnia uma resposta favorável para do orçamento da produção cinemato- menos de quinze meses após sua pro- culo depois, o videocassete tornou-se
um projeto de filmagem que teria leva- gráfica e audiovisual (30% do finan- jeção nos cinemas. “Dez meses não se- obsoleto e os cinemas continuam a
do meses para concretizar na França. ciamento global dos filmes franceses riam um prazo aceitável para nós. existir. Em compensação, nada garan-
Parafraseando o diretor da para as redes televisivas), mais cedo Aliás, nem dez dias”, já ridicularizava te que a Netflix, como interface e como
Blumhouse, produtora de filmes ex- poderá explorar a obra na televisão ou Hastings em 2017. A plataforma não o estúdio, vá perdurar. Seus concorren-
traordinários que fazem enorme su- na internet. Rever esse calendário im- assinou, sem que isso preocupe muito tes são poderosos. Existem filiais da
cesso, apesar do pequeno orçamento, plica, portanto, repensar o financia- seus assinantes, alguns dos quais con- Gafa (Google, Apple, Facebook, Ama-
como Le Projet Blair Witch [no Brasil, A mento do cinema. sideram que, enfim, ela põe o cinema zon): Facebook Watch, YouTube Origi-
bruxa de Blair], em 1999, de Daniel ao alcance de todos. Os que negam a nals (Google), Amazon Prime Video,
Myrick e Eduardo Sánchez, a Netflix é força desse último argumento prova- Apple TV... Os grandes estúdios: Hulu
uma máquina para drenar talentos, velmente residem em uma grande ci- e, em breve, a Disney Plus. E, sobretu-
pois é pouco avarenta e, ao mesmo “Passamos mais dade, ironiza Frédéric, um professor do, os provedores de acesso à internet,
tempo, é audaciosa em suas escolhas e tempo percorrendo da região da Manche que dedica um que controlam as redes: SFR e Orange
respeitosa com os artistas – desde que podcast mensal às novidades dos (OCS), na França; Comcast e ATT, nos
eles não violem suas normas muito res-
o catálogo do que SVOD, denominado Netflixers: “Em Estados Unidos. As duas últimas pos-
tritas de confidencialidade. Um diretor efetivamente vendo Paris, temos 1.092 telas em 106 quilô- suem, além disso, imensos catálogos
como Cuarón não teria tido necessida- alguma coisa”, metros quadrados. Na Normandia, a de conteúdo – respectivamente da
de de se dirigir à Netflix “se os estúdios diz uma piada média é uma tela”. Universal-Dreamworks e da Warner-
e as difusoras fossem mais inteligen- Mas que obras são apresentadas? -HBO. A “guerra das difusoras” só está
tes, mais combativos, mais abertos”,
norte-americana Das “cem obras-primas que mais entu- começando.
disse o presidente do Institut Lumière siasmaram os críticos do Le Monde
Bertrand Tavernier (Première.fr, 19 desde 1944” (LeMonde.fr, 22 dez. 2018), *Thibault Henneton é jornalista do Le Mon-
out. 2018). E continua: o problema é Ora, pouco antes de seu lançamen- somente três se encontram disponíveis de Diplomatique.
que seu filme foi recusado por todos os to na França, em 2014, apesar das ad- na Netflix francesa, e apenas duas na
estúdios de Hollywood. E a Netflix vertências da ministra da Cultura na norte-americana, que, no entanto, é
aceita um filme em espanhol, preto e época, Aurélie Fillippetti, a Netflix não mais bem provida. “Passamos mais
branco, autobiográfico, sem celebrida- parecia pronta para se dobrar a essas tempo percorrendo o catálogo do que 1 Cf. “Écrans et imaginaires” [Telas e imaginários],
des. E acrescenta: “Os estúdios norte- regras. Após um lobby muito eficaz, a efetivamente vendo alguma coisa”, diz Manière de Voir, n.154, ago.-set. 2017.
-americanos só querem fazer Marvel e empresa agradeceu a publicidade gra- uma piada norte-americana. E a abun- 2 “Des films pour les cinéphiles” [Filmes para cinéfi-
los], entrevista feita com Vincent Maraval, La Sep-
super-heróis, só coisas para crianças tuita resultante da polêmica e fixou dância mascara uma indiscutível ten- tième Obsession, n.19, Paris, nov.-dez. 2018.
entre 6 e 11 anos de idade. Eu, se preci- sua sede europeia em Amsterdã, onde dência à padronização, inclusive das 3 Elia Margarita Cornelio-Marí, “Digital Delivery in
sasse, iria me dirigir à Netflix”. Como a fiscalização é mais moderada – ain- séries. A Netflix não produziu grandes Mexico: A Global Newcomer Stirs the Local
Giants” [Transmissão digital no México: uma re-
um eco, Martin Scorsese, cujo próximo da mais por ela ter se mostrado muito filmes de época, como os que deram cém-chegada global sacode os gigantes locais].
filme, The Irishman [no Brasil, O irlan- tranquila com os arranjos financeiros reputação à rede de TV por assinatura In: Cory Barker e Myc Wiatrowski (orgs.), The Age
dês], em grande parte financiado pela nos paraísos fiscais.4 Quatro anos de- HBO: Oz, Os Soprano, The Wire, Six Feet of Netflix: Critical Essays on Streaming Media, Di-
gital Delivery and Instant Access [A era da Netflix:
Netflix, passará nos cinemas, declara: pois, ela paga como as outras o impos- Under ou o recente The Deuce, sobre o ensaios críticos sobre mídia em streaming, trans-
“É preciso aproveitar a tecnologia e as to sobre o valor agregado (IVA) e a taxa nascimento da indústria pornográfica missão digital e acesso imediato], McFarland &
circunstâncias. Mas o mais importan- de 2% sobre o vídeo destinada ao Cen- em Nova York no início dos anos 1970. Company, Jefferson (Carolina do Norte), 2017.
4 Cf. “Comment Netflix cache ses profits aux îles
te: é preciso continuar a fazer filmes” tro Nacional do Cinema e do Desenho Em um episódio desta última, o Caïmans” [Como a Netflix esconde seus lucros
(France TV Info, 9 maio 2018). Animado (CNC), mas evita pagar o im- proprietário de um estúdio de filmes nas Ilhas Cayman], BFMTV.com, 3 out. 2018.
38 Le Monde Diplomatique Brasil FEVEREIRO 2019

MISCELÂNEA

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NOVAS NARRATIVAS DA WEB


Sites e projetos que merecem o seu tempo

DROGAS:
ROSA LUXEMBURGO: A HISTÓRIA DO MUSEU NACIONAL VIRTUAL
CRISE E REVOLUÇÃO PROIBICIONISMO Finalmente o Google inventou uma espécie
Rosa Rosa Gomes, Henrique Carneiro, de máquina do tempo. Ou quase. Lançou um
Ateliê Editorial Autonomia Literária tour virtual guiado pelo museu nacional mais
antigo do Brasil, aquele que foi destruído
num incêndio em 2018. Sem poder visitá-
lo ao vivo, você pode ao menos observar as

R osa Rosa Gomes não só fez um estudo inédito


em arquivos, como também relacionou os
debates do Partido Social-Democrata alemão
U m livro não começa quando os olhos
correm as primeiras linhas, mas quando
qualquer elemento mínimo alcança um campo
salas pelo especial criado no site Arts and
Culture. Lá, verá a sala com o crânio de Luzia,
o meteorito de Bendegó, o maior do Brasil,
com a formação do pensamento econômico de da percepção. Em Drogas: a história do que ficava na entrada do prédio, um gato
Rosa Luxemburgo por meio da leitura de seus proibicionismo, é assim que o livro começa. São mumificado, o titanossauro de Minas Gerais.
manuscritos. as cores vibrantes, seu laranja psicodélico e a Quase tudo que desapareceu nas chamas
A primeira contribuição da autora consiste textura invertida da capa (a frente e o fundo fora e algumas coisas que resistiram, mas vão
em religar o que diferentes correntes teóricas de seu lugar tradicional) que chamam a atenção demorar a serem expostas novamente.
separaram. Não passa despercebido para ela o ao primeiro toque. A forma do livro, antes de seu http://bit.ly/museu-nacional2018
quanto a ousadia de Rosa Luxemburgo em não texto, nos leva para o que talvez seja o tema
se limitar às discussões feministas do partido, central quando se fala sobre drogas: a percepção.
adentrando o debate teórico “masculino”, contribuiu Desde o século XVIII, com a publicação de
para a marginalização de seu pensamento Confissões de um comedor de ópio, do britânico ÉNOIS
econômico, enquanto ela era mitificada como Thomas De Quincey, o Ocidente iniciou uma Há dez anos, a Escola de Jornalismo da Énois
mártir e sua obra era reduzida a algumas brilhantes tradição de se valer da linguagem literária para capacita jovens das periferias de São Paulo
intervenções políticas conjunturais. descrever toda uma gama de experimentações para contar as histórias de suas comunidades.
Uma segunda contribuição é demonstrar com drogas diversas; a literatura como tecnologia O projeto recebeu o maior prêmio de literatura
que no debate entre marxistas ortodoxos e de escrita mais aberta, capaz de se conectar com brasileiro, o Jabuti, pelo projeto Prato Firmeza:
revisionistas na Alemanha havia um acordo de um campo da percepção deslocado do juízo como Guia Gastronômico das Periferias de SP.
fundo: a disputa entre reforma e revolução em centralidade da razão. Fizeram um censo, que resultou na questão “Por
nada afetaria a prática realmente existente do O livro de Henrique Carneiro se insere nessa que as redações do Brasil são tão brancas?”.
partido. Ambos compartilhavam uma ideologia tradição de algum modo, mesmo se valendo Em 2015 lançou a primeira plataforma on-line
que justificava a situação material e os limites de uma abordagem historiográfica e de uma a ensinar jornalismo gratuitamente, a Escola
políticos da burocracia. linguagem mais acadêmica. Apresentando os de Jornalismo, hoje com mais de 5 mil alunos
É verdade que Rosa Luxemburgo escreveu sua capítulos divididos pelas regulações de algumas cadastrados.
obra econômica com um objetivo bem específico: drogas em países diferentes, o livro passa pelos <https://enoisconteudo.com.br>
comprovar a ideia do Zusamenbruch (quebra Estados Unidos, pela China, pelo Canadá e pela
conjunta do capitalismo) como um argumento Rússia, em uma análise que concatena o que foi
político contra os revisionistas, já que Eduard a regulação das drogas em termos planetários
Bernstein dizia que o capitalismo se perpetuaria com uma análise política do capitalismo, essa TODOS OS ARGUMENTOS
e, assim sendo, os socialistas deveriam se urgente mas escassa conexão nas pesquisas e Igrejas deveriam pagar impostos? Inteligência
contentar em reformá-lo. movimentos antiproibicionistas. artificial um dia poderá ter direitos? Existe limite
Daqui deriva uma terceira ideia importante As drogas e a produção de seu “problema para a liberdade de expressão? Se você queria
de Rosa Rosa Gomes: apesar disso, Rosa de saúde” aparecem como parte de um um lugar para observar todos os pontos de vista
Luxemburgo não produz uma leitura ortodoxa acontecimento mais amplo, de um capitalismo de uma questão, argumentos contra e favor,
com a qual teria rompido depois. Ela não adictivo que imprime uma velocidade que adentra com um sistema de visualização em infográfico,
vinculou a tendência ao colapso econômico nas esferas da vida mais subjetivas. Nossas esse é o lugar. Kialo é uma plataforma de
com a inevitabilidade do socialismo. O capital sociedades são dependentes de muitas coisas, debates, sobre qualquer assunto. Você propõe
busca áreas externas e aumenta os gastos desde o petróleo até uma espiral expansiva de e comenta, e os comentários são organizados
militares do Estado, o que lhe dá uma sobrevida. mercados especulativos. Não é fortuito que as e votados. Você pode ler e tirar suas próprias
E a barbárie é sempre uma possibilidade. Ela drogas que vingaram majoritariamente nesta conclusões. Será que é importante ouvir a
não está no passado, assim como a chamada forma de mundo – que é também um jeito de opinião dos outros? Essa é uma pergunta
acumulação primitiva não foi só um momento da triturar mundos outros – sejam as estimulantes. retórica, tá ok?
história do capital – é seu elemento constitutivo e O café é a droga mais consumida, e chamamos <www.kialo.com>
permanente. A autora nos lembra que, à crise de nosso próprio despertar de café da manhã.
nossa época, Rosa Luxemburgo opôs uma única
saída: a revolução. [Wander Wilson] Doutor em ciências sociais, [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
formado pela PUC-SP e acolhedor no programa professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
[Lincoln Secco] Professor de História de orientação e atendimento ao dependente na Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
Contemporânea da USP. Proad-Unifesp. torando em Design na FAU-USP.
FEVEREIRO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

O que não se aprendeu com a tragédia do Rio Doce


O que aconteceu na barragem da Samarco e na Ano 12 – Número 139 – Fevereiro 2019
barragem da Vale foram crimes de homicídio dolo- www.diplomatique.org.br

so, com dolo eventual por incúria, imprudência,


DIRETORIA
imperícia e negligência. Os diretores da Vale e da Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Samarco deveriam estar presos, pois assumiram o Silvio Caccia Bava

risco de matar. Além da omissão criminosa dos ór- 2 EDITORIAL


Roteiro da resistência
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
gãos federais e estaduais responsáveis por autori- Rubens Naves

zar e fiscalizar essas barragens. Por Silvio Caccia Bava


Editor
Duarte Rosa Filho Luís Brasilino

3 COLETES AMARELOS
Luta de classes na França
Editor-web
Parabéns pela publicação! Não adianta pedir que Cristiano Navarro

“os políticos” aprendam se nós não nos damos ao Por Serge Halimi e Pierre Rimbert
Editores de Arte
trabalho de aprender. Das violências policiais às Adriana Fernandes e Daniel Kondo

Clara Lourido violências judiciárias


Estagiária
Por Raphaël Kempf Taís Ilhéu

Intelectuais de internet chegam ao poder A casta que manda na França


Revisão
Uma manifestação divergente da atualmente exis- Por Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot Lara Milani e Maitê Ribeiro

tente. Não significa tratar de atos escusos de intelec- Quem tem medo dos referendos?
Gestão Administrativa e Financeira
tualidade, pois sabemos haver membros reconheci- Por Guillaume Gourgues e Julien O’miel Arlete Martins

damente intelectuais guiando os comportamentos Assinaturas


ideológicos destes. Uma conclusão sábia tirada pela 12 CAPA
A santíssima trindade:
Viviane Alves

professora Tatiana Roque, pois, onde no meio aca- Tradutores desta edição
dêmico a ideologia contrária não encontrou espaço, nação, Deus e os inimigos disso daí Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,

achou-o na internet. Por Gilberto Maringoni Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant

Antonio E. Mariano Não é possível ser internacionalista Conselho Editorial


sem ser anti-imperialista Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
A Venezuela precisa sair do impasse Por Valerio Arcary Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Embora sejam graves as sanções dos Estados Uni- Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
dos à economia venezuelana, elas têm muito mais 16 FRAGILIDADE DE JAIR BOLSONARO
O que querem os militares brasileiros?
Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
um efeito de dificultar a recuperação. O estrago foi Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
tanto uma combinação de azar (preço do petróleo Por Raúl Zibechi
Apoiadores da campanha de financiamento coletivo
em queda) quanto um exemplo de estupidez por Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
parte de Maduro em administrar sua inflação. 18 OLAVO DE CARVALHO E PAULO GUEDES
Os ideólogos de Jair Bolsonaro
Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini

Bruno Guimarães Assessoria Jurídica


Por Camila Rocha e Leo Puglia Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Pesticida e agricultores Escritório Comercial Brasília


Aqui no Brasil, o medíocre presidente liberou a 20 DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE
A violência como forma de governo
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Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
venda e o uso de contaminantes agrícolas proibi-
dos na maioria dos países. Por Vera Telles Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria com o
Johnny’s Pännäin Instituto Pólis.
22 QUAIS SÃO AS PRIORIDADES DE CORBYN?
Brexit de esquerda, um caminho Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
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capazes de lutar por ele. Por Chris Bickerton diplomatique@diplomatique.org.br


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Flávio Oliveira
24 A BURRICE NO PODER
Um pouco de bom senso, por Dios!
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Por que o sistema educacional brasileiro nunca Tel.: 55 11 2174-2015

adotou Paulo Freire na prática? Por Ladislau Dowbor


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Israel perde o apoio dos judeus
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Seria muito ingênuo acreditar que a classe supe- 28 VIETNÃ


Resistência camponesa ao confisco de terras
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

rior daria às classes populares uma educação Fundador


que as fizesse ver e lutar contra a opressão a que Por Pierre Daum, enviado especial Hubert BEUVE-MÉRY

estão submetidas. Presidente, Diretor da Publicação


Kelly Oliveira 31 ENCAMINHAR AS RIQUEZAS DO
CONTINENTE PARA OS PORTOS
Serge HALIMI

Redator-Chefe
O grande retorno do trem à África Oriental Philippe DESCAMPS
Por Anne-Cécile Robert, enviada especial
Diretora de Relações e das
A Tanzânia aposta na China Edições Internacionais

Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas Por Jean-Christophe Servant, enviado especial Anne-Cécile ROBERT

críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br Le Monde diplomatique


As cartas são publicadas por ordem de recebimento e,
se necessário, resumidas para a publicação. 36 TV, CELULAR, COMPUTADOR, TABLET...
As receitas da Netflix
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
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Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus Por Thibault Henneton
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
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38 MISCELÂNEA eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
Capa: © LMDB
A MUDANÇA É POSSÍVEL.
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