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o fato dele estar situado em vários lugares na sociedade e ser manipulado de maneiras
diferentes nestes lugares. A epistemologia mesmo tendo como seu foco a produção dos
saberes não pode ignorar, por exemplo, o seu ensino e as suas demais funções sociais, assim
como a didática não pode estudar exclusivamente o ensino de um saber, ignorando como ele
foi produzido na academia.
Na terceira seção (4.3 O conceito de transposição didática e a relação entre dois
regimes de saber distintos), meu objetivo é apresentar a teoria da transposição didática,
seguindo a evolução do pensamento de Chevallard com relação a esta teoria através da
abordagem dos textos que compõem o livro na sua ordem cronológica de produção. A teoria
da transposição didática postula a existência de dois regimes de saber – inter-relacionados
mas diferentes – o que, por sua vez, nos possibilitará, na última seção deste capítulo, pensar o
Ensino de história como historiografia (4.4).
O conceito de historiografia vem sendo usado de maneira cada vez mais abrangente e,
consequentemente, com sentidos diferentes em muitos dos casos. Fernando Novaes e Rogério
da Silva, por exemplo, deixam bem claro, na introdução do primeiro volume da coletânea
Nova história em perspectiva, que o termo será utilizado no sentido de “história da História”
(2011, p. 8). Esta parece ser a definição mais abrangente do conceito de historiografia, como a
investigação epistemológica sobre a disciplina história, mas não é a única. Ricoeur, na citação
acima, identifica outras duas definições possíveis: na outra extremidade da gradação em
termos de abrangência, temos a definição mais restrita que, levando em consideração a
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Certeau quanto por Ricoeur, é o mesmo. É o próprio Ricoeur que constata este fato, como
vimos na citação reproduzida no início desta seção. Ambos utilizam o termo historiografia
para se referir à própria operação em que consiste o conhecimento histórico empreendido em
ação, que inclui, obviamente, a terceira fase e o produto da operação (a historiografia stricto
sensu). Como consequência, a terceira fase desta operação é chamada, por Ricoeur, de fase
literária, escriturária, ou representativa.
As duas primeiras possibilidades de designação para a terceira fase da operação
historiográfica (literária ou escriturária) remetem ao modo de expressão – a “escrita10 em seu
sentido preciso de fixação das expressões orais do discurso num suporte material”
(RICOEUR, 2007, p. 156). Neste sentido, a história começaria na transposição da escrita
enquanto um patamar de linguagem, quanto o testemunho oral é fixado na escrita e arquivado:
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Ricoeur também utiliza a noção de inscrição, que tem relação direta com a de escrita. A amplitude da
noção de inscrição excede a da escrita e tem como ideia dominante a de marcas exteriores adotadas como apoios
e escalas para o trabalho de memória (RICOEUR, 2007, p. 156).
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A este conceito de intencionalidade histórica estaria articulado ao de representância, também cunhado pela
primeira vez na obra Tempo e Narrativa e com o qual não trabalharemos no âmbito desta pesquisa porque ele
ultrapassa os recursos de uma epistemologia da história e se mantem no limiar de uma ontologia da existência
histórica.
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Este conceito designa a característica que diferencia a história das outras ciências
sociais com as quais ela pode vir se articular e pode ser sintetizada como a pretensão do
conhecimento histórico em constituir uma representação presente das coisas ausentes do
passado. A pretensão de Ranke de mostrar os acontecimentos “tais como aconteceram de
fato” já foi devidamente problematizada pela historiografia contemporânea, mas este
compromisso em representar o passado tal como ele se produziu, qualquer que seja o sentido
atribuído a esse “tal como”, permanece central dentro do conhecimento histórico.
Ricoeur enfatiza o fato de que se pensarmos a intencionalidade histórica como esse
pacto de leitura, não é apenas a fase representativa da operação de produção do conhecimento
histórico acadêmico que satisfaz à expectativa e a promessa subscrita a este pacto. A suspeita
de que essa promessa não é e nem poderia ser cumprida está muitas vezes inclusive articulada
ao aspecto literário da escrita da história. A “resposta é que a réplica à suspeita de traição não
reside no momento único da representação literária, mas sim em sua articulação com os dois
momentos anteriores de explicação/compreensão e de documentação”. Esta proposta teórica
de Ricoeur de que é a articulação das três fases que garante o cumprimento da expectativa
associada à intencionalidade do conhecimento histórico de constituir uma representação
presente das coisas ausentes do passado é importantíssima dentro da reflexão teórica realizada
nesta tese.
expectativa é bem diferente daquela do leitor de um livro de ficção, do qual se espera uma
suspensão voluntária da sua incredulidade. O leitor de ficção não está preocupado com uma
correspondência entre a história narrada e os acontecimentos passados, o que importa é que a
leitura retenha o seu interesse.
A significância do retorno do historiador ao mundo da ação através da publicação da
sua pesquisa acadêmica fica ameaçada, portanto, pelo argumento de que estas obras são
destinadas à pequena comunidade dos historiadores e um grupo igualmente restrito das
pessoas cultas que tem interesse por este tipo de literatura científica. Este argumento até
poderia ter algum mérito se a única forma de acesso do cidadão comum ao conhecimento
histórico produzido na academia fosse através do contato direto com as pesquisas acadêmicas
publicadas na forma de livros ou artigos em revistas científicas, mas isso não é verdade. No
entanto, esta constatação é fruto da limitação da perspectiva da epistemologia à dimensão de
produção do conhecimento, porque se o campo de análise desta fosse expandido para incluir a
sua função social e o ensino na educação básica esta conclusão trágica poderia ser
relativizada.
Ricoeur, assim como Certeau, adota uma definição do conceito de historiografia que o
articula com a operação em que consiste o conhecimento histórico empreendido em ação. É
interessante notar que Ricoeur não limita a historiografia, a princípio, apenas à produção do
conhecimento histórico, mas a uma dinâmica mais ampla que parece extrapolar a sua
produção e recepção pela própria academia e incluir todas as instâncias permeadas por este
conhecimento. A expressão conhecimento histórico empreendido em ação parece remeter
para aquilo que Chevallard chamou da vida dos saberes na sociedade, que inclui a função
social deste conhecimento. Como pensar o conhecimento histórico empreendido em ação sem
pensar seu impacto sobre a própria sociedade na qual está inserido?
No entanto, defenderei a interpretação de que as concepções de operação
historiográfica defendidas por Certeau e Ricoeur, apesar de suas significativas diferenças,
convergem ao limitar a sua investigação epistemológica sobre a operação historiográfica
apenas à produção deste conhecimento, excluindo as outras instâncias nas quais este está em
ação. Esta concepção de epistemologia como o estudo que se restringe apenas às instâncias e
as operações de produção do conhecimento precisa ser problematizada e substituída por outra
que inclua as outras instâncias nas quais o conhecimento também está em ação, como os
lugares sociais nos quais este conhecimento é transposto, ensinado e utilizado. Esta
perspectiva epistemológica mais abrangente permite que interpretemos a definição de
historiografia proposta por Ricoeur como o conhecimento histórico empreendido em ação
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Chevallard identificou, no cerne de todo o debate com relação à sua obra, a polêmica
entre as didáticas particulares (disciplinares) e uma presumida didática geral. A apropriação
do conceito de transposição didática pelos estudiosos de diferentes campos disciplinares
colocava em risco, na perspectiva dos críticos deste conceito, a especificidade de cada
didática particular. A renúncia destas fronteiras rigidamente traçadas poderia colocar em jogo
a legitimidade epistemológica e, assim, a própria existência destas didáticas particulares.
Chevallard identifica, na base desta “ameaça” às didáticas particulares, a ideia de uma
didática geral, sem que esta seja ao menos problematizada. É justamente a esta tarefa de
definição do conceito de didática geral, e sua relação com a epistemologia, que o autor vai
dedicar a maior parte do posfácio da segunda edição. É também neste posfácio, e dentro desta
proposta de uma didática geral, que Chevallard realiza “un análisis de la verdadera extensión
y del alcance real de la teoría de la transposición didáctica, tal como se la puede considerar
actualmente” (1997, p. 7)
A defesa da especificidade de cada uma das didáticas específicas foi importante na
consolidação destes campos de pesquisa científicas, mas o isolamento não é uma política
viável a longo prazo. O próprio desenvolvimento da teoria da transposição didática no campo
da didática das matemáticas e sua subsequente apropriação pelas didáticas de outras
disciplinas é o melhor exemplo da impossibilidade de permanecer em uma ilha isolada e sem
comunicação. O problema é que não existia este lugar comum para o debate. Chevallard vai
realizar o esforço teórico de fundação da “didática”, mas no campo da antropologia.
Chevallard afirma que uma das características mais marcantes dos saberes é o fato
deles assumirem diversos lugares na sociedade (“multilocação”), chegando ao ponto de
utilizar analogicamente o termo de ecologia dos saberes, falando em habitats ou nichos
ocupados pelos saberes. Dentro desta proposta, o autor fala de quatro grandes problemáticas
relativas ao saber: a sua produção, a sua transposição, o seu ensino e o sua utilização. A
perspectiva epistemológica criticada por Chevallard dedica-se quase exclusivamente à
produção dos saberes, ignorando as outras problemáticas. Estas diferentes instâncias de
manipulação dos saberes tem apenas uma autonomia relativa com relação umas às outras, o
que torna a perspectiva dos estudos epistemológicos, que focam apenas na produção dos
saberes, necessariamente limitada, deixando fora do seu campo de visão elementos
importantes na vida dos saberes.
A perspectiva epistemológica defendida por Chevallard vai ser chamada de
antropologia dos saberes. A definição de “antropologia” proposta nesta obra é aparentemente
simples (o estudo do Homem), mas sua inovação encontra-se na proposta de novos objetos
que normalmente não são trabalhados por esta disciplina: os saberes e a própria didática.
Ninguém teria dificuldades de formular o objeto da antropologia religiosa ou da antropologia
política, estes seriam, respectivamente, o religioso e o político (que excedem “as religiões” e
“os sistemas políticos”). Tornar o saber um objeto da antropologia é justamente pensar a sua
vida na sociedade, sem isolar apenas uma modalidade de apropriação destes saberes. Não se
pode pensar a produção dos saberes, sem considerar suas outras dimensões: a transposição, o
ensino e a utilização.
Neste ponto da exposição, já podemos antever o ponto de contato entre a
epistemologia (antropologia dos saberes) e a didática (antropologia didática dos saberes)
através do conceito de transposição didática, que constitui uma ferramenta teórica para
analisar a passagem do saber sábio ao saber ensinado. No entanto, Chevallard vai constituir
este campo da antropologia didática dos saberes a partir de um novo objeto para a
antropologia: o didático. Assim como “o político” e “o religioso” são, respectivamente,
objetos da antropologia política e da antropologia religiosa, “o didático” seria o objeto da
antropologia didática. Este objeto, no entanto, não existiria na cultura e foi criado,
trabalhosamente, através das pesquisas das didáticas especiais e contra toda forma de
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resistência cultural. O didático seria uma dimensão que atravessa de lado a lado a realidade
antropológica e requereria a elaboração de uma antropologia didática (CHEVALLARD, 1997,
p. 148).
A antropologia teria como um dos seus objetos principais o conhecimento, pensado
como a existência de relações entre os sujeitos e as instituições e os objetos. No entanto, o
didático não estaria presente em todas as instâncias de conhecimento, apenas naqueles
momentos nos quais existisse a intenção didática. Esta intenção seria o elemento definidor do
didático enquanto um objeto da antropologia: existiria o didático quando um sujeito tem a
intenção de fazer com que nasça ou mude, de certa maneira, a relação de um sujeito com um
objeto (conhecimento). Na fronteira entre a antropologia dos saberes (epistemologia) e a
antropologia didática, teríamos justamente a antropologia didática dos saberes, ou,
simplesmente, a didática.
Una de las más sólidas lecciones provista por la didáctica […] es que
la enseñanza de un saber, más ampliamente, su manipulación didáctica en
general, no puede comprenderse en muchos de sus aspectos si se ignoran sus
utilizaciones y su producción […] Esa lección entiende que los modos de
presencia social de un saber nunca permiten que se los disocie
completamente, cualquiera sea el punto de vista desde el que se los aborda:
no hay, en ese aspecto, “referencia privilegiada” ni mundo cerrado. Desde el
punto de vista de la antropología, un saber se presenta como una totalidad,
cuyos diferentes momentos son igualmente vitales.
CHEVALLARD, 1997, p. 155.
Dentro da lógica desta ecologia dos saberes, onde estes ocupam diferentes habitats na
sociedade e estes possuem uma autonomia relativa, mas são indissociáveis, tanto a
epistemologia quanto a didática têm que ser repensadas. A primeira dedicava-se
exclusivamente à produção dos saberes, enquanto a segunda, ao ensino destes – ambas,
muitas vezes, ignorando-se mutuamente e desconsiderando a utilização destes saberes na
sociedade, a sua função social. A dimensão de transposição destes saberes então era negada,
dai a ficção de uma identidade entre o saber produzido e o saber ensinado e a inovação teórica
do conceito de transposição didática (CHEVALLARD, 1997, pp. 11-44). Isso muda na
proposta teórica de Chevallard, na qual didática e epistemologia são indissociáveis, já que
ambas estudam a vida social dos saberes, apesar de focarem o seu olhar em instâncias
diferentes desta vida dos saberes.
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Chevallard começa o primeiro capítulo – sendo que o corpo dos capítulos constitui
núcleo original do livro, redigido em 1980 como preparação de um curso – afirmando que
todo o projeto social de ensino e aprendizagem se constitui com a designação de conteúdos de
saberes como conteúdos a ensinar. E estes conteúdos de saberes designados como aqueles a
ensinar em geral preexistem ao movimento que os designa como tais. “Contudo, algumas
vezes (e, pelo menos, com mais frequência do que se poderia crer) são verdadeiras criações
didáticas, suscitadas pelas ‘necessidades do ensino’” (CHEVALLARD, 1997, p. 45). Então,
antes mesmo de mencionar a transposição didática, Chevallard destaca que existem dois tipos
de objetos de ensino: aqueles que são criações didáticas originais suscitadas pela necessidade
de ensino e objetos de saber preexistentes que são designados como tais. No segundo caso,
estes objetos de saber designados como de ensino (objeto a ensinar) ainda precisam sofrer um
conjunto de transformações para se tornarem efetivamente objetos de ensino e é este processo
que recebe o nome de transposição didática:
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É também digno de nota que o autor inclui neste exemplo, antes da aparição do conceito matemático em 1906,
a noção do senso comum que se usa espontaneamente “desde sempre”. Se o movimento que parte da noção do
senso comum para chegar ao conceito acadêmico não faz parte da transposição didática, existiria uma outra
forma de transposição?
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Este é um exemplo de uma criação didática que, obtendo tanto sucesso, conseguiu o
estatuto de saber sábio através de uma contra-transposição didática e prova que o movimento
contrário (do saber ensinado para o saber sábio) é possível. No entanto, o próprio Chevallard
afirma que estes casos de criações didáticas constituem um dos efeitos mais espetaculares da
transposição didática, como processos conjuntos. “Podemos considerar la existencia de una
transposición didáctica, como proceso de conjunto, como situaciones de creaciones
didácticas de objetos (de saber y de enseñanza a la vez) que se hacen “necesarias” por las
exigencias del funcionamiento didáctico” (CHEVALLARD, 1997, p. 47). Mas a pregunta
persiste: se o sistema didático pode criar seus próprios objetos de saber, por que existe a
transposição didática?
A resposta já é esboçada no texto de 1980, quando Chevallard afirma que o objeto de
ensino é diferente do objeto de saber ao qual corresponde (1997, p. 47). Mas é no texto de
1982 que podemos encontrar uma resposta mais conclusiva: “Porque el funcionamiento
didáctico del saber es distinto del funcionamiento académico, porque hay dos regímenes del
saber, interrelacionados pero superponibles” (1997, p. 25). Existem dois regimes de saber –
inter-relacionados, mas diferentes – e quando elementos do saber sábio são transpostos
didaticamente para o saber ensinado eles sofrem mudanças significativas a ponto da
especificidade do tratamento didático ser melhor compreendida pela confrontação dos termos
do que pela sua continuidade:
suas produções discursivas. A textualização do saber é realizada sabendo que este texto
produzido será a norma de progressão do conhecimento durante o processo de aquisição do
saber. O texto tem um princípio e um fim, mesmo que provisório, e opera por encadeamento
de razões – a aprendizagem é concebida como um equivalente do progresso que a estrutura do
próprio texto do saber manifesta. O texto autoriza uma didática e ajuda a organizar a sua
duração. É esta dinâmica que Verret classificou originalmente como a programabilidade da
aquisição do saber. Chevallard vai dedicar os três últimos capítulos da sua obra à análise
desta estreita relação do texto do saber com o tempo didático, entendendo que esta relação
saber/duração é um elemento fundamental do processo didático. É esta programabilidade da
aquisição do saber na sua relação com a duração que possibilita, em conjunto com a
publicidade, o controle social das aprendizagens através de diferentes ferramentas de
avaliação.
Chevallard, já nas notas de 1980 que constituem o corpo dos capítulos da sua obra,
fala sobre a importância do princípio de vigilância epistemológica na transposição didática
como uma das condições que determinam a possibilidade de uma análise científica do sistema
didático. No entanto, neste texto o autor ainda não problematiza o que é um sistema didático
ou como ele se relaciona com seu entorno. Estas questões ganham grande destaque no texto
de 1982 que foi adaptado para tornar-se a introdução da obra, pois aqui o sistema didático, ou,
em termos mais amplos, o sistema de ensino, é o objeto daquilo que o autor deseja constituir
como a ciência da didática das matemáticas. O didata das matemáticas tem como objeto de
pesquisa a relação ternária entre um docente, os alunos e um saber matemático. Esta simples
definição de sistema didático está na base do esquema através do qual a didática das
matemáticas pode repensar seu objeto.
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Frente a este esquema teórico, Chevallard pode formular a resposta à pergunta: por
que acontece a transposição didática? Partindo dos pressupostos teóricos de que o
funcionamento didático do saber é distinto do funcionamento acadêmico (porque existem dois
regimes de saber inter-relacionados, mas distintos) e a transposição didática acontece quando
elementos do saber sábio são transpostos para o saber ensinado, por que são necessários estes
fluxos? Tendo em mente o esquema teórico apresentado, o autor afirma que o primeiro
problema a ser resolvido para que um sistema de ensino possa existir é aquele que remete à
compatibilidade deste sistema com o seu entorno. Esta compatibilidade deve se dar em
múltiplos planos, mas, no que diz respeito ao plano do saber, podemos caracterizá-la por uma
dupla condição: o saber ensinado deve ser percebido pelos membros da comunidade
acadêmica como suficientemente próximo do saber produzido naquela instância (saber sábio)
e suficientemente afastado do saber dos pais (saber banalizado na sociedade). O afastamento
excessivo do saber sábio pode gerar uma desaprovação da comunidade acadêmica e uma
consequente perda da legitimidade do projeto social de ensino. A mesma consequência seria
decorrente de uma aproximação excessiva do saber ensinado com relação ao saber banalizado
na sociedade, degradando seu valor. Esta distância correta que o saber ensinado deve manter
do saber sábio e do saber banalizado vai pouco a pouco se desgastando, no primeiro caso um
desgaste “biológico” (afastamento demasiado do saber sábio) e no segundo um desgaste
“moral” (aproximação excessiva do saber banalizado). Nestes dois casos, o desgaste do saber
ensinado resulta da incompatibilização do sistema de ensino com seu entorno. Para
reestabelecer esta compatibilidade, é indispensável um novo fluxo do saber sábio e aí se
encontra a origem do processo de transposição didática.
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Uma das críticas mais severas feitas à teoria da transposição didática proposta por
Chevallard foi o seu recurso à noção de saber sábio. O conceito de transposição didática
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remete à passagem do “saber sábio” ao saber ensinado e, portanto, à distância que os separa, e
converte-se na principal ferramenta para o estudo deste questionamento necessário
(CHEVALLARD, 1997, p. 16). Na tradução em espanhol que utilizei, parte de uma coleção
organizada por Mario Carretero, o editor afirma, numa de suas primeiras notas explicativas (p.
11), que a pedido expresso do autor, foi respeitada, com total fidelidade, a locução francesa
savoir savant, traduzida em todos os casos por saber sábio. O mesmo editor afirma que
correntemente na Espanha, assim como no Brasil, os pesquisadores que trabalham com a
teoria da transposição didática utilizam a terminologia saber acadêmico. Então por que o autor
insistiu na utilização do termo saber sábio?
Chevallard, antes de tudo, insiste que o caráter sábio de um saber não é algo intrínseco
a um determinado saber, mas conquistado historicamente e que pode ser questionado e
perdido. Para que um saber possa ser considerado sábio, ele depende de alguns elementos,
sendo os primeiros deles a pertinência e a legitimidade epistemológicas. A pertinência
epistemológica de um saber é dificilmente definível, porque, se entendida de maneira estrita,
remete a uma série de critérios específicos de cada disciplina. Apesar de a pertinência
epistemológica ser um elemento de difícil definição, é ela que fundamenta a confiança que
podemos conceder a um saber, que lhe confere seu caráter autêntico e lhe outorga sua
credibilidade. Esta confiança, autenticidade e credibilidade é o que Chevallard chama de
legitimidade epistemológica. No entanto, o ensino geral (não profissionalizante) possuiu uma
grande visibilidade cultural e, neste caso, a legitimidade epistemológica não é o bastante para
garantir o caráter sábio de um saber.
A pertinência e a legitimidade culturais dizem respeito a outra ordem de questões,
mais amplas e menos rigorosas do que as relativas à pertinência e da legitimidade
epistemológicas. Existem matérias escolares que deveram a sua promoção a esta dita
pertinência, Chevallard cita exemplos franceses num passado recente: “a informática”, projeto
que fracassou naquele país, e “a tecnologia” que naquele contexto vinha sendo implantada no
Collège. No entanto, a ausência da legitimidade epistemológica tornou estes projetos instáveis
porque a “pertinência cultural em si mesma e por si só é impotente”. O saber sábio existe
quando as duas formas de legitimidade se sobrepõem.
O título de sábio é outorgado pela cultura e pode perder-se. Porém, não só pela cultura,
mas também pela epistemologia. Na presente pesquisa, viso identificar como o processo de
transposição didática garante a manutenção da legitimidade epistemológica do conhecimento
histórico, que identifico com a intencionalidade histórica, no caso do conhecimento histórico
escolar. O conceito de transposição didática nos ajudará a analisar a relação entre estes dois
registros de saber diferentes.
reconstruções do curso passado dos acontecimentos”. Este compromisso com uma verdade
histórica está presente em todas as formas do conhecimento histórico, em todos os seus
regimes por mais diferentes que eles possam ser. Assim como a intencionalidade histórica é a
característica distintiva do conhecimento histórico acadêmico e que o impede de se dissolver
ao se articular com outras disciplinas no caso de pesquisas interdisciplinares, é esta mesma
intencionalidade que permanece central na história escolar e todas as outras manifestações do
conhecimento histórico. O que diferencia a história das outras disciplinas escolares é o seu
compromisso com uma representação verdadeira do passado, caso contrário o que a
diferenciaria, por exemplo, da literatura, que trabalha com representações ficcionais?
Esta é a tese desta pesquisa. O conceito de historiografia como definido por Certeau e
Ricoeur refere-se não apenas à escrita da história stricto sensu, mas as diferentes operações
em que consiste o conhecimento histórico empreendido em ação. Estes dois autores utilizaram
este conceito para discutir apenas a dimensão de produção deste conhecimento histórico na
academia, mas, se ampliarmos nosso conceito de epistemologia como foi proposto por
Chevallard para englobar as outras dimensões da vida social dos saberes, o conceito de
historiografia pode recobrir um campo mais vasto onde este conhecimento histórico esta
empreendido em ação, notadamente, no caso desta pesquisa, o conhecimento histórico
escolar. O elemento definidor do conhecimento histórico, que o diferencia das outras
disciplinas e o impede de se dissolver ao entrar em interação com elas, é a intencionalidade
histórica e esta intencionalidade permanece central nas formas de conhecimento não
acadêmicas, que têm a pretensão de representar uma história “tal qual ela aconteceu”.
Adotarei nesta pesquisa a definição do termo historiografia como a própria operação
que representa o conhecimento histórico empreendido em ação. No entanto, questionei a
perspectiva epistemológica adotada por Ricoeur e Certeau que, ao estudarem a operação
historiográfica, limitaram esta à esfera de produção do conhecimento histórico, ignorando as
outras esferas, como, por exemplo, sua função social; e argumentei a favor da inclusão destas
outras esferas, como o ensino de história, dentro desta expressão “conhecimento histórico
empreendido em ação”. No entanto, uma questão central permanece em aberto: se a definição
da operação historiográfica como definida por Certeau e Ricoeur excluem as esferas de
utilização, ensino e transposição dos saber histórico, qual estratégia adotar com relação a este
problema?