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Terapeuticalização e os dilemas preemptivistas


na esfera da saúde pública individualizada
Therapeuticalization and preemptive dilemmas
within individualized public health

Luis David Castiel Resumo


Fundação Oswaldo Cruz. Departamento de Epidemiologia e Méto-
dos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Este ensaio pretende abordar o enfoque preemptivo
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. no campo das práticas preventivas em saúde, espe-
E-mail: luis.castiel@ensp.fiocruz.br cialmente quanto à ideia de ataque antecipatório
Danielle Ribeiro de Moraes no enfrentamento dos riscos que nos ameaçam.
Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Há perspectivas que apontam para uma suposta
Venâncio. Laboratório de Educação Profissional em Atenção à imprecisão teórica do conceito “medicalização”.
Saúde. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Mesmo sendo este ponto de vista passível de dis-
E-mail: danielle@fiocruz.br
cussões, propomos a expressão “terapeuticalização”
Igor Juliano de Paula para designar práticas relacionadas ao cuidado em
Prefeitura Municipal de Macaé. Macaé, RJ, Brasil. saúde, com especial ênfase nas tecnologias de au-
Fundação Oswaldo Cruz. Escola Nacional de Saúde Pública. Rio
tomonitoramento da saúde que coletam dados que
de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: ij.paula@uol.com.br permitem às pessoas um esquadrinhamento cons-
tante de funções biológicas como forma somática
de produção de subjetividade. Parece haver uma
abrangência que está se ampliando gradualmente
para o uso de automonitoramento, que provavelmen-
te deve se expandir, na medida em que um crescente
número de organizações e instâncias se dê conta
do potencial dos dados produzidos a partir dessas
práticas. O automonitoramento pode ser visto como
uma estratégia biopolítica utilitarista que coloca o
“si mesmo liberal” como um cidadão responsável,
com vontade e capacidade de tomar cuidado de si,
de sua felicidade, de seus autointeresses.
Palavras-chave: Prevenção; Preempção; Risco; Au-
tomonitoramento; Biopolítica.

Correspondência
Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar. Manguinhos, Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. CEP 21041-210.

96 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.1, p.96-107, 2016 DOI 10.1590/S0104-12902016142788
Abstract Introdução
This essay aims to address the preemptive approach Os sentidos da preempção
in the field of preventive health practices, especially
regarding the idea of anticipatory attack in dealing Em geral, é conhecido o significado da palavra
with risks that threaten us. There is a concern that “dilema”. Em termos breves, trata-se da condição
purports that the concept of “medicalization” is af- de escolha imperiosa entre situações nas quais cada
fected by lack of theoretical precision. Even being an uma delas envolve a percepção conflituosa de perdas
arguable point of view, we propose the term “thera- e ganhos que tornam a decisão penosa e geradora de
peuticalization” to describe such practices, with hesitação por seus supostos desdobramentos. Assim,
special emphasis on health self-tracking technolo- não há dúvidas sobre o dilema diante das antinomias
gies, that collect data that allow people to perform veiculadas pela perspectiva da preempção no terreno
a constant follow-up of biological functions as a da saúde.
somatic self-enterprise. There seems to be a gradual Porém, antes de abordar a temática dos dilemas
expansion of the use of self-monitoring that tends to veiculados pela preempção no contexto sanitário,
grow, as an increasing number of organizations and torna-se necessário aclarar tal vocábulo, cujo uso
authorities realize the potential of the data gathered se mostra incomum no meio sanitário brasileiro.
from these practices. Self-monitoring can be seen A partir de uma breve busca bibliográfica com a
as an utilitarian biopolitical strategy that put the palavra no idioma inglês, localizou-se o artigo de
liberal self as a responsible citizen, willing and able Gorowitz et al. (1998) com o sentido legal referente
to take care of himself/herself, his/her happiness, à esfera do controle das atividades de empresas
his/her self-interests. de armamentos, bebidas alcoólicas e tabaco que
Keywords: Prevention; Preemption; Risk; Self- causam danos à saúde (neste estudo, à época, a in-
Tracking; Biopolitics. dústria farmacêutica não havia sido incluída neste
grupo). Sucintamente, a discussão feita se dirige à
regulação de empresas cujas mercadorias produ-
zem riscos à saúde pública e se recusam acatar as
determinações sanitárias que tentam normatizar e
coibir os problemas de saúde pública relacionados
com o uso ou consumo de tais produtos.
No contexto federativo estadunidense, os
preceitos legislativos relativos à preempção reti-
ram o foco regulador do nível local e o coloca na
esfera dos estados ou do governo federal. Esta
configuração assumiu um papel relevante no
litígio entre prepostos das empresas envolvidas
e dos agentes da saúde pública que têm a função
de vigilância sanitária. A proposição preemptiva,
assim, faz que a normatização em outra instância,
superior ao nível local, assuma preferência em
termos de poder legislativo e judiciário sobre o
nível equivalente ao local/município (Gorowitz
et al., 1998). Portanto, começa a se delinear uma
perspectiva da existência de contingências com a
finalidade de se adequarem questões de conflitos
entre interesses públicos e interesse privados des-

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ta abrangência e significação. Importa ressaltar precoces da história de vida individual das pessoas
a necessidade jurídica de que sejam abertos pre- influem na ocorrência de doenças –, a assistência
cedentes diante das especificidades dessa ordem à saúde sob o enfoque preemptivo se distingue do
de enfrentamentos. preventivo. Este último se apresenta sob o ponto
Neste ensaio, temos por pressuposto que o âm- de vista populacional, baseado, por exemplo, em
bito das ações sanitárias preemptivas relaciona-se estudos de coorte que estabeleciam os “fatores de
a estratégias sanitárias de cunho biopolítico. Na risco” para doenças não transmissíveis. Já a abor-
tentativa de produzir reflexões sobre as estratégias dagem preemptiva se propõe a ser personalizada,
preventivas, partimos das acepções e das formas ca- padronizando conjuntos populacionais de maior
racterísticas que as expressões “preempção” e “pre- risco em termos genéticos e epigenéticos, por
emptivo” assumem na língua portuguesa: privilégio exemplo, grupos de alto risco, preferencialmente
na aquisição de algo; antecipação no ato de compra; a partir de estudos baseados no processamento de
“algo realizado ou acontecido com anterioridade ao enormes quantidades de dados de saúde nas técni-
período de tempo supostamente preciso ou cabível cas de data mining e big data. Através do emprego
para sua realização” (Houaiss, 2009). de biomarcadores, tenta-se diagnosticar precoce-
Em inglês, enfatiza-se o uso da acepção de caráter mente enfermidades em estado ainda potencial, com
bélico em termos de forte ataque preventivo, baseado níveis probabilísticos estabelecidos em termos de
em um tipo de avaliação através de cálculos algorít- efetividade da atuação antecipada, antes da eclosão
micos de previsibilidade, aliados à vigilância de indí- dos sintomas, seja por meio de alterações compor-
cios aparentemente assumidos pelos concorrentes/ tamentais ou por via farmacológica (Imura, 2013).
adversários, cujas ações devem ser prenunciadas. Percebem-se também discutíveis abordagens
Em função disto, devem ser desencadeadas ações preemptivas dirigidas à saúde mental infantil, que
agressivas de ofensiva sem que ainda haja ocorrido procuram detectar antecipadamente manifesta-
a manifestação do outro. Consiste em um estratage- ções de transtornos em crianças consideradas sob
ma agonístico, bastante sujeito a erros de avaliação risco, segundo critérios cada vez mais estritos de
e suposições de suspeita. Obviamente, isso também manifestações tidas como anormais, propostos pelo
vale para escaramuças do mundo dos negócios. polêmico Diagnostic Statistical Manual, agora em
No campo da saúde, o termo já é empregado sua quinta versão. A isto se alia uma forte tendência
no combate à dor, antes que ela se manifeste, em terapeuticalizante (voltaremos a esta expressão) no
intervenções médicas, veterinárias e odontoló- campo designado como Psiquiatria do Desenvolvi-
gicas. A extirpação das mamas da atriz Angelina mento, que postula uma prevenção global (a rigor,
Jolie, baseada em dados genéticos familiares, é um preemptiva) na saúde mental infantil.
exemplo sintomático dessa perspectiva. Da mesma Nesta abordagem, desde um enfoque apresenta-
forma, o emprego da “pílula do dia seguinte” contra do como sendo de “saúde pública” a partir de inves-
a possibilidade de ter havido fecundação em uma tigações que mostrariam que, amenizando grandes
relação sem proteção anticoncepcional pode ser “fatores de risco” (como precariedades socioeco-
considerado preemptivo. nômicas e condições de altos níveis de desgaste
Na busca por uma vida longeva, com vitalidade emocional em idades muito jovens) e promovendo
através de tecnologias de aprimoramento, curio- fatores de proteção, é possível atingir melhores
samente os dois sentidos de preempção se sobre- resultados comportamentais (evitando condutas
põem: tanto na acepção de precedência daqueles antissociais) ao diminuir o estresse ambiental e
que podem ter acesso a tais tecnologias como nas dar maior apoio materno (Insel, 2008). Em síntese,
alegorias de guerra hiperpreventiva aos efeitos do parece que tais abordagens se propõem a trilhar
avanço etário (Castiel, 2014). um caminho de mitigar sintomas sem considerar
Para alguns autores partidários da perspectiva as dimensões contextuais que geram o assim cha-
dos life course events – que estuda como eventos mado “estresse ambiental”, além de se poder dizer

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que também parecem operar com naturalizações Aí estaria a limitação da Medicina Preventiva,
que cercam as relações de gênero. já problemática no Brasil da segunda metade dos
O enfoque preemptivo também se ancora anos 1970. A tese era a reiteração da impossibili-
nas proposições baseadas em uma ideia da vida dade da postulação preventivista em lidar com os
como singularidade biológica. Por exemplo, há problemas da saúde pública, porque não enfrentava
abordagens baseadas em uma genotipagem pre- o âmago do problema: o poder médico e a ênfase in-
emptiva para uma medicina personalizada – ao se dividualizante e financeira da saúde. Não colocava
desenvolver a droga, a dose e a ocasião certas para em xeque as desigualdades sociais produzidas pela
individualizar o protocolo de tratamento, usa-se a mesma estrutura das quais provinham os problemas
farmacogenômica, configurada por suportes para do campo médico. A viabilidade daquele projeto no
decisão clínica integrados a registros médicos interior do modelo capitalista vigente era nula, e
eletrônicos (Bielinski et al., 2014). cabiam proposições alternativas a ele, que incidiam
na crítica da estrutura social geradora de iniquida-
Dilemas preemptivistas e a terapeuticalização des e pela ultrapassagem do preventivismo – útil
até certo ponto (especialmente pelo seu papel na
A expressão “dilema preemptivista” joga com configuração de um campo crítico no interior da
ideias originadas há cerca de 40 anos na tese de Medicina), mas insatisfatório1.
Sergio Arouca (2003), que trazia a questão de que o Diprose (2008), ao discutir as tecnologias bio-
dilema preventivista, de certa forma, reatualizou-se políticas da prevenção, assinala um dos problemas
e se ajustou às transformações no campo da saúde centrais desta abordagem: em vez de encarar um
ao longo desse período de tempo. Em sua tese de evento ameaçador à saúde como próprio ao contexto,
doutorado, realiza abrangente reflexão com a meta sua ocorrência é ampliada como referência padro-
de produzir uma crítica da Medicina Preventiva, nizada de situações de ameaça à saúde/segurança
propondo novos rumos para o âmbito da saúde das populações (cada vez mais questões de saúde se
pública os quais seguiriam a Medicina Social e, configuram como problemas de segurança) e deve
depois, a Medicina Coletiva (ainda não havia se ser tratada preemptivamente. E essa ideia também é
institucionalizado o movimento da Saúde Coletiva extrapolada para a segurança econômica. Ao mesmo
nesta época). Arouca sustentou a posição de que a tempo, é conferido à medicina papel essencial numa
Medicina Preventiva era a primeira tentativa de rea- formulação autoritária que coloca a responsabili-
ção no contexto médico a uma configuração de crise dade para a saúde e segurança da população sob a
mundial no período entre as duas grandes guerras e tutela do indivíduo e da família na esfera privada.
ao acúmulo de críticas no âmbito da medicina. Con- Trata-se de uma tendência ampliada que demoniza
siderava, porém, uma perspectiva liberal e civil, que e infantiliza grupos populacionais que são acusados
discutia o estatismo que aparecia como alternativa de fracassar em acalentar uma imagem sustentada
neste terreno. Avançou nos EUA no decorrer de tal de forma biopolítica para a construção de uma con-
época e foi incorporado na América Latina em 1945 cepção idealizada de si mesmo no futuro a partir de
como um movimento ideológico, cujo propósito era um imaginário médico-moral.
a mudança da atividade médica através de um pro- Este imaginário médico-moral conduz à gestão
fissional baseado em uma nova atitude configurada do medo (“riscos”) que se configura como uma mo-
pelas Escolas Médicas, em função do aumento dos delagem da vida e conduta dos corpos. Este modo
custos da assistência à saúde neste país e como de pensar leva a dinâmicas das políticas de redução
proposta alternativa à intervenção estatal, susten- dos danos (e do envelhecimento como um dano),
tando a organização liberal da profissão médica e através de medidas preemptivas de controle técnico
o respectivo poder da Medicina. para a saúde/segurança/ambiente que pretendem

1 Disponível em: <http://www.memoriasocial.pro.br/linhas/arouca/desdobramentos/olegado.htm>. Acesso em: 1 nov. 2014.

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-predeterminar e proteger o planeta, nações, grupos aspecto considerado favorável: a atuação de agentes
e indivíduos da imprevisibilidade do futuro, da vida exteriores ao campo médico demandando respostas
e da ideia de “agência” humana. Isso sem um diag- médicas a suas afecções, como no caso de ativistas
nóstico mínimo e razoavelmente consensual (se é em relação ao tratamento do HIV-AIDS.
que isto é viável) do que seja o presente atual e seu Ora, aqui, mesmo admitindo a pertinência da
tecnocapitalismo globalizado com seus paradoxos ação ativista como manifestação do que Foucault
e contradições não explicitados – tratar o futuro chamaria de contraconduta como reação ao poder
como refém do presente, o que demanda policiar o estabelecido (Foucault, 2008), ainda pode-se enca-
futuro antecipadamente para que não escape deste rar, de alguma forma, que estaríamos sob a égide
presente – esta é a fonte do dilema preemptivista do que Fassin (2012) chama de razão humanitária.
essencial, se podemos assim expressá-lo. Ora, é preciso pensar que os fenômenos biopolíti-
É inevitável trazer à cena que a relação do en- cos sempre têm uma dimensão de economia moral.
foque preemptivo na saúde possui relações muito Moralidade aqui é entendida não como a distinção
próximas com o processo conhecido como “medica- entre certo e errado, mas do desenvolvimento de
lização”. Não cabe a este texto aprofundar as intri- normas num dado contexto histórico e geográfico.
cações das discussões sobre tal conceito. Importa, A inclusão da dimensão moral amplia a análise
sim, esclarecer que, segundo Zorzanelli et al. (2014), política. Há dois aspectos dessa dimensão: 1) as
o conceito apresentaria diferentes sentidos que questões de vida e longevidade, saúde e doença não
podem trazer “perda de precisão que retiraria do podem ser separadas daquelas da iniquidade social;
conceito sua possível utilidade teórica” (Zorzanelli; 2) para além dos aspectos referentes aos diferentes
Ortega; Bezerra-Júnior, 2014, p.1859). gradientes de longevidade e adoecimento entre ricos
Ora, são inegáveis por parte dos citados autores e pobres, dominadores e dominados, há uma relação
os méritos dos esforços em tipificar as variações entre corpo e Estado que implica um governo de cor-
sobre o conceito de medicalização durante um pouco pos que organiza a saúde e a integridade corpórea
mais de meio século (1950-2010) diante da apregoa- como valores centrais. Aqueles que não devem se
da imprecisão da expressão. Eles, assim, enfatizam deixar morrer, sob o ponto de vista da biolegitimi-
alguns dos sentidos possíveis do termo e os colocam dade são tratados com a razão humanitária – um
aparentemente num mesmo plano analítico – algo princípio moral que faz que a vida biológica até tran-
passível de debate, sem atentar para as possíveis site pela arena política, mas admitindo seu vínculo
distinções analíticas das proposições, quiçá pro- humanitário que assume uma autoridade vigorosa.
piciadas pela tematização da questão baseada em A conexão desta lógica com a integridade biológica
periodizações cronológicas. levou à proliferação de medidas sociopolíticas,
Assim, o conceito pode se referir a: estratégias programas e políticas públicas. Assim, isso passa
abrangentes de sanitarização, tal como é tematizado a ser uma questão de gestão securitária. Excluídos
pela discussão das práticas normativas e disciplina- e/ou desviantes que sofrem física e mentalmente,
res a partir de Foucault, tanto no nível das medidas afetados por pobreza material e exclusão social são
públicas do Estado no controle e produção de dados cada vez mais considerados vítimas, corpos que
médico-epidemiológicos e indistinção quanto aos sofrem e precisam de atenção à saúde.
limites da incidência da medicina perante a produção Mas essa lógica é ambivalente. Se por um lado, há
de saberes sobre os corpos humanos; transformação aparente preocupação por cuidado e compaixão, há
de condições encaradas como desviantes em enfermi- a hibridização de problemas políticos com questões
dades – práticas de controle e autoritarismo da medi- morais e de saúde, trazendo-a para o campo humani-
cina. De certa forma, pode-se cogitar que todos esses tário, apagando as consequências funestas do sistema
itens se tornam aspectos ou variantes da primeira capitalista/colonial. O humanitarismo possui essa
perspectiva histórica, sob a perspectiva biopolítica de propriedade: a de ilusoriamente compatibilizar as
análise estratégica do poder. A diferença recai em um contradições deste mundo, tornando o intolerável em

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termos de sua produção de injustiças algo suportável. fenômeno costuma fazer parte destacada do que
Não é absurdo cogitar que a expressão “medicalização” pode também ser designado por “medicalização”.
pode permitir, em função de sua imprecisão teórica Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi enca-
que alguns autores comecem a relativizar, em alguns rada como uma profissão, não como um negócio.
casos, com uma aparente benevolência, o papel do Hoje os empreendimentos médicos são enormes, e
poder do complexo médico-industrial, ao considerar é duro admitir que o código de confiança implícito
que poderia haver uma injusta culpabilização, caso não entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos
se considerem seus aspectos humanitários positivos. de pesquisa não está mais assegurado. Inclusive,
Ora, não há como negar a importância da atenção está documentado que pesquisadores da indústria
à saúde quanto à existência de terapêuticas farma- farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme
cológicas. Além disto, é elogiável a ação de agentes/ seu espectro de efeitos farmacológicos, profissio-
ativistas fora dos aparatos de poder de reivindica- nais do marketing da empresa devem vinculá-la ao
rem atenção a suas necessidades de saúde, algo que tratamento de determinadas afecções e promover
também seria designado por “medicalização”, mas seu uso aos médicos como o tratamento “mais in-
na vertente de uma suposta resistência ao poder. dicado”. Isto pode até implicar em encontrar uma
Porém, aqui se desvirtua a noção de “medicalização” doença incomum cujas respectivas fronteiras pos-
como argumento da crítica à manifestação do poder sam ser expandidas para incluir mais pacientes ou
do complexo médico-industrial e parece surgir um redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana
significado destituído desse sentido original. E, como patologia médica (por exemplo: a distimia que
assim, fragiliza-se o conceito ao assumir uma co- tem o mau humor como sintoma).
notação retórica referente a um suposto “lado bom” Ainda assim, não é indiscutível a efetividade
da medicalização. da dimensão da tecnomedicina atual. E, ao mesmo
No entanto, isto não parece atenuar a poderosa tempo, ela tem deixado a desejar com suas estra-
atuação no interior do neoliberalismo sustentável tégias prescritivas de marketing (eventualmente
da indústria farmacêutica, justamente designada enfatizando aspectos preemptivos) que se aliam
por Big Pharma – no contexto neoliberal e suas es- a certas práticas de outros campos vinculados à
tratégias mercadológicas identificadas por estudio- saúde, como: nutrição (o alimento saudável como
sos do campo por visarem à proliferação contínua uma forma de medicamento), odontologia (com
do consumo de medicamentos através de recursos sua ênfase em termos de produtos e intervenções
eticamente discutíveis (Elliott, 2010). Por exemplo: estéticas), fisioterápicas (dependendo da proposta
a minimização/omissão de efeitos farmacológicos clínica, se subsidiária ou não de ditames médicos
adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisa- neoliberais), em certas vertentes da psicologia e nas
dores (com anuência destes) como autores de artigos neurociências (para estimular a ideia cognitiva de
escritos por ghostwriters da própria indústria; a autocontrole e evitar comportamentos de risco) e
realização de dispendiosos ensaios clínicos com educação física (a atividade física como prática cor-
resultados que legitimam a inclusão de resultados poral compulsória preventiva de riscos, extensiva a
favoráveis, enviesando metanálises ao evitar a todas as pessoas, independente do estabelecimento
publicação de resultados desfavoráveis; reforçar a específico dos riscos individuais).
utilização abusiva de órteses e próteses, práticas Tampouco parece apropriado designar como
de oferecer viagens, refeições, financiamento para healthicization (ou algum termo traduzido para o
eventos, brindes vários, entre outros agrados e português) as práticas hiperpreventivas relativas
lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos aos chamados comportamentos de estilo de vida
e inclusive bioeticistas. saudável. Elas são construídas a partir de conheci-
Sabe-se que os pesquisadores dessas empresas mentos médicos – medicalizadoras, portanto. Talvez
desenvolvem novas drogas com uma série de efei- ficassem mais bem subsumidas sob a expressão
tos fisiológicos, nenhum altamente benéfico. Este “terapeuticalização” (agradece-se aqui a sugestão

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de Gustavo Correa da Matta na elaboração desta ex- apesar de seus méritos na crítica aos abusos “sobre-
pressão). Pois, no limite, tornam-se metas de gestão medicalizadores” potencialmente iatrogênicos na
da vida como fenômeno biológico configuradas por promoção da saúde, prevenção e detecção precoce
noções de risco propaladas por mensagens normati- de doenças. Dá a impressão de ter se aninhado qua-
vas de porta-vozes da prudência, moderação e tem- se como um corpo um tanto estranho aos “níveis
perança em nome da vida saudavelmente regrada. de prevenção” de Leavell e Clark dos anos 1960 e
Ou, ainda, determinadas por meios diagnósticos da “história natural da doença”, ainda validando
médico-laboratoriais (que, por exemplo, levam ao categorias criticadas desde os anos 1970 pelo seu
tratamento medicamentoso com estatinas em fun- funcionalismo descontextualizado, reatualizando
ção de alterações dislipidêmicas já vistas como pré- uma discussão antiga, supostamente anacrônica
-patologia e também diante das alterações de valores por não tratar da “determinação social da doença”
numéricos definidores de estados sob risco, como a e sem introduzir nenhum enfoque biopolítico à
pré-hipertensão, a pré-diabetes e a osteoporose). Es- questão.
ses “diagnósticos de risco” deveriam ser assumidos Welch (2011) indica vários elementos que in-
por aqueles que eventualmente venham a portá-los, tervêm nesses referidos casos de iatrogenia e em
gerando, conforme os casos, formas de tratamento intervenções desnecessárias capazes de provocar
preventivo/preemptivo visando à manutenção de elevação de condições ansiosas e sofrimentos aos
saúde e da busca da longevidade – para aqueles que pacientes. As alterações nos valores nas medidas
possam arcar com seus custos. de pressão arterial, dislipidemias, glicemia, osteo-
Aliás, queremos crer que o termo “terapeutica- porose; exames detalhados de imagem passíveis de
lização” (subsumindo, implicitamente, a dimensão dificuldades de interpretação são potencialmente
diagnóstica) poderia lidar melhor com o panorama capazes de conduzir a mais exames, monitoramento
dominante em geral das práticas preemptivas me- de diversos tipos de neoplasias e de problemas de
dicamente definidas. E, ainda, haveria a vantagem gravidez. Conforme Welch, a gênese desses casos
de abordar outras práticas de saúde extramédicas. é atribuível tanto aos médicos e pacientes que
Ao mesmo tempo, evitaria os supostos problemas confiam na capacidade de diagnósticos preempti-
da suposta imprecisão conceitual da medicalização. vos de riscos à saúde, como se deve à atuação dos
No caso da medicina, há preocupações crescen- interesses lucrativos do aparato médico-industrial
tes com os efeitos adversos dos sobrediagnósticos e e sua ênfase intervencionista em nome da detecção
sobretratamentos em pacientes que são considera- e da terapêutica precoce.
dos casos brandos ou moderados. Alguns chamam, Cabe ainda um comentário sobre “terapeutica-
com boas intenções de proteger aos pacientes dos lização”, um termo muito pouco encontrado numa
riscos de iatrogenia, de “prevenção quaternária”. rápida pesquisa na rede. Assim, foi possível obter
Esse termo foi concebido por Jamoulle2, médico de para therapeuticalization três entradas pelo Google
família belga que assim a definiu: “ação tomada Scholar em 4 de novembro de 2014, variando em te-
para identificar o paciente sob risco de sobremedica- máticas (duas menções a trabalhos sobre cultura de
lização para protegê-lo de nova invasão médica e su- consumo e uma em um PDF com documentos sobre
gerir intervenções que sejam eticamente aceitáveis” a educação de adultos), e sete entradas no Google –
[grifos nossos]. Aliás, nesse ponto, será que se torna três delas repetindo as entradas do Google Scholar
sintomático o uso do termo “sobremedicalização” sobre uma mesma citação em diferentes obras: um
para permanecer na crítica aos abusos do chamado artigo de Lund (1996) e um repetindo o documento
complexo-médico-industrial? sobre educação de adultos (Mader, 1992).
Ademais, a expressão prevenção quaternária Das quatro restantes: 1) um projeto de pesquisa
pode apresentar também aspectos discutíveis, português sobre trajetórias de consumo e aprimo-

2 Disponível em: <http://www.ulb.ac.be/esp/mfsp/quat-en.html>. Acesso em: 1 nov. 2014.

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ramento de desempenho entre jovens de Portugal, Esse monitoramento pretende que os indivíduos
mais especificamente no consumo das assim chama- aprendam mais sobre si mesmos, e, também preten-
das drogas inteligentes (smart drugs) que atuam na de ajudá-los a tomar medidas para se tornarem mais
capacidade cognitiva e drogas de estilo de vida (lifes- saudáveis, de acordo com os criadores do movimen-
tyle drugs) que modificam desempenhos somáticos to, Gary Wolf e Kevin Kelly5, também editores da
(Lopes et al., 2014); 2) um portal português de uma revista Wired. Eles são considerados responsáveis
agência de projetos; 3) um fórum com diálogos entre pela expressão “autoquantificado”, criada quando
mágicos3; 4) um fórum de usuários de charutos4. conceberam um projeto de seguimento das novas
Em buscas realizadas em 8 de novembro de 2014, no tecnologias de monitoramento. A partir do blog
buscador Google, não foi encontrado nenhum resultado Quantified Self criado em 2007, foi construída uma
para terapeuticalización em espanhol. E, em português, rede que tem como objetivo atender aos usuários e
apenas repetiu-se o mesmo resultado referente ao nú- fabricantes de ferramentas de monitoramento. As
mero (1), acima da pesquisa no idioma inglês em duas pessoas teriam sido capazes de acompanhar seu
entradas. Ou seja, diferentemente da alta incidência da desempenho nas tarefas diárias de várias maneiras
palavra em diferentes proposições semânticas concei- durante anos (por exemplo: anotar a quantidade de
tuais de “medicalização”, o termo “terapeuticalização” calorias ingeridas), mas as novas tecnologias teriam
parece apresentar uma interessante falta de prolifera- deixado esse processo bem menos complicado, de
ção e de contaminações conceituais, o que poderia lhe acordo com Wolf (2014).
granjear precisão e utilidade teórica. O automonitoramento está sendo introduzido
em locais de trabalho como parte de programas
As práticas terapeuticalizantes de automonitora- de bem-estar corporativo. Há casas com sensores
mento na saúde pública individualizada digitais smart para monitorar a atividade física
de seus habitantes, principalmente idosos. Há pro-
Há que se cogitar sobre as repercussões pre- gramas de promoção da saúde que estão usando
emptivas na subjetividade autorreferida nos dispositivos de monitoração com sensores para
movimentos cada vez mais difundidos de monito- gerar dados comunitários com o propósito de que
ramento reflexivo/automonitoramento denomina- leigos podem ser treinados e equipados para pro-
dos Quantified Self/Tecnologia autoquantificada duzir dados científicos ou projetos comunitários.
(Calvazara, 2014). Este movimento consiste no uso Conceitos como “cidade saudável” e “cidade inteli-
mais frequente de tecnologia para coletar dados gente” se combinam para gerar a “cidade inteligente
sobre si mesmo. Tais recursos permitem às pessoas e saudável” (inteligente porque saudável e saudável
autorrastrearem aspectos de suas vidas diárias. porque inteligente…) (Lupton, 2014). Há aplicativos
Há aplicativos relacionados à saúde vinculados a: de smartphones com jogos relacionados à saúde e
consumo de comida; consumo de álcool; abandono à aptidão física (exergames). Além disso, pode-se
de tabagismo; exposição ao sol; saúde mental; saúde usar big data para gerar percepções sobre epidemias
sexual; monitoração do sono; controle de variáveis (HealthMap6) e ocorrências de crimes em cidades
fisiológicas, sensações e indicadores, como: glicose como Nova York (Ferguson, 2014).
sanguínea, controle de peso, índice de massa cor- Começa a ocorrer um obscurecimento das fron-
poral, aptidão física, temperatura corporal, ritmo teiras entre o provimento de atenção em termos de
respiratório, leitura de indicadores bioquímicos saúde pública e o autocuidado. Seria esta uma prá-
sanguíneos e de atividade cerebral etc. tica que poderia ser designada como “autoterapeuti-

3 Disponível em: <http://www.themagiccafe.com/forums/viewtopic.php?topic=417147&forum=32>. Acesso em: 6 out. 2015.


4 Disponível em: <http://www.herfersparadise.org/portal/modules.php?name=Forums&file=viewtopic&p=1412595&sid=8ad83219e18db
128a2cf2a58da5d5235>. Acesso em: 6 out. 2015.
5 Disponível em: <http://quantifiedself.com>. Acesso em: 7 nov. 2014.
6 Disponível em: <http://healthmap.org/pt/>. Acesso em: 6 nov. 2014.

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calização”, propiciando mais um novo sentido alter- bens, capital, informação e pessoas).
nativo para o conceito de “(auto)medicalização”? A Didier Bigo (2008) fala de toda a rede referente
promoção da saúde pública por iniciativa individual às atividades daqueles que ele chama de “gestores
passa a enfatizar mais ainda a responsabilidade da inquietude” (professionals of unease manage-
individual e a autodisciplina no ambiente político ment) – os profissionais da segurança e outros – que
neoliberal, que se ajusta bem às medidas de auste- são os que estão mais próximos ao dispositivo que
ridade diante das crises financeiras globais. Ainda controla e vigia os grupos que oferecem “riscos”
assim, devemos lembrar que também pode haver (como os jovens que faziam “rolezinho” em shop-
iniciativas de ativismo político de comunidades que pings de São Paulo em 2013).
ultrapassem as perspectivas de controle externo e Segundo Lupton (2014), muitas pessoas manifes-
coletem seus próprios dados para delinearem suas tam a impotência diante do poder das grandes em-
necessidades e demandar ações governamentais presas da internet para coletar, possuir e usufruir
diante de condições de transporte e tráfego, dados de seus dados pessoais. Algumas vezes, usuários de
sobre crime, disposição de lixo, poluição etc. autorrastreamento concordam com o uso de seus
De todo o modo, Bauman e Lyon se referem ao dados pessoais como uma parte inevitável da acei-
minipanóptico pessoal sob a forma de tablets e tação dos termos e condições de seus dispositivos,
smartphones (Bauman; Lyon, 2014), e a fusão deles aplicativos móveis e plataformas.
– os “phablets”. Dessa forma, não é absurdo cogitar Em outros casos, seus dados podem ser aces-
em “smartphrones”: um tipo de phone/drone inteli- sados sem seu conhecimento ou consentimento. A
gente que pretende nos transformar em androides segurança de dados disponibilizados em platafor-
consumidores. Seria um tipo particular de drone mas digitais não é à prova de falhas de segurança. A
simbionte parasitário que voa em nossas roupas forma como dados digitais podem ser utilizados por
durante nossos voos literais e metafóricos. Além de diferentes atores e instâncias não pode ser prevista
servir como mero telefone e permitir cair nas redes nem controlada.
sociais, também podem atuar na conexão vigilante À medida que seres humanos se tornam nós em re-
constante entre diretores e empregados, permitir des na internet, gerando e trocando dados digitais com
o rastreamento, a compilação e o processamento outros agentes, as práticas de automonitoramento se
dos movimentos dos usuários dos impérios “inter- tornarão inevitáveis para muita gente. Parece haver
néticos” cujos serviços são acessíveis aos interes- uma abrangência que está se ampliando gradualmente
sados: Google, Face(trace)book e Amazon.com, que para o uso de automonitoramento, que provavelmente
produzem enormes bases de dados e categorizam deve se expandir na medida em que um crescente nú-
via big data os algoritmos dos perfis de potenciais mero de organizações e instâncias se dê conta do po-
consumidores. tencial dos dados produzidos a partir destas práticas.
Os gestores atuais podem ser muito mais sutis O automonitoramento pode ser visto como uma
comparados com os antiquados vigilantes man- das estratégias e discursos heterogêneos que colo-
tenedores da rotina laboral. São rastreadores dos cam o “si mesmo liberal” como um cidadão respon-
movimentos de desejo dos usuários da rede. Mas sável, com vontade e capacidade de tomar cuidado
há os que estão à mercê do banóptico (Bigo, 2008) de si ou de seus autointeresses e bem-estar. O neo-
cuja função estratégica é determinar uma minoria liberalismo promove a ideia normativa de cidadão
como excluída. E seus três elementos constituem que não precisa de coerção para se comportar pro-
um poder excepcional no âmbito das sociedades dutivamente e nos interesses do tecnocapitalismo
liberais: o estado de emergência (que se converte (Lupton, 2014). O “conhece-te a ti mesmo” deixou de
na regra); a seleção (que exclui a certos grupos ou ser uma autoanálise de caráter reflexivo em termos
a categorias inteiras de pessoas por seu comporta- psicológicos (“pôr a mão na consciência”), mas passa
mento social futuro); e normalização dos grupos não a ser um esquadrinhamento de funções biológicas
excluídos (mediante a crença na livre circulação de como exercício identitário somático.

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A saúde pública vai se tornando um projeto correta deve gerar consequências que se convertam
individualizado para aqueles que têm acesso às em felicidade (prazer) para as demais pessoas. A
tecnologias de automonitoramento. propriedade moral de uma ação é avaliada por suas
consequências benéficas esperadas. Um modo de
Conclusão avaliá-la é dimensionar a elevação da felicidade
(prazer) e a diminuição do sofrimento daqueles que
A felicidade utilitarista sofrem os resultados de determinada ação, especial-
mente quanto à gerência da pretendida qualidade
Um dos problemas das perspectivas apresenta- das ações, sem levar em conta aspectos estruturais
das é o fato da preempção desejada não ter como (Orozco, 2009).
resolver as vicissitudes da vida e as decorrências em O postulado básico do utilitarismo chamado
termos de mudanças de expectativas. De fato, não Utilidade/Maior Felicidade, sinaliza que as ações
é viável prever as imponderabilidades futuras e os são moralmente corretas quando buscam promover
respectivos riscos, mesmo que se amplie de modo a felicidade, e incorretas quando geram o negativo
gigantesco a capacidade de processamento infor- da felicidade. A aplicação desse postulado traz um
mático dos dados mediante automonitoramento cálculo do estado de bem-estar, onde se mensuram
tratado por técnicas de big data. Assim, coloca-se aspectos positivos e negativos quanto às diversas
a questão do processo de decisões gerenciais em possibilidades de rumo de determinadas ações, con-
função dos riscos serem assumidos sob pressupos- siderando a medida de satisfação/insatisfação que
tos razoavelmente arbitrários em relação ao que pode ser esperada de tais ações. O referido cálculo
se imagina como sendo informações confiáveis de deve incluir um grupo de parâmetros para avaliar
previsão sobre a gênese e o enfrentamento de peri- os graus de satisfação/insatisfação resultantes,
gos, agravos e malefícios. em termos de força, durabilidade, graus de evita-
Não há como evitar ocorrências cuja dimensão ção de incertezas, sua evolução. Essa aritmética
preditiva sai do esperado e, segundo Nicholas utilitarista se propõe a escolher a ação que seja
Nassim Taleb (2008), que revelam as restrições do correta em termos morais de modo a se atingir o
pensamento indutivo e seu engano de abrangência mais alto possível nível de felicidade (prazer) para
ampliada quanto ao que pode suceder em nosso a maior quantidade de gente (Orozco, 2009). Nos
mundo, que é mais intrincado e submetido ao acaso tempos atuais, há elementos sugestivos de que a
do que usualmente se cogita; a falta de robustez na matemática utilitarista se volta para a máxima
possibilidade de achados de estudos retrospectivos longevidade com qualidade de vida para todos que
sinalizarem com estabilidade e precisão as possi- a desejem e disponham de recursos de acesso a
bilidades para o futuro; o superdimensionamento propostas preemptivas de saúde, mesmo diante de
de dados apregoados por especialistas e oráculos, suas ambivalências.
ainda mais quando concebem categorias analíticas Para Zizek (2006), a ética utilitarista é a ética
sem entrar nos méritos de suas premissas. da não autonomia. Sua ideia real é que não há au-
Em termos esquemáticos, a ética utilitarista tonomia de fato. Diante do postulado que procura-
designada como “consequencialista” se baseia na mos otimizar nosso prazer, este se constitui numa
noção de que cada indivíduo deve vincular seus tirania determinante de nossa conduta. A possibi-
interesses pessoais a interesses comuns, de modo lidade de conduzir as pessoas em função da busca
que sua ação produza a maior utilidade a todas as da felicidade de cada um (“correndo atrás de seus
pessoas envolvidas nos efeitos da ação. Da mesma sonhos etc.”), que deverá ser a felicidade de todos
forma como cada um desejaria naturalmente a pró- na vida de consumo tecnocapitalista, mostra-nos
pria felicidade, o bem-estar de todos será um bem que tal ideia de felicidade tende a ser algo referen-
para o total dos seres humanos. A boa ação deve ser, te à autossatisfação pessoal, sem o deslocamento
logicamente, útil, porém, uma ação moralmente subsequente para os demais. Portanto, a noção de

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BAUMAN, Z.; LYON, D. Vigilância líquida. Rio de
pessoa autônoma, responsável e livre para decidir o Janeiro: Zahar, 2014.
que lhe convém uma vez bem informada se constitui
BIELINSKI, S. J. et al. Preemptive genotyping for
numa montagem jurídica. A função é produzir um
personalized medicine: design of the right drug,
ator centrado numa perspectiva de responsabilida-
right dose, right time – using genomic data to
de que eventualmente seja punido por suas ações
individualize treatment protocol. Mayo Clinic
inaceitáveis em busca de sua “felicidade”, mas que
Proceedings, Rochester, v. 89, n. 1, p. 25-33, 2014.
não é moralmente bom para os outros, em termos
utilitaristas do ponto de vista da vida comunal. BIGO, D. Globalized (in) security: the field and the
Entretanto, essa configuração borra a possibilida- ban-opticon. In: BIGO, D.; TSOUKALA, A. Terror,
de de uma avaliação analítica mais criteriosa das insecurity and liberty: Iliberal practices of liberal
circunstâncias sociopolíticas ampliadas dos con- regimes after 9/11. Oxon; New York: Routledge,
textos originários de onde emanam contingências 2008. p. 10-48.
moralmente encaradas como reprováveis. CALVAZARA, B. O que é a tecnologia
Enfim, de forma bastante esquemática e alegó- autoquantificada? QGA, [S. l.], 6 set.
rica, será cabível imaginar que seremos cada vez 2013. Disponível em: <http://qga.com.br/
mais dirigidos pela produção de subjetividades tecnologia/2013/09/o-que-e-a-tecnologia-
constituídas por um peculiar grupo de protótipos autoquantificada>. Acesso em: 7 nov. 2014.
em função da hiperprevenção terapeuticalizadora
CASTIEL, L. D. Medicina, técnica, ética e os
e de suas variantes, todos orientados, claro, pelo
dilemas preemptivistas na saúde. Entrevista a
homo oeconomicus do utilitarismo que estabelece as
Junges, M. R. e Costa, A. IHU On-line. Revista do
receitas corretas de busca autônoma da felicidade.
Instituto Humanitas Unsinos, São Leopoldo, v.
Então teremos: homo praeventus (etimologicamen-
456, n. 14, p. 18-24, 2014.
te: ação de prevenir advertindo); da evidência, homo
evidens (que tem acesso à ciência big data que vai DIPROSE, R. Biopolitical technologies of
produzir as melhores verdades evidencialistas), da prevention. Health Sociological Review, Sippy
preempção, homo praeemptīvus (diante da suspeita Downs, v. 17, n. 2, p. 141-150, 2008.
de ameaças, (re)agir “cortando o mal” antes dele ter ELLIOTT, C. White coat, black hat: adventures on the
raiz, ou mesmo existir); do autocuidado (de si…), o dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010.
homo autós cogitatum (aquele que pensa/ que se
cuida – com aplicativos etc.). FASSIN, D. Humanitarian reason: a moral history
Mas, do lado de fora, fica o homo residùum, fan- of the present. Berkeley: University of California
tasmatizado e excluído pelos gestores da inquietude Press, 2012.
e o homo a-typìcus, que ocupa o lugar do ponto fora FERGUSON, A. G. Big data policing in the Big
da curva (ou da curva fora do ponto), ao perceber Apple. The Huffington Post, [S. l.], 15 jul. 2014.
o espectro da normalidade normativizada e suas Disponível em: <http://www.huffingtonpost.com/
vicissitudes. Um “outliar”, se permitem o jogo de andrew-guthrie-ferguson/big-data-policing-in-
palavras no idioma inglês – o que não diz a verdade, the_b_5588009.html>. Acesso em: 6 nov. 2014.
do lado de fora – diante das “verdades experimen-
FOUCAULT, M. Segurança, território, população.
tais” – que provêm do evidencialismo empiricista
São Paulo: Martins Fontes, 2008.
– seja big data ou não.
GOROWITZ, E.; MOSHER, J.; PERTSCHUK, M.
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Contribuição dos autores


Todos os autores participaram das fases de concepção, elaboração,
redação e revisão crítica do texto.

Recebido: 13/11/2014
Aprovado: 03/06/2015

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