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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O Sotaque dos Santos


movimentos de captura e composição no candomblé do
interior da Bahia

Paula Siqueira

Rio de Janeiro, 2012


Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O Sotaque dos Santos


movimentos de captura e composição no candomblé do
interior da Bahia

Paula Siqueira

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Marcio Goldman
Orientador

Rio de Janeiro, 2012


FOLHA DE APROVAÇÃO

Paula Siqueira

O Sotaque dos Santos


movimentos de captura e composição no candomblé do interior da Bahia

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2012

_________________________________
Marcio Goldman
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional - Universidade
Federal do Rio de Janeiro)

_________________________________
Ana Luiza Borralho Martins Costa
(Doutora, Programa de Estudos em Filosofia Antiga – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais -
Universidade Federal do Rio de Janeiro)

_________________________________
Eduardo Batalha Viveiros de Castro
(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional - Universidade
Federal do Rio de Janeiro)

_________________________________
Miriam Rabelo
(Doutora, Departamento de Sociologia - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais -
Universidade Federal da Bahia)

_________________________________
Olívia Maria Gomes da Cunha
(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional -
Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Siqueira, Paula
O sotaque dos santos. Movimentos de captura e composição no
candomblé do interior da Bahia / Paula Siqueira. Rio de Janeiro, 2012.
227f.

Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de


Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, 2012.

Orientador: Marcio Goldman

1. Religiões Afro-Brasileiras - Bahia 2. Feitiçaria, Macumba e Possessão 3.


Noção de Pessoa, Parentesco, Gênero e Socialidade 4. Teoria Antropológica e
Construção Etnográfica. I. Goldman, Marcio (Orient.). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
Resumo

No início de 2008, cheguei ao interior da Bahia com a motivação, mas sem a certeza, de que
seria possível estudar os atos feiticeiros, sobretudo aqueles ligados ao candomblé. Logo
percebi, porém, que a vivência feiticeira na região estava profundamente vinculada à
relação íntima dos humanos com seus espíritos. Bruxaria e incorporação teriam portanto de
ser pensadas em conjunto, mas, como fazê-lo sem que uma se dissolvesse na outra? A
solução, intuitiva algum tempo atrás, e exaustivamente reelaborada ao longo da escrita, foi
chamar de captura por composição o ato de enviar um espírito para enfeitiçar uma pessoa –
adicionando assim um conceito meu aos conceitos nativos de feitiçaria – e tomar as duas
ações, captura e composição, como pontos de partida para outras combinações e
conjugações. Assim, o ato de captura provocado pela bruxaria não se encerrou em si
mesmo, inúmeras outras possibilidades de captura e composição se sucederam, e elas, por
sua vez, colocaram em andamento a beleza e a batalha desses difíceis, mas sem dúvida
atraentes, encontros entre humanos e espíritos. Ainda que estas ideias tenham se tornado os
fios condutores do presente trabalho, tomou-se imenso cuidado para não transformá-lo em
um texto meramente ilustrativo. Aliás, minha intenção não poderia ser mais diferente. Tais
conceitos prestaram-se mais propriamente à organização – e propulsão – do movimento
entre descrição e explanação. Ainda mais importante, os próprios conceitos aparecerão em
movimento, evidenciando o que chamei de densidade da vivência feiticeira – ou o efeito do
vivido em campo –, quando então, espero, haverá lugar para o riso e o medo, a dor e o
mistério, a música, o silêncio e o sotaque.

Palavras-Chaves: 1. Religiões Afro-Brasileiras - Bahia 2. Feitiçaria, Macumba e Possessão 3.


Noção de Pessoa, Parentesco, Gênero e Socialidade 4. Teoria Antropológica e Construção
Etnográfica.
Abstract

At the beginning of 2008, I arrived in the Bahian hinterlands with the suspicion, but not the
certainty, that it might be possible to study witchcraft there, and primarily in its connection
to candomblé. However, I soon discovered that witchcraft experience was profoundly
connected to the intimate relations between humans and their spirits. Witchcraft and
incorporation would thus have to be thought about in conjunction, but how to do this
without allowing one to dissolve the other? The solution, intuitive at first and then
exhaustively re-elaborated throughout the writing process, was to denominate the act of
sending a spirit to bewitch a person as capture by composition – thus adding a concept of my
own to the native concepts of witchcraft – and to take both of these actions, capture and
composition, as the starting points for other combinations and conjugations. In this way, the
act of capture that is provoked by witchcraft is not an end in itself, as numerous other
possibilities for capture and composition ensue, and in their turn engender the beauty and
battle of these difficult, but nonetheless attractive, meetings between humans and spirits.
Although these ideas became the conductive threads of this thesis, immense care has been
taken not to transform this into a purely illustrative text. In fact, this could not be further
from my objective. These concepts were of greater use for the organisation – and propulsion
– of the movement between description and explanation, so as to place them in movement
themselves, thus eliciting what I have called the density of witchcraft experience – or the
effect of this experience in the field – in which I hope to have given room for laughter and
fear, pain and mystery, music, silence and accent.

Key-words: 1. Afro-Brazilian Religions - Bahia 2. Witchcraft, Macumba and Possession 3.


Personhood, Kinship, Gender and Sociality 4. Anthropological Theory and Ethnographic
Construction.
Agradecimentos

A T., por primeiro me ensinar a “lógica de exu” e, depois, a conviver com ela. Por
também me ensinar sobre a alegria, beleza e perigo de todos os santos. Não seria muito
falar que lhe devo quase tudo que sei sobre candomblé, mesmo que muitas vezes,
irritantemente, T. alegasse não poder me dizer mais nada. A você, minha sincera admiração
e amizade.

A C., por muito do que sei sobre a complexidade do candomblé. Não tenho como
agradecer sua amizade e consideração, além de tantos dias e noites junto ao seu “povo”,
todos carismáticos, sensíveis e especiais.

A N., pelo carinho maternal. Também por sua persistência em se manter à parte e ao
mesmo tempo inserida nos enredos do povo-de-santo da região (como consegue?). Também
pela sua incrível eficiência mágica, tão sem ostentação que seus trabalhos eram feitos
quando N. parecia apenas conversar. Agradeço também o carinho de todo o seu “povo”.

A A., V. e família. Tão interessantes, tão fortes no seu desamparo, tão belas em seus
traços, traços que me impressionaram.

A Z. e sua família, por me ensinar a ver graça e carinho em xingamentos insuspeitos.


E também por me aceitar em sua beira e me contar suas histórias com os caboclos.

A M. e L. e sua grande família, pelo carinho e alegria de fazer o mesmo, semana sim,
semana não. Também pela satisfação em me deixar contemplar a extrema delicadeza e
beleza de todos.

A M., V. e sua família, sempre um lar.

À C., D., L., L, vocês são demais! Se fosse perto, eu estaria sempre por aí!

Aos amigos e colegas do Abaeté. Ali se incentivou uma antropologia em “estado de


alegria”. Também aos amigos de tantos outros lugares do Rio de Janeiro, de Brasília e da
Bahia. Com tantas idas e vindas, é confortante pensar que nem uma nem outra foi capaz de
nos afastar.

A Marcio Goldman, pelo fôlego intelectual que tanto me inspirou ao longo de todos
esses anos. Não teria como agradecê-lo o suficiente por me levar à Bahia, lugar de onde
minha alma sempre adiará a partida.

A Gabriel Banaggia, pela generosidade em revisar este trabalho, ao qual trouxe


novas e belas palavras. Só terei como te agradecer a contento quando eu mesma puder,
como combinamos, ler, revisar e aprender com a sua etnografia, um prazer que terei em
breve.

À Ana Carneiro, por todas as sugestões e trocas de palavras já feitas e que ainda
estão por vir!

À Julia Sauma, pela tradução do resumo para o inglês. Obrigada, querida!

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pelos financiamentos
que tornaram essa pesquisa possível.

Aos professores do PPGAS/Museu Nacional, em especial, Olívia Gomes da Cunha,


Eduardo Viveiros de Castro, Otávio Velho, Luiz Fernando Dias Duarte, e aos professores do
IFICS/UFRJ, Emerson Giumbelli e Regina Novaes, cujas aulas me inspiraram e ajudaram a
elaborar o presente texto. Agradeço igualmente à ajuda importante dos funcionários do
PPGAS.

Aos membros da banca, Ana Luiza Martins Costa, Eduardo Viveiros de Castro,
Miriam Rabelo e Olívia Gomes da Cunha, cujos comentários e críticas certamente me farão
pensar em conexões e caminhos renovadores. E também à banca de qualificação, composta
por Carmem Opipari e Eduardo Viveiros de Castro, pela crítica e leitura paciente da
primeira versão deste texto que, naquele momento, mais se assemelhava a uma inflada
declaração de intenções.

Finalmente, em destaque, à minha família, por tudo.


SUMÁRIO

CAPÍTULO 1. CAPTURA POR COMPOSIÇÃO .............................................. 2


Silêncio e Sotaque ............................................................................... 5
Radiação ............................................................................................ 23
Ritmos ............................................................................................... 35

CAPÍTULO 2. LUTA E POVOAMENTO....................................................... 45


Trabalho e Paixão ............................................................................. 45
Vida, Modelo e Forma ..................................................................... 50
O Gênero da Possessão .................................................................... 56
Composição e Decomposição ......................................................... 65
Encantamento e Luta ....................................................................... 73
Povoamento ...................................................................................... 95
Desapego ......................................................................................... 112

CAPÍTULO 3. DA FORÇA E DA FRAQUEZA............................................. 118


A Dança do Exu.............................................................................. 118
O Dono da Cabeça.......................................................................... 124
Meu Pai é Pemba ............................................................................ 136
Passagens ........................................................................................ 151
Reversibilidade ............................................................................... 160
Da Eficácia, da Ilusão e da Mentira .............................................. 173
Ao Lado do Avesso ........................................................................ 189

TEMPO GIRA ......................................................................................... 197

GLOSSÁRIO ........................................................................................... 203

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................... 217


Capítulo 1. Captura por Composição

Ela arrumava os cabelos, à maneira da terra dela. Duas tranças cobertas por

um lenço branco, tudo feito tão rapidamente que ali se percebia um gesto diário,

traquejado pelo tempo. De início, tudo parecia bem, conversávamos sobre

candomblé, sua voz saía em ritmo de ladainha. Depois, sua filha se aborreceu

quando fitou a mãe, triste, lembrando a história de seu irmão falecido. - “Por que

não falar dos caboclos dela?! Ela já livrou muita gente do perigo”. Prontamente

encorajei a sugestão da filha, e voltamos a falar sobre seu passado em meio a

toques, caboclos e zuelas1. Mais tarde, porém, dona Dulce pediu que sua entrevista

não viesse a público. Eu poderia ouvi-la à noite, quando estivesse sozinha, quando

quisesse me lembrar; do contrário, dona Dulce me advertiu, ela poderia ir pra riba

da cama, vítima da zanga de seus caboclos. Imediatamente deixei claro que

respeitaria sua vontade, mas perguntei se podia contar algumas de suas histórias

sem mencionar seu nome. De início, ela concordou, mas logo depois voltou atrás,

uma hesitação que me soou bem mais próxima de uma negativa. Dona Dulce há

muito abandonara sua “vida no santo”, mas era um abandono de quem ainda

estava cheia de “presenças” que, mais do que nunca, precisavam permanecer só

com ela.

Ela fora uma das primeiras pessoas com quem falei ao chegar à Bahia com a

motivação, mas sem a certeza, de que seria possível estudar os atos feiticeiros,

sobretudo aqueles ligados ao candomblé. Eu já sabia que o tema era delicado, mas

meu trabalho de campo desde o início se mostrou mais difícil do que imaginara.

1
Boa parte dos termos regionais e daqueles relativos ao candomblé serão esclarecidos, aos poucos,
até o final deste capítulo. Mas, se o leitor desejar saber seu significado no momento em que
aparecem, pode recorrer ao glossário no final desta tese. Visando a melhor compreensão etnográfica,
indico desde já que foram utilizadas as seguintes marcações: aspas duplas para a citação de diálogos e
termos nativos, ou para a citação de trechos extraídos da literatura antropológica, quando então
serão precedidos ou sucedidos por referência de sobrenome e data; aspas simples para indicar
discurso direto ou para atenuar a força, abrangência ou estranheza de um termo específico; por fim,
itálico para termos estrangeiros ou ênfase.
3

Poucos dias antes de encontrar dona Dulce, visitara pela primeira vez um pequeno

terreiro, onde as pessoas e divindades não me deixaram escolher ser uma

espectadora ou, ao menos, achar ali uma posição confortável. Já neste dia, minha

vida foi auscultada: meus relacionamentos amorosos anteriores, minha presença

ali, minha família, minha então decisão de não beber. Lá havia exus, feiticeiros e

guerras declaradas – guerras em que eu era instada, mas resistia, a tomar um lado.

Falava-se muito e desejava-se esse muito; era interessante, atraente, mas me

perturbava. Tão distinto do meu trabalho de campo anterior, feito para minha

dissertação de mestrado (Siqueira, 2006), cuja leveza e simpatia eram praticamente

garantidas. Então meu riso era fácil e eu já sabia como me comportar. Este, ao

contrário, foi um trabalho em que constantemente me vi instigada, sem saber o que

dizer.

Em apenas uma semana, me deparei com duas situações extremas. Na

primeira, a de dona Dulce, eu deveria ficar em silêncio – e então não haveria

etnografia. Na segunda, eu poderia (e deveria) amplificar o quanto os exus e

caboclos eram fortes, ecoando sua natureza “miserável” e “desgraçada”, correndo

porém o risco de o excesso, característico desses espíritos, capturar a minha escrita,

deixando pouco espaço para outras formas de ação feiticeira também presenciadas

em campo. Na primeira situação, não haveria outra possibilidade senão o silêncio.

Na segunda, porém, o excesso não torna mais fácil a minha tarefa. Como falar

daqueles que não só se admitem feiticeiros, como o fazem com bastante orgulho?

Ogã zuelou, em sotaque:

Eu sou um menino,
Pequeno tamanho,
O meu coração,
Ele é grande demais,
Meus pensamentos
Andam muito longe,
Na terra que eu ando,
Você nunca vai.

Era a cabocla Jurema que normalmente cantava essa zuela. Ela então se dizia

uma menina e versava sobre a separação entre o mundo dos humanos e dos
4

espíritos. No entanto, naquele dia, em um pequeno toque de candomblé

improvisado no início de 2009, Gilliard adaptou-a para atingir uma das pessoas

presentes. Ele era o único ogã tocando atabaque naquela festa, e como estava

brigado com sua namorada, aproveitou para lhe dar um “sotaque” em forma de

zuela. É provável que a garota tenha entendido o recado do namorado – eu mesma

nunca lhe perguntei, já que soube do sotaque pelo próprio Gilliard –, mas ela pode

também não ter se considerado atingida – e esta é justamente uma das

características do sotaque, cujo significado às vezes escapa até mesmo a quem eles

foram direcionados.

Reinaldo, por exemplo, não recebeu o sotaque de seu pai-de-santo, cantado

em outra pequena festa de candomblé, meses depois. Com zuelas e impostação de

mão, o pai-de-santo insistia em chamar as entidades do rapaz, mas elas não

desciam, Reinaldo não incorporava. Seu pai então zuelou:

Não bula com a onça,

Que onça lhe pega,

A onça pintada,

Da malha amarela.

O pai-de-santo avisava a Reinaldo que ele não deveria bulir com seus

caboclos, que deveria lhes “dar passagem”, pois, se não se deixasse manifestar,

seria alvo da mágoa daqueles seres tão perigosos quanto onça pintada. Mas

Reinaldo era “novo no santo”, apenas naquele momento começava a perceber que

as zuelas, no candomblé, são conversas. Ele ainda não entendia que, com elas,

desafiam-se e acalmam-se espíritos e humanos. Ele ainda não sabia que, com elas,

humanos saúdam os caboclos que, com elas, se despedem. Foi o ogã que, dias

depois, me chamou a atenção para o sotaque que de outro modo seria ‘apenas’ uma

zuela dentre as tantas outras ouvidas naquela noite de festa. Para o ogã, fora fácil

ouvi-lo. Ele não só era famoso por conhecer inúmeras zuelas, que usava com uma

presença de espírito ímpar, como também já participara de um sem número de


5

disputas de sotaques; disputas que ele próprio começara ou, ao contrário, dera

continuidade ao aceitar a provocação de um caboclo ou humano. Nos toques de

candomblé em que esteve à frente do atabaque, o ogã já havia presenciado muitos

outros sotaques de pais-de-santo cujos filhos teimavam em não se deixar tomar por

seus caboclos, e Reinaldo não seria o último.

Silêncio e Sotaque

Sotaque é uma palavra-arma. Ele tem um alvo preciso, mas é jogado ao ar,

ouvido por alguns, já por outros não. É chamado também de “piada”, e não se

restringe ao candomblé.

Um dia, Nina me contou que sua mãe não parava de dar sotaque em sua

cunhada, uma mulher da cidade grande que fora morar junto à família do marido

depois do casamento. Para o espanto da mãe de Nina, a moça vivia de “merenda”,

ela apenas beliscava uma besteira aqui, outra acolá. A cunhada não almoçava e

tampouco se incomodava em cozinhar o almoço do marido. Era bastante magra, e

por isso a sogra temia que seu filho ficasse também magro e fraco para a lida da

roça e da pescaria. Seus sotaques, assim como as zuelas do candomblé, eram

jogados ao ar, ela dizia: - “A mulher do filho de dona Vita está aqui há cinco

meses” – portanto há menos tempo que sua própria nora –, “mas já aprendeu a

limpar peixe” – o que evidentemente a nora até então não se incomodara em

aprender.

Era um sotaque que a nora poderia ou não tomar, mas para Nina, ao

contrário, aquilo era definitivamente um ataque. Para ela, a cunhada não era

“besta”, ela entendia todas as letras da animosidade que a sogra lhe dirigia, e por

isso Nina odiava os sotaques da mãe. Odiava ainda mais o ar que sua mãe

sobrecarregava com desafios e provocações.

Pelo mesmo motivo, Joci também desgostava não da sogra, mas da cunhada,
6

uma garota em seus vinte e poucos anos que por tudo brigava.

- “É muito ciumenta. Mas nem é só isso. É falastrona, cismada, muito

ignorante! Um dia, ela tava no mercadinho e viu uma ex-namorada de meu irmão,

o marido dela. Ela saiu de onde ela tava, procurou o caminho da garota e disse alto,

sem olhar pra ela: - ‘O dia que eu tiver medo de alguém, eu tô morta!’ Pense aí?!

Ela foi dar piada à garota que tava quieta no canto dela e nem tem mais nada a ver

com meu irmão! Pense em alguém ignorante?!”.

Nem todos são como Nina e Joci. No ouvido de outras pessoas, um sotaque

é literalmente uma piada, da qual se tira prazer. Ele gera riso e fofoca, um sotaque

provoca, zomba, “esculhamba”, “humilha”, irrita, pirraça. Ele tem a potência de

atingir o seu alvo. Ao mesmo tempo em que está no âmbito do excesso – é

imensamente estimado ou então despenca para a depreciação –, o sotaque também

está no âmbito do infinitesimal – ele abre prismas, mas admite pontos cegos. Como

diz Brazeal (2003: 663), “alguns [sotaques] são agulhadas sutis que uma pessoa

não-iniciada ou desatenta pode não perceber. Outros são desafios explícitos que

devem ser respondidos”. Outros, ainda, são “ofensivos em certos contextos”, mas

em outros são “(quase) totalmente inocentes”2.

Caboclo zuela:

Eu fui para o mato caçar,


Matei uma juriti,
A carne, dei aos cachorros, camará!
A pena, fiquei pra mim, você viu?
A pena da juriti, você viu?

Foi depois de me debruçar sobre a labilidade dos sotaques que se abriu o

caminho de como eu deveria (e gostaria de) descrever a bruxaria no candomblé do

interior da Bahia. Não por acaso, ambos estão no mesmo campo de movimentação.

Eles conjugam conflitos parecidos (entre homens e mulheres, entre pais e filhos-de-

2
Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas para o português.
7

santo, entre caboclos e humanos, entre vizinhos). Eles são guerreiros, suas formas

de ação narrativa são semelhantes (insinuação, espreita, desafio, afrontamento).

Ambos envolvem uma dimensão menos harmoniosa da relação entre seres

espirituais e humanos, o sotaque e a feitiçaria fazem parte do que se chama, na

região, de a “linguagem do candomblé”, o seu “enredo”. Mas o sotaque evidencia

algo que a consideração do termo feitiçaria a princípio poderia não transparecer.

Nele, as dimensões estéticas estão evidentes. Já na macumba3, pelo menos a

princípio, não se aprecia a dança provocativa dos caboclos que se exibem durante o

próprio ato feiticeiro, e, nela, não se inclui a beleza atrativa de suas palavras,

quando dados ao bem falar. Tende-se portanto a restringir o seu universo; julga-se

por bem (ou seguro) definir seu âmbito de influência. Mas, veremos, ela também

conecta a beleza e a batalha, além da aceitação ou recusa de uma e outra quando se

admira, ou se odeia, a agilidade da palavra que é também uma arma.

Não se preocupará, portanto, em afastar as relações, sobreposições e deslizes

que a bruxaria guarda com outras ações no candomblé. Bem ao contrário, tomarei

neste texto a feitiçaria como um modo particular de conjugação – uma

singularização, um sotaque –, e o tema será abordado de forma ampliada. O

sotaque dos santos – que incluirá também o dos exus, orixás e caboclos, como

veremos melhor no restante desse capítulo – deixará evidente a beleza e batalha, a

atração e o feitiço, que os tornam mais ou menos fortes junto aos humanos.

Cabocla zuela:

Eu vou-me embora,
Eu vou ver Cessi,
O caminho é por lá,
Mas eu vou por aqui.

Não vou negar, contudo, que a minha primeira iniciativa foi a de definir

3
Nesta tese, os três termos – feitiçaria, bruxaria e “macumba” –, além de outros como “porcaria”,
“fazer coisa” etc., são utilizados como sinônimos, já que não pude perceber na região diferenças
genéricas ou sutis no emprego cotidiano de cada um deles. Contudo, ressalte-se que o termo
‘macumba’ pode não significar feitiçaria quando utilizado para denotar um tipo específico ou o
conjunto de cultos afro-brasileiros.
8

exatamente o que seria a feitiçaria. Isso aconteceu quando da minha primeira

qualificação, em meados de 2009, ainda em meio à realização do trabalho de

campo, quando então achava necessário abandonar algumas definições dúbias da

feitiçaria em favor de uma clareza descritiva. Havia, como escrevia então, três

possibilidades: 1) a feitiçaria seria uma das formas em que a própria ação é

conceitualizada no candomblé; 2) toda ação, no candomblé, guardaria uma

dimensão feiticeira; 3) e, por fim, a feitiçaria seria um certo tipo de ação.

Na primeira possibilidade, a noção de feitiçaria seria radicalmente ampliada,

pois no candomblé a própria ação (seu efeito, sua força e sua forma) seria uma

macumba. Na segunda, a definição de feitiçaria seria também ampliada, mas

moderadamente, pois ela abarcaria o envio malevolente de exus, eguns ou caboclos

e a captura que os santos, exus, caboclos, eguns e humanos promoveriam entre si.

Na terceira, distinguiríamos estas duas ações, tipologizando-as: a primeira seria

bruxaria e a segunda, influência divina ou religiosa.

Felizmente, leituras subsequentes4 e a própria organização do meu caderno

de campo me distanciaram de uma escolha difícil como esta. Percebi então que não

poderia (e não queria) falar somente de feitiçaria. Mesmo que, na região, falar de

candomblé normalmente implicasse em aventar a bruxaria, a experiência do dia a

dia em terreiros mostrou que, se a vivência feiticeira era de fato presente, ela estava

profundamente vinculada com a relação íntima travada por humanos e seus

caboclos. Foi por isso que, desde o primeiro mês de pesquisa, assumi que, se era

assim vivido, meu tema de pesquisa incorporaria também essa relação. E durante

muito tempo foi como eu abordei as pessoas e os caboclos, procurando saber como

se relacionavam entre si. Nunca deixei de fazer questões mais diretas sobre a

feitiçaria, porém, elas eram sempre permeadas por outras mais genéricas sobre os

caboclos e sobre o candomblé. Eu não precisaria portanto definir exatamente o que

é a macumba, eu poderia caminhar à vontade entre os diferentes modos de ação no

4
Ver por exemplo Ochoa (2004: 19 e 25-71), quando propõe uma “proliferação de definições” em sua
etnografia sobre o Palo, um culto afro-cubano geralmente associado à bruxaria, associação esta que
os interlocutores de Ochoa não rejeitaram.
9

candomblé, respeitando mas não exatamente definindo seus diferentes sentidos

enquanto eles próprios se movimentavam.

Mas, como juntar, na análise, temas vividos de forma profundamente

imbricada, sem no entanto dissolvê-los excessivamente? A solução, intuitiva algum

tempo atrás, e exaustivamente reelaborada ao longo da escrita, foi tomar duas

ações – captura e composição – como ponto de partida para outras combinações e

conjugações. Logo de início, chamei de captura por composição o ato de enviar um

espírito para enfeitiçar uma pessoa – e assim adicionei um conceito meu aos

conceitos nativos de feitiçaria (como por exemplo “macumba”, “queimar”, “fazer

porcaria” ou “fazer coisa”, “embruxar”). Mas esse ato não se encerrou em si

mesmo, inúmeras outras possibilidades de captura e composição se sucederam, e

elas, por sua vez, conjugaram a relação íntima que um médium (ou carnal) trava

com seus espíritos. Gosto muito da ideia de que, nesta tese, as ações são os

‘personagens’ e, por isso, elas próprias aparecem em movimento, tanto através de

suas combinações (capítulo 2) como de sua maior ou menor intensidade (capítulo

3), conforme veremos melhor abaixo.

Zuela-se:

Candomblé não é folia,


Folia candomblé é.

Abordar a feitiçaria adicionando as ideias de captura e composição amainou

parte de minhas dúvidas e ansiedade sobre como abordar um tema tão delicado.

Mas várias outras ainda teriam de ser enfrentadas.

Nessa região da Bahia, como em outras regiões do Brasil, o candomblé tem

(novamente) sofrido imenso preconceito devido à redução de suas práticas à

feitiçaria. Aqueles que assumem sua proximidade com o culto têm igualmente sido

hostilizados, das mais variadas maneiras. Por isso, julguei muito importante pensar

exatamente no que poderia ser dito para não identificar as pessoas que aparecem

neste texto, sobretudo aquelas cujo reconhecimento se tornaria mais fácil, dada a
10

minha aproximação com elas durante a pesquisa. Essa preocupação acabou por

orientar grandemente o formato desse texto, assunto do qual falarei mais

detalhadamente depois de apresentar um trecho da entrevista com duas meias-

irmãs, em que se dimensiona o preconceito contra o candomblé na região, além de

duas formas diferentes de lidar com ele.

Etnógrafa: - Quem da sua família que era do candomblé? Era e é, já falecido

e vivo?

Estelinha: - “Pra trabalhar no santo, eu não me lembro de pessoa nenhuma,

agora pra se envolver como a gente, fazer trabalho, muita gente.”

Lígia: - “A nossa família tá quase toda pro candomblé. A nossa família, as

raízes, acho que até pela cor mesmo, é tudo da senzala mesmo, do candomblé

mesmo (risos). Os ancestrais lá de... Já vem mesmo.., lá de bichinho mesmo, do

candomblé. Até minha mãe entrou na... Ninguém quer se aceitar, na verdade, aí

eles entram pra igreja, pra religião. Não é, minha irmã?”

Estelinha: - “É.”

Etnógrafa: - Pra protestante que você diz? Ou pra católica?

Lígia: - “Aham. Pra se distanciar, foi ser crente.”

Estelinha: - “Faleceu com trinta anos de evangelho. Quando ela passou pra

igreja, eu tinha doze anos.”

Etnógrafa: - Mas você nunca passou? Ou passou também?

Estelinha: - “Passei. Quando era adolescente, com doze anos, eu fui com ela.

Com treze anos, eu saí e não quis mais. E sempre eles falam que eu posso ir pra mil

igrejas que eu não fico, porque eles não se afastam de mim. Emerson [um pai-de-

santo] nunca falou, mas o caboclo de Clemilson, o boiadeiro de Clemilson, todo dia

quando eu tava lá, que ele passava, ele me dizia.”

Lígia: - “Porque você tinha o pensamento de entrar na Batista.”

Estelinha: - “Tinha mesmo – e ainda tenho! Agora que não, depois do

acontecido. Minha família ou é crente ou é do candomblé. Minha mãe fez trabalho

e tudo na casa de candomblé. Nessa época, ela não me levava porque eu era
11

pequena, eu não frequentava porque eu tinha medo. Ela ia numa mulher que

faleceu, morava ali na Serra. Aí quando ela desistiu do candomblé, ela passou pra

igreja. Já meu pai era católico, não se envolvia com nada. Nunca lembro que meu

pai fosse numa casa de candomblé, ele mesmo tinha as orações dele (risos)”.

Lígia: - “As orações dele também já devem ter vindo da geração também de

candomblé”.

Estelinha: - “Eu nunca quis aprender.”

Etnógrafa: - Ele tinha as orações próprias dele, que eram só dele?

Estelinha: - “Siiim, ele sabia de um bocado de oração de defesa. Isso diz a

minha mãe, eu mesma não sei, porque eu nunca quis aprender. Minha mãe nunca

deixou a gente aprender, dizia que eram muito pesadas, as orações, e a gente era

criança. Depois quando ele separou da minha mãe, eu tava com sete anos.”

Etnógrafa: - Aí você nunca mais viu seu pai?

Estelinha: - “Vi, mas ele tinha outra família, a gente não tinha aproximação,

só: - ‘Oi, pai. Bença, pai’. E pra lá. Eu não ia na casa da mulher dele não. [silêncio]

Acho que aqui tem mais crente do que católico.”

Lígia: - “Não sei se é aqui, não sei se era só eu, às vezes as pessoas têm até

um pouco de preconceito de dizer que é do candomblé. Quer dizer, eu mesma

tinha. Que me cuidava no candomblé, eu tinha até um pouco de preconceito de me

assumir.”

Etnógrafa: - Que o pessoal olha feio?

Lígia: - “Pensa logo que é macumba, essas coisas, eu acho mais ou menos

assim...”

Estelinha: - “Fala assim: - ‘É só satanás. Que Deus não deixou... Que ali

ninguém cura ninguém. Que o diabo não cura diabo’. Essa semana chegou uma

crente aqui. Eu faço uns serviços pra ela há mais de vinte anos...”

Lígia: - “... que aqui em Taquara a maioria é bem crente, não é, minha irmã?”

Estelinha: - “... aí, pronto, eu acho que Tamira não teve o que falar mais, tava

sentada bem aí, eu olhando pra ela, e ela falando que não tem santo, não tem

caboclo, que tudo é diabo, tudo é não sei o quê. Eu olhando pra ela, não tive
12

resposta.”

Lígia: - “Não é todo mundo que eu digo, que eu conto essas coisas. No meu

trabalho ninguém sabe.”

Estelinha: - “Já eu conto sim. Conto a Tamira sim, porque ela fica falando...”

Lígia: - “No meu trabalho, não conto, não falo.”

Etnógrafa: - Pra se proteger?

Lígia: - “Não. Porque eu evito, é minha vida particular, uns acreditam,

outros não. Minha patroa é da igreja católica...”

Estelinha: - “Mas a vó dela era mãe-de-santo!”

Lígia: - “É, finada Lurdes do Remanso. Mas minha patroa não acredita

nessas coisas não. Eu evito, só comento na minha família e com algumas pessoas.

Nem meu namorado sabe.”

Estelinha: - “Incrível! Nem o namorado!”

Lígia: - “Não sabe de nada! Aconteceu essa bagaceira toda comigo, eu me

apeguei ao ex pra poder me ajudar e deixar meu namorado fora dessas coisas.”

Etnógrafa: - Porque você não queria ficar pedindo a ele?

Lígia: - “Não. Eu não queria envolver ele mesmo, acho que é de mim

mesmo, coisa minha, porque do preconceito que existe. Preconceito mesmo que

ainda existe!”

Estelinha: - “Às vezes a pessoa fala que candomblé é uma religião, mas nem

todo mundo leva como se fosse uma religião.”

Lígia: - “Não tem gente que fala [mal] dos crente? Não tem gente que fala

[mal] dos católicos? Acho que mais gente fala [mal] do candomblé.”

Etnógrafa: - Eu sinto assim também.

Lígia: - “Você não sente assim também?”

Etnógrafa: - Sinto.

Lígia: - “Então é isso.”

Etnógrafa: - E com ela, a senhora fala do candomblé, com essa sua cliente?

Estelinha: - “Falo.”

Lígia: - “Minha irmã é mais aberta.”


13

Estelinha: - “Ela fica aqui falando um bocado de bestagem da igreja. Eu disse

a ela: - ‘Uma porra!’”

Lígia: - “Minha irmã é mais aberta porque ela veste saia. Minha irmã vai pro

candomblé, quer dizer, ia. Já eu não!”

Estelinha: - “Eu frequentei a casa de Osvaldino mais de 15 anos vestindo

saia. Eu vestia saia direto, em todas as festas. Ave Maria, numa época dessa, eu

tava aqui doida de tudo, passando cabelo, me arrumando, já tinha feito essa saia há

muito tempo.”

Lígia: - “Pra de noite tá linda, maravilhosa, pra dançar. Pois é, Paula, eu

escondo mesmo. Vou fazer igual à minha outra irmã: - ‘Eu nego!’ (risos)

Perguntou? Eu nego! Falar da minha vida particular assim?!”

Como Lígia, inúmeras outras pessoas não queriam que sua presença no

candomblé se tornasse pública. Até mesmo pessoas que o frequentavam há quase

duas décadas, faziam-no na surdina, pois não queriam se ver envolvidas em

acusações de macumba. Embalavam suas roupas brancas e apetrechos em

inúmeras sacolas, e mentiam para os vizinhos que a viagem era de visita a um

parente distante, algo em parte verdadeiro quando se tinha a intenção de

frequentar a festa de dois a três dias de seu pai ou mãe-de-santo que morava numa

cidade vizinha. Mas como Estelinha, houve também quem assumisse sua prática e,

dentre estes, estão aqueles que expressaram o desejo de ver seus nomes em meu

trabalho. Contudo, se eu lhes revelasse o nome, correria o risco de tornar

demasiadamente óbvio o círculo particular de relações de cada um deles e, por

contiguidade, ‘denunciar’ as pessoas que não queriam se ver vinculadas ao

candomblé. Com essa preocupação em mente, optei por modificar o nome de todos

os envolvidos ao longo do texto, ou seja, se uma mesma pessoa aparecer, por

exemplo, em dois momentos diferentes da narração, ela receberá duas alcunhas, e


14

nenhuma delas guardará qualquer similaridade com seu nome verdadeiro5. Fui

menos cuidadosa em assuntos que não trariam problemas aos envolvidos, mas em

casos de feitiço ou outras questões delicadas, mudei ou omiti inúmeras

qualificações que facilitassem o reconhecimento.

O leitor perceberá que nem por isso este trabalho é menos descritivo. Isso foi

possível porque, salvo uma ou outra exceção, os casos de feitiçaria aqui em relevo

não foram contados publicamente (o que não os torna menos coletivos, como

veremos melhor no capítulo 2). Por isso, aqueles que não tiveram à época nenhuma

ideia de que, por exemplo, uma macumba fora feita por pessoas próximas a mim,

dificilmente terão certeza de que a história aqui contada se refere a tal ou tal

pessoa. Já para as poucas pessoas presentes nesta macumba (não tão) hipotética,

elas estavam ali porque de alguma forma participaram do feito. Revelar a

identidade dos envolvidos seria uma espécie de confissão que, se feita, mesmo

assim não retiraria a opção dos implicados de negar ou dissimular sua

participação, não só porque nomes, lugares e detalhes figuram trocados, mas

também porque sua história aparecerá fragmentada ao longo do texto, não

havendo como saber que o que se apresenta como a fortuna de duas, três ou quatro

pessoas é na verdade a de uma só. Além disso, acompanhei e descrevi vários casos

de pessoas que moravam em povoados ou cidades relativamente distantes dos

terreiros onde as encontrei, portanto as suas histórias, da forma como serão

contadas, dificilmente lhes serão associadas. Por fim, para me assegurar de que

assim o seria, li alguns trechos para alguns dos mais diretamente envolvidos e,

juntos, tomamos ainda maior cuidado que a narração não lhes prejudicasse. Por

todo esse zelo, é bem provável que o leitor sinta falta de ‘personagens’ fixas e ache

a princípio confuso seguir o fio narrativo. Sei que isso pode tornar a leitura difícil

em certos momentos, mas não pude fazer de outro modo. Acredito que, uma vez

ciente de tal problema – e dos motivos que o suscitaram –, o leitor possa fixar sua

atenção nos momentos narrativos em que se busca a história de uma ação, sabendo

5
A título de curiosidade, um cálculo aproximado resultou na utilização de cerca de 190 nomes para
15

que cada personagem é importante para aquela história em particular, e

(infelizmente) não ao longo de todo o texto.

De certa maneira, foi isso o que fiz também com o lugar onde se deu a

pesquisa. Ao longo do texto, se ouvirá: ‘nesta região da Bahia’, ‘no interior da

Bahia’, e apenas às vezes o nome de alguns dos povoados, bairros ou cidades onde

se deu a pesquisa (Bom Jardim, Serra, Samburá, Taquara etc.) que, claro, são nomes

fictícios. A intenção não foi ampliar as experiências relatadas para além do

território pesquisado, mas, obviamente, a de dificultar sua identificação. Sei,

contudo, que este não será exatamente um segredo, pelo menos não no meio

antropológico. Meu desejo, no entanto, não é exatamente escondê-los, mas evitar a

vinculação público-acadêmica das cidades e povoados estudados à feitiçaria,

principalmente porque eles não têm originalmente tal reputação. Penso que as

alusões regionais não se fizeram tão presentes também porque não me centrei em

descrever as práticas do ‘povo’ de uma região. Como disse, essa etnografia enfoca

certas práticas, e não tem a pretensão de refletir sobre a totalidade da minha

experiência de pesquisa nesses lugares.

Caboclos e humanos zuelam, em


sotaque:

Machado que corta o pau


derruba no camarim.
Quem não canta, quem não dança,
O que veio fazer aqui?
Comida que a cobra a come,
Deus me livre d'eu comer,
Cachorro que morde o dono,
Também pode me morder,
Caboclo, tu olha aê,
Caboclo, tu olha lá,
A língua que fala muito,
O corpo é que vai pagar.

A fim de se tornarem anônimos, não só histórias vividas ou observadas em

campo serão fragmentadas, mas minha própria trajetória de pesquisa não poderá

quase 90 pessoas. Claro, uma pessoa pode ter recebido dez nomes e outra, apenas um.
16

ser apresentada em uma perspectiva linear do tempo. Para ser mais precisa, vez ou

outra vou me referir diretamente a ela ao longo do texto, e de certa forma minha

inserção estará evidente quando tomo a palavra nos diálogos expostos e, depois,

em minhas escolhas narrativas, contudo, estou ciente de que ela não será

suficientemente analisada ou exposta. Julgo importante, porém, que pelo menos

algumas outras observações genéricas sobre o trabalho de campo e o processo de

escrita etnográfica sejam acrescentadas às que mencionei anteriormente.

A pesquisa de campo se deu entre os meses de março de 2008 a fevereiro de

2010, com breves interrupções. Durante esse tempo, visitei inúmeras casas de

candomblé em vários povoados da região. Em quatro delas, houve um crescendo:

primeiro, as festas públicas e entrevistas, depois o dia a dia, incluindo-se aí os

trabalhos mais restritos e a observação de uma ou outra consulta que, sem minha

presença, seriam particulares6. Dali também se seguiram relações de amizade com

filhos-de-santo ou clientes, cujas casas passei a frequentar. Somadas a tais relações,

iniciadas pela pesquisa de campo, vieram outras. Vizinhos, conhecidos de festas,

do restaurante, da feira, amigos de amigos, em suma, amizades e conversas feitas

em momentos do dia a dia de quem compartilhava o ambiente de uma mesma

cidade. Passei então a ouvir e conviver com pessoas que não partilhavam

necessariamente da esfera do candomblé e, por mais que houvesse uma noção de

que eu era uma pesquisadora, mesmo entre aqueles em que isso era muito evidente

– pela feitura de entrevista, por exemplo –, a percepção de que eu fazia ali um

trabalho não esteve o tempo todo presente. Era constante o meu esforço em

anunciar que eu estava fazendo uma pesquisa, mas tenho para mim que a imersão

característica do trabalho de campo antropológico, seja ele mais ou menos

participante, sempre carrega consigo uma inserção ‘amplificada’ e ‘incontrolável’.

Foi assim que rapidamente me conferiram múltiplos atributos e papéis (amiga,

6
Várias das entrevistas foram gravadas no início do trabalho de campo, porém, ao final deste,
realizei uma série delas com um roteiro de perguntas ligeiramente mais formalizado. No total, foram
aproximadamente 26 horas gravadas em áudio (cerca de 17 entrevistas), 20 horas de gravações em
vídeo (cerca de 10 toques de candomblé, além de outros eventos), inúmeras fotografias e 670 páginas
de caderno de campo, escritas no computador ao longo dos dois anos de pesquisa de campo.
17

irmã-de-santo, vítima de olhado, de inveja e de espírito de morto, gringa, branca,

mãe-de-santo, fotógrafa, filha, funcionária estatal, aliada, inimiga em potencial),

cujo mapeamento eu nunca consegui esmiuçar com precisão. E foi também assim

que, aos poucos, com os meses se passando, eu mesma deixei de apenas ouvir –

ação que no entanto nunca deixou de ser a tônica da minha participação em campo

– e passei a emitir enunciados (a entrevista acima é um exemplo disso, quando digo

algo como ‘eu também sinto que aqui o preconceito contra o candomblé é maior do

que contra a igreja católica ou protestante’).

Durante a escrita da etnografia, manter esse movimento entre

distanciamento (escuta e observação) e aproximação (enunciado) me pareceu

perfeitamente adequado. Mas como fazê-lo ao longo de todo o texto?

Logo de início, ao criar conceitos (captura, composição, povoamento etc.),

que são adições minhas aos conceitos nativos de feitiçaria e incorporação, tomei

imenso cuidado para evitar a armadilha de transformar esta etnografia em um

trabalho de ilustração de tais ideias. Aliás, desejou-se exatamente o contrário. Os

conceitos criados prestaram-se mais à organização – e propulsão – do movimento

entre descrição e explanação do que à demonstração de sua abrangência7. Por isso,

quis colocá-los, eles próprios, em movimento (por exemplo, a composição dará

lugar à decomposição, ambos se incluirão naquilo que se chamará de povoamento

e, depois, no capítulo 3, eles deixarão o primeiro plano para ter sua existência

submetida a maior ou menor intensidade de sua força). Trata-se, sem dúvida, de

um trabalho experimental. Aliás, desejou-se mesmo colocar em relevo seu caráter

experimental, não só apresentando ostensivamente os fios conceituais que o

animaram, mas os animando ao longo do próprio texto. Talvez por isso, ainda que

alternadas, teoria e descrição são imanentes uma à outra: os conceitos guiarão a

7
Latour (2003: 65; 67), em tom de provocação, observa que “para cada cem livros de comentários,
argumentos, glosas, há apenas um de descrição”. “Descrever”, continua o autor, “prestar atenção ao
estado concreto das coisas, achar a narrativa (...) adequada para uma situação dada – eu sempre
achei isso incrivelmente exigente”. Mas isso não leva à recusa de qualquer explanação, ao contrário,
se “sua explanação [for] relevante”, “você [estará] adicionando um novo agente à descrição”.
18

descrição que por sua vez os combinará e modulará8.

A criação de tal textura narrativa surgiu de inspirações geradas durante o

próprio trabalho de campo, mas ela foi de certa forma ‘amplificada’ por aquilo que

de início era uma restrição (isto é, a ‘perda’ narrativa provocada pelo cuidado em

não identificar as pessoas com quem tive maior contato). A fragmentação dos casos

vividos ou ouvidos em campo prestou-se ao seu propósito original, o de despistar

o reconhecimento dos envolvidos, mas permitiu também, espero, gerar o que

chamo de densidade da vivência feiticeira, ou, em outras palavras, o efeito do

vivido em campo, onde não se tinha como saber exatamente o que estava por vir

(um mistério, ressalte-se, próprio do engenho ou narração bruxos, pois que

pontuados por omissões, cortes, silêncios, enredos, insinuações, enfeites, assombros

e surpresas). Pretendeu-se então criar uma cinética narrativa, em que as mais

variadas histórias se sucedem numa espécie de montagem, cuja conexão não se dá

pela partilha de um contexto primordial, que eu teria imobilizado no início da

narração, mas justamente pela singularidade e irredutibilidade de cada uma delas.

Ainda a fim de criar tal densidade, dificilmente se verá a frase ‘acredita-se

que um feitiço tem o poder de atingir seu alvo num período que varia de 3 a 15

dias’, ou mesmo ‘considera-se enfeitiçar o ato de cortar ou prometer um frango a

uma entidade malévola, pedindo que ela faça mal àquele que se deseja vitimar’.

Optou-se, ao contrário, por propriamente enunciar o que se ouviu ou participou,

por exemplo, ‘Junior fez um feitiço: ele cortou um frango pedindo, em voz alta, que

seu Exu atingisse sua ex-namorada que recentemente o traíra’, ou então, ‘Junior

sabia que o feitiço de seu pai-de-santo era veloz, por isso esperava ver o resultado

almejado em não mais do que dois dias’. Não se trata aqui de uma suposta

supressão da diferença entre o discurso nativo e o antropológico, mas de construir,

8
Ao adicionar conceitos meus aos conceitos nativos de bruxaria, a intenção não foi despojar a
feitiçaria de suas características mais violentas ou ameaçadoras, ‘domesticando-a’. Objetivou-se, ao
contrário, ampliar a própria imaginação teórica à qual esta pesquisa desde o início se propôs.
Quando chamei a feitiçaria de ‘captura por composição’, por exemplo, quis me valer de uma noção
igualmente complexa e, portanto, nem mais nem menos palatável que a própria bruxaria. Tratar-se-
á, aqui, do que Viveiros de Castro (2002b: 119) chamou de “a comum alteração dos discursos em
jogo”, em busca não do “consenso”, mas do “conceito”.
19

mais uma vez, um efeito similar ao vivido durante o trabalho de campo, quando o

antropólogo lida mais profusamente com asserções e dúvidas do que com alusões a

asserções e dúvidas.

Ainda visando a criação de tal densidade, o texto foi pontuado com zuelas,

como já se pôde perceber três ou quatro vezes acima. Retirei-as de seu contexto

original – por exemplo, um toque de candomblé –, mas, em parte, continuo

utilizando-as como as ouvi em campo. Também aqui elas alegram, provocam,

viram sotaques, piadas, transformam-se em provérbios. Também aqui elas saúdam

os caboclos, envaidecem-nos, despedem-se deles, mudam de assunto. Também

aqui elas embelezam. Sempre que aparecem, as zuelas evidenciam que meu

próprio texto é uma criação particular de conexões e, mais do que isso, ele tenta se

valer – sempre insuficientemente – da explosão nativa de associações, tornando

aparente o quanto muito foge à compreensão.

Também pelos mesmos motivos, o leitor notará que o formato diálogo será

amplamente utilizado. Neste caso, porém, não houve deliberação, pelo menos não

inicialmente. As pessoas me contavam suas histórias em forma de diálogo e,

mesmo antes de eu percebê-lo, também me vali deles na escrita do caderno de

campo. Na hora de finalmente redigir o presente texto, me pareceu bastante

adequado mantê-los, pois, especialmente no tocante aos matizes feiticeiros, penso

que o diálogo realça, ou ao menos visibiliza, o caráter ativo de quem olha ao falar.

Ele enfatiza certa triangulação narrativa, quando então o texto etnográfico

contempla pessoas olhando outras, ou falando de outras, o que deixará claro,

espero, a intenção de abraçar, não um ponto de vista privilegiado, mas a natureza

translúcida de toda e qualquer experiência (sobre isso, ver Favret-Saada, 1977: 46-

47). Mesmo nos momentos em que não me vali de diálogos, procurei gerar

‘alguma’ oralidade. Digo ‘alguma’ porque não se buscou transcrições literais das

falas humanas e espirituais, mas sim, transformá-las ligeiramente, somente até o

ponto em que a escrita pudesse, com seus modos particulares de funcionamento,

participar da fugacidade original que lhe deu existência. Buscou-se, em suma, uma

abordagem menos diagramática da vivência feiticeira. Ao invés de categorizar os


20

tipos de bruxaria ou influência mágica, definindo-os logo no começo do texto (‘olho

grande é...’, ‘feitiço, ao contrário, é...’), quis me deixar inspirar pelos modos nativos

de vivência bruxa, sempre em busca do que chamei de densidade feiticeira.

Julgo necessário mencionar que ter continuado a morar na mesma região

onde fiz meu trabalho de campo também teve sua importância no modo como

minha escrita foi afetada. Não quero fazer disso uma regra, e de fato estou longe de

acreditar que uma etnografia deva ser escrita no ambiente em que foi

primeiramente gerada. Posso apenas afirmar que, em mim, isso provocou algo

bastante estimulante. Escrevendo ali, eu observava diariamente que meu texto não

se referia apenas a histórias, mas a vidas cujo desenrolar eu ainda acompanhava

(ainda que raramente as registrasse em meu caderno de campo). O fato de narrar o

passado de vidas que se agitavam à minha frente tornou obsessiva a procura de

uma forma narrativa adequada para visibilizar o seu movimento.

Se insisto na presentificação de momentos – que neste trabalho não é

sinônimo do ‘famigerado’ presente etnográfico, mas sim da tentativa de vivificação

do passado –, é também porque no candomblé as histórias contadas são emanações

das potências que as suscitaram. Isso ficou evidente quando, não sem nervosismo,

mostrei para dois de meus interlocutores passagens do presente texto em que eles

apareciam com proeminência. Ambos pediram que eu mesma lesse, em voz alta. A

apreensão inicial deu lugar a uma incrível fruição que nem em minhas estimativas

mais otimistas suspeitaria um dia acontecer. Um deles riu bastante e disse ter

adorado. Disse que “parecia história em quadrinho”, “com nome trocado, nem

parece que sou eu”, “tô gostando de lembrar disso, nem lembrava”. Perguntei se

deveria tirar uma expressão em específico que poderia denunciá-lo, mas disse que

não, que aquele detalhe dava “comoção à história”. Sobre as zuelas que

pontilhavam o texto, referindo-se aos assuntos que as precediam ou as sucederiam,

ouvi, não sem orgulho: - “Tá aprendendo o candomblé”.

É verdade que a vida dessas duas pessoas – e de tantas outras – virou

história. Mas uma história fugidia, que nos escapa, a mim e a ‘eles’. Pois, além de

fruto de uma relação específica, aquela iniciada pela pesquisa que finalmente as
21

colocou no papel, a escrita não cessou seu movimento. Por um lado, o riso de

ambos ao desdenhar seu passado assemelha-se justamente a uma das reações

possíveis aos casos de feitiçaria, como veremos abaixo, no capítulo 3. Por outro,

quando se estranhou a pessoa que hoje não se é mais, puxou-se novas palavras

para os caboclos e outros feitiços. Ali, em meio à história, levantaram-se outras

potências. Aquelas histórias não se tornaram representação – e boa parte de meu

esforço descritivo terá por objetivo evidenciar que, no candomblé, a representação

é também ‘isca’ –, as zuelas, as fotos e as histórias, todas elas não são apenas

emanações, mas chamados da potência da qual se fala (ou se invoca).

Claro, não sou ingênua a ponto de achar que estas boas reações seriam as

únicas imagináveis. É possível, aliás, que estas mesmas pessoas um dia mudem de

opinião, e passem a se ver mal ‘representadas’ neste texto. Mas, ainda assim, a

experiência inicial de leitura me fez sentir que, em meio a tanta exaltação das

mazelas da ‘representação’ antropológica, uma etnografia tem a possibilidade de

suscitar o prazer e a alegria daqueles com os quais se busca interlocução.

Caboclo Boiadeiro zuela:

Ê boiada boa, boiada de São Vicente!


Eu comprei uma boiada,
Me venderam um boi doente,
Meu boi morreu,
Não vou ficar no prejuízo,
Se passar outra boiada,
Comprarei um boi bonito.

A ideia de que a noção de pessoa varia ao longo dos agrupamentos

humanos subjaz à presente reflexão. No entanto, ainda que o primeiro e segundo

capítulos tentem justamente delinear a singularidade do que seria a noção de

pessoa nos atos de feitiçaria, não se preocupou aqui em confrontá-la com uma

noção de pessoa que deliberadamente chamaria de ‘ocidental’. O confronto ‘nós’ /

‘eles’ move a presente etnografia, mas ele não se fará evidente. Não há outro

motivo para tanto senão a falta de tempo hábil.


22

Infelizmente também pelo mesmo motivo, não pude apreciar com mais

atenção o ‘desenvolvimento’ cronológico da bibliografia pertinente, ainda que aqui

e ali faça uma apreciação mais condensada de seu conteúdo. Quando finalmente

me resignei que não seria capaz de tratar a bibliografia como gostaria, elegi

prioridades. Dentre os trabalhos antropológicos, privilegiei etnografias (pois

julguei importante contar com universos discursivos semelhantes ao do presente

texto), e dentre os trabalhos etnográficos, privilegiei aqueles sobre feitiçaria no

Brasil, que não são muitos, e aqueles sobre candomblé versando mais diretamente

sobre os temas aqui desenvolvidos 9. Em alguns momentos, essas etnografias viram

seus argumentos abreviados e de certa maneira destacados do fluxo mais complexo

de ideias que inicialmente desenvolveram, mas em geral procurei retirar-lhes

trechos que permitiram complementar ou matizar o meu próprio trabalho de

campo, conferindo-lhe maior abrangência ou, ao contrário, singularidade.

Gostaria de ressaltar que o presente texto é profundamente devedor destes e

de outros trabalhos, etnográficos ou não10 – e se tem alguma singularidade, ela se

deve justamente à partilha de seus problemas, de suas angústias mais recentes e,

espero, de suas alegrias. Dentre eles, julgo importante destacar a tentativa de

vincular, ou melhor, reformular os termos da relação entre sociologia e cosmologia

(incluindo-se suas inúmeras variações: prática e representação, parentesco e magia,

9
Dentre os trabalhos etnográficos sobre feitiçaria no Brasil, encontrei disponíveis os de Araújo (2007),
Bahia (2000), Barros (2000), Cardoso (2004), Hayes (2004), Leal (1992), Maggie (1992), Maluf (1993) e
Porto (2007). Note-se, porém, que somente quatro deles foram elaborados a partir de trabalho de
campo sobre religiões afro-brasileiras. E dentre as etnografias sobre religiões afro-brasileiras que
desenvolvem temas vinculados aos aqui abordados, destacam-se os de Birman (1995), Boyer-Araújo
(1993), Capone (2004), Carvalho (1990), Iriart (1998), Goldman (1984), Maggie (2001), Medeiros
(2006), Opipari (2004), Pacheco (2000), Segato (2000), Serra (1995) e Wafer (1991). Incluí nessa lista de
prioridades duas etnografias clássicas sobre feitiçaria fora do Brasil – a de Evans-Pritchard (1978) e
Favret-Saada (1977) –, que serão cuidadosamente analisadas no capítulo 3, e também a etnografia de
Ochoa (2004) sobre Palo Monte, um culto afro-cubano ligado das mais variadas maneiras à bruxaria,
à que me referirei várias vezes durante esta tese. Tal prioridade evidentemente não é uma norma,
portanto trabalhos igualmente inspiradores serão mencionados ao longo do texto.
10
Dentre os autores cujas obras influenciaram minhas escolhas narrativas, mas que em sua maioria
aparecerão apenas de forma implícita, gostaria de ressaltar, à maneira de agradecimento, Anjos
(2006), Bastide (1955, 1973), Cerqueira (2010), Clastres (1995), Coutinho (1999), Deleuze (1992), Fichte
(1987), Gell (1998), Hale (1997), Hermant (2004), Kundera (1986), Landes (2002), Latour (2002 e 2004),
Moraes (2002 e 2006), Nathan (2001), Serra (2001), Strathern (1990, 1999, 2006), Viveiros de Castro
(2002a e 2004) e Wagner (1967).
23

política e religião, objeto e conceito, matéria e espírito, descrição e teoria etc.), de

forma que um termo não seja reduzido ao outro11. Tal questão será trabalhada

especialmente nos segundo e terceiro capítulos. No capítulo 2, os movimentos de

captura e composição serão relacionados às questões suscitadas pelo que se

chamou, na antropologia, de relações de gênero. E no capítulo 3, a relação entre

filhos e pais – sejam estes caboclos ou humanos – modulará a intensidade de tais

ações. Ainda que bastante diferentes, cada um deles é uma variação de um tema

mais geral, o de como pessoas e espíritos se impõem uns aos outros; tema, aliás,

que é o motor também do restante deste capítulo, uma breve condensação

etnográfico-conceitual que fornecerá o campo semântico para o desenvolvimento

do que virá a seguir.

Radiação

- “Ele não anda sozinho” – disse Mauro sobre o rapaz que, se não fosse pela

interferência de seus amigos, romperia descalço os vinte e seis quilômetros daquele

asfalto já castigado pelo sol de verão baiano. Mauro se referia aos “diabos” que

normalmente acompanhavam Valdir, mas que naquela tarde resolveram mostrar-

lhe a força de sua inconstância, levando-o a rompantes cada vez mais fortes e

violentos até prostrá-lo ao chão, desacordado.

Tranca-Rua era um desses diabos. Naquele dia, o Exu dirigira as ações de

Valdir, mas uma pessoa desavisada não conseguiria percebê-lo. Eu mesma não

percebi, e inicialmente demorei a entender como Valdir, que normalmente não

incorporava, poderia estar tão irradiado por seu Exu a ponto de suas ações serem

na verdade as dele. Em sua família, ao contrário, todos já sabiam que aquele

11
Esta foi uma das problemáticas importantes para as discussões do grupo Abaeté, um grupo
coordenado pelos professores Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman, do qual o presente
trabalho faz parte e pelo qual fui imensamente inspirada.
24

comportamento não era o normal do rapaz, usualmente pacato e brincalhão. Há

muito eles conheciam aquela forma de “influência”, e por isso o irmão de Valdir

me explicou: - “Não toma totalmente, mas radeia, alguém com o coração puro tenta

ajudar, ele traça toda a boniteza. Você pensa que é humano, porque ele responde

bem, mas na verdade já era o Tranca-Rua dele pensando em fazer desgraça.”

No caso de Valdir, não se aventou feitiço, pelo menos não naquele momento.

Já no caso de Jana, ao contrário, a bruxaria era certa. Uma padilha a “irradiava”,

mas não era a sua Padilha12; aquela era uma exu despachada para virar a vida de

Jana pelo avesso, missão que até então a exu cumpria com sucesso. A mãe do seu

recém namorado foi quem primeiro me contou o desespero da moça:

- “O pai dela é homem de duas mulheres. A outra fez coisa pra ela, bruxaria

bem feita. A mãe tá com uma pele de sapo; pra filha, tudo desanda. Jana foi em

Romualdo tem oito dias, se deu com os banhos e quer fazer a limpeza. Primeiro vai

ser na filha, depois na mãe. O Caboclo de Romualdo disse pra elas não contarem ao

pai, só contarem depois de fazer o trabalho das duas”.

Não era a primeira vez que mãe e filha procuravam a ajuda de uma casa de

candomblé, a sogra acrescentou, “a própria tia carnal levou Jana numa curadeira

que cobriu a garota de sangue. A mãe, pensando que era pra ajudar, não disse

nada. Mas logo depois do trabalho, tudo foi pra trás. Foi pra ajudar?! Hunf, era pra

acabar de atrapalhar!”

Porque a macumba fora bem feita, e porque ali se preparou uma padilha

especialmente perversa para fazer mal à moça, sua limpeza seria feita por Tranca-

12
Optou-se por usar a letra maiúscula (por exemplo, Padilha ou Sete-Flecha) para denotar que ali se
tratava do caboclo de alguém. A letra minúscula – padilha, sete-flecha – referiu-se no caso à padilhas
e sete-flechas em geral. O mesmo foi feito para ogum e Ogum, tranca-rua e Tranca-Rua, e assim
sucessivamente. Em alguns momentos, porém, tive de optar por uma ou outra grafia, já que os dois
significados se faziam presentes. Em outros, para evitar confusão, acabei escolhendo uma só
marcação ao longo de toda tese: esse foi o caso de Tempo, cuja grafia em minúsculo iria dificultar a
leitura, e seu Martim, que é considerado um espírito sempre individualizado. Note-se que quando
utilizei ‘o Caboclo’ ou ‘o Exu’, com a inicial em maiúsculo, foi porque não quis revelar os nomes
desses espíritos a fim de evitar a identificação de seus médiuns.
25

Rua. Ele era o indicado, anunciou Romualdo, para lidar com a padilha. A decisão

do pai-de-santo pareceu levar em conta também o humor do Exu naqueles dias. Ele

andava excepcionalmente compreensivo e, no dia trabalho, não foi diferente. Às

duas mulheres, tensas e fragilizadas, Tranca-Rua dedicou grande parte daquela

tarde, acalmando-as, dando-lhes força. Foi somente depois de algumas horas de

conversas particulares que ele fez um sinal para a equede iniciar o ritual.

Cantando, a equede levou najés cheias de farofa de dendê e cachaça para

“despachar a rua”. Depois, Jana foi convidada a pisar sobre um pano branco

ladeado por quase duas dezenas de pratos de legumes e grãos. O Exu então puxou

zuelas que invocavam e adulavam a padilha e, ao mesmo tempo, reafirmavam a

existência de um feitiço.

- “O negócio foi bem empacotado” – ele disse – “E essa padilha é teimosa! Se

quiser acompanhar a menina, pode acompanhar! Mas do meu jeito, não do jeito

que veio! Quer comida? Vou te dar. Quer bebida? Vou te dar. Na minha aldeia,

dois exus são iguais! Na minha aldeia, dois exus são iguais!”

O trabalho de Jana não foi muito diferente dos outros tantos que eu já vira e

ainda veria no terreiro de Romualdo. Primeiro, preocupou-se em alimentar os exus

com farofa de dendê, feijão preto, charutos e cigarros. Depois, ofereceu-se a puba

para os eguns. Finalmente, proveu-se os caboclos e orixás de Jana com uma boa

quantidade de legumes e grãos (entre eles, cebola roxa, repolho, chuchu, tomates,

pimentão, pepino, cenoura com mel, arroz, milho branco, pipoca, acaçá, feijão-

fradinho). Todos esses ingredientes eram passados no corpo da moça,

principalmente em seus braços e pernas. Tranca-Rua então rasgou um pano branco

pedindo paz e iluminação para os caminhos de Jana, para os seus dias e suas

noites. Rasgou panos vermelhos e pretos, e quebrou as velas que antes iluminavam

cada um dos pratos, pedindo que os inimigos de Jana se vissem com o mesmo

destino roto daqueles objetos.

Quando Tranca-Rua queimou as pólvoras pretas e brancas, formando um


26

círculo de fogo em volta da garota, todos ali presentes já sabíamos que o trabalho

estava praticamente finalizado. Porém, a aflição de Jana parecia não querer deixá-

la; seu corpo inteiro tremia– sua boca, suas pernas, seus braços –, ela parecia ainda

mais abalada do que antes. Tranca-Rua lhe fez várias impostações de mão, sempre

em número de três, puxando seus braços e abaixando seus ombros.

Aparentemente, contudo, elas não tinham poder algum para mudar a disposição

da moça.

Aquela tremedeira podia ser o início do que seria a primeira vez que a

padilha a tomaria totalmente. Mas não, Jana não “virou” naquele dia nem nos

outros que se seguiram. Aquela tremedeira era sim a manifestação da padilha, mas

de sua radiação: ela, a exu, teimava em permanecer perigosamente próxima de

Jana, a despeito de todos os esforços de Tranca-Rua, que então zuelou e se pôs a

dançar, exaltado:

Bombogira jamukangê

Aiá ôrerê

Bombogira jamukongê

Aiá ôrerê

Sai daqui feiticeiro atrasado,

Vai pra casa de quem te mandou!

Eu tirei ebó, eu tirei!

Eu mandei pras estradas, eu mandei!

Eu vou pisando de folhinha em folhinha,

De pedrinha em pedrinha,

Desse fino chão,

Eu vou chamar ogum da ronda (ê atraídor, atraídor)

Pra livrar da traição.


27

- “Ela parou de tremer” – gritou Tranca-Rua, feliz – “Tem gente que não

quer ver e, quando vê, vê atrasado ou vê demais”.

- “Mas ela vai se curar..., agora que se cuidou, vai se curar” – amenizou a

sogra de Jana, que acrescentou – “essa hora, a outra deve estar tremendo e não sabe

o porquê. Vai receber o que mandou! A gente vai ter notícia!”

- “Tem maldade no mundo, existe...” – comentou Tranca-Rua, com um

sorriso maroto.

Jana foi conduzida à casa ao lado do barracão para tomar um banho de

ervas. Enquanto isso, a equede varria toda a profusão de legumes, velas e grãos

para o interior do pano branco, onde minutos antes Jana ainda estava de pé,

tremendo. Amarrando suas pontas, ela pediu a mim e a Clélio que despachássemos

o “ebó” em uma encruzilhada macho. - “Tranca-Rua disse que Clélio vai saber

quando chegar no lugar pra despachar”, ela completou.

A pedido de Clélio, tomamos o carro rumo à Taquara.

- “Pare aqui”, ele me pediu.

Mas eu não via ali cruzamento algum.

- “Encruzilhada macho é sem saída, é uma reta na estrada”, ele me explicou.

Clélio cruzou a rua, depositou o ebó na beira da estrada e proferiu algumas

palavras que não pude ouvir. Isso não demorou mais do que três minutos e, sem

olhar para trás, voltamos rapidamente ao terreiro. Para nos prevenir das más

influências que rondavam o ebó, a equede “despachou” nossas cabeças com água,

não sem antes ouvirmos uma provocação de Tranca-Rua:

- “Despacha se não vai sonhar com diabo e dizer que foi Tranca-Rua que

mandou!”

§
28

Alguns dias depois, encontrei Edmundo, o namorado de Jana. - “Já vi

resultado”, ele disse, feliz, “Jana parece outra pessoa”. Como fora Edmundo que

indicou Romualdo para a família de Jana, a rapidez da ação do pai-de-santo não

poderia tê-lo deixado mais satisfeito.

- “A mãe acredita e a filha também”, Edmundo continuou, “já rodaram a

região atrás de pai-de-santo, mas eles fazem pra dois ou três trabalhos. A pessoa

tem que pagar três vezes!”, Edmundo fez um gesto com a mão indicando que estes

pais-de-santo queriam “comer o dinheiro” de seus clientes. “Só em Rio Bonito, ela

gastou três mil reais! E, nessas outras casas, eles não diziam quem era, só diziam

que era uma mulher, uma mulher que fez. Já em Romualdo, ele disse na hora: - ‘Foi

sua tia carnal’. E os outros pais-de-santo não queriam mandar de volta! Mas agora

ela vai ter o que mandou! Eu falei pra mãe dela: - ‘Vocês vão em alguém de

confiança, mas não quero que a senhora apenas confie em mim, vá lá e veja o

trabalho’. Antes, quando eu chegava perto de Jana, o hálito dela tremia. Eu dizia a

ela: - ‘Você não tem nada normal dentro de você’. Quer dizer, a coisa que tava

dentro dela não queria que eu chegasse perto. Eu disse a ela: - ‘Você não agia por

conta própria, mas por influência. Você conhecia uma pessoa, você dava toda

atenção, a forma como você respondia, você pegava amor pela pessoa e a pessoa só

queria conhecer seu corpo. Com poucos dias de trabalho, você já viu como as

pessoas te olham diferente?!’ Foi ela chegar na casa de Romualdo e começar a

tremer. É o que Romualdo disse: - ‘Da porta pra dentro, coisa ruim não passa’. E

Jana, durante o trabalho, tinha vontade de correr. Era também a coisa que tava

dentro dela, era a padilha que a tia mandou pra ela se prostituir não querendo ser

retirada. A própria tia carnal?! Foi por inveja, porque a tia tá lá abandonada pelo

marido e vê uma sobrinha professora, o sobrinho com faculdade. Quando Jana foi

em Rio Bonito, a mãe não sabia bem o que ela ia fazer, qual trabalho seria, mas

como era a tia que tava levando, autorizou. Até banho de sangue a tia deu na

sobrinha! Depois, ela se abalou de Rio Bonito pra cá pra fazer porcaria na casa da

irmã! Não passou muito tempo, Jana passou a desacatar os pais, tudo piorou. A

própria mãe-de-santo que a tia frequenta em Rio Bonito disse que a tia copia as
29

coisas sem autorização. Ela fez o patuá pra Jana, a gente levou em Romualdo, ele

quebrou e a gente viu que dentro dele tinha pemba! A tia carnal?!”

Edmundo nada disse sobre a hipótese de a amante do pai de Jana também

ter sido a responsável pelo feitiço. E eu, talvez por receio de minha própria

pergunta reativar a suspeita, nada perguntei.

Caboclo zuela:

No pé do lírio,
A roseira brota,
Se me tratarem bem,
Nessa aldeia, ainda volto!

O trabalho de limpeza, Romualdo me explicou dias mais tarde, não era

exatamente para expulsar a padilha do corpo de Jana. Ao contrário, na aldeia de

Romualdo, a padilha fora bem tratada. Ali lhe prometeram ainda mais comida e

regalos se ela agora se postasse ao lado de Jana. Tranca-Rua mesmo lhe dissera: se a

padilha quisesse “acompanhar a menina”, ela poderia, mas não do jeito que veio,

cheia de más intenções. Caso ela se deixasse persuadir, ali, no domínio do Exu, ela

teria seu poder reconhecido; ali, ela seria bem recompensada. Romualdo já

declarara anteriormente, quando suspeitou de novos exus rondando seu terreiro: -

“Se um outro pai-de-santo me mandar um exu, eu cuido bem deles pra eles aqui

ficarem”. Com a padilha não foi diferente. Se o pai-de-santo conseguisse bem

impressioná-la, ela passaria a compor seu exército de armas-espíritos, quando

então se voltaria contra a feiticeira de Jana, aquela que pela primeira vez a atraíra.

Em casos semelhantes ao de Jana, quando se chegou ao diagnóstico de

bruxaria, o problema não era exatamente a convivência entre exus e humanos (e,

claro, tampouco a existência dos primeiros), mas o excesso de proximidade entre

um e outro. Como a padilha queria capturá-la, tomando-a por inteiro, Romualdo

procedeu à retirada, mas uma retirada bem específica, que visava aumentar o
30

intervalo entre humano e espírito13, e não exatamente afastá-los em definitivo.

Depois do trabalho, a padilha comeria através dos ebós, e não mais “através de

Jana”, explicou Romualdo. Se a exu resolvesse acompanhá-la, com a convivência,

haveria espaço para ela se tornar a Padilha de Jana, quando então ambas se veriam

capturadas. Pouco a pouco, vindo mais à terra, a Padilha “experimentaria” Jana

que, por sua vez, aprenderia a receber a “a força de um caboclo no seu corpo”.

Ambas lidariam com as suas diferentes forças.

Em Cachoeira, Recôncavo Baiano, Iriart (1998) também se deparou com uma

relação semelhante entre exus e humanos. A descrição abaixo poderia ser

facilmente estendida para situações que vivi em campo:

O combate que se estabelece entre a mãe ou pai-de-santo e o Exu, quando


na ‘possessão selvagem’, é sempre um combate em que os primeiros tentam
conter o enorme poder de vida e destruição que o espírito libera de forma
incontrolável. O Exu, por sua vez, não se deixa dominar facilmente e sua
atitude diante de seus opositores é sempre de desafio e irreverência. Ele
ameaça de morte a mãe-de-santo, diz palavrões e se comporta de modo
violento com os ogãs que tentam dominá-lo. (...) [O] afrontamento que se
segue entre a mãe-de-santo e o Exu não é um conflito entre o bem e o mal.
Mais frequentemente, a mãe-de-santo não tenta simplesmente expulsar o
Exu do corpo da pessoa que ele tomou em possessão, ela tenta antes
negociar com ele e conquistar seu respeito, demonstrando força espiritual
para finalmente orientar o enorme poder do Exu em favor da pessoa que ele
possui (Iriart, 1998: 147, grifos meus)

Diferentemente da região onde estudei, nos terreiros que Iriart frequentou a

incorporação por um exu não é algo corriqueiro. Não há festas especialmente

destinadas a eles, e normalmente sua chegada à terra é seguida de sua

“suspensão”. Mesmo assim, quando um exu resolve assolar um humano, pode-se

querer desviar sua força em benefício daquele que antes era sua vítima. Ali

também, a natureza “perturbada” de um espírito pode vir a impulsionar o ser.

Quando chamei de captura por composição o ato de enviar um espírito para

13
Tomo emprestado a ideia de distância intervalar de Edgar Barbosa Neto (2009: 17), colega de
doutorado que pesquisa as “casas de religião” em Pelotas, Rio Grande do Sul. Enquanto em sua
experiência de campo “os espíritos que apresentam uma menor distância intervalar relativamente
aos humanos parecem ser os mais adequados à prática da feitiçaria”, na minha, a feitiçaria é a
31

enfeitiçar outra pessoa, desejei enfatizar exatamente tal irresolução. A captura não

termina em si mesma, ela compõe e, neste ato, há muito que escapa ao controle do

feiticeiro. Aliás, controle não é mesmo um bom termo para descrever essa forma

especial de captura. Quando um feiticeiro envia um espírito para fazer mal a seu

desafeto, ele faz uma aliança com um ser temperamental, cuja força é maior do que

a sua própria. Ao chegar a seu alvo, o espírito passa a habitar o corpo do

enfeitiçado – ato que chamei de composição –, e, uma vez ali, nunca se sabe quais

outras alianças se seguirão14.

Passando pela rua da macumba,


Como vai? Como passou, sinhá dona?
Que Deus lhe dê boa noite, sinhá dona!

Como bem observou Goldman (1984: 175), a pessoa humana no candomblé

se apresenta de modo “folheado”, ela é uma “síntese complexa, resultante da

coexistência de uma série de componentes materiais e imateriais — o corpo (ara), o

Ori15, os Orixás, o Erê, o Egum, o Exu”. Mas, embora todo humano seja

“necessariamente composto por estes elementos, sua existência permanece em

estado, digamos, virtual, até o momento em que são ‘fixados’ pelos ritos de
iniciação e de confirmação”. Tal ‘afixação’ foi chamada por Opipari (2004: 328-329)

chamou de “dupla captura”, isto é, a aliança íntima entre um “adepto” e seu santo

que faz de ambos um “bloco de devir”, quando então um humano entra num devir

santo e o santo entra num “devir-outra coisa” (idem: 328)16. Nos terreiros onde

pesquisei, entretanto, além desses ‘elementos virtuais’, outros não antes presentes

podem também ser aos poucos ‘fixados’ – e a feitiçaria é normalmente uma das

própria diminuição dessa distância.


14
Pesquisando a Umbanda em Brasília, Serra (2001: 243-247) ressalta a importância da negociação
com os “espíritos obsessores” que, aos poucos, com a convivência com os humanos, deixam de sê-lo.
Além disso, o autor vincula tal negociação ao fato, recorrente na literatura etnográfica, de o poder de
um curador frequentemente advir do “mesmo espírito que lhe causou a aflição”.
15
Ori, no candomblé estudado por Goldman (1984: 125), é a porção central da cabeça.
16
“Dupla captura” é um conceito de Deleuze & Guattari, elaborado em Mille Plateaux: Capitalisme et
schizophrénie, que Opipari criativamente utilizou para descrever a ‘incorporação’ em sua etnografia
sobre um terreiro de candomblé de São Paulo.
32

ações mais comuns pelas quais novas camadas são adicionadas 17. Ainda que nem

Opipari nem Goldman tenham utilizado esses conceitos para descrever a feitiçaria

no candomblé, penso que eles seriam igualmente úteis para tanto. Pois, também na

bruxaria, trata-se de uma captura de mão dupla. Jana por exemplo se viu em um

devir exu, mas a padilha também se viu transformada pelo ser onde ela

temporariamente passou a habitar. Capturando Jana, a padilha entrou numa

relação e, através dela, abriu-se a possibilidade de um dia a exu se transformar na

Padilha de Jana18.

Se isto acontecesse, porém, o ‘bloco’ de devir não borraria a diferença entre

humanos e espíritos. Aliás, pelo próprio nome do trabalho de Jana – um trabalho

de limpeza –, percebe-se que estava em jogo um desejo pela diferença. Ali,

procurou-se uma separação, e não só dos espíritos enviados por bruxaria. Eles não

eram os únicos seres perigosos. Os próprios Caboclos, Exus e Orixás de Jana –

aqueles que já a acompanhavam antes – também eram seres demandantes e

volúveis, eles também requeriam atenção. Por isso, no trabalho de limpeza, a

padilha feiticeira não foi a única bem tratada. Todo o “povo” de Jana se satisfez.

Com alimentos, bebidas, velas e afagos, Romualdo tentou persuadir os Caboclos,

Exus e Orixás de Jana a se manterem próximos dela, mas não tão próximos a ponto

de a capturarem totalmente.

Romualdo queria-os fortes, mas não demasiadamente. Pois, se Jana

experimentasse o excesso de sua radiação, quando de alguma forma se diminuiria

o espaço entre humano e espíritos, os estragos seriam potencialmente tão fortes

quanto a perturbação feiticeira causada pela padilha. Com efeito, um “santo pode

ser pior que feitiço perturbado”, foi o que advertiu a mãe-de-santo ao menino de

17
Diferentemente dos terreiros estudados por Goldman e Opipari, nos terreiros em que pesquisei, as
múltiplas camadas dos seres humanos são mais comumente ‘fixadas’ e transformadas pela
convivência diária entre humanos e espíritos do que por ritos iniciatórios.
18
Em sua pesquisa sobre uma associação de mulheres lésbicas, que eram também filhas-de-santo,
Medeiros (2006: 32) menciona um trecho em que uma Padilha descreve justamente a realização de tal
possibilidade: “Sabe, sa moça? Quando eu vim, não era pr’eu trabalhá com o meu cavalo não. Era
pra ser com a mãe dela, porque uma puta tinha me mandado pra ficá no caminho dela. Eu não fiz o
negócio. O meu cavalo era muito pequeno e eu fiquei esperando ela crescer pr’eu trabalhá com ela”.
33

dezoito anos que queria ver sua Oxum em terra, mas ainda especialmente dado às

irresponsabilidades da idade. Se ele não se comportasse, se não observasse as

prescrições e resguardos, sua Oxum poderia se voltar contra ele – e o castigo de

santo iria desde um contratempo passageiro à própria morte de seu “cavalo”, disse

a mãe-de-santo.

A imposição de um espírito feiticeiro – a maneira como influenciam –

guarda alguma semelhança com aquela realizada pelos outros seres que uma

pessoa já leva consigo, os seus próprios caboclos, exus e orixás – e é nisso que, a

meu ver, reside grande parte do que chamei acima de a batalha e a beleza no

candomblé do interior baiano. Ambos, espíritos feiticeiros e ‘familiares’, têm a

potência, ou o desejo intermitente, de galgar mais espaço nos seres humanos à que

se associam. Ambos desejam se espalhar19.

Dada esta propensão à disseminação, a relação entre um humano e suas

entidades é marcada também pela batalha. Por exemplo, há uma luta constante

para que a pomba-gira não deixe sua médium demasiadamente “danada”, para

que ela não beba enquanto estiver em seu corpo, para que a sereia não lhe roube o

desejo, para que os exus não levem seu cavalo para uma vida diária de orgia.

Quando o pai ou mãe-de-santo pede que o caboclo e o exu saiam do corpo de seu

carnal, é porque eles precisam aprender a se alimentar do ebó (e não através de seu

corpo); quando o pai-de-santo suspende o caboclo ou o santo novo que ainda não

dança direito é porque ele precisa aprender a vir à terra. Quando a mãe-de-santo

tira uma santa mulher “da frente” de um homem é porque deseja que ele se

fortaleça diante de sua mulher e da vida; quando ela tira um caboclo macho da

frente de uma mulher, é porque quer que eles deixem de atrapalhá-la a se fixar com

um marido. A separação entre humanos e espíritos se refere muito mais à

manutenção da batalha de separação do que à tentativa de um afastamento definitivo.

Trata-se, portanto, de uma batalha especial, cujas armas são também a

19
Halloy (2004: 614-16), estudando o xangô, um culto afro-brasileiro de Recife, também associa a
dinâmica das punições dos santos em seus cavalos (doenças, acidentes, mal-estar e até mesmo a
morte) com aquela da ação feiticeira.
34

sedução e a alimentação. E, para bem alimentá-los, é preciso conhecê-los; para

conhecê-los, é preciso lhes “dar passagem”, é preciso mantê-los em terra. A

separação é na realidade uma suspensão, sua natureza é intermitente.

Zuela-se:

De joelho, eu caio na água,


De joelho, eu vou ao fundo,
De joelho, eu vou vencer,
A batalha desse mundo.

Com a adição da ideia de captura por composição aos conceitos nativos de

bruxaria, desejo captar justamente as batalhas desses diferentes encontros, bruxos

ou não. Tenciona-se proceder ao que Deleuze e Guattari (1997: 42) chamaram de

“etologia”, isto é, o “estudo dos afetos de um corpo”, a descrição das “relações que

compõem um indivíduo, que o decompõem ou o modificam”, e as correspondentes

“intensidades que o afetam, aumentando ou diminuindo sua potência de agir”. “O

que pode um corpo?” – pergunta-se Espinosa e, com ele, Deleuze e Guattari (1997:

42).

‘O que pode um caboclo? O que pode um exu? O que pode um santo?’ –

pergunto-me, inspirada nos três autores. Pois,

não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto
é, quais são seus afectos, como eles podem ou não compor-se com outros
afectos, com os afectos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou ser
destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja
para compor com ele um corpo mais potente. (Deleuze & Guattari, 1997: 43).

Com efeito, mesmo um médium que já esmiuçou o comportamento de seus

exus, santos e caboclos – que já procedeu à etologia de seus encontros com os não-

humanos –, mesmo ele pode ser acometido pela ira das “influências” que o

compõem. O ser humano que é “radiado” no dia-a-dia por seus espíritos sabe bem

que seus encontros o fortalecem e enfraquecem. Por exemplo, a disposição para a

briga de Ronaldo é uma cisma vinda de seu Exu, que o mete em encrenca, mas o
35

afasta de situações ainda mais delicadas. O difícil trajeto para casa do beberrão

equilibrista é feito em segurança por seu Martim ou, ao contrário, interrompido

pelo mesmo seu Martim, o marinheiro bêbado que quis um dia ver seu cavalo na

sarjeta. Por diversos motivos, os espíritos diminuem a velocidade de seu cavalo,

“atrasando” sua vida. Por diversos motivos, eles aumentam-na, trazendo-lhe

“prosperidade”.

Nesta tese, grande parte do esforço descritivo se concentrará em percorrer e

visibilizar o ritmo volátil desses encontros e os meandros e intensidades de suas

composições e decomposições.

Ritmos

Num dia de sexta-feira, depois que a maioria dos presentes já tinha deixado

o terreiro, o pai-de-santo reclamou de uma radiação que persistia há mais de uma

semana.

- “Tome um banho” – sugeriu Cauã.

- “Não, tenho que deixar eles chegarem! Se não, como vou saber quem eles

são? Tenho que saber como é a radiação de cada um.”

Como o pai-de-santo sentia “ânsia de desmaio”, suspeitava serem espíritos

de morto (eguns). Mas sua metade esquerda estava pegando fogo, já a direita não,

estava mais fria. Possível então ser ogum xoroquê, ele especulou, um santo “metá-

metá” – metade santo, metade exu –, com o qual não tinha muita “experiência”. O

santo, se santo fosse, poderia sussurrar-lhe uma zuela que “viria na [sua] mente”.

Ou então ele poderia lhe dar gana de comer algo inusitado, aparecer em seus

sonhos, ou tomá-lo de vez em possessão. Assim, o pai saberia do que o santo

gostava, saberia também por que ele estava ali. Seria ele um espírito das águas?

Das matas? Das estradas? Do tempo? Do cemitério? Seria mandado por feitiço?
36

Seria ele do candomblé? Da umbanda? De que “ritmo” ele faria parte?

Para conhecê-los, é preciso experimentá-los. Quando o pai-de-santo recebeu

uma imagem de um velho negro que levava na mão direita um cajado, na mão

esquerda, um copo de bebida e, debaixo do braço, um litro de cachaça, ficou em

dúvida se realmente era o velho obaluaê, tal como o senhor que lhe deu a imagem

o dissera. Ora, afirmou o pai-de-santo, se aquela garrafa fosse de bebida alcoólica,

aquele senhor deveria ser um exu. Bem, se não fosse exu, certamente era o preto-

velho obaluaê, que trabalha junto aos exus e espíritos de morto (os chamados

eguns). Sem sabê-lo ao certo, o pai lhe ofereceu um cigarro aceso, colocando-o em

seus pés. Conversou com a imagem e finalmente, dias mais tarde, quando lhe

ofereceu a flor-do-velho, a estátua escorregou de sua mão, caiu e perdeu a cabeça.

A questão estava dirimida. O velho senhor negro era um exu, pois se fosse mesmo

o velho, aceitaria a flor oferecida: um tabuleiro de pipoca, decorado com lascas de

coco seco.

Naquele momento, o pai-de-santo descobrira que o velho era um exu, mas

não sabíamos ainda se ele pertencia à umbanda ou ao candomblé. Ainda não

conhecíamos a sua “linha”, o seu “ritmo” – aliás, eu mesma nunca o saberia, pois o

exu, depois de quebrado, não voltou a aparecer naquele terreiro. Seu sumiço não

apagou, contudo, a possibilidade de ele ser de um ou outro “ritmo” e, ainda mais

interessante, o fato de se desconhecer seu pertencimento a priori.

Como este exu, conheci seres que tinham o mesmo nome, mas não eram do

mesmo tipo. Ogum, por exemplo, “desce caboclo” em alguns terreiros da região, já

em outros, ele se manifesta como um orixá; em ambos os casos, no entanto, o ogum

pode ser do candomblé ou da umbanda, e um terreiro da região não

necessariamente será qualificado como umbanda ou candomblé se o ogum

pertencer a uma ou outra denominação. Aliás, durante minha pesquisa de campo,

poucas pessoas – contabilizando médiuns e pais-de-santo – consideraram ser uma

diferença de natureza aquela entre umbanda e candomblé. Na série de entrevistas

que fiz no final da pesquisa de campo, depois de perguntar algumas vezes ‘qual é a

diferença entre candomblé e umbanda’, Jaime, que esteve presente em várias delas,
37

observou: - “Sua pergunta não faz nenhum sentido! Se você perguntar qual é a

diferença entre umbanda e ijexá, umbanda e queto, queto e angola, aí sim, tem

diferença. Mas umbanda é candomblé!” Claro, houve quem discordasse de Jaime,

dizendo que candomblé era um conjunto de práticas e seres do qual a umbanda

estaria excluída, mas, neste texto, segui o uso das pessoas com quem mais convivi,

chamando portanto todas essas práticas de candomblé20.

Entre estas pessoas, era comum chamar os diferentes candomblés de

“ritmos”. Ou “linhas”. Ou “lendas”. Ou “águas”. Para Milvan, falar de ritmos fazia

todo o sentido, pois para ele, como ogã que é, a diferença entre umbanda e

candomblé era bem mais visível em seus toques e danças. A umbanda, ele dizia, é

um toque específico de atabaque, que se diferencia dos outros toques comuns na

região – chamados de cabula, angola, barravento, queto e ijexá –, mas a umbanda é

também um modo de tocar cada um desses ritmos. Além disso, ele continuou:

- “Ouvindo os CDs de toques de candomblé, cheguei a uma conclusão. Cada

orixá tem um toque, mas em cada casa é diferente, a casa que tem um Xangô de

frente vai tocar o toque de todos outros orixás de um jeito, outra com Iansã de

frente, vai tocar de outro.”

Para Milvan, o modo de tocar cada ritmo difere segundo as “influências” de

cada casa, isto é, segundo os tipos de seres que as habitam. E cada um destes

20
Ochoa (2004: 11) prefere chamar o conjunto de religiões afro-cubanas de práticas de “inspiração”
africana. O termo ‘inspiração’, diz o autor, evoca uma dobradiça entre passado e presente, pois, ao
mesmo tempo que reconhece suas dívidas, é logo “absorvido na corrente de suas criações pródigas e
inesperadas”. Goldman (2009), por sua vez, chama de religiões de matriz africana “um conjunto algo
heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram trazidas
pelos escravos africanos e que, ao longo de sua história, incorporaram, em maior ou menor grau,
elementos das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo
de origem européia”. Claro, o autor complementa, “esses elementos transformam-se à medida que
são combinados, e vice-versa”, mas ali persistiu a afirmação de “uma subjectividade de resistência
por parte dos negros”, além de, é claro, a abertura de “linhas de potencialidades” que ultrapassam as
fronteiras de qualquer grupo ou etnia (Guattari apud Goldman, 2009). No presente trabalho, a ligação
com a África não apareceu em primeiro plano, mas o candomblé – o termo nativo mais usual da
região para se referir ao conjunto dessas práticas – é de modo geral ali considerado uma religião que
não só se originou do continente africano, mas que continua sendo majoritariamente frequentada por
negros, ainda que não exclusivamente. Teria sido bastante interessante trilhar, no dia a dia, as
sempre variadas ligações do candomblé com a ‘África’, assim como os mais sutis eventos
envolvendo o que se chamou na antropologia de “relações raciais”, mas infelizmente, ainda que este
assunto apareça aqui e ali, é algo a que não pude me dedicar neste texto.
38

diferentes ritmos tem a possibilidade de ‘tocar’ os outros, quando então os

modifica. Por isso, Milvan não se surpreendeu quando o Exu lhe pediu para tocar

angola misturado com queto. O Exu queria se movimentar segundo um ritmo

particular, só seu, e ele o fez lindamente. Seus passos foram vigorosos, seus pulos

rápidos e marcados; sua dança, o Exu e o ogã comentaram, conjugou traços de suas

diferentes linhas, o que a tornou própria àquele Exu. Mas não se tratou exatamente

de uma mistura, pois no corpo do Exu os movimentos eram discerníveis, eles não

se dissolviam um no outro, ele próprio fez questão de afirmar21. Além de angola e

queto, ele tinha duas outras linhas, mas agora ele queria mais; faltavam-lhe apenas

três, o Exu dizia, para “ficar ainda mais assombrado”, mais perigoso. O Exu queria

“catar” outras linhas, capturar novos ritmos, expandir seus movimentos.

Em minha experiência de campo, a captura – ou ‘toque’ mútuo – de novos

ritmos não se restringiu aos espíritos, ela também foi parte da vivência das pessoas

próximas dos terreiros da região. E, claro, isso foi feito entre seres que inicialmente

não partilhavam um mesmo ritmo, como aconteceu com mãe Dita, quando um pai-

de-santo de outra cidade se mudou para o seu bairro:

- “Chegou um povo pra fazer um trabalho na casa dele e ele mandou me

chamar:

- ‘Ê, minha velha, me dá uma instrução aqui?’

- ‘Ó, meu filho, eu não posso. Apesar de que eu fiz aquela limpeza pra você,

tudo bem, mas jamais eu vou ir nas suas águas. Você tem que trabalhar pelo seu

ritmo, se você quiser acompanhar o meu ritmo, você tem que passar por todos os

trabalhos primeiro’.

- ‘Ah, eu não me acostumo, porque as coisas aqui [em Taquara] são

diferentes’.

- ‘Vá fazendo...’ Eu fui vendo ele fazendo aquele pinguinho de farofa num

21Em outras regiões do Brasil, aos centros que “cruzam” mais de uma linha se dá o nome de “linha
cruzada” (ver Anjos, 2006: 18, sobre as religiões afro-brasileiras em Porto Alegre - RS) ou “trançada”
(ver Serra, 2001: 221-222, para os terreiros de umbanda e quimbanda, em Brasília – DF). É, entretanto,
39

cantinho, aquele pinguinho de pirãozinho, apertadinho, pequenininho na mão. Eu

digo: - ‘Não era tudo com fartura?’ E ele me olhando.

Ele foi fazer o primeiro trabalho. Quando começou a tocar, o Boiadeiro dele

desceu – e Boiadeiro, quando chega, ele dá um grito –, eu animei: - ‘Marrombaxeto,

meu velho’. Tudo eu animo! Olha, essa menina, se ela manifestou aqui, eu animo!

Eu faço tudo, eu não bichinho não, tá entendendo? Eu digo: - ‘Baxeto, meu velho,

tende misericórdia’. E cada qual com seu cada qual, tudo bem, tudo em dia. Eu

disse a ele: - ‘Vem cá, meu filho, faça um acuru?’

- ‘Minha velha, o que é acuru? Lá na minha lenda não é esse ritmo’.

- ‘Então faça do seu ritmo’.

Eu sempre observando. E ele tava indo muito bem. Mas ele queria catar!

Acontece que eu não sou boba, eu não dei caminho. Os contrário. Cada hora eu

pedia uma coisa diferente, eu digo: - ‘Eu é que vou catar um pouco dele’. “

Apesar de Mãe Dita não gostar do “ritmo” do pai-de-santo, mesmo assim ela

resolveu “catar” alguns de seus “preparos”, palavra que no candomblé indica duas

ações diferentes. Pois, ao mesmo tempo em que se “prepara” um colar de contas,

deixando-o imerso em uma mistura de seiva, pembas brancas e folhas, a fim de

conferir prosperidade ao dono do colar sagrado, “prepara-se” também uma roupa

ou uma comida, de modo que virem um feitiço perigoso. Um pai-de-santo

preparado é um bom curador, mas é também um feiticeiro em potencial. Não é

estranho, portanto, que este “meio [seja] de muita guerra, muito susto” e que as

rixas e capturas façam parte de quem se preparou ao longo dos anos de

convivência com os caboclos. Porém, ainda que as batalhas entre diferentes pais-

de-santo, ou entre estes e seus filhos, sejam parte importante do presente texto, as

rixas relacionadas mais estreitamente aos “ritmos” de cada casa de candomblé não

aparecerão em destaque. Talvez a principal razão para tanto se deva à maneira

como desde o início ‘desenhei’ minha pesquisa. Já no projeto inicial, previa uma

uma designação incomum na região estudada.


40

menor preocupação em tomar os terreiros como unidades fechadas, privilegiando

ao contrário as intercapturas entre as diferentes casas, espíritos e pessoas. Por isso,

a própria trajetória do meu trabalho de campo enfatizou mais as relações íntimas

dos caboclos com as pessoas ligadas das mais variadas formas ao candomblé, e

menos o pertencimento de ambos a uma linha, água ou ritmo.

De início, porém, tal orientação pareceu um obstáculo. Ao procurar filhos-

de-santo ou pessoas relativamente próximas ao candomblé, elas afirmavam não

saber o suficiente sobre candomblé para conversar sobre o assunto, me remetendo

a algum zelador de santo ou a outras pessoas de seu entorno imediato.

Normalmente, porém, a conversa tomava outra direção, muito menos formal,

quando eu declarava estar mais interessada sobre suas relações particulares com os

caboclos e menos sobre a liturgia do candomblé. A partir de então, havia muitas

histórias – momentos íntimos nem sempre ligados aos terreiros de candomblé da

região. Pois, se estas pessoas afirmavam pouco saber sobre o idioma ritual do

terreiro que frequentam – ou deixaram de frequentar –, muito tinham a falar sobre

seus espíritos, que já haviam lhe mostrado técnicas rituais (procedimentos

terapêuticos ou de ataque), além de caprichos, vontades e raivas – “ritmos” às

vezes em franca discordância com as entidades ou liturgia preferidas de seu pai-de-

santo que, não obstante, muitas vezes se sentia à vontade para lidar com os seres de

seus filhos.

Não se parte, portanto, de uma abordagem quantitativa. Por exemplo, no

terreiro do finado Joãozinho da Goméia – um pai-de-santo baiano bastante famoso,

cujo terreiro foi etnografado por Binon-Cossard (1970: 60) –, era utilizado mel nos

ebós dedicados aos exus. Na região estudada, contudo, encontrei um exu que

detestava trabalhar com mel: ele só aceitava tocá-lo sob muita reclamação. Para ele,

um trabalho com mel é muito doce, pouco adequado às suas estimadas

assombrações. Não importa que a antropóloga perceba, através da leitura de outras

tantas etnografias, que muitos exus gostam e trabalham com mel. Importa ao

contrário que, para aquele exu, enquanto ele não experenciar a força de um trabalho

feito com mel, este será um índice de fraqueza.


41

Ê, meu irmão, ê irmão meu!


Cadê meu irmão, que não vem brincar mais eu?
Ê, Sete-Flecha, venha me valer!
Cadê meu irmão, que não vem brincar mais eu?

Assim como se acompanhou o uso nativo do termo candomblé para se

referir a todos os diferentes “ritmos” da região, também se fez o mesmo com os

termos “caboclo”, “santo”, “diabo”, “orixás”, “erês”. Cada uma dessas palavras

abrange uma infinidade de seres que, apesar de diferirem entre si, se distinguem

ainda mais dos outros que não partilham consigo o mesmo termo genérico de

referência. Porém, cada um deles ressoa potencialmente todos os outros. Explico-

me.

Um tranca-rua é um exu, uma padilha também o é. Porém, não só ambos

têm personalidades diferenciadas, mas também cada um deles abrange uma

infinidade de outros tranca-ruas e padilhas diferentes entre si. Há os tranca-ruas-

das-almas, aqueles que vivem perto do cemitério, que estão em paz com os eguns

(os espíritos de mortos). Há outros tranca-ruas, ao contrário, que não suportam

trabalhar com estes seres errantes e indiferenciados. Além disso, a manifestação de

um tranca-rua num ser humano torna, através da convivência e intercaptura, cada

um desses tranca-ruas ainda mais singular.

Ainda que se diferenciem, estes exus se parecem mais entre si do que a

orixás como ogum, a erês como Espadinha e a caboclos como sete-flecha. Enquanto

os exus são espíritos de pessoas que tiveram uma vida pouco regrada, ou então

uma morte violenta, os caboclos são normalmente espíritos de índios. Os preto-

velhos – raros na região estudada – são espíritos de negros escravos. Os erês são

espíritos de crianças. Para alguns, os orixás são espíritos de pessoas que viveram há

ainda muito mais tempo que os agora exus, caboclos e marujos. Eles são também

negros, ainda que possam “descer” brancos e alourados em suas singularizações

junto aos humanos.

Essas singularizações – ou, de certo ponto de vista, intercapturas – são


42

realizadas por inúmeros motivos. Alguns dos orixás – oxóssi e ossanha, por

exemplo – se aproximam dos caboclos por morarem no mesmo lugar, a floresta. Os

moradores das águas, por sua vez, aproximam-se entre si – é o caso de seu Martim,

o marinheiro bêbado, e das orixás oxum e iansã. Outros orixás se juntam aos exus

por afinidades de comportamento ou temperamento: é o caso de iansã – às vezes

vinculada às padilhas – ou de ogum e Tempo que, além de próximos dos exus,

podem ser aproximados entre si (na região, este é o caso de ogum xoroquê e

também de ogum da ronda; o primeiro, metade exu, metade ogum e o segundo,

ligado a Tempo). Outros se associam pela classe etária: ogum-menino e iansã-

menina têm características parecidas com os erês, e os velhos orixás nanã e obaluaê,

por sua vez, são normalmente ligados aos pretos e preta-velhas. Há santos ou

caboclos que são “metá-metá” – metade homem, metade mulher (oxumarê) ou

metade santo, metade diabo (o já citado ogum xoroquê).

Alguns desses encontros são mais passageiros. O Tranca-Rua de Júcio um

dia foi “irradiado por seu Martim”, deixando-o bêbado. A influência de seu Martim

– o marinheiro bêbado – se pareceu com aquela que ele exerceria em um ser

humano; sua presença não tomou totalmente o exu, mas uma pessoa versada soube

vê-la. Aliás, o próprio seu Martim é um ser especial, pois, apesar de egum, ele não é

um espírito de morto qualquer, indiferenciado. Ao contrário, ele possui um nome

próprio, seus gostos são conhecidos e, mais importante, cada seu Martim mantém

uma relação próxima com seu carnal. Além disso, estes marinheiros são

considerados especialmente próximos dos exus, pois partilham de sua irreverência,

farras e desapego22.

Os espíritos, além de habitarem os humanos, eles próprios se tocam.

22
Santos (1995: 126) cita algumas falas nativas sobre seu Martim, ‘recolhidas’ na Bahia, que
evidenciam o caráter ambíguo desses marujos: eles “têm três partes: responde Caboclo, exu, egum”
(...); “mas marujo não é caboclo, é uma pessoa que desencarnou e voltou para um certa missão” (...);
“ele diz que, quando quer, é caboclo. Ele pode ser exu quando ele quer ser. Vai até embaixo do mar,
bem mais do que Exu”. Apesar de Santos (1995: 126-131), Carneiro (1986: 75-76) e Iriart (1998: 233-
258) terem dedicado alguma atenção aos marinheiros bêbados, ainda está para ser feita uma
etnografia detalhada sobre essa interessante e bastante presente categoria de espíritos no candomblé
baiano.
43

Também um santo não anda sozinho. Ele tem um número sempre grande de exus,

caboclos e eguns, prontos para realizar suas vontades mais controversas. Pois, se na

região há quem diga – e há quem negue – que os santos não fariam feitiços nem

maldades, existe igualmente o entendimento de que eles têm à mão seu exército de

armas-espíritos que, de certa maneira – e sempre potencialmente –, acabam por

‘tocá-los’, modulando-os23.

São estas conjunções e radiações sucessivas que tornam complicada e, de

certa forma, sem sentido uma tentativa de classificar em conjuntos bem definidos

as características e histórias de cada tipo de ser. Ao longo de um caminho trilhado

em companhia, por meio de suas interpenetrações, os espíritos se diferenciam. As

suas radiações geram novas combinações, elas singularizam tudo o que ‘tocam’ –

humanos, outros espíritos, objetos, plantas, canções, o próprio tempo –, e tais

individualizações são ubíquas, incessantes. Porém, são estas mesmas radiações, ou

melhor, é a própria ação de irradiar que, a meu ver, torna importante o fato de todos

esses diferentes espíritos serem, na região estudada, ora chamados de caboclos, ora

de orixás (ou santos), ora de diabos.

Foi justamente este movimento, entre generalização e singularização, que

procurei acompanhar ao longo da tese. Ainda que, acima, eu tenha indicado

algumas direções bem genéricas sobre as características de cada um desses tipos de

espíritos, visando principalmente o melhor entendimento daqueles pouco

familiarizados com o candomblé, gostaria de ressaltar que muitas vezes, ao longo

da tese, tal distinção mais ‘fina’ não será tão importante. Claro, quando for preciso,

ela será feita, todavia, creio que a tradução da experiência de campo em texto se

complexifica bem mais quando ela se deixa acompanhar de tais incertezas, motor

mesmo da sensação de mistério e surpresa que partilho com tantos etnógrafos,

23
A seguinte citação de Santos (1995: 140-141), que estudou os caboclos no candomblé baiano, reforça
a ideia de que um santo ou caboclo é multiplamente composto: “Caboclo tem Exu. Se o caboclo não
tivesse Exu, ele não seria uma energia. A energia é o equilíbrio, é a direita, a esquerda, a frente, o
verso. Nem a própria energia é pura. Não existe pureza de religião, do cosmo, de energia, porque a
própria natureza não é pura. Aluviá é um Exu do Caboclo Apavenã. Os Exus de caboclo e de orixá
diferem, porque o caboclo é diferente do orixá. Em termos de energia é a mesma”.
44

mesmo depois de anos de convivência junto a terreiros de candomblé.

Caboclos e humanos zuelam:

Pisa, caboclo, aqui nessa aldeia,


Que o nosso sangue corre na veia,
Corre na veia do coração,
Pisa, caboclo, nós somos irmãos!

Um caboclo, que tem um ritmo e uma morada, ‘toca’ um ser humano de um

modo que lhe é singular; ele o balança de um jeito específico. Ele passa a habitá-lo,

assim como os diabos habitam o domínio dos santos. Quando os exus e eguns os

acompanham, quando não os deixam sozinhos, eles acabam por potencialmente

modular seu domínio. Quem está na frente agora? Quem se fez passar naquele

momento? Essas perguntas, cujas respostas se dão a ver a olhos bem apurados,

fazem de cada domínio um modo singular de tocar as outras “influências”.

Parafraseando Milvan – o ogã que versava acima sobre a diferença entre os ritmos

do candomblé –, quando um exu (ou um caboclo, ou um santo) toma a frente, ele

‘tocará’ todos os outros de um jeito bem particular.


Capítulo 2. Luta e Povoamento

Trabalho e Paixão

Quando eu e o ogã chegamos, Éder já estava no terreiro. Era a terceira vez

que o via. Na primeira, chorou aos pés de Ogum, queria tirar sua própria vida. Na

segunda, já refeito, animava-se com a possibilidade de um novo emprego. Na

terceira, encontrei sobre a mesa uma lista de ingredientes para sua obrigação:

2 pacotes de velas vermelhas

Pano TNT preto e pano TNT vermelho

1 galo e 1 galinha

2 champanhas

2 cervejas em garrafa

1 cachaça 61

2 pacotes de farinha

1 vidro de azeite

2 najés

377 reais

- “O problema dele é paixão”, me contou Juçara. - “A mulher deixou de falar

com ele. Ainda moram juntos, mas ela só lhe dirige a palavra pra brigar. Descuidou

dos filhos, é madrugadeira. Ele já pediu perdão a ela, mas a mulher não aceitou”.

Decerto a traiu, nós duas especulamos. - “Ele e Niel iam arriar a obrigação

na segunda, mas ele não mostrou os cornos!”, Juçara arrematou com uma risada,

gostando do próprio trocadilho.

Alguns dias mais tarde, porém, Éder voltou ao terreiro pedindo urgência a
46

Niel, o zelador que conhecera há apenas uma semana, e já chamava de pai. Os dois,

pai e filho, conversaram rapidamente, e também rapidamente apanharam as aves,

compraram o material e combinaram por fim o horário: voltaríamos à noite, por

volta das sete horas.

Chegamos às sete em ponto. A obrigação, contudo, só seria feita mais tarde,

em boa hora. Ficaríamos esperando durante quatro horas, tempo em que se falou

muito, e não só sobre caboclos e feitiços e segredos, mas também palavra à toa,

conversa relaxada. Essa espera, desproposital a princípio, depois me pareceu

bastante importante. Ali, o tempo era preenchido por pausas, chamados e

expectativas; ali, Éder era encorajado, seu ânimo e seus caboclos invocados. Ali, ele

lutaria para lidar com a força daqueles que por ora o enfraqueciam. Era, de todo

modo, um tempo necessário: - “Não é bom o corpo estar quente” numa obrigação,

asseverou Niel.

Marujos zuelam:

Veja lá, meu sogro,


Se eu não tenho razão?
Chego da roça cansado,
Topo fogo apagado,
Panela no chão emborcada,
Menino na rede chorando,
E mulher no samba sambando.

Antes do trabalho, o rapaz já vinha dando sinais de melhora. Deixara de

chorar pelos cantos; as ausências da mulher, que o enfureciam nos meses

anteriores, passaram a não mais incomodá-lo. Todavia, sua indiferença era

dissimulada, Éder cumpria um conselho de seu pai, pois, por ele, demonstraria à

mulher todo o seu empenho em querê-la de volta, logo ela que, depois de onze

anos de um “bom casamento”, tornara-se uma esposa lacônica e uma mãe relapsa.

- “Isso tudo é anormal: hoje mesmo ela saiu atormentada, mal falou comigo

e foi ao encontro da amiga. Vivíamos bem, nós dois trabalhamos, ela era boa

mulher, boa mãe, conversávamos para tudo, nos conhecemos bem novos. Tudo foi

muito rápido: teve uma briga, ela comeu meu juízo, disse muita coisa que me
47

ofendeu. Toquei nela. Nunca tinha tocado nela nem em mulher alguma. Me

arrependi na mesma hora, implorei desculpas, mas desde esse dia tudo mudou. Foi

algo preparado. Já a briga foi devido à amizade de uma amiga que ela acompanha

e da casa de quem não sai. Aceita comida e roupas emprestadas, veja você! Saem

juntas atrás de um rapaz de quem a amiguinha gosta. Onze anos não são onze dias!

Gasto o que for preciso” – disse Éder, ouvindo uma música romântica no seu

celular que anunciava sua paixão confessa.

O telefone havia custado seiscentos reais, valor mais alto que seu salário1.

Fora um presente para a esposa que ela lhe devolveu depois da briga, o que não

diminuía a satisfação de Éder em ter mostrado ali uma prova do quão fora um bom

marido.

- “Um dia não pude mais. Briguei com a amiga – essa amiguinha! – e fui

expulso da casa dela” – ele completou.

- E o trabalho? É pra amiga? – perguntei.

- “Hum, não sei, isso é pra meu pai responder.”

- “O trabalho é pra Padilha da sua mulher e pro seu Exu” – disse o pai.

- “E vai dar trabalho!” – replicou o filho – “Uma champanha já quebrou, as

duas caíram juntas, mas só uma quebrou!”

Éder então reclamou de um peso nas costas, momentos antes de se

ensimesmar e lacrimejar discretamente.

Eu ia passando,
A cobra me mordeu,
Chamei por meu pai,
Ele me socorreu.

O ogã anunciou que não faria o trabalho de corpo aberto. - “Faça a flor-do-

velho, meu filho”, disse o pai. Fez-se então a pipoca enquanto o pai-de-santo se

vestia com as roupas de seu Tranca-Rua: bata vermelha, calça preta, chumbetá

1
465 reais era o valor do salário mínimo à época.
48

vermelho e preto, adornado por pequenas caveiras. Abriu-se uma caixa de

charutos, comprou-se um maço de hollywood. Dois frangos – substitutos do galo e

da galinha – tiveram seus pés lavados. Éder escreveu seu nome sete vezes em um

papel e, logo abaixo, o nome de sua esposa, também sete vezes. Em outro papel,

repetiu o feito, invertendo a ordem. A farinha de mandioca foi misturada à cachaça

previamente preparada e ao azeite de dendê. Uma faca foi separada. Uma vela de

sete dias foi acesa na “creche”, a casa dos Exus, uma pequena casa de taipa atrás da

sede.

Tudo foi muito rápido. Chegamos à encruzilhada fêmea, em forma de ‘T’,

onde estacionei o carro de modo a esconder os preparativos dos olhos curiosos.

Depois dos panos vermelhos e pretos estendidos sobre o asfalto, eu e Éder

passamos a acender as velas. Éder estava especialmente tenso, mas não era só ele; o

próprio pai-de-santo pedia para que não nos demorássemos: - “Não pode dar mole

aqui!”.

Ele e o ogã despejaram a farinha em dois montes. No primeiro, espetaram os

charutos, no segundo, os cigarros. Enquanto Éder e eu os acendíamos, o ogã e o

pai-de-santo, radiados pela presença de Tranca-Rua, cortaram os frangos em cima

do najé. - “Não deixe eles fazerem barulho” – pediu o pai (não só para não chamar

atenção, mas também porque o grito da ave pode vir a prejudicar os presentes,

depois eu saberia). Pedidos foram feitos: - “Laruê, Exu! Receba! Padilha, receba!

Para que a menina de Éder volte e para que desgrace a vida da mulher que está lhe

atrapalhando. Tire ela do caminho e traga Vânia de volta. Receba, Exu! Traga força

pro seu filho. Laruê, Exu”. As bebidas foram dispostas em torno da obrigação, com

exceção de duas. Uma delas, a champanha, depois de três vezes batida levemente

contra o chão, foi atirada na perna do ‘T’, e a outra, uma cerveja, em direção à sua

cabeça, ambas se estilhaçando no asfalto. Mais um najé, que eu não vira antes, com

uma ave já cortada em seu interior, foi rapidamente arriado do lado oposto ao do

“preparo” inicial. Partimos sem demora.

- O que é? – eu perguntei, já no interior do carro, me referindo àquele prato


49

misterioso, cuja cor do sangue indicava ter sido preparado dias antes.

- “Obrigação do cara” – disse o ogã.

- Que cara?

O ogã sorriu de minha habitual curiosidade e manteve o segredo (não posso

dizer que sem apreensão pensei no rapaz que eu suspeitava ser alvo dessa

macumba sigilosa). Quando chegamos, nossos corpos foram fechados com a flor-

do-velho que, despejada em nossas cabeças e no capô do carro, findou a obrigação.

- Por que a rapidez? – perguntei. O pai-de-santo respondeu que não era

permitido arriar obrigação nas estradas. E o ogã: - “Ainda pergunta? Se tiver

coragem, vá lá ver o porquê!”

- “Agora os diabos estariam comendo e bebendo” – ele mesmo respondeu.

Eles sorveriam “a luz das velas e o cheiro de sangue, cachaça, tabaco e dendê”,

complementou o pai-de-santo.

O som foi desligado para que pudéssemos ouvi-los. Depois de alguns

minutos de espera, seguiram-se barulhos de cascos estralando. - “São eles”, disse o

pai-de-santo – nós os ouvíamos à distância de mais de dois quilômetros da

obrigação.

- “Quanto tempo, meu pai?” – perguntou Éder.

- “Agora você vai ter de esperar, é com eles. O que eu tinha de fazer, já fiz. E

você? Aprendeu alguma coisa?”

Eu não respondi, mas Éder prontamente se esquivou: - “Eu não aprendi

nada, não estava aqui, não vi nada.”

- “Esse é bom para levar quando eu for matar alguém!” – brincou o pai,

irradiado que estava por Tranca-Rua.

- “Você falou em fazer uma limpeza?” – perguntou Éder.

- “Deixa você desapertar. Não é pra agora.”

- “Quanto seria?”

- “Não dou o preço. Não sou eu que faço a limpeza. Sempre começo e nunca
50

termino. Se for Tranca-Rua, a Gira ou Gentil, eles metem a faca: na base de 770

reais. Mas Boiadeiro, Ogum, pode ser 300, 200, 100, depende do que vai precisar.”

Vida, Modelo e Forma

Foram muitos os homens, como Éder, que procuraram pais ou mães-de-

santo para resolver seus problemas, algo que a princípio me surpreendeu, pois

esperava contar um maior número de mulheres feiticeiras ou enfeitiçadas,

acostumada que estava com o protagonismo das mulheres nos trabalhos

etnográficos sobre feitiçaria no Brasil2. Dentre um total de 96 casos, 37 mulheres

ocuparam o lugar de feiticeiras contra 40 homens. E 47 mulheres foram enfeitiçadas

contra 45 homens. Todavia, em situações amorosas – aquelas em que ex-cônjuges,

namorados ou amantes estavam entre os feiticeiros e enfeitiçados –, foram de fato

as mulheres que mais ocuparam a posição de feiticeira (23 vezes contra 12, em um

total de 39 casos)3.

Não foram poucos os pesquisadores que, ao se depararem com uma maior

quantidade de mulheres feiticeiras e enfeitiçadas, vincularam a magia com o

2
Araújo (2007), Maluf (1993) e Leal (1992), todas elas antropólogas pesquisando no sul do Brasil, se
depararam com casos em que a acusação de bruxaria recai quase que exclusivamente sobre
mulheres, quando então a cura é também buscada entre mulheres benzedeiras e/ou mães-de-santo.
Hayes (2004: 356-364), ao tomar a feitiçaria como um de seus principais temas de pesquisa, estrutura
toda a sua tese em torno da biografia de uma mãe-de-santo. Porto (2007: 37) e Cardoso (2004: 140-
141) privilegiam o vínculo da feitiçaria com a socialidade negra, mas arriscaria afirmar que as
mulheres têm ali alguma proeminência. Apesar de Iriart (1998: 114) não tratar propriamente de
feitiçaria, a presença de mulheres no candomblé baiano é seu objeto de seu estudo, e tal presença se
estende também aos casos de bruxaria ali relatados. Maggie (2001) e Barros (2000) são exceções, pois
não há um corte tão claro entre a participação de homens e mulheres nos casos de macumba
apresentados. Note-se que tais observações não são fruto de nenhum estudo sistemático. De
qualquer maneira, não se almeja fundamentar a importância da discussão de gênero sobre uma
evidência estatística; bem ao contrário, objetiva-se movimentar-se por outras vias que não aquelas
que conferem relevância apenas aos temas tidos por majoritários, conforme veremos melhor adiante.
3
Ao contabilizar os casos de feitiçaria, foi-se fiel à palavra do narrador. Mesmo quando o feiticeiro
não foi consultado, ou até mesmo quando negou o feito, ainda assim o caso foi computado. O mesmo
se fez com enfeitiçados, isto é, quando feiticeiros reclamaram seu feitiço, e os enfeitiçados não foram
consultados, a palavra do narrador foi o que determinou essa contagem que, ressalte-se, não tem
51

parentesco, enfatizando evidentemente as relações de gênero. O modelo de análise

é bastante conhecido: a feitiçaria seria o contra-poder simbólico da esposa em uma

relação matrimonial desigual, cujo controle (poder real) é comumente atribuído ao

marido. Até onde sei, Hayes (2004) foi a autora que mais recentemente se debruçou

sobre essa questão, ao pesquisar sobre a feitiçaria a partir da biografia de uma mãe-

de-santo em Acari - RJ. Seu método de análise é clássico. O contexto desde o início

adquire proeminência sobre os casos de feitiçaria que nunca perdem sua posição

subordinada, pois as contradições e pontos de conflito do que se chamou de

contexto foram tidos justamente pela razão, se não da existência, ao menos da

continuidade e força dos atos mágicos e religiosos no mundo urbano, moderno e

contemporâneo. O contexto descrito por Hayes (2004: 29-30, 305, 339-344, 350-5,

420) é o da sociedade patriarcal. O marido, provedor da subsistência familiar, tem

relativa liberdade extra-conjugal; uma liberdade da qual ele parece desfrutar, mas

cujos caminhos é também obrigado a percorrer, pois deve demonstrar sua

virilidade e honra, exercendo também para esse fim um controle cuidadoso da

sexualidade das mulheres de sua casa. Tal controle estaria também disperso na

sociedade, seria mesmo uma norma moral: espera-se da mulher a fidelidade e todo

o cuidado com a lida dos filhos e da casa, de onde, aliás, ela deve pouco sair.

Vendo sua honra ofendida, as mulheres recorreriam a poderes “indiretos”, aqueles

da fofoca, feitiçaria ou “outros canais subterrâneos de ataque”, ao passo que os

homens se defenderiam através do enfrentamento face a face, às vezes culminando

em agressão física.

A descrição de Hayes se baseia em noções de modelo e determinância (da

maioria ou do majoritário4). O contexto descrito é, na verdade, um modelo em que

a recorrência de falas e situações cotidianas acaba por fornecer ao pesquisador um

pretensão alguma de fidedignidade estatística, nem tampouco de se tornar uma amostra sociológica.
4
“Majoritário é todo pensamento, toda posição que se estima ‘normal’ e que define qualquer
divergência como distanciamento da norma (...) O majoritário, aqui, não se refere (...)
[necessariamente] ao número. Um grupo pode ser minúsculo e majoritário, basta que os temas que
ele propõe sejam definidos como ‘de direito’ válidos para todos” (Stengers & Pignarre, 2005 : 145-6,
tomando emprestado os conceitos de majoritário e minoritário elaborados por Deleuze & Guattari).
52

mapa das atitudes de homens e mulheres, confundindo-se mesmo com normas

morais, estejam elas explícita ou inconscientemente presentes nas falas e atos

nativos. A pesquisadora estabilizou e homogeneizou um contexto em que há normas

hierárquica ou numericamente dominantes a outra normas. Exemplos como o de

Éder, um homem que faz um feitiço para ter de volta sua mulher, seriam exceção à

regra, uma exceção que até mesmo a confirmaria, pois o homem, mostrando

fragilidade, normalmente é – como de fato foi – caçoado por seus pares

(chamaram-no de “chapéu de touro” e troçaram de sua procura: “fazer macumba

pra pegar mulher?”, riram). Em seu polo inverso, o adultério feminino, pois que

transgressão à norma, longe de ter direito a uma existência analítica própria, torna-

se na descrição etnográfica um evento propício para visibilizar a própria norma.

Exatamente por esses motivos, mesmo os estudos que questionaram a

pertinência das normas e características da família patriarcal para “dar conta (...) do

conjunto da sociedade brasileira contemporânea, sem levar em consideração a

variabilidade regional”, também acabaram por produzir “blocos monolíticos”

(Marcelin, 1996: 28; 138-140) para caracterizar o que se chamou de parentesco das

classes populares brasileira. Seus traços principais (matrifocalidade, ausência de

pai, instabilidade conjugal, filhos ilegítimos, entre outros), por oposição ou adição

àqueles da família patriarcal, não só classificavam e simplificavam excessivamente

a multiplicidade das vivências familiares ali encontradas, mas também as

enquadravam em um enfoque etnocêntrico, já que a família nuclear seria a

referência de família completa, pois composta por relações de aliança, filiação e de

corresidência (idem: 28; 135-136)5.

Em ambos os casos, o gênero acabou por orientar a própria classificação: se

era a mulher a figura ascendente, a família seria do tipo matriarcal; se era o

homem, estaríamos diante de uma família patriarcal, e a feitiçaria, é claro, seria

produto dos problemas específicos de cada configuração6. O que parece um

5
Ver também Medeiros (2006: 110-111) para uma crítica da “pretensão totalizante de determinados
modelos analíticos” sobre relações de gênero.
6
A família-de-santo também não escapou da afluência classificatória. Enquanto Ruth Landes (2002) e
53

truísmo revela, no entanto, um modo excessivamente simplificado de organização

das relações de gênero, justo elas que são profusa e complexificamente elaboradas

nos mais diferentes grupos sociais7 (Strathern, 2006: 19-20).

Levanta homem,
Levanta mulher,
Levanta todo mundo,
Pra fazer o candomblé.

Em minha experiência de campo, mesmo na feitiçaria visando o amor, tema

expressivo da bruxaria – mas não o único, ressalte-se –, mesmo quando ali foram as

mulheres que preencheram a maior parte dos lugares de feiticeira e de enfeitiçada,

não foram poucos os homens que também os ocuparam. Não posso afirmar,

portanto, que os homens resolveram seus problemas diretamente, por meio de

brigas e discussões, enquanto as mulheres procuraram “meios indiretos”, através

da fofoca ou da magia. E isso por dois motivos. Em primeiro lugar, não só os

homens procuraram pais e mães-de-santo para ter seu cônjuge de volta, ou para se

vingar do amante de suas esposas, como foi bastante comum mulheres iniciarem

embates ‘diretos’, por meio da palavra ou da agressão física. Em segundo lugar, e

Leni Silverstein (1979: 145) viram na família-de-santo um verdadeiro espaço de poder e resistência
feminina em uma sociedade envolvente de tipo patriarcal, Patricia Birman (1995: 179-182) propõe
que, ali, os homens – os ogãs – e também os santos masculinos têm precedência sobre as mulheres – e
este também parece ser o argumento de Teixeira (1987 apud Iriart, 1998: 59), para quem a família-de-
santo reproduz as relações de gênero presentes na “sociedade machista brasileira”. Iriart (1998: 61),
por sua vez, não acha possível escolher entre uma proposição de resistência e outra, de
conformidade, pois o candomblé, afirma o autor, “reforça a ordem sociocultural ao mesmo tempo
que permite questioná-la”. Já Lima (2003b: 162-164) e Segato (2000: 54; 59) percebem, na família-de-
santo, tanto traços da família patriarcal como da matriarcal, sendo que, para além de uma
correspondência e classificação nítidas, Segato (2000: 78) argumenta que a construção de gênero
entre os membros do Xangô recifense articula, com complexidade, vários outros elementos.
7
Iriart (1998: 91) observa que o papel das mulheres não é oposto ao do homem. A mulher, diz o
autor, não é destituída de poder, mas seu poder é complementar e hierarquicamente inferior ao do
homem. De todo o modo, tanto para Iriart (1998: 86, nota 72; 98; 293-294) como para Hayes (2004: 113
e 342), a ascendência masculina, vislumbrada em seus trabalhos de pesquisa, é a mesma descrita pela
literatura antropológica sobre o poder do homem na família patriarcal – poder que, segundo os
autores, subsistiu os tempos coloniais. Medeiros (2006: 109-118), criticando abordagens semelhantes,
pergunta se “não se está tomando como certas/dadas (...) dicotomias que deveriam ser explicadas”,
pois, “qualquer estudo [que] sabe (...) de antemão que esta diferença é o ponto de chegada, a tese
será sempre a mesma, só variando o repertório cultural”.
54

mais importante, a feitiçaria nesta tese não será tida por uma ação indireta, ou uma

alternativa à violência, ao contrário, ela será abordada propriamente como um ato,

o que torna a dicotomia entre ação direta e indireta pouco operativa.

Não se trata, percebe-se, apenas de uma diferença entre contextos

etnográficos, é também sobre a escolha da maneira de descrevê-los. Lendo a

bibliografia disponível, logo depois de tomar a feitiçaria como um dos temas de

estudo, percebi que, se quisesse acompanhar o movimento dos atos feiticeiros, eu

teria de deixar minha escrita ser capturada. Uma escrita prismática, contrapontista,

pensei, talvez fosse capaz de conectar os eventos vividos em campo sem colocá-los

em quadros classificatórios. Tais ideias, como não poderiam deixar de ser,

mudaram bastante durante o trabalho de campo, mas de certa forma, elas me

prepararam para ouvir com atenção e me deixar influenciar pelos prismas

narrativos ouvidos durante a pesquisa. E eles foram muitos. Vejamos.

Quando a mãe de um de meus vizinhos, uma senhora com quem eu falava

pela primeira vez, me contou que seu enteado fora traído, ela me contou rindo. E

pediu que eu voltasse pra gente conversar e “dar risada”. Ela gosta de seu enteado,

não se trata de raiva ou sadismo maternos, mas de uma contemplação possível, sob

o prisma do riso, das relações entre homens e mulheres. Ao pensar sobre o estigma

das mulheres dadas a um caso aqui, outro acolá, ou sobre as histórias de traição

femininas, lembrei que mais de uma amiga me disse que as pessoas esquecem,

ainda que hostilizem por alguns dias aqueles e aquelas que julgam ter agido errado.

Ouvindo-as, pensei que seria interessante abordar tais relações também sob o

prisma do esquecimento. E quando, por diversas vezes, ouvi meninos e homens

discordarem entre si: - “Rapaz, ela é vagabunda!” – “Não, véio, ela é direita!”,

pensei que tais relações são também percebidas sob o prisma da incerteza. Incerteza

esta que compõe e é efeito do prisma da fofoca, uma forma importante de vivenciar,

contar e pensar tais relações, tornando-se portanto mais um prisma do qual eu

poderia dispor para descrever as relações de gênero com a feitiçaria. Certo dia,

uma senhora afirmou que, se seu filho tivesse tido a presença necessária para negar

a acusação, feita pelo marido de sua então amante, de que “ele ainda insistia na
55

mesma cor”, ele não teria se tornado presa fácil da feitiçaria do marido ofendido.

Ouvindo-a, eu pensei que a mentira e as armações eram também um prisma sob o

qual tais relações poderiam ser descritas.

A forma ali vivida não era apenas a do modelo, a da norma moral – e achei

que minha descrição muito ganharia se acompanhasse os prismas do riso, do

esquecimento, da mentira e da fofoca (o que não exclui, claro, os seus opostos:

tristeza, lembrança, verdade e silêncio). Prismas narrativos que, menos do que

negar qualquer tipo de dominação, influenciam a escolha do que se definirá como

‘contexto’ e de qual relação ele terá com o ‘texto’. Por exemplo, casos como os de

Éder podem entrar na análise como uma exceção num contexto cuja ‘normalidade’

(leia-se padrão moral ou estatístico) é o da dominação masculina. Mas eles podem

também – e é assim que aqui serão tomados – como um prisma através do qual

outras situações etnográficas serão descritas. Uma “perspectiva não linear”, uma

“visão caleidoscópica” (Moraes, 2002: 22), textos que acompanham e modificam

outros textos – é isso o que se tentará colocar em funcionamento neste capítulo. Ou

seja, melhor do que tomar os prismas como estratégias (= texto) para lidar com a

norma (= contexto), se procurará, por exemplo, não exatamente privilegiar a

onipresença e consequente importância da fofoca (= contexto), mas tomar seus

próprios mecanismos como um modo descritivo (= texto)8.

Justamente por buscar novas formas narrativas – que são menos novas do

que renovam e se filiam a experimentos narrativos anteriores –, quer-se esta tese

como um espaço de movimentação conceitual. Tomemos, por exemplo, a ideia de

que o homem tem ascendência sobre a mulher porque controla os modos de

produção e o espaço público. O conceito de controle, diz Strathern (2006: 218),

prejulga a análise de como as pessoas se impõem umas às outras; isto porque ele

está baseado em uma noção de pessoa devedora da ideia de propriedade (o ego

proprietário original de si mesmo). E se partíssemos, ao contrário, de uma outra

noção de pessoa? E se partíssemos de uma outra teoria da ação? Se pude descrever

8
Para uma etnografia que acompanha os modos nativos de descrição, ver o excelente trabalho de
56

que, na feitiçaria, uma das formas, imagens ou teorias da ação (Strathern, 2006: xi-

xii, 44-51) é a captura por composição, talvez fosse de interesse descrever

determinadas relações de gênero a partir dessa forma.

Todavia, este não será um capítulo demonstrativo. Aqui, não se objetivará

provar que uma relação entre homem e mulher, uma vez submetida a um ataque

feiticeiro, seja também uma relação de captura por composição. Não se quer fixar

tais significados, deseja-se justamente o contrário: colocar este conceito em

movimento e, com ele, acompanhar aos poucos as ações de captura, composição e

decomposição que, por sua vez, tornam visíveis outras formas de combinação e

ascendência entre humanos, e entre estes e os espíritos. Com isso, não se pretende

negar a dominação masculina (ou aquela dos papéis masculinos ocupados por

homens e mulheres). Mas tampouco almeja-se afirmá-la de antemão. Inspirando-me

sobre o quanto as etnografias recentes sobre religiões de matriz africana se

beneficiaram com a distribuição da agência a objetos, ou a outros seres além dos

humanos (ver por exemplo Wafer, 1991; Ochoa, 2004; Nathan, 2001; Sansi-Roca,

2003 e 2005; Goldman, 2005 e Birman, 2005), penso que seria também proveitoso

perguntar também o que é a agência, isto é, quais são as imagens da ação nas

relações de gênero (que, ressalte-se, são também relações sociais).

O Gênero da Possessão

- “Hoje é meu dia! – disse Tranca-Rua – “Só se eu der passagem a outros que

não vai ser. Quem manda aqui é macho. As fêmeas têm que ficar no meu pé” –

complementou o Exu, desejando afastar a passagem, naquele dia, de qualquer uma

das “exuas” de seu carnal.

- “Tadinha das fêmeas” – disse o amigo do Exu – “A palavra já diz tudo: fê-

Cerqueira (2010), no qual a presente reflexão é amplamente inspirada.


57

me-a” – e ele diminuiu o tom de voz à medida que soletrava.

Esta fora a segunda vez que Tranca-Rua se declarava superior às fêmeas. Na

primeira, ele já desceu à terra com a firme vontade de passar à frente. Era então a

primeira festa de seu Martim, um espírito bastante querido do pai-de-santo e tão

irreverente quanto o próprio Tranca-Rua. Seu Martim cobrava uma festa para si

havia muito tempo e, quando ela finalmente chegou, esperava-se que ele pudesse

gozá-la integralmente. Mas, com apenas duas horas da festa começada, a Padilha

de uma das filhas-de-santo desceu à terra. E talvez porque já houvesse algum

entrevero entre filha e pai-de-santo, ou talvez porque a Padilha quisesse matizar

uma competição de visibilidade entre os seus guias e os de seu pai, ela zuelou, com

uma voz extremamente aguda:

Quem governa Padilha

É seu Tranca-Rua

De repente ouvimos grunhidos. - “Me chamou, eu cheguei” – disse em voz

grave e cavernosa aquele que agora era Tranca-Rua. Pediu seu chapéu, seu charuto,

seu uísque e, todo gaboso, soltou: - “Gosto que Padilha me domine na cama, aqui

quem manda sou eu.”

Diante de duas afirmações de superioridade, seria fácil fazer da frase do exu

uma norma (por exemplo, ‘no candomblé, afirma-se que os exus machos dominam

as exuas fêmeas’). Porém, com o tempo decorrido, pude perceber que os

enunciados do exu eram mais armas, e menos preceitos. Tais enunciados faziam

parte de seu arsenal de guerra, mas, como em toda batalha, sua força, ainda que

grande, podia ou não se atualizar. Com a Padilha da então namorada do carnal de

Tranca-Rua, por exemplo, se dava justamente o inverso do que Tranca-Rua

gostaria. - “Ela”, dizia-se, “ele não consegue dominar”. Da mesma forma, Tranca-

Rua parecia calmo perto de Sete-Saia, uma das exu fêmeas do pai-de-santo cuja
58

perversidade era imensamente ecoada.

Neste capítulo, veremos, os resultados dessas batalhas não são previsíveis.

Aliás, sua própria enumeração seria complicada, pois, no candomblé, a força de um

exu ou uma exua, cada uma delas, fortalece homens e mulheres. O que se tornará

claro nesse item e no decorrer desse capítulo, espero, é que os domínios – humanos

e espirituais, masculinos e femininos – não são locus de um só atributo, seja ele de

força ou fraqueza9.

Alguém zuela:

- Mulher, vá pra casa,


Tenha medo do seu marido!

E a Gira responde:

- Ele é bom na faca,


Eu sou no facão,
Ele é bom na reza,
Eu, na oração.

O rapaz, alto e branco, se ajoelhava desajeitadamente, espalhando suas

pernas pelo chão diante do uísque de Tranca-Rua. Ele estava completamente

bêbado.

Era uma festa pequena, improvisada. Um grupo de pessoas ali chegara,

julgando pelos boatos que era dia de candomblé. O pai-de-santo, para não

decepcioná-los, organizou um pequeno toque cuja zoada atraíra também o bêbado.

Mas ele era diferente dos outros presentes; estes eram frequentadores assíduos de

outros candomblés da região, o bêbado, ao contrário, era “fraco de fé”. Quer fosse

Tranca-Rua, o Marujo ou o caboclo Gentileiro, para ele, quem lhe falava era sempre

Álvaro, o pai-de-santo que era também seu parente distante. Nem mesmo um

segundo bêbado, que chegou à “brincadeira” pedindo que o Exu interviesse em seu

casamento, conseguiu convencê-lo de que ali não era Álvaro, mas um espírito.

9
Há muito a teoria feminista observou que o feminino não diz respeito somente às mulheres e o
masculino, somente aos homens, algo que o candomblé torna manifesto (ver Strathern, 2006: 19-20,
Wafer, 1991: 17-18; Birman, 1995: 65-70, entre outros).
59

Todos pareciam incrédulos diante da ousadia que o bêbado demonstrava

junto ao exu. Tranca-Rua, ao contrário, se mostrava paciente como nunca.

Conversaram, homem e exu, por meio de enigmas, dos quais em meio à escrita de

meu caderno de campo no dia seguinte não pude me lembrar nem ao menos de um

detalhe. Me lembro, todavia, que o bêbado não conseguia se fixar em um assunto.

Impertinente, ele falava alto, interrompia as zuelas dos exus e queria impor suas

músicas, as músicas humanas que não eram zuelas e que, dependendo de seu teor,

poderiam soar como provocações, como de fato soaram quando ele se pôs a cantar

uma música do Raul Seixas:

Eu nasci há dez mil anos atrás,

E não tem nada nesse mundo

Que eu não saiba demais.

O Exu era policentenário, era tido portanto como o mais sabido e experiente

dentre os presentes, então como um humano poderia lhe desafiar cantando sua

maior sabedoria?10 A comicidade da situação só seria apreciada no dia seguinte,

naquele momento, o riso fora suspenso ou ao menos era um riso irritado. Depois

que o bêbado, querendo sambar, dirigiu-se ao ogã dizendo: - “Liga o som!”, o ogã,

em um misto de raiva e surpresa, puxou um sotaque, ameaçando-o:

Eu já mandei fazer,

Um sapato de ferro,

Para você sambar no inferno,

Onde é fogo só.

Outro caboclo acompanhou o ogã no sotaque:

10
Não são todos os exus que declaram sua idade, mas este em particular já havia deixado a maioria
60

Beber não é cair,

É um jeito que o corpo dá 11.

Mesmo levando esses sotaques, o bêbado não diminuiu sua ousadia. Certa

hora, tirou a camisa, algo que não se deve fazer numa festa de candomblé. Depois

de algumas trocas de desaforo, em que ele anunciava sua virilidade e as Giras, sua

impotência, Tranca-Rua deu passagem à Sete-Saia de seu carnal. Era a primeira vez

que eu a via. Gaiata, e sabidamente perversa, ela raramente vinha à terra. - “Ela só

vem quando Tranca-Rua dá passagem, e normalmente é pra resolver algo” – me

diria seu carnal no dia seguinte.

Logo ao chegar, Sete-Saia pôs-se a rebolar com um pano branco que lhe

amarraram na cintura, à maneira de saia. Rindo alto, uma risada típica das giras,

zuelou:

Oi, mexe, mexe, cocada,

Mulher que não mexe,

Não vale nada!

Para alguns, eu inclusive, a situação era inusitada. Seu cavalo era

sabidamente heterossexual, e a Gira com todo o seu dengo e malícia compunha-o

tão diferentemente do que ele era no cotidiano que a cena não podia despertar

senão surpresa e atenção. Gostando dos olhares que a seguiam, Sete-Saia zuelava

sobre sua saudade e desejo por falos – zuelas que os ogãs se recusavam a repetir,

mostrando-se agora descontentes por ter de tocar para a fêmea, em um macho, que

se engraçava à beira deles. Também o bêbado dela se esquivava, com desagrado.

Apreciando o incômodo que o espírito lhe causou, todos zuelaram forte, em

sotaque:

dos presentes saber que ele tinha mais de quatrocentos anos.


11
Esta é uma versão da zuela “escorregar não é cair, é um jeito que o corpo dá”, normalmente
cantada quando um cavalo é sacudido por suas entidades que desejam tomá-lo inteiramente, isto é,
61

Você pensa que cavalo é boi?

Cavalo não é boi não,

Boi entra no açougue,

Cavalo não entra não.

- “Esse sotaque dói! E como!” – um dos presentes afirmou. O bêbado, por

sua vez, continuava alheio às zuelas que lhe eram dirigidas. Sete-Saia, ele

tampouco entendia. E justamente por se desfazer dela, a Gira insistia em tentar

esfregar seu corpo no corpo do homem que, cansado de resistir à sua obstinação,

acabou por deixá-la se aproximar e, num átimo, quase viu se roçarem as duas

genitálias. Agora furioso, ele quis pegar a garrafa de uísque de Tranca-Rua, talvez

para quebrá-la em Sete-Saia que, de costas para ele, parecendo não compartilhar da

tensão entre os presentes, se virou delicadamente, e também delicadamente o

empurrou, direcionando-o para fora do barracão. O bêbado não mais resistiu. Ali

onde a Gira o deixou, ele permaneceu durante várias horas, junto à sua moto,

incapaz de coordenar seus movimentos para ligar a máquina.

Sem sua presença, a festa seguiu animada. A Gira afastara aquele de quem

depois comentaram: - “Ele não tá só bêbado, ele tá também radiado”.

Seu Martim zuela:

Aê cachaça,
Não me aborreça,
Desça pra barriga,
Não suba pra cabeça!

A passagem de Tranca-Rua à Sete-Saia em um cavalo masculino e

heterossexual causou surpresa tanto em mim, acostumada com a literatura

antropológica em que casos semelhantes são raros, como em vários de meus

interlocutores.

quando o cavalo está prestes a incorporar.


62

- “É raro”, um deles me dizia, “um adé não receber e é raro alguém que não

é adé receber, tipo Álvaro, Martim, Evaristo, Mané Pedro... E também meu irmão!”

– ele comentou, rindo muito.

Mesmo que depois tivéssemos enumerado mais uma porção considerável de

homens heterossexuais que respondiam aos chamados das mais variadas

entidades, saltou aos nossos olhos – como aos de muitos outros pesquisadores 12 – a

quantidade de mulheres virantes em relação à de homens e, dentre estes, a

quantidade de adés virantes em relação à de homens heterossexuais. Dada essa

correlação numérica, não foram poucos os antropólogos que vincularam a

possessão com o lugar ocupado pelas mulheres no plano sociológico. Para alguns,

ela seria a expressão ou ato análogo à subserviência feminina (Matory, 1988 apud

Wafer, 1991: 103 e Boyer-Araújo, 1993: 16-17). Para outros, inversamente, ela

contribuiria para uma inversão (temporária) de poder, e não só das mulheres em

relação aos homens, mas dos pobres aos ricos, dos negros aos brancos, dos jovens

aos velhos (Maggie, 2001: 119 e 132)13.

Etnografando a presença de homossexuais no candomblé carioca, Birman

(1995: 173) introduziu uma ideia nova ao debate. A própria possessão, diz a autora,

12
Entre os etnógrafos que estudaram a presença significativa de mulheres em religiões afro-
brasileiras, estão Boyer-Araújo (1993), Contins (1983), Hayes (2004), Iriart (1998), Landes (2002) e
Silverstein (1979). Por sua vez, Birman (1995), Fry (1977 e 1982), Landes (2002), Matory (1998), Segato
(2000), Teixeira (1986 e 2000) e Medeiros (2006) estudaram a igualmente significativa presença de
homens ou mulheres homossexuais em tais religiões. Ressalte-se que, durante meu trabalho de
pesquisa, havia terreiros em que se notava maior presença homossexual, sobretudo a masculina, e
ela era relativamente comum também em terreiros onde não era maioria. No entanto, essa questão
não foi a tônica de minha vivência de campo e, por isso, ainda que apareça ao longo deste trabalho,
não disponho de material suficiente para tratá-la mais detidamente.
13
Iriart (1998: 58-61; 66; 248), especialmente, e Hayes (2004: 356; 374-376), de forma indireta,
procedem à crítica do conceito estrutural-funcionalista de ritual de rebelião, pois, definido como uma
inversão temporária da ordem dominante, ele invisibilizaria a efetiva mudança social, ou pelo menos,
os mecanismos ali fornecidos para amenizar, lidar ou relativizar os poderes dominantes (no caso, os
masculinos). Ambos os autores, no entanto, não veem problema algum em tratar tal “ordem
dominante” – que prefiro chamar de ‘contexto’ de referência analítico – como absolutamente
“opressora”, ‘dada’ a “carência” econômica que assola a maioria dos adeptos dos terreiros por eles
estudados e ‘dado’ o poder masculino que aflige as mulheres em uma sociedade que eles veem de
forma algo etnocêntrica, pois que ambos a descrevem como “ainda” patriarcal/tradicional (cf. Iriart,
1998: 155, 157 e Hayes, 2004: 352).
63

genderiza as pessoas, sejam elas homens ou mulheres, e mais, ela o faz

diferentemente para cada um deles. Nos homens, ela introduz uma alteridade que

lhes retira a virilidade; nas mulheres, ela “remete-as para o campo do feminino

associado à maternidade”, vinculando-as “ao domínio da casa”. Não é que a

possessão transforme os homens em mulheres, tampouco que ela esteja restrita a

adés e mulheres. Ao contrário, diz a autora, a possessão não substancializa uma

identidade, mas define uma oposição de gêneros própria à família-de-santo:

aqueles que não entram em transe (os ogãs e as equedes) seriam seu polo

masculino e aqueles que são possuídos (os filhos e filhas-de-santo) ocupariam seu

polo feminino.

Sem deixar de lado a interessante ideia de que a possessão “afeta os

gêneros” (idem: 51), em minha experiência de campo, porém, vários outros fatores

pareceram entrar em jogo para a construção de gênero. Tudo indica que ela esteja

mais próxima do que foi descrito por Wafer (1991: 17) e Segato (2000: 78) como um

continuum, em que o sexo e a orientação sexual do médium, bem como o gênero do

santos, seriam também importantes:

alguém que tem uma anatomia masculina, que tem dois santos homens e
que só se relaciona como okó [marido] com seus parceiros sexuais estará
próximo do polo masculino, e alguém que tem uma anatomia feminina,
dois santos femininos e que só ‘gosta’ de homem, encontrar-se-á próximo
do polo feminino (2000: 78).

Neste caso, a possessão de fato genderiza, como afirmou Birman, mas

homens e mulheres são por ela ‘feminilizados’ e ‘masculinizados’. E isso não é

tudo. A maneira como se dá tal ‘genderização’ está longe de ser um ponto pacífico.

Para alguns, os santos viriam a descrever antes a personalidade de seu filho do que

sua orientação sexual (Segato, 2000: 53). Outros concordam que a orientação sexual

também não é dada pelo gênero do santo, todavia consideram que ela pode ser

manipulada posteriormente, à maneira de feitiço:

- “Candomblé tá cheio de veado e lésbica, é mentira que passa na frente, isso

já vem com a pessoa, não tem nada a ver com orixá. É verdade que podem fazer
64

isso, eu até sei o caminho”, me dizia Naomi, “e é por isso que não deito no quarto

de ninguém, depois fazem isso pra mim e eu me misturo com mulher. Muito não

me dou nem com homem, quanto mais com mulher”, ela completou.

Para Naomi, o lugar ocupado por caboclos, santos e exus na cabeça de um

carnal não é fixo, é possível manipulá-los. Todavia, outros discordam que seriam

apenas os humanos os protagonistas desses arranjos. Ao contrário, diz-se, os

próprios guias, em suas guerras particulares, são capazes de “passar à frente” em

um médium, impondo-lhe seu desejo sexual. O desgosto que vários homens

direcionam às guias fêmeas parte justamente desse entendimento:

- “A gente que tá nas águas, não é pra vomitar com o balanço do mar, eu

recebo Jurema – Jurema que me perdoe –, mas eu não gosto de guia fêmea, só de

macho”, me disse Paru14.

E o mesmo vale para mulheres que culpam seus guias machos de fazê-las

desejar outras mulheres, ou mesmo de torná-las infelizes no amor (pois, das duas

uma, elas dizem: ou os guias machos afastam seus maridos porque não querem

outro macho por perto, ou os próprios maridos deixam-nas porque não se atraem o

suficiente por mulheres que têm à frente guias machos).

Aparentemente, o que está em jogo é mesmo uma força diferencial. Como ela

14
Os caboclos são normalmente espíritos machos, e existem poucas caboclas fêmeas (quando
perguntei a um ogã se ele conhecia outras caboclas, ele me respondeu que, além de Jurema, tinha a
Velha Marota e Tombenci; esta última, no entanto, ele nunca vira). A pouca quantidade de caboclas –
e a relativa indistinção destas em relação aos caboclos – levou Iriart (1998: 239-240) a afirmar que,
incorporando caboclos, boiadeiros e marujos – todos eles majoritariamente homens e, no caso dos
dois últimos, paqueradores por excelência –, as mulheres estariam a comentar o mundo masculino,
zombando de seu comportamento e por isso relativizando suas normas, das quais de outro modo
seriam prisioneiras. Wafer (1991: 106), por sua vez, ao constatar a inexistência de caboclas em sua
vivência de campo, afirmou que o mundo dos caboclos, porque de um só gênero, é o da
indiferenciação: na floresta, a morada desses guerreiros, não há antíteses, argumenta o autor.
Contudo, nesta fala de Paru sobre a sua experiência com a cabocla Jurema, ele não parece aludir à
similaridade entre dois mundos: o mundo das caboclas-mulheres e o mundo das humanas-mulheres
(mundos que, se análogos, seriam então achatados, homogeneizados). Paru também não parece
compartilhar de uma indiferenciação primordial, e não só porque ele é um homem que fala de uma
guia fêmea, mas justamente porque ele se refere, me parece, a uma experiência íntima da diferença
em seu próprio corpo: diferença da qual, quando de gênero, ele desgosta, mas, quando espiritual – a
diferença provocada por um espírito em um corpo humano –, ele já gosta bastante.
65

será vivida? Como será elaborada? Como se conviverá com ela? Em minha

experiência de pesquisa, não houve uma resposta única. Quando Tranca-Rua deu

passagem à Sete-Saia, ela desceu para resolver um problema que as Giras das

carnais mulheres ali presentes não conseguiram. Ocupando um homem, Sete-Saia –

um exu feminino – criou uma força diferencial que o bêbado, ignorando ou

desprezando a “linguagem do candomblé”, não pôde tolerar. Todavia, esse mesmo

Álvaro, o carnal da Sete-Saia que hoje em dia se diverte com as artimanhas de sua

Gira, já foi bem menos aberto à periculosidade diferencial que ela carrega, conforme

veremos no item a seguir.

Composição e Decomposição

No tempo quando só recebia espíritos machos, Álvaro decidira ajudar um

espírito de uma cigana, chamada Angélica, que descia vez ou outra em sua mãe-de-

santo. Angélica queria realizar um trabalho para que sua “metade limpa” não se

tornasse “suja” em definitivo. Ela já conhecia bem o “lado negativo”, então agora

queria “ficar toda pura” para louvar “o deus que não está na terra”. Feito o

trabalho, Angélica foi mais grata do que Álvaro gostaria, e passou a radiar sua

presença na vida do rapaz. De repente, ele passou a colocar a mão na cintura, no

queixo. Muitos lhe diziam: - “Você está desmunhecando!” Álvaro nunca gostou de

guia fêmea; para ele, todo pai-de-santo que tinha cigana era gay, e nessa época ele

chegou a chorar com “medo de virar veado”. Desesperado, procurou um

candomblé de uma cidade distante para retirar a cigana inconveniente. Foi em vão.

Quando Álvaro chamava pelos caboclos, era ela quem respondia. - “Foi então que o

povo começou a me amar”, se gabava Angélica. A felicidade da Cigana era a

irritação de Álvaro: - “Só querem saber da mulher!” Para acalmá-lo, a cigana lhe

deixava recados dizendo que quem mandava era Tranca-Rua, ele continuaria a ser

seu espírito de frente, ela dizia.


66

A captura de Álvaro pela cigana Angélica foi dramática. Álvaro só começou

a se conformar quando conheceu e soube de exemplos de pais heterossexuais que

têm “a força para receber” – como ele costuma dizer – guias machos ou fêmeas. Sua

aceitação não se deveu portanto apenas à vantagem conferida pelo carisma de sua

cigana (aliás, uma análise que reduz a complexidade das relações sociais ao

interesse e à instrumentalidade empobreceria demasiadamente as motivações

humana). Penso que uma das razões mais fortes para sua aceitação foi o

aprofundamento da relação com Cleuza, a mulher que viria a ser sua esposa (aliás,

essa também é a opinião da própria Cigana). A relação entre os três era muito

interessante. Das entidades de Álvaro, era de Angélica que Cleuza gostava mais.

Foi Cleuza quem arrumou a cigana: comprou-lhe peruca, bijuterias, roupas,

sandálias e tecidos. Era ela quem lhe fazia a barba, as unhas e a maquiagem; Cleuza

fazia dela “uma mulher e não um travesti”. Ao mesmo tempo, foram as duas que

“consertaram” Álvaro. Ele era “todo das matas”, elas me disseram, não comprava

roupas novas nem cuidava de sua aparência e, ainda pior, era muito mais

“cismado”.

Cleuza não se relacionava somente com Álvaro. Ela tinha uma relação de

intimidade com a Cigana, para quem pedia conselhos, trocava confidências,

cuidava de suas roupas, gostos e clientes. Certamente se tratava de um triângulo

que se tornava facilmente um poliedro quanto mais as relações entre guias e

humanos eram levadas a sério: por exemplo, Cleuza adora o Ogum de Álvaro, mas

nutre um misto de admiração, medo e repulsa por Tranca-Rua, o Exu de seu

marido. Já seu Martim – o marinheiro bêbado – é detestado pela cigana, que

repudia sua insistência em lhe mandar recados lascivos.

Entre Álvaro, um ser em determinados momentos andrógino, e Cleuza, que,

não deixemos de ressaltar, tem seres masculinos em sua cabeça, a oposição está

longe de passar entre um polo masculino, de um lado, e feminino, de outro. Ela

parece ser interna a ambos15 e, mais do que isso, o movimento entre um e outro

15
Na literatura antropológica, é mencionada a recorrência, que é também uma preferência, em se ter
67

parece ser menos o de exclusão, e mais o de passagem. Passagens que longe de

serem apenas movimentos harmônicos são, também, atos de guerra. Quem terá seu

lugar à frente?

Álvaro, sem querer, capturou Angélica, que finalmente seria a única

entidade que ele “fez algo para ter” (diferentemente de todos os seus outros

caboclos, que já estavam no seu “sangue”, que são de “nascença”). Mas Angélica

também capturou Álvaro quando lutou para passar à frente de todos os seus outros

guias. Mesmo não conseguindo exatamente o que queria, a cigana conseguiu se

fixar em Álvaro. Ela fez uma captura por composição, e Álvaro procedeu à

composição por captura, invertendo, mas permanecendo, no campo de movimentação

dos atos feiticeiros de captura e composição16.

Birman (1995: 23 e 168) também chamou de guerra, ou pelo menos de “quase

uma operação de guerra”, os meios de “atuação sobre a pessoa” dos quais um pai

ou mãe-de-santo dispõe para cuidar de seu filho (por exemplo, “afastar” um santo,

“assentar outro”, “passar na frente um terceiro”). Mas não são só os humanos a

atuarem sobre outras pessoas. Sete-Saia, quando tomou o lugar que lhe foi dado para

se enroscar no bêbado impertinente, e a cigana, quando “se completou” em Álvaro,

conquistando Cleuza, tornando-a sua amiga e companheira, e finalmente fazendo

com que Álvaro, olhando os olhos de sua esposa, a enxergasse de outro modo,

ambas estavam em uma tática guerrilheira. Lutavam com suas armas próprias de

sedução, passagem e provocação para se completar e se fixar em um humano,

modulando-o.

Sete-Saia e a Cigana formaram, em Álvaro, uma força diferencial que lhe

tomou a frente em determinados períodos de sua vida, ou ajudou-o a enfrentar

contratempos esporádicos. Ambas as guias fizeram Álvaro se relacionar com

outros humanos de um modo que ele nunca faria, caso não fosse multiplamente

composto. Veremos abaixo que o mesmo se passou com dona Heloísa, cujo Ogum,

entidades de ambos os gêneros. Isso mesmo quando uma delas não venha nunca a incorporar em
seus carnais. Sobre isso, ver Segato (2000: 50), Maggie (2001: 90) e Wafer (1991: 17).
16
Iriart (1998: 273), citando Lambek, observa que a interação entre espíritos e humanos adensa o
68

a despeito de seu progressivo ofuscamento, resolveu atualizar a batalha que um dia

travara com Firmino, seu então marido.

Marujo zuela:

Eu morro de trabalhar
Pra sustentar mulher.
E o carinho que ela me dá
É dizer que não me quer.
Ê, ê, ê! Ê, ê, á!
A semana tem seis dias,
Eu morro de trabalhar!

- “Comprei aquela casa, deixei tudo pra ela, casa e terreno. Deixei mais por

aquele negócio que ela tinha. Não vou querer mulher de dois governo! E ele tava

querendo me adominar.”

- Que negócio, Firmino?

- “Esse negócio de candomblé. Não gosto. Não acredito. Não era crente na

época, era católico, mas já não acreditava. [silêncio] Não tenho medo! Aquele

negoço era muito abusado”.

- O Ogum?

Ele fez que sim e continuou: - “É muito abusado. Eu disse a ele: - ‘Sai dela,

pula pra outro que eu te mato’.”

- E ele pulou?!

- “Nada! [silêncio] Não tenho medo, só acredito em Deus, por isso a vitória

foi sempre minha.”

- Quando o senhor conheceu dona Heloísa, ela já tinha...?

- “Tinha, mas não era descoberto. Quando o Ogum dela veio pela primeira

vez, eu já tava com ela. Eu não gosto dele e ele não gosta de mim.”

- E o senhor tem caboclo?

- “Diziam que eu tinha, mas não tenho nada! Tinha dia que ela ficava como

morta. Mortinha! Demorava pra levantar, isso depois de estar com ele. Ele era

vínculo entre ambos, independente do resultado, se positivo ou negativo, de suas negociações.


69

muito ruim, não prestava.”

- O senhor não gostava era dele!

- “Era dele! Ela é ótima. Uma menina muito boa, ela. É por causa dela que eu

tenho o que tenho. Senão, não vou mentir, não tinha o que vestir. Como não tinha

quando encontrei com ela e larguei minha primeira mulher, que faz 49 anos que a

gente se larguemos. Depois dela que eu comprei uma casa, um terreno, fiz minha

roça. Hoje eu tenho roupa, se eu quiser vestir uma roupa hoje, outra amanhã, eu

tenho. Hum!, fiquei cento e cinco dias no hospital, quando ela não ia, pagava

alguém pra ir. Deu toda assistência. Até hoje, quando ela precisa, eu siuvo ela, e ela

me seuve quando eu preciso. Semo amigo. Mas ele...”

- O que ele te falava?

- “Hum!, batia no peito da desgrama, que nem Satanás. Falava com voz

grossa: - ‘Essa é minha menina’. Sozinho, ele tem vinte e um escravos. Vinte e um

demônios! Vinte e um!”

- O senhor me contou que ele foi lá em cima atrás do senhor sem ela.

- “Foi. Eu tinha operado, ele apareceu: - ‘Vim te matar. Vou puxar sua

operação’. A gente se atracou no chão, foi uma luta braba. Quando eu vi que ele ia

ganhar, eu chamei quem eu devia, e ele pulou pro canto. Se chamar por Deus e

correr, pode saber que é satanás, porque só quem corre é ele. Se você sonhar com

algo que corre de Deus, não presta. Depois eu falei pra ela: - ‘Ele veio me atazanar,

o seu negócio.’ Ele se vira em tudo. Se vira em boi, em cobra. Se vira que eu mesmo

já vi. É demônio!”

- O senhor já viu virando?!

- “Já vi virado. Se vira em tudo que não presta. Só reconhece porque ele tem

aquele olhar assim” [ele fez o gesto de um olhar bravo e fixo e mau].

- Quando ele foi lá em cima atrás do senhor, ele era como?

- “Era que nem gente! Todo igual. Mas ele se vira em tudo. Em boi...”

- Ele era de que cor?

- “Era claro, não era preto não.” [silêncio]

- E a sua mulher de agora?


70

- “Se o mar a areia fosse. Ah, se ela fosse um terço dessa aí. Mas não dá pra

mim. Tô com ela porque é o jeitcho, mas tô tomando as providências. Primeiro que

ela esculhamba muito os crentes, já não é pra mim. Ela é católica, não falo que o

santo dela é de pau, de barro, não desfaço nem obrigo ninguém. Pastor que é

pastor mesmo diz que não é para levar ninguém a pulso na igreja. Nem adulto nem

criança. Esses dias ela disse: - ‘A casa é minha’. Vou brigar porque de casa?

Comprei, mas tenho a minha na roça. Aquilo é telha... Não amo! Não amo nem a

mim próprio. Quem me amava, eu deixei há trinta e três anos. Nada por nada, foi

ela que me deu. Foi pelo diabo, ela amava o Ogum dela; eu não! Nunca gostei

desses troços, nunca gostei de candomblé. [silêncio] Vou pra Igreja, já são sete

horas e três minutos que o relógio rouba.”

Alguém o chama para tomar café:

- “Não, já tomei café.”

- Firmino nunca aceita nada – observei.

- “Aceito, de vez em quando aceito. Eu gosto de sopa.”

- “Tem sopa.”

- “Pra quando eu voltar... Café eu não bebo, faz vinte anos já. Em casa

encontra o pó, não o café feito. Pras pessoas que gostam, eu deixo o pó. Hum!, o

café queria me dominar. O café e o fumo. Me dava uma dor de cabeça, não

trabalhava sem café. Antes da venda abrir já tava na porta, comprava café e ia

embora. Eu disse: - ‘Eu venço esse sujeito’. Também parei antes de virar crente,

quando virei, já fui limpo. Arriei tudo de vez. Arriei café, bebida e fumo. Médico

nenhum mandou eu parar, foi de repente. - ‘Em nome de Jesus’ – eu disse, mas

nem sabia de nada –, ‘nunca mais na minha vida eu bebo’. Foi de repente! Antes

bebia tudo misturado: pinga, ceuveja, botava debaixo do braço a garrafa. Gostava

de uma farra danada. Nunca caí, nunca fui levado pra casa, nunca fiquei pelas

ruas, bebia muito, mas nunca perdi um dia de trabalho porque de corpo quebrado.

Também foi depois que me aposentei: antes bebia o suor do meu trabalho, mas
71

depois, o governo paga a gente pra se manter, não pra beber. [silêncio] Amanhã

tenho que cortar quiabo, se passar três dias, endurece...”

Eu tenho sete espadas para me defender,


Eu tenho Ogum na minha companhia,
Ogum é meu pai,
Ogum é meu guia,
Ogum vem descendo,
Com a força de Deus e da virgem Maria.

Dona Heloísa, a ex-mulher de Firmino, me disse que recebia um Ogum da

Ronda dos olhos bem verdes, de cor branca e cabelos amarelados. Ainda que

tivesse roupa de guerra, ele queria descer nu. Perigoso, ele não deixava que dona

Heloísa permanecesse com nenhum homem. - “Ele ficava fora do nível quando eu

tinha meu marido.” Firmino, seu segundo marido, não aceitou o desafio, viu-se.

Quando o Ogum de dona Heloísa se atracou com Firmino, ambos não só já

estavam separados há muito tempo, como também eram convertidos à Assembleia

de Deus. - “Foi matar ele sozinho, não foi comigo não. Foi uma luta triste lá em

cima na roça. Um barraco! Eu ri tanto: briga de gato com rato. É um espírito, não

vive, nunca morre, esses negócios nunca morrem. Era bom se morresse, mas não

morre.”

A batalha entre Ogum, Firmino e dona Heloísa partilha um fundo comum

com muitas outras histórias, repetidas à exaustão na literatura antropológica, em

que se relatam o transtorno e a ajuda que orixás, exus e caboclos prestam ou

provocam nos mais variados tipos de relacionamentos amorosos. Ainda assim,

mesmo passando longe de ser uma novidade, ela exerce em mim um fascínio cuja

dimensão não consigo calcular exatamente. Mas, se eu vejo beleza, e dona Heloísa,

graça (“eu ri tanto”), Firmino, ao contrário, enxerga a força do Ogum que se virava
72

em tudo o que de mais feio existia17.

Quando da última luta entre Firmino e o Ogum, este não mais se compunha

com dona Heloísa, ou pelo menos não mais com a frequência anterior. Ogum

cessara de habitá-la desde que ela se convertera ao evangelho, mas não a ponto de

deixar seu ex-marido em paz, perseguindo então o rastro de relações já

transformadas, enfraquecidas. Dona Heloísa lutava para que a decomposição entre

ela e seu Ogum fosse completa, e, em seu dia a dia de crente dedicada, tem tido

relativo sucesso. Às vezes o que fica é mesmo somente um rastro dessa dupla

captura, malmente um cheiro, e por isso dona Heloísa não gosta de falar sobre o

assunto, preferindo não se lembrar da sua época no santo.

Já sobre Firmino, quando lhe perguntei por que os dois não voltavam a se

ver, ela, faceira, me respondeu: - “Você gosta dele, né?! Queria ver a gente junto!” –

e me deu um abraço. Sua filha, mesmo adorando o pai, interferiu: - “Painho fala

assim, mas não era bom pra ela; era namorador, sumia por vida! Passava três,

quatro dias fora numa farra triste. Pense em alguém atrapalhado?!”

Enquanto ainda juntos, existiam ali evidentes no mínimo três forças: a força-

Firmino, a força-dona-Heloísa e a força-Ogum. Não eram apenas duas – Firmino e

Ogum –, como seríamos tentados a supor se considerássemos a mulher o vértice

fraco e dominado da relação. É bem verdade que Ogum queria passar à frente de

Firmino, algo que ele conseguiu, pelo menos durante algum tempo. Mas o caboclo

não agia somente em favor de si próprio. Ele não escondia que queria a mulher só

para si, todavia, ele também dizia querer protegê-la da vida de farra e “namoros”

de Firmino. Dona Heloísa, por sua vez, deixou de teimar ‘contra’ Ogum quando

percebeu que seu marido, com suas outras composições, ameaçava a sua própria

força18. Ela então largou Firmino, e Ogum reinou ‘sozinho’ durante alguns anos.

17
Para um sentimento semelhante, ver Lima (2005: 68-69) sobre o “efeito poético” que lhe despertou
um mito Yudjá, a despeito de que para os próprios Yudjá, diz a autora, não poderia “haver beleza
quando não há alegria”.
18
É vendo esse força – uma força que no entanto não é estável – que Joana, uma amiga da família de
dona Heloísa, falou do marido “namorador” de uma de suas parentes: - “A mulher faz o homem. O
73

Porém, nem mesmo o caboclo conseguiria se manter nela por muito mais tempo.

Ele ainda tentou, vimos, voltar à superfície, mas outros tipos de seres já a

rondavam, e ele não mais conseguiu tomar à frente dos “espíritos dos crentes”, que

agora a acompanham cotidianamente.

À luz das experiências de incorporação de Álvaro, que declara ser preciso

“ter força para receber seus santos”, também a força de dona Heloísa fica evidente

quanto chamava, lidava e negociava com seu Ogum, um ser perigoso de quem hoje

em dia ela se vê forte o suficiente para se manter afastada.

Encantamento e Luta

Boiadeiro zuela:

Patrão, meu amo,


Que moça bonita é aquela!
Quando eu vinha de viagem,
No caminho, eu passei por ela,
Amarrando seus cabelos,
Do jeito da terra dela.
Ela tava na cozinha,
Da cozinha passou pra janela,
Meu patrão, me dê dinheiro,
Que eu quero casar com ela.
Patrão, meu amo,
Oi!, que moça bonita é aquela!

***

Zé paquerava uma tal de Miriane, que trabalha na


prefeitura. A moça considerava-o simpático, mais
simpático do que seu irmão. Zé brincava e brincava. E
Miriane retribuiu:

- “Estou feliz e não sei por que! Você sabia que quando a
pessoa olha assim é porque está interessado?”

homem faz a mulher. E ele tá tirando a força dela.”


74

Zé, feliz, elogiou a cor negra de Miriane. - “Uma beleza!”


- “Adoro minha cor” – se gabou a moça.

***

Gira zuela, olhando para seu pretendente:

Ê nego lindo,
Para de tá me olhando!
Se você não me conhece,
Pra que ficar me namorando?

***

Homens e mulheres, ligeiramente bêbados, conversando


e rindo:

- “Essa aí vai tirar minha fimose. Ela vai tirar minha


fimose no dente, Leleco!”
- “Eu sou de menor” – riu Leleco e também riu a mulher
de quem falavam, sabendo da brincadeira dos dois
colegas que conhecia desde criança.

***

Seu Martim, o marinheiro bêbado, perguntou se eu


queria ir pro brega mais ele.

- “Gostou dela, Mano?” – perguntou Irene.


- “Ela é branca!” – disse Martim, saltando sua língua pra
fora, em sinal de desgosto.

***

Homem e mulher, colegas de trabalho, em uma relação


jocosa:

- “Essa aí dorme nua! Ficou comigo até de manhã!”


- “Foi! Foi mesmo! Pense aí?! Isso é ibope dele, que essa
binga não sobe nem com linha! Hahahá!” – riram os dois.

***

Um ogã puxou a famosa zuela:

Aê, pomba-gira,
Mulher de sete marido,
Dorme com sete na cama
75

E vinte e sete no sentido.

A Pomba-Gira de Nilza parou o toque e cantou,


parodiando sua própria zuela:

Aê, pomba-gira,
Mulher de vinte e sete marido,
Dorme com vinte na cama,
E sete escondido.

- “Eu sou mulher de coisa pouca?” – ela complementou,


para o alvoroço e felicidade dos ogãs.

***

Moça, brincando com um de seus colegas de trabalho:

- Quem manda nele sou eu! A mulher dele primeiro,


depois a amante, não é não, Ninho? Me dê cá um beijo,
vá?!

Humanos e guias cantam, simulam, riem, troçam e se deleitam com a corte a

e de seus pretendentes. Guias e humanos, ambos podem ser ousados, gaiatos e

vários de cada um deles gostam, muitas vezes abertamente, de falar “putaria”. A

‘sexualidade’, em minha experiência de campo, não foi ostensiva somente entre

espíritos, isto é, eu não poderia afirmar que os espíritos invertem, com irreverência,

o que entre os humanos é vivido com recato e discrição. Ao contrário, as duas

características – recato e “descaramento” – fizeram-se presentes em ambos os

domínios, humanos e espirituais. Da mesma forma, ambas foram mais ou menos

valorizadas, dependendo do momento, das pessoas e das questões em jogo.

Além disso, como se poderia esperar, os domínios espirituais e humanos

apareceram intrincados. Espíritos agiram por meio de humanos para se

satisfazerem, como dizia o Exu, sabidamente um mulherengo: - “Quando quero

uma mulher, mando pra ele [seu carnal] que eu pego junto.” Já os humanos, por

meio da ajuda dos espíritos, tentaram conseguir a pessoa que desejam, às vezes lhe

fazendo bem, às vezes não.

- “Lisa endoidou”, me contava sua amiga, “não queria mais sair de casa. Ia
76

pro trabalho, olhava pra toda aquela gente, achava todo mundo antipático, dava

vontade de ir embora, ela largava tudo e voltava pra casa. Chegando em casa, só se

vestia de vermelho e preto, se maquiava, botava brinco, ficava toda arrumada. Foi

uma padilha que ele mandou pra conseguir namorar com ela.”

- E Lisa virava antes? – eu perguntei.

- “Não! Eu já era endiabrada, mas Lisa não respondia! Ela diz que não

chegou a namorar com ele, e a gente perguntou a ela várias vezes. Só depois do

trabalho que fez em José Maria foi que Lisa melhorou.”

Já a Padilha de Carol, por quem um outro Exu declarava sua paixão, não

parecia afetar negativamente sua carnal. As duas, Padilha e Carol, também

gostavam de ambos, do Exu e de seu carnal. Houve quem dissesse que a Gira fora

enviada, que não era uma das Giras de Carol, mas a Padilha, quando desceu, fez

com que as suspeitas se esmorecessem, instando os presentes a lhe pedir agô.

Diferentemente do primeiro caso, em que se enviou uma padilha para seduzir Lisa,

que se viu perturbada por sua irradiação, a Padilha de Carol era mesmo dela e, se

havia sedução, esta era recíproca: ali habitavam dois Exus em dois humanos, os

quatro apaixonados.

Vê-se que o teor dos encontros amorosos entre humanos e espíritos é

variado. Com efeito, apesar de as zuelas das pomba-giras ecoarem seus inúmeros

maridos, “não são todas as giras que gostam de homem. Colodina, por exemplo,

não é muito de gostar de homem. Às vezes gosta de um homem e com ele fica. Tem

pomba-gira que é boa de ajudar o homem e a mulher, quando os dois se casam”. A

Sete-Saia de Taline, por exemplo, não gostava de Dandá, seu marido. Aos poucos, a

guia, que demorou para dizer seu nome em público, foi se afeiçoando ao marido de

sua carnal. Hoje, ela até mesmo ensaia alguns pés-de-dança, quando desce à noite

para fazer companhia ao casal que se julgava a sós. - “Fiz ele sonhar que a menina

tinha uma boceta enorme” – ela disse rindo uma risada discreta, pois, mesmo “do

brega”, não gosta de “risada horrorosa”. Sete-Saia passou, quando em Taline, a se


77

divertir com Dandá, aproximando marido e mulher, ao mesmo tempo em que ela

também se aproximava de ambos. Ali, os encontros eram múltiplos: dois humanos

radiados por um espírito que agia também em proveito próprio.

Mas, se para alguns membros do candomblé, tais encontros são algo

corriqueiro e natural, para outros, ao contrário, eles são objeto de deboche e

suspeita. Especula-se então sobre a possibilidade de manipulação espiritual em

prol dos interesses humanos (e esta é uma suspeita comum a nativos e a

antropólogos 19). Mas eles estão longe de serem incomuns, e tanto a sua recorrência

como a maneira como se dão indicam que haveria algo mais interessante a se dizer

do que simplesmente especular se são ou não motivados por interesses outros dos

declarados por espíritos e humanos.

Às vezes espíritos e humanos travam uma sedução evidente, às vezes ela é

apenas sugerida20. Uma sedução que, nos dois casos, pode se dar pela guerra, ou

19
Tomemos Hayes (2004: 286-292; 364-367), por exemplo. Por mais que se esforce para retirar os
espíritos do domínio das projeções psicológicas, e por mais que ela tente vislumbrar uma noção de
pessoa capaz de considerar, também na análise, a agência e a realidade dos espíritos, a autora
todavia não resiste a observar que o “idioma espiritual” – no caso, o casamento entre dois Exus (uma
Maria-Mulambo e um Tranca-Rua) – “pode ser empregado para expressar desejos que não poderiam
ser expressos sem sanção social” (idem: 424, grifo meu). Também Iriart (1998: 205-6, grifo meu),
apesar de fazer uma excelente etnografia da possessão feminina em Cachoeira-BA, traduz uma
acusação de feitiço (no caso, o envio de um Exu para que a enfeitiçada se visse desejando
sexualmente sua feiticeira) como a expressão, “através do idioma dos espíritos, do conflito que ela [a
enfeitiçada] vive em relação a seu desejo homossexual”. Este é um tipo de abordagem que afirma a
força humana apenas depois de uma dupla negação: vê-se, na ‘des-realização’ da força dos santos, a
condição do poder daqueles que de outra forma não o têm (porque se não fossem subjugadas pela
dominação masculina ou ‘societal’, as mulheres não precisariam do subterfúgio dos espíritos para
expressar seu querer). Nesta tese, espero já ter ficado claro, a abordagem é outra. Propôs-se desde o
início acompanhar os movimentos das forças humanas e espirituais que se disseminam ao longo dos
domínios onde passam a habitar, descrevendo as singularidades desses domínios, desses
movimentos e dessas forças. É por isso que, quando existirem suspeitas nativas de que uma pessoa
está fingindo o transe – as tão comuns acusações de “dar equê” –, tais suspeitas serão consideradas,
mas não se desprezará por isso que humanos – homens e mulheres – são “lugares” de um “encontro”
(Nathan, 2004: 51) com seres espirituais, que ora veem convergirem seus interesses, ora não. Aliás,
não seria preciso ressaltar que é justamente a força deste encontro que dá margem ao interesse de
falseá-lo.
20
Para situações mais evidentes de sedução entre espíritos e humanos, ver por exemplo a descrição
78

em meio à guerra; sendo então altiva, cheia de malícia, sagaz, feliz ou onerosa,

como vimos nos casos de Carol e Lisa. A palavra, nesse caso, é uma arma. Foi a ela

que a Gira recorreu quando deliberadamente paquerava um dos ogãs presentes.

Primeiro, ela descobriu o nome da namorada do rapaz, depois, deu detalhes sobre

a vida da garota; por fim, o ameaçou: - “Você não largou dela, mas vou fazer pra

você largar”.

- “Não faça isso que eu te ponho de cabeça pra baixo num como com água

pra você não rodar na cabeça de mais ninguém” – replicou o ogã.

- “É ousado esse aí, sabe das coisas” – riu a Gira, com olhar safado, para

logo lhe oferecer mais conhaque.

Esta mesma Gira um dia disse que sua palavra era um tiro. E foi justamente

este ogã, que, histrião, afirmou o mesmo: - “Levei fora ontem? Será? Deixa eu ver...

Não levei nada! Minha palavra é canhão.”

Se alguém que seduz tem na palavra sua arma, alguém apaixonado é, ao

contrário, um ser potencialmente enfeitiçado que se deixou transpassar por

palavras e olhares de outrem21. Quando um homem fica enrabichado por uma

mulher, distraído em seus afazeres, sentindo o cheiro dela quando estão longe um

do outro, diz-se que ela lhe deu chá de calcinha e pode-se temer por seu juízo. Se

procurar ajuda em um candomblé, este homem pode ver confirmado o diagnóstico

que “o povo” falou brincando – uma brincadeira que é também um alerta.

- “A mulher deu coisa pra ele, pro marido comer. Fundo de calcinha com

menstruação” – disse a mãe-de-santo sobre o rapaz que se mostrava fixado em sua

mulher.

de convites explícitos em Carvalho (1990: 20-21), ou beijo que Maria Padilha negou ao ogã (Cardoso,
2004: 133), e o beijo que Wafer (1991: 3-4) não negou à Pomba-Gira. E para a descrição de insinuações
e brincadeiras sexuais, ver Birman (1995: 103; 107-110) e Iriart (1998: 245; 255).
21
É interessante notar que a constelação de significados do verbo apaixonar inclui, na região,
também um sentido bastante diferente do usual. Às vezes ele é empregado para denotar uma tristeza
intensa – e não sexual –, como na frase: “quando meu filho morreu de um caroço maligno, a gente
ficou apaixonado...”.
79

- E isso o que faz? – perguntei.

- “Amarra! Lesa o juízo” – “seduz o anjo-de-guarda dele para ele ficar com

ela”, a mãe-de-santo me disse em outra ocasião.

A guerra da amarração, que é procurada por homens e mulheres, também se

dá por vingança e não exatamente por amor.

- “Meu avô tinha o livro de São... São Cipriano” – Roque me disse, sem

certeza.

- É isso mesmo, eu confirmei, já ouvi falar desse livro.

- “Ele contou pra gente que uma mulher linda tinha esculhambado ele por

ele ser negro. Passou. Um dia ela chegou na sua porta dizendo que tava com corpo

ardendo, que era só com ele, coisa e tal. Isso porque ele rezou no livro. Ele

guardava o livro num baú, parece que não pode passar de geração em geração.

Logo depois que ele morreu, roubaram o livro junto com o três oitão. A gente acha

que, se não foi um tio nosso, foi um homem que ele criou.”

- Seu avô era feiticeiro – eu afirmei, sem rir.

- “Meu avô não era feiticeiro” – refutou ele, ligeiramente encabulado – “ele

tinha..., ele rezava no livro.”

Ao rezar no livro, o avô de Roque conseguiu revidar a desfeita da mulher,

trazendo-a para si. Era uma prestação de conta.

Quando se decide, em meio à guerra, lançar mão das armas da feitiçaria, tais

armas não apenas tornam evidente o desejo de homens e mulheres de estarem

juntos, mas em alguns casos, como nos de feitiço por amarração, vêm a construir a

própria existência desse desejo. Tais armas fazem da ‘dominação’ um alvo a ser

atingido (e os inúmeros papeizinhos em que se leem os nomes dos dois amantes e

ao lado de um deles, vencedor, aludem à batalha que se quer vencida). Contudo, é


80

um alvo peculiar, já que semelhante a um território que se deseja ocupado. O ser

apaixonado, o ser que deseja, aquele que comumente é julgado um ser

enfraquecido pela ‘dominação’, ele é no entanto marcado por uma luta que, na

feitiçaria, se faz evidente. Ele é povoado por aquele que ele batalha para preencher,

visando então se manter ou se tornar parte do território de quem ele quer

conquistar, conforme veremos no restante deste capítulo.

Mano zuela:

Pé de lima, pé de limão,
O amor é meu,
Tá dizendo que não!

Tia: - “Se fosse pra eu dizer assim, ‘eu vou mudar de casa’, eu nunca mais

botava meus pés no candomblé. Não tenho mais vontade, não tinha mais vontade.

Assim, por visita, na casa de Inácio por exemplo, ele tocando, eu ir de visitante,

tudo bem. Sem compromisso. Mas aconteceu que eu surtei o dia inteiro aqui...

Quem sabe contar é ela. Eu deitei boa e no outro dia não fui eu que acordei. Passei

o dia inteiro aqui desacordada. O dia inteiro não, porque me levaram logo. Umas

nove horas, minha filha desconfiou, porque eu tava perguntando de quem era o

relógio...”

Sobrinha: - “Teve uma confusão lá na minha casa. Foi de madrugada. Ela

tava dormindo, a neta dela chamou por ela. Ela acordou assustada, ela não

acordou, entendeu? Ela surtou, quer dizer, ela foi por ir, mas não era ela.”

Etnógrafa: - Ela foi até a sua casa...

Sobrinha: - “Foi, foi lá, me pegou, me trouxe com as meninas pra cá, pra casa

dela, a gente voltou a dormir.”

Etnógrafa: - Você percebeu uma coisa estranha?

Sobrinha: - “Não, não deu pra perceber, aquela bagaceira, não deu pra
81

perceber nada. Quando foi no outro dia, que minha tia teve lá em casa, umas nove

horas, minha tia entrou, olhou a bagaceira e falou: - ‘O que aconteceu?’ – eu olhei

pra cara da minha irmã, ela tava sentada: - ‘Minha tia, senhora veio aqui, me

pegou, eu e as meninas, e a senhora não lembra de nada?’ Ela disse: - ‘Não, pra

todo efeito – que hora é essa? –, eu acordei agora.’ Na hora que ela falou assim, me

deu um desespero, meu olho encheu de água. - ‘Meu Deus do céu, minha tia Lica

surtou, meu Jesus’. Minha tia de novo: - ‘Que hora é essa? Eu acordei agora. De

quem é esse relógio? Esse relógio não é meu.’ Ela tava com esse relógio aqui que tá

na mão dela até hoje”.

Etnógrafa: - O relógio que era dela mesma?

Sobrinha: - “Que é dela! Quando foi depois de meio-dia: - ‘Já almoçou,

minha tia?’ - ‘Não, tomei café, acordei agora’. Ave Maria, Deus é mais, minha tia

não vai fazer mais nada dentro de casa, e eu vou me sentir culpada...”

Tia: - “Não era eu que falava!”

Sobrinha: - “Ela não ia fazer nada dentro de casa porque ela ia dizer que

toda hora ela acordou. Pra ela, sempre era de manhã. Meu desespero era esse.”

Etnógrafa: - Ela ia ficar presa no tempo...

Sobrinha: - “É, aham. Só ia tomar café.”

Etnógrafa: - E faz tempo já?

Sobrinha: - “Quanto tempo faz, minha tia?”

Tia: - “Um mês.”

Sobrinha: - “Foi quando ela foi fazer o trabalho dela”

Etnógrafa: - Aaah, foi por isso o trabalho!

Sobrinha: - “Foi. Foi porque ela tava acordando a cada hora...”

Etnógrafa: - E quando você foi lá em Josias, você conversou normalmente?

Tia: - “Não, eu não lembro de nada.”

Sobrinha: - “Esqueceu... É só algumas coisas que a pessoa lembra.”

Tia: - “Por alto, alguma coisa ficou, alguma passagem. Eu lembro na hora

que a gente chegou aqui, a menina dela mais nova deu uma crise, aí já não lembro

mais. Peguei o dinheiro pra pagar o carro, paguei, e não lembro!”


82

Sobrinha: - “Uma coisa assim estranha, que eu achei, mas na hora não caiu a

ficha, ela tava com um... A senhora subiu, a senhora botou alguma coisa na sua

roupa, a senhora sabe disso?” (risos)

Tia: - “Eu sei porque me disseram.”

Sobrinha: - (rindo muito) “Eu achei estranho.”

Tia: - “Me disseram que era um facão!”

Sobrinha: - (rindo) “E dentro da roupa! Quem lhe disse, minha tia, depois?”

Tia: - “Isadora.”

Sobrinha: - “Eu achei assim estranho, minha tia valente toda assim, esse lado

valentona, sabe? Mas a ficha não caiu que a senhora não tava na senhora. Botar um

facão desse tamanho por dentro de uma roupa e andar assim tão normal?”

Tia: - “Eu não lembro com que roupa eu tava.”

Sobrinha: - “Acho que era uma saia mesmo, não lembro, eu só sei que a

senhora movimentou normal, subindo e descendo a rua com esse facão.”

Etnógrafa: - E os vizinhos olhando?!

Tia: - “Era de noite! Era umas duas horas da madrugada, não tinha ninguém

na rua. De manhã, quando eu acordei, não lembrava de nada. Aí que começaram a

desconfiar. Mandaram chamar Dora, que é a outra irmã dela, Dora me levou pra

casa de Josias. Entrei em Josias, saí de Josias, não vi nada...”

Sobrinha: - “Acho que ela acordava a cada dez minutos. Isso durou o dia

inteiro.”

Tia: - “Só depois, quando eu cheguei da casa de Josias... Lá diz que

chamaram o caboclo, não sei lá quem, que eu não sei quem é, e Josias disse que eu

ia acordando aos poucos. Minha sobrinha me trouxe pra casa novamente e me

botou aqui dormindo.”

Sobrinha: - “Ela pegava na minha mão: - ‘Eu tenho santo, fica assim não,

minha filha, pra todo efeito, eu acordei agora’. Repare: ela vivendo tudo e eu ter

que dizer: - ‘A senhora tava aqui, minha tia, e viu, minha tia!’”

Tia: - “E ela chorava!”

Sobrinha: - “Aquele desespero de tá vendo ela participar de tudo, e ela


83

acordar toda hora. Toda hora?! Tava abusando.”

Tia: - “E eu me gabando que eu tenho santo, uma coisa que eu nem gosto!”

Etnógrafa: - E lá em Josias, ele falou o que tinha acontecido com ela? Como é

que foi?

Sobrinha: - “Foi isso, a palavra que a gente dá: surtou. Ela tava dormindo e,

no susto, ela não acordou. Não sei explicar. O anjo-de-guarda deve ter se afastado,

não sei o que aconteceu realmente.”

Etnógrafa: - Não foi uma entidade que chegou perto dela?

Sobrinha: - “Sim, sim!”

Tia: - “Com certeza.”

Sobrinha: - “Ela falava que tinha santo, então era um santo que tava com ela,

mas o santo não se identificou. Ele podia falar assim: - ‘Eu sou [o Santo] que tô com

ela.’ Mas não falou.”

Etnógrafa: - E nem lá em Josias ele falou?

Sobrinha: - “Ah não, Josias deve saber, eu que não sei. Porque quem foi com

minha tia foi minha irmã. Lá, minha tia Lica fez um monte de coisa, deu uns pulo

lá, mas eu não fui, quem sabe é minha irmã, minha tia não sabe também. Essas

coisas de candomblé são complicadas. Complicado. [silêncio] Da minha tia Lica, foi

algo pra proteger ela, proteger a gente também.”

Etnógrafa: - Por que, no caso? Proteger de que, na hora?

Sobrinha: - “A gente não tava...”

Amiga: - “Teve uma confusão na casa dela.”

Etnógrafa: - Ah! Pra desviar daquele assunto?

Sobrinha: - “Talvez se fosse minha tia mesmo, se não tivesse sido uma outra

pessoa, poderia ser até que acontecesse uma coisa pior, não sei, eu gostaria de

entender mais esse negócio de candomblé.”

Amiga: - “Ah, mas com o tempo entende, com o tempo, e se dedicar.”

Alguém chega, muda-se o assunto, que é retomado em seguida, quando

pergunto:
84

- Dona Lica, o que Josias passou pra senhora melhorar? Senhora melhorou

foi no dia seguinte?

Tia: - “Não sei...”

Etnógrafa: - Foi banho?

Sobrinha: - “A senhora não tomou banho?”

Tia: - “Se eu tomei banho, foi lá. Ele fez lá alguma coisa, ele chamou os meus

santos, diz que eles desceram. Aí ele deixou alguém deles cuidando de mim e falou

pra Dora que eu ia acordando aos poucos. De tarde, eu acordei, minha neta me

chamando pra eu almoçar. Levantei, tava a filha dela, minha sobrinha, eu

perguntei: - ‘Ê mãe, foi verdade?’ - ‘Foi, minha tia, não foi nada de sonho não. Foi

verdade, tudo aconteceu.’ Eu ainda não tinha certeza! Tomei café, tomei banho,

jantei, aí fui acordando aos pouquinhos, fui lembrando as coisas. Eu fiquei

imaginando – me contaram que eu passei o dia inteiro desacordada –, eu pensei

que eram as coisas que dizem que é santo, caboclo, sei lá o que é. Aí eu disse à

minha sobrinha que eu ia a Bom Jardim comprar roupa do santo, que é pra eles

deixarem de tá me atentando (eles não gostam que eu fale assim, mas eu falo).

Ainda chamei minha sobrinha, irmã dela: - ‘Bora lá comigo, que é pra eu não surtar

novamente em Bom Jardim sozinha’. Fui com ela, quando nós viemos de lá, eu

parei na casa de Josias e ele me disse que eu tinha que fazer um trabalho. Mas acho

que porque eu já tinha um trabalho [anterior], eu não tomei banho. Foi uma coisa

que me pegou de vez, então eu não tomei banho. Também ninguém me disse o que

foi, todo mundo sabia, mas ninguém me disse. Josias teve aqui no domingo e falou

pra minha menina, mas ninguém me falou o que era que eu tinha. Quando foi na

quarta-feira, eu acordei sabendo. Eu dormi, acordei e descobri que foi uma mulher

de um ex-marido meu que ciúma de mim.”

Etnógrafa: - Não acredito!

Tia: - “Ninguém me disse, Paula. Eu dormi...”

Sobrinha: - “Quando foi pro trabalho, a senhora falou assim: - ‘Você não

quer me dizer o que aconteceu comigo, mas eu já sei que foi Rosélia que tá fazendo

coisa pra mim.’ Porque aquela mulher tava fazendo coisa pra minha tia Lica surtar,
85

pra ficar louca. No caso, só aproximou..., ela já tava fazendo aos poucos, mas

quando aconteceu a confusão na minha casa, adiantou.”

Tia: - “Mas acho que como eu tenho alguma coisa [santo, caboclo], acho que

não me panhou de vez. Eu fiquei surtada, mas...”

Sobrinha: - “Com o juízo assim...”

Etnógrafa: - O juízo ia e voltava?

Tia: - “Eu fiquei mais fora do ar.”

Sobrinha: - “Ela ficou estranha. Ela ficava tipo que tava viajando. Viajando é

mais na gíria. Ficava fora do ar, parada. E as mãos?! Não é, minha tia?”

Tia: - “Não sei, não lembro de nada do que aconteceu. Eu só sei que

aconteceu isso de sexta pra sábado, me levaram pra lá sábado; domingo, Josias veio

cá pra saber como foi que eu tava. Eu já tinha acordado, tava normal, fiquei

conversando com ele sem saber o porquê. Segunda fui pra Bom Jardim, terça-feira,

a minha menina perguntou assim: - ‘Tu dormiu bem, mãe?’ Eu falei: - ‘Não!’ Nessa

hora eu rejeitei, porque na verdade eu tinha sonhado com meus caboclos a noite

inteira. Eu sonhava com todos os caboclos. Sonhava com Sultão, que diz que é

meus caboclos. Sonhava com meu pai Ogum, que diz que eu sou de Ogum.

Sonhava com Erê, sonhava com tudo. As meninas falavam assim: - ‘Mas Josias

deixou eles pra cuidar de tu.’ Eu comecei a desconfiar: por que meus caboclos

cuidando de mim? Quando foi na manhã seguinte, eu acordei sabendo.”

Sobrinha: - “Os caboclos cuidando de minha tia pra minha tia não surtar.

Sempre tem alguma coisa, né, minha tia Lica? Sempre por trás tem alguém fazendo

alguma coisa. Nunca é à toa. Nunca você tá no caso assim por acaso.”

Tia: - “E ninguém me dizia nada, Paula. Eu disse assim: - ‘Ê Josias, eu sei o

que foi que eu tive: foi a mulher de Rian que queria me matar, não foi?’ Josias: -

‘Não sei de nada!’ Ele nunca me disse! Josias: - ‘Vou fazer seu trabalho amanhã.’

Quarta-feira, levei as coisas e fiz o trabalho quinta-feira de manhã.”

Etnógrafa: - A senhora conhece ela?

Tia: - “Ahum.”

Sobrinha: - “Nada é por acaso.”


86

Etnógrafa: - De falar?

Tia: - “Eu não falo com ela porque ela sabe que... Ela... Ela engravidou do

meu ex quando eu tava com ele. Foi há sete anos atrás que ela veio com ele, daí ela

engravidou dele. Depois a gente ficou só, assim, amigo.”

Sobrinha: - “Amizade colorida (risos).”

Tia: - “E ela não se conforma. Ela não se conforma que ele seja meu amigo,

que ele venha aqui, que a gente converse, que ele construísse a pousada. Diz que

porque ela fez coisa que a pousada tá aí parada.”

Sobrinha: - “Há um tempão que a pousada começou e nunca termina.”

Tia: - “Acho que ela lutou assim: - ‘Ele não termina a pousada e ela fica de

mal com ele...’ E como ela sabe que eu não fiquei, aí ela me preparou... E mandou.”

Sobrinha: - “A filha dela se revoltou com ele. Ele não termina a pousada,

então todos se revoltaram contra ele. O que minha tia Lica passou, tem passado –

né, minha tia? – com minha prima, filha de minha tia, revoltada.”

Etnógrafa: - Porque ela preparou...

Tia: - “Porque... Sim, porque ela preparou assim..., a pousada, ele não fez

diretamente pra mim, a minha menina pagou pra ele consertar a pousada, que ele é

pedreiro, mas a pousada tá aí parada já tem três anos.”

Sobrinha: - “Só que, no caso, fazendo a pousada, ele tá perto de minha tia.”

Tia: - “Ele vinha aqui todos os dias trabalhar, o dia inteiro aqui comigo. Ele

almoçava aqui. Chegava aqui na pousada às vezes dez, onze horas, porque ele

gosta de trabalhar de noite.”

Sobrinha: - “Tudo isso contribuiu...”

Tia: - “Mas ele não vem mais trabalhar, mas quando ele quer vir dormir, ele

vem. Aí pronto, ela viu que não tinha jeito, e com certeza ela lutou de um jeito, não

conseguiu tirar, aí ela quis me endoidar. Depois de tudo, quando eu descobri que

foi ela, num dia de terça-feira, não foi, mãe? Ou foi quarta? Foi terça. Aí liguei pra

Dora e disse: - ‘Ê Dora, vem cá que eu vou fazer minhas coisas hoje ou amanhã’.

Ainda disse assim: - ‘Vou fazer só na segunda que vem’. Aí o olho dela encheu de

água. - ‘Ê minha tia, tu não disse que ia fazer logo?!’”


87

Sobrinha: - “No caso, pra gente, a qualquer instante, ela poderia...”

Tia: - “...surtar de vez”

Sobrinha: - “Surtar de vez, e aí pra pegar dá trabalho. Tinha que ser rápido,

mas ela não podia saber que tinha essa coisa tudo..., a gente não queria passar pra

ela essa preocupação.”

Tia: - “Minha filha trabalha o dia inteiro e também a noite. Eu falei pra ela: -

‘Ê mãe, eu vou fazer meu trabalho porque você sai e eu fico com medo’. As vezes

que eu ficava aqui, eu só dormia depois que ela chegava, porque eu mesmo tinha

medo de mim. Antes não, eu dormia despreocupada. Depois que eu descobri que

era coisa que ela tava fazendo, eu fiquei com medo. E se eu surtar aqui com meus

netos pequenos, meus netos adolescentes, sozinha? Mas aí fiz o trabalho e, graças a

Deus, até hoje tô me dando bem.”

Etnógrafa: - Que bom, dona Lica! Tá mais tranquila também.

Tia: - “Tô, Paula, tô mais tranquila. Ele tá mais voltando pra mim. Ele tá até

fora, toda noite ele liga pra mim.”

Sobrinha: - “Na verdade, ele tava se afastando.”

Tia: - “Já tinha se afastado.”

Etnógrafa: - Quanto tempo que vocês ficaram juntos? E quanto tempo

ficaram separados?

Tia: - “A gente nunca separou. Pra falar a verdade, a gente nunca separou.

Tem 16 anos, 17, né?”

Sobrinha: - “Uma vida!”

Tia: - “16 anos.”

Etnógrafa: - Vocês moraram juntos um tempo, como foi?

Tia: - “Paula, a gente nunca morou junto. Sempre assim, ele lá e eu aqui. Mas

ele ficava direto comigo.”

Sobrinha: - “Lá e aqui não, porque ela morava perto dele. Só não morava

junto, mas almoçava, essas coisas tudo.”

Tia: - “Dormia direto lá em casa.”

Etnógrafa: - Era namorido.


88

Tia: - “Éeee!”

Sobrinha: - “Isso mesmo.”

Tia: - “Porque eu não tive boa experiência com marido, então quando eu

separei, eu disse que não queria mais homem dentro de casa. Aí fiquei com ele

assim, mas ele – namorador, galinha – conheceu aquela mulher lá do lado de

Jacarezinho. Ela não é daqui, e eu aceitei porque ela não é daqui, ela não sabia de

nada. E minha sobrinha também, essa daqui, ela sabia de tudo, ela sempre me

dizia: - ‘Ah, minha tia, se ele não ficar com ela, ele vai pegar outra, que a senhora

sabe que ele não fica com uma mulher só. E ela, a senhora não conhece.’ E eu

concordei, Paula, porque, se ela não me conhecia, ele não ia dizer a ela que vivia

comigo, né? Então, pra todos os efeito, ela pegou solteiro. Mas ela é miseravona.”

Sobrinha: - “Depois que eu conheci a pessoa, tu não dá nada por ela, parece

uma songa (risos). Ela anda de cabeça baixa, toda assim. Que seria capaz de fazer

alguma coisa? Não, não é capaz de fazer. - ‘Não, minha tia, não foi ela não’. Minha

tia: - ‘Hum!’ Minha tia tem um santo forte, né, [por isso percebeu]. [Mas eu:]-

‘Uuu!, minha tia, que nada!’ – e ela, [a mulher], ó!”

Tia: - “Ela trabalhou bonitinho. Agora ela deve tá injuriada porque ela não

me viu eu doida (riso). Ela perdeu o dinheiro dela.”

Sobrinha: - “Ela fazendo a coisinha dela, e eu sempre achando que não. E ela

só tirando ele aos poucos, afastando, se afastando aos poucos, que a vida da minha

tia virou perturbada. Ave Maria, essa pousada, uma confusão danada com essa

pousada, minha prima revoltada porque ele não terminava a pousada, aquela

confusão toda, isso o dedo dela, e eu achando que não.”

Tia: - “Depois que minha menina foi também pra casa de Josias, que

primeiro foi ela que foi, acho que – acho não – com certeza deram algum toque pra

ela e ela deixou de ficar contra mim e de xingar ele. Mas ele não entra mais pela

frente, ele só entra por aqui por trás, porque minha filha não fala com ele. E era

todo mundo amigo. Só minha outra filha, que mora fora, que não tem nada contra

ele.”
89

A conversa é interrompida por um telefonema. Então dona Lica retoma:

Tia: - “Eu posso sair do candomblé? Não posso, porque ela não mora longe.”

Etnógrafa: - Tá sempre cruzando com ela...

Sobrinha: - “E o homem, que minha tia ainda não largou! (risos). Então

minha tia tá em perigo constante. Eu digo assim, no caso, eu digo assim não, essa é

a realidade, ela vai lutar e minha tia Lica vai lutar. Quem tiver unha maior, vai

subir na parede, vai ganhar.”

Tia: - “Eu só não quero é matar ela, fazer ela endoidar, como ela fez comigo.

Agora, em outro sentido, ela me vence ou eu venço ela. Ou ele fica comigo, ou com

ela.”

Etnógrafa: - Ou seja, vai ter que decidir, né?

Tia: - “Aham. Mas na macumba, né? Porque ela tá trabalhando. E eu

também tô na casa de Josias.”

Etnógrafa: - E aí a senhora tem ido em Josias pra...

Tia: - “Não, Paula. Não.”

Etnógrafa: - Parou de ir...

Tia: - “Eu fui lá ontem levar uma criatura.”

Sobrinha: - “Não, minha tia Lica não par... Ela vai entender que a senhora se

afastou. Ela não vai lá todos os dias, mas ela é de lá.”

Tia: - “Só não quero ir pra dizer: - ‘Josias, eu quero que você faça isso e isso

pra ela’. Porque essa responsabilidade eu deixei pra meus caboclos mesmo fazer.”

Sobrinha: - “Que os caboclos de minha tia fazem.”

Tia: - “Eu deixei pra eles fazer. E os de Josias! Não peço, não vou gastar

dinheiro como ela gastou.”

Etnógrafa: - Ou seja, você não vai chegar, vai pedir e pagar.

Tia: - “Não. Eu gastei pra minha saúde, agora pra fazer o mal a ela, não. Eu

deixo por conta deles – eu mesma não conheço, nunca vi! Eu peço a Deus que eu

quero vingança. Com eles. Agora, eu gastar? Nem tenho, Paula, dou um duro

retado pra ajudar minha filha.”


90

Sobrinha: - “Aí quando alguma coisa tá errada na vida da gente, tipo esse

lado espir... Que esse lado, acho que é espiritual mesmo, né?”

Tia: - “É.”

Sobrinha: - “Tudo da tua vida anda errado. Tua vida sentimental, teu

trabalho, tava tudo... Não foi, minha tia Lica? Minha vida no meu trabalho tava um

inferno. Eu tenho quatorze anos de trabalho, quatorze anos não, doze. Eu tava à

beira do desemprego, minha tia Lica que sabe. Devido a isso tudo. Doente, no

trabalho.”

Etnógrafa: - Porque você, doente, não podia trabalhar direito? Nem podia ir?

Sobrinha: - “Não, minha filha! Confusão. Uma coisa tão... Não tem nem

como explicar. Eu te disse que, no meu caso, ela fez pra me matar, não foi? Mas não

é só morrer, minha vida tava desandando toda.”

Tia: - “Ô Paula, deixa eu te explicar uma coisa. A mulher fez pra me

endoidar. Ela pegou meu nome, alguma coisa minha e entregou ao Exu, entregou

ao satanás, botou o meu nome ali debaixo.”

Sobrinha: - “Igual botou o meu.”

Tia: - “Aí pronto, desandou a minha vida toda. Eu não recebo dinheiro, eu

tava quase louca, eu não acertava mais meu trabalho. Nunca, Paula, eu tenho mais

de 20 anos de trabalho, nunca botei nada a perder. Ah!, começou a não dar certo.”

Sobrinha: - “Repare, tá vendo? Ela não conseguia receber o dinheiro da rua.”

Tia: - “Não conseguia? Não consigo!”

Sobrinha: - “No caso, o conflito com a família. No caso, o lado sentimental.

Não bole só tua vida, quer dizer, no meu caso, que foi feito pra eu morrer, eu não

tava só doente e o resto tava tudo bem. Não! Era o caso até de ficar louca. Quando

você faz o trabalho, sua vida volta no eixo, tudo volta a se encaixar. Meu Deus do

céu, graças a Deus, tá tudo tranquilo, eu nem acredito.”

Tia: - “Você procura fazer alguma coisa, você não recebe, você precisando de

dinheiro. ‘Eu vou vender esse copo’. Você vende, tem quem venha comprar, agora

pra pagar.”

Etnógrafa: - E tá até hoje assim, dona Lica?


91

Tia: - “Tô melhorando, tenho só um mês de trabalho, tá melhorando, mas

ainda não tá cem por cento.”

Sobrinha: - “É pra você entender mais ou menos uma coisa, pra saber

separar quando é essa coisa espiritual do candomblé, que é feito, sua vida fica

assim. Se fosse coisa de médico, eu ia pro médico e me cuidava, e minha vida tava

toda normal, não tava desandada. Pra você ter mais ou menos uma noção.”

Tia: - “Quando eu tive minha doença [grave], que eu te falei, eu fiz minha

cirurgia, deu tudo certo. Ela não tinha metido o cabo no meu caminho ainda

(risos)”.

Sobrinha: - “Falam assim: - ‘Ah, é coisa de médico e tá indo pro candomblé.’

Mas não é. Lá no candomblé, ele fala: - ‘É pros homens dos anéis.’ O santo fala pra

você. Aí você já sabe que seu caso não é lá que vai resolver. É no médico.”

Gentil, guerreiro,
Vá buscar a sua flecha!
Eu não, que eu não vou lá,
Se eu for lá, Ogum me pega!

Procurei Lica para entrevistá-la sobre sua relação com o candomblé e foi por

isso que ela deu início à narração de sua história dizendo que, se pudesse, não

voltava a frequentar assiduamente nenhum outro terreiro (ela estava então

afastada do terreiro em que fora inicialmente “batizada”). O ataque a Lica, a defesa

de Lica – batalhas que a impeliram de novo ao candomblé – articularam tantos

temas instigantes que, mesmo trágicos, despertaram não só o meu interesse, como

também o de sua sobrinha. Eu também, assim como ela, procurava saber mais

sobre candomblé.

Por isso, em vez de contar eu mesma o caso de Lica, julguei de interesse que

ele fosse apresentado através da interação entre nós três, optando então por manter

o formato de entrevista, o que resultou inevitavelmente em um maior número de

páginas necessárias para o desenrolar da história. Com isso, quis marcar o tempo

narrativo, em que o feitiço só é revelado depois de algumas páginas transcritas,


92

entrando quase como uma “camada” sobreposta à interação de Lica com seus

caboclos. Um tempo narrativo que tem a vantagem de tornar evidente a incerteza,

pois mostra as questões como questões, e não como afirmações já estáveis (“A

senhora botou alguma coisa na sua roupa, a senhora sabe disso?”; “Que esse lado,

acho que é espiritual mesmo, né?”)22.

Além de também achar que a riqueza desta narrativa seria achatada em

demasiado se eu a contasse apenas com minhas palavras, eu quis enfatizar que, ao

buscar o tratamento de um caso de feitiço, ele normalmente se torna um assunto

coletivo (seja entre a família consanguínea, seja entre a família de santo, ou entre

amigos e vizinhos bem próximos)23. Não é apenas Lica que conta seu caso. É

verdade que ela se lembra de pouca coisa, daí a necessidade que outros estivessem

presentes na entrevista, porém, Lica conseguiria, se quisesse, narrar os eventos

ocorridos no dia em que esteve desacordada, pois eles lhes foram contados e

recontados à exaustão, ela já os havia reconstituído. Mas Lica optou por chamar

sua sobrinha, uma amiga – que fala pouco neste trecho – e uma segunda sobrinha,

que finalmente não pôde ir, mas marcava sua presença por meio de telefonemas

durante a entrevista. Porém, mais do que um assunto coletivo, os ataques e curas

feiticeiros são, creio, uma ação de coletivização. Penso em coletivização não

exatamente no sentido de promoção da ordem e das fronteiras grupais ou

familiares, reequilibrando relações antes conflituosas24. Penso em coletivização

precisamente no sentido de que a ação feiticeira é também um povoamento, isto é,

seus efeitos benéficos e maléficos, eles próprios, comportam um povoamento: -“Ele

jogou o povo dele em cima dela”, diz-se.

A feitiçaria, enquanto uma ação bem ou mal sucedida de povoamento,

22
“Focalizar [apenas] o conteúdo da história seria perder a força poética do próprio processo em que
tal história é tecida – uma experiência narrativa que é ela própria constitutiva do poder dos exus”
(Cardoso, 2004: 106). Isso, eu acrescentaria, tanto quando são os exus que narram suas histórias como
quando são os humanos.
23
Coletivo no sentido de envolver mais de uma pessoa (ou ser) e não, evidentemente, no sentido de
público.
24
Ver Douglas (1970: 25) para uma crítica da simplificação excessiva da ideia, presente nos estudos
etnográficos sobre bruxaria subsequentes àquele de Evans-Pritchard, de que as acusações de
feitiçaria resultariam em um equilíbrio comunitário.
93

atinge pessoas já povoadas por espíritos e humanos. A pessoa é atacada, e não um

indivíduo cujas fronteiras se encerram em seu próprio corpo. O alvo do feitiço não

é só a vida de um indivíduo, dizia a sobrinha, mas suas relações familiares,

amorosas, de trabalho. Ao povoar sua vítima, os espíritos enviados deserticam-na

daqueles que ela mais precisa, de quem mais gosta ou com quem mais convive. O

amante desaparece, a filha não lhe dirige a palavra, ou só o faz para brigar, seus

clientes somem, ou não a pagam, o dinheiro evapora, a saúde se esvai.

Felizmente, o ataque a Lica conseguiu surtá-la apenas de forma momentânea

e intermitente. Os exus mandados para prejudicá-la não lograram povoá-la em

definitivo porque ela já era povoada (ou melhor, seus povoamentos, mesmo

adormecidos, ainda estavam vivos, ainda eram fortes o suficiente). A família de

Lica temia o afastamento definitivo de seus caboclos, quando então o espaço estaria

livre para o domínio dos exus enviados. Daí a urgência do trabalho de limpeza, que

alimentaria as entidades enviadas e aquelas que já a acompanhavam, fortalecendo

estas na cabeça de Lica e convencendo aquelas a não mais atrapalhá-la. Felizmente

Lica “viu o resultado” de sua “obrigação” que, junto com a passagem de seus

santos pela terra, trouxe-a de volta.

O surto de Lica abriu várias visões. Quem acordou? Penso que os caboclos

de Lica acordaram depois de algum tempo dormentes, devido ao afastamento dela

do candomblé (e eram eles que estranhavam o relógio, que não lhes pertencia). Mas

também acordou a própria Lica, quando dizia à sobrinha “eu tenho santo, não se

preocupe”. Penso, também, que ambos, Lica e os caboclos, acordavam e dormiam,

num movimento de aproximação e distanciamento, deixando-a fora do ar. Lica,

dias depois, acordou novamente, agora ciente de que se tratava de um feitiço e não

apenas de seus santos, atentando-a25.

Marujo zuela:

25
Essa dinâmica entre acordar e dormir, entre enxergar e estar cega é também, me parece, a dinâmica
do conhecimento no candomblé, um tema que mereceria maior atenção, mas que infelizmente excede
o objetivo deste trabalho.
94

Lá fora apitou dois navios,


Apitou mas não pôde atracar,
Que a costa já tá tomada
Pela marujada de Martim de Angolá

Retomemos a narração de Lica, agora com minhas palavras misturadas às

dela. Lica e Rian estavam juntos há algum tempo quando ele viajou para

Jacarezinho a trabalho. Depois de dois meses na cidade, o homem arrumou uma

namorada. Ela o julgava solteiro, então quando Rian contou a Lica sobre sua

namorada, Lica não dirigiu sua raiva à mulher, mas a Rian, pois era ele quem se

sabia compromissado. Como a mulher morava fora, Lica não deu grande

importância aos pulos do marido. Anos mais tarde, a moça engravidou, e Lica,

comovida pelo surgimento de uma criança, permitiu que Rian trouxesse ambos,

mãe e filho, para morar com ele. - “Aí foi todo seu erro” – o Exu a advertiu.

- “Mas como eu ia deixar o filho e a mãe sozinhos? Não tenho natureza pra

isso!” – replicou Lica, concordando porém que ela não deveria ter assentido.

Lica então não imaginava o quanto a mulher poderia ser má para ela.

Tentando povoá-la com exus, a feiticeira de Lica visava desertificá-la de suas

relações anteriores, de seus povoamentos, tantos os espirituais como os humanos,


até que ela própria se desertasse, endoidando, ou, no pior dos casos, vindo a

falecer. O momento crítico, o momento que provocou o ataque segundo Lica e sua

sobrinha, foi a reforma da pousada. Ali, todos estavam juntos: Rian e Lica, com as

filhas e netos dela. Depois, o ataque feiticeiro resultou no afastamento paulatino do

homem. Ambos, homem e mulher, deixaram de se habitar, eles não mais se

compunham. Com o trabalho de limpeza, ele volta à casa dela, mas não como

antes. Ele evita a filha, que não lhe dirige a palavra, e por isso Lica ainda se

perguntaria se desejava mesmo ficar com ele, pois sem todos juntos, sem todos se

povoando, já não era mais a mesma coisa. Contudo, antes de duvidar de seu desejo,

Lica ainda lutaria, na macumba, com a mulher de Rian.

Durante muito tempo, pelo menos para Lica, existira lugar para as duas

mulheres, mas a esposa de Rian não mais aceitou – ou nunca antes aceitara, neste
95

caso, não houve como saber –, então Lica passou a alvejar o único lugar disponível.

Povoamento

Certo dia, Ângela me falou de José, o marido de Jandira, cujo Erê eu acabara

de ver em seu terreiro. Minutos depois, ainda me contando sobre José, disse que a

mulher dele nascera em Samburá. Como eu sabia que Jandira não era de Samburá,

eu nada entendi. Ângela então me explicou: - “Jandira é a xodó de José”.

Xodó, ela me disse, é um dos termos para amante na região. Tal como Lica é

xodó de Rian, Jandira também o é de José. Mas ambas são – ou podem também ser

– vistas como namoradas, ou mesmo esposas, daí Ângela chamar de esposas as

duas mulheres de José. É uma relação potencialmente conflituosa, objeto de um

“perigo constante”, como disse a sobrinha de Lica, pois que frequentemente alvo e

fonte de atos feiticeiros (algo que não se restringe ao interior da Bahia – ver por

exemplo Stewart & Strathern, 2004: 79; 189).

Analisando lutas similares às batalhas feiticeiras de Lica, a literatura

antropológica fez da feitiçaria uma expressão ou reflexo dos conflitos resultantes

das contradições e indefinições específicas de cada sistema social (e, nesta região da

Bahia, os arranjos conjugais concomitantes seriam, obviamente, as tramas

conflituosas potencialmente sujeitas à bruxaria)26. Nesta tese, ao contrário, tomou-

se a feitiçaria em seu caráter direto, sendo ela própria uma ação, e mais

propriamente, uma entre outras ações possíveis. Como dizem os Leacock (1972:

274), no Batuque de Belém do Pará, “acredita-se que a feitiçaria surja do conflito,

normalmente aberto, e o provocador frequentemente é visto como alguém que

tenta se vingar de uma injúria prévia”, mas isso não significa que a feitiçaria se

26
Sobre a abordagem da bruxaria como reflexo de estruturas, conflitos ou anomias sociais, ver
Douglas (1970: 25), Nadel (1952: 28 apud Middleton & Winter, 1963: 6), Trindade (1985: 90 apud
Cardoso, 2004: 147-9), Maggie (2001: 81), entre tantos outros. Para uma crítica a esta abordagem, ver
Favret-Saada (1977, 1989, 1990) que, ao estudar a feitiçaria no interior francês, se recusou em
participar de uma partilha cognitiva em que o parentesco forneceria a realidade de que os atos
mágicos careceriam.
96

reduza à expressão deste conflito, pelo contrário, “a feitiçaria que é frequentemente

comandada contra um cônjuge infiel, por exemplo, ou contra seu amante, é vista

como uma retaliação”. Também em minha experiência, as ações feiticeiras

normalmente (mas nem sempre) emergem de um desentendimento anterior e elas

também são vistas, sentidas e justificadas como um ato de vingança. Tomá-las

como ações e práticas confere a vantagem de deixar longe a ideia de passividade

contida na abordagem de que a feitiçaria só viria a ser uma ação se simbólica, ou

seja, uma ação de segunda mão.

Abaixo descreverei uma série de experiências relacionadas ao tema da

traição, sobretudo a masculina, mas não exclusivamente. Ver-se-á que este é um

assunto complexo, sobre o qual não tenho a intenção de me aprofundar neste

trabalho. Aliás, eu nem mesmo poderia, pois não dirigi minha experiência de

campo em torno dessas questões. Mas, conquanto ele foi um tema importante para

os atos feiticeiros por mim presenciados, me pareceu importante, através de

descrições etnográficas, lhe acrescentar ao menos um pouco mais de complexidade.

O objetivo aqui não é fornecer um contexto que justificaria as ações feiticeiras; ao

contrário, quer-se mostrar justamente a variabilidade das vivências possíveis em

torno do tema e, com isso, deixar evidente que a luta feiticeira é uma das ações

possíveis e não uma consequência sociológica do que se chamaria de sistema de

parentesco baiano.

Nesta tese, a intenção não poderia ser mais diferente. Quis que a própria tese

se deixasse afetar pelas cinéticas singulares dos atos feiticeiros e, para tanto, se

descartará o sentido de representação embutido no conceito de reflexo, sem no

entanto abandonar seu sentido ótico, afinal, a ideia de que algo cá está também lá

se mostrará proveitosa para descrever os modos singulares de propagação desses

atos. Tal conceito estará presente de forma indireta ao longo deste item, quando

insistirei sobre a potencialidade dos espíritos, e agora também a dos humanos, de

povoar e capturar uma pessoa, preenchendo-a ou desertificando-a, como veremos


97

melhor abaixo, após descrever variações em torno do tema da traição.

Exus zuelam:

Juraram de me matar
na porta do cabaré.
Eu ando é de noite a dia,
não mata por que não quer.

E as pessoas respondem:

Aê Tranca-Rua,
marido de sete mulher.

Damião, um senhor de meia idade que eu sempre via nos toques de

candomblé, mas nunca tinha trocado senão um boa noite, dirigiu-me a palavra

num dia de festa: - “Adivinhe com quantas mulheres já fui casado?”

- Quantas?

- “Já tive sete mulheres.”

- É – eu respondi, sem comentar.

- “E meu pai tinha duas mulheres.”

- É mesmo! – eu respondi, ainda surpresa pelas súbitas revelações, e

perguntei mais detalhes.

Damião então me contou que chamava de mãe as duas mulheres que

moravam juntas na mesma casa, mas em quartos diferentes. O tio de Damião

também tivera duas mulheres, aliás, quase todos os homens de sua família paterna

também, ele disse. Talvez porque, “no tempo dos antigos, a família não queria
deixar menina solteira dentro de casa. Hoje não, mulher tem mais governo”.

Damião ainda revelou que o pai de seu Manuel Vicente, o senhor que

acompanhava nossa conversa, também tinha duas mulheres. - “Mas as duas eram

brigadas, cada uma morava na sua casa, e elas não se falavam”, detalhou seu

Manuel.

- Hoje tem homem que tem duas, mas escondido – eu disse. Já vi um caso de

as duas saberem e concordarem, mas é raro. Às vezes a esposa sabe ou desconfia,


98

mas não aceita, ou não fala que sabe.

- “Você tem que ter porque, se não, você leva gaia”, argumentou Damião.

“Eu era da casa pro trabalho, do trabalho pra casa, vou dizer, não tenho vergonha:

tomei gaia.”

- “Os homens que não têm outra são corno: veja o irmão de Celeste, Charles,

a mulher dele é corneteira” – disse agora Timóteo, que concordaria com Damião se

conversasse com ele sobre a ‘necessidade’ de se ter uma amante. - “As mulheres

dão corno”, Timóteo prosseguiu, “mas pra elas, a feiura pega: - ‘Aquela mulher,

que coisa horrorosa, é gaieira’” – ele disse, imitando a “linguagem do povo”, e

depois prosseguiu: - “Mas eu sei que um dia Lindalva [a amante] vai me trair. Olhe

a idade dela! Ela não vai ficar só comigo quando eu ficar velho.”

- “E Lindalva não tem ciúmes?” – eu perguntei.

Amigo: - “Se Lindalva conheceu ele assim! Ele já era casado antes!”

Timóteo: - “Mas elas têm. Se sabe de alguma outra que não Ariane [a

esposa], fica enciumada... Ter duas mulheres é bom, quando uma se zanga, vou pra

beira da outra”, ele disse rindo.

- Ariane não desconfia? – eu perguntei

- “Ela sabe. Sabe e faz de conta que não vê, que não sabe!”

Algumas semanas depois, eu brinquei dizendo a Timóteo que ele tinha duas

esposas. E brinquei porque de fato me parecia: os dois, Timóteo e a amante, se

falavam todos os dias, ela lhe dava satisfação, ligando para contar o que estava

fazendo e o que ia fazer, e ele, por sua vez, lhe pagava despesas e lhe oferecia

mimos diversos. E isso já durava vários anos. Mas Timóteo negou: sua esposa era

uma só; sua amante era, na verdade, sua “namorada”27.

“Não vou me redimir [render] a uma só mulher”, dizem vários desses

homens que optam por ter mais de um relacionamento amoroso ao mesmo tempo.

27
Timóteo é chamado de “namorador” por aqueles que o conhecem e sabem de sua disposição para
ter mais de uma mulher ao mesmo tempo (assim como o são os outros tantos homens que, na região,
têm “namoros” fora do casamento).
99

Mas isso pode parecer apenas uma justificativa, ou seja, uma mentira para encobrir

o fato de que o fazem por gosto. E, de fato, às vezes esse enunciado nada mais é do

que uma desculpa conveniente, sobretudo quando visto do ponto de vista

feminino. Contudo, não há como desconsiderar que o enunciado abarca também o

alto grau de desconfiança e medo suscitados nos homens quanto às potenciais

traições femininas. Aliás, uma percepção de perigo amplamente verbalizada por

meio do comentário genérico que acompanha os vários casos de adultério

feminino: - “Olha como mulher é...”; ou então pela reflexão mais direta: - “Mulher é

muito traiçoeira, homem diz a que veio, ele sempre quer e diz que quer pegar, já

mulher, não, faz na surdina”.

Os exus não se cansa de zuelar:

Dói, dói, dói demais


Um amor faz sofrer,
Dois amor faz chorar
Quem é você
Pra dormir na minha cama?
Papagaio come milho,
Periquito leva a fama.

- “A mãe do meu primeiro homem não gostava de mim porque ele era

branco e eu, mulata”, me disse Mara. “A gente não ficou junto por isso. E depois,

eu casei com outro branco. Minha linha não se dá com moreno, só com branco, é

linha de santos. O primeiro era professor, me ensinou a ler, era uns dez anos mais

velho. Mas depois deu pra beber, quando chegava em casa, acabava com a casa,

com a esposa, com a mãe. A mulher dele fez coisa pra ficar com ele! Eu via que

tinha coisa errada, mas não ia dizer. Logo eu que já fui namorada dele, podiam

pensar que eu queria alguma coisa a mais. Um dia, bêbado, ele juntou as pessoas

do bar e disse: - ‘Essa aí é a mulher que eu amo, a que eu estou em casa, eu não

amo.’ Mas eu não ia ficar com ele. Ele casado no civil, eu ia ser amante dele? Fique

aí...”

Meiruza, por sua vez, acabou por aceitar ser a “segunda” daquele que um

dia foi a “primeira”. Ela nem sabe como chegou à casa de Nildo, seu então pai-de-
100

santo, no dia em que seu marido e ela terminaram o casamento de quase três

décadas. - “Ele me bateu só na vez que separamos.”

- “Você fica com ele ainda? Tem que se bater na cama, não fora!” – disse um

rapaz, presente àquele dia no candomblé de Nildo.

- “Fico com ele, gosto, foi meu primeiro namorado, meu primeiro marido, é

pai dos meus filhos. A gente se separou por causa daquela mulher que disse que

vai quebrar minha pata, mas ele me falou que passa mais tempo comigo do que

com a mulher que ele dorme.”

- “Olhe de quem ele fica atrás!” – confirmou a amiga de Meiruza, animando-

a.

- “Ele me perguntou: - ‘Você fez macumba pra mim?’ Não fiz! Quem faz

macumba veve cortado e eu não tenho nada. A mulher dele diz que eu faço

mandinga pra ela, que vai quebrar minha pata... Antes eu era a primeira, agora eu

sou a última.”

Exu: - “Você pegue pimenta-malagueta e azougue, passe no pilão e jogue no

quintal dela.”

Meiruza: - “Eu não passo pela casa dela. Ela [a amiga] pode jogar?”

Exu: - “Pooode, pimenta-da-costa é boooom”, disse o Exu, irônico.

Ogã visitante: - “Isso tem lugar e hora certos pra fazer, você sabe, pode

voltar pra você. Então, vai fazer? Faça direito. Você sabe o que é azougue?”

Meiruza: - “É carne?”

Ogã visitante: - “Não.”

Exu: - “É um negócio que vende de um. Faça [tal] hora e não faça em casa.

Num tô falando certo, moço?”

Ogã visitante: - “Tá sim. Isso é certo.”

Meiruza: - “Essas coisas, eu só faço no banheiro que é pra ninguém ver.”

Ogã visitante: - “Mas o banheiro é sua casa, fica tudo pra você!”

Meiruza: - “Vou dar pra ele [o Exu] fazer.”


101

Enquanto Ariane, a mulher de Timóteo, fingia não ver o namoro do marido,

Meiruza sabia e brigava com o marido, oscilando entre a conformidade de que

“não há bom sem defeito” e discussões com separações temporárias ou definitivas.

Já Filó, como Meiruza, reclamava das amantes de Brás, seu marido, das quais sabia

o nome e o sobrenome, além de detalhes mais íntimos sobre a família.

- “A irmã de uma delas procurou por Brás aqui em casa: - ‘Cadê Brás,

marido de minha irmã?’ Veja o descaramento: ela veio cobrar o dinheiro que Brás

lhe devia na minha própria casa! Eu chamei Brás e fiz ela repetir na frente dele. Ele

desconversou, fingiu que não ouviu. Eu só observei. A outra ligava pra cá pedindo

merenda. Brás dizia: - ‘Você tá pedindo demais! Peça a sua mãe aí do lado.’”

Filó convivia com uma situação da qual estava longe de gostar e, como

Meiruza, alternou períodos de convivência relativamente pacífica com separações

mais ou menos duradouras. Diferentemente dessas três mulheres, houve outras

que se recusaram terminantemente a conviver com quaisquer traições em sua

família, seja a de seus filhos, a de seus pais ou a de seu marido. A filha de uma

esposa traída me contava do “barraco” que armou com a amante do pai:

- “A de Taquara era casada, contei pro marido dela, disse tudo a ele na cara

dela. Fui reclamar com meu pai, só eu falando, meus irmãos não disseram nada,

ficaram mudos. Quase rumei uma garrafa na cabeça dele, minha mãe que me

parou. Ele não é bom pra mãinha, de jeito nenhum, e eu não consigo aceitar.”

Anos mais tarde, ela própria foi traída. Sua avó a aconselhava: - “Lute por

ele”, mas ela também não aceitou. Deixou o marido, e até então não mais se

reconciliaram28.

Cosme e Damião é dois, dois.

28
Faz-se necessário dizer que eu não disponho de tantas elaborações nativas sobre a traição feminina,
pois, quando trai, uma mulher geralmente procura esconder com bastante cuidado seus namoros
fora do casamento. Porém, a traição feminina está longe de ser considerada inexistente ou mesmo
rara. Ao contrário, a assunção é de que a mulher também trai, ainda que o homem seja mais prolífico
nesse quesito.
102

Menino vadio é Doum.


É Doum.
É Doum.
Oi!, menino vadio é Doum.

O marido que trai muitas vezes fica até tarde da noite na casa da amante,

chegando na sua própria de madrugada, ou mesmo dormindo fora. O trabalho é

uma das principais desculpas dadas à esposa. A amante muitas vezes nega sua

relação amorosa, dizendo que ele é somente o pai de seus filhos, um primo de

visita, um colega de trabalho, um amigo que a ajuda num momento difícil. Às

vezes, porém, ela o chama de marido, seja porque ele vem de longe, e a distância

permite que ele se apresente solteiro aos olhos dos vizinhos, seja porque todos

sabem que ela é “esposa de um homem casado”. Ele frequentemente contribui para

as despesas de sua amante – que pode ou não ter filhos com ele –, e às vezes, mas

nem sempre, sustenta a amante ao preço do sacrifício ou da negligência do sustento

de sua esposa e filhos. A esposa, por sua vez, fiscaliza as ações do marido, muitas

vezes com sucesso, fazendo os dois amantes se separarem definitiva ou

temporariamente, mas às vezes não consegue nada além de brigas e mais brigas

dentro de casa.
A amante, um dia, pode arranjar outro homem, quando se torna a mulher de

um marido que agora mora com ela. Seu então marido pode vir a registrar o filho

que ele já encontrou quando chegou em sua casa. Seu antigo amante talvez suma,

ou talvez apenas se afaste, encontrando-a esporadicamente. Seu esposo então

ciúma dela, farejando uma traição. Por não ter mais sossego, ela, irritada, resolve se

separar. Seu ex-marido tenta durante algum tempo ter a companheira de volta, ou

então, apenas por “pirraça”, se esforça para lhe provocar ciúmes ou problemas

variados. Mas eis que seu antigo amante também está separado. Eles se encontram

e, a despeito das desfeitas do ex-marido da mulher, passam a viver juntos, agora

marido e mulher.

A história acima não envolveu apenas três casais. Ela foi na verdade
103

composta por eventos vividos por muitos outros casais que, no entanto, foram

agrupados em uma só narração. Com isso, e também com as narrações anteriores,

quis criar uma sensação de movimento que senti durante meu trabalho de campo,

quando pude ver inúmeros casamentos se desfazerem e outros tantos se firmarem.

Ainda mais importante, desejei também enfatizar que, apesar de a traição

masculina ser relativamente comum – arriscaria a dizer até mesmo natural –, não

estamos diante de mulheres que, uma vez traídas, têm na luta para manter ou

conseguir seu marido/amante de volta um caminho inelutável em seu horizonte.

Esta luta é, a bem dizer, uma das decisões possíveis.

Os diversos casamentos que homens e mulheres têm em sua vida,

juntamente com as relações extra-conjugais – que, dependendo de quem olha, não

são exatamente extra-conjugais, mas um segundo compromisso marital – já foram

objeto de inúmeras considerações antropológicas. Para alguns, a instabilidade

destes arranjos deve-se à falta de uma base familiar consistente (Frazier, 1942: 470-

478 apud Segato, 2000: 64), para outros, ela se originaria de dificuldades econômicas

(Smith, 1956 e Clarke, 1957 apud Segato, 2000[1986]: 64), históricas (King, 1945 apud

Segato, 2000: 64) ou demográficas (Otterbein, 1965 apud Segato, 2000: 64). E, numa

vertente menos propensa a enxergar senão a carência e a dificuldade, a aparente

desorganização e casualidade seriam na verdade sobrevivência da família

poligínica africana (Herskovits, 1966: 58, apud Segato, 2000: 64), ou então uma

forma de organização alternativa, com sistematicidade própria, cuja ênfase “não é

posta na família nuclear, como ocorre nas classes médias, mas sim na solidariedade

entre mãe e filho” (Smith, 1970: 67 apud Segato, 2000: 65). Tal ênfase, a

“matrifocalidade”, seria então considerada a característica definidora do que se

chamou de “família negro-americana”, nos estudos de parentesco feitos nos EUA e

Caribe, e de “família das classes populares”, nos estudos feitos no Brasil (Marcelin,

1996: 12-13 28). Dada sua variabilidade, os homens ocupariam uma zona instável
104

desse modelo familiar, cujo bloco sólido, menos volátil, se comporia da mãe e seus

filhos.

Contudo, mesmo se a matrifocalidade for de fato o elemento definidor da

organização de algumas famílias (e não da “família das classes populares” ou da

“família negra”), mesmo assim, penso que a desconsideração analítico-descritiva

de suas áreas desfocadas seria empobrecedora, para dizer o mínimo. Nesta tese, ao

contrário, importa levar em conta os modos atuais de combinação de cada pessoa.

Por exemplo, se para a mãe de Karine, seu ex-marido não presta, para Karine, ao

contrário, ele é o pai com quem ela convive, com quem vai à igreja, com quem

conversa e a quem pede ajuda. O ex-marido da mãe de Karine, que a criou durante

alguns anos, e com quem Karine não partilha o sangue que lhe daria o parentesco

biológico, é no entanto “o mesmo que pai” para ela. Joelson, por sua vez, foi criado

pelo avô materno. É ao avô que ele e seus irmãos pedem a bênção, chamando-o de

“meu pai”. Mas Joelson também chama Vitão de pai, um vizinho de sua família

com quem sua mãe há muito namorou, sem ter se casado. Vitão é pai de muitos

filhos, mas criou poucos deles. Durante dois anos, nunca houve motivo para eu

achar que Joelson não era de fato filho de Vitão, pois que chamava de “minha

irmã” e “meu irmão” a todos os filhos conhecidos de seu pai. Mas, um dia,

conversando à toa, a mãe de Joelson me contou que o filho não conhecia o pai, ela

própria nunca mais o tinha visto. - “Foi gaiatice de Vitão que, depois de Joelson já

crescido, resolveu chamar Joelson de filho. Nunca ajudou com nada, só chama de

filho”, ela explicou. Há portanto três pais que rondam a consideração de Joelson: o

avô, o vizinho e o pai carnal, de quem ele nunca falara comigo (e de quem também

não se interessou em falar, quando puxei o assunto).

Algo parecido talvez aconteça com o filho do próprio Joelson, que

provavelmente terá mais de um pai. Quando o garoto nasceu, Joelson já não estava

mais com Crislaine, a mãe do garoto, mas assim que soube foi visitá-lo:

- “Parti pra casa de Crislaine. O marido dela apareceu: - ‘O que tá fazendo

aqui?’ Nem dei ligança, fui logo entrando, Crislaine me xingando: - ‘Vagabundo,

descarado, defunto!’ Eu disse: - ‘Que vagabundo, descarado que nada, rapaz’.


105

Peguei no colo: - ‘Quando fizer dois anos, vou carregar!’ Crislaine gritou: - ‘Vai

carregar nada, seu miserável!’”

Etnógrafa: - Ele nasceu antes do tempo!

Joelson: - “O desgraçadinho nasceu antes do tempo, de sete meses. Pesado:

um quilo e setecentos.”

- Um quilo e setecentos?! Não era pra tá no hospital? – eu me assustei.

- “Vira essa boca pra lá, tá mamando, é bonitinho!”

- Desculpe, é que me preocupei. Mas não era mulher?!

- “O médico errou.”

- E parece com você?

- “O nariz parece, e o olho também. O cabelo não puxou por mim, que é

liso.”

- E a cor?

- “É moreno que nem o pai. Moreno bem moreno, que eu não gosto desse

negócio de branco!” – disse Joelson, como de costume fazendo troça da minha cor,

que seria resultado, segundo ele, de eu não usar corante (colorau ou urucum) em

minha comida.

Ao telefone, perguntei se ele daria dinheiro à mãe do garoto. Ele

desconversou: - “A ligação tá falhando. O quê? Não tô ouvindo!” Como insisti, ele

argumentou: - “Pai não é quem cria?!”.

A mãe de Joelson então gritou irritada, ao fundo: - “O pai biológico tem que

dar dinheiro também, sua porra!”

Meses mais tarde, Joelson não mais saberia se o moleque era seu filho ou do

pai que já o chamava de filho, pois a mãe oscilava entre as duas paternidades, a de

seu ex-namorado e a de seu atual marido. E ela não declarava a intenção, pelo

menos por enquanto, de requisitar o teste de DNA, algo cada vez mais recorrente

na região. Ao que tudo indica, ela optará que seu atual marido registre a criança,

algo não raro entre mulheres cuja gravidez se dá entre o fim de uma relação e o

início de outra.
106

Juliano, assim como Joelson, também possui três pais. O primeiro é ex-

marido de sua mãe, o pai que ele adora e que o adotou, preenchendo o espaço

antes vazio em sua certidão de nascimento. O segundo é seu pai carnal, que ele não

conhece, mas sabe quem é. E o terceiro é seu avô, na casa de quem Juliano mora e a

quem, desde que aprendeu a falar, chama de painho. A história da mãe de Juliano

também não é diferente: o avô de Juliano, seu painho querido, é pai de criação de

sua mãe. Só há pouco tempo, já depois de bem mais velha, ela se aproximou de seu

pai biológico que, no modo de concepção de Juliano, um garoto apenas começando

destrinchar suas várias relações de parentesco, ganhou a alcunha de segundo pai

de sua mãe. Pai que ele relutou, durante algum tempo, em chamar de avô.

A paternidade múltipla não é exclusiva dos homens. Ao contrário do que se

poderia supor, não é raro uma pessoa chamar a mais de uma mulher de mãe.

Jurema me contou que Boca um dia almoçou em sua casa. Outro dia jantou e no dia

seguinte dormiu. Até que, anos depois, ele foi tomado por ela como filho, sem que

houvesse uma conversa formal com a mãe biológica do garoto. Assim também

aconteceu com Aninha e Batão, hoje já criados, que tratam Jurema como mãe,

ajudando-a, pagando-lhe as despesas, dando-lhe satisfação.

Com Gil se deu algo parecido. Depois de bastante tempo sem vê-lo, eu quase

o tomei por outro. Eu sabia que ele não era filho de Do Carmo, a quem, entretanto,

ele chamava de mãinha. Por isso julguei que ele não era ele. - “Mas ele foi criado

por ela”, me disse um amigo em comum, “no sentido de Do Carmo não lhe negar

nada”, sustentando-lhe prazeres e necessidades.

Minha mãe cheira alecrim!


Até eu tô cheirando alecrim!
Até você tá cheirando alecrim!

As descrições acima obviamente não esgotam as possibilidades de

combinações entre pais, mães e filhos, e nem tampouco as questões que, com

complexidade, elas suscitam. Gostaria entretanto de colocar em evidência que,

mesmo com o sofrimento causado pela rejeição, desprezo ou afastamento de pais


107

biológicos – em maior quantidade do que o de mães –, a ausência daqueles pode se

fazer acompanhar pela criação de novas relações de paternidade. Relações,

observe-se, que às vezes são e as vezes não são atualizadas. Joelson, por exemplo,

brigou com seu avô, o pai que o criou. Juliano, por sua vez, ainda é próximo de

seus dois pais (de seu pai de criação, que não é mais marido de sua mãe, e de seu

avô, que é pai de criação de sua mãe). Mas seu pai biológico, colocado em segundo

plano, não foi por isso anulado. Como aconteceu com sua mãe, Juliano parece

disposto a um dia se reaproximar do pai que hoje em dia ele mal reconhece. Claro,

essas reaproximações nem sempre são bem sucedidas. Foi o que aconteceu com

Gilmária, cuja história é cheia de tristeza e superação:

- “Minha mãe morava numa roça aqui perto. Passava sempre um moço

bonito, pra não dizer o contrário. Ela se apaixonou, e ele trouxe minha mãe pra

cidade. Um dia, ele endoidou, falou que ia matar as três. Minha mãe saiu na

carreira, uma filha ainda bebê no braço, a outra puxada pela asa. Meu pai deu três

talhos na porta, uma para cada uma de nós – até hoje estão lá –, depois evaporou e

virou breu. Ele era de Samburá [uma cidade vizinha]. Quando eu tava com quatro

anos, me disseram: - ‘Esse aí é seu pai!’ Eu fiquei doida atrás dele, mas ele disse: -

‘Você é muito preta!’ Eu puxei à minha mãe e minha irmã puxou a ele. Quando eu

já tava velha, uma tia minha ficou atrás de mim, ela era a cara da minha irmã, era

minha tia mesmo. Minha mãe não queria que eu encontrasse com ela porque minha

irmã caiu doente devido aos abraços dela, então ficou com medo que isso

acontecesse comigo também. Veio em casa procurando por mim, pela esposa de

Gilmar, que mora de junto do mercado velho, filha de Zé Maria. Eu passei a língua

das meninas pra dizer que eu não tava, mas ela conseguiu me ver e disse: - ‘Eu não

mordo! Seu pai não é puro, ele é remediado, procure por ele!’ Mas não me enche os

olhos. Se ele quiser me dar, se for da vontade dele, muito bem, mas pra eu ir atrás?

Não quero. Estou aqui, não morri, minha mãe e meu avô me criaram.”

§
108

“A família de mulheres e as redes sociais por elas construídas, não

produzem, [portanto], uma sociedade de falta, de falta de homens, de abundância

de mães, uma sociedade matrifocal... Trata-se de uma sociedade de pessoas, na

qual os laços são possíveis somente, e somente se, eles transitam por um lugar

assinalável”, diz Marcelin (1996: 162) sobre a família e o parentesco em Cachoeira,

Recôncavo baiano. Tal lugar assinalável, continua o autor, é a casa, o local de

residência que reúne a família, cujo vínculo não é determinado nem pela aliança

nem pela filiação. Tal lugar é também a mãe. Sim, diz o autor, a mãe é ali

construída como um lugar.

Penso, porém, que a interessante ideia de que a mãe é um lugar possa ser

estendida também às pessoas de modo geral, sejam mães, pais, filhos, filhas,

maridos ou esposas. Dizíamos acima que feitiçaria é um ato de coletivização. Nos

feitiços de amarração, isto é evidente: uma pessoa apaixonada alimentará os santos

e exus de sua paixão, a fim de que, seduzidos, eles facilitem sua entrada no

território daquele que eles já habitam. Nos inúmeros casos em que um parente –

consanguíneo, afim ou de criação – é atingido no lugar da vítima primeiramente

alvejada29, a coletivização feiticeira também está evidente. Ali, a pessoa é atacada, e

não um indivíduo cujas fronteiras se encerram em seu próprio corpo. Nos feitiços

de vingança, ao contrário, apaga-se a nitidez de uma coletivização que, no entanto,

também se faz presente. Também ali a vítima é povoada. Os exus ou outros

espíritos que passam a habitá-la visam, no entanto, tornar-se os únicos senhores de

sua morada, eliminando ou enfraquecendo as múltiplas camadas de povoamentos

com os quais sua vítima já contava30. Mesmo fraco e reduzido, o ser atingido pela

29
Além de Favret-Saada, citada acima, outros pesquisadores se depararam com a recorrência dessa
mesma possibilidade. Ver, por exemplo, Porto (2007: 177) e Mauss (2003: 101).
30
Maggie (2001: 46), estudando a criação e o fechamento de um terreiro umbandista em Andaraí, Rio
de Janeiro, descreve uma ação similar quando duas pessoas entram em uma “demanda”. Na
demanda, diz a autora, inicia-se uma “guerra de orixá”, e “o maior perigo era o de os orixás de uma
delas conseguirem prender as linhas de algum orixá da outra (...) Prendendo-se a linha de um orixá,
este não poderia mais trabalhar para proteger seu cavalo. O orixá em causa ficaria preso,
imobilizado, e não incorporaria mais em seu cavalo.” Quando a ex-mãe-de-santo do terreiro
conseguiu prender os guias de sua ex-filha, colocando “sete exus” em sua cabeça (idem: 50), a
médium passou a incorporar somente eles. Eram exus que ela nunca antes recebera e que impediam
109

feitiçaria ainda permanece povoado31.

Trata-se, é verdade, de uma pessoa cujo território – habitado por parentes

consanguíneos, de consideração e afins – está longe de ser estável, como vimos ao

longo desse item, quando se descreveu a mobilidade dos laços de parentesco na

região estudada. Tal território não só aumenta e diminui, como se abala com a

intensidade variável destas múltiplas relações. Quem povoa a pessoa naquele

momento? Quais são suas combinações atuais? Quem faz parte de quem agora? –

as respostas a estas perguntas são índice da força e da fraqueza de alguém e, de

modo geral, pode-se afirmar que quanto mais cheio de “presenças” e “parentes”,

mais alguém se verá forte (no capítulo 3, mais se falará sobre o notável movimento

entre a força e a fraqueza nos atos feiticeiros).

Vê-se que não são somente espíritos que habitam uma pessoa. Ela também é

moradia de seus parentes, o ato de povoar é uma ação de ‘penetração’. Uma pessoa

povoada é transpassada por outrens que nutrem com ela relações variadas. E não

se trata aqui de internalização mística das relações sociais, como descreveu Bastide

(1971: 226-7 apud Goldman, 1984: 91), ao tratar das transformações das práticas

africanas em solo brasileiro, (por exemplo, hierarquia tribal transformada em

hierarquia sacerdotal). Trata-se mais propriamente de uma noção de pessoa em

cujo horizonte estão a existência e a criação de moradas – ou domínios –, onde

ou dificultavam a passagem de seus próprios guias (idem: 136).


31
A ideia de que um ser humano é um lugar já foi aventada acima, quando insisti sobre a
importância de se considerar também na análise a agência espiritual e tomei emprestado a ideia de
Nathan (2004: 51) de que os seres humanos são “lugares” de encontros com seres não-humanos.
Favret-Saada (1977: 203; 218; 285) também utilizou a ideia análoga de ‘superfície’ para descrever o
fato de, no Bocage, o chefe de família ser considerado a pessoa enfeitiçada mesmo quando ele não
sofre pessoalmente as consequências do feitiço. Lá, tudo na fazenda do homem, a mulher, os filhos,
os animais e a maquinaria, todos eles “fazem corpo com ele” (font corps avec lui), isto é, o “corpo do
enfeitiçado”, “o conjunto constituído por ele próprio, sua família e seus bens”, é representado “como
uma superfície única”. Além disso, Favret-Saada descreve a própria feitiçaria no interior francês
como um sistema de lugares (no capítulo 4, mais se falará sobre a etnografia da autora). No âmbito
dos estudos afro-brasileiros, remeto o leitor ao excelente trabalho de Anjos (2006: 17), em que se
desenvolvem a ideia de “intensidade territorial” e a “série de noções espaciais por meio das quais o
religioso afro-brasileiro constrói toda uma cartografia” e, ainda, ao de Cardoso (2004: 110), quando
afirma que os espíritos de exus e pomba-giras – o “povo da rua” – “não apenas habitam, mas se
tornam encruzilhadas”. Note-se que também Bastide (2001: 209), já em 1958, usava a noção espacial
de “castelo interior”, com seus “múltiplos cômodos”, para descrever os fenômenos “extáticos” no
candomblé baiano.
110

tanto pessoas como espíritos compartilham as ações de ‘ter’, ‘ser’ e ‘morar’ 32 que,

por sua vez, afetam a relação que ambos travam com seus pares e entre si.

Aqui é preciso abrir um parêntese sobre as fronteiras do que chamo de

povoamento ou domínio. Usualmente uma pessoa povoada não atacará seu

próprio “povo”. Dentre os cerca de cem casos de bruxaria que pude acompanhar

ou ouvir, apenas quatro deles envolviam relações de parentesco consanguíneo e/ou

de criação33. Em todo caso, ao considerar a raridade de ataques feiticeiros entre

pessoas que se povoam, não se deve deduzir, contudo, que as fronteiras desses

povoamentos, quando sob ataque feiticeiro, são o que interessa preservar. Mesmo

quando os acusados são afins tentando provocar desentendimento entre

consanguíneos, quando é um vizinho, uma esposa ou uma amante atacando uma

família, mesmo assim, supor que tais acusações ao culpar um ‘estrangeiro’

objetivam tornar nítidos e redefinidos os povoamentos de onde elas partem 34 é ver

homogeneidade onde cumpre não haver. Um ser intensamente povoado é,

necessariamente, heteróclito.

Um ataque mágico atinge uma pessoa povoada por espíritos e humanos – e

atinge às vezes seus povoamentos em lugar dela própria (note-se: povoamentos

dos quais ela também faz parte). Mas, como vimos no capítulo 1, as ações desses

espíritos não trazem consigo, afixado, um qualificativo moral. Ora elas fazem mal,

ora fazem bem, independentemente da intenção inicial, se perversa ou próspera.

32
Note-se que a reflexão sobre a relação entre ‘ser’, ‘morar’ e ‘ter’ foi originalmente inspirada em
Tarde (2003: 46). Perguntando-se se não seria interessante conceber “mônadas abertas,
interpenetrando-se, em vez de exteriores umas às outras”, o autor chega à ideia de que “cada ponto é
centro”, pois “a posse recíproca” implica que “a verdadeira propriedade de um proprietário
qualquer é um conjunto de outros proprietários” (2003: 88; 93). Bergson (In Tarde, 2003: 108, grifo
meu), por sua vez, afirma que as mônadas tardianas são “elementos análogos, em certos aspectos, às
mônadas de Leibniz, mas, diferentemente das mônadas leibnizianas, capazes de se modificar umas
às outras. Diversas desde o início, elas acentuam incessantemente sua diversidade, graças à ação que
exercem sobre si mesmas. Elas compõem assim uma sociedade em que cada uma desenvolve sua
própria individualidade, e, por uma espécie de radiação, a individualidade dos outros”.
33
Com isso, não se quer afirmar a inexistência de tal possibilidade. Aliás, apesar de fruto de fofoca,
com fins claramente difamatórios, cuja veracidade portanto os autores questionaram, os Leacock
(1972: 229; 271-2) reportaram o caso em que uma mãe-de-santo, temerosa que sua filha e sua neta
ameaçassem sua liderança, foi acusada de matar a primeira e enlouquecer a segunda.
34
Ver Douglas (1970) para uma descrição das acusações de feitiçaria como remodeladores das
fronteiras internas ou externas dos grupos sociais.
111

Os espíritos enviados podem dominar os outros povoamentos de sua vítima,

afastando-os, e fazendo de sua vida um inferno; ou podem conviver de maneira

mais ou menos harmoniosa com seus povoamentos anteriores. Isso tanto vale para

os feitiços de “amarração” – os feitiços de conquista amorosa – como para os

feitiços que visam à doença, à morte da vítima.

Olha a palha do coqueiro,


Ê, olha lá,
Se meus caboclos forem embora,
Eu vou buscar,
Ê olha ê, ê olha á,
Se meus caboclos forem embora,
Eu vou buscar.

Como dizíamos acima, acompanhando Marcelin (1996: 162), não estamos

diante de “uma sociedade de falta, de falta de homens, de abundância de mães”. Se

enxergássemos apenas a dominação masculina sobre mulheres que se veem traídas,

ou privadas do pai de seus filhos, a incerteza do resultado da luta entre homens e

mulheres seria eclipsada, como também o seria a indefinição do modo como cada

um tentará se impor sobre o outro. O ser apaixonado, também dizíamos acima, o ser

que deseja, aquele que comumente é julgado um ser enfraquecido pela

‘dominação’, ele é no entanto marcado por uma luta que, na feitiçaria, se faz

evidente. Ele é povoado por aquele que ele batalha para preencher, visando então

se manter ou se tornar parte do território de quem ele quer conquistar. Em ambos

os lados, tem-se ou deseja-se uma captura por composição.

Aliás, trata-se de uma batalha que também pode ser travada por um homem,

como vimos no início deste capítulo, quando Éder arriou um trabalho na

encruzilhada, a fim de trazer sua esposa de volta. Ali, Éder travou uma luta não só

a favor de sua esposa, mas também de certa forma contra ela, quando aprendeu a

“pirraçá-la” com ausências e desprezo dissimulado. No próximo item, e no

próximo capítulo, veremos que a intensidade de tais povoamentos também é

passível de manipulação.
112

Desapego

“Não é bom se apegar a nada” – dizia o pai saudoso da filha que mora

longe, com a mãe. - “Sentir saudade, tudo bem, mas apego ou obsessão é diferente

de amor ou paixão”. Estes seriam eternos, aqueles, doença, ele completou. “Se

apegar pode jogar alguém em cima da cama” – disse um segundo, comentando do

garoto que teve suas pernas temporariamente paralisadas quando viu o pai ser

preso. “Uma binga não se acha no lixo; uma boceta também não. Se ele te tratar

mal, trate-o também, se estiver distante, esteja também. Dê abandono” – disse uma

terceira, aconselhando a amiga. “Não gosto dessa fixação, não gosto de pensar nela

o dia inteiro, não quero ficar assim!” – se revoltou um quarto.

Os exus, diferentemente dos humanos, nem se apegam nem amam ninguém.

Isso é o que se diz deles. Isso é o que eles dizem de si próprios. Apesar de zuelas e

pessoas cantarem os casamentos entre exus fêmeas e machos, nenhum dos dois têm

reuniões estáveis. Eles se ligam a muitos de uma só vez, mas não amam ninguém

em particular, ou incondicionalmente.

Um dia, o filho-de-santo perguntou ao Exu:

- “Você ama a alguém?”

- “A não ser a mim, a mim mesmo”, respondeu o guia.

- “E seu carnal? Quando ele for embora, você não vai mais vir à terra.”

- “Não amo. Quando ele morrer, procuro outra pessoa. Meu amor é comer,

beber e conversar.”

O exu que não ama ninguém a não ser a si próprio, o exu que “não tem nem

mãe nem pai”, o exu que “vive sempre sozinho”. Através dessa faculdade, a

faculdade de quem sabe andar sozinho – mas normalmente não anda, ressalte-se –,

Tranca-Rua resolveu o caso de Éder, o rapaz que, no início deste capítulo, queria

sua mulher madrugadeira e lacônica de volta, arriando para isso charutos e


113

cigarros, frangos e farofas.

Pai: - “Já vi resultado em Éder, ele ligou ontem. Não teve coragem de jogar

nem a pemba de prosperidade em sua casa nem a pemba corredeira na casa da

‘amiga’. Disse que vai devolver. A mulher, depois de uma briga feia, foi pra casa

dos pais. - ’É assim mesmo’ – eu falei pra ele. - ‘Parece que piorou’ – ele falou. - ‘É

assim mesmo, meu filho. Depois melhora’ – eu respondi a ele. - ‘Vou desistir’, ele

falou. - ‘Ele já tá querendo desistir, bom sinal’”, o pai-de-santo voltou a nos falar.

Eu nada entendi. O pedido não era para que a mulher voltasse? – pensei

comigo. O ogã, ao contrário, sobressaltou-se. Sua feição era a de que tudo agora

fazia sentido: - “Bem que eu vi: usar dois frangos machos pra ela voltar?!”

Tudo me foi então explicado. Os dois frangos machos que substituíram a

galinha e o galo eram destinados somente a fortalecer Éder, deixando sua mulher

de lado. O Exu, treteiro e à revelia de Éder, quis libertá-lo do relacionamento que

julgava lhe fazer mal.

- “Não se pode confiar em exu”, o ogã e o pai-de-santo me disseram, e Éder

saberia disso de um jeito cruel.

Eu amei alguém,
E esse alguém
Não ama ninguém.
Eu amei o sol,
Eu amei a lua,
Na encruzilhada,
Eu amei seu Tranca-Rua.

Trazer de volta o ser amado: esta é a promessa de muitos pais e mães-de-

santo. E, segundo minha experiência, ela se cumpre com frequência. Contudo,

conseguindo ou não a pessoa amada, objetiva-se também fortalecer o ser

apaixonado, alimentando seus exus, santos e caboclos, a fim de que seu carnal não

“se invoque” tão profundamente com ninguém. Almeja-se vencer, mas nem

sempre a vitória implica a derrota alheia.

Este foi o caso de Éder, e também o de Rejane, que conheceu Júlia no dia em
114

que ela rezou com alho as dores em seu corpo. Dores que eram apenas um de seus

lamentos para os quais ela procurava solução. A mãe chamou-a até o quartinho,

ambas permitindo que eu acompanhasse a consulta, e declarou: - “O búzio te

pergunta e você responde”.

Rejane: - “Eu te pergunto e ele responde?”

Júlia: - “Não! Ele te pergunta e você responde. Fale a rua onde ele mora. E

fale o nome dele três vezes.”

Júlia chamou pelo anjo de guarda do rapaz.

- “Você não sabe o número da casa?! Pode ser que eu não consiga jogar. Ele é

maior do que você?”

- “Não!”

- “Eu peguei um maior do que você” – Júlia jogou mais uma vez os búzios. -

“A casa é um sobrado de quatro andares?”

- “É sim, ele mora no terceiro andar.”

- “Tem cabelo encaracolado?”

- “Aham.”

- “Não é gordo, mas é mais forte que você?”

- “Não, ele é magro.”

- “Não era mais magro quando você deixou?”

- “Era mais sim. Mas agora ainda é.”

- “Ele tem isso daqui [o gogó] bem marcado?”

- “Tem sim.”

- “E a cabeça dele faz um formato assim?”

- “Faz sim!”

- “Ele é branco?”

- “É!”

- “No andar de cima tem duas mulheres. Tem um homem na janela do

segundo andar e, no debaixo, um casal ou dois homens. Olha, ele te ama, mas tem

esse outro caminho também. Se você bobear, ele vai noivar com essa daqui.”

Rejane estava angustiada.


115

- “Vejo que você tá invocadona com ele. Amarrar eu não gosto. Vai que você

tem um outro destino melhor na frente. Eu ganho dinheiro para amarrar, mas

desaconselho. Seu amor é maior que o dele. Por que você não faz um trabalho para

ele lhe ligar e você esquecer mais ele? Por que você não dá comida pra sua Gira e

para Tempo? Mas veja, vocês dois caem sempre juntos [no jogo de búzios]. Ele é

vigarista! Não vejo mulher com ele agora, mas ele pode amar duas pessoas. E ele

tem um amor esquecido. Isso é ruim. É coisa de gente que não confia nem em si

mesmo.”

Entre as falas de Júlia, a moça contou que, de primeiro, ela e o rapaz

namoraram. Já haviam terminado há alguns meses, quando ele a procurou

novamente. Ficaram juntos alguns dias para logo em seguida o rapaz sumir. Rejane

desde então estava desconsolada – se em algum momento supusesse que o

reencontro seria novamente tão intenso, não o teria aceitado de volta.

Júlia, então, lhe passou a nota:

Para Tempo

Sete tipos de frutas

1 litro de vinho

1 galinha gelada

1 pacote de vela pequena

1 caixa de vela colorida

7 reais em moeda

Dinheiro para um coração de boi (5 reais)

Para Gira

1 champanha

Uva
116

Maçã

1 carteira de cigarro

1 caixa de fósforo

1 caixa de vela

7 reais

Pembas

Talco de Pomba-Gira

Chora nos meus pés ou vem chorando

Pingo de Ouro

Noite de Natal

Banho de Iemanjá

Quando tomasse o banho de Iemanjá, a moça deveria dizer: “Assim como

esta água está correndo no meu corpo, assim Fulano vai correr atrás de mim, ou

que Deus bote outro no meu caminho e eu esqueça dele”.

Num papel, escreveu seu nome. Ao lado de seu nome, vencedora e, abaixo,

o nome do rapaz. Júlia pôs o papel no altar, debaixo de seus colares de conta, junto

a inúmeros outros papeizinhos. No mesmo dia, quando Rejane voltou com os

ingredientes, Júlia observou que ela já tinha outra disposição. Aparentava ânimo: -

“Você tem que ser mais forte que você” – disse a mãe-de-santo. - “Vou arriar a

obrigação para Gira e para Tempo hoje mesmo à meia-noite. Dependendo do anjo

de guarda dele, com três ou quinze dias, ele vai lhe ligar. Ou você vai sentir uma

sensação. Pode deixar que, se não for ele, eu pedirei outro no lugar (mesmo que

você não tenha pedido). Fiquei feliz quando a cera da vela queimada não

permaneceu junto ao castiçal: é sinal que o pedido é bem vindo.”

Caboclo Sete-Flecha puxa:

Eu flechei, eu flechei,
Mas não vi cair.
117

Flechei uma cocá,


Matei uma juriti.

Rejane optou por dar um empurrão no destino, caso sua sina fosse se casar

com o rapaz, mas, neste caso ou no caso de não ficarem juntos, queria que seu amor

se enfraquecesse. Já nos três dias que se seguiram, Rejane se dizia mais calma. Nas

semanas seguintes, o rapaz ligou para ela algumas vezes. Encontraram-se – bons

encontros –, e ela se dizia pronta a aceitá-lo de volta, caso ele quisesse. Júlia então

sugeriu que ela mesma desse, sem sua ajuda, comida à Padilha. - “Você não tem

medo! Junte rosa vermelha, abra uma latinha de cerveja e dê à sua Gira. Assim ela

fica dominada a seus pedidos”.

Rejane fez o que a mãe-de-santo sugeriu, meio nervosa, ela me disse, mas fez

“tudo certinho”. Isso não impediu de, meses depois, o rapaz ligar avisando-a que

estava casado. Mas ali, algo já esfriara, já não doía mais, ou pelo menos não muito,

disse Rejane. Foi fortalecendo sua Gira, e alimentando Tempo, que Rejane pôde

vencer aquele que, ao povoá-la, a enfraquecia.


Capítulo 3. Da Força e da Fraqueza

A Dança do Exu

Depois de tomar café e banho, o pai-de-santo reapareceu trajando calça e

camisa brancas. Na sua cabeça, um torso azul; no ar, cheiro de alfazema. Seguimos

para o barracão, de onde vimos ele subir em direção à casa de Exu, já com uma bata

vermelha cobrindo-lhe o peito. De lá, ouvimos um grunhido: - “Mulher, cadê meu

couro?!” Sabíamos que o pai-de-santo não estava mais “intacto”.

Nilza apressadamente lhe passou o chapéu. O Exu desceu a ladeira de sua

casa até o barracão, onde andou inúmeras vezes de uma ponta à outra, tenso, o

olhar ao alto, a boca torcida, a mão em seu tridente de ferro batendo no chão de

cimento. A princípio, não cumprimentou os presentes, deixando-nos também

tensos. Quando o Exu finalmente se pôs a falar, tivemos a certeza de que havia algo

estranho:

- “É tempo de desgraça! Hoje é dia, moço, trabalho até a madrugada das

dezoito horas. Hoje eu vejo desgraça”.

Ainda era meio-dia de um dia de quaresma, período em que naquela região

da Bahia o calor sufoca. E o Exu não tinha pressa – teríamos ainda várias horas pela

frente –, por isso só voltou a nos dirigir a palavra uma dezena de minutos mais

tarde, aparentemente mais calmo:

- “Boa noite!”

- “Boa” – respondemos – “Tudo bem?” – alguém perguntou.

- “Tudo melhor” – ele sorriu ao dizer.

O Exu, que de dia vê o turvo e do bem não vê senão sua dimensão

superlativa, cumprimentou cada um de nós. Cheio de gaba, se aproximou de John

– “que a encruza lhe cubra” – e me deu a mão – “que a desgraça lhe ajude”. Ainda
119

sem pressa, sentou-se no mesmo banco, fumou o mesmo charuto, bebeu da mesma

bebida. Nilza não demorou a acender uma vela vermelha na entrada do terreiro

para indicar a presença do Exu, presença que se somou às duas outras já acesas,

estas velas brancas, uma na entrada e outra no centro do barracão, ambas em

intenção de Tempo.

- “Querem aprender desgraça?” – perguntou o Exu. Nilza, logo Nilza que eu

pensava não gostar de exu, disse baixinho: - “Eu quero sim”. O Exu não a ouviu –

ou não o demonstrou – e seguiu sua ladainha de assombro: - “Hoje é dia de dar

banho de bosta de galinha choca”1.

Naquela quaresma, o Exu estava especialmente agressivo. - “Ele tá cruzando

sete sexta-feiras!” – me disse John, elaborando o porquê de sua perturbação.

Diferentemente de várias outras casas de candomblé da região, aquela quaresma

não marcou o fechamento temporário das atividades do terreiro; ela representou,

ao contrário, um momento propício para o Exu destilar sua perversidade. - “É

tempo de desgraça” – ele e outros fizeram questão de declarar.

Contudo, mesmo naqueles dias agitados, não se pensou só no pior.

Realizaram-se vários trabalhos de limpeza, “sacudimentos” e consultas. Em uma

noite de sábado, cuja temperatura amena anunciava o final da quaresma, três

pessoas estavam no terreiro à espera do início de suas obrigações. Uma senhora de

meia idade, que morava na roça, e já há algum tempo se encontrava desanimada,

silenciosa, com muita dor de cabeça. Um senhor, também de meia idade, também

da roça, que voltara a beber exageradamente depois de vários anos de abstinência.

E uma moça, também da roça, cujo corpo o pai-de-santo achou melhor fechar,

depois que a gravidez o tornara aberto.

O trabalho das duas mulheres foi Boiadeiro quem fez. Primeiro, despachou-

se a estrada com cachaça, champanhe e farofa de dendê. Depois, passamos ao

barracão, onde nos esperavam os usuais pratos coloridos de legumes e grãos, todos

1
Quando a galinha está choca, ela deixa de botar ovos justamente para chocá-los, quando então fica
120

preparados pela equede. Atrás de cada prato, uma vela acesa. Na frente, um maço

fechado de cigarros, alguns charutos apagados, panos brancos e vermelhos e dois

recipientes com pólvora preta e branca. Boiadeiro passou o conteúdo dos pratos,

um a um, no corpo da senhora, cuja tensão pouco a pouco deu lugar à descontração

visível. Já o da grávida, feito em seguida, era um trabalho mais simples: um

“sacudimento” que levava apenas comidas brancas, das quais não me lembro

exatamente, mas que incluíam arroz, acaçá, milho branco e pipoca. Durante ambas

as obrigações, as zuelas puxadas pelo ogã invocavam a presença dos Caboclos,

Orixás e Exus das duas mulheres. Os dois trabalhos encerraram-se com banho de

folhas de murici piladas.

Antes de o terceiro trabalho começar, Boiadeiro já tinha dado passagem ao

Exu, que viera reclamar seu quinhão. Mais uma vez, ele estava elétrico. Logo pediu

para jogarem carvões em brasa no chão, sobre os quais sambou por duas vezes,

com os pés descalços. Engoliu um pedaço de brasa, que no dia seguinte deixou, de

propósito – à maneira de “quizila” –, o esôfago de seu carnal ardendo (o Exu queria

deixar no corpo dele o sinal de sua presença diabólica, depois saberíamos). Com os

pés inteiramente pretos de brasa, o Exu passou ao corte do galo. Dessa vez, não lhe

cortou a cabeça e membros, recompondo-os no najé, à maneira do galo original

(cabeça, asas e pés sobre um ‘corpo’ de farinha amarelada pelo azeite). Em vez

disso, verteu metade do sangue no prato e depois sugou a outra metade

vagarosamente, se deliciando. Abriu o peito da ave, que ainda gemeu depois de

morta, retirou-lhe o coração para mais uma crua degustação e encheu-lhe o tórax

com a farinha amarela, colocando também o nome da mulher do primeiro trabalho

anotado em um papel. Finalmente, a ave foi para a najé repleta de sangue, que

deveria ser arriada vinte e quatro horas mais tarde, ordenou o Exu.

Enquanto o terceiro trabalho já ia pela metade – um trabalho semelhante ao

primeiro –, duas meninas arrumadas para festa surgiram à entrada do barracão, de

onde se puseram a observar. Uma delas, depois saberia, era filha de Wanda, uma

mal-humorada, estranha. É nesse período que seus excrementos e sua carne podem “lesar o juízo”.
121

mãe-de-santo que as enviara com a missão de convidar os presentes para seu

toque, do qual já ouvíamos os atabaques ao longe. O convite veio a calhar: depois

de todos os três trabalhos já terminados e de os clientes e filhos-de-santo

encaminhados, o Exu ainda esbanjava energia. Ele queria permanecer em terra.

Mas já era tarde, já eram onze e meia da noite, uma hora e meia a mais da

combinação entre o Exu e o ogã para o término das obrigações. O ogã, “compadre”

e “irmão de fé” do Exu, tinha pressa porque prometera a outro pai-de-santo que

tocaria em sua festa de abertura do terreiro, marcando o fim da quaresma, uma

festa chamada “pascoela”.

- “Coopere comigo que eu coopero com você” – disse o ogã, já prevendo

uma engambelação do diabo.

O Exu era diferente do pai-de-santo. Este, dias antes, não se mostrava

disposto a ir ao toque do candomblé vizinho. - “Não gosto de festa. Não sei pra que

tanta festa” – ele reclamou. Ao que o ogã replicou, repetindo as palavras de uma

zuela: - “Folia não é candomblé; candomblé folia é”. Mas, ali, era o Exu que estava

à frente: um folião notório cujo vigor emitia uma intensidade ainda maior naquela

noite de fim de quaresma. O ogã não pôde fazer outra coisa a não ser se deixar

convencer. Aporrinhado que estava, ainda tentou – e conseguiu – subtrair-lhe um

trato: iríamos à festa, o Exu dançaria somente duas zuelas, e então estaríamos

despachados para partir por volta de meia-noite.

Fomos de carro, eu, a equede, o exu, o ogã e as duas meninas anfitriãs.

- “Nunca andei nisso, moça! Cuidado! Eu te deixo na estrada!” – me

ameaçou o Exu.

- Ei?! Como assim? Eu tô te levando com o maior carinho – o Exu sorriu, feliz

com minha gentileza (e eu também sorri feliz, pois, ingênua, julguei que finalmente

aprendia a lidar com sua valentia).

Antes de entrarmos no terreiro, as garotas pediram que esperássemos em

frente a um bar fechado. Provavelmente avisavam à mãe-de-santo que um espírito,

e não o pai-de-santo, estava chegando no terreiro. Esta espera anunciava uma


122

estadia conturbada, eu não pude deixar de pensar.

Já no barracão, percebi vários Gentis perambulando, com seu andar

característico. A festa era de caboclo, não haveria bebida alcoólica – a mãe-de-santo

advertiu, depois de receber cortês e formalmente o Exu, chamando-o a sentar. O

Exu, é claro, já de início não se mostrou contente com a falta de “malafo”, uma de

suas companhias prediletas. Logo se seguiu uma zuela puxada por um Gentil que

me chamou a atenção, ela dizia algo cujas palavras exatas não me recordo, mas que

instava os espíritos a se esconderem na rama. Um sotaque, pensei, depois soube,

corretamente. O ogã visitante, nitidamente alterado, tomou a palavra para puxar

um sotaque em resposta:

Em cima do pau,

Eu sou gavião,

Na beira do rio,

Eu sou mergulhão,

Na minha aldeia,

Eu sou rei,

Na aldeia dos outros,

Serei eu não.

O Exu, sob o olhar de todos os presentes, parecia inspecionar o lugar. Deu

uma volta no barracão, dirigindo sua atenção para o lugar onde ficavam as

imagens dos santos, imediatamente vedadas com um lençol por um dos membros

do terreiro. Apresentou seu ogã à mãe-de-santo que, sem entusiasmo, convidou-o a

tocar. O ogã, irritado por meia-noite já se passar longe, recusou o convite, mas

depois, mesmo contrariado ante a ordem do Exu e o regozijo da mãe-de-santo, que

via uma revolta ser contida com pulso firme, finalmente se reuniu aos outros ogãs

do terreiro.

Depois de duas zuelas, percebi-o junto à porta do barracão, já afastado dos

atabaques.
123

- “A mão doeu?” – aguilhoou a mãe-de-santo.

- “Não... Eram só duas zuelas mesmo.” – o ogã respondeu.

Agastado, o ogã foi cobrar o acordo com o Exu, que não o levou a sério,

zuelando não muito alto: - “Trato de exu não é de orixá!”. Em seguida, amansou-o

com brincadeiras e voz dócil, pedindo que ele tocasse mais duas zuelas, dessa vez

para ele dançar. Agora sem rebeldia, o ogã pediu em voz alta para zuelar para o

Exu. Um rapaz consultou a mãe-de-santo e informou que zuelas para exu seriam

permitidas somente depois de suspensos os caboclos.

Vinte minutos mais tarde, os caboclos finalmente subiram. Abriu-se uma

roda no centro do barracão. O Exu dançou sozinho, em ritmo frenético e a passo de

gato, cinco zuelas inteiras, mas somente depois de fumar calmamente dois cigarros,

um em cada narina.

Quando não ouvíamos mais o ogã puxar zuelas para seu “compadre”, a

mãe-de-santo se dirigiu a mim e à equede, agulhando-nos:

- “Vocês não sabem zuelar pra ele?”

Constrangida, eu emudeci, mas a equede lhe respondeu que não, para em

seguida zuelar com a voz impostada, respondendo às primeiras frases do Exu. O

ogã calara-se – depois ele nos contou – porque respondia aos ogãs do terreiro, que

perguntaram se ele não sabia tocar à maneira deles. O que resultou, evidentemente,

em uma nova provocação, dessa vez do ogã: - “Rapaz, eu sei, mas não é o caboclo

de sua mãe-de-santo que tá sambando!”

O ogã permaneceu no seu ritmo, tocando praticamente sozinho. Ante a

sagacidade de suas zuelas, a beleza de sua voz e a agilidade precisa de seu toque,

vários cavalos do terreiro não puderam resistir. Uma moça bonita virou num Exu

macho; uma outra se manifestou de uma forma que, depois soube, era vexaminosa.

Como chorava e passava mal, foi levada até o corredor ao fundo do barracão, que

provavelmente dava para o roncó, longe dos olhares alheios. “Quendou” – me


124

disse a equede.

Muitas zuelas mais tarde, convencido finalmente a partir, o Exu se dirigiu à

porta. Imediatamente, o caminho se abriu: as pessoas olhavam-no, talvez receosas,

talvez em respeito. “Não precisa de medo” – a mãe-de-santo tranquilizou-os – “é só

dar passagem que ele não faz nada...” Fitando o Exu, perguntou: - “Sua matéria

vem aqui amanhã?” – e sem esperar resposta, ela o provocou mais uma vez: -

“Você não domina seu cavalo?” O Exu lhe respondeu que seu domínio era tão

grande que abarcava a vida e a morte; esta, aliás, da qual ele gostava

especialmente. Tão altiva quanto o exu, a mãe-de-santo se retirou: - “Dessa comida,

eu não gosto”.

Na viagem de volta, o Exu se preocupava com sua dança, se fora bela, se a

gente havia notado o escorregão que, diante da mãe-de-santo, quase o levou ao

chão. Relacionou seu quase tombo à conversa entre ele e a mãe-de-santo sobre

subir ou não ao céu, algo que a mulher lhe negava, e que o Exu afirmava elevar-se

até onde quisesse. O Exu concluiu, diante do estado de guerra que vivenciávamos,

que a mãe-de-santo o açulava, lhe jogando na cara que ele teria caído.

Os dois lados em disputa se certificaram, com razão, que foram ofendidos. A

mãe-de-santo provavelmente nos pensou “preparados” para atrapalhar sua festa; e

o Exu e seu carnal afirmaram, no dia seguinte, serem alvo de um convite-

“armação”, já que nos receberam com sotaques e provocações. Argumentei que a

mãe-de-santo poderia ter achado desrespeitosa a aparição de um exu numa festa de

caboclo. Em todo caso, responderam o pai-de-santo e o ogã, nada lhes foi dito, o

que reforçaria a certeza de uma armação.

O Dono da Cabeça

Compreende-se por que dificilmente se é filho de Exu. Eles com frequência

são trapaceiros, ostensivos, suscetíveis e impertinentes. “Exu não é dono da cabeça


125

de ninguém” – alguém disse a Medeiros (2006: 19), que fez sua etnografia em meio

a mulheres de uma associação lésbica, que eram filhas-de-santo de um terreiro de

candomblé em São Paulo. Também em minha experiência de pesquisa, não eram

poucos os que diziam que o “escravo não passa à frente de caboclo”. Argumento

perfeitamente compreensível, pois quem gostaria de ser filho de um pai cuja

bênção é também uma ameaça? (“que a desgraça lhe ajude”; “que a encruza lhe

cubra” ou “que as estradas lhe iluminem, que nada de ruim lhe atinja, a não ser

mandado por mim, que por mim eu não vou mandar e, pelos outros, não vai

atingir”).

Como se poderia esperar, há quem aceite o risco. Mas, como se diz, é preciso

ter “couro grosso pra chamar um exu de compadre”, o que dirá de pai. Pedro tinha

couro grosso, aparentemente. Ele já fora a umas “dez casas de macumba, nenhuma

dava jeito”. Naquela onde encontrou alívio para seu problema, passou a chamar de

pai o Exu que o convencera a parar de ler o livro de São Cipriano, o famoso livro de

rezas e feitiços. Mas o próprio Exu não aceitava que Pedro lhe tomasse bênção.

“Bênção é pra santo” – o Exu desgostava, mas sem se incomodar que Pedro o

chamasse de pai.

Seja-lhe negada ou atribuída a paternidade, a proeminência de um Exu em

um terreiro às vezes é tão grande que se pode querer o próprio terreiro em seu

nome (em minha experiência de pesquisa, isso apareceu como desejo, mas na de

Maggie [2001: 137, nota 16], o pai-de-santo colocou o nome de sua Pomba-Gira em

seu terreiro. Como ela era metade exu, metade cabocla, e seu nome levava a marca

desta última, o pai-de-santo conseguiu burlar a regra da Congregação Espírita

umbandista que, segundo ele, não permite terreiros com o nome de exu). Nesses

casos especiais, argumenta-se que eles passam à frente dos santos, às vezes os

afastando, às vezes convivendo com eles sem grandes problemas. Todavia, mesmo

quando um exu é “só um escravo”, isto é, mesmo quando ele habita o domínio do

orixá ou caboclo a que está vinculado, alega-se que são eles que comem primeiro; é

para eles que primeiro se zuela (só “depois abre pra santo”); e são eles, e não os

caboclos ou santos, que descem “para tirar quizila de alguém radiado ou bêbado”.
126

Ou seja, se contra-argumenta que, em vários momentos, eles efetivamente passam

à frente dos santos.

Para alguns, o exu “está à frente e atrás”, “é guardião de fronteira e escolta”.

Para outros, ele é “árvore seca”, o “último recurso”. Porém, para ambos, parece-me,

caberia dizer o mesmo que Ochoa (2005: 41-46) afirmou para a forma como os

mortos são tratados no Palo cubano. Os mortos – e os exus – são ubíquos, mas não

exatamente centrais: a água, diz Ochoa (idem: 43), não é central para o mar, ela é o

mar, e assim são os ou o muerto que, como os exus, são um e múltiplos (Goldman,

1984: 124). Um motor que não pode ser desligado – disse-me um deles quando os

comparei a um motor: os exus, “como o axé que representam, participam

necessariamente de tudo”, afirmou Elbein dos Santos (1975: 131 apud Iriart, 1998:

133). Mas sua participação, eu acrescentaria, assemelha-se à do mar: ela avança e

retrocede, incha e desincha. Trata-se portanto de uma noção de ubiquidade que

não implica em uma força absoluta sempre imensamente penetrante. Sua potência

não está sempre ativa; em alguns, ele vira árvore seca, seu estado é o da latência;

em outros, ao contrário, está super aquecido, seu movimento é intenso, cheio de

descargas elétricas que, no entanto, ao ostentar sua força, disseminam-na sob o

risco de prejudicar sua própria reserva2.

Um exu aparece de forma concentrada e disseminada; eles estão rodeados de

pessoas e vivem sozinhos; eles são “irmãos de fé”, “compadres”, mas “traidores” e

“não são amigos de ninguém”. “Na mesma hora que estão contigo, na mesma hora

não estão”. Sua bênção é ameaça sem deixar de ser uma bênção. Uma “lógica da

afirmação”, argumentou Ochoa (2004: 19-21), seria capaz de levar a sério a

“proliferação de definições”, em que “uma coisa pode ser o mesmo e seu aparente

oposto sem contradição”. Uma lógica da afirmação até mesmo quando se nega, eu

afirmaria para o exu que não é pai, mas pode se torná-lo sem deixar de não ser3.

2
“Nada obriga o Deus a morar constantemente no ídolo; entra e sai dele, ou antes acha-se ali sempre
presente mas com maior ou menor intensidade”, uma citação de Nina Rodrigues (2006: 48, com
ortografia atualizada) que se pode estender também para seres humanos ou terreiros (e ficaríamos
com: ‘nada obriga o Deus a morar constantemente num terreiro ou num humano...’).
3
Em outras etnografias, a possibilidade ou impossibilidade de exu ser pai de seu carnal apareceu de
127

Pomba-Gira zuela:

Exu é de duas de cabeças,


Exu, ele faz o que quer.
Mas uma é,
A outra é,
A outra é,
Faz esse mal, Lucifer4

Chegou o dia de lhes dar comida. - “Finalmente”, todos diziam. Mifael até

chamara sua mãe, que ainda mal conhecíamos:

- “Vim porque ele vai dar comida pros negoço dele que eu não sei o que é.

Eu nunca gostei de ir pra candomblé, a gente vai porque precisa, mas não tenho

invocação. Na minha casa quem tem é Mifael, Nêgo e Michaele. Michaele já

começou a comprar o material pra fazer a obrigação dela. Ela vai fazer com Urcão,

meu compadre. Agora quem tem é Mifael, mas vai tudo pra cima de mim. Essa

semana foi triste; ele só não me bate porque eu não sou fraca, não me abaixo: uma

unha desse tamanho pra cima de mim. Uma agrestia! Ele é o único lá de casa que

dá esse problema. Não arruma emprego, não tem nada, vive largado. Desse lado,

ele é muito errado, mas de outro, não me dá preocupação. Não tem polícia batendo

em minha porta, nunca, nunca, a não ser uma vez, por uma coisa que ele não fez.

Fui umas dez vezes na delegacia, pesquisei tudo e não foi ele mesmo.”

Exu: - “Você disse que não teria ninguém aqui nessa cidade pra fazer seu

forma mais nítida do que na minha própria. Goldman (1984: 149), por exemplo, observa que, no
terreiro de Niterói (RJ) onde pesquisou, um adepto pode ser filho de um exu que, nesse caso, é um
orixá e se difere daqueles outros exus “escravos de santo”, espíritos de mortos (conforme veremos
melhor abaixo). Já Iriart (1998: 132) afirma que, nos terreiros de Cachoeira (BA), “se pressupõe que
um exu não tenha filhos dos quais ele seria o ‘dono da cabeça’”. Em minha experiência de campo, ao
contrário, percebi uma tendência de coexistirem com o dono da cabeça – normalmente um santo ou
caboclo –, tantos outros donos quanto forem “os tipos de seres” existentes. Por isso, é comum se
dizer ou se especular quem, dentre os exus de alguém, é ou será o dono de sua cabeça. Isso não
necessariamente torna este Exu ‘mais dono’ do que o caboclo ou orixá, mas deixa considerável
margem para que ele possa assim ser considerado.
4
Na região, Lucifer é um oxítono, daí a rima. Quando perguntei o que significava essa zuela,
Tassiana disse: “Exu tem duas cabeças: faz o bem e faz o mal, assim como Mano de mãinha, que seis
meses é escravo, seis meses é santo. Seis meses ele fica na encruzilhada que não aparece no terreiro!”.
Há uma versão dessa zuela (Maggie, 2001: 83) que diz: “Exu que tem duas cabeças. / Ah! ele olha sua
128

trabalho. Eu vou fazer! Você não pode andar na casa dos outros de corpo aberto!”

Mãe: - “Banda-avoou, pulando de galho em galho e só colhendo o que é

bom: até pra cima de mim, que sou mãe, ele foi!”

Exu: - “Esse menino é bom de tudo, mas tomou um gole de cachaça, pronto,

estraga.”

O menino, nos dias anteriores, dizia não querer “mais meia com exu”,

tencionando segundo entendi não mais desafiá-los e fazer o que mandavam. Até

então, ele havia se recusado a se vincular mais profundamente a qualquer casa que

fosse, apesar de frequentar assiduamente os candomblés da região. Mas, como

andava triste, desconfiado de feitiço e de que o preparo, porque bem feito, pudesse

ser letal, ele acabou cedendo aos conselhos de seus amigos e parentes, que

insistiam para alguma coisa ser feita em seu benefício. Quando perguntei detalhes

sobre o que sentia, ele respondeu: - “Não sinto vontade de ficar alegre. Mas eu

venço, já tive pior.” E foi com a vitória em mente que o material para o corte, o

corte que alimentaria seus Exus, foi rapidamente organizado.

As aves foram abatidas na casa do Exu – a “creche” –, sem que eu pudesse

vê-las. De lá, o espírito chegou à varanda chupando o pescoço da galinha que

chamava de delícia. Já no barracão, ele cortou os pés, as asas, a cabeça e a penugem

do rabo do frango. Postou seus membros dentro do prato, olhou pra mim e

perguntou: - “Tá aprendendo a fazer macumba, não é?” Eu sorri e respondi

afirmativamente. Dirigiu-se então à equede: - “Vai ter um momento em que será só

gente da casa nos trabalhos”. O Exu queria, com essa cutucada, ‘estimular’ que eu

me tornasse filha do terreiro, mas enquanto isso não acontecia não fui colocada

totalmente à parte: instruíram-me a segurar o que restava do frango, e o Exu

arrancou-lhe mais algumas penas que, arrumadas em cima da farofa de dendê e

cachaça, cobriram quase todo o “preparo”. Fez o mesmo com a galinha e me

alfinetou mais uma vez: - “Não gosto de trabalhar com moça fraca...”

banda com fé. / Uma é satanás no inferno. / Outra é de Jesus Nazaré.”


129

Os exus são famosos por suas repreensões (“para eles, nunca nada tá bom,

só tá bom quando alguém morre”). Certo dia, chateada pela indelicadeza de outro

Exu, fui aconselhada por um amigo: - “Você tá sendo racional. Exu não tem pai

nem mãe, ele vive só, sempre só. E aquele é um dos piores exus.” Eles

propositadamente “resistem a se deixarem conhecer”, afirmou Cardoso (2004: 108-

109) sobre a macumba carioca, ela também alvo de uma reprimenda de uma

Pomba-Gira, que advertia – à maneira de conselho – que nem os mais próximos

dos exus eram-no o suficiente a ponto de se tornarem amigos. Para o Exu que

presidia o corte de Mifael, a minha fraqueza não só demonstrava a sua própria

força – a força de um ser inóspito e misterioso –, mas significava também a minha

relativa impermeabilidade à força dos seres que nos circundavam, apesar de

conviver diariamente com eles já há algum tempo. A minha força deveria estar,

mas ainda não estava, moldada, ativada pela feitura de um trabalho, à maneira que

agora fazia Mifael depois de muito resistir.

- “Não tá bonito?” – perguntou o Exu, mirando os pratos.

- “Pra eles, tá” – respondeu a equede.

Vertendo mel nas mãos de Mifael, pediu que ele repetisse suas palavras (que

diziam algo como adoçar seu caminho). Depois, salpicou champanhe e cigarros

acesos no prato da Exu fêmea de Mifael, charutos e mel no do macho e cachaça em

ambos. Aproveitando a combustão dos cigarros, o Exu desafiou Mifael: - “Quem

vai ganhar mais mulher, eu ou você? Se a brasa cair pro meu lado, sou eu; pro seu,

é você.” Enquanto isso, na cozinha, a equede retirava as coxas, sobrecoxas e peitos

das aves para dourá-los no azeite de dendê; dourava também pedaços da carne de

vaca comprados especialmente para o corte. Nenhuma dessas carnes seriam

totalmente fritas, era preciso deixá-las cruas para que os exus as apreciassem.

Depois de muito tempo, e muita conversa, o Exu disse que os dois pratos se

destinavam aos “exus negativos” que ajudavam Mifael; agora seria a vez de

alimentar os “exus de luz, os donos de sua cabeça”. - “Ogum era seu orixá, seus

caboclos são os de frente” – o Exu acrescentou. E o rapaz teria de cuidar deles sem
130

demora: um trabalho de limpeza os alimentaria, prescreveu o Exu.

- “Meu santo é Tranca-Rua” – disse Mifael, rindo

- “Não é nada! Quem manda aqui, além de mim, é senhor Ogum” – o Exu se

referia ao orixá de frente de seu carnal – “Já te deram caboclo antes, minha

criança?”

- “Sim, Gildásio me deu Gentil e Pena Branca.”

- “Tá certo, estão na linha de gentil, eru e sultão”.

Concentrando-se nos pratos dos “exus de luz”, o Exu fez a farinha de azeite

e cachaça, sobre os quais adicionou os tomates e pepinos, as coxas, sobrecoxas e os

peitos dos frangos. Dividiu o prato em duas metades e, em cada uma, afixou um

pedaço de carne de boi, saudando Tibiriri e Lucifer.

- “Você não quer ser filho-de-santo de ninguém, mas vai ser meu!” – o Exu

desafiou mais uma vez Mifael e acendeu velas vermelhas, pretas e brancas,

iniciando um novo duelo, dessa vez entre os dois exus: Tibiriri e Lucifer. Quem

seria dono da cabeça do rapaz?

- “De frente, eu já sei que é caboclo: olhe a vela branca como tá

esparramada” – ressalvou o Exu.

Como a vela vermelha se exauriu primeiro, o exu dono da cabeça de Mifael

se confirmara, era mesmo Tibiriri. O Exu já havia previsto, mas agora não era ele

quem dizia, “era a luz”.

- “Ninguém fez nada pra você, é briga de exu pela sua cabeça” – ele o

acalmou, mas não sem plantar uma ponta de agonia: - “Lucifer”, disse ele, “vai

fazer tudo para ir à forra, ele é dono das armas e das facas e tá enraivado porque

perdeu a guerra.” O corte e o trabalho de limpeza abrandariam seu rancor,

acrescentou o Exu, amainando a aflição que ele mesmo provocou.

O colar de contas do rapaz seria deixado em uma mistura de pembas,

pozinhos e ervas (entre eles, coarana, dandá, cheiro do mundo), “para nunca mais

você ir pra outra casa de corpo aberto” – disse o Exu que, experiente o suficiente

para saber que naquele momento de nada adiantaria tentar fixar o rapaz em sua
131

casa, fazia o possível para minimizar os potenciais efeitos maléficos desse

desembaraço.

Antes de cortar para seus Exus, o garoto sonhou que seu anjo-de-guarda, um

“semblante” em tudo parecido com o seu próprio, saía da casa onde ele morava

com sua família e enfrentava o “coisa-ruim”, um sujeito com “cara de bicho”.

Quando Mifael acordou, ele foi até o quintal e, “mais uma vez”, não viu nada além

de um gato preto. Deu-lhe carne com chumbinho.

- “Até hoje Wanderleia procura o gato achando que levaram” – diz ele, rindo

de sua molecagem. Dias depois, sonhou que o coisa-ruim o pegava na cama.

Quando deu “o corte, pronto, pararam os sonhos.”

Mesmo se sentindo melhor depois do corte, Mifael decidiu não fazer o

trabalho de limpeza que alimentaria seus santos. Como não incorporava, ele temia

que durante o ritual lhe botassem “um santo para [ele] virar”, conferindo ao pai-

de-santo maior poder de ingerir em sua vida. Abraçou com mais facilidade a

ambiguidade daquele corte porque já sentia a inconstância de seres como os exus

“em [seu] corpo”, o que lhe dava a experiência necessária para saber que aquela

filiação, por sua natureza insinuada, fortalecia o ritmo de seu relacionamento com

seus próprios santos, uma relação cheia de aproximações e afastamentos. Ele

declaradamente não queria fazer nada que o vinculasse mais estreitamente àquele

ou a qualquer outro terreiro da região, onde geralmente um trabalho de limpeza já

teria a força necessária para deslanchar uma relação de paternidade religiosa.

Mifael resistia a se tornar filho-de-santo.

O pai-de-santo zuela:

Eu procurei, mas não vi,


Cadê meus filhos-de-santo
Que eu não vejo por aqui?
Eu tenho pena
De quem anda girando
Por cima do morro,
Feito um pau rolando.
132

O filho-de-santo zuela:

Aê, meu Tata,


Ando no mundo sem fim,
Eu amo meu pai,
Meu pai não ama a mim.

Meu caboclo,
Eu moro nas matarriá5,
Eu sou filho de Oxóssi,
Minha mãe é Iemanjá.

- “Os filhos-de-santo de Jair comentaram que têm medo que ele mate porque

lá tem raspagem” – se impressionou Neno.

- “Eu aqui não raspo” – assegurou-o Gazo, um pai-de-santo.

Vinícius: - “Maria José também não raspa ninguém. E mata mesmo, fica o

sangue, o cabelo e o apapelê da pessoa. O pai-de-santo pode matar de longe!”

Gazo: - “Eu é que não quero raspar, se eu raspar, vou trabalhar com um exu

muito perigoso, o meu é defensor. E sendo defensor já é o que é, não é calminho.

Meu Exu ali seria um desprezado, um desgraçado. Eu não ia ser o Gazo que vocês

conhecem, ia mudar minha fisionomia, meu jeito de ser, ia ser muito mais agreste

com os filhos-de-santo.”

Mifael, Neno, Vinícius e Gazo temiam o aumento do que chamarei aqui de

potência feiticeira de um pai ou mãe-de-santo, mais visível quando direcionada a

seus filhos virantes. Nesse caso, um pai ou mãe-de-santo é potencialmente um

feiticeiro porque tem o poder de “virar”. - “Você fez Joana voltar da casa dela pra

casa de Mirno de erê e não é feiticeiro? Claro que é...” – dizia uma amiga de Joana a

um rapaz que se mostrava especialmente dotado para se tornar pai-de-santo no

5
Matarriá, me disse Nilton, quer dizer casa de caboclo. - “É pra dar ficção à zuela, que o caboclo não
vai explicar tim-tim por tim-tim que ele mora em sua casa, que é a mata”. Note-se que no meio desta
zuela, e também no meio de tantas outras, há uma mudança de ponto de vista. De início, quem fala é
o filho-de-santo, lamentando o desprezo de seu pai. Depois, o caboclo toma a palavra para declarar
sua filiação à Iemanjá e a Oxóssi. Claro, esta mudança é também um convite à duplicidade: o filho-
de-santo, pegando carona na fala do Caboclo, declara que tem outros pais além do pai-de-santo que
133

futuro próximo.

Como se poderia esperar, tal potência pode ser trabalhada de modo a fazer

tanto o bem como o mal. - “Júlio prepara os caboclos pra gente ir se afundando. É

pela dor, ele é vingativo. Fui perdendo meu trabalho, minha saúde. Isso pr’eu

correr lá pedindo ajuda. Vinícius não! Vinícius prepara os caboclos pra gente ir

gostando, pra gente ficar com vontade de ir pra lá. É pelo amor. Como ele fez com

Jia, quando ela deu por si, já tava lá na casa dele. É melhor assim.”

Seja por amor ou pela dor, a perspectiva da intensidade feiticeira de um pai

ou mãe-de-santo não torna difícil a compreensão de por que, quando um filho, por

“enjoo”, cansaço, medo, aborrecimento ou desejo de independência, decide se

afastar do terreiro, ele possa temer a reação de seu pai ou mãe-de-santo. Kenia foi

uma das pessoas que sofreu as consequencias de seu afastamento:

- “Ela fez um trabalho de limpeza em Davi porque o próprio Davi mandou

uma demanda pra ela”, me contou Reinaldo, em tom de confissão. “Isso porque os

filhos-de-santo de Davi, Kenia inclusive, falavam muito mal dele. Quando ela

chegou na casa de Davi sem dinheiro pro trabalho, Davi comprou tudo do seu

próprio bolso e curou a mulher.”

- E Davi contou à Kenia que ele mandou uma demanda pra ela?

- “Peraí, Paula, foi pro Rio e voltou abilolada?!”

- (sorriso) E Davi te falou antes ou depois que tinha feito algo pra ela?

- “Eu tava quando ele preparou tudo.”

- O que ele fez?

- “Ah!, ah!, ah!, você fique aí agora. Não vou contar.”

Se normalmente pais e mães-de-santo brigam por seus filhos – sua potência

feiticeira os atrai e protege, e por isso se diz que eles lhes “põem a mão” –, fez-se

evidente que eles também brigam com seus filhos, algo de fato bastante frequente

o desprezou.
134

em minha experiência de pesquisa e também na de tantos outros etnógrafos, dentre

os quais, Maggie (2001: 47; 80) e Wafer (1991: 164-165). Wafer, por exemplo, relata

que, durante seu trabalho de campo, suspeitava-se de uma iaô, que teria namorado

durante sua reclusão no roncó, resultando não só em uma afronta à autoridade do

pai-de-santo, mas em algo ainda mais grave: uma quebra de resguardo, perigosa

tanto para ela como para o próprio zelador. Tudo piorou quando, ainda sob os

cuidados rituais pós-iniciação, quando deveria permanecer no terreiro, a iaô

deixou-o para morar com seu namorado. Enraivecido, o pai-de-santo quebrou os

objetos rituais de sua ex-filha e jogou-os na fossa do terreiro.

Este não fora apenas um ato dramático. O pai-de-santo mexia ali com a

pessoa de sua filha-de-santo, seu ato foi também um feitiço. Ele apresentava ainda

mais perigo do que as pedras chamadas “otá”, “as cabeças dos orixás”,

despachadas pelo pai-de-santo na casa de Tempo, que deveriam estar num lugar

mais apropriado. Tais pedras pertenciam a membros que, como a iaô fujona,

haviam abandonado o terreiro. O pai-de-santo então os deixou à mercê de Tempo,

que saberia lidar com eles. Aliás, o pai, cuja casa de Tempo abrigava a sorte de seus

traidores, não tivera uma melhor sorte com o seu próprio pai-de-santo. Eles se

tornaram inimigos quando o zelador partiu em busca de outro pai, capaz de

realizar sua iniciação completa (a raspagem).

Em minha experiência de pesquisa, também se fez notar, além das brigas e

feitiços provocados por “conflitos de lealdade” – que segundo Wafer (idem)

“pareciam ser a matéria-prima da vida em Jaraci” –, a quantidade de histórias (e

desgostos) circulando em torno de surras praticados por pais ou mães-de-santo

contra seus filhos. Ainda que não tenham sido poucos os relatos, dos quais nunca

fui testemunha, de que os próprios pais ou mães-de-santo batem em seus filhos, é

mais comum tais surras serem dadas por caboclos, escravos ou orixás, agindo sob

as ordens dos pais ou mães-de-santo, como foi o caso de Neide, descrito abaixo.

- “Aqui tinha uma manata que tava traçando meu marido. O Caboclo dela

não me dizia nada. Erê chegava, e também não me dizia nada. O Caboclo falava: -
135

‘A minha manata tava traçando o marido de Fulana’. Ele dizia o dos outros lá, mas

a mim, o Caboclo não dizia que a manata dele tava andando com Adriano, meu

marido.”

- Manata é o quê? – eu perguntei.

- “Uma pessoa” – Neide respondeu – “Me chamou atenção foi quando, num

toque de candomblé, o Caboclo perguntou: - ‘Cadê Adriano?’ Eu disse: - ‘Não está’.

Já começou a despeita, meu sofrimento começou com isso. Eu digo: - ‘Não veio

porque realmente ele vai sair cedo amanhã’. Ele ia perder o dia de trabalho se

estrovasse noite. O Caboclo disse: - ‘É assim mesmo! Quando é pra tá igual chuva

atrás da minha menina, ele não perde o horário do trabalho’. Eu na mente: - ‘Por

que ele disse isso?’ Mas aí eu já sabia o babado qual era. Eu disse: - ‘Ô meu velho,

isso aí, eu não tenho nada a ver; isso aí é um problema da médium e dele’. Eu falei

mal? Foi dois tempos! Quando eu levantei... Até hoje! Olha pr’aqui! [ela mostra

uma série de cicatrizes nas pernas] Eu fui me esbarrar no fundo da casa de Josefina

ali.”

- Como?! – perguntei.

- “Porque realmente eu sinto um problema quando eu me enraivo, meu

problema é intestinal. Se fizer uma garapa de açúcar ligeiro pra eu beber, eu vou ao

banheiro e aí não caio. Começa aquela agonia que eu peço: - ‘Me dê uma garapa de

açúcar ligeiro! Faça ligeiro, Juquinha, pelo amor de Deus, ligeiro!’ Mas ali eu já tava

tombeando, então Juquinha foi dizer ao Caboclo: - ‘Ê Caboclo, Neide tá passando

mal’. Quando o Caboclo veio de lá pra cá: - ‘Alaruê, acobá Exu!’”

- “Ave Maria!” – se impressionou Cristian, que ouvia a conversa.

- “Quando dei por conta” – Neide continuou –, “eram cinco horas da manhã,

eu toda acabada. Ele ainda me botou pra sambar no Caboclo o restante da noite. Eu

tava grávida de três meses, e não sabia. Pegou infecção, e eu não sabia que era

infecção. É vai dor, é vai dor, é vai dor. Me levaram pro hospital, essa boca minha

entortava, essa mão não conseguia pegar nada, que até hoje é assim, tremosa. É vai,

é vai, me levaram pra Bom Jardim. Quando chegou lá, doutora Fernanda pegava

um martelo, batia e a perna pulava. Eu não sentia que a perna pulava, ela pulava
136

sozinha! Foi um escândalo. Eu queria ficar sozinha pra saber o que era, eu toda

ralada, procurava saber. Mas ela o tempo todo encostada, não queria deixar eu

saber. Foi uma briga braba. Também não contei nada a ninguém, se não ela ia pra

cadeia. Lá diziam: - ‘Essa mulher tá acabada!’ Eu disse: - ‘Ninguém me bateu,

dona!’ A mulher do hospital disse: - ‘Como é que a pessoa fica num estado desse?

Ninguém lhe bateu?’ Eu disse: - ‘Não’.”

- Mas aí foi como? – eu voltei a perguntar, sem ainda entender direito o que

tinha se passado.

- “Eu apanhei no Escravo. O Caboclo me virou no Escravo, daí fiquei

daquele jeito. Quando a gente voltou, ela disse que gastou mundos e fundos. Mas

ainda me alembro até hoje. Eu tinha dois porcos grandes, ela vendeu os dois porcos

dizendo que era pra comprar os medicamentos (e na época, diazepam era barato,

eu me alembro bem). Pense! A minha mãe-de-santo! Meu marido foi pra fazenda e

deu seiscentos reais pra comprar todo o material porque ela dizia que era problema

do santo, que era pra eu deitar e receber a feitura, o decá. Mas eu tava doente, ela

batia o adjá na minha cabeça, chamava meu orixá, ele não descia. Eu não tinha

culpa! Mas ela dizia que eu não tinha santo.”

Meu Pai é Pemba

Muitos pais e mães-de-santo passarão toda a sua vida sem infligir qualquer

malefício contra os seus ou os filhos de outros pais-de-santo, ainda que não lhes

falte os instrumentos e conhecimento para tanto. Todavia, isso não é garantia de

que não lhes recaia uma ou outra acusação durante seu “tempo no santo”. Em meu

trabalho de campo, foram inúmeras as acusações de um “curador” fundamentando

na bruxaria de outro curador o problema de seu filho ou cliente. Claro, isso se deve

à já ecoada natureza agonística das relações entre pais e mães-de-santo, cujas

batalhas se substancializam em enfrentamentos como aquele visto no item ‘a dança


137

do exu’, e também em narrações de bichos que vêm e vão entre os terreiros, sendo a

versão abaixo apenas uma dentre as inúmeras ouvidas na região.

- “Foi numa cidade do Recôncavo. Tinha duas mães-de-santo brigadas. Uma

delas ia dar candomblé. De noite, durante o toque, cantando pra santo, uma hora

de relógio cantando, entrou um teiú dentro do salão. O caboclo da mãe-de-santo

pegou ela, mandou matar aquele bicho e aprontar ligeiro. Depois de pronto, ela

virou os filhos virantes no caboclo e todos comeram aquele teiú. Daí ela pegou um

tatu, botou os ossos do teiú em cima do tatu e mandou levar pra quem levou pra

ela. Quando foi no outro dia de tarde, a mãe-de-santo que recebeu o tatu morreu.

Passaram sete dias, a mãe-de-santo que mandou o tatu também morreu, porque lá

tinha um pai-de-santo por nome Zé de Ogum, que era pai-de-santo dessa mãe-de-

santo que a mãe-de-santo matou. Ele fez um feitiço e mandou ela pro inferno

também”.

- “Oxe, oxe, oxe, oxe, oxe... Não carece dizer mandou pro inferno!” – reagiu

uma senhora que também ouvia a narração, incomodada com os poderes

invocados pela verbalização da palavra.

Uma pessoa ataca, a outra contra-ataca. E sempre há um terceiro ainda mais

forte, mais “grosso” – conclui-se usualmente depois dessas narrações, que não são

apenas comentários ou acusações carecendo de um substrato real. Ao contrário, elas

são, me parece, o próprio desdobramento de uma relação delicada e intensa, fruto

da sedução e proteção que fortalecem uma aliança em detrimento de outra. Foi

justamente este o enredo de Graça, que se viu entre dois pais, um deles, nem tanto

assim.

Etnógrafa: - E você já teve algum contato com alguma entidade, Graça?

Graça: - “Não, eu só tenho meu pai. Meu pai é Oxóssi. Ele é meu pai porque

fez meu trabalho, mas eu não recebo igual dona Felizmina. Eu só tenho ele como

meu pai porque ele me disse que tava sempre perto de mim pra me proteger, que
138

essas coisas que aconteceram comigo foram sempre mandadas...”

Etnógrafa: - De outra pessoa?

Graça: - “Aham. Então ele me disse que me protegia o tempo todo. Isso que

aconteceu comigo, uma cirurgia que eu fiz e depois sangrei, ele disse que foi pra

me matar. Mas só que ele disse que tava comigo o tempo todo. Ele e Iansã, que são

da família. E Iemanjá. Todos nós temos, a família toda.”

Etnógrafa: - E quem que falou pra você que é mandado? O próprio Oxóssi?

Graça: - “Foi.”

Etnógrafa: - E você conhece quem mandou?

Graça: - “Conheço.”

Etnógrafa: - É mesmo?

Graça: - “Uhum.”

Etnógrafa: - Conhece assim de falar?

Graça: - “Falar, eu não falo, né.”

Etnógrafa: - Não fala mais?

Graça: - “Não, nunca falei. Ela ficou com raiva porque ela acha que eu queria

tomar o marido dela, quer dizer, o ex-marido meu que foi morar com ela. Ela

achava que ele gostava de mim, daí ela queria me tirar de circulação pra ficar pra

ela só. Só que eu não tinha mais nada com ele, só amizade mesmo, porque eu tenho

um filho com ele. [Ela queria] fazer o mal mesmo, sabe. E ele acabou sempre

separando dela. Quando ela fez isso, ela já tava na verdade separada dele; ela tava

com muita raiva de mim, achando que porque de mim que tinha acontecido a

separação.”

Etnógrafa: - E foi o pai-de-santo que te disse ou o próprio Oxóssi?

Graça: - “Foi assim: eu comecei a sonhar, talvez porque dessa coisa do

candomblé da minha família, que minha família tem uma influência grande com

candomblé, ou talvez por meu pai Oxóssi, que sempre tá do meu lado, eu tinha

sonhos. Sonhava as coisas. Quando ela tava fazendo as coisas pra mim, quando ela

começou a andar nessas casas fazendo, eu comecei a sonhar com caranguejo, que é

ruim, né. Essas coisas assim, me indicando pra ir num lugar, que tinha alguém
139

fazendo alguma coisa pra mim. Só que eu pensei que era só sonho. Aí começou o

meu dinheiro. Trabalhava, meu dinheiro atrapalhado, sempre me endividando. E

emagrecendo, que eu nunca fui gorda, mas emagrecendo muito. Eu disse: - ‘Tem

alguma coisa errada comigo’. Eu fui numa casa, a de Sonilton, essa que eu te falei lá

no Samburá. Gastei foi o quê? Novecentos.”

Etnógrafa: - Reais?!

Graça: - “Pode acreditar em Deus. Paguei e perguntei: - ‘Eu não vou vir fazer

o trabalho não?’ - ‘Não. Você não vai precisar vir fazer o trabalho não. Você fica na

sua casa que eu faço o trabalho daqui mesmo’. Eu pensei: - ‘Esse negócio tá errado’.

Cheguei em casa: - ‘Meu Deus do céu, já tô devendo tanto, me endividar ainda

mais? Tão caro’ – eu pensando comigo. Mas mesmo assim, é minha vida. Aí o santo

de Sonilton falou – que eu não sei, Deus me perdoe, mas eu não sei mesmo se era o

próprio Sonilton fingindo –, ele contou um monte de coisa pra mim: que se eu não

fizesse o trabalho eu ia morrer, eu ia sangrar até a morte. Pense! Isso antes da

minha cirurgia. Muito antes. E eu achando que eu tinha pago esse dinheiro, esses

novecentos, eu achando que já tava feito. Fiz minha cirurgia. Acho que pouca gente

sangra nesse tipo de cirurgia, mas em mim, depois de uns treze dias, começou o

sangramento. Aí eu procurei meu médico. O incrível também, tem de contar com

detalhe, quando eu cheguei na clínica, o sangramento parou, não sangrava mais. -

‘Meu Deus do céu, eu vim aqui pra ele olhar, eu vou dizer que tô sangrando, mas

ele vai dizer que eu não tô porque não tá mesmo’. E foi isso. Me deitei tudo

direitinho, ele olhou: - ‘Não tem nada’. - ‘Não, doutor, eu tô sangrando, começou

depois de uns treze dias, eu tô sangrando’. - ‘Graça, você tá ótima, não tem nada, tá

tudo sarado aqui’. É brincadeira?! Dentro de mim, aquele desespero que bate na

pessoa. No outro dia, sangrando novamente. Aí eu não ia procurar mais o médico,

porque se ele fosse me abrir de novo, pra ver o que tava acontecendo, eu sabia que

eu ia morrer. Porque se eu não tinha nada? ‘Eu já tava com o pé na cova’ – eu

pensando –, ‘já ouvi que tudo isso ia acontecer comigo, e isso tudo acontecendo!’

Pense! Eu fui lá em Amado, meu pai Oxóssi disse que Sonilton não tinha feito

nada. Aí realmente, como eu tô dizendo, eu menti quando disse que foi Sonilton e
140

não o santo dele que disse. Foi mesmo o santo de Sonilton que disse, só que a

pessoa dele não fez nada por mim, porque Sonilton era justamente quem a mulher

procurou pra fazer porcaria. Eu tinha ido por coincidência na mesma casa...

Coincidências da vida.”

Etnógrafa: - E quem indicou Sonilton? Como você chegou nele?

Graça: - “Um ex, um ex-marido, um amigo. Na verdade, foi um amigo.”

Etnógrafa: - Aí você parou de pagar...

Graça: - “Já tinha pago tudo!”

Etnógrafa: - Daí você nunca mais voltou lá, né?

Graça: - “Não, nunca mais. A verdade foi essa: ele não me matou porque não

quis, porque depois que ele me conheceu – eu vejo assim –, ele teve pena de mim.

O último dia que ele veio pegar o dinheiro, eu tava sangrando e operada,

parecendo uma morta-viva. Pálida! Ele olhou pra mim e fez: - ‘Rapaz, como você

emagreceu!’ Sonilton falou assim: - ‘Você sumiu.’ Eu senti pena nos olhos dele,

pena de mim.”

Etnógrafa: - E ele não fez nada...

Graça: - “... Não fez nada nem pra me ajudar nem pra me matar. Que ele

poderia ter me matado. Se ele já tava com meu nome todo na mão dele, já tava com

minha pessoa! Ele poderia me matar. E ele me matava. Ela pagou mil e setecentos

pra ele me matar, e ele me cobrou novecentos que, na verdade, se ele não tivesse

ido com minha cara, ele me matava mesmo, porque eu já tava na mão dele, o

trabalho dela seria bem mais fácil. Porque se ele já tava com minha pessoa? Era só

me dar alguma coisa pra eu beber”

Irmã: - “Qualquer coisa que ele desse, ela ia tomar...”

Etnógrafa: - E logo depois que você foi pra Amado já começou a engordar?

Graça: - “Não, aí foi um processo. Fiz meu trabalho, tomando banho e tudo,

teve coisa de médico, bem pouco”.

Irmã: - “Amado também passou uns remédios, né?”

Graça: - “Não, lá de meu pai Oxóssi foi banho, muito chá que eu tomei. Um

chá tão normal....”


141

Etnógrafa: - Chá normal, assim, de...

Graça: - “De bezetacil, de infusão.”

Etnógrafa: - Pé de bezetacil, né?

Graça: - “Aham. E os remédios do médico, tudo caro. Doutor Juliano passou

um remédio caro como o quê, um anti-inflamatório. Depois fui em doutor Emeril,

ele passou um anti-inflamatório caro também. E meu pai passou só a colher de

bezetacil de infusão pra eu tomar de manhã cedo. Botava sete folhas, um copo com

água, tampava, quando era de manhã eu bebia em jejum e, graças a Deus, sarou

tudo. Só nos banhos e nos chás. E na reza! Amado dizia: - ‘Você vai ficar boa; agora

você tem que ter fé’. Na hora de rezar, a confusão na minha cabeça – ‘Ô, meu Deus,

me ajude’ –, um desespero, com medo de morrer, eu sangrando ali – ‘Eu vou

morrer. Ô meu Deus, me ajude. Meu pai, ô meu pai Oxóssi, me ajude que eu fique

boa’ –, rezando e me sentindo vazia, querendo me apegar, tá entendendo?, mas

mesmo assim um vazio – ‘Ô meu Deus, não tô com fé o suficiente pra ficar boa, eu

acho que eu vou morrer’. Desespero é isso... Eu tava na agonia: tava passando e

vendo o que eu tava passando ali. Minha família também rezou, fez promessa.

Minha irmã fez promessa, não foi, minha irmã? Que era tudo meio estranho.

Depois, eu tive que fazer um reforço do meu trabalho, um sacudimento, porque na

quaresma, diz que os diabo ficam tudo solto. Quando eu fiz esse sacudimento –

que era um outro trabalho, só que menor –, o sangramento desapareceu. Mas aí fica

uma pergunta: Como é que acontece? Eu mesma não sei.”

Irmã: - “Ela rodou um ebó. Aí tem sempre um despacho depois daquelas

coisas todas do trabalho”.

Etnógrafa: - Você foi junto [despachar]?

Irmã: - “Não pode ir não! Quando a pessoa sai dali, daquela bagaceira, nem

pra trás pode olhar.”

De um modo que lhe foi específico – pois não há dois casos iguais –, Graça

se viu em meio a duas ações guerreiras bastante comuns em meu trabalho de


142

campo. Primeira: a batalha entre dois pais ou mães-de-santo sobre quem será o

mais forte, sobre quem conseguirá assegurar a saúde do seu “povo”. Segunda: o

enfrentamento entre um pai ou mãe e um(a) filho(a), seja por abandono ou luta.

- “É um meio de muita guerra, muito susto”, me dizia Jaci, um pai-de-santo

da região, “tem que saber com quem tá lidando, tem que saber com quem

conversa. Tem que saber como conversar, tem que saber quem a gente bota dentro

de nossa casa pra nos ajudar. Que nem todo mundo pode participar de tudo. Nem

tudo a pessoa pode ver, porque tem coisas que às vezes podem até me prejudicar.

Então, no candomblé, a gente vive muito da confiança das pessoas”.

Graça também poderia dizer o mesmo que Jaci: “que o candomblé é um

meio de muita guerra” e “que tem que saber quem a gente bota dentro de nossa

casa para nos ajudar”. Mas Graça diria isso não de seus filhos, mas daquele que ela

não deveria ter confiado o “cargo” de pai. Amado e seu “povo” desvendaram todo

o enredo: ela fora vítima de uma traição e de uma lealdade. Graça fora traída

porque Sonilton permaneceu leal à filha que o procurou em primeiro lugar.

Sonilton escolhera a quem se aliar, e Graça, ao procurar amparo, obteve uma

simulação: Sonilton foi seu pai de mentira.

Zuela-se para cosme e damião,


quando lhes oferece caruru:

Tu já comeu, meus filho?


Eu já, meu pai.
Tá satisfeito, meus filho?
Graças a Deus, meu pai.
Este ano eu dei pouco,
Para o ano eu dou mais.

Em geral, a relação entre filhos e pais-de-santo é complexa. Eles mantêm um

ambiente de encantamento e sedução, de amor e alegria, mas também de mágoa e

sensação de ingratidão. Talvez por isso sejam variadas as reações quando se

considera um caso de feitiço de um pai/mãe contra um(a) filho(a). Às vezes se

evidencia a enorme maldade do pai/mãe; às vezes, a rebeldia do filho(a) e, por isso,

o merecimento do castigo. Às vezes, porém, se constata a dimensão “folheada”


143

(Goldman, 1984 : 175) do pai ou mãe que foi visto ou de quem se suspeitou

enfeitiçar um de seus filhos. Tal dimensão, diz-se, faria do médium uma pessoa

suscetível à ação prismática de uma ou mais de suas inúmeras “influências” que

por ventura estejam acionadas em determinado período:

- “A pessoa que é fixada no candomblé um dia é de um, outro dia é de outro.

Você vê que tem dia que eu brinco, tem dia que eu tô arretado. Se você chegar lá,

ele tiver brincalhão, ele tá de erê; se ele estiver metade aberto, metade fechado, tá

de santo; se tiver mais pra fechado, tá de caboclo; e se tiver fechado, com conversa

séria, tá com exu.”

Como disseram a Pacheco (2000: 30), em sua pesquisa sobre o povo de rua

de Brasília, “os Exus são possessivos, dominadores e ciumentos. Sua personalidade

forte termina por infiltrar-se no seu cotidiano, igual aos Orixás”, uma afirmação

bastante pertinente também para minha experiência de campo. Se os exus fazem

parte dos humanos, e se eles gostam de “trabalhos pesados”, não seria de todo

estranho esperar que os humanos, principalmente aqueles dos quais os exus estão

mais próximos, sejam propensos a atos feiticeiros, mesmo quando o alvo de seu

feitiço recaia sobre seu próprio filho. Ora, os exus são famosos por rirem da

desgraça alheia, por debocharem da fraqueza de seus próximos, e eles próprios

aconselham os humanos de quem gostam a colocarem “uma pedra no lugar do

coração”, por que então alguém que convive intimamente com um exu, cujo

cotidiano está saturado por sua presença, não se veria praticando seus atos mais

queridos?6

Ainda que lógica, tal dedução me parece problemática. Trata-se, é certo, de

uma prática cuja beleza está no entendimento de que o bem e o mal precisam ser

6
Estudando o Palo cubano, Ochoa (2004: 137) transcreve um belo enunciado versando sobre algo
semelhante: “Se tem algo que me desvia do meu trabalho e responsabilidades é meu Lucero Mundo.
Palo é complicado. Você não recebe uma prenda [o Lucero] assim, sem sofrimento. É uma mentira.
Palo te muda. A mudança dói. Você começa a agir como sua prenda. É por isso que é tão importante
ter uma boa prenda. Entre os mortos, até os bons podem ter más qualidades e, no meu caso, meu
Lucero é selvagem”.
144

trabalhados (Ochoa, 2004: 22; 96; 111; 130)7. Mas isso não implica necessariamente

que o mal, mantido próximo, governe as ações dos pais e mães-de-santo, com seus

mais variados estilos e temperamentos. Muitas vezes, na região, falar sobre

umbanda significa trabalhar com o bem, enquanto candomblé remete ao “povo do

azeite”, aos exus, ao mal. Todavia, dos que dizem trabalhar ao mesmo tempo com

umbanda e candomblé, não se pode deduzir de imediato que trabalham fazendo o

mal e o bem. Uma senhora que afirma nunca ter preparado nada para ninguém me

dizia sobre o quanto o bem não tem força sem a parte “abólica” (que ela usa como

abreviação de diabólica). O fato de seu terreiro ser de umbanda e candomblé – e de

estes dois serem associados, respectivamente, aos deuses e aos diabos – não a

impede de somente trabalhar para curar aqueles que lá chegam vitimizados. Há

uma diferença, portanto, entre fazer o mal e trabalhar com o mal.

Tal problemática me sensibiliza bastante. Enquanto ainda fazia meu trabalho

de campo, pais-de-santo de Salvador, pertencentes ao Coletivo de Entidades

Negras (CEN), lançaram uma campanha para combater a violência que as igrejas

evangélicas insistiam em direcionar para as religiões afro-brasileiras. Pretendiam

estimular os adeptos a assumirem publicamente seu pertencimento (“quem é do

axé diz que é”8) e divulgar melhor as qualidades do “orixá exu”, enfatizando seu

caráter de mensageiro e desvinculando-o da ligação com a feitiçaria9. Antes de

iniciar meu trabalho de campo, eu pensava – e, de certa forma, continuo pensando

– que tratar a feitiçaria de forma a complexificá-la era uma estratégia igualmente

válida para lutar contra o preconceito. Depois, porém, achei que seria melhor tratar

tal questão no interior – e não fora – da produção etnográfica. Resolvi perguntar o

que algumas pessoas, assumidamente feiticeiras, achavam do movimento do CEN.

7
Não é apenas uma aceitação do mal, assim “como se aceita o bem”. Não é apenas o consentimento
de que “há sempre bruxaria por aí, e não é provável que se possa erradicá-la da vida”, como observa
Evans-Pritchard (1978: 74) sobre os Azande. Trata-se, na realidade, da concepção de que ambos os
lados – o esquerdo e o direito, o mal e o bem – devem ser preparados, manipulados.
8
Uma ação semelhante àquela do movimento gay, anos atrás, a fim de justificadamente lutar contra
o preconceito que desrespeitava e desencorajava a orientação homossexual.
9 Segundo reportagem da revista Carta Capital, na matéria “Exu contra-ataca”, de junho de 2009,

acessada em 28/07/2009, no link http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2 =6&i=4262.


145

Segue-se abaixo uma das respostas:

- “Acho que eles tão querendo se defender de alguma coisa. Eu já vi

Meliciano [um pai-de-santo] dizendo isso numa palestra que ele fez no colégio. Ele

dizia que o candomblé e feitiçaria não têm nada a ver e que exu não é diabo, mas

mensageiro entre homens e orixás. Eu discordo totalmente. Ele tava querendo

chegar, vamos dizer assim, à autoestima.”

- Como assim autoestima?

- “Por exemplo, eu falo que feitiçaria não existe e pico a macumba em

alguém, ele nunca vai me acusar, vai acusar o cara que mora lá adiante. Agora, ele

é pai-de-santo, não sabe mexer o vatapá? E como uma pessoa vai fazer feitiço sem

fundamento? Como fora da doutrina? Você acha que ele ganha dinheiro mexendo

só com santo? Hoje em dia nem mesa branca fala só em Deus!”10

Com o termo autoestima, colocou-se em jogo a manutenção ou recuperação

do prestígio através da negação de uma prática que, no entanto, não torna menor o

orgulho que se sente por ela, mesmo quando é deliberadamente eclipsada. Ao

contrário, nesse caso a negação faz parte do próprio jogo feiticeiro, conforme

veremos melhor abaixo. Claro, seria interessante retomar essa questão comparando

os pressupostos de meu argumento em favor do estudo e consequente

complexificação das ações feiticeiras no candomblé com o movimento de ocultação,

negação, insinuação e afirmação, que constitui a própria experiência em torno da

feitiçaria. Mas infelizmente tal discussão extrapolaria o tempo de que disponho.

Cabe por ora tentar descrever que, ao “mexer com diabo”, um pai ou mãe-de-santo

conjuga a irradiação dele em seu próprio corpo com uma negociação – uma luta

mesmo – em que se aprende a seduzir os seres cuja força de outro modo se tornaria

insuportavelmente imoderada.

10
Quando, nessa mesma conversa, perguntei o que era doutrina, obtive a seguinte resposta: “É por
exemplo, comida de santo (cada um tem uma); rezar pro santo (cada santo tem uma reza); saber
sobre os guias; qual salva vai tirar pro santo, se o santo vai salvar ou se é a pessoa; cortar pra exu tem
dia certo, não é todo dia.”
146

Caboclo zuela:

Eu vou avoando,
Que nem um passarinho,
Desmanchando ovo,
Quebrando ninho.

Pai-de-santo: - “Tranca-Rua, sua desgraça, cadê meu dinheiro? Tô arretado!

Tô sim!”

Alguém: - “Você, quando ganhou, com nada deu dois, três frangos a ele?

Como quer que ele lhe dê?”

Pai-de-santo: - “Não me deu mais nada! Não tá merecendo”

Espera-se que um pai ou mãe-de-santo cuide bem de seus exus e santos. Mas

não tão bem a ponto de os deixarem inteiramente satisfeitos. “Se ele tiver comendo

toda hora, ele vai sair dali pra dar dinheiro ao pai-de-santo? Melhor dizer: tá aqui

sua comida, vou te dar mais quando você me der mais”, me disse um ogã afeito à

companhia de exus e pomba-giras.

Além disso, eles “frequentemente pedem mais do que seus zeladores

podem, ou querem, dar” – isso é o que diz Ochoa (2004: 275-276) para as prendas

cubanas – objetos rituais que são também seres –, mas facilmente estendido

facilmente para os exus brasileiros. Os zeladores dependem, portanto, da

habilidade em lidar com o perigo que representa um exu sempre ávido.

Porém, um exu que perturba não faz nada mais do que dele se espera e por

isso é melhor ter um exu conhecido por sua força e “arrogância” do que por sua

“benevolência e passividade” (idem: 282). É mesmo uma encruzilhada: há de se

escolher entre deixar o exu inativo, satisfazendo suas necessidades e não

recorrendo a seus serviços, ou acioná-lo, dando-lhe de comer com parcimônia e

prometendo-lhe fartura caso “preste conta” de eventuais encomendas. Porém, em

ambos os casos, se correrá o risco de ver um exu contrariado atacar pessoas que

habitam o seu próprio domínio e, por isso, é frequente dizer que o pai-de-santo,
147

cujos filhos-de-santo são vistos enfraquecidos, não cuida bem de seus exus11.

Exu já comeu,
Exu já bebeu,
Faça o que eu mando,
Olha lá quem sou eu!

Etnógrafa: - E seus caboclos dão consulta, dona Érica?

Dona Érica: - “Não, não – Deus é mais! –, eles são filhos.”

Etnógrafa: - Eles são filhos? Como assim?

Dona Érica: - “Eles obedecem Zezinho. Eles obedeciam Gilson, o outro [pai-

de-santo]. Eles só faziam o que Gilson queria, e ele não dava permissão. Pra eu

fazer consulta, eu vou ter que raspar, receber não sei lá o quê, um fundamento

diferente, muita coisa.”

Etnógrafa: - Fundamento é aquele negócio que a senhora falou: a bacia com

os pratinhos?

Dona Érica: - “É. Mas o batizado é diferente do raspado.”

Etnógrafa: - A senhora é batizada, se quisesse raspar seria outro?

Dona Érica: - “É. Aí tem outro fundamento. O meu é batizado aqui na casa

de Gilson, agora na de Zezinho é que vai batizar de novo. Já que eu parei na de lá,

não vale mais nada.”

Etnógrafa: - Eles são filhos, mas pra resolver essa questão da senhora, é

Zezinho que vai pedindo a eles que, junto com os caboclos do próprio Zezinho...

Dona Érica: - “Sim...”

Prima: - “Que dê conta.”

Etnógrafa: - Que vão resolver juntos.

11
Essa passagem lança dúvida sobre afirmação recorrente de que, na magia, a “noção de
responsabilidade moral (...) está ausente” (ver, por exemplo, Montero, 1994: 78). Ora, é bem verdade
que o pai-de-santo não é diretamente responsável pelos atos de seu Exu, mas ele o é indiretamente,
quando se demonstra incapaz de bem alimentar ou de negociar as vontades de seus entes espirituais
que, ressalte-se, são seus. A esta suposta amoralidade, Evans-Pritchard (1978: 65-66) já objetara que,
em casos de crime ou outras situações graves, a bruxaria era então considerada irrelevante, ou então
não era tida como a causa principal. Ademais, disse o autor, mesmo em situações ordinárias, não se
formava um consenso definitivo sobre sua atuação.
148

Prima: - “Ficar mais forte, né?”

Dona Érica: - “É.”

Etnógrafa: - E a senhora não conversa com eles de vez em quando?

Dona Érica: - “Com os meus?! Como que eu converso?!”

Etnógrafa: - Sei lá, às vezes eles têm uma presença, não sei.

Prima: - “Minha prima é assim, minha prima é meio frouxa, porque se

minha prima pedir alguma coisa com fé, você vê. Ela vê o resultado. Se pedir com

fé mesmo...”

Dona Érica: - “Ou com raiva.”

Prima: - “Raiva e fé, tudo junto.”

Dona Érica: - “Enraivada, assim com toda raiva, eu disse: - ‘Se eu tiver

caboclo, santo, diabo, eu vou ver o resultado!’ Aí eles me provam que eu tenho. Aí

eu vejo...”

Prima: - (risos)

Pacheco (2000: 34) também concorda que a raiva surte um efeito especial em

seres semelhantes à sua Padilha. Se um cavalo lhes dirigir pedidos aos prantos, elas

se revoltam, diz a autora, “agora se você falar com firmeza, com orgulho e desafio,

elas acordam e vão correr caminho para lhe trazer o que deseja”. Trata-se como

bem descreveu Ochoa (2004: 273) de uma reverência em forma de luta (“struggle is

praise”), em que são colocadas em jogo palavras-capturas (Nathan, 2004: 79)12.

Cardoso (2004: 143-144) também chamou a atenção de que “nas estórias dos

macumbeiros, a linguagem não é a da submissão, mas a da tensa coexistência de

uma luta interminável entre dar e tomar”. Porém, a autora se questiona se luta é a

12
Pelo interesse comparativo, transcrevo dois trechos em que tais lutas estão evidentes. No primeiro,
ouve-se um palero cubano (mal)tratando sua prenda (Lydia Cabrera apud Ochoa, 2004: 363). No
segundo, ouve-se uma médium invocando sua Padilha (Pacheco, 2000: 34).

“Sua filha da puta, você faça o que eu digo. Você não é mais forte do que eu! Foda-se!”

“Quero saber, mulher quem você é. É tão boa quanto diz, Sinhá Puta? Quer menga (sangue), quer
festas, roupas, bebidas e comidas? O que quiser eu te dou, mas corra estrada e consiga este homem
para ser meu marido e seu amante, debaixo do meu pé esquerdo e preso na sua panela de cobre”.
149

melhor palavra para caracterizar uma tensão que não é só negativa, pois

“intensamente produtora de novos significados”. Talvez não seja mesmo a melhor

palavra. Talvez seja muito para uma só palavra condensar essa relação tão especial,

em que um humano tem santos, exus e caboclos que o “governam”.

Como vimos nos capítulos anteriores, a ação de ter um caboclo, diabo ou

santo tem um sentido bem diferente do usual. Ela não leva à propriedade, pois não

transforma em passivo aquilo que se tem. Da mesma forma, as expressões “dono

da minha cabeça”, “dono do chão”, “dono da terra” – normalmente utilizadas para

se referir aos donos-espíritos – parecem implicar mais em responsabilidade,

obrigação, corresidência, “patrocínio” (Serra, 1995: 21) do que em controle e

propriedade. Nem humanos nem espíritos são proprietários uns dos outros

(Goldman, 2005: 134), eles se compõem e se capturam mutuamente. Entretanto,

vimos no capítulo 1 que tal bloco de devir não implica em harmonia. Ao contrário,

uma relação de batalha está embutida na própria ideia de que há uma obrigação de

cuidar de um outro ser que, em grande medida, permanece insubmisso e ávido.

O que fazer quando se cansa dessa avidez? O tenso equilíbrio entre

alimentar e não alimentar essas entidades é uma das reações possíveis. Também o é

a recusa em lhes dar passagem. Circulam-se, com esse objetivo, várias técnicas de

contenção ou suspensão do transe (cruza-se os braços; firma-se; concentra-se; “se

botar carvão ou alho macho na mão e fechar, o exu vai embora”; “um pano branco

com um nó, se o caboclo aceitar, pronto, ele sobe”; um sopro no pé do ouvido; um

manejar de ombros).

Um governo muito especial, este13. Certo dia, ouvi um ogã dizer que ele

pede bênção ao caboclo de sua mãe-de-santo que, por sua vez, também lhe pede

13
Eis dois outros belos trechos em que Pacheco (2000: 33) descreve sua experiência com sua Padilha,
trechos que fortalecem a conexão que tento delinear: “Eu povoada e governada. De quem sou? Onde
começo eu, onde termina ela? Em que gestos meus ela se revela? Quem ri, quem fala? Quando eu e
quando ela, Dona Maria Padilha das Sete Encruzilhadas dos Sete cemitérios? As pessoas pensam que
o transe é só naquele instante. Que começa e termina. Não é assim. Continuamos juntas todos os dias
e todas as longas noites. Às vezes eu a odeio por rebeldia, por sufoco (...) Pareço ser às vezes seu
objeto, e para me vingar, aprendi a controlar mais ou menos a sua incorporação, não lhe ‘dando
passagem’ quando esta começa a emanar seus sinais e recusando-me por longas datas a provê-la de
suas oferendas habituais, como cidra, vinho, uísque, cigarros da marca ‘Charme’”.
150

bênção. “Eu sou pai dele, ele é meu pai” – ele completou. Brincando, eu disse: -

Assim é bom, você manda nele e ele manda em você!

- “Ele manda mais em mim do que eu nele. Eu mando nele quando mando

ele embora”, ele replicou.

O mandar humano parece assumir mais o significado de enviar do que o de

fazer obedecer – e é bem verdade que a experiência de alguém no candomblé, longe

de ser marcada apenas pela convivência, é também enormemente preenchida pela

suspensão temporária dessas entidades tão demandantes. Porém – e é aqui que

tudo se complica –, não é pelo afastamento que se ganha a batalha, que aliás não

verá a declaração evidente de um vencedor. Bem ao contrário, ela é mantida

justamente para que tais “influências” sejam persuadidas a oferecer sua forma

benéfica.

Tal relação especial consiste, me parece, num modo de participar se

afastando. “Candomblé é um poço sem fundo”, diz-se com tal frequência,

certamente pelo cansaço verificado no dia a dia de intermináveis preparações

dirigidas aos caboclos, santos e exus, mas também pela perplexidade, fruto desse

mundo demasiadamente reversível, em gostar daqueles que podem ser “piores que

feitiço perturbado”. Como não os desafiar, por exemplo, adorando ir aos toques,

mas não os alimentando com a frequência requerida? Não seria essa atenção

negligente, essa suspensão intermitente, espécies de luta contra os caboclos, para os

quais também valeria a estratégia de engajamento, nem sempre bem sucedida, de

gostar menos para somente ser pego às vezes?14

Insisto, aqui, numa ideia de relação diferente daquela cuja imagem é a de

identificação harmoniosa entre adepto e orixá (conforme Lépine, 1978 apud Halloy,

2004: 377). Também não se trata de uma ideia oposta de relação: aquela baseada no

conflito, dominação e ameaça entre o filho e seu “duplo” (conforme Augras, 1983

apud Halloy, 2004: 377). Trata-se mais propriamente de uma ideia de relação que

14
A vontade de sair do candomblé é tão comum quanto a saudação da beleza e força de sua
presença. Já sabendo disso, Juca me dizia: - “Terminando suas aulas de atabaque, vou fazer do
candomblé um mito”. - Como assim? – eu perguntei. - “Vou excluir” – ele afirmou para em seguida
151

em tudo se assemelha à espécie de paixão que, a princípio, ou intermitentemente, é

negada pelo apaixonado, receoso do sentimento que o invade contra sua vontade15.

Sem dúvida, essa paixão também é uma captura. Não se trata de identificação nem

conflito. Não são duas tendências opostas, mas uma só: participar se afastando. Uma

ação cuja ação reversa lhe é concomitante e integrada.

Num caso de feitiço, viu-se, tais ações são ainda mais exponenciais. O

enfeitiçado, por meio de um trabalho, dá comida ao exu que fora enviado para lhe

fazer o mal. Ao alimentar seu próprio feiticeiro, ele talvez o convença a se afastar,

talvez a se tornar seu cúmplice, talvez mais provavelmente a se manter entre uma e

outra alternativa.

Passagens

A mãe-de-santo já despachava as pessoas quando a Pomba-Gira interveio:

- “Só vai todo mundo viajar, minha velha, quando eu levantar tudo dali,

certo? Você me desculpa, você é a mãe-de-santo, mas todo mundo vai ter de me

esperar fazer o trabalho direito, porque se não fizer direito, e não ver o resultado,

vão ficar me metendo a pomba. E aí eu vou sair cobrando de um a um que falou de

mim...”

Mãe-de-santo: - “Lá ele! Não vou pra bandeira de Tempo não!”

Pomba-Gira: - “Então bora fazer devagar, porque eles vieram sabendo que

dia de sábado é dia de candomblé, dia de amanhecer o dia. Que compromisso?!

Esse povo tá acostumado de candomblé. É assim. Se fosse uma festa na cidade,

todo mundo tava lá...”

Mãe-de-Santo: - “Ei! Não precisa tanto pai-nosso!”

hesitar – “digo isso hoje, hoje eu digo”.


152

Pomba-Gira: - “Culpada a senhora por causa da obrigação. Todo mundo tá

ouvindo, não é não, minha velha? Se dê a bença..., tem de ter paciência, que se fizer

as coisas dos orixás na carreira... Quanto mais Obaluaê, que é tão devagarzinho,

velhinho.”

Mais tarde, a Pomba-Gira voltou a tomar a palavra:

- “Você não vai ficar curado só porque de Deus e Jesus não! Vai ficar porque

eu sou arretada, a mais gostosa, a mais fudida.”

Mãe-de-Santo: “E a mais ousada!” [no sentido de petulante]

Pomba-Gira: (riso) “Você tá curado em nome de ogum e iemanjá! E eu vou

beber minha cachaça de exu que eu já falei muito de Jesus.”

Mãe-de-Santo: “E o resguardo?”

Pomba-Gira: “Não vou escrever resguardo. Não vou perder meu tempo. O

povo faz...” – mas, mudando de ideia, a Gira prescreve – “Nhanhar, cachaça, azeite,

pimenta: deixe tudo pra mim. Se tiver vontade, compre e traga pra mim!”

(Riso geral)

Depois de muito ouvir essas frequentes negociações, censuras e graças entre

espíritos e humanos, tornou-se ainda mais difícil reconhecer a ideia recorrente na

literatura antropológica sobre a “autoridade absoluta do pai” ou mãe-de-santo

sobre sua família (ver por exemplo Lima, 2003b: 163). Viu-se, no segundo capítulo,

o quanto se perde ao trabalhar com um mapa já pronto das hierarquias sociais.

Porém, a meu ver, é igualmente problemático trabalhar com a ideia de que a

potência feiticeira “hierarquiza[ria] e relaciona[ria] grupos” (Maggie, 1992: 30, 35),

separando os bons dos maus, os feiticeiros dos enfeitiçados, os pais dos filhos-de-

santo (Barros, 2000: 112). Tal classificação, ainda que não-estática (Maggie, 1992:

235), implica pensar cada evento em uma sequência de tempo linear – com início,

15
Essa conexão foi inspirada nos romances de Milan Kundera (1985, 1986 e 1990).
153

meio e fim –, o vencedor, é claro, estando entre aqueles que impõem seu prestígio

ou atividade ao cabo de um determinado ‘drama’. Todavia, enquanto me parece

manifesto que um caso de feitiçaria coloque ‘personagens’ em relação, me soa

pouco convincente que seus cotidianos sigam tamanha linearidade.

Ora, como vimos, o poder de uma mãe ou pai-de-santo é frequentemente

contraposto pelo de seus orixás, caboclos e exus – e a literatura antropológica sobre

candomblé está permeada por exemplos de decisões que um zelador tomou hoje no

dia seguinte serem anuladas para acatar o desejo de um santo ou exu, que desceu à

terra justamente para expressar seu desagrado16. Vimos também que espíritos,

orixás e diabos tampouco dispõem de um poder inegociável, incontinente. Além

disso, seus domínios são frequentemente ‘invadidos’ pela presença de outras

entidades. Um santo passa à frente de um exu. Um exu passa à frente desse santo17

e também invade a festa preparada especialmente para seu Martim, para depois

ver um erê se interpor em seu caminho (estes erês, aliás, por serem crianças,

“porque ninguém manda neles”, “não levam nada a sério”, são “perversos”, e por

isso os únicos capazes de desfazer a macumba dos temidos exus).

Claro, tais guerras existem em sua própria virtualidade – e são totalmente

variáveis segundo os terreiros –, mas a indicação de que elas pairam no ar,

sobrecarregado de influências múltiplas, é bastante significativa para pensar a

família-de-santo como uma família de tantos pais quanto existirem filhos. Pois os

filhos, ao possuírem donos e pais, absorvem a força de ambos, participando de um

“devir”-pai, isto é, uma possibilidade que, em sua própria virtualidade, faz com

que ‘ser pai’ vire outra coisa. Veremos, a seguir, como a história de Juliana,

misturada à da zuela abaixo, sugere tal transformação potencial.

Cabocla Jurema zuela:

Deus vos salve, aldeia grande,

16
Ver por exemplo Medeiros (2006: 43), entre tantos outros.
17
Um dos Exus com quem convivi, um dia disse: - “As pessoas rezam pro santo e esquecem de
chamar por mim, logo eu que sou dono das estradas, se o santo não pedir, eu não abro o caminho...”
154

Eu vim aqui pra visitar,


Sangue de caboclo,
Barriga de boneca,
Eu sou sua filha,
E vós é minha neta

- “São as descendências18 de Jaco” – me dizia Marcos, sobre “os mais

antigos” do seu amigo, os seus agora orixás, exus e caboclos. – “O corpo dos

caboclos e exus era o mesmo que o da gente”, Marcos complementou, “eles já

foram gente faz muito tempo, os santos faz mais tempo ainda”.

Os espíritos normalmente são seres experientes e, pensando neles, Juliana se

admira com o tanto de história que já viveu em seus apenas vinte e poucos anos.

Suas histórias são também as dos seres que a acompanham, grande parte deles

herdados de sua avó, mãe-de-santo há muito falecida. A garota, com eles, vê-se

aumentada: ela carrega uma profundidade temporal.

Desde seis anos, Juliana frequenta o terreiro de candomblé de que hoje uma

filha-de-santo de sua avó toma conta. Ela e Jenifer – sua amiga, vizinha e irmã-de-

santo – sempre moraram na mesma rua, uma rua perpendicular ao terreiro de um

pequeno povoado da região. Ambas, ainda crianças, batucavam os baldes e latas

que encontravam pelo quintal, e remedavam os caboclos dos adultos, em sua

maioria seus parentes. Quando crescesse, Jenifer queria ser ogã, e Juliana, mãe-de-

santo.

Ainda pequena, Juliana acordava à noite, aos prantos, mas não sabia o

porquê. Saía à rua, a mãe aflita, e a menina não tinha um motivo. - “Era minha

avó” – diz ela, hoje com certeza.

- “Sonho com ela me entregando presente. É muita, muita história, você não

queria fazer uma entrevista? Eu tenho que passar por equede para ser mãe-de-

santo. É meu sonho, e eu vou ser, com fé em Deus. Não posso virar nas festas,

porque, se eu virar, não aprendo. Só quando eles querem mesmo descer, porque

não é bom não deixar passar. Daí alguém conversa com eles e pede que eles entrem

18
A palavra descendência, no interior da Bahia, normalmente é sinônimo de ascendência (no sentido
155

no zambi, que saiam do aparelho. Já dei obrigação, trabalho de limpeza, mas ainda

não entrei no roncó. Até o final do ano vou ser filha-de-santo de Angelita, com fé

no senhor. Tenho o Obaluaê de minha vó – peguei seu carma. Eu não queria ter

isso tudo, é muita história... Recebo também um santo guerreiro, Tumbajuçara, que

era da minha avó e é herança de Angelita, mas agora também chega perto de mim.

Recebo um orixá surdo e mudo, também era de minha vó. Não sei o nome dele, ele

não fala, é velhinho...”

Jaco tem uma história diferente da de Juliana. Quase ninguém em sua

família tem uma aproximação com o candomblé, mas ele tem “a nação em [seu]

sangue” porque “não nasceu sozinho”, é mabaço19. Talvez justamente pela

facilidade em atrair espíritos diversos, e por nenhum de seus parentes se mostrar

igualmente disposto, é provável que Jaco, enquanto viver, seja o único herdeiro das

“descendências” de sua família, fato que não é considerado exatamente ruim, pois

Jaco teria a oportunidade de concentrar mais força sobre si. As “descendências” de

Jaco – seus parentes há muito mortos – e os caboclos da avó de Juliana, que agora

são seus, não perfazem dois conjuntos diferenciados. Entre as pessoas com quem

mais tive contato, não se costumou diferenciar caboclos-espíritos-de-antepassados

de caboclos herdados de algum parente morto não há muito tempo 20. E foi

genealógico), o que não deixa de ser sugestivo.


19
Mabaço significa gêmeo. Para a relação de erês com candomblé – e por extensão a dos gêmeos –,
ver a excelente etnografia de Serra (1978).
20
Como se sabe, discute-se se os orixás, exus e caboclos, que foram humanos, não seriam por isso
eguns, isto é, mortos. Essa questão é complexa e, se houvesse tempo, gostaria de me delongar nela.
Por ora, a título de resumo, diria que, em minha experiência de campo, os eguns eram tidos por
bastante diferentes de todos os outros caboclos, sejam eles antepassados ou não (e mesmo seu
Martim – o marinheiro bêbado –, que é um espírito de morto, não era por isso considerado um
egum). “O exu, ele vive, não é morto”, me explicava Juca, e o mesmo poderia ser dito para caboclos,
orixás e marinheiros (sobre isso, ver também Halloy, 2005: 145). Porém, os mortos comuns, mesmo
sem vida, não deixam de influir. A diferença é que sua influência em geral é considerada nefasta e,
por isso, durante minha experiência de campo, cuidou-se de mantê-los à distância, já que traziam
problemas a parentes e amigos mesmo quando queriam ajudá-los. Como não poderia deixar de ser,
houve exceções. Em uma delas, vi uma senhora incorporar sua mãe morta recentemente, e isso não
foi considerado um problema. Em duas outras ocasiões, ouvi falar de sessões eventuais de “mesa
branca” presididas por pais ou mães-de-santo, realizadas nos próprios terreiros de candomblé, onde
se invocaram eguns à maneira kardecista. Em outra, ainda, ouvi falar de uma moça, crente, cujo pai
morto recentemente incorporou na filha para dizer que tinha sido assassinado.
156

justamente pensando na possibilidade de um mesmo espírito ser ambas as coisas

que pude ver lançada uma fagulha de luz à zuela acima ("vós é minha neta e eu sou

sua filha"), zuela que durante muito tempo pareceu a mim e a alguns amigos

“candomblezeiros” um enigma sem resposta. O mistério não a abandonou de todo,

mas penso poder ouvi-la – entre as inúmeras notas possíveis – como uma das

inversões que o candomblé transporta. Pois, se tudo correr como Juliana deseja,

aqueles caboclos, que um dia foram de sua avó, se tornarão filhos de Angelita que,

lembremos, era filha não só da avó de Juliana como também desses caboclos que

agora são de Juliana21. Eles, que um dia foram pais, hoje serão filhos. - “Eu sou sua

filha e vós é minha neta” – a cabocla de Juliana bem poderia zuelar para Angelita.

Os santos, caboclos e exus “fazem parte” de seus filhos; eles se deixam

capturar pela condição de filhos, tornando-se um deles (“eu sou sua filha...”). Mas

estes mesmos caboclos se tornam filhos sem deixarem de ser pais de seus carnais; e,

mais importante, seus carnais são por eles transformados: os caboclos saturam seus

filhos com sua própria paternidade, transformando-os também em pais (“... e vós é

minha neta”)22. Trata-se, é bem verdade, da mesma ideia apresentada no capítulo 1:

o médium e seu orixá se capturam, um tornando-se o outro que, no entanto, já é

outra coisa. Todavia, há aqui uma adição. Ao ser preenchido com a paternidade de

seu espírito, o médium vê sua própria paternidade inchar-se e desinchar-se.

Tais sucessivos esvaziamentos e preenchimentos encontram ressonância na

ideia nativa de que, ainda que negociada, é a vontade da divindade que terá

proeminência. É por isso que mesmo alguém cuja ascendência junto a orixás,

caboclos e exus se faz evidente somente poderá dizer que “quase” está protegido

21
Claro, isso só é possível quando se abre a paternidade a mais de um caboclo, santo, orixá ou exu,
como foi sugerido ao longo desse capítulo. Mas, mesmo em terreiros onde um filho-de-santo tem
apenas um pai ou uma mãe, este ou esta normalmente vem acompanhado de um segundo e, às
vezes, terceiro orixá, com os quais ele também vira (daí as composições: ‘eu sou de Oxóssi com
Iemanjá’, ou ‘de Oxum com Ogum’ etc.).
22
Não acho muito, pela vivacidade, citar mais um trecho de Pacheco (2000: 33-4) sobre sua relação
com Maria Padilha: “Ela é Senhora. É sua senhora e você sua escrava. Até que você se impregne de
sua altivez e se torna rainha também, seu corpo glorificado com o remelexo de suas ancas, aí que está
a sedução e a loucura”.
157

deles e por eles23.

Meu pai é pemba,


Minha mãe é pemba,
Eu sou filho de Ogum,
Eu jogo pemba.

Se, no restante desse capítulo, grande ênfase será dada à consideração destas

e de outras transformações, não se quer por isso advogar pela identificação de pais

com filhos-de-santo, feiticeiros com enfeitiçados, espíritos com humanos. São várias

as elaborações nativas sobre a semelhança, mas trata-se de uma semelhança muito

singular, que não parece ser do tipo identitária. Vejamos:

- “Se a senhora pegar uma galinha preta, um pombo, pegar azeite, farinha,

fazer a farofa do azeite e da farinha, e depois cortar a galinha preta (marrom ou

branca, como seja lá de acordo com o que o pai-de-santo entenda qual é o anjo-de-

guarda [contra quem] ele vai fazer o feitiço), o pai-de-santo pode arriar no chão

com sete pratos, ou quatorze, ou vinte e um, e depois fazer aquela reza em intenção

do anjo-de-guarda daquela pessoa que ele tá enviando aquele feitiço. Agora, vamos

supor, eu sou de Oxóssi, a senhora é de Oxóssi, se a senhora enviar em cima de

mim, pode ter a plena tenha certeza que o torpedo vai pra senhora mesmo, porque

a senhora tá brigando contra o seu anjo-de-guarda”.

Como se poderia esperar, a formulação de seu Joir não viria sem um

argumento que a matizasse. Miquelme acha “chiada essa coisa de que mandar o

mal pra alguém que tenha o mesmo anjo-de-guarda é dar um tiro no próprio pé: -

‘Quero ver se eu fizer um feitiço pra alguém de Oxóssi, se vai pegar em mim?’”

Claro, Miquelme é também de Oxóssi e, ainda que ele duvide, eu gostaria de

mesmo assim me concentrar por um momento na ideia de que o agressor se torna

vítima, quando faz mal a alguém com o mesmo santo que o seu.

23
Essa ideia ressoa a observação de Nina Rodrigues, citada acima, em que há maior ou menor
158

Para seu Joir, é através dos orixás que os humanos se dão bem ou mal, “a

gente vai se comunicando não dentro da gente, é dentro do santo. Porque o santo

puxa a gente pro caminho junto com outra pessoa”. Se duas pessoas têm o mesmo

santo – ou exu, ou anjo-de-guarda, “como seja”, diz seu Joir –, elas estarão mais

propensas a seguirem juntas. A ideia de que um orixá em específico é partilhado

por pessoas diferentes não é exatamente nova, a formulação de seu Joir é uma das

variações possíveis, como o são a de Adenilton e Nêgo veiculadas no diálogo

abaixo:

- O seu Tranca-Rua é diferente do de outra pessoa? – perguntei a Adenilton.

- “Com certeza. Cada um é diferente, não tem dois iguais.”

- Por exemplo, cabocla Jurema, cada uma é diferente?

- “Sim, Jurema comanda as várias caboclas diferentes de cada pessoa.”

- “Eu estudei assim” – replicou Nêgo – “Uma mãe-de-santo tem mil filhos-

de-santo. Cinquenta deles têm Tranca-Rua, todos eles vão ser comandados pelo

Tranca-Rua da mãe-de-santo. É o mesmo espírito dividido em vários outros. Agora

seu Martim que é diferente: tem vários porque ele é um espírito de morto” 24.

A meu ver, Adenilton e Nêgo divergem menos do que a princípio Nêgo quis

dar a entender. Nêgo falava de um mesmo espírito – o Tranca-Rua da mãe-de-santo

– partilhado entre os diferentes humanos. Trata-se de uma ideia que lembra a de

seu Joir, mas enquanto este a estendeu para qualquer pessoa com quem se divida o

mesmo orixá, Nêgo restringiu sua abrangência à família-de-santo. Adenilton, ao

contrário, argumentava pela diferenciação de cada espírito, todavia a ideia de um

espírito geral e compartilhado também está presente, quando ele diz que “a cabocla

Jurema comanda as várias caboclas diferentes de cada pessoa”. Quando seu Joir

intensidade da presença dos ‘deuses’ no que ele chama de ídolos, mas que aqui estendo a humanos.
24
Essa mesma ideia foi verbalizada, com nuances, por Margarida, uma das filhas-de-santo de
Severino: “Por exemplo, o meu Tranca-Rua e o Tranca-Rua de minha irmã, na casa de Severino, vão
gostar das mesmas coisas que o Tranca-Rua de Severino, mas se eu for de casa diferente, o meu
Tranca-Rua vai gostar do que o Tranca-Rua do meu outro pai-de-santo gostar”.
159

gerou uma semelhança ‘radical’ entre humanos que possuem os mesmo seres, ele

deixou de lado a ideia de que cada cabocla Jurema, à medida que se aproxima e se

relaciona com um humano, aos poucos vai se diferenciando das outras caboclas

Jurema, quando adquire características únicas (uma ideia em parte verbalizada por

Adenilton). Mas seu movimento – o de enfatizar que a partilha de um orixá resulta

em um continuum de influência – encontra ressonância em outra ideia nativa,

relacionada às batalhas feiticeiras entre pais e filhos-de-santo, que eu gostaria de

ressaltar nesse item, para terminar25.

São inúmeros os exemplos de uma pessoa que passa a sentir aquilo que

sente uma segunda pessoa, ambas “fazendo parte” do mesmo orixá, caboclo ou

exu. Às vezes sentem aquilo que o próprio ser de quem fazem parte sentiu. Dona

Marilena, por exemplo, teve “um troço” quando se deparou, na casa de seu pai-de-

santo, com uma cobra dentro da panela. “A jiboia tava cozida, mas minha pressão

não aguentou; eu faço parte de uma cobra, na minha linha tem uma cobra, foi por

isso”. Também participa do mesmo continuum de influência a ideia de que um

ataque feiticeiro a um pai ou mãe-de-santo tem a capacidade de atingir seus filhos –

algo que ouvi em campo, quando também ouvi que a bebida em excesso de um

pai-de-santo corre o risco de “carregar” seus filhos de más influências26. Pais e

filhos-de-santo, quando partilham algo – a “força do terreiro” e as vibrações de

entidades profundamente aparentadas –, se tornam mais vulneráveis às influências

a princípio dirigidas a somente um deles.

Dizia acima que os caboclos e seus filhos se capturam, que um “faz parte”

do outro. Ora, o mesmo pode ser dito para pais e filhos-de-santo. A força que une

25
Essa questão remete a inúmeras outras, mas, infelizmente, não será possível demorar-me nela.
Remeto o leitor ao trabalho de Goldman (1984: 123-124; 2009: 120) para uma discussão mais
aprofundada sobre o tema (ainda que, ali, Goldman se refira especificamente a santos, que são feitos
por humanos, e orixás, que se encontram no mundo sem a intervenção humana, acredito que
também aqui, ao tratar de espíritos cuja feitura não está sob ênfase, ideias análogas de diferenciação
e semelhança estão presentes. Uma elaboração que contemplasse como essa analogia se difere ‘ali’ e
‘aqui’ seria bastante interessante, mas excede o objetivo deste trabalho).
26
Medeiros (2006: 43) também observa um relato semelhante, quando uma mãe-pequena diz à sua
filha: - “Onde quer que você esteja, vai estar acontecendo comigo também”, e quando a filha diz de
sua mãe: - “Ela é mãe-pequena, então sente as coisas dos filhos”.
160

pais e filhos-de-santo é-lhes ao mesmo tempo externa e interna; ela os transforma e

faz de cada um deles, pai (e, claro, de cada pai, filho). Talvez seja por isso que,

numa batalha feiticeira, dificilmente se tem como certo que o pai-de-santo triunfará

sobre seu filho, algo aliás pouco comum durante meu campo, como também no de

outros pesquisadores27.

Alguém zuela, a modo de pergunta:

- Seu Boiadeiro, cadê sua guiada?

Seu Boiadeiro responde:

- Minha guiada ficou em Belém,


Chapéu de couro ficou lá também...

Alguém zuela, a modo de comentário:

- Seu Boiadeiro, sem guiada, não é ninguém.

Reversibilidade

Há muito mais a se dizer sobre essa interessante, difícil e atraente relação

que é a dos pais com seus filhos-de-santo. Gostaria, no entanto, de concentrar-me

em um dos temas suscitado por tal relação, tema que foi bastante trabalhado pela

literatura antropológica sobre feitiçaria: a reversibilidade entre feiticeiro e

enfeitiçado, forte e fraco, pequeno e grande. Mencionarei detalhadamente duas

etnografias clássicas sobre feitiçaria (Evans-Pritchard, 1978 e Favret-Saada, 1977)

em que a questão da reversibilidade é tratada. Optei por expor aspectos e histórias


de seus textos, a fim de contemplar tal questão sob um ponto de vista mais

integrado ao que se chamou de contexto em cada obra. Daí a necessidade de

dedicar mais páginas a ambos os autores, que atingiram tamanha complexidade

27
Maggie (2001: 47; 80), em Guerra de Orixá, deparou-se com “demandas” entre filhos e pais-de-santo
que, em sua maioria, não foram vencidas pelos últimos. Todavia, neste trabalho, não se deseja
deduzir que, se os pais não ganharam, seus filhos venceram. A meu ver, o que parece estar em vigor
é um estado permanente de luta, cujo resultado momentâneo de suas batalhas não teria o poder de
encerrar. Por isso, parece-me, a força sempre aparece em estado de propagação.
161

em sua escrita, que eu não pude fazer outra coisa a não ser me debruçar sobre seus

detalhes.

Nós, antropólogos, já sabemos há muito que a bruxaria entre os Azande não

é a única causa de um infortúnio. Ela é, na verdade, a segunda lança: “se um

homem é morto por um elefante, os Azande dizem que o elefante é a primeira

lança, que a bruxaria é a segunda lança, e que, juntas, elas o mataram”. (Evans-

Pritchard, 1978: 58-64). Evidentemente, dizem os Azande, a viga mestra caiu pelas

térmitas que a corroeram, ou por estar velha demais, mas a bruxaria fez com que o

teto desabasse justamente no momento em que o sujeito estava ali, descansando.

Claro, ‘meu’ pé foi ferido pelo toco que estava na trilha, mas, como estava atento a

todos os tocos, se “não tivesse sido embruxado, o teria visto” (idem: 58). “A crença

Zande, [como se vê], não contradiz absolutamente o conhecimento empírico da

causa e efeito” (idem: 63-4); ademais, em “noventa por cento dos casos” em que

associaram infortúnios e bruxaria, os Azande não fizeram nada. O processo

costumeiro28 subsequente à acusação realiza-se tão somente quando estão em jogo

problemas de saúde ou para garantir o bom futuro de “seus empreendimentos

sociais e econômicos mais sérios” (idem: 74). Já no Bocage francês, diz Favret-Saada

(1977: 20), os infortúnios ordinários são explicados por si mesmos: um

contratempo, uma doença, a perda de um animal, uma morte não suscitam outros

comentários além dos “ele bebe muito”, “ela tinha um câncer de rim”, “minha vaca

estava muito velha”. Mas num dia, o leite talha; na semana seguinte, a patroa

adoece; depois, é uma vaca que aborta, um trator que quebra. É com a repetição

que se passa a suspeitar de um ataque feiticeiro.

28Enviar uma asa de galinha a quem se acusa de bruxaria é o processo costumeiro. Nas ocasiões em
que não há morte, mas sim a bruxaria no seu início, “você não deve insult[ar] [o bruxo] ou fazer-lhe
mal” (1978: 74), você deve, ao contrário, fazer um pedido cortês indireto para que ele pare de te
importunar. Ao receber tal pedido – isto é, as asas de galinha depositadas à sua frente, no chão de
sua casa –, o bruxo deve reagir com serenidade. Deve soprá-las com água e pedir que sua bruxaria –
se existente – torne-se fria. Se o acusado perder a cabeça e não realizar o que manda o figurino, a
culpa lhe será mais facilmente atribuída, pois a raiva denunciaria a gravidade de sua
responsabilidade que, de outro modo, seria inconsciente (1978: 46; 81-82; 100-102).
162

Entre os Azande, nos diz Evans-Pritchard (1978: 37), bruxaria (witchcraft) e

feitiçaria (sorcery) não são a mesma coisa. A primeira é fruto de uma qualidade

intrínseca do bruxo (a “substância bruxaria”); a segunda é resultado da ação de

ritos mágicos, com a utilização de drogas maléficas. Enquanto a feitiçaria Zande é

irremediavelmente consciente, a bruxaria implica atos conscientes e inconscientes

(o bruxo tanto pode ter sua substância bruxaria ativa sem sabê-lo como pode atacar

deliberadamente seus rivais durante passeios noturnos de sua alma corpórea). A

bruxaria Zande traz consequências à sua vítima de forma lenta, ela tem força para

matar, mas pode ser interrompida. A feitiçaria mata de forma fulminante, é fatal

(1978: 51).

No Bocage, Favret-Saada (1977: 34) detalha que não há diferença entre

bruxaria e feitiçaria: as duas se confundem. No Bocage e entre os Azande, o bruxo é

alguém invejoso, muito mau, que tem ódio; ele deseja o que é alheio (Evans-

Pritchard, 1978: 85; Favret-Saada, 1977: 21; 188; 194-195; 204; 343). Mas, enquanto

para os Azande, ele normalmente está entre aqueles que têm ou um dia tiveram

atitudes hostis ou ambíguas com sua suposta vítima (1978: 85; 100), no Bocage, um

enfeitiçado não necessariamente sofreu qualquer confronto anterior com seu

feiticeiro (Favret-Saada, 1989: 54-55). A princípio, o feiticeiro do interior francês é

consciente de sua maldade. Ele enfeitiça por meio do contato ordinário: o olhar, a

palavra, o toque em suas vítimas – e por isso, em tempo de guerra, diz a autora,

nada se assemelha mais às armas feiticeiras do que um ‘oi tudo bem’, seguido de

um aperto de mão (1977: 44; 130-131; 193). Mas há também dimensões

inconscientes envolvidas. Segundo os enfeitiçados, os filhos de um feiticeiro

pertencem a uma linhagem feiticeira (1977: 219-222); então, “mesmo se o filho não

demonstra nenhuma cumplicidade mágica com seu pai, ele é mesmo assim

portador da feitiçaria”, e pode por isso praticar o mal sem querê-lo ou sabê-lo. Da

mesma forma, a ideia de que a força de um feiticeiro é tão grande que passa a

possuí-lo modula a magia bocagiana com atributos menos volitivos (1977: 131).

Existem alguns poucos bruxos notórios entre os Azande – normalmente

aqueles que receberam asas de galinha mais de duas ou três vezes –, mas em geral
163

o bruxo só é assim chamado em uma situação particular de acusação (1978: 93-94;

97-99). Se uma pessoa acusa outra de bruxaria, o acusado é considerado

responsável pelos atos que, segundo o acusador, foram conscientes. Se é ele o

acusado, no entanto, fica “perplexo”. Como “nunca tinha considerado a bruxaria

desse ponto de vista” (1978: 97), diz que não sabe se é bruxo, mas se o for, agiu

inconscientemente. Conforme manda o figurino, ele pede que sua bruxaria se torne

fria (inativa), pois deseja o melhor à pessoa que o acusa, todavia, no âmbito

privado, ele não admite que é bruxo, alegando que não tem a substância bruxaria

dentro de sua barriga (1978: 101-2). Mas ele não pode sabê-lo com certeza, por isso,

convivendo com os Azande que receberam asas de galinha, Evans-Pritchard (1978:

102, grifo meu) foi convencido de que “alguns pensam – por algum tempo, ao

menos – que afinal são mesmo bruxos”. Mas essa dúvida, o suposto bruxo guarda

para si, por isso Evans-Pritchard diz não ter encontrado ninguém que “admitisse

sua bruxaria”.

Pelos mesmos motivos, o princípio de hereditariedade paralela da bruxaria

(os filhos de um bruxo são bruxos e as filhas de uma bruxa também) não é operante

nas situações cotidianas, afinal, argumenta-se, a substância bruxaria encontrada em

parentes autopsiados ao falecer pode estar inativa no corpo daquele que hoje é

acusado (1978: 39; 41; 88-90; 105). Mas nem por isso se está imune a uma acusação –

e normalmente uma pessoa é acusada pelo menos uma vez durante a sua vida

(1978: 94). Se todos são potencialmente bruxos, não se atribui um tratamento

diferenciado aos bruxos acusados; aliás, até mesmo aqueles já tarimbados em

receber asas de galinha vivem exatamente como seus vizinhos (1978: 89; 95).

Somente em caso de morte do embruxado, as negociações com o bruxo cessam

(1978: 84), nos diz Evans-Pritchard.

Já no Bocage, a partir do momento em que se identificou o feiticeiro, todo

contato com ele deve ser interrompido, ou, se impossível, ao menos evitado (1977:

43; 146; 200). Mas, ali também, a situação de quem fala – se a pessoa é a acusada ou

a acusadora – é fundamental para definir seus atributos. Mas, à diferença dos

Azande, quando o feiticeiro é acusado, ele normalmente nega a acusação dizendo


164

que não acredita em feitiçaria, pois isso é coisa de “gente atrasada”, dos “antigos”

(1977: 35-36; 43)29. O acusado expõe exatamente o discurso positivista do Estado, da

Igreja e da Medicina, que ele conhece perfeitamente. Além disso, mesmo alguém

que tenha sido, ou que ainda esteja, enfeitiçado pode não querer ser identificado

como um “atrasado”, um “crente”, por isso se recusará a falar sobre o assunto,

remetendo a feitiçaria para o passado ou para um povoado vizinho. E, mesmo

quando ele se põe a falar (o que ele fará apenas com os diretamente envolvidos30),

ele comenta seu estado sob um discurso ambíguo; suas frases secretam vários

significados, elas se remetem e não remetem a feitiços 31. Talvez por isso o termo

feiticeiro (sorcier), ou qualquer outro que denote explicitamente essa condição, seja

raramente empregado (1977: 281-282).

Segundo Favret-Saada (1977: 33-34; 43), o Bocage não pode ser visto como

um “isolado cultural” em que as categorias do “pensamento experimental” não

teriam jamais penetrado. Para a autora, um Zande somente pode escolher entre

bruxaria (witchcraft) e feitiçaria (sorcery), ao passo que um camponês sabe

“pertinentemente” que existem explicações de outra ordem. Ainda que Favret-

Saada tenha exagerado – um Zande sabe que existem explicações de outra ordem e

não leva a bruxaria a cabo em todas as situações –, os dois contextos de fato se

diferenciam bastante. É verdade que, também entre os Azande, um embruxado só

entra em detalhes sobre o problema que o aflige com os seus parentes e amigos

muito próximos (além dos especialistas), mas há ali alguns espaços cotidianos de

publicização da bruxaria. Os Azande acusam explicitamente o bruxo (o envio da

asa de galinha). Eles exprimem seu desapontamento pela acusação ao léu de que se

trata de bruxaria (1978: 51; 56-57). Eles não têm certeza plena se são ou não bruxos.

29 Não é, evidentemente, o que fazem todos os acusados. Favret-Saada (1977: 318-320) elabora a
complexidade criada depois que alguém é ‘forçado’ a ver o mundo do ponto de vista do bruxo,
mesmo quando se trata exatamente de negá-lo.
30
Os diretamente envolvidos são o ‘anunciador’ e o ‘desenfeitiçador’. O anunciador é aquele que
lança a dúvida: “por acaso não haveria alguém que lhe queira mal?” e o desenfeitiçador é a pessoa
procurada para desfazer este mal (Favret-Saada, 1977: 24; 281).
31 Por exemplo, faire des tours significa ao mesmo tempo enfeitiçar e jogar uma rodada, o que no

último caso não tem nada a ver com a feitiçaria. É o contexto que faz com que os envolvidos decidam
do que se trata (1977: 123).
165

Eles podem ver a bruxaria (1978: 48). E, por fim, eles consideram que a grande

maioria das mortes se deve à bruxaria (witchcraft), e por isso as vingam com uma

ação feiticeira (sorcery), isto é, uma outra morte (1978: 42-43; 74)

Foi justamente esta última característica que fez Evans-Pritchard ressaltar a

natureza sistemática da bruxaria Zande. Um sistema que, segundo o autor (1978:

43), só é mantido porque não se sabe que os parentes do morto por bruxaria

(witchcraft) enfeitiçam (sorcery) um sujeito que, uma vez morto, será vingado por

seus parentes como se tivesse sido embruxado (witchcraft) e não enfeitiçado

(sorcery). Isso porque, apesar de a bruxaria Zande contar com um alto grau de

publicidade, quando comparada com a francesa, os parentes não confessam

publicamente que realizaram um ato de magia mortal (sorcery). “Cada indivíduo ou

grupo de parentesco”, nos diz o autor (1978: 254), “age sem ter conhecimento da

ação dos demais; para uma família, a morte é o ponto de partida da vingança” –

isto é, o morto teria sido assassinado por um bruxo –, “enquanto para outra, essa

mesma morte é a conclusão da vingança”, isto é, esse mesmo morto seria um bruxo

abatido pela feitiçaria de vingança. Mesmo que os Azande contra-argumentassem

dizendo que um príncipe, cujo oráculo é “a autoridade final em todos os casos de

bruxaria que envolvam homicídio” (1978: 47), denunciaria que aquele determinado

sujeito morrera “em expiação de um crime e que sua morte não podia, portanto, ser

vingada”, Evans-Pritchard (1978: 43-44) considera que os Azande vivem um

sistema vicioso, cujas contradições, porque genéricas e teóricas, não lhes

interessam. “Se suas noções místicas lhes permitissem generalizar suas

observações”, continua o autor (1978: 208), perceberiam como nós o fazemos que

sua fé não tem fundamento”, pois sempre haverá uma “crença” que justifique

outra “crença” – a bruxaria pela afirmação do oráculo, ou a falha do oráculo pela

ação da bruxaria, por exemplo.

Apesar de Evans-Pritchard conseguir descrever com vivacidade o povo

Zande, a ponto de eles permanecerem contraditórios como qualquer um de nós –

“crentes e indiferentes”, “covardes e corajosos”, “amáveis e cruéis”, “razoáveis e


166

loucos” (Geertz, 1989: 80) –, sua teoria etnográfica32 não pôde dar conta de os

Azande considerarem verdade o que diz o oráculo (Holbraad, 2002: 3). Ela não

formou com a teoria nativa um compasso não dissonante, pois somente dizer – e

até mesmo insistir – que cada situação é importante para compreender o sistema de

bruxaria Zande não equivale a utilizá-las como método para conhecer esse sistema.

Já Favret-Saada (1990: 4), desde o início de seu trabalho de campo,

tencionava atacar esse tipo de pressuposto. Para ela, nos textos antropológicos

sobre feitiçaria de então não havia “nada que não [fosse] mais incerto que o status

da palavra nativa”: seus enunciados eram “impropriamente tratados como

proposições”, “a atividade simbólica reduz[ia]-se a emitir proposições falsas”. Mas,

no Bocage, diz a autora (1977: 35), “é preciso ser pego [pris] para acreditar” e

“aqueles que não estão envolvidos [pris], não podem falar sobre [feitiçaria]”. No

início de sua pesquisa, Favret-Saada não ouvia outra coisa senão o quão idiota era a

vítima, de como era charlatão o desenfeitiçador atacado pela mídia, ou de como era

inverossímil e anacrônico o discurso sobre feitiçaria, calcado na supressão das

noções de causa e efeito. Foi somente no momento em que ela pôde ser tomada por

uma “desenfeitiçadora”, ou então por uma enfeitiçada, que os camponeses

envolvidos em casos de feitiçaria começaram a lhe falar (1990: 5).

Todavia, mesmo advogando pela necessária parcialidade do discurso

feiticeiro – e, por extensão, também do etnográfico –, Favret-Saada (1977: 328) não

deixou de elaborar considerações mais genéricas sobre o “sistema da bruxaria”,

considerações que ela chama de “puramente lógicas”. É provável, diz a autora, que

uma “proporção não negligenciável” de enfeitiçados se constitua por antigos

feiticeiros. Mas isso seria possível se: a) os acusados forem inocentes; e b) se

levarmos em conta que os céticos não mantêm sua certeza se o infortúnio se repete,

32
Teoria etnográfica é uma ‘técnica’ proposta por Malinowski, que foi retomada por Goldman em
seu trabalho. “Uma teoria etnográfica não se confunde nem com uma teoria nativa (...) nem com uma
teoria científica” (...), ela “procede um pouco à moda do pensamento selvagem: emprega os
elementos muito concretos coletados no trabalho de campo – e por outros meios – a fim de articulá-
los em proposições um pouco mais abstratas”, afirma Goldman (2006: 170), que sugere também que
o antropólogo, ao elaborar a sua teoria etnográfica, não deve opor práticas nativas às teorias nativas,
mas articulá-las (2000: 314).
167

isto é, que é difícil escapar do discurso da bruxaria. Os enunciados dos enfeitiçados

– que ocupam a maior parte de sua etnografia – não convenceram Favret-Saada

(1977: 230) da culpa dos feiticeiros: a autora fica com a “impressão”, de acordo com

sua experiência “necessariamente limitada”, de que não existiam “feiticeiros

praticando efetivamente rituais de bruxaria (...), ou que eles são extremamente

raros”

Porto (2007: 28-29) ataca veementemente tal impressão. Ela também teve

dificuldade em obter “evidências claras sobre a realização de práticas de feitiçaria”

no Vale do Jequitinhonha - MG, região onde sua etnografia foi feita. Mas os

indícios, ela argumenta, seriam suficientes para levar a sério a possibilidade de que

feitiços são feitos, mesmo que “talvez não na proporção em que as acusações

aconte[ça]m”. De qualquer forma, diz Porto (2007: 28), supor a inocência do

feiticeiro – ou a irrelevância de ele ser ou não culpado quando se analisa o

funcionamento do sistema – deixa uma brecha para a suposição de que a feitiçaria é

ilusória, mesmo que esta não tenha sido a intenção inicial da autora.

Por mais que também eu considere excessiva a afirmação de Favret-Saada,

não é exatamente pelos mesmos motivos que levaram Porto a criticá-la. A meu ver,

tal especulação é excessiva porque excede os lugares que Favret-Saada ocupou

durante seu trabalho de campo. Não lhe sendo possível conversar com um

feiticeiro – e, por isso, seu trabalho é escrito do ponto de vista da vítima (1977: 214;

330-332) – , tal especulação (lógica) é uma generalização a partir de um olhar que, a

princípio, vem de um observador de fora. O que em si não seria um problema, pois

várias excelentes etnografias foram construídas pelo confronto entre o que se

atribui serem olhares ‘de lá’ e ‘de cá’. Mas, se considerarmos que ao longo da maior

parte de seu trabalho, a existência de feiticeiros não é questionada, penso que nas

poucas páginas em que ela sugeriu sua inocência, Favret-Saada caiu numa

armadilha. Armadilha que, no entanto, ela própria foi capaz de perceber e

formular.

De início, Favret-Saada (1977: 226) afirmou estar tão “envolvida (prise) pelo

discurso dos enfeitiçados, tomando-os por realidade a ponto de nem mesmo [se]
168

interrogar sobre a possibilidade de uma leitura diferente de [tais] drama[s]”. Por

isso, ela tenta se deixar afetar pelo discurso dos feiticeiros que, lembremos, uma

vez acusados, diziam não acreditar em bruxaria, ou que eram alvo de um erro de

julgamento. Equacionando os dois discursos, ela chega à ideia de que os

enfeitiçados são enfeitiçados independentemente de seus feiticeiros terem de fato

lhe feito mal33. “Não é preciso concluir”, diz a autora (1977: 329), “que esse discurso

seja mais falso ou ilusório do que qualquer outro; mas antes que, como todo

discurso, ele tem sua condição e ao mesmo tempo o limite de sua eficácia na

ocultação de certa parte da realidade”. O etnógrafo, diz a autora, que se proibir de

procurar a verdade ‘discursiva’, vai ser positivamente obrigado a se perguntar o

que as pessoas envolvidas num caso de feitiçaria colocam em jogo. E foi o que

Favret-Saada fez ao longo da maior parte de sua etnografia.

Todavia, pela intermitência gerada em seu discurso (fruto da opção por

equacionar dois enunciados guerreiros em um só), gosto de pensar que Favret-

Saada, também aqui – e mais uma vez –, participou da própria dinâmica do

discurso feiticeiro. Enquanto “a eventualidade de [sua] própria morte estava

inscrita na ordem do realizável”, Favret-Saada (1977: 226) não questionou o

discurso de outros que, assim como ela, se encontravam enfeitiçados. Mas, incapaz

de levar a cabo o ritual que levaria à agressão de seu suposto feiticeiro, ela ali

parou: “eu percebi que, tão fascinante que seja a feitiçaria, eu nunca poderia me

acostumar”, pois “a moral da história é que ninguém escapa dessa violência: quem

não é agressor se torna automaticamente vítima; quem não mata, morre” (Favret-

Saada, 1977: 209-210; 217). Favret-Saada recusou-se a se tornar feiticeira. E não só

quando não quis reverter ‘tudo’ sobre seu feiticeiro34, mas também quando

afirmou, com os feiticeiros, que estes seriam inocentes. Penso que sua afirmação foi

33
Em uma nota de pé de página, a autora (1977: 230) observa que só pôde ter acesso a três casos em
que julgou provável que um ritual de enfeitiçamento fora praticado: “curiosamente, se trata em todos
eles de um desenfeitiçador excêntrico em começo de carreira, que divulga sua prática – “eu vou te
enfeitiçar” etc. – para aterrorizar seus próximos”.
34
À diferença de Favret-Saada, dois outros etnógrafos, até onde sei, não se opuseram a ocupar o
lugar de feiticeiro (ver Ochoa, 2004: 367; 387-388 e Stoller, 1987: 109-113).
169

excessiva porque fruto justamente desse lugar que ela se recusou a ocupar. Mas,

paradoxalmente, a externalidade de seu olhar foi análoga à do próprio feiticeiro

bocagiano, quando ele se retira da posição que o enfeitiçado lhe imputa.

Com a consideração lógica de que o feiticeiro pode ser inocente e de que,

nem por isso, o enfeitiçado deixa de estar enfeitiçado, Favret-Saada reelabora a

violência do combate entre feiticeiro e enfeitiçado com sua própria participação no

dispositivo que os camponeses do Bocage colocam em jogo: ‘Eu, a etnógrafa, sei bem

que os feiticeiros são inocentes... Mas mesmo assim os enfeitiçados foram

enfeitiçados...’ Esse mesmo assim, diz a autora (1977: 95) – utilizado também em

frases como “Eu sei bem que o câncer é fatal... Mas mesmo assim, se o benzedor

pudesse salvar meu pai...” – matiza o reconhecimento da impossibilidade colocado

por Eu sei bem que... 35 Por meio desse dispositivo, uma pessoa pode negar ataques e

curas feiticeiros e, ao mesmo tempo, contar com eles36.

Marujo zuela:

Oi!, Elisa, já é meia-noite,


O meu violão vai tocar,
Elisa, se alguém perguntar
O que foi que te ofendeu,
Fale a verdade, não minta, Elisa,
Pode dizer que fui eu.

Elisa, já é meia-noite,
O meu violão vai tocar,
Elisa, se seu pai perguntar,
Ô, de quem foi aquela linda voz,
Fale a verdade, não minta, Elisa,
Foi um Marujo feroz.

Ao contrário das situações descritas por Evans-Pritchard e Favret-Saada, em

35
Favret-Saada (1977: 215-217) elaborou de forma diferente a sua própria participação nesse
dispositivo.
36
Em umas das conversas com uma mulher supostamente enfeitiçada, Favret-Saada (1977: 152, grifos
meus) saiu com a seguinte impressão: “é e não é possível que Chicot seja a feiticeira dos Régnier [os
Régnier são a família da mulher com quem a Favret-Saada conversara]; é e não é possível que Chicot
fora morta devido ao ritual de desenfeitiçamento que os Régnier encomendaram; então os Régnier
podem e não podem me falar de feitiço”.
170

minha pesquisa, não pude identificar uma atitude comum a enfeitiçados e

feiticeiros.

Um feiticeiro insinua; outro grita seu feitiço; um terceiro silencia, um quarto

nega. Judite, por exemplo, mandou recado a Lito, um pai-de-santo, dizendo que

um outro pai-de-santo, de uma cidade baiana famosa por seus feiticeiros, dissera

que Lito era o culpado pelos males de Moisés. Judite, preocupada, mandou avisá-lo

a fim de que Lito se protegesse a tempo. Mas Lito tinha motivos para achar que a

denúncia era na verdade uma “arma da própria Judite”: - “A irmã de Moisés é

filha-de-santo. A própria Judite é mãe-de-santo e amiga da família. Agora me diga:

- Por que eles iriam procurar um pai-de-santo de fora?!” Para Lito, Judite

denunciava um feitiço que era na verdade a insinuação de seu próprio.

Passando longe da ambiguidade provocada por tais insinuações, houve

quem afirmasse “na lata” seu feitiço ao enfeitiçado – uma minoria, em minha

experiência, é preciso ressaltar. Milhoró fazia parte dessa minoria, ele mesmo

declarou. De início, sua valentia parecia hipotética, ele disse apenas que, se

estivesse “virado na porra”, anunciaria à vítima o seu feito. - E a pessoa, o que ela

faria? – eu perguntei.

- “Mandava outra macumba, se tivesse coragem”.

- E você já falou pra alguém?

- “Já”.

- E a pessoa o que fez?

(silêncio)

- Foi pra Luísa? – voltei a perguntar

- “Falei pra ela: - ‘Você tá vendo sombra o tempo todo e sonhando com o

diabo?’ - ‘Tô!’ - ‘Apois! Fui eu que mandei. Coloquei seu nome no pé do Exu e

cortei um galo em cima dele. Se eu quisesse matar, punha, além do galo em cima

dele, uma maçã cortada com mel, uma franga em cima da maçã, o seu nome escrito

sete vezes debaixo da maçã e em cima do galo’. Luísa foi em Jojó e Jojó disse que

não ia fazer nada [pra desfazer o feitiço], pois não ia pegar. E também disse que se

Luísa viesse com palmito, eu já lhe voltava fatiado. Depois eu desfiz, fiquei com
171

pena, e ela parou de sonhar”.

Porém, às vezes, o que se prefere é justamente o contrário: o feiticeiro resolve

não dar o menor indício de seu feito. Com João foi assim. Não querendo atrair

desconfiança, ele esperou o tempo passar para se vingar do pai de sua namorada,

que impedia o namoro dos dois. Alguns meses depois, o pai da garota quis se

matar, resultado que João atribuiu a seu ataque feiticeiro.

- E ele disse o motivo de querer se matar? – eu perguntei.

- “Você acha que a gente ia deixar motivo assim!” – me respondeu o

feiticeiro.

O enfeitiçado também não tem uma atitude padrão. São possíveis desde o

rompimento total da relação com seu feiticeiro até o reforço dessa relação, de modo

a não encorajar uma nova ação feiticeira37. Ou, com a mesma intenção, aconselha-se

evitar encontrar o feiticeiro, mas se não houver saída, “que o trate bem, mas no seu

coração, você vai pensando, firmando...”. Há aqueles que preferem manter uma

relação com seu desafeto não exatamente para se proteger, mas para facilitar uma

vingança.

- O que o Caboclo disse que você tem? – perguntei a Riel.

- “Disse que é pra dar comida pros meus santos.”

- E o que ele disse que você tem?

- “Não disse que eu tenho nada não.”

- E você não ia perguntar quem fez coisa pra você?

- “Eu perguntei! Ele disse que era Marinalvo quem estava fazendo feitiço pra

mim”

- E será que Marinalvo fez mesmo?

- “Aquele fez!”

No sábado seguinte, Riel não só foi em uma festa com Marinalvo como de lá

37
Sobre ‘técnica’ semelhante, ver Evans-Pritchard (1978: 96).
172

partiram para um barzinho, de onde só saíram às cinco da manhã.

- Como assim, Riel? – eu nada entendi.

- “Deixe estar, quando ele menos esperar, toma a rasteira.”

- O Caboclo te disse como tratar Marinalvo?

- “Não disse nada sobre isso não. Eu é que sei que, amigo, posso jogar

pemba corredeira na casa dele. Só não joguei ontem porque acordei tarde e esqueci.

Eu sou eu e nicuri ainda é o filho da desgraça!38 É pequeno, mas difícil de quebrar.

No chão puro, nada é nada; só quebra com duas pedras: uma embaixo, outra em

cima. Mas Marinalvo é esperto. De longe sente, que nem eu, o cheiro de pemba”39.

Esse coco tá duro,


Tá ruim de quebrar,
Coco dendê, coco sinhá!
Esse coco tá duro,
Tá ruim de ralar,
Coco dendê, coco sinhá!

Já ficou claro que não foi muito difícil nessa região encontrar feiticeiros.

Diferentemente do Bocage francês e do território Zande, já no primeiro mês de

campo no interior da Bahia, encontrei sem dificuldade quem se declarasse

macumbeiro40. É por isso que, durante muito tempo, perseguiu-me a vontade de

acompanhar um caso em que eu conhecesse um enfeitiçado cujo feiticeiro assim se

autointitulasse. Visto que a região estudada compõe-se de pequenas cidades e

povoados, não era tarefa impossível – eu pensava. Mas logo me vinha à lembrança

que essas cidades e povoados, além de inúmeros, mantêm entre si relações de

38
Aqui Riel usou uma variação do provérbio: “Eu sou eu e nicuri é um coco”.
39
Medeiros (2006: 26) descreve uma situação similar: uma enfeitiçada tomando cerveja com seu
feiticeiro.
40
Dentre as etnografias feitas no Brasil sobre feitiçaria e temas similares a que tive acesso (excetue-se
aqui os trabalhos antropológicos realizados em sociedades indígenas), apenas uma (Barros, 2000: 7;
11; 98-99) mencionou a facilidade em encontrar feiticeiros declarados. Outras tantas observaram
justamente o contrário (Leal, 1992: 8-9; Maluf, 1993: 74-75 e 119; Bahia, 2000: 265; Serra, 2001: 222;
Maggie: 2001: 123; Hayes, 2004: 377; Cardoso, 2007: 332; Porto, 2007: 38-40 e 29; Araújo, 2007: 11,
entre outros). Note-se, porém, que os feiticeiros declarados formaram uma minoria em minha
experiência de campo e também na de Barros (2000: 66, 81).
173

parentesco, amizade e visitação intensas, o que faz de um terreiro um lugar de

afluência de pessoas que não moram no mesmo lugar. Apenas conhecer todos os

envolvidos em um mesmo caso já não era fácil, quanto mais sabê-los todos

assumidamente implicados. Vendo o final do trabalho de campo cada vez mais

perto, eu contava com a possibilidade de estendê-lo para que o tempo me deixasse

finalmente acompanhar um ‘caso completo’.

Não foi preciso, porém. Pude acompanhar, não tão de perto quanto gostaria,

um caso em que conhecia o feiticeiro, vi seu feitiço ser feito e o enfeitiçado me disse

que se considerava enfeitiçado. Infelizmente não poderei dar mais detalhes sobre

este caso, pois a identificação dos envolvidos seria bastante problemática, mas por

ora basta dizer que, uma vez satisfeito meu desejo, essa procura pela completude

me pareceu tola. Pensando sobre isso, lembrei-me do dilema favret-saadiano, e

resolvi alterá-lo ligeiramente de forma que ele não lograsse uma ‘equação’, mas

mantivesse uma operação, no caso, aditiva. Ora, pensei, todo caso é completo, pois

toda vez que um enfeitiçado se julga como tal, há um feiticeiro presumido. Mas, ao

mesmo tempo, todo caso é incompleto: potencialmente sempre haverá alguém que

possa questionar sua existência (e não só o feiticeiro, ou algum ouvinte descrente,

mas também o próprio enfeitiçado, como veremos). A dinâmica feiticeira não gera

‘fatos’; por isso, mesmo quando uma etnógrafa vê uma bruxaria, sua visão entra,

como qualquer outra, num jogo em que se espreitam os enunciados. E não só se

especula se ‘X’ – neste caso, a etnógrafa – estaria falando a verdade, também se

especula que o próprio feitiço tem “uma parte de ilusão”, o que a princípio soa

paradoxal. Porém, veremos, a dinâmica feiticeira conta com essas vertiginosidades,

que não têm entretanto o poder de ‘desrealizá-la’. Ao contrário, a dimensão ilusória

está dentro, e não fora, de seu movimento.

Da Eficácia, da Ilusão e da Mentira

- “Tô encasquetado. Coisa minha! Isso não sai da minha cabeça, depois te

conto. Tenho que ir em Luiz, deixa eu ir em Luiz que eu te conto... Já fui em Joelma,
174

que eu não ia em Luiz pro Exu descer só pra falar comigo. Joelma não podia jogar,

estava com visita, era tarde, não ia pedir.

No dia seguinte, fui de novo.

- ‘Aí vem babado’ – ela disse logo.

- ‘E dos fortes’ – respondi.

Pá, os búzios. Caíram todos retos: os santos não responderam. É por isso que

eu digo, santo não é comigo. Já no tarô, Joelma confirmou: - ‘O que você sonhou tá

correto’. Rapaz, nos búzios eu vejo e sei, agora no tarô, não vejo nada, Jânio não me

ensinou. Mas acho bonito.

O que eu sonhei? Sonhei com meu diabo me contando que um cara da

Pancada Rasa – não é bem da Pancada Rasa, é perto – tava fazendo porcaria pra

mim. Ele, com medo de me afrontar cara a cara, foi procurar uma casa. Eu não fico

com dor forte no olho dois dias seguidos, e veja isso agora! Mas antes de eu morrer,

eu ponho Nemo em cima da cama. Também disse a todo mundo lá em casa: - ‘Se eu

morrer, foi Nemo que me matou’. Disse à Betinha, a Jamaica, disse à mãe. Também

não disse o porquê. Advinha quem foi o único lá em casa que descobriu? Foi mãe

sim. Mãe é toda cismada. Eu nunca acordo murambando, sempre acordo já com

presepagem: acordo Betinha, acordo Jamaica, acordo mãe, mas nesse dia fui pro

quintal. - ‘Não vai beber cachaça?’ – mãe estranhou. Nesse dia nem bebi, acendi

uma vela no quintal, fiquei olhando, quieto. Também veio na minha mente tudo

que eu tinha que fazer. Tenho que comprar um coração de boi e 27... Não, 34

agulhas. Rapaz, eu posso ter inimigo, mas também tenho amigo, meus diabos

primeiro, que meus santos, eu não sei. Não sei! Meus santos nunca me avisaram

nada. Meu diabo tem uma forma doida, é uma sombra. O diabo não devia aparecer

na frente da gente?

Nemo, depois que eu sonhei, eu encontrei com ele. Ele me olhou e abriu a

risada. É ele! É sim. Vou matar esse cara.

É..., tenho que ir na mata bruta, só lá tem lagarta-preguiçosa. Amarelona,

queima! É..., tenho que ir sábado em Luiz. Vou perguntar se ele topa fazer”.
175

Dias mais tarde, visivelmente mais tranquilo, Sandro me disse:

- “Consegui a peça-chave do meu quebra-cabeça”. Sua mãe lhe entregara o

nome e sobrenome do sujeito, ele explicou. - Sem você pedir? – eu perguntei.

- “Juro que foi. Ela chegou: - ‘O cara tá te abusando ainda?’

Eu disse: - ‘Nunca mais passei perto da casa dele’.

- ‘Tome aqui’ – ela me deu o papel com o nome.”

- E como ela conseguiu?! – eu perguntei.

- “Quem sabe?! Só disse que queria ver o resultado.”

Antes da contenda feiticeira, Sandro e Nemo já haviam se estranhado. Nemo

ameaçara bater em um amigo de Sandro. Sandro contou ao amigo, o amigo pediu

satisfação a Nemo, mas Nemo não confirmou a ameaça. Pra não ficar de mentiroso,

Sandro partiu pra briga e machucou feio o rapaz.

Nemo passou a ameaçá-lo. Ria na sua cara. Irritava-o. Juntou-se a uns

fulanos perigosos, na beira de quem desfilava, pra lá e pra cá, mirando a casa de

seu rival. Com medo de o pior acontecer, Sandro pensou em se esconder no mato

durante três semanas. Foi à delegacia dar queixa, os próprios policiais o

incentivaram: - ‘Mata esse cara, deixa o corpo e some durante uns três dias’. Foi à

delegacia civil, disseram o mesmo. Só não fez por sua mãe, e por não querer perder

as coisas que construiu, ele me disse: - “Melhor matar na macumba porque daí não

me complico com a justiça.”

Não demorou muito para os policiais darem uma “prensa” em Nemo e o

assunto não mais despertar o interesse de Sandro. Quando eu já tinha certeza que

era mais um caso de feitiçaria que se evaporava tão rápido quanto se solidificara,

eis que, duas semanas depois, Sandro viu o resultado de uma ação que ele não

chegou exatamente a cumprir:

- “Nemo tá se acabando sozinho. Voltou a beber. Não fiz nada nem vou
176

fazer, ele que vai se acabar. Ele dorme no chão em frente ao bar de René, e René

quis matar ele. Falei pro Exu de Luiz: - ‘Se você fizer ele se acabar sozinho, eu te

dou um frango’.”

Folha por folha,


No mato tem.
Pemba por pemba,
Eu sei jogar também.

Sandro é feiticeiro? Uma pergunta sem resposta de mão única, essa. Em

outros momentos, Sandro não nega sê-lo – ele até mesmo se vangloria disso –, mas

nesse caso, ele se aliou a um outro, o Exu de seu amigo pai-de-santo que

provavelmente fez o ‘trabalho’ que ele não fez. Trabalho cuja eficácia foi reconhecida

pelo próprio Nemo – um feiticeiro que se tornou enfeitiçado – quando, semanas

mais tarde, pediu desculpas a Sandro, dizendo não ter “botado fé” na sua fama de

macumbeiro.

Nessa região da Bahia, é o próprio feiticeiro que participa do que Favret-

Saada chama de informulável, mas que poderíamos também chamar de moldagem

da incerteza – ou espaço informe –, o mistério pelo qual não se sabe exatamente

quais alianças se ativarão quando mais se precisa delas. Ainda que Sandro tenha

mesmo invocado a aliança com o Exu de Luiz, ele não poderia saber de antemão se

o Exu cumpriria a encomenda. Mesmo assim, e embora Sandro de fato não tenha

feito uma macumba para Nemo, ele acionou uma relação-bruxa. Relação que, se

não transforma Sandro em bruxo, não deixa de lhe emanar radiações feiticeiras.

Jeferson, diferentemente de Sandro, não admite fazer feitiçaria: - “Eu não!

Não faço macumba. Quando eu quero, peço a meu Exu e ele faz. Depois eu corto e

dou o que ele quer. Às vezes nem peço.” Mas isso o torna menos feiticeiro? Talvez

um pouco menos, acho. Mas não totalmente. Quando um outro enfeitiça, a pedido

ou por conta própria, ele bruxifica o humano de quem ele faz parte, e com a

etnógrafa não seria diferente. Uma das pessoas que me ajudou na arquitetura de

minha pesquisa me contou ter sonhado com uma cigana advertindo-lhe que eu a
177

enfeitiçara. Reagi, espantada, pois me julgava tão pouco conhecedora de tais

fundamentos; e, mais, achava que justamente assim eu era percebida: uma pessoa

fraca, desse ponto de vista. Mas não. A potência bruxa está também disponível aos

inicialmente fracos, aprendi: - “Pergunte ao Exu se você não tem uma coisa dentro

de você que, se você pedir, você não faz mal aos outros?”

Eu sou uma Padilha


Das sete sexta-feira,
Eu vim beber malafo,
No pé da gameleira,
A cana é boa, é doce de chupar,
Coração que não bambeia,
Hoje tem de bambear.

Assim como entre os Azande, também no interior da Bahia qualquer um

pode ser bruxo. Porém, também na Bahia, não é só a potência que está dispersa, a

“ilusão” também está. Mas ilusão, como se poderia esperar, não carrega

exatamente a mesma ideia que a princípio lhe é associada. No interior da dinâmica

feiticeira, o termo não significa exatamente um “engano dos sentidos ou da mente”,

ou uma “confusão da aparência com a realidade” (Houaiss, 2009, versão digital). O

que então os membros bastante efetivos do candomblé querem dizer quando

afirmam que “macumba é coisa da mente”? Vejamos abaixo o que argumenta seu

Vicente, depois que lhe perguntei como funcionavam os ebós (os trabalhos de

limpeza feitos no candomblé para tirar feitiço, “radiação de morto”, entre tantas

outras coisas).

- “Eu vou fazer o gesto direitinho. Por exemplo, eu arrio aquele ebó, depois

venho com essas folhas (talvez sejam outras, eu tô fazendo um exemplo), passo um

milho... Aquelas folhas, eu vou procurar a folha do seu anjo-de-guarda (ou dele, ou

dele, de qualquer um), porque na hora que a gente tá passando a folha, tá pedindo

praquele anjo-de-guarda levar as quizilas.”

- Que é o quê, quizila?


178

- “Quizila, vamos supor, você tá com dinheiro na mão, eu passei e olhei: -

‘Humm, ela tá com dinheiro na mão’. Às vezes você passa bem vestida, bem

trajada: - ‘Que gatona arretada, rapaz’. É esse que é o feitiço. Aí você passa

maltrapilha: - ‘Ói que mulher escrota da porra, velho!’ Será que existe isso?! Às

vezes você vai tendo uma boa carreira, mas desde quando eu lhe olhei – ‘Olha,

rapaz, que gatona da porra ali!’ –, já vou comentar com meus colegas. Quando

chega lá na frente, você vê aquelas pancadas, uma no seu coração, uma na sua

cabeça, ou umas dores no corpo. - ‘Ih, eu tava tão bem, saí de dentro de casa tão

bem, e agora eu tô dessa maneira?! Vou no hospital, ou vou numa clínica, ou num

posto, ou qualquer coisa’. É isso que é o feitiço. O feitiço é eu olhando pra você e

você olhando pra mim. Porque não existe feitiço não! Existe perturbação e

invocação, porque se eu chegar aqui, enrolar uma folha e dois pedaço de pau, se

você acreditar nessas quatro folhas, não é um feitiço? Mas se você tiver fé viva em

nosso pai eterno: - ‘Vicente me deu aquela folha e não vale pra nada, rapaz’. E joga

pra trás! Feitiço é coisa fácil. E é difícil.”

- É invocação porque a pessoa precisa...

- “O feitiço é a fé, tanto faz pra você fazer o mal como pra você fazer o bem.

Se eu disser: - ‘Ói, Paula, leve essa folha aqui, enrole num papel, escreva o nome da

pessoa e jogue dentro do rio que a água nunca suba, que ela só faça descer’. Por

incrível que pareça, você faz aquele negócio, escreve o nome do cara em cima do

papel – aqui nesse bolo de folha –, quando pensa que não, com três, quatro, cinco,

oito ou dez dias, o cara bate a caçoleta. - ‘Eita, rapaz, Vicente é gente boa, Vicente

sabe trabalhar’. Mas foi a sua fé. Porque como é que você vai pegar um pedaço de

papel, enrolar, escrever o nome, vamos supor, o meu nome mesmo, jogar dentro do

rio, com três, ou quatro, ou cinco, oito, ou dez dias, eu bato a caçoleta? Você vai

acreditar que foi um feitiço que eu fiz dentro dessa folha? Vai! O que acontece é

isso.”

- O que acontece é mais a cabeça da pessoa e menos a coisa?

- “É. Porque antes de você pegar um copo de água pra beber, bateu na

cabeça: eu vou pegar um copo de água pra beber. Se você vai sair na rua, antes de
179

você sair, você já pensou: eu vou na rua fazer isso, isso e isso. Não tem uma coisa

mais veloz no mundo do que o pensamento, porque pra você fazer com as mãos,

primeiro passou pelo pensamento. Será que isso é verdade?”

- Eu acho que sim, seu Vicente, o senhor tá me dizendo, eu acho que sim.

- “Vamos supor, a gente tá aqui batendo um papo, se eu partir daqui pra lá

pra tomar um cafezinho ou chupar uma laranja, primeiro não passou pelo

pensamento?”

É verdade, diz Boiadeiro, que “às vezes as pessoas falam que tem macumba

em cima dela, mas não tem nada; é imaginativo, coisa da mente”. Porém, seu

Vicente não estava falando de fantasia. Ele falava do poder de a mente relacionar

eventos cuja influência se ativa através dessa própria associação. É verdade que seu

Vicente tem para si que os objetos feiticeiros não são eficazes, mas, mesmo

questionando a existência do feitiço, ele não lhe retirou a agressividade. Ele

concorda com o dizer “um dos piores feitiços é olho”, pois, para ele, o olho que

olha age ao olhar; ele não apenas é um ‘comentador’. Porém, enquanto para alguns

o perigo está no ‘olho-comelão’, o olho que deseja, derrubando quem ele “usura”

ou admira, para seu Vicente, o olho que age é na verdade o olho daqueles que se

julgam olhados. Para ele, o enfeitiçado, cujo olhar é suscetível ao olhar dos outros,

produz ou agrava o seu próprio feitiço. E se, ao contrário, a pessoa conseguir

desprezar a existência ou a força de uma macumba, é porque ela já se considerava

protegida, isto é, forte o suficiente (sobre isso, ver também Favret-Saada, 1977: 40-

41 e Porto, 2007: 181).

Outros, menos ‘radicais’ que seu Vicente – pois creditam aos rituais e aos

objetos uma parte importante da eficácia feiticeira –, mesmo assim advogam que a

“macumba tem uma parte de ilusão”:

- “Quando deixei de colocar na mente passou. E também”, continuou Biti,

“porque eu fiz uns negócios.” O trabalho de limpeza – que Biti chamou de

‘negócio’ –, somado à “cisma” que ele deixou de ter, fizeram seu problema passar.
180

Aqui, está em jogo, creio, um deslizamento entre a “mente” – lugar onde se

botam sugestões, impressões, desconfiança e ideias – e a “cabeça” – lugar povoado

por santos, exus, marujos e caboclos. Parece mesmo haver uma composição entre o

que se faz com a mente e com os espíritos. Foi o que Tomás tentou me explicar,

depois de me contar, em tom de segredo, uma macumba que eu não presenciei:

- “O trabalho foi ao meio-dia. Não tinha ninguém, só eu, a mulher e o pai-

de-santo, quer dizer, o Exu do pai-de-santo. Foi sete mil reais! Ela só pagou metade;

a outra metade, ela vai pagar depois de ver o resultado. Foi pro ex-marido, ele

abandonou ela por outra, tomou a casa, fez miséria com ela. E a gente mandou ele

pro inferno, que ele já ia mesmo.”

- O que vocês fizeram? – perguntei, meio impressionada.

- “A gente cortou um bode e três frangos machos, depois enterrou o bode no

caixão. A gente chorou na sentinela! Ave Maria, aí é que vai dar resultado!”

- E a mulher? Tava junto? – eu quis saber

- “Tava! Quer dizer, ela tava lá no terreiro, mas ver mesmo, não viu nada.

Ela entrou na casa de Exu somente pra deixar o sangue dela no trabalho. Depois o

Exu ainda deu uma pemba para ela jogar no ex-marido.”

Talvez por tentar não demonstrar perturbação – mas pela própria pergunta

que fiz, já demonstrando –, eu quis saber exatamente como a macumba funcionava:

- Vocês cortaram, enterraram e, agora, o que acontece? Como chega a

macumba no homem?

- “A gente cortou na intenção dele, com a mente entertida nele; é assim que

funciona. Chamando o diabo pra levar ele pro inferno, que ele já ia.”

O homem que segundo Tomás merece a macumba, se for atingido, ele o será

por um misto da força do exu com aquela provocada pela mente “fixada” na

pessoa a ser atingida. O próprio seu Vicente, que acima ‘decompôs’ a existência do

feitiço – a ponto de torná-la efetiva apenas em olhares enfeitiçados –, num outro


181

momento da entrevista, disse que uma pemba tem “validade” desde quando a

força do pensamento daquele que a enviou, somada ao vigor de seu Orixá e ao voo

de seu Exu, sejam fortes o bastante.

Não se tenciona afirmar que orixá e mente são a mesma coisa, um a tradução

do outro. Como disse, penso antes em composição, que aliás gera belas fórmulas

(“Desrespeitei lei maior do que a minha cabeça”, me disse Caíque, sobre a quebra

proposital de seu resguardo depois de um trabalho. - “Vou ouvir a intuição de

meus diabos”, me dizia Júnior, ainda em dúvida sobre qual decisão tomar). É

comum santos, exus e caboclos deixarem na mente de seus médiuns avisos, pistas e

orientações. Mileno contava com isso quando precisou fazer um trabalho para

livrar-se de uma macumba, mas estava em dúvida sobre quem procurar, se

Dariana ou Marcos, dois “curadores” dos quais gostava bastante. Um sonho, que

ele “sonh[ou] acordado”, veio em sua ajuda:

- “Eu sonhei que perguntava à mãinha: - ‘Quanto é dois mais um?’ E depois

via Dariana fazendo um ebó na cozinha da casa dela. Tinha um balde de feijão-

macáço, que não é roxo, mas no sonho tava com a água da cor de sangue. Eu ia

cozinhar esse feijão-macáço, com a água avermelhada e me queimava. Eu pensei: -

‘Não vou fazer meu trabalho com Dariana! Ainda mais que três é o número do

diabo!’”

Etnógrafa: - Mas será que ela faria alguma coisa contra você, logo você de

quem ela gosta tanto? E logo ela, que todo mundo diz que não faz nada dessas

coisas?

Mileno: - “É por isso que eu penso: será que não foi o Exu de Marcos que

botou esse sonho na minha mente? Será que é pra eu não ir? Ou será que ele botou

pra me avisar?”

Os dias se passaram e Mileno concluiu que Dariana não lhe queria mal; o

sonho era tão somente uma indicação para que ele fizesse o trabalho em Marcos.

Tal dimensão – a dimensão que vem da mente – faz parte da “linguagem do


182

candomblé”, um termo usado vez ou outra pelas pessoas que conheci para indicar

o conhecimento dos mistérios que a vida no santo proporciona. Foi o que disse a

esposa do irmão Mileno, ao observar que o marido ficara bêbado, ingerindo cerveja

sem álcool.

- “Nunca tinha visto isso” – a mulher se espantou para, segundos depois,

sorrir: - “Quem bebeu foi Tibiriri!” – ela se referiu ao Exu de seu marido – “É isso! E

quem ficou bêbado foi Marquinho... A linguagem do candomblé é difícil!”

- “E demora tempo pra você entender” – complementou Marquinho, o irmão

de Mileno.

- “... Muito difícil, e não é todo mundo consegue... Nem todo mundo

consegue ligar uma coisa com outra” – ela falou essa última frase gesticulando com

sua mão direita.

Tais associações são por vezes caracterizadas por “cisma”, um termo que

abrange desde percepções ordinárias até a desconfiança e seu eventual exagero.

Juraci, por exemplo, é considerado um sujeito cismado: “ele ouve risada e pensa

que é dele; escuta conversa e pensa ser o assunto; alguém xinga, pronto, é pra ele”.

Mário também o é, mas ele próprio assim se considera. Quando ele encontrou

pimenta machucada junto a um pozinho em frente à sua casa, sua mãe disse não

ser nada, mas ele anunciou: - “De hoje a oito, eu vou descobrir”. Decorrido o prazo,

“veio na minha mente: - ‘Saia na janela’ (que eu tenho uma média vidente muito

forte: quando ando de bicicleta, não olho só pra dois, olho pros quatro lados). Mas

ao mesmo tempo me veio: - ‘Não saia’. Porque você já sabe o que eu ia fazer com a

elementa se eu topasse com ela, né? E a justiça não acredita! Saí a tempo de ver

uma mulher. Ela me viu, pá, olhou pra trás. Daí eu vi uma outra criatura dar um

passo maior que a perna. Fui conferir, e lá estava: pimenta e pó. Caboclo disse que

foi uma vizinha da gente que fez pra gente brigar dentro de casa.

- E por que ela fez isso? – perguntei.

- “Foi inveja! As pessoas veem a gente tendo coragem, lutando junto. A

gente é simples, mas a gente sempre tá aqui e ali, trabalhando, movimentando. As


183

pessoas me chamam pra beber cerveja no domingo, mas eu nego porque do

trabalho. Eles dizem: - ‘Sua vida é só trabalhando’. Com minha vida ninguém tem

nada com isso! Bebo minha cervejinha, trabalhando... Depois a gente achou três

cigarros na escada. Já era pra minha irmã. Quem deixou é vizinha também. E foi

também por inveja, porque na gestão anterior ela tinha emprego e, hoje, minha

irmã é quem tem41. Outro dia, já mais recente, topo com cinco laranjas em fileira, da

menor para a maior, no muro do colégio. - ‘Eu é que não vou pegar’, pensei. -

‘Pergunte ao vigia’, me veio na mente. De noite, quando o guarda me viu, correu

pra dentro do colégio. - ‘Foi ele’ – eu logo entendi. Fui atrás:

- ‘Venha cá, faz favor! Você não pegou sua laranja que tava no muro?’

- ‘Laranja? Que laranja?’

- ‘A laranja que você deixou, você não foi o último a sair?’

- ‘E você pegou?’ – o guarda perguntou.

- ‘Eu ia pegar a laranja que era sua, rapaz?’ – eu disse a ele. Aí foi lasqueira,

ele começou a gaguejar, a se embananar. Na certa foi a mulher, a minha ex, que se

41
Como se sabe, a inveja é normalmente ligada à feitiçaria, mas nem sempre por vias muito claras.
Em meu campo, às vezes ela foi tida por ‘prima’ do feitiço; às vezes se preferiu ver a feitiçaria e a
inveja em dois conjuntos distintos. Às vezes, inveja – o olho grosso – foi inconsciente; às vezes, ao
contrário, foi fruto de uma maldade proposital. O invejoso – ou o feiticeiro – normalmente foi tido
por alguém que deseja o que não possui; ou, ao contrário, aquele que se tornou rico justamente
porque não divide, empresta ou oferece o que tem. Em ambos os casos, o problema maior foi a
“usura”, isto é, a ambição, a inveja. Apesar de este ter sido um tema importante em minha
experiência de campo (e também na de inúmeros outros pesquisadores que se debruçaram sobre a
feitiçaria), ele foi tratado neste trabalho apenas de forma tangencial. Isto se deve a um motivo
simples e, de certa forma, óbvio. Penso que, ao enfocar menos a fala sobre o feiticeiro e mais a fala do
feiticeiro (discurso, este, que pouco aparece em outras pesquisas sobre o tema), a inveja não apareceu
com tanto destaque porque este não seria uma razão da qual um feiticeiro desejaria se valer (em sua
fala, o que normalmente aparece é a vingança). Ainda assim, a ausência de uma reflexão mais
aprofundada sobre o tema só é justificável pela falta de tempo disponível para contemplar com mais
profundidade os dois tipos de enunciados (a fala sobre e a fala do feiticeiro). É, portanto, algo a que
pretendo voltar em outra ocasião, pois ainda que muito se tenha dito sobre o vínculo entre feitiçaria
e inveja parece-me que as abordagens anteriores giraram em torno de visões patologizantes sobre o
tema. Nelas, ora se afirma que a feitiçaria partilha da mesma lógica do capitalismo (ela seria parceira
da ‘mercadoria’ enquanto a religião, do ‘dom’), ora, ao contrário, argumenta-se que ela é o inverso
do capitalismo, pois oriunda de mundos marcados pela finitude de recursos (e aqui se inclui a
famosa ideia de ‘soma zero’: se alguém tem mais, é porque outro tem menos). Em ambos os casos, é
uma acusação que está em jogo. Se, por um lado, teria sido ideal enfrentar tais dificuldades analíticas
já neste trabalho, penso que, por outro, ao me debruçar na fala do feiticeiro, pude tornar visível que
tais modelos pecam, no mínimo, pela simplificação excessiva das inúmeras outras dimensões que um
caso de feitiçaria envolve.
184

ofereceu pra ele, e ele deixou a pedido dela. Caboclo, quando perguntei, disse que a

mulher ainda tava me perseguindo, mas que eu já tava avisado, não ia cair mais na

dela.”

Como tantas outras pessoas que encontrei na região, Mário não nega sua

cisma. “Eu sou cismado(a)” – ele e outros afirmam e repetem, com valentia. É

através dessa cisma – uma cisma que vem também de sua médium vidente – que

Mário se considera precavido. A força dos espíritos, a força da fé, a força da mente,

todas elas são forças diferentes que no entanto deslizam umas sobre as outras.

Aqueles que as têm são contrapostos aos “fracos de fé” – àqueles cuja “intuição dos

orixás” não vem lhes valer, aqueles cujas companhias não foram acionadas. É a

“força da fé” que faz com que as pessoas não se sintam “vazias”, como se sentiu

Graça, que queria se “apegar”, mas achava que sua fé não era grande o suficiente e,

por isso, temia o pior.

Mário não é mais “lerdo”, não está “avoando”, desprotegido de todas as

muitas coisas que “influem” nos quatro cantos do mundo. Ele agora sabe vê-las,

relacioná-las; ele aprendeu a acompanhá-las em seus caprichos. Mário é cismado

porque “forte de fé”, porque tem seu “povo” que o avisa dos perigos potenciais. É

verdade que Mário “cisma por qualquer coisa”, mas era justamente sua

suscetibilidade que, naquele momento, o fazia forte.

Quatro canto, quatro canto,


Quatro canto em cada rua.

Quatro canto, quatro canto,


Cada canto, encruzilhada.

Para alguns autores, tais cismas, porque incessantes e cíclicas, configurariam

uma relação paranoica: “o outro” seria alguém de quem se desconfia42. No presente

42
Ver, por exemplo, Montero (1994: 78) e Porto (2007: 241-247). Para uma crítica e uma alternativa à
abordagem de Porto (2007), ver a etnografia de Benites (2010: 256-259), que trata o vínculo dos
“fenômenos político-eleitorais” com os “sistemas mágicos de influência”, também no interior de
185

trabalho, ao contrário, deseja-se ressaltar o envolvimento de muitos outros ‘outros’,

com quem se vivencia não só o temor, mas também a sua superação. Pois, além de

prover os humanos de atenção à mentira, aos perigos, à vontade, à bondade, além

de os dotar de uma agudeza ímpar de sentidos, este mundo da feitiçaria, com sua

propensão para guerra, envolve uma quantidade imensa de seres, cuja proliferação

aponta, ao contrário do que pareceria a princípio, para a fugacidade43.

É notável a quantidade de casos de feitiçaria, cujas acusações de início

intensas, plenas de certeza, de repente desincham como maré. Railton, por

exemplo, teve sua suspeita confirmada por Boiadeiro: ele realmente estava sob a

mira de um feiticeiro. Mas o Exu do carnal desse mesmo Boiadeiro, dias depois, lhe

disse que não havia macumba alguma. Seu problema era o resultado de uma

guerra de orixás pela sua cabeça. - “Mas o Exu é treteiro, o Exu quando quer,

mente, e mente muito”, afirmou Railton, sorrindo. Somente com o tempo Railton

descobriria se o Exu falara ou não a verdade, enquanto isso, a dúvida atenuou sua

suspeita44. O Exu então conseguira o mesmo resultado que certa vez uma outra

mãe-de-santo almejou, quando omitiu por medo da “natureza” de seu cliente que

ele estava sob alvo de feitiço. Ao cliente, ela confirmou uma perturbação por

espírito de morto, mas se calou quanto à feitiçaria que, no entanto, “tinha uma

parte” em seu problema. Ela a combateria sem que o cliente soubesse, pois queria

tirar “da mente” do sujeito uma preocupação que só fazia piorar sua situação.

Railton e o cliente, por omissão ou mentira, nunca saberiam ao certo se foram

realmente alvo de bruxaria.

Minas Gerais.
43
Aqui caberia estender à feitiçaria o que Clastres (2004: 265) afirmou da guerra para os povos
indígenas: “O estado de [feitiçaria] é permanente, mas nem por isso os [feiticeiros] estão o tempo
todo [enfeitiçando]”.
44
Sobre exus e a mentira, ver Pacheco (2000: 50) e Wafer (1991: 4). No trecho a seguir, Nathan (2004:
80) desenvolve uma interessante reflexão sobre os demônios e a mentira, um assunto que mereceria,
aliás, um estudo mais aprofundado: “...Como se comportar diante de alguém cujas palavras, cada
uma delas é mentira, cada proposição, artimanha, cada sentimento, armadilha, cada ação pode ter
efeito inverso daquele que imaginávamos”. Mas, diz o autor, ao se relacionar com seres sabendo que
tudo é mentira, eles nos fazem ver “um lado escondido da vida social: a obrigação de mentir para
dinamizar os laços, para que o comércio tenha lugar, para que os bens, as pessoas e as palavras
circulem”.
186

“São duas camadas”, me dizia uma senhora, sobre um enfeitiçado alvo de

dois feiticeiros diferentes. Com efeito, muitos dos casos que acompanhei

apontavam para uma segunda camada de causas possíveis, mas nem sempre era

um outro feitiço. Um dia, pela manhã, eu soubera que uma mulher sofria com a

perturbação de espírito de morto. Era um de seus parentes, assassinado

recentemente, que teria vindo cobrá-la a vingança que ela lhe jurou cumprir. Mas

logo depois soube também, pela mesma pessoa, que o marido fizera um feitiço

para se casar com a mulher e, agora, o Exu, “porque trapaceiro”, resolvera se

vingar do homem – um sujeito reconhecidamente churina –, fazendo-o gastar para

curar sua esposa adoecida.

Mesmo um ritual público pode contar com sua camada feiticeira. Fui

convidada a participar de um corte em intenção de Tata Caveira que, segundo o

pai-de-santo, é um exu que “tem parte com obaluaê, vive no cemitério e, por isso,

não está em guerra com os eguns”.

- “Vou dar comida a Tata Caveira para que ele não venha comer a gente.

Que, Deus é mais, nem gosto de dizer isso, mas ele come carne e rói osso! É uma

feitiçaria, um ajebô. Ajebô e feitiçaria é tudo o que vem na mente: - ‘Faça isso, faça

aquilo’. O corte para Tata Caveira já é uma tradição no terreiro, mas também é

ajebô e feitiçaria, algo que vem na mente”.

Nesta passagem, feitiçaria significou uma ação que guarda ao menos um

grau mínimo de alteridade em relação àquele que ela influi. É algo que vem à

mente, mas não se sabe muito bem de onde se origina. Especula-se que sua

irrupção venha de uma entidade que, apesar de fazer parte daquele que ela influi,

guarda para com ele alguma alteridade. A “matança” do leitão era uma feitiçaria-

ajebô porque foi algo que “veio na mente”, mas ela foi também, depois soube, um

outro tipo de feitiçaria, pois que um trabalho encomendado por uma enfeitiçada

que queria “virar” o feitiço para sua feiticeira. - “Problemas de vendas, de negócios:

como se diz, eu tenho inveja de você, você tem inveja de mim, então vamos ver

quem tem a unha maior”, disse o pai-de-santo. Aquele fora um ritual público, com
187

a presença de cerca de quinze a vinte pessoas, mas quase nenhum dos presentes

sabia que essa segunda camada fora acionada 45.

Ao vivenciar tais situações, não era raro eu querer eleger uma causa

principal, colocando todas as outras de lado: ‘o caso de Fulana parece mais espírito

de morto’, ‘aquele outro, mais feitiçaria’. Tudo era muito confuso, e eu queria ter

algo mais sólido sobre o que escrever. Depois, percebi que eu poderia deixar a

própria concepção de minha etnografia ser influenciada pela existência das várias

velas acesas, acionando presenças sobre as quais eu jamais saberia detalhes além de

um nome vago; ou então dos vários papeizinhos, adicionados na última hora aos

despachos, cujo significado eu nunca cheguei sequer a desconfiar; e também das

várias pequenas macumbas, postadas ao lado de trabalhos rotineiros, que eu nunca

pude saber a quem se destinavam. Se eu conseguisse sinalizar na minha escrita a

importância desses espaços vazios de compreensão, talvez eu pudesse me

conformar que, numa simples visita a um terreiro, subsistiriam uma mão cheia de

perguntas e, ainda outra, também repleta de detalhes cujos significados me

escapariam.

Mas antes de conseguir me resignar, foi angustiante ver as coisas

acontecendo tão profusamente, sem que eu pudesse confirmá-las (além da

duplicidade de causas, havia nomes de plantas que eu ignorava, eventos e palavras

que não entendia, histórias cujo prosseguimento me era impossível acompanhar, o

que dirá então ‘verificar’). Além do mais, me parecia indelicado metralhar as

pessoas com perguntas que, além de inconvenientes, muitas vezes não traziam

consigo uma senha capaz de levar à resposta. Claro, nem todas as minhas

perguntas se viram frustradas (aliás, a maioria delas era bem-vinda, pois

demonstravam meu interesse no assunto). Minhas perguntas geravam de vez em

quando uma ou outra resposta interessante (no entanto, em alguns momentos, tive a

impressão que, ao anunciar meu interesse, obtinha o efeito inverso: o segredo

45
Tal duplicidade também foi encontrada por Iriart (1998: 172-173), em Cachoeira – Recôncavo
Baiano. Uma de suas interlocutoras dizia que sua Pomba-Gira era uma “divindade da família de seu
pai que, depois da morte dele, a teria escolhido como herdeira”, mas ela especulava também que essa
188

parecia aumentado). Em todo caso, enquanto não aprendi (ou enquanto resisti) a

perguntar de um certo modo, elas não acionaram diálogo algum.

Percebi, então, que não bastaria perguntar de quem era aquele exu que o

pai-de-santo falou mal? Ou para quem era aquela macumba? Para estas perguntas,

as respostas eram frustrantes: - “Do homem ali” ou “Pra mulher que veio aqui”.

Nos casos mais secretos ou violentos, para gerar um diálogo, a pergunta teria de

em seu próprio conteúdo indicar um caminho. Por exemplo, eu perguntava se

‘Aquele exu era o de Ciclano?’; ou se ‘Aquela obrigação era para atrasar a vida do

Fulano do Chã-da-Serra?’ Se eu acertasse, eu demonstrava a força da “intuição de

meus orixás”, então um diálogo mais interessante começava.

Somente em companhia, um caminho feiticeiro passava a ser trilhado: e, por

isso, eu tinha de me tornar cúmplice, isto é, de alguma forma, eu também tinha de

participar da geração do que seria dito. Se minha pergunta anunciava em bom tom

que eu não demonstrava objeção que aquele Fulano do Chã-da-Serra fosse alvo de

um feitiço, a conversa então se aprontava. Aprendi também, com a prática, que

minhas perguntas-suposições eram palco para a iniciação de novos significados;

elas não se encerravam em si mesmas. Não foi porque passei a afirmar que se

desacelerou o movimento das certezas46.

Caboclo zuela:

Eu gosto de morar no alto,


Porque no alto eu me dou bem.
Do alto eu vejo quem vai,
Do alto eu vejo quem vem.

Não penso, por isso, que a vertiginosidade própria do discurso feiticeiro

necessariamente aumente ou diminua seu poder. Ela certamente faz parte de seu

horizonte, desde as maneiras já esperadas até as menos usuais, pois que afirmações

e negações, dubiedades e silêncios, todos eles são envolvidos pelo discurso

mesma Pomba-Gira lhe fora enviada por feitiçaria.


46
Essa reflexão é inspirada no pequeno e excelente ensaio de Favret-Saada (1990). Para uma tradução
para o português, ver Favret-Saada (2005).
189

feiticeiro47. Todavia, dizer que o discurso feiticeiro trabalha a mentira, a negação, o

silêncio e a incerteza é bastante diferente de argumentar que a feitiçaria surge de

um contexto propício à incerteza, ao silêncio, à mentira, à paranoia48. Difere-se

também da ideia de que o “contexto histórico ou ideológico” é análogo às palavras

que ferem e matam, e “em última instância o produtor de sua eficácia” (Stewart &

Strathern, 2004: 30).

Neste trabalho, não se supõe um contexto, sociedade ou ‘momento’

sociocultural capaz de sustentar a “crença” na feitiçaria. Espera-se, ao contrário, ter

mostrado não só a capacidade de a captura feiticeira produzir seu próprio contexto,

mas também sua complexa produção de irrealidade, que não se encontra fora, ao

contrário, está mesmo no interior dos eventos que ela coloca em relação. A

‘participação’ em casos de feitiçaria é o efeito instável de palavras-capturas – e por

isso, como vimos, abrange a certeza e suas modulações, os silêncios, os

arrefecimentos, e até mesmo a negação ou questionamento de sua existência.

Contudo, não é porque reversível, provisória, ambígua e volátil que ela se torna

menos agressiva. Ao contrário, tais atributos formam o seu próprio “enredo”.

Ao Lado do Avesso

- “Tranca-Rua é um dos piores exus. Tem três piores exus, e Tranca-Rua é

um deles” – disse Fafáu, em seu hábito de enumerar.

47
Na Ilha da Pintada – RS, por exemplo, as bruxas podem ser identificadas justamente por chegar ao
ritual de “benzeção” negando a existência da bruxaria (Araújo, 2007: 44), e, no sertão mineiro, o
“próprio contador do causo, ao se assumir acusador do feitiço, ver-se-á envolto em [uma relação de]
ruindade” e, por isso, antes de negar sua existência, evita-se a própria verbalização (Cerqueira, 2010:
286-287).
48
Se por um lado Stewart & Strathern (2004: 23) afirmam que a feitiçaria aparece tanto em
circunstâncias sociais relativamente estáticas quando naquelas sob rápida mudança, por outro, eles
acabam por vincular seu florescimento a contextos “incertos” e “fluidos” (idem: 192), ou àqueles
marcados por determinadas características (“baixos níveis de alfabetização e dependência da
transmissão oral, criação de solidariedade através da passagem interessada de informação, o caráter
anônimo da informação passada de boca a boca e a ambiguidade, a incerteza e o alarme que
emergem dessas circunstâncias de produção”) (idem: 113).
190

- Quais são os outros? Lucifer? – eu nomeei porque já tivera uma amostra

nada agradável de seu temperamento, quando ele quase quebrou minha câmera

fotográfica, cuja presença até então todos os outros espíritos não só não se

incomodavam, como pareciam até mesmo gostar.

- “Lucifer e São Cipriano” – ele confirmou, acrescentando.

- Eu nem sabia que São Cipriano era exu, pra mim era livro.

- “São Cipriano é raro, ele não é de muita conversa. São Cipriano consulta é,

trabalho é. Você acha que ele dança depois do trabalho como Tranca-Rua? Dança

nada! Ele chega na casa meia-noite e vai embora meia-noite e um. Uma pessoa tá

ali prosando com outro exu, prosando, prosando e, quando pensa que não, chega

São Cipriano. Ele não diz nada, olha pra pessoa, ela também nada fala. Depois

deixa na mente do pai-de-santo os quefazer, ou então vem outro exu e se encarrega

da encomenda”.

- Ele não tem um fumo que gosta? Uma bebida?

- “Tem. Mas é raro ele tá em terra trabalhando. E eu tenho até medo de

contar como ele trabalha”.

- Você já viu?

- “Num vi o quê?! Em Sinho!

- Aquele do Erê de frente?!

- “Ele mesmo, de São Roque”.

- E a gente pode ir em São Roque?!

- “Não recomendo! Ele é muito ignorante... O deus dele é o diabo”.

- Mas ele ia me tratar mal?

- “Não, não, mas sim... A gente pode ir. O toque é quarta-feira, mas pense

numa aldeia muito negra!”

Ignorância, nessa região da Bahia, significa grosseria, indelicadeza, e Sinho

seria “muito, muito ignorante, até com sua mulher”.

- “Suas macumbas são muito doidas”, continuou Fafáu, “ele não é de dar
191

entrevista, tudo dele é fulasca. As filhas-de-santo frequentam o candomblé dele

porque já sabem como ele é. O Ogum e o Oxóssi dele são gente boa, mas o Erê dele

não. Muito perverso. Já deixou Sinho noventa dias deitado numa tábua, quase não

conseguia comer. Sinho não tinha feito nada, bestagem. A mulher dele recebeu

Ogum, que ensinou o remédio, mas era fazer e a panela com água secar, até que

conseguiram retirar a tempo o preparo do fogo.”

Não brinca com o caboclo,


Que não sabe ele quem é.
Caboclo cortou o pau,
Caboclo bebeu o mé.

Caboclo bebeu o mé,


Caboclo se embriagou,
Com a folha do mesmo pau,
Caboclo se levantou.

Meses se passaram. Conversávamos eu, Fafáu e Dibu, e este revelou ser

filho-de-santo de Sinho, justamente o pai-de-santo que eu queria tanto conhecer,

mas ainda não tivera a oportunidade. Depois de ouvir atentamente Dibu descrever

o batismo e o ritual que lhe fecharam o corpo por sete anos, Fafáu praticamente

repetiu as palavras que meses antes haviam me impressionado. Sinho era, ele

acrescentou, muito mais magia negra do que branca, inclusive ele já vira a bandeira

branca arriada em seu candomblé.

Dibu discordava totalmente. Sinho, ele disse, nem incorporava com diabo; se

pedissem para ele fazer porcaria, ele não fazia; o santo de frente dele era Oxóssi, e

não o Erê; Corre-Mundo era seu caboclo de frente49; em todos os trabalhos ele

colocava o nome de Deus primeiro; e com diabo, ele só mexia pra trancar. - “Aqui

em Taquara, Zacaria é que é mais magia negra” – Dibu completou.

- “Zacaria, nos trabalhos, também põe o nome de Deus primeiro” – Fafáu

retorquiu.

- “Zacaria mesmo assumiu que o candomblé dele era de magia negra”.

49
O fato de Corre-Mundo “descer Exu” em outro pai-de-santo da região não ajudou Dibu em sua
192

- “Verdade!” – Fafáu concordou – “Mas Sinho, no dia a dia dele, você vê ele

chamando mais o nome de Deus ou o nome da desgraça?”

- “Não sei” – respondeu Dibu

- “É só o nome do coisa-ruim! O diabo que desce nele é o Erê.”

- “Mas ele não faz nada não. Eu até pedi pra ele me ensinar, mas ele disse

que não, que isso era muito atrapalhado”, Dibu contestou para, pouco tempo

depois, a conversa já esfriando, se deixar capturar pela dúvida: - “Sinho tranca os

diabos de todos os filhos-de-santo. Fica tudo pra ele.”

A entrevista com Sinho, por motivos outros, acabou não acontecendo. Muito

tempo depois, cerca de um ano, acabei topando com Sinho por acaso, quando me

pediram para levar um bode para o trabalho que Mariluz faria em sua casa, um

trabalho semelhante ao de Dibu mas, no caso dela, uma renovação: ela fecharia seu

corpo contra malefícios por mais sete anos. Assisti os preparos, visitei-a nos dias

que se seguiram à obrigação e, durante todo o esse tempo, dificilmente alguém

poderia ter sido mais gentil do que Sinho. Mais tempo se passou, conheci mais

alguns de seus filhos-de-santo, ouvi suas histórias e, de acordo com minha

experiência, provavelmente Dibu tinha razão: se Sinho trabalha com exus, não é

com a recorrência que Fafáu procurava lhe conferir.

Mas Fafáu não estava de todo errado. Ele, parece-me, cumpria um raciocínio

dedutivo. Sua família mantinha relações de proximidade com a família de Sinho,

mas Fafáu nunca convivera intimamente com o pai-de-santo cujas histórias, no

entanto, ouvia desde criança. Ele sempre soube que Sinho era do tipo que xingava à

toa, e que seus xingamentos invocavam perigosamente o “que não presta”. Ora, se

Sinho era pai-de-santo e se, por pouca coisa, lançava-se em evocações perigosas,

seria provável que seus trabalhos fossem semelhantes: eles também atraindo exus,

a “esquerda”, o coisa-ruim. Contudo, o exagero de Fafáu foi supor a necessidade

de tal dedução, quando ela é apenas uma possibilidade.

argumentação.
193

Exu zuela:

Sou eu brabo, sou eu brabo,


Eu sou brabo, eu cheguei.
Matei pai, matei mãe,
Matei um cego na linha,
Um aleijado numa ‘rei’50.

A discussão que Fafáu tentava ganhar sugere, ainda que – ou justamente –

pelo exagero, um tema exaustivamente apontado pela literatura antropológica

sobre candomblé: sua “flexibilidade”, “variabilidade” e “criatividade”, afirmou

Goldman (1984: 195; 2005), ou sua “imprevisibilidade” e “desconcerto”,

argumentou Carvalho (1990: 24)51. Além disso, continuou o autor,

a macumba, a quimbanda, a jurema perpetuam técnicas tipicamente


religiosas de aproximação do caos – o número crescente de novos espíritos,
de comportamento imprevisível, por exemplo, é um artifício para impedir a
fixação de significados rígidos (Carvalho, 1990: 28)52

De fato, é comum, me parece, aventar a ideia de + 1, de acréscimo. Um pai-

de-santo mais “assombrado” – se não for Sinho, com certeza será Zacaria. Um

espírito mais perverso – se não for Tranca-Rua, forçoso ser São Cipriano. Um ser

que renasce fortalecido, transformado: - “Quando Tranca-Rua morreu foi uma

alegria. Alegria porque ele ia fazer mais morto do que vivo” – disse um pai-de-

santo. “Os lobisomens, uma vez mortos, transformam-se em vampiros” –

afirmaram Deleuze e Guattari (1997: 33). Uma proliferação de pequenos domínios,


heterogêneos, instáveis.

Acima usei o conceito de reversibilidade. É verdade, viu-se nos casos de

enfeitiçados virando feiticeiros (e vice-versa), que as operações reversíveis têm sua

importância, mas elas talvez não transportem a melhor ideia para narrar estas

50
Àqueles que perguntei, eles também não sabiam o significado de ‘rei’.
51
Ver também Meyer (1993: 75); Maggie (1986); Lapassade & Luz (1972).
52
De certa forma, isso é também o que diz Corin (1998: 95) para culto Zebola no Zaire. Para a autora,
não é que a iniciação feminina se desenvolva até atingir uma maior coerência ou uma narrativa
estereotipada. Ao contrário, a iniciação parece liberar vários canais diferentes de associações.
194

transformações aditivas (sobre isso, ver Carvalho, 1990: 26). Reversibilidade é uma

palavra que sugere mais os termos em relação do que a própria relação, enquanto

se tornar feiticeiro parece ter mais propriamente algo de contágio, algo tão vibrante

que beira a destruição53. Qualquer um pode se tornar feiticeiro, mas o aspecto

assolador dessa virtualidade tem também seu sentido transformativo, de devir:

quando se vira feiticeiro, feiticeiro já é outra coisa. Ele se torna outra coisa porque

subtrai do ‘mal’ seu caráter absoluto, tornando o mal ruim. Ruim para quem? – há

então de se perguntar para depois ouvir o comentário: - “Ninguém nessa cidade é

ruim, se é ruim pra mim, já é bom pra outra pessoa; se fez mal pra mim, fez bem

para outro”, me dizia uma senhora sábia como o tempo.

Já se poderia esperar que minhas próprias reflexões comportariam

potencialidades de força e fraqueza. De um lado, elas beiram o desencantamento e,

de certa forma, pela inevitável dispersão, dão a impressão de enfraquecer o poder

de assombro feiticeiro. Mas esta é justamente uma das possibilidades da vivência

bruxa. A “ousadia” que o conhecimento obtido pelo tempo de candomblé

proporciona a alguns de seus seguidores os faz afirmarem, não sem desafio: -

“Macumba dos outros, eu como com farinha!” O medo que se eclipsa evidencia

uma coragem pela qual o feitiço se torna “coisa fácil”, como vimos acima com seu

Vicente.

Trata-se, é bem verdade, de uma pulverização. Tal como a dinâmica virótica,

que diminui sua intensidade letal ao longo do tempo para, menos forte e mais

gregária, crescer em número de indivíduos, a dinâmica feiticeira enumera

relativamente poucas mortes em seu currículo54. Eu mesma não acompanhei

53
Os conceitos de devir, proliferação e contágio utilizados aqui são modificações daqueles
originalmente formulados por Deleuze & Guattari (1997), cujas ideias, juntamente com as de
Goldman (2005, 2009) e Carvalho (1990), serviram de inspiração para a elaboração deste item.
54
Que a feitiçaria seja violenta, isso não é novidade nem para antropólogos nem para nativos. Mas
que sua agressividade resulte em assassinatos em massa, isso acontece, argumentam Stewart &
Strathern (2004: 90-91,16-17), quando ela está associada a contextos de violência massiva (guerra
civil, tribunais inquisitoriais etc.). Para outros contextos, os autores tendem a concordar em parte
com o que Evans-Pritchard (1978: 95) já afirmava para os Azande muitos anos antes: “se ficarmos
atentos ao significado dinâmico da bruxaria, reconhecendo portanto sua universalidade,
entenderemos melhor por que os bruxos não são perseguidos nem sofrem ostracismo: pois o que é
195

nenhum caso que resultasse no pior (mas soube de 6 num universo de 96). Aliás, de

acordo com a minha experiência – assim como com a de tantos outros

pesquisadores –, se passou justamente o contrário. Pude assistir dezenas e mais

dezenas de trabalhos de cura contra apenas algumas poucas unidades de trabalhos

para o mal. Isso, obviamente, porque eles são mais secretos – e pouco se está

disposto a mostrá-los a uma etnógrafa curiosa. Todavia, não se minimize o fato que

eles são também muito mais perigosos55 – e seu perigo resvala –, por isso

normalmente não fazem parte do cotidiano até mesmo daqueles mais propensos

aos trabalhos de feitiçaria danosa (o que pode não ser exatamente uma alegria,

como ouvi um dia Arthur se lamentar: “eu sei mais macumba pro bem” – ele disse

orgulhoso, mas fez uma pausa – “eu queria saber mais pro mal”).

O pêndulo para o bem não torna a dinâmica feiticeira menos cruel, ressalte-

se. O Exu por querer se mostrar um ser apaziguado, pouco disposto ao mal,

perguntou:

- “Nunca matei ninguém, não é, minha criança?”

- “Não sei de nada” – respondeu um.

- “Eu sei?!” – perguntou outro.

- “Não mato” – explicou o Exu – “porque matar é muito rápido, prefiro

deixar sofrendo, um parente na cama, outro com dor...”

O Exu que pulveriza seu poder de fogo não deixa de provocar “atrasos” na

vida de seus desafetos. Povoando aqueles que ataca, ele potencialmente suscita

novos feiticeiros, por contágio. Talvez por isso seja possível dizer que o suposto

enfraquecimento decorrente da pulverização de sua potência parece vir, no

uma função de estados passageiros e é comum a muitos não pode ser tratado com severidade. A
posição de um bruxo nada tem de análogo à do criminoso em nossa sociedade; ele certamente não é
um pária atingido pela desgraça e evitado pelos vizinhos”.
55
Note-se que o segredo e o mistério, tão presentes no candomblé, são também formas de proteção e
não só meios de retenção de prestígio e autoridade. Sobre isso, ver Cossard, 1970: 226-227 apud
Goldman, 2005.
196

entanto, de uma força – um monismo, afirmou Goldman (2005) –, mas uma força

cuja heterogeneidade esteve sempre ali, desde o início, fazendo da fraqueza um

caso da força, do repouso um caso do movimento (Tarde, 2003: 70)56.

Por isso, viu-se, é difícil se contentar com uma sequência postulando uma

série de engendramentos degradantes (o medo e o desespero levariam à “cisma”

que, por sua vez, traria a paranoia). Bem ao contrário, o medo pode levar – e é até

mesmo comum que ele leve – à luta. Quando eu mesma supus, espantada, que

seria intenso o estado de aflição de uma moça sob ataque feiticeiro há mais de um

ano, a amiga da enfeitiçada desdenhou: - “Gislaine?! Hum! Gislaine se agarrou em

Deus e no que ela tem. Ela tem vários por ela: Juvenal [seu pai-de-santo] e os guias

dela. E disse que vai vencer”.

Também a cisma, viu-se, traz o preparo:

- “Ê meu pai, você que me ensinou tanto, se um dia fizer um preparo pra

mim, você acha que eu vou estar de corpo aberto esperando?” – dizia Dilmário a

seu pai-de-santo e potencial feiticeiro, não sem antes sorrir “um sorriso cínico”, ele

me diria depois57.

56
Para uma ciência social cujo conceito de base seria “um tipo de contaminação que se move
constantemente de ponto em ponto, de indivíduo em indivíduo, mas sem nunca se fixar em algum
ponto específico”, ver Latour & Lépinay (2009: 9).
57
Evans-Pritchard (1978: 57) também sublinhou que, menos pavor e mais aborrecimento e raiva,
acompanhavam um Zande ofendido por bruxaria. Além disso, o autor continua (1978: 108, grifo
meu), “longe de serem melancólicos” – e eu acrescentaria, paranoicos –, “todos os observadores
descreveram os Azande como um povo alegre, sempre rindo e brincando. Pois os Azande não
precisam viver no temor constante da bruxaria, já que podem entrar em contato com ela e controlá-la
por meio de oráculos e da magia”. Sobre isso, ver também Maluf (1993: 163).
Tempo Gira

O Exu banhou seu tridente de cima a baixo e virou-o de ponta-cabeça. O

inverso secretava a guerra, já sabíamos. Ele queria o sangue de seu desafeto, lhe

queria o pior, por isso descreveu uma circunferência em torno do tridente com jatos

de sua bebida predileta e, durante os dez minutos seguintes, refez inúmeras vezes a

borda, que teimava em se evaporar. Sem pressa alguma, o Exu ainda giraria seu

tridente para a esquerda e para a direita, repetindo esse gesto um sem número de

vezes enquanto entredizia as palavras antecipadas por um dos presentes: - “Roda

Tempo, roda Tempo, roda Tempo”.

- “Não preciso cortar pra mandar nada a ninguém. Mato até com uma

pena!” – ele bradou, cheio de raiva.

Dias depois, tentei esmiuçar o que o Exu quis dizer por ‘roda Tempo’, mas

me aconselharam a não fazê-lo. Era perigoso. Escrutinei então as aparições de

Tempo em minhas anotações de campo. Surpreendi-me ao verificar que, apesar de

Tempo estar imensamente presente em meu trabalho de campo, apesar de ele ser

invocado e alimentado nos mais diferentes trabalhos, eu não tivera a oportunidade

de vê-lo manifesto num ser humano. Perguntei então a Múcio: - Você já viu alguém
de Tempo?

- “Já! Liminha”.

- Mas Liminha não é de Iansã?

- “Mas roda com Tempo também. Afe Maria, é bonito demais quando ele

desce. Ele desce girando!”

- E alguém cabeça de Tempo, você já viu?

- “Nunca vi. É raro. É como... É como dar uma maleta de dinheiro a pobre” –

Múcio brincou, deixando uma risada explodir em sua face.

- Como é Tempo? – voltei a questionar, sorrindo também.


198

- “É uma bacia cheia de prato em volta” – ele respondeu, dessa vez sem

paciência para mais uma de minhas insistentes perguntas.

Eu já sabia que Tempo era um orixá, mas um orixá diferente dos outros.

“Tempo se embriaga” – diz a zuela –, quando então “não conhece mais ninguém”.

Provavelmente, eu pensei, a preocupação em sempre alimentá-lo, mesmo nos

trabalhos que inicialmente não lhe eram dirigidos, fosse uma maneira de refrescar a

memória do orixá esquecediço. Ou talvez fosse porque, ao alimentá-lo, se tornasse

possível impulsionar o seu xará, o tempo, a duração com a qual o orixá guarda

uma relação próxima e, não seria demais ressaltar, bastante bela. Pois, como se diz

e se repete, “tudo, com Tempo, tem tempo”, ou seria “tudo, com tempo, tem

Tempo?” Em todo caso, o nome do orixá resvala o do tempo ordinário, o passar das

horas, o mistério do que está por vir – o Tempo ‘toca’ o tempo1.

Os espíritos não andam sozinhos, o tempo os alcança. Eles já viveram muito

– na verdade, eles ainda vivem –, por isso levam consigo o “carrego do tempo”,

uma profundidade temporal cuja intensidade penetra o corpo humano 2. Mas eles

1
Wafer (1991: 165-166) afirma que “embora o termo [Tempo] possa ter sua etimologia ligada à
divindade bantu Zaratempo (Castro 1971:112), este vínculo tem sido obscurecido pela multiplicidade
de associações que a segunda parte do termo banto adquire em português. Tempo significa não só o
‘tempo’, mas também ‘clima’ (weather) e, por extensão, ‘exterior’. Existem”, continua o autor, “muitas
expressões proverbiais frequentemente ouvidas, como por exemplo: Tudo com tempo tem tempo.
Dar tempo ao tempo. Entregar ao tempo, às águas e a Deus. Todos esses provérbios têm o significado
de deixar as coisas tomarem seu curso, de confiar que o desdobramento do destino vai trazer sua
resolução”. Na passagem acima, contudo, ressaltou-se que, além das observações de Wafer, essas
expressões guardam uma segunda camada de significados, quando então a divindade Tempo é
chamada a intervir em favor do tempo que se deseja ou se quer antecipar.
2
Tais reflexões foram inspiradas em Anjos (2006: 20-23). O autor formulou várias frases para
caracterizar o que ele chamou de “cosmopolítica afro-brasileira” (por exemplo, “a intensidade
histórica que se faz corpo” ou “o passado falando em nós, o passado coexistindo, sobrepondo-se ao
meu presente”). Cardoso (2004: 110), por sua vez, afirma algo parecido sobre o cruzamento de
tempos diferentes na macumba carioca, tema de sua etnografia. Através dos espíritos de exus e
pombas-gira, diz a autora, “tempos e lugares se cruzam, passado e presente, eventos próximos e
distantes, pessoas aqui e ali, todos eles são colocados juntos na narrativa desenvolvida pelos espíritos
e por sua audiência”. Também Rabelo (2008: 94), num artigo em que a possessão no candomblé é
abordada como prática, propõe a substituição da “noção linear de tempo enquanto mera sucessão
por outra que enfatiza as relações de implicação ou elaboração recíproca entre passado e futuro na
dinâmica da experiência” (...) Então, continua a autora, “já não cabe dizer que um comportamento é
simples efeito ou expressão do que já estava delineado em seu passado, porque o passado efetivo,
que conta na experiência, não é um dado distante no tempo, mas aquilo que ainda vigora no
199

querem mais, eles desejam se expandir. Eles pedem por mais tempo do que os

humanos normalmente estão dispostos a lhes dar. É uma demanda insaciável, por

vezes monótona, como o foram muitas das tantas horas passadas junto a exus e

caboclos que não queriam deixar a terra. O Exu de Tácio, por exemplo, um dia

resolveu inquirir a vela acesa “em intenção de Tempo”, transformando as

oscilações da chama em seu oráculo. Para direita ou para a esquerda, para frente ou

para trás, subindo fino ou grosso, com fumaça ou sem fumaça: a cada movimento,

um novo presságio. O Exu se demorava, ele queria anunciar seu conhecimento,

mas quase todos tinham sono. Aquilo já durava várias horas, e eu não pude deixar

de pensar que o Exu estava em um diálogo com o tempo, quando então insistia em

estendê-lo.

A maior parte dos caboclos é assim, eles teimam em ficar em terra, eles não

querem deixar o “tempo virar”. Mas o “tempo vira”, ele se movimenta. Numa festa

normal de candomblé da região, por exemplo, o “tempo vira” umas cinco ou seis

vezes.

- “Quando começa uma festa despachando exu, fecha e abre ao mesmo

tempo”, disse Miguel. - “Fecha pra exu e abre pra santo. Depois, quebra pra

caboclo, quebra pra marujo, quebra pra erê e tem uns que quebram para exu de

novo.”

Antes destas quebras, é comum humanos e caboclos gritarem “tempo

virou”, quando então se sabe que já é hora de chamar um novo tipo de ser. Ou

então, eles zuelam, demonstrando extrema delicadeza, para o caboclo ainda em

terra:

Meu Tata, acabou,

Não tenha desgosto,

A vida é mesmo assim,

presente do sujeito: é um passado reapropriado e aplicado a novas situações e, neste sentido, não só
200

Um caboclo puxa o outro!

Tempo vira, deixa virar,

O mundo é mesmo assim,

Deixa as águas levar.

Esta delicadeza vem em boa hora, pois o perigo espreita quando o tempo

vira. O Exu que pedia para o Tempo rodar na abertura deste item sabia bem disso.

Ele sabia que o Tempo roda e que em suas andanças muito acontece. Penso que,

quando ele emanou radiações feiticeiras para sua vítima, ele chamou Tempo para

facilitar ou ‘adiantar’ as composições e capturas que tornariam sua vítima um alvo

fácil para suas radiações malévolas. O Exu queria criar ou acelerar desgraças que

estavam por vir e Tempo foi chamado a ajudar em sua tarefa.

Todo mundo anda dizendo


Que o culpado era eu,
Tempo girou, ai meu Deus!
Tempo girou, ai meu pai!
Todo mundo anda dizendo
Que o culpado era eu,
Tempo girou, ai meu Deus!

Com efeito, os movimentos temporais são uma ação importante para o

engenho feiticeiro. Tomás, por exemplo, quando ele me contou seu feitiço (no

capítulo 2), ele disse que, depois de cortar os animais, enterrar um deles, ele e o pai-

de-santo choraram na sentinela, isto é, naquele momento, eles desejaram acelerar o

tempo – “a gente mandou (o enfeitiçado) pro inferno, que ele já ia mesmo” –,

antecipando o velório que tencionavam causar. Cauê, por sua vez, achava um

“atraso” todas as bruxarias que Tomás declarava saber. Para Cauê, um feitiço

deturpa a ordem normal do tempo, ele não só gera perigo para as vítimas em

potencial, mas também para aqueles que decidem levá-lo a cabo. Na verdade, para

Cauê, somente o conhecimento dessas bruxarias era o suficiente para atrasar a vida

reefetuado, mas também descoberto e criado”.


201

de Tomás. Já com dona Lica (capítulo 1) foi diferente, ela se viu presa no

movimento de acordar a todo instante. Para ela, o tempo foi suspenso quando seus

caboclos iam e vinham, deixando-a confinada naquela manhã da qual ela não se

recorda de quase nada. Para ela, o tempo parou, ele foi suspenso para protegê-la,

pois enquanto seus caboclos tentavam se manter junto dela – ação que a deixou

fora do ar – , os exus enviados por sua feiticeira não conseguiram povoá-la.

Contudo, em meu trabalho de campo, essas andanças de Tempo não o

tornaram mais palpável, uma sensação que eu quis passar também na escrita.

Assim, as próprias capturas, composições, os povoamentos, as decomposições –

com suas mais diferentes intensidades – também carregaram, espero, algo da

vertiginosidade do orixá. De início, pensei em retomar essas ações-conceitos neste

item, ressaltando seus significados principais. Talvez no futuro eu possa fazê-lo

com mais proveito, colocando-as de novo em movimento ao vinculá-las a novas

histórias, que certamente as modificariam. Mas, agora, a título de conclusão – e em

poucas páginas –, seria lhes retirar a força, por isso optei que elas permanecessem

coladas aos eventos que as inspiraram. Gostaria de ressaltar, no entanto, que minha

intenção foi realizar uma etnografia em que não se tentou apenas aludir à

movimentação dos significados, mas movê-los propriamente. Ao tentar caracterizar

a imposição feiticeira pela complexidade de sua forma, pretendi criar uma

narrativa antropológica afetada pelo engenho feiticeiro, sujeita portanto às

flutuações – os inchaços e esvaziamentos – de seu conteúdo. Por isso, viu-se

enfeitiçados virarem feiticeiros que, no entanto, não o eram totalmente ou, pelo

menos, nem sempre. Viu-se pessoas e santos transformarem-se em lugares, cujos

habitantes modularam o seu domínio. Viu-se caboclos saturarem seus filhos com

sua paternidade que no entanto inchava e desinchava. Ouviu-se um enredo bruxo,

com zuelas e sotaques cujas capturas e composições se combinaram, se

modificaram e resultaram em povoamentos com resultados imprevisíveis.

Sentiu-se o Tempo virar, espero.


202

Tempo não tem paz,


Tempo não tem mais,
Tempo mora na rua,
No clarão da lua!

Tempo, Tempo arerê


Tempo, Tempo vadiar
Tempo, Tempo já virou
Glossário

ABUSAR, ABUSADO. Significa incomodar, importunar. Alguém abusado é alguém


chato. “Aquele desespero de tá vendo ela participar de tudo, e ela acordar
toda hora. Toda hora?! Tava abusando.”

ACAÇÁ. Um bolinho feito de amido de milho e depois envolto em folha de


bananeira. Usado em trabalhos de limpeza, ebós, sacudimentos etc.

ADÉ. Homem homossexual.


ADJÁ. Adjá é um sino de uma, duas ou três campânulas, utilizado normalmente
pelo zelador do terreiro, ou por alguém que o substitua em sua função. “Mas
eu tava doente, ela batia o adjá na minha cabeça, chamava meu orixá e ele
não descia”.

AGRESTE, AGRESTIA. Grosseiro, grosseria, violência. “Essa semana foi triste; ele só
não me bate porque eu não sou fraca, não me abaixo: uma unha desse
tamanho pra cima de mim. Uma agrestia!”

AGÔ. Desculpa, licença, por favor. “Mas a Padilha, quando desceu, fez com que as
suspeitas se esmorecessem, instando os presentes a lhe pedir agô”.

AJEBÔ. “Vou dar comida a Tata Caveira para que ele não venha a comer a gente.
Que, Deus é mais, nem gosto de dizer isso, mas ele come carne e rói osso!
Isso é uma feitiçaria, um ajebô. Ajebô e feitiçaria é tudo o que vem na mente:
- ‘Faça isso, faça aquilo’. O corte para Tata Caveira já é uma tradição no
terreiro, mas também é ajebô e feitiçaria, algo que vem na mente”. Em
Cacciatore (1988: 44), ajebó é uma comida feita de quiabo e mel, oferecida a
Iroko e Oxalufã, e também para todos os orixás, quando se quer pedir
misericórdia.

ALDEIA. É tanto o terreiro de candomblé como o lugar de onde vem os caboclos.


ALUVIÁ. Também chamado de Aluvaiá. É uma qualidade de exu. Em Cacciatore
(1988: 48), Aluvaiá é uma “entidade correspondente a Exu nos candomblés
com influência angola”.

ANJO-DE-GUARDA. Anjo-de-guarda é o espírito de frente de uma pessoa, mas seu


significado inclui também a alma individual de cada um, quando então
poderá ocorrer um deslizamento semântico entre uma e outra significação.
Em Cacciatore (1988: 50), “orixá principal de um médium, seu protetor e
guia mais importante e que ele “recebe” através de um Caboclo
204

representante desse Orixá, de sua linha”.

APAPELÊ. Apapelê é a carne que se prende ao fio da navalha, no momento da


iniciação de um filho ou filha-de-santo, quando uma pequena incisão é feita
em sua cabeça. “Maria José também não raspa ninguém. E mata mesmo, fica
o sangue, o cabelo e o apapelê da pessoa”.

APARELHO. Ver carnal.


ARRIAR UM TRABALHO. Despachá-lo (colocá-lo) onde foi determinado pelo
orixá, exu, caboclo ou pai/mãe-de-santo.

ASSOMBRADO. Usualmente se diz de alguém assustado, mas no candomblé ouvi o


termo ser utilizado para alguém perigoso.

AZEITE. Azeite é o azeite de dendê e azeite doce é o de oliva.


BAGACEIRA. Algo ruim ou de má qualidade.
BARRACÃO. Normalmente é o salão onde se dão os toques de candomblé.
BANDEIRA DE TEMPO. É uma bandeira branca, pequena, no alto de um grande
mastro de madeira ou bambu, normalmente na frente dos terreiros. Muitos
terreiros da região não o possuem, preferindo que suas fachadas não sejam
identificadas como casas de candomblé. “Ir para bandeira de tempo” é ver
seu “nome voando, indo por tudo quanto é canto, todo mundo falando mal”.
A bandeira de tempo arriada, segundo um de meus interlocutores,
significaria que ali é um candomblé onde se faz magia negra. Ver também
Tempo.

BANDEIRA BRANCA. Ver bandeira de tempo.


BATIZADO. Um ritual que pode ter diversos feitios (lavagem de cabeça, cortes de
frangos, trabalho de limpeza). Nos terreiros da região, ele pode dar início à
relação de paternidade entre pai/mãe e filho(a)-de-santo.

BICHINHO. Utilizado como verbo ou substantivo, o termo substitui outros de sua


classe gramatical. “Eu não bichinho não”, por exemplo, pode significar
qualquer coisa. Tem uso similar ao do termo ‘coisa’ em outras regiões do
Brasil.

BOIADEIRO. Um tipo de caboclo. Suas zuelas indicam que ele vem do sertão,
alguns deles de Minas Gerais, onde lidam com gado.

BOMBOGIRA. Um outro nome para pomba-gira.


BREGA. Puteiro, prostíbulo.
CABEÇA. Ao dizer ‘Fulano é cabeça de Ogum, Exu etc.’, normalmente o narrador
se refere à relação de filiação, quando então o santo é dono da cabeça do seu
205

filho. Ver também mente.

CABOCLO. Os caboclos são normalmente espíritos de índios, porém ‘caboclo’ é um


termo utilizado também para se referir à totalidade dos espíritos, sejam eles
caboclos, orixás, erês, exus ou marinheiros. Para mais sobre como a diferença
entre estes vários tipos de seres foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a
43 do capítulo 1.

CAMARIM. Também chamado de camarinha, é sinônimo de roncó.


CANDOMBLÉ. Tem vários significados. Candomblé é tanto a festa de candomblé, o
toque como o conjunto de práticas ligadas aos diferentes terreiros da região
como mais propriamente. Na série de entrevistas que fiz no final do meu
trabalho de campo, depois de perguntar algumas vezes ‘qual é a diferença
entre candomblé e umbanda’, Jaime, que esteve presente em várias delas,
observou: - “Sua pergunta não faz nenhum sentido! Se você perguntar qual é
a diferença entre umbanda e ijexá, umbanda e queto, queto e angola, aí sim,
tem diferença. Mas umbanda é candomblé!” Claro, houve quem discordasse
de Jaime, dizendo que candomblé era um conjunto de práticas e seres do
qual a umbanda estaria excluída, mas, neste texto, segui o uso das pessoas
com quem mais convivi, chamando portanto todas essas práticas de
candomblé.

CATAR. Quando alguém cata de outra pessoa, ela está capturando seu
conhecimento através da observação ou participação das práticas diárias do
candomblé.

CATULADO, CATULAGEM. Na região, costumou-se chamar de catulagem às


pequenas incisões feitas na cabeça, braços, pés e às vezes língua, seguidos ou
não da raspagem de cabelo. Cacciatore (1988: 86) registra o seguinte
significado: “para alguns é cortar o cabelo com tesoura, antes de raspar”;
“em alguns candomblés significa raspar apenas um círculo no alto da cabeça,
onde será feita a cura. Nesse caso é empregado o termo raspar para a
raspagem completa da cabeça”. Ver também raspado.

CARMA. Uma entidade espiritual (caboclo, orixá, exu etc.): “Tenho o Obaluaê de
minha vó – peguei seu carma”. Pode significar também uma “carga”
espiritual.

CARNAL. Quando substantivo, trata-se de um humano em quem uma entidade


incorpora (e para o qual há inúmeros sinônimos: cavalo, couro, médium,
aparelho, matéria). Quando adjetivo, denota um parentesco de sangue:
“Fulano é meu irmão carnal”.

CARREIRA OU NA CARREIRA. Rápido ou com pressa.


CAVALO. Ver carnal.
206

CHIADA. Mentira. No Dicionário de Baianês, Lariú (1992) registra o termo apenas


em seu sentido mais usual, o de reclamação.

CHUMBETÁ. Chumbetá, na região, é um colar de contas (miçangas), cujas cores


variam segundo cada caboclo. Normalmente os chumbetás são usados por
pessoas bastante próximas do candomblé, mas não necessariamente virantes
ou iniciadas. Lody (2003) registra o vocábulo num sentido mais restrito: “é
um conjunto de fios trançados em palha-da-costa detalhados por chumaços
que lembram os mocãs. Cada chumbetá terá um uso específico e isto é
revelado no emprego de búzios e miçangas nas cores simbólicas dos deuses.
O chumbetá de Oxalá será repleto de miçangas na cor branco-leitosa e
búzios. É um distintivo que confirma a iniciação religiosa e poderá compor
também os assentamentos. BA, RJ.”

CHUMBINHO. Veneno para rato, letal também para seres humanos.


CHURINA. Sovino.
CONTAS, COLAR DE. Ver chumbetá.
CORTAR. Sacrificar um animal para uma obrigação.
COSME E DAMIÃO. Ver erê.
COURO. Chapéu ou corpo. Para este último significado, ver carnal.
CRIANÇA. Ver erê.
DAR PASSAGEM. Ver incorporar.
DECÁ. Nome do ritual em que é dada a ‘permissão’ para que o filho(a)-de-santo se
torne um pai(mãe)-de-santo, ou seja, a partir de então ele poderá zelar de seu
próprio terreiro.

DE HOJE A OITO. Daqui a uma semana.


DEMANDA. Em minha experiência de campo, demanda significa o mesmo que
feitiço.

DESCARADO, DESCARAMENTO. Sem-vergonha, atrevido, sem-vergonhice.


DESCENDÊNCIA. Normalmente sinônimo de ascendência, no sentido genealógico.
Indica também as entidades antepassadas de um médium.

DESGRAÇA, DESGRAÇADA(O). Tem o mesmo significado que normalmente se lhe


é dado (má sorte, tragédia), porém, na região, carrega um peso maior do que
o usual. Deve-se evitar sua enunciação (em seu lugar, é usado “desgrama”,
um eufemismo). Mas justamente porque o termo é ‘proibido’, é falado a torto
e a direito. Um dos xingamentos mais comuns no interior da Bahia é “filho
da desgraça”.
207

DESGRAMA. Ver desgraça.


DESPACHAR. Despachar na linguagem cotidiana da Bahia significa atender
alguém, encaminhando a sua requisição. Quando se despacha a rua, as
estradas ou os exus, eles são alimentados, atendidos e encaminhados para
fora do espaço ritual. Quando se diz “despachar um ebó”, normalmente se
indica que o ebó seria arriado no lugar anteriormente indicado (mata, água,
estrada etc.).

DIABO(S). Nos terreiros estudados, os diabos são normalmente os exus. Para


alguns, no entanto, nem todos os exus são diabos, da mesma forma que nem
todos os diabos são exus. Em todo caso, é razoável dizer que os dois termos,
diabo e exu, são geralmente sinônimos e que, portanto, os diabos também
carregam as várias ambiguidades dos exus, entre elas, o fato de não serem
exclusivamente bons ou maus.

DOUTRINA. “É por exemplo comida de santo (cada um tem uma); rezar ori pro
santo (cada santo tem uma reza); saber sobre os guias; qual salva vai tirar pro
santo, se o santo vai salvar ou se é a pessoa; cortar pra exu tem dia certo, não
é todo dia.”

DOUM. É o irmão dos gêmeos Cosme e Damião, ou então um terceiro gêmeo. É


muito comum a referência a Doum em zuelas, quando então se faz a relação
entre do-um e dois-dois, evocando sempre uma duplicidade. Ver também
erê.

EBÓ. Uma oferenda ou trabalho que pode ter várias funções, mas usualmente em
minha experiência de campo o termo se referia a um trabalho de limpeza. É
também sinônimo de feitiço.

EGUM. Em geral, espíritos de pessoas que morreram recentemente. Discute-se se os


orixás, exus e caboclos, que foram humanos, não seriam por isso eguns, isto
é, mortos. Por ora, a título de resumo, diria que em minha experiência de
campo os eguns eram tidos por bastante diferentes de todos os outros
caboclos, sejam eles antepassados ou não (e, mesmo seu Martim – o
marinheiro bêbado –, que é um espírito de morto, não era por isso
considerado um egum). “O exu, ele vive, não é morto”, me explicava Juca, e
o mesmo poderia ser dito para caboclos, orixás e marinheiros (sobre isso, ver
também Halloy, 2005: 145). Ressalte-se que os mortos comuns, mesmo sem
vida, não deixam de influir. A diferença é que sua influência em geral é
considerada nefasta e por isso, durante minha experiência de campo, cuidou-
se de mantê-los à distância, já que traziam problemas a parentes e amigos
mesmo quando sua intenção era ajudá-los.

ENCRUZILHADA. Cruzamento de ruas, normalmente morada de exus.


ENGANJENTO. Pessoa chata, que por tudo reclama.
208

ENREDO. É comum a expressão “enredo” do candomblé. Significa a sua história,


suas características, seus meandros, o seu jeito.

EQUÊ. Fingir o transe.


EQUEDE. Mulheres que acompanham os preparos das entidades, sejam os ligados
aos trabalhos e consultas, sejam aqueles necessários durante as festas de
candomblé. Em geral, também ajudam com o preparo da comida e decoração
dessas festas. As equedes se diferem das outras mulheres do terreiro porque
não viram, ainda que sejam bastante próximas de seus próprios caboclos,
exus e orixás e que não sejam raros os casos de equedes “vironas”. Os filhos
e filhas-de-santo virantes lhes pedem bênção.

ERÊ. Também chamados de Cosme e Damião, são divindades-crianças ligadas a


algum orixá ou caboclo, que lhes confere seu nome. Por exemplo, um Erê de
uma carnal de Iansã poderá se chamar Trovãozinho, em referência ao
vínculo de Iansã com a tempestade. Os erês são ligados especialmente aos
gêmeos que, ao nascerem, costumam ser batizados de Cosme e Damião (e
suas variantes femininas). É raro encontrar na região algum Cosme,
Cosmina, Damião ou Damiana que não seja gêmeo.

ESCRAVO. Os exus podem ser chamados de escravos quando vinculados a um


orixá ou caboclo. Isso porque, a princípio, eles estariam sob suas ordens, mas
conforme se argumentou no capítulo 3, mesmo quando um exu é escravo,
diz-se que ele passa, ou tenta passar, à frente dos orixás. Ver exu.

ESPÍRITOS. Termo que designa o conjunto de seres espirituais, normalmente


caboclos, exus, santos, erês, marinheiros e, em certos momentos, também os
eguns. Para saber mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres
foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.

ESPÍRITO(S) DE MORTO. Ver egum.


ESTROVAR. Não tenho certeza da grafia. “Estrovar noite” significa perder a noite
de sono, geralmente porque se passou festejando. Usado também para dizer
que se perdeu o dia de trabalho (“ele estrovou trabalho”).

EXU E EXUA. Os exus são espíritos de pessoas que tiveram uma vida pouco
regrada, ou então uma morte violenta. São normalmente bastante temidos e
cheios de artimanhas, porém não são exclusivamente maus, eles “ajudam” e
“atrapalham”, diz-se. Podem ser machos ou fêmeas (ouvi uma só pessoa
chamar as pomba-giras de exuas). Em geral, se usa o termo ‘exu’ para a
categoria mais genérica de exus machos e ‘pomba-gira’ para as fêmeas. Para
mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos,
orixás etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.

FAZER COISA. Ver porcaria.


209

FEIJÃO-MACÁÇO. Feijão-fradinho, muitas vezes chamado de macáço quando


fresco, por oposição ao seco.

FIQUE AÍ (ATRÁS). É uma expressão muito utilizada e indica algo como ‘até
parece’, ou então, ‘fique pensando que eu sou besta, mas não sou’. Por
exemplo: “Mas eu não ia ficar com ele. Ele casado no civil, eu ia ser sua
amante? Fique aí...”.

FLOR-DO-VELHO. Pipoca oferecida a Obaluaê, o orixá conhecido como o Velho.


FULASCA. Briga, bagunça. Algo ruim, um xingamento.
FUNDAMENTO. Possui vários significados. Normalmente é o que não pode ou não
deve ser dito a estranhos e, nesse caso, são os segredos do candomblé – seus
rituais secretos, seus objetos, pós e misturas assentados em lugares
específicos, suas palavras e preparos. Chama-se também de fundamento a
doutrina que um terreiro pode ou não ter, daí a acusação de um ou outro
candomblé ser sem fundamento, isto é, de ele não fazer as coisas como se
supõe serem corretas.

GAIATO, GAIATICE. Brincalhão, malicioso, presepagem, travessura.


GIRA. Abreviatura de Pomba-Gira. É também sinônimo de toque de candomblé.
GUIA. Ver espíritos.
IAÔ. Uma pessoa virante que já se iniciou ou tem uma relação mais consolidada
com o terreiro.

IGNORÂNCIA, IGNORANTE. Indelicadeza, pessoa grosseira, agressiva.


INCORPORAR. Quando um humano incorpora, ele está tomado por um dos seres
espirituais, seja ele caboclo, santo, exu, erê, orixá ou egum. Existem inúmeros
termos para se referir a essa ação ou estado, com diferenças grandes ou sutis
de significado entre si (entre eles, manifestar, dar santo, sambar, brincar,
virar, passar, dançar, vestir saia, trabalhar com, girar, rodar, dar passagem,
bolar, responder, receber, encaboclar, espritar, endiabrar, tombar, cair, tomar
barravento, derrubar, panhar, pegar, encostar, chegar perto, descer).

INFLUÊNCIA. Tem vários significados. Além do significado mais conhecido, a ação


de um agente em alguém ou alguma coisa, é sinônimo no interior da Bahia
de animação, ânimo, movimento (‘eu não tenho influência para ir na festa de
São João’, ou então ‘painho gosta da influência. Já mãinha não. Ela não gosta
de visita nem de festa, às vezes trata mal até as visitas dos filhos’). É, ainda,
um termo muito usado para se referir aos espíritos de alguém, isto é, suas
“influências”, sejam elas caboclos, santos, exus, erês ou marinheiros.

INTACTO(A). Uma pessoa que está incorporada não está mais “intacta”.
210

IRRADIADO(A). Ver radiado.


JUÍZO. Ver mente.
JUREMA. Uma cabocla fêmea.
LÁ ELE. Deus é mais! Deus me livre! Credo!
LARUÊ (OU LAROÊ). Saudação para exu.
MABAÇO. Gêmeo. Também utilizado para se referir a Cosme e Damião.
MÃE-DE-SANTO. Zeladora de santo, pessoa à frente do terreiro. Na região
estudada, é mais comumente chamada pelo nome próprio, por madrinha ou
apenas ‘minha mãe’.

MALAFO. Bebida alcoólica.


MALEIME. Desculpa, licença, por favor. Cacciatore (1988: 169) registra o vocábulo
como malembe, que são “cânticos especiais para pedir misericórdia aos
Encantados, suplicar auxílio e perdão nos candomblés de origem bântu”.

MANATA. Pessoa.
MANIFESTAR, MANIFESTADO(A). Ver incorporar.
MANO. Ver seu Martim.
MARINHEIRO. Ver seu Martin.
MARROMBAXETO. Saudação para os caboclos. Não tenho certeza da grafia.
MARTIM. Ver seu Martim
MÉDIUM. Ver carnal.
MENTE. Usam-se os termos “mente”, “juízo”, “sentido” e “cabeça” de forma
parecida, talvez com ligeiras nuances. Todos os termos significam
pensamento (poder-se-ia usar qualquer um deles para dizer ‘isso não sai da
minha cabeça’), mas tenho a impressão que eles significam não apenas o
caráter abstrato do pensamento, mas incorporam também seu substrato
físico. Há também, creio eu, um deslizamento entre a “mente” – lugar onde
se botam sugestões, impressões, desconfianças e ideias – e a “cabeça” – lugar
povoado por santos, exus, marujos e caboclos (ver capítulo 3).

MESA BRANCA. Sessão em que se invocam os espíritos dos mortos. Refere-se


também a rituais em que os caboclos, orixás, marinheiros e, principalmente,
os exus não estariam presentes ou, ao menos, não seriam bem-vindos.

METÁ-METÁ. As entidades são metá-metá quando traçadas ou radiadas por


outras. Por exemplo, um exu metá-metá é ao mesmo tempo exu e caboclo (ou
211

exu e orixá, ou exu e mano). Metá-Metá são também as entidades metade


homem, metade mulher, ou seis meses macho, seis meses fêmea. Os homens
e mulheres homossexuais são também chamados de metá-metá por
membros do candomblé da região. Metá-Metá é também a forma de se
referir aos humanos quando radiados por seus caboclos, santos ou exus, pois
ali estão metade humanos, metade espíritos.

MISERÁVEL, MISERAVONA, MISERAVÃO. Uma pessoa ruim.


MISÉRIA. Coisa horrível. É também um termo usado como exclamação. ‘Dizer
miséria a uma pessoa’ significa xingá-la ou ofendê-la.

NAJÉ. Prato de cerâmica em que são feitos vários trabalhos, obrigações, cortes etc.
NEGÓCIO, NEGOÇO. Pode ser utilizado para se referir aos espíritos de alguém ou
aos do próprio locutor. Usado normalmente quando se está com raiva,
quando se deseja atingi-los ou quando se quer marcar o distanciamento e o
desconhecimento para com estes seres.

NICURI. Um coquinho bem duro e bastante difícil de quebrar.


NOVO NO SANTO. Ver tempo no santo.
OBRIGAÇÃO. É uma palavra bastante utilizada para designar atividades diferentes
no candomblé. Uma festa é uma obrigação e também o são os trabalhos de
limpeza, um presente para um caboclo, um jejum, a iniciação, uma oferenda
etc.

OGÃ. Homens, normalmente não-virantes, que têm uma relação bastante próxima
com seus orixás, caboclos e exus. Um ogã pode exercer uma ou várias das
seguintes funções: ele toca atabaque, puxa os salvos para os santos, realiza os
cortes para o terreiro, prepara banhos, trabalhos, garrafadas, pembas,
despacha ebós, ajuda nas consultas e auxilia em inúmeras outras atividades.
Os filhos e filhas-de-santo virantes geralmente lhe pedem bênção.

OGÃ-DE-SALA. É o ogã que cuida do bom andamento de uma festa de candomblé.


OGUM. É tanto um orixá como um caboclo, dependendo do terreiro. Para mais
sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos, orixás
etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.

ORIXÁ. Para alguns, os orixás são espíritos de seres humanos que viveram há ainda
muito mais tempo do que as pessoas que, depois de mortas, se
transformaram em exus, caboclos e marujos. Eles são também negros, ainda
que possam “descer” brancos e alourados em suas singularizações junto aos
humanos. Alguns dos orixás – oxóssi e ossanha, por exemplo – se
aproximam dos caboclos por morarem no mesmo lugar, a floresta. Outros
orixás se juntam aos exus por afinidades de comportamento ou
temperamento. Outros se associam pela classe etária: ogum-menino e iansã-
212

menina têm características parecidas com os erês e os velhos orixás nanã e


obaluaê, por sua vez, são ligados normalmente aos pretos e preta-velhas. Há
santos ou caboclos que são “metá-metá” – metade homem, metade mulher
(oxumarê) ou metade santo, metade diabo (ogum xoroquê). Note-se que,
nesta tese, os termos orixá e santo foram utilizados como sinônimos. Para
saber mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus,
caboclos, orixás etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do
capítulo 1.

OUSADIA, OUSADO. Pode significar petulância, libertinagem ou coragem,


dependendo do contexto.

PADILHA. Uma pomba-gira.


PAI-DE-SANTO. Zelador de santo, pessoa à frente do terreiro. Na região, é mais
comumente chamado pelo nome próprio, por padrinho ou apenas ‘meu pai’.

PANO TNT. Um pano mais barato. Aparentemente, TNT significa ‘tecido não
tecido’.

PASSAR. Ver incorporar.


PATUÁ. Objeto utilizado para proteção, normalmente um embrulho de pano ou
couro cujo interior abriga elementos variados e normalmente secretos.

PEMBA. São pós comprados ou preparados que podem tanto fazer o bem
(normalmente “pembas brancas” ou de prosperidade, semelhantes a um giz)
como o mal (“pembas corredeiras”, normalmente marrons). Há no entanto
inúmeras outras pembas (rosas, azuis, vermelhas, amarelas), e cada uma
delas pode fazer o mal ou o bem. Sua receita é secreta e tende a ser feita de
acordo com o que há disponível, ou com o que se sonhou ou se intuiu ser
correto para aquela ocasião. As pembas para o mal normalmente são feitas
com animais peçonhentos torrados e reduzidos a pó, além de um sem
número de folhas, raízes, cascas e sementes. Elas podem ter um efeito por si
própria – por exemplo, quando uma pemba faz com que a pele de alguém se
encha de pequenas pústulas – ou pode atrair exus que fazem mal à vítima.
Nos dois casos, tende-se a considerá-la um feitiço, mas algumas pessoas
assim a consideram apenas no segundo caso.

PEGAR, SER PEGO. Refere-se tanto a um feitiço, que pode pegar ou não no seu
destinatário, como a um santo, caboclo ou exu que incorporou em alguém..

POMBA-GIRA. É tanto uma exu fêmea em particular como uma categoria de exus
fêmeas diferentes entre si. Também chamada de Gira ou Bombogira. Para
mais sobre como a diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos,
orixás etc.) foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.

POR A MÃO EM SEU FILHO(A). Quando o pai ou mãe-de-santo faz um trabalho


213

forte o suficiente para proteger seu filho de qualquer influência mágica, ele
“põe a mão em seu filho(a)”. Inclui-se neste ato a própria filiação que tal
trabalho pode ter deslanchado.

PORCARIA. O mesmo que bruxaria ou feitiçaria. Outros sinônimos são


“macumba”, “queimar”, “fazer coisa”, “embruxar”.

POSSESSÃO. Ver incorporar.


PRESENÇA(S). Palavra empregada muitas vezes para se referir aos espíritos de
alguém, sejam eles caboclos, santos, exus, erês ou marinheiros.

PREPARAR / PREPAROS / PREPARADO(A). No candomblé, o termo indica duas


ações diferentes. Ao mesmo tempo em que se prepara um colar de contas,
deixando-o imerso em uma mistura de seiva, pembas brancas e folhas, a fim
de conferir prosperidade ao dono do colar sagrado, prepara-se também uma
roupa ou uma comida, de modo que virem um feitiço perigoso. Um pai-de-
santo preparado é um bom curador, mas é também um feiticeiro em
potencial. Curar e enfeitiçar, em outras palavras, fazer “prosperar” e atrasar
são duas ações que recebem o mesmo nome: preparar.

PRESEPAGEM. Travessura, trapaça ou inconveniência, dependendo do contexto.


PURO. Vazio, sem nada, sem dinheiro. A casa estava pura (sem mobília). Ele é puro
(não tem dinheiro).

QUALIDADE. Sinônimo de jeito, tipo. É também o nome dado para os diferentes


tipos que cada orixá, caboclo, exu e marinheiro abarca. Por exemplo, um
oxóssi pode ser oxóssi gongombira ou dana-dana, e cada um deles é uma
qualidade de oxóssi. O mesmo se dá com os exus. Um tranca-rua pode ser
tranca-rua das almas ou tranca-rua da encruzilhada, e cada um deles é uma
qualidade de tranca-rua.

QUENDAR. Pedir, normalmente com cuidado e respeito, mas às vezes com firmeza
e autoridade, para que o orixá, caboclo ou exu se retire da pessoa em que se
manifestou. Significa também o ato do próprio espírito, quando ele se retira
da pessoa em que estava incorporado. Nesse caso, é sinônimo de subir.

QUIZILA. Quizila é a “carga” ou “radiação” deixada por humanos ou entidades. É


também a maneira como o médium às vezes fica depois da partida do guia
espiritual que usava seu “couro”. Ele fica metá-metá, quizilado: nem
humano nem espírito. É um estado altamente indesejado e, normalmente,
fruto de punição da entidade. Quizila pode ser também a carga deixada por
um feitiço ou olhado: “Quizila, vamos supor, você tá com dinheiro na mão,
eu passei e olhei: - ‘Humm, ela tá com dinheiro na mão’. Às vezes você passa
bem vestida, bem trajada: - ‘Que gatona arretada, rapaz’. É esse que é o
feitiço. Aí você passa maltrapilha: - ‘Ói que mulher escrota da porra, velho!’
Será que existe isso?! Às vezes você vai tendo uma boa carreira, mas desde
214

quando eu lhe olhei – ‘Olha, rapaz, que gatona da porra ali!’ –, já vou
comentar com meus colegas. Quando chega lá na frente, você vê aquelas
pancadas, uma no seu coração, uma na sua cabeça, ou umas dores no corpo.
- ‘Ih, eu tava tão bem, saí de dentro de casa tão bem, e agora eu tô dessa
maneira?! Vou no hospital, ou vou numa clínica, ou num posto, ou qualquer
coisa’. É isso que é o feitiço. O feitiço é eu olhando pra você e você olhando
pra mim”. Note-se que “quizila” é mais frequentemente encontrado na
literatura antropológica no sentido de “repugnância pessoal a comer, beber,
ou fazer determinadas coisas” ou “proibição ritual, determinada pelo orixá,
no seu culto, impondo interdições, temporárias ou definitivas, a seus filhos”
(Cacciatore, 1988: 219)

RADIAR, RADIADO, RADIAÇÃO. Uma modulação do transe. “... Naquele dia, o


Exu dirigira as ações de Valdir, mas uma pessoa desavisada não conseguiria
percebê-lo. Eu mesma não percebi, e inicialmente demorei a entender como
Valdir, que normalmente não incorporava, poderia estar tão irradiado por
seu Exu a ponto de suas ações serem na verdade as dele. Em sua família, ao
contrário, todos já sabiam que aquele comportamento não era o normal do
rapaz, usualmente pacato e brincalhão. Há muito eles conheciam aquela
forma de “influência”, e por isso o irmão de Valdir me explicou: - “Não toma
totalmente, mas radeia, alguém com o coração puro tenta ajudar, ele traça
toda a boniteza. Você pensa que é humano, porque ele responde bem, mas na
verdade já era o Tranca-Rua dele pensando em fazer desgraça.”

RASPADO. Pessoa iniciada; termo utilizado em referência à raspagem da cabeça


feita na iniciação. Seu significado está ligado às ações de catular e borizar
(termo este que na região significa os alimentos colocados na cabeça, à
maneira de oferenda, da pessoa em questão).

RESGUARDO. O período durante o qual se deve observar abstinências alimentares,


sexuais e comportamentais. Normalmente cumprido depois de uma
obrigação (limpeza, iniciação etc.).

RODAR. Ver incorporar.


RONCÓ. Idealmente o quarto em que um iaô é recolhido durante sua iniciação,
mas utilizado, quando não há outro, como quarto onde se colocam os
assentamentos e imagens de santos, e também como quarto para troca de
roupas durante as festas.

SACUDIMENTO. Um trabalho de prosperidade. Em um dos terreiros que


frequentei, sacudimento era um trabalho mais simples, com menos
ingredientes, quando comparado ao trabalho de limpeza. Nos terreiros
baianos que Santos (1995: 130) pesquisou, sacudimento era o ato de passar
folhas frescas no corpo das pessoas, com intuitos que variavam segundo a
espécie de planta em questão.
215

SAMBAR. Ver incorporar.


SANTO. Termo bastante utilizado para se referir aos orixás ou ao conjunto de
diferentes seres (exus, caboclos, marinheiros, santos etc.). Para mais sobre
como a diferença entre eles foi elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do
capítulo 1.

SEIVA. Água-de-colônia de alfazema, comprada em lojas ou feita em casa.


SENTIDO. Ver mente.
SENTINELA. Velório ou enterro.
SETE-SAIA. Uma Pomba-Gira.
SEU MARTIM. Também conhecido por marinheiro, marujo, mano. Um espírito-de-
morto que no entanto não é egum. Habita as águas salgadas, vem à terra
bêbado, trocando as pernas e falando enrolado. Quando desce, é comum
dizer ‘Êla Porra’, uma interjeição cujas variações são ouvidas também entre
os humanos. Nas festas de candomblé, ele normalmente chega com a
madrugada avançada, logo depois dos caboclos. Corteja as mulheres; dos
homens é camarada, todos o adoram. Algumas de suas zuelas se parecem
muito com sambas-de-roda, quando então dão espaço para improvisação de
novos versos. Seu Martim normalmente não faz trabalhos de limpeza, mas
intervém nos assuntos humanos, fazendo o bem e também o mal. Conheci
um Mano que era escravo, em vez de espírito de morto. Quase todos os pais,
mães, filhos e filhas-de-santo da região têm um marujo entre seus guias.

SOTAQUE. Sotaque, no candomblé, é um desafio em forma de zuela. É uma


palavra-arma. Ele tem um alvo preciso, mas é jogado ao ar, ouvido por
alguns, já por outros não. É chamado também de “piada”, e não se restringe
ao candomblé. Ver o primeiro item, ‘sotaque e silêncio’, do capítulo 1, para
mais informações sobre o termo.

TATA. Pode ser dirigido a um humano ou a um espírito. Significa ‘pai’.


TEMPO. Um orixá. Em meu trabalho de campo, ele se fez bastante presente.
Davam-lhe presentes, acendiam-lhe velas, e em quase todos os trabalhos, ele
era invocado. Mas, curiosamente, na região, eu nunca vi ninguém
incorporado com Tempo. No item ‘Tempo Gira’, fala-se mais sobre essa
entidade.

TEMPO NO SANTO. O período durante o qual uma pessoa se manteve mais


compromissada com seus caboclos. Normalmente se inclui nesta expressão a
frequentação a um terreiro. É comum se dizer que alguém é novo ou velho
no santo.

TERREIRO. Na região, os terreiros são normalmente espaços compostos: a casa do


216

pai ou mãe-de-santo, um barracão onde acontecem as festas, uma casa de


exu, um terreiro maior ou menor (ou uma roça propriamente) onde se criam
galinhas e onde se plantam ervas, verduras, legumes, palmeiras, árvores
frutíferas.

TOQUE. É tanto o nome que se dá para as festas de candomblé como os diferentes


toques de atabaque (os mais comuns na região são angola, barravento,
cabula e ijexá).

TRANCA-RUA. Um exu, bastante comum na região. Para mais sobre como a


diferença entre os vários tipos de seres (exus, caboclos, orixás etc.) foi
elaborada nesta tese, ver as páginas 40 a 43 do capítulo 1.

TRANSE. Ver incorporar.


TOMBENCI. Uma cabocla.
TUMBAJUÇARA. Um caboclo.
USURA. Segundo Hoaiss (2009), no nordeste do Brasil, usura significa “desejo
exacerbado de poder ou riquezas, honras ou glórias; ambição, cobiça”.

VESTIR SAIA. Ver incorporar.


VIDA NO SANTO. Ver tempo no santo.
VIRAR. Ver incorporar.
VOGA, ISSO NÃO. Isso não tem nada a ver, ou isso não vale.
ZAMBI, ENTRAR NO. Também se diz “guia no zambi”. Um pedido que se faz ao
orixá, caboclo ou exu para que ele se retire da pessoa em que está
manifestado. Ver também quendar.

ZUELA. São as músicas dos caboclos, orixás, exus e marujos. O substantivo abarca
o conjunto dos ritmos de atabaque e letras cantadas, mas o verbo
normalmente tem seu significado restrito ao canto. Cacciatore (1988: 58)
registra outros significados para a palavra. Em kimbundo, diz a autora,
significa falar, conversar e “azuela” é um “termo usado nos candomblés
angola, significando uma “ordem para bater palmas e animar a festa”.
Segundo Garcia (2006), em seu trabalho sobre a música de caboclo nos
candomblés baianos, diz-se “azuelado” para o nome gritado publicamente
pelo santo da iaô na cerimônia de sua iniciação.
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