Pesquisando as edições mais antigas de O Progresso, inúmeras vezes encontrei menções ao
tenente-coronel Albano Coelho de Souza, amigo dos fundadores do periódico e intendente de Alfredo Chaves, uma colônia fundada no tempo do Império para receber imigrantes, sobretudo italianos, os primeiros dos quais chegaram em 1884. Como Alfredo Chaves era também um município capixaba, trocou de nome para Tapir, por muito pouco tempo, e então passou a chamar-se Veranópolis. Conheci a cidade dias atrás. Depois de uma reunião profissional, quase ao cair da tarde, fui ao centro da comuna e visitei três de seus pontos principais: a Igreja de São Luiz Gonzaga, o Santuário de Lourdes e a Casa de Cultura Frei Rovílio Costa, filho da terra e muito conhecido por sua contribuição à história dos imigrantes, marcadamente os italianos. Na Casa de Cultura, que visitei com a pressa que o pouco tempo exigia, deparei-me com a memória de Mansueto Bernardi, um gigante da cultura, e de Paco, um controverso pistoleiro. Vi uma foto da área central do município em 1898. Era um nada. Ainda assim as edições de O Progresso de 1903 noticiavam com alguma frequência matérias policiais de Alfredo Chaves, como o suicídio de um polaco, a captura de um passador de moeda falsa e o julgamento de um infanticídio em que um dos acusados, a própria mãe, italiana de nascimento, depôs com intérprete. Fiquei a imaginar a crueza da vida de então, com a violência sempre a rondar, bem de perto. A bem da verdade a saga da violência iniciara com a expulsão dos habitantes imemoriais da região, os caingangues. Ficaram famosos os matadores de índios, os bugreiros, contratados para “limpar” a área com o objetivo de entregá-la aos imigrantes europeus. Paco, como ficou conhecido Francisco Sanches Filho, tem altos e baixos na sua biografia, sendo considerado tanto um líder camponês quanto um frio pistoleiro. A sinopse do livro “Uma história escrita com chumbo”, de Gustavo Guertler, descreve a obra como “um emocionante romance de não-ficção que ousa desbravar esse terreno fértil, mas minado de armadilhas, para resgatar a trajetória de Francisco Sanches Filho, o homem mais procurado do Sul do país no início do século passado. Com a República Velha como pano-de-fundo, traz à tona um cenário de miséria, opressão e corrupção no Nordeste do Rio Grande do Sul, onde a polícia e as autoridades muitas vezes estavam contra a lei. Numa época em que a injustiça era prerrogativa dos ricos e a justiça se fazia à bala, Paco não poderia ter sido herói, mas também não poderia ter sido o verdadeiro vilão. Quem foi, então o homem que passou de humilde agricultor no interior da antiga Veranópolis a braço armado da máquina do poder e encarnação do medo em toda a região? Não mais com chumbo e sim com palavras, essa história, finalmente, pode ser contada”. Segundo outra referência, Paco andava sempre armado e teria mais de cem mortes no currículo. Aliciava eleitores e portanto foi útil aos caciques políticos de então. Sua imagem foi imortalizada numa foto antológica, em que aparece com seis revólveres - um na mão direita e cinco na cintura,- e um mosquetão na mão esquerda, em posição de sentinela. Quando vi a foto, sei lá por que cargas d´água, lembrei de Zapata, ainda que não guardem qualquer semelhança física ou ideológica. Quando mudaram os tempos, ou quando ameaçou aqueles que antes protegera, ou quando saiu totalmente do controle de seus mandantes, Paco acabou caçado e morto. Quando tentamos entender como chegamos na situação atual, marcada pela criminalidade, mormente política, pelo desrespeito,pela cara-de-pau dos que nos governam, autoritários muitos, incompetentes tantos, parece que acreditamos que tudo caiu do céu. Ou, melhor dizendo, ascendeu dos infernos. Será verdade? Não teriam covardia e comodismo impedido a denúncia e o combate dos erros que erodiram a taipa da barragem de lama que agora enche nossas ruas? Já há algum tempo imaginamos gravar uma série política tendo como âncoras pessoas da região que incorporassem pelo menos cinco qualidades: conhecimento da história, respeitabilidade, distanciamento, coragem e facilidade de expressão. Não são muitos os que se habilitariam. É sempre perigoso escrever ou falar sobre pessoas ainda vivas ou cujos descendentes andam por aí. Como me dizia um historiador que admiro, a comunicação em cidade pequena não é fácil. É olho no olho, do qual escapam os escrevinhadores quando abordam biografias de gente que se foi há muito. Falar sobre Borges de Medeiros, por exemplo, é menos arriscado. Nunca soube de parentes que se tenham armado judicialmente contra textos menos generosos com sua pessoa, mesmo quando o autor menciona a adulteração de resultados eleitorais que lhe foram adversos. A História é arte capital de um povo e é lastimável que aqueles que podem registrá-la desertem da tarefa. No silêncio a verdade não morre, é certo, mas não morre porque sequer nasce.