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Sobre as paixões na comédia

Cleise Furtado Mendes *

Unitermos: catarse; drama; comédia; A experiência catártica seria um "sintoma" que


propiciada pelo drama, em suas acompanharia o riso
paixões.
diferentes formas, depende "naturalmente" (BERGSON,
sempre de um circuito afetivo- 1987, p. 12). Aceitar essa
cognitivo que põe em concepção seria renunciar à
movimento todo o repertório de minha visão do processo
Resumo imagens, conceitos, afetos e catártico como um fenômeno
Partindo de uma revisão crítica do
conceito de catarse no drama, este
valores do receptor. Em outras que não se reduz nem à
artigo direciona o estudo desse palavras: a catarse oferecida experiência puramente
fenômeno para a ótica da comicidade. pela ficção dramática é um emocional nem à aprendizagem
Questionando abordagens tradicionais processo e um acontecimento, lógico-racional; a catarse
sobre o efeito cômico, abrem-se um circuito que vai de um sujeito conecta a produção e a
perspectivas para uma investigação
das paixões que estão em movimento
a outro sujeito, de um desejo a recepção da obra, mobilizando
na recepção da comédia. outro desejo. Nesse processo, o repertório afetivo e intelectual
a personagem tem um papel do espectador. Por isso é
fundamental, pois é graças a ela importante compreender como
que se estabelece o jogo de se desenvolveu certo curso de
proximidade e distância pelo idéias que iria, pouco a pouco,
qual a representação dramática confundir a alienação de
permite ao espectador, através determinadas emoções com a
de suas máscaras e simulacros, figura de um espectador
brincar de conhecer o próprio reduzido a um puro intelecto, livre
desejo. de turbações afetivas.
No caso da comédia, "O cômico parece só
graças a certas teorias já produzir o seu abalo sob
centenárias, muitos estudiosos condição de cair na superfície
ainda hoje insistem em afastar de um espírito tranqüilo e bem
o componente passional na articulado. A indiferença é seu
explicação do seu efeito ambiente natural. O maior
catártico. Vou me referir aqui inimigo do riso é a emoção"
brevemente apenas ao mais (Idem, p.12). Aqui Bergson faz
conhecido estudo nessa eco às mais antigas
direção: a teoria da comicidade concepções psicofisiológicas
desenvolvida por Henri sobre o efeito cômico. O riso é
Bergson, que tem como ponto um tremor, um terremoto, uma
capital a idéia de que uma certa convulsão do corpo. No entanto,
anestesia afetiva é um pré- desde as primeiras observações
requisito do efeito cômico. Para filosóficas desse efeito, a
* Escritora, dramaturga e professora doutora Bergson, a insensibilidade, trepidação causada pelo riso foi
da UFBA.

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Cleise Furtado Mendes

vista justamente como Aristóteles; sua teoria aponta, perspicácia, sagacidade,


turbação ou impedimento da assim, as emoções a serem juízo, agudeza de espírito,
faculdade de pensar. Platão e evitadas na produção da engenho, sabedoria, e muito
Aristóteles, que em tudo o comicidade. mais - noção que só se
mais divergem sobre causas, No prefácio à 23º edição apreende desdobrada em
efeitos, valor e sentido do riso, de seu livro, em 1924, Bergson metáforas - como a luz súbita
concordam quanto a isso. Ao acrescentou uma lista de do entendimento, ou o corte
movimentar o diafragma, trabalhos publicados sobre o exato do raciocínio.
barreira entre a parte alta ou assunto desde 1900, sem (A palavra "corte" detona
nobre do corpo e o baixo discuti-los, porém (p. 7-8). No para mim uma imagem de wit
digestivo, sexual e entanto, entre as obras aí que está cifrada na carta da
excrementício, o riso causaria listadas, encontra-se nada Justiça, no Tarô. Ela
uma espécie de contaminação menos que o minucioso representa a deusa Atena
do "centro frênico" (centro do trabalho de Freud sobre os (Minerva) logo após seu
pensamento) por humores chistes! Esse estudo, por si só, nascimento da cabeça de
nocivos ao raciocínio e à representaria um golpe mortal Zeus, parto puro da razão, não
capacidade de julgamento. em qualquer "teoria da contaminado pelo corpo da
Então, já temos aí um insensibilidade", porque ele mãe, pelo mundo físico e
desacordo. O abalo do riso aponta exatamente os instintivo. Ela salta da cabeça
impede o sentir, ou o pensar? propósitos libidinais e de Zeus-pai, como num curto-
A afirmação de Bergson agressivos que subjazem no circuito, portando seus
parece a princípio uma jogo social da espirituosidade emblemas - a espada e a
exclusão radical: para dar e abre caminho para que se balança - e executando uma
lugar ao riso, seria necessário possa reexaminar essa dança de guerra. Em seu ofício
afastar "a emoção", ou seja, estranha negação do pathos de cortar e pesar, Atena é uma
toda e qualquer reação afetiva. da comédia. deusa guerreira, mas bem
Mas logo vemos que ele se Ainda entre os autores diferente de Ares (Marte); sua
refere a emoções bem citados no prefácio de 1924, luta nada tem a ver com a força
determinadas; na verdade, a um outro merece especial bruta, com a batalha
duas velhas conhecidas que destaque. Trata-se do crítico sangrenta; ela é uma
surgem sempre de braços inglês George Meredith, que estrategista, representa o
dados na longa história de apresenta, em 1877, uma Logos guerreiro, o debate, a
discussões sobre a catarse: a teoria da comédia segundo a argumentação, o gume da
piedade e o terror. Quando qual seria tarefa do mente afiada, a avaliação
esses afetos recebem um comediógrafo dirigir-se à imparcial - isenta dos fluidos
nome, tudo vai se tornando mente dos espectadores: o maternos -, o planejamento
claro. A teoria "científica" de pré-requisito indispensável ao objetivo, a frieza da
Bergson trabalha com a seu ofício é que ele se ponderação. Wit é o brilho
separação popular entre desenvolva no seio, ou melhor, dessa espada súbita que
sensível e inteligível, entre nas cabeças de uma corta, atravessa, penetra...)
coração e mente, mantendo sociedade "cultivada" - onde Não é difícil perceber que
uma alternância inconciliável exista um grau suficiente de essa recepção puramente
entre "rir de" e "sentir com", atividade intelectual e intelectual é um mito
vistos como movimentos igualdade entre os sexos racionalista, destinado a
excludentes de afastamento e (MEREDITH, 1885-1895). O conferir uma suposta nobreza
aproximação. Assim, o que tipo de comédia descrito por ética ao efeito cômico. Os
Bergson denomina "a Meredith tem como autores de comédia, de
emoção" são apenas os afetos característica principal uma Aristófanes ao besteirol
visados pela catarse na palavra inglesa de difícil baiano ou carioca, jamais se
tragédia, definidos desde tradução. Wit é razão, dirigiram à pura inteligência,
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Sobre as paixões na comédia

ao julgamento frio do vícios de sua comunidade, e na pelo Marquês de Sade. O


espectador. Recorrendo a um outra o público: um libertino sadiano é tão sensível
exemplo histórico: recordem- agrupamento de intelectos que à fonte do seu prazer que é
se as violentas reações se rejubilam em vingar-se das capaz de gozar apenas
provocadas pelas primeiras infrações às regras de ouvindo os gritos de uma
encenações do Tartufo (1664), convívio que todos comungam vítima, no quarto ao lado
as repetidas interdições da pacificamente. Tal ficção (BARTHES, 1979, p. 148). Não
peça, o ódio declarado dos alimenta apenas o desejo de se trata, pois, apenas de
contemporâneos ao burguês não ver as paixões em bloquear a empatia, mas de
atrevido que ousava pintar com movimento na catarse cômica, deliciar-se com o sofrimento
tal esmero a máscara da mesmo na mais witty das alheio, de obter prazer com a
hipocrisia reinante, o furor da comédias. Nessa linha de dor do escravo ou súdito do
Cabala de Devotos, a cólera interpretação, já clássica, o ritual orgíaco. Se reduzirmos
dos que o acusavam, entre complexo fenômeno catártico os castigos, sevícias,
outras coisas, de ter se reduziria a um processo flagelamentos, suplícios,
desposado a própria filha e puramente intelectivo, lacerações etc, apenas à
tente-se em seguida imaginar anulando a participação afetiva exposição ao ridículo (e nem é
esse público composto de do fruidor. Isso tornaria a preciso reduzir tanto, se
espíritos tranqüilos, de catarse, como eu a defino, pensarmos em todas as surras
"corações anestesiados" impossível. Mas uma coisa é de pauladas que recebem
(Bergson) ou de "mentes rir, outra bem diversa é aceitar infalivelmente os escravos e
cultivadas" (Meredith). A teia as razões porque se ri. Os criados da comédia antiga, e
de rancores tecida em torno do resultados da reflexão podem que perduram, com diferentes
comediógrafo por todos assustar o observador, e tanto classes de vítimas, em todo
aqueles que foram alvo da sua mais na medida em que ele tipo de farsas populares,
crítica (ou que por ela se tenha um alto conceito das incluindo o humorismo
julgavam e se reconheciam motivações humanas e, claro, televisivo, para o puro deleite
alvejados, o que é bem pior) é de suas próprias motivações. do espectador) teremos um
apenas uma ocorrência entre O que não se viu, o que processo semelhante na
muitas de tal tipo registradas não se quis ver, mesmo após comédia. Afinal, o
na história das reações do as revelações incômodas da
impedimento da piedade e do
público. psicanálise, é que a não-
terror é o exato pré-requisito
É claro que, defendendo- solidariedade em relação ao
para dar lugar a outro tipo de
se de tantos ataques, o objeto não implica que o
paixões. O que parece
comediógrafo Molière sacou a espectador tenha se
acontecer com o gênero
sua única arma (como outros transformado numa
cômico é o recurso a um alto
o fizeram em outras épocas): "inteligência pura", numa
grau de disfarce dos afetos em
a função social, ética e mesmo espécie de observador
jogo, ao contrário do trágico,
terapêutica da exposição dos impassível. Bem ao contrário,
que consiste exatamente na
vícios. E uma boa parte dos é por não entregar-se à
explicitação (e ritualização) do
críticos e teóricos acreditaram empatia e à comiseração (por
luto e do sofrimento.
nisso, eles queriam acreditar estar protegido disso pelas
nisso, e o fizeram por séculos estratégias cômicas), é por Somente afastando a
e séculos. Daí nasceu a ficção não "sofrer com" que ele pode idéia já tão sedimentada do
engraçadíssima de um circuito dar vazão a seus impulsos espectador neutro, dotado de
de produção e recepção da libidinais e agressivos. Por "inteligência pura", será
comédia, tendo numa ponta um mais chocante que possa possível compreender o
comediógrafo plenamente parecer a comparação, esse fenômeno catártico próprio da
consciente da mensagem processo nos remete à comédia - nos termos de um
corretiva que aplicará aos filosofia do libertino, exposta processo ao mesmo tempo
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Cleise Furtado Mendes

afetivo e cognitivo, de uma Como se sabe, para Freud, processo cômico; necessitam
experiência, enfim. Chega a ser os chistes ou frases espirituosas, ser afastadas, como vimos,
curiosa a vigência e a embora sejam "a mais social de emoções bem determinadas,
disseminação dessa imagem todas as funções mentais que talvez todas as integrantes do
do fruidor superior e impassível objetivam a produção de prazer" naipe da compaixão e do medo,
que seria alvo da comédia, servem sempre ao propósito mas de modo algum as que
mesmo um século depois de inconsciente de satisfazer a um estão associadas às pulsões
certos estudos que no mínimo a instinto - libidinoso ou hostil - agressivas e libidinais, para
colocariam sob suspeita. O diante de um obstáculo, seja ele falar apenas das que foram
primeiro e mais importante externo (normas e limites da devidamente reconhecidas por
deles, que citei há pouco, é o sociedade) ou interno (repressão Freud. Mas cabe lembrar que,
minucioso trabalho de Freud psíquica); ao contornar tais bem antes dos afetos revelados
sobre os chistes. obstáculos, os chistes nesse estudo sobre os chistes,
conseguem extrair prazer de existe uma longa trajetória de
Por sua importância para a
fontes que de outro modo discussões no pensamento
dramaturgia em geral, e para a
permaneceriam interditadas. O ocidental sobre a comicidade,
comédia em particular, o estudo
homem civilizado, incapaz de rir quando se trata de compreender
de Freud seria suficiente para
de uma obscenidade que lhe esse fenômeno dentro do
deslocar de seu nicho a
pareceria repugnante, a ela tem espectro das paixões humanas.
resistente teoria da
acesso através de todo um A diferença entre tragédia e
insensibilidade. Sua
repertório de chistes aceitos comédia, para Aristóteles,
investigação sobre os
socialmente. O mesmo se daria aponta exclusivamente para o
propósitos dos chistes
com os impulsos hostis, que ethos (aqui no sentido de
representa, para a teoria e a
estão sujeitos à repressão relativo às personagens):
prática do drama, e em
desde a infância. Ao renunciar representação de homens
especial para o estudo da
à expressão da hostilidade superiores/inferiores ao que são
comédia e seus efeitos sobre o através da ação, desenvolve-se
espectador, muito mais do que na realidade (ARISTÓTELES,
uma técnica substituta: tornar o Poética, cap. II). A superioridade
a apresentação detalhada de inimigo inferior, desprezível,
um rico repertório de técnicas. ou inferioridade com que vemos
ridículo, e isso diante de uma e somos vistos, ou as
Freud cuidou de modo terceira pessoa, uma
exaustivo, como nenhum outro assimetrias que geram
testemunha que obtém prazer identidade e diferença é
autor antes dele, de um tipo pelo riso. Transforma-se assim
específico de comicidade verbal questão sempre presente, que
o desprazer do contato com repercute na ética, na poética,
que sempre foi justamente a fatos e pessoas desagradáveis
parte do cômico considerada na retórica, na política, e parece
num pretexto social de diversão, estar aí a chave que regula os
"nobre" pela maioria de críticos como no exemplo de alguém
e teóricos. E por quê? Porque fluxos passionais.
que se refere à dolorosa
supostamente o chiste ou companhia de um chato com o Ao considerar que a
"espírito" se dirigiria ao intelecto saboroso comentário: "Viajei peripécia - inversão no curso
puro, a mentes refinadas, com X tête-a-bête" (FREUD, dos acontecimentos - só pode
exigindo platéia culta, capaz de 1977, p. 39). Se aceitarmos a ocorrer no trânsito da felicidade
anestesiar, ainda que ambiguidade constitutiva do à infelicidade, e vice-versa,
momentaneamente, suas efeito espirituoso - a intenção Aristóteles adverte que não
emoções frente aos pobres- consciente de fazer rir servindo devem ser representados
diabos arrastados em cena pelo a um propósito inconsciente de "homens muito bons que
ridículo. E é justo nesse ponto agressão ou desnudamento - passem da boa para a má
que o estudo freudiano destrói depois do estudo de Freud, é fortuna" - pois isso, além de não
as premissas da teoria da impossível afirmar que "as provocar terror e piedade,
insensibilidade. emoções" estão ausentes do suscitaria "repugnância" e nem

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Sobre as paixões na comédia

"homens muito maus que certos enredos consagrados e positivas: a inveja. Apesar de
passem da má para a boa ver que esses perigos ou raramente apontada nas teorias
fortuna" -, pois "não há coisa ameaças não são, na maioria do cômico, sua presença foi
menos trágica", além de não ser das vezes, desprezíveis. Perder denunciada no que parece ser
"conforme aos sentimentos a jovem amada para o rival velho a mais antiga abordagem
humanos" (Idem, cap. XIII, p.81). e rico, quando não para o filosófica do riso e da
Quando, porém, nos deslocamos próprio pai, como em várias comicidade que chegou até nós:
da tragédia para o drama comédias latinas; ser punido por o diálogo Filebo, de Platão. Na
romântico e daí para o leis injustas e cruéis, como em verdade, o assunto desse
melodrama, a indignação é um Medida por Medida; dar a vida diálogo não é o cômico, e sim
afeto que recobra sua em pagamento de uma dívida, uma crítica às idéias hedonistas,
importância na economia como em O Mercador de mas nesse contexto vemos
catártica, desde que Veneza; ser privado dos bens, Sócrates apontar aquele que ri
convenientemente dirigido às da respeitabilidade e do amor como alguém turbado por uma
personagens negativas ou vilões da família, como em Tartufo; "afecção mista", que reúne
em geral. Na comédia há uma resignar-se a uma existência malícia e inveja. Ele extrai seu
tendência de amenizar a miserável, sob o arbítrio dos prazer dos infortúnios de
indignação, transformando-a poderosos, como em O Auto da personagens que ignoram as
numa antipatia para com as Compadecida seriam próprias falhas, já que o vício
personagens obstrutoras perspectivas dolorosas, se o cômico é invisível para o seu
(pedantes, avarentos, autoritários, perigo não se dissolvesse como portador. Mas, além de não
gananciosos, intolerantes e um sonho mau, graças a um cientes de si mesmas, Platão
obsessivos em geral que detêm golpe de sorte, a uma ajuda adverte que tais personagens
algum poder). A piedade, por sua providencial ou, mais devem também ser fracas no
vez, é transformada em simpatia frequentemente, ao uso da sentido de destituídas de poder,
para com as personagens astúcia. Quando usada como porque diante da ignorância e
facilitadoras. arma contra algum tipo de força insensatez dos poderosos
Para manter a mesma aterradora ou obstrutora, a sentiríamos ódio ou temor,
referência nesta exploração dos astúcia parece conferir um afetos que, como já sabemos,
afetos associados ao efeito sentimento de triunfo que afastam a possibilidade do riso
cômico, lembro que na Retórica, pertence à escala afetiva da (Cf. PLATÃO, Diálogos IV, p.218).
confiança, e da auto-confiança, Se é aceitável que a própria
assim como à piedade opõe-se
mas em grau superlativo, e que fraqueza da personagem
a indignação, a paixão oposta
podemos nomear como júbilo. cômica faça com que ela seja
ao medo é a confiança
Esse riso de vitória sobre um vista com simpatia, não é
(ARISTÓTELES, Retórica das
perigo iminente é quase um igualmente claro porque ela
Paixões, Livro II, cap.5). No
ponto pacífico nos estudos deva ser invejada. Mas Platão
desenvolvimento de uma ação
sobre a comicidade, associado aponta a inveja como um
cômica, o que importa é a
ao sentimento de autoconfiança importante componente afetivo
confiança (ou segurança) que se
e superioridade que infunde no do "estado de alma" em que nos
produz exatamente porque um
espectador. colocam as comédias. Como
perigo cresceu a ponto de ser
temido para depois ser vencido, Não há muita dificuldade em entender isso? De que modo a
ou afastado. Essa é a função do perceber a participação do júbilo imagem de seres fracos, que
suspense cômico. E para quem e da simpatia no processo desconhecem seus próprios
ache que um mal ou um dano catártico da comédia. O mesmo vícios, despertaria em nós o
dentro do universo cômico não não ocorre com uma paixão afeto invejoso? Se a suprema lei
é passível de suscitar efetivo menos confessável, que se do funcionamento psíquico é
temor, seria suficiente imaginar insinua como um tempero "evitar o desprazer", de que
um diferente desenlace para amargo no prato das emoções modo encarar a vantagem

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Cleise Furtado Mendes

estratégica de uma emoção tão Dentro de uma estrutura de propor algo mais que este
vergonhosa, inconfessável, papéis muito persistente, que magro esboço de possíveis
dolorosa? A inveja seria emoção vem da Comédia Nova latina até trilhas para a investigação das
aparentada à cobiça e à as atuais sitcoms da televisão, paixões presentes na catarse
admiração. Mas, por que eu ela é freqüentemente o cômica. Mas reconhecer essa
sentiria inveja de uma representante de uma "sociedade presença talvez seja o primeiro
personagem cômica? O que de velhos" (seja por idade, passo para isso.
haveria a invejar nesse herói posição de poder ou culto de
risível, que ao expor o seu comportamentos conservadores).
ridículo, o nosso ridículo, Nós vemos esse adulto infantil
funciona como signo da finitude, espernear contra a realidade e
do limite, da menor dimensão do agir de modo simultaneamente
humano? O que se poderia livre e ridículo, e nos perguntamos
cobiçar nesse anti-herói que não "por que ele acha que pode fazer
se conhece minimamente, que isso"? A platéia adulta que ri
de nada sabe, nem mesmo que inveja essa loucura - não quer
é ridículo? corrigi-la ou curá-la pelo riso,
Acontece que aquilo mesmo como pensam Meredith e
que torna esse herói irrisório - a Bergson, e sim fruí-la no espaço
inconsciência de seu pedantismo, de liberdade delimitada
avareza, burrice etc - é o que socialmente pela comédia.
contribui para transformá-lo numa Assim, se todas as paixões têm
criança aos nossos olhos, livre origem nas duas grandes
para agir fora dos rigores de um vertentes pulsionais de vida e
padrão adulto de comportamento. morte, a personagem cômica
Ao atuar de modo louco, absurdo, parece funcionar (tal qual a
extravagante, ao dar-se o direito trágica) como a vítima de um
de dizer bobagens, a sacrifício ritual, amada e odiada,
personagem cômica nos dá a fonte de simpatia e júbilo tanto
impressão de manter intacto quanto alvo de pulsões erótico-
aquele "patrimônio lúdico" da agressivas: um pharmakós com
infância a que Freud se refere e máscara de bufão.
que o espectador sente ter Parece, pois, haver um ponto
perdido em nome das exigências de convergência entre o mais
sociais de coerência e antigo escrito a ocupar-se do
seriedade. Realmente, de certo cômico (o Filebo, de Platão) e a
modo, toda personagem cômica psicanálise do século XX. Sejam
é uma criança grande: alguém "afecções da alma" ou
que acredita ser maior, mais forte,
"impulsos reprimidos", as
mais belo, mais sábio do que paixões desencadeadas pelo
realmente é - e age como se o efeito cômico podem vir de
fosse. Sganarello, vestindo tendências tão opostas -
armadura para duelar com um permitindo o jogo entre
suposto rival, em O Traído proximidade e distância,
Imaginário, tem algo do menino atração e repulsão - quanto
fantasiado de super-herói. provêm o terror e a piedade. No
Ao mesmo tempo, a atual estágio dos estudos de
personagem cômica, recepção no drama, e na
obviamente, não é uma criança. comédia em particular, é difícil

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REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução e comentários de


Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966.
ARISTÓTELES. Retórica das Paixões. Introdução, notas e tradução do grego
Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Trad. de Maria de Santa Cruz, Lisboa:
Edições 70, 1979.
BERGSON, Henri. O Riso. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
FREUD, Sigmund. Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente. Trad.
Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
MEREDITH, George. An Essay on Comedy. In: Collected Works. London:
Chapman & Hall, 1885-1895.
PLATÃO. Filebo. In: Diálogos IV. Introd, comentários e notas de Emily Chambry.
Portugal: Publicações Europa-América, 1999.

About passions in comedy


Keywords: catharsis; drama;
comedy; passions.
Abstract
Starting from a critical review of the
concept of dramatic catharsis, this
work studies this phenomenon from
the point of view of comedy. To
accomplish this aim, it analyses
some traditional approaches of
comic effects, giving place for a
research about the passions that are
involved in comedy's experience.

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