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III.

Desenvolvimento dos conteúdos programáticos

1ª PARTE - ELEMENTOS DE SOCIOLOGIA DO DIREITO

1.Perspetivas da sociologia do direito


1
1.1 A sociologia do direito

Ainda hoje o estudo do direito é associado à atividade das faculdades de direito e


ao conhecimento por elas desenvolvido a seu respeito. O direito é também um elemento
central e estruturador da vida em sociedade, envolvendo os membros de uma
comunidade ou envolvendo os membros de comunidades nacionais e internacionais,
regulando e controlando modos de orientação da ação, expectativas sociais e modelos
institucionais. Paralelamente, tem sido objeto de interesse por parte das ciências sociais e
da teoria social, na medida em que, como sugeriu Émile Durkheim, pode ser utilizado
como indicador sociológico da vida em sociedade. A sociologia do direito enquanto
disciplina depositária deste interesse das ciências sociais pelo direito nas suas diferentes
escolas e perspetivas de análise, sempre tropeçou na relação entre sociedade, política e
direito enquanto elementos constitutivos da modernidade político-jurídica. Prescindindo
das clássicas confrontações, onde ao formalismo, dogmatismo e legalismo se
contrapuseram à abordagem da sociologia do direito enquanto ciência social, permanece
atual o designado gap problem na relação direito, sociedade de que nos falavam Alan
Hunt e David Nelken nos 1980 e 1990. A utilização do passado da sociologia do direito ou
do seu presente é mais do que uma mera contraposição temporal, na medida em que ela
permanece como uma perspetiva onde a pluralidade e conflitualidade paradigmática
continuam a inspirar, de modos diferenciados, aquilo que, afinal de contas, é o mais
importante: a interpretação sociojurídica da realidade social.
Mas, quando falamos de sociologia do direito falamos exatamente de quê?
Em obra recentemente publicada, Sociologia do Direito e da Justiça, da autoria de
Thierry Delpeuch, Laurence Dumoulin e Claire de Galembert (2014: 9), os autores referem
que a disciplina é constituída por duas dualidades explícitas - o direito e a sociedade, o
conhecimento jurídico e o conhecimento sociológico – encontrando em diferentes
momentos e em diferentes lugares designações como as de “law and society”, “law in
action”, “law in context”, “droit et société”, “sociolegal studies”, “critical legal studies”,
“análise sociológica do direito”, “direito na sociedade”, “direito em sociedade”, “estudos 2
sociojurídicos” etc. A semântica das designações evidencia uma das características
fundamentais desta área do conhecimento, a qual repousa no permanente estado de
tensão existente entre os dois pólos das dualidades em causa. Colocada no seio de forças
centrípetas, coadjuvadas pela tradição e identidade disciplinares da sociologia e do
direito, a institucionalização do conhecimento sociojurídico é um processo em aberto.
Permanece, por isso, como bem recorda Wanda Capeller (2015: 12) uma disciplina
bicéfala, onde a sociologia e o direito se encaram “comme des chiens de faïence” com
olhos mutualmente suspiciosos, ou ainda invocando Commaille e Perrin (1985) como uma
“disciplina Janus” de uma só cabeça e duas faces opostas. Assim, se por um lado a
sociologia do direito pode ser considerada uma sub-disciplina da sociologia (Guibentif,
2003), por outro, pode ser considerada como uma ciência auxiliar, “simples servidora do
direito” (Arnaud apud Capeller, 2015: 12).
Acresce, ainda, o facto de estudantes e investigadores vindos das ciências sociais e
do direito deterem saberes especializados e compartimentados pouco favoráveis ao
lançamento das bases facilitadoras de uma partilha de saberes transdisciplinares e
interdisciplinares. De tudo isto resulta a propensão para um certo viés disciplinar patente
também na circunstância da ciência jurídica se ocupar da validade formal do direito,
enquanto a sociologia do direito atende à validade empírica ou eficácia social do direito.
Esta falta de comunicação entre a sociologia e o direito e entre uma perspetiva interna e
uma perspetiva externa, deu lugar a duas sociologias do direito, a “sociologia do direito
dos juristas” e a “sociologia do direito dos sociólogos”. No caso desta última, acabou por
se desenvolver uma “sociologia das instituições jurídicas” ou da “eficácia do direito”
preocupada em estudar a eficácia das normas e das instituições jurídicas, os
comportamentos dos seus destinatários, das organizações sociais – os “factos do direito”.
Afastou-se, assim, da abordagem dos problemas estruturais e de funcionamento internos
dos próprios sistemas jurídicos, em conexão com os seus contextos culturais, públicos e
económicos.
Somos assim conduzidos a uma tensão organizada em torno de dois grandes
entendimentos da relação entre a sociedade e o direito. O primeiro deles assenta numa 3
visão causal que tende a colocar o problema da relação direito-sociedade em termos de
efetividade ou de influências recíprocas entre o jurídico e o social. Estar-se-á perante uma
agregação externa entre a lógica sociológica e a lógica jurídica, de onde emergem
diferentes dicotomias e uma análise orientada para o grau de compatibilização ou de
autonomia entre o direito e a sociedade. O segundo considera que o direito está imerso
no social e no político, sendo produto de uma construção social, política, institucional e
simbólica. O direito não é, por isso, neutro por estar profundamente inscrito no social e no
político, sendo entendido como coconstitutivo da realidade social e não como resultado
de uma esfera autónoma com as suas convenções próprias.
Na exploração das respostas dadas a esta tensão entre a sociologia e o direito nos
termos acima utilizados identifico os seguintes contributos. O de Roger Cotterrell para
quem a sociologia do direito é autónoma, não a vendo nem como subdisciplina da
sociologia, nem como área dos estudos sociojurídicos, mas sim, como área de investigação
com uma ampla tradição das ciências sociais. Roger Cotterrell perspetiva a sociologia do
direito, sem referência à sociologia mainstream, como “o estudo sistemático,
teoricamente fundamentado, empiricamente analisado do direito como um conjunto de
práticas sociais ou como fator ou área de experiência social” (apud Banakar e Travers,
2013: 3). Este autor entende que a linha entre o direito e a sociedade, ou seja, entre a
interpretação legal e a interpretação sociológica se tornou indefinida, daí afirmar que o
direito constitui a sociedade, em certos aspectos, e a compreensão sociológica informa o
direito, sob determinadas formas. No seguimento desta ideia, Cotterrell argumenta que o
termo “sociologia do direito” permanece útil enquanto identificador de um campo de
pesquisa vital de processos legais e um importante foco de autoidentificação sendo, no
entanto, pouco satisfatório quando utilizado para referir o estudo sociológico das ideias
legais. David Nelken (1998) discorda da perspetiva de Roger Cotterrell acima apresentada,
insistindo na centralidade da sociologia do direito para a educação legal e a prática legal.
Nelken (1998: 412) está convencido que a sociologia do direito necessita de abordar a
teoria e a da doutrina jurídica e não se limitar a fornecer uma “sociologia dos tribunais e
dos advogados”, usando a expressão “paradigmas em mudança” para avançar para novos 4
desenvolvimentos capazes de dirigir novamente estudos acerca do direito e da sociedade.
Apesar das suas diferenças, quer Cotterrell, quer Nelken, partilham o entendimento de
que os discursos jurídicos e sociológicos necessitam de ser confrontados com recurso à
noção de reflexividade visando a compreensão do relacionamento entre o direito e a
sociologia. Como refere Nelken se a sociologia do direito estiver “presa” à sociologia
enquanto disciplina, será necessário compreender como é que a sua reflexividade e a
reflexividade do direito se relacionam (Nelken, 1998: 417).
Pierre Guibentif, por seu lado, defende que uma das razões pela qual devemos
entender a sociologia do direito como subdisciplina da sociologia assenta na sua dimensão
estratégica e organizacional de promover o estabelecimento de uma ponte entre
sociólogos e profissionais do direito. Tal demonstra um compromisso claro face a uma
abordagem sociológica ao direito e, por isso, reconhece a importância de uma área social
que integre as profissões jurídicas e instituições (Guibentif, 2003: 179), argumento que o
autor irá reiterar mais tarde (Guibentif, 2012, 2013). Para além da dimensão simbólica do
reconhecimento de uma área social, a diferenciação da sociologia do direito pode ajudar a
manter relações necessárias em termos de organização para a orientação da investigação
sociojurídica, a qual requer um acesso fácil tanto às pessoas como às instituições
envolvidas na prática do direito (Guibentif, 2003: 179). Deste modo, o autor considera o
estabelecimento da sociologia do direito, enquanto subdisciplina da sociologia, como
forma de integrar a observação do direito em ação na sociologia, sem ignorar as
necessidades metodológicas e organizacionais de investigação e de debate nesta área. É
simultaneamente uma forma de reconhecer as necessidades particulares dos “clientes
especiais” da sociologia – as instituições e profissões jurídicas, académicos que trabalham
sobre questões jurídicas – evitando qualquer restrição de acesso a materiais tal como a
outros que recorrem à sociologia (idem).
Na perspetiva de Guibentif (2003), a referência à relação entre sociólogos e
profissionais do direito conduz-nos a outro possível contributo da sociologia do direito,
nomeadamente, a outros ramos da sociologia. Esta relação, nem sempre fácil, torna-se
num desafio saudável, obrigando os sociólogos a reavaliar a legitimidade do seu esforço 5
cognitivo. Segundo o autor, a resposta ao questionamento sobre o valor da sociologia é a
de que esta disciplina não pretende substituir o entendimento de cada um acerca das
situações nas quais operam, mas sim, fornecer uma perspetiva adicional ou
complementar. O que justifica a sociologia é a sua visão adicional, no sentido de fornecer
às pessoas um quadro mais rico acerca da sua realidade, dando-lhes, assim, igualmente,
instrumentos cognitivos adicionais com os quais podem determinar as suas ações
(Guibentif, 2003: 180).
Tendo por pano de fundo as propostas anteriores, a opção seguida neste texto é a
de aceitar como notas caracterizadoras da sociologia do direito a sua fragmentação, o
pluralismo teórico, o seu estatuto híbrido perante a sociologia e o direito e, finalmente, o
seu entendimento como sub-disciplina da sociologia. 1 De acordo com Reza Banakar e
Max Travers (2013: 2) a sociologia do direito, tanto como disciplina académica como
campo de investigação interdisciplinar, integra uma série de perspetivas e abordagens que
à primeira vista parecem incompatíveis quando aplicadas ao estudo do direito e da
sociedade. Contudo, é este mesmo caráter disperso que é valorizado pelos que encaram a

1
Wanda Capeller (2015: 19) retrata de uma forma certeira as tensões existentes entre a sociologia
e o direito ao referir que: “Historicamente, a sociologia do direito inspirou-se da sociologia nascente, e
construiu-se em reação à dogmática jurídica, procurando situar-se em relação aos saberes jurídicos que lhe
eram próximos, como a filosofia do direito e a teoria do direito, e igualmente em relação às demais ciências
sociais. Percebida como uma disciplina ‘carrefour’ (…), um ‘ponto de encontro’ entre vários saberes, seus
esforços foram inúteis para minimizar as desconfianças existentes entre o direito, a sociologia e demais
ciências sociais. Os juristas veem a sociologia como uma 'empresa de subversão', e os sociólogos veem o
direito como um instrumento do poder, como um veículo da dominação social (…). Por isso a sociologia do
direito procura identificar de que maneira o campo jurídico posiciona-se em relação ao campo do poder (…),
e desvendar as ligações, às vezes perigosas, entre o direito, o poder e o Estado (…). Essas perspetivas têm
inspirado recentemente alguns sociólogos franceses do direito que desenvolvem uma sociologia política do
sociologia do direito como uma fonte de pluralismo teórico e inovação metodológica. 2

Os mesmos autores advogam que um entrosamento com os debates centrais da teoria


social em geral, mas com preocupações teóricas da sociologia mainstream em particular, é
essencial para o desenvolvimento de todos os estudos sociais científicos do direito,
independentemente do modo como a esfera do direito e a esfera do social são
conceptualizadas (Banakar e Travers, 2013: 3). Em sentido próximo, para Mathieu Deflem
(2008: 2-3), a sociologia do direito dá um contributo singular ao estudo do direito que é 6
sociológico, razão pela qual merece um lugar entre as outras áreas da sociologia, bem
como entre outras disciplinas dos estudos sociojurídicos. A sociologia do direito utiliza
teorias sociais e aplica métodos das ciências sociais ao estudo do direito, do
comportamento jurídico e das instituições jurídicas, de forma a descrever e analisar os
fenómenos jurídicos no seu contexto social, cultural e histórico. Por esta razão, Mathieu
Deflem afirma que a sociologia do direito será “sempre e necessariamente (...) disciplina
que pertence à sociologia”. 3

Apesar das dificuldades anteriormente mencionadas, há que realçar o otimismo


associado ao desenvolvimento e consolidação de uma sociologia do direito cuja inspiração
emerge dos contributos dados desde os clássicos da sociologia do direito até aos autores e
investigadores contemporâneos para quem a centralidade do direito nas sociedades
atuais vai acompanhada pela crescente afirmação desta área do conhecimento. É neste
sentido que invoco a proposta que assinala os denominadores comuns entre sociedade e
direito, e entre sociologia e direito, formulada por Delpeuch, Dumoulin e Galembert
(2014: 10)
“Enquanto a sociologia vê no direito uma das chaves para a
compreensão do facto social, os juristas, por seu lado, reconhecem
que o direito é um fenómeno demasiado enraizado na história e na
sociedade para ser entregue à pura abstração jurídica. Uns e

direito (…), ou ainda o conceito de governança que aplicado à diferentes práticas podem suplantar o poder
dos governantes (…)”.
2
Caráter que é criticado pelos que o veem como causa de fragmentação teórica, ecletismo e
descontinuidade entre os projetos de investigação.
3
Embora outros autores a vejam como um campo de investigação pressionado entre as tensões
disciplinares do direito e da sociologia (Deflem apud Banakar e Travers, 2013: 3).
outros encontram-se, pois, num ainda mais pequeno denominador
comum: a natureza eminentemente social do direito. Como o
direito imergiu na sociedade, a sua compreensão e explicação não
podem fazer a gestão da tomada em consideração das logicas
sociais, históricas, culturais, politicas e económicas das quais o
direito é o produto, o reflexo e, ao mesmo tempo, um dos seus
componentes. Porque o direito está imerso na sociedade, as suas
compreensão e explicação não conseguem fazer a necessária
análise das lógicas sociais, históricas, culturais, politicas e 7
económicas de que o próprio direito é o produto, o reflexo, ao
mesmo tempo que um dos constituintes. Porque o direito vivifica o
social, a compreensão da sociedade, do poder político, da
economia e das suas transformações podem dificilmente
transformar num beco sem saída o modo como são modelados por
esse mesmo direito. A mínima, a sociologia do direito pode, pois,
ser definida como uma tarefa de conhecimento que tem por
objetivo explicar as relações recíprocas entre direito e sociedade.
No entanto, o acordo limita-se ao esboço desta perspetiva muito
geral.”

1.2 Construindo pontes entre a sociologia e o direito

Nada do que é humano é, apriori, estranho ao direito encontrando-se em qualquer


atividade social, de forma mais ou menos direta, um quadro jurídico que nela esteja
envolvido (cf. Assier-Andrieu, 1996: 29). Este entendimento de Louis Assier-Andrieu é
sugestivo a propósito das leituras sociológicas do direito e das leituras jurídicas do social
que emanam da abordagem da sociologia do direito. O direito e a sociedade podem ser
representados como as “duas lâminas de uma tesoura”, não sendo imaginável uma sem a
outra para que possam executar o seu trabalho (cf. Bouretz apud Assier-Andrieu, 1996:
31). Imagem sugestiva quando somos colocados perante as dificuldades de analisar a
relação direito-sociedade, sem encetar a via de reduzir um dos termos ao outro.
As possibilidades de redução existem e confirmam-se nas teses que a história da
sociologia do direito regista. Recorde-se o debate entre durkheimianos e marxistas, em
que os primeiros sustentam uma conceção do direito como indicador privilegiado dos
padrões de solidariedade social, garante da composição harmoniosa dos conflitos por via
da qual se maximiza a integração social e se realiza o bem comum, e os segundos que
sustentam uma conceção do direito como expressão última de interesses de classe, como
instrumento de dominação económica e política que, por via da sua forma enunciativa
(geral e abstrata), opera a transformação ideológica dos interesses particularísticos da
classe dominante em interesse coletivo e universal (cf. Santos, 1986: 12-13). Tenha-se
também presente a contraposição entre os que afirmam a autonomia absoluta do direito 8
perante a sociedade, como sucede com a teoria pura do direito de Hans-Kelsen ou,
inversamente, os que sujeitam essa autonomia à sociedade como faz Pasukanis e parte da
tradição marxista (cf. Assier-Andrieu, 1996: 31). A mesma oposição está presente entre o
positivismo e naturalismo sociológicos, que reduzem toda a realidade social às suas
exteriorizações nos comportamentos, instituições e organizações (Saint-Simon e Comte), e
a escola analítica e positivismo jurídico onde impera o normativismo logicista e o recurso à
oposição ser/dever ser do mencionado Kelsen com a sua “norma fundamental”
(Grundnorm), e Austin com a sua teoria dos precedentes dos tribunais do Estado, de que
resulta que todo o direito é um direito estatal. Pode, ainda, referir-se a contraposição
entre o entendimento do direito como variável dependente (que deve assimilar os valores
sociais e padrões de conduta espontânea e paulatinamente constituídos na sociedade) e o
direito como variável independente (promotor de mudança social tanto no domínio
material como no da cultura e das mentalidades).
De acordo com Pierre Guibentif (1992: 20), a oposição direito-sociedade pode
também ser perspetivada enquanto preocupação de captar as manifestações de
indiferença entre os dois termos. É assim que noções como as de inefetividade, remetem
para uma medida de indiferença da sociedade face ao direito; de legislação simbólica,
enquanto fenómeno de indiferença da lei face aos aspetos da vida social que esta mesma
lei pretende regimentar; de pluralismo jurídico, enquanto referência a normas que não
pertencem ao direito oficial constituindo uma explicação, entre outras, da indiferença da
sociedade face ao direito; e de direito reflexivo e direito autopoiético, que consideram o
direito como um sistema social com lógica própria que não pode interagir diretamente
com os outros sistemas sociais, dado estes obedecerem a outras lógicas.
A redução, ou autonomia, entre direito e sociedade constituem os dois pólos
extremos entre os quais se distribuem um vasto conjunto de posições intermédias.
Segundo Louis Assier-Andrieu (1996: 31), elas podem ser identificadas de acordo com a
resposta que dão a duas questões fundamentais: “1º) Até que ponto o direito constitui
uma razão distinta da ordem social? 2º) Como se traça uma distinção entre o que é da 9
ordem jurídica e o fluxo das relações humanas?”
Como mencionado anteriormente, as articulações entre o direito e a sociedade
nasceram marcadas pela confrontação entre a sociologia do direito e a ciência jurídica,
reagindo os estudos sociojurídicos ao formalismo, dogmatismo e legalismo que eram as
características dominantes no princípio do século XX (Arnaud e Dulce, 1996: 18-19). 4 Tal
circunstância conduziu, nos três registos básicos do conhecimento sociojurídico – registo
de investigação, registo de organização (ou sistemático) e registo de transmissão (Ferreira
e Pedroso, 1999: 337) –, à existência de um problema matricial: o da relação difícil e
ambivalente, ou hiato, entre o direito e as ciências sociais (Hunt, 1997), designado na
sociologia do direito como gap problem (Nelken, 1981). A tensão a que esse problema deu
origem esteve (e, para alguns, continuará a estar) na base de um conjunto de dicotomias e
dogmas de que se dão sinopticamente como exemplo: o confronto entre uma perspetiva
interna e uma perspetiva externa do direito; a oposição entre uma sociologia jurídica dos
juristas e uma sociologia jurídica dos sociólogos; e a autodefinição do sociólogo do direito
como observador acrítico e objetivo que só descreve os fatos do direito.
A Figura 2 apresenta os pressupostos básicos da estrutura causal diádica,
ilustrativa das tensões entre perspetiva interna e externa do direito, entre uma sociologia
do direito dos juristas e uma sociologia do direito dos sociólogos e, ainda, da conceção de
uma teoria pura do direito distinto e autónomo da sociedade – efeito Kelsen – e da
conceção de uma teoria pura da sociologia do direito dependente e inseparável da

4
Para uma análise histórica das tradições fundadoras da sociologia do direito, consultar, entre
outros, os seguintes trabalhos: Hunt (1978), Diaz (1984), Treves (1988), Santos (1994), Arnaud e Dulce
sociedade – efeito Black –, que têm constrangido o debate teórico na sociologia do direito,
constituindo-se como obstáculos epistemológicos. 5,6 Por outro lado, as dicotomias
Estado e sociedade civil, público e privado, produzem um efeito semelhante, como
demonstram as análises de Boaventura de Sousa Santos (2009), de Margaret Somers
(Somers, 2008: 176-177) e de Robert Alford e Roger Friedland (1990: 15-58). Os principais
modelos teóricos da sociologia do direito aqui em causa estruturam-se em torno de dois
grandes paradigmas, o do “impacto do direito na sociedade e o do impacto da sociedade 10
no direito” (Santos, 2000: 185).

Figura 1: Estrutura causal diádica sociedade-direito

Sociedade Direito
Estrutura social Constituição
Interações sociais Leis
Direito inseparável da Direito autónomo face à sociedade
Sociedade
n n

Fonte: Autor

Na Figura 3, para além de se ilustrar o gap problem, identificam-se igualmente


algumas das possibilidades analíticas de reformulação do mesmo, ultrapassando-se a
simples contraposição entre direito e sociedade.

(1996) e Ost (2001). Uma interessante abordagem histórica da disciplina encontra-se em Andrini e Arnaud
(1995).
5
Ainda que o tema da “autonomia do direito” permaneça incontornável, pelo menos como critério
de classificação e organização do pensamento sociojurídico (Nelken, 1988), e ainda que a partir dele se
possam estabelecer inúmeras análises das correspondências ou indiferenças entre o direito e a sociedade
(Guibentif, 1992; Santos, 2003), os modelos de análise sociojurídicos mais interessantes são os que
questionam a raiz da distinção direito/sociedade (Santos, 1986). Ver, ainda, a este propósito, Arnaud e Dulce
(1996: 11-54) e Hunt (1983: 19-46).
6
Hans Kelsen e Donald Black representam, respetivamente, os casos extremos de polarização
entre os que defendem a autonomia do direito face à sociedade e os que defendem a sociologização dos
estudos jurídicos.
Figura 2: Direito/Sociedade

11

Fonte: Autor

Ao analisar as conceções de direito, de sociedade e das relações que entre elas se


estabelecem, considera-se que os modelos de análise sociojurídicos mais adequados ao
estudo da realidade social são os que questionam a raiz da distinção direito/sociedade no
âmbito da «sociologia do direito renovada» (Arnaud e Dulce, 1996). 7 O afastamento das
discussões em torno do que poderá ser considerado o objeto de análise “próprio” de uma
sociologia do direito, permite uma abordagem dos fenómenos sociojurídicos na sua
totalidade e nas suas interações com diferentes fatores – sociais, políticos, culturais,
económicos – e “espaços estruturais” – cidadania, doméstico, mercado, comunidade,
mundialidade e produção (Santos, 2000). 8 Concebe-se esta perspetiva como um “projeto

7
Não se deve deixar de atender à noção de “crise da sociologia” que tem sido utilizada de forma
abundante desde que Alvin Gouldner (1972) dela fez uso nos debates sobre a reestruturação do
pensamento social. Um levantamento dos usos do conceito pode encontrar-se, entre outros, em Ferreira
(1996). Também o conceito de “reestruturação do pensamento político e social” passou a fazer parte das
análises sociológicas da sociologia desde que Bernstein (1976) o tipificou.
8
A alusão à noção de “espaços estruturais”, desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos,
afasta-nos de perspetivas como a teoria sistémica de Niklas Luhmann e do seu excesso de “autorreferência”
no estudo dos fenómenos sociojurídicos, não obstante autores como David Nelken (1988: 212) detetarem
científico interdisciplinar” (Arnaud e Dulce, 1996) que se constitui a partir de temas,
surgindo o pluralismo metodológico como crítica ao paradigma dominante e à lógica
positivista. 9

Outra forma de captar as dinâmicas da relação direito-sociedade é-nos dada por


Hakan Hydén (2008). Utilizando heuristicamente a dupla perspetiva interna e externa, o
autor procura captar as tensões dinâmicas que são criadas por cada uma das perspetivas,
as quais se complementam reciprocamente. Coloca, assim, em diálogo, a perspetiva 12
interna, através da qual se analisam as premissas das decisões legais e o modo como os
atos legais e os atores jurídicos podem ser organizados e sistematizados, com a perspetiva
externa através da qual o sistema legal pode ser observado do exterior. Como refere, uma
forma de distinguir estas duas perspetivas traduz-se na reflexão acerca do conhecimento
no direito e na reflexão acerca do conhecimento sobre o direito. Admitindo que as
perspetivas externas acerca do direito, como é o caso da sociologia do direito, não deve
procurar competir com visões internas como a da dogmática jurídica (idem). Hydén
salienta que as dimensões internas e externas na análise do direito deixam perceber
diferentes dimensões do direito. Na Figura 4, apresentam-se esquematicamente as duas
perspetivas sobre o direito.

algumas semelhanças entre elas. A teoria do “campo jurídico”, de Pierre Bourdieu (1989), a abordagem
sociojurídica entendida como “campo aberto” ou como “campo jurídico vulgar”, defendida por André-Jean
Arnaud e Maria José Dulce (1996: 171-174), e a noção de modes of governance, apresentada por Alan Hunt
(1997), dialogam melhor com a noção de “espaços estruturais”.
9
Quanto aos debates, temas e problemas que refletem as preocupações desta aproximação ao
fenómeno jurídico são de destacar: o nascimento e o desaparecimento das normas jurídicas; a
implementação da norma jurídica; os mecanismos formais e informais de resolução dos conflitos; as
profissões jurídicas; as políticas públicas; os direitos humanos, nas suas mais variadas expressões; a
administração da justiça, enquanto instituição política e organização profissional; o acesso ao direito e à
justiça; a litigiosidade social e os mecanismos da sua resolução existentes na sociedade. A globalização, o
pluralismo, o alternativo e o informal, a multiplicidade dos centros de decisão jurídica, e a reestruturação do
processo de produção da norma jurídica, são outros tantos exemplos dos eixos em torno dos quais se
desenvolve esta perspetiva de análise dos fenómenos sociojurídicos (Arnaud e Dulce, 1996; Santos, 1994).
Figura 3: “Duas perspetivas sobre o direito – a perspetiva interna e externa”

13

Fonte: Hydén, 2008: 14

De acordo com a explicação do autor relativa à figura 4, a dogmática jurídica


encontra-se no eixo vertical. O direito como in put da ordem jurídica pode derivar da
política, as respostas a questões específicas jurídicas devem derivar de uma ordem jurídica
superior, e quando o direito se deve aplicar a uma situação concreta, este constrói-se
sobre uma interpretação correta dos textos legais (Hydén, 2008: 15). A função do sistema
jurídico é, de um certo modo, uma forma de estabilizar a política. É através do sistema
jurídico que as instituições são construídas e as regras estabelecidas com o objetivo de
resolver problemas frequentes na sociedade (idem).
Entendendo o direito como “normalizador político”, Hydén considera que se torna
necessário pressupor que o sistema jurídico e a atividade dos atores jurídicos interfiram o
menos possível no processo mediador entre as decisões políticas e as consequências que
as mesmas têm para os cidadãos. No seu modelo, o eixo vertical da dogmática jurídica
concebe também o direito como aplicado uniformemente entre os que tomam as
decisões jurídicas. Admite, ainda, que a adequada interpretação e aplicação do direito
requer apenas o recurso às fontes do direito (Hydén, 2008: 15). O conhecimento jurídico
que constitui o eixo da dogmática jurídica tem que ser complementado pela perspetiva
horizontal. A dimensão horizontal na análise do sistema jurídico afasta as problemáticas
da ciência jurídica e faz sobressair o background contextual do direito e suas
consequências ou funções. O conhecimento colocado em relevo pelo eixo horizontal é
extrajurídico e não é obtível pela consulta das fontes de direito. Dando um exemplo: se o
interesse de investigação recair sobre o direito financeiro, os aspetos económicos serão 14
predominantes quanto à identificação das causas ou genesis e consequências ou funções
(Hydén, 2008: 16).
Também Reza Banakar (2003) procura captar a relação entre as dimensões
internas e externas do direito na sua relação com a sociedade. Tendo presente a
interdisciplinaridade e as combinações dicotómicas entre o analítico e o empírico, entre
factos e direitos, entre macro e micro aspetos da realidade social, e tendo ainda presente
os vários níveis de análise identificados por George Gurvitch nos quais se manifesta o
direito, propõe um modelo heurístico que designa por matriz reflexiva (cf. Figura 5).
Para Banakar, a noção de reflexividade é entendida em termos de uma dialética
entre a estrutura e a ação, e uma autorreflexão do conhecimento sobre o conhecimento,
sendo então possível integrar as diferentes dimensões internas e externas na análise do
direito. O seu entendimento da sociologia do direito condu-lo a uma perspetiva muito
abrangente através da qual procura explorar as possibilidades de um discurso teórico
comum às diferentes escolas do pensamento sociojurídico capaz de ultrapassar as
restrições impostas na investigação sociojurídica pelas divisões artificiais e pelas
dicotomias (Banakar, 2003: 11-14).
Figura 4: Matriz Reflexiva

A DICOTOMIA

Entre os fatores internos (ou visão


interna do direito) e os fatores
externos (ou visão do lado exterior
do direito).

15

Núcleos Teóricos Vertentes substantivas

Racionalidade, Legitimidade, Justiça, Género,


Instituições jurídicas,
Sistema,
Consciência jurídica, Cultura,
Estrutura,
Profissão, Resolução de conflitos,
Ação Juízo etc..

Fonte: Banakar, 2003: 183

1.3 Tantas sociedades quantos direitos

Contrariando a ideia de que a sociedade e o direito são duas entidades autónomas


e separadas, está o entendimento da sociologia do direito de que as articulações
sociológicas entre direito e sociedade hibridizam e dissolvem as cómodas distinções da
teoria política liberal e da ciência jurídica assentes, respetivamente, na contraposição
entre o caráter privado da economia (Oikos), do mercado e da sociedade civil, e o caráter
público do político (Polis) e do Estado (Slater apud Jenks, 1998: 138-150), a que se associa
a divisão entre o direito privado, regulador das relações dos indivíduos entre si, e o direito
público, que é suposto regular as relações entre o indivíduo e o Estado. A lição de
Durkheim de que “todo o direito é privado no sentido em que são sempre, e por todo o
lado, os indivíduos que se encontram em presença e que agem; mas, principalmente, todo
o direito é público, no sentido em que ele é uma função social e que todos os indivíduos
são, embora a diversos títulos, funcionários da sociedade” (Durkheim, 1977: 84-85), surge
como uma das conceções sociológicas que coloca em estreita e íntima relação, o direito e
a sociedade. 10

Em sentido semelhante, Boaventura de Sousa Santos et al. (2009: 5) salienta que: 16


“o direito tem sido crucial não só pelo seu papel instrumental na
gestão de conflitos sociais, mas sobretudo na reprodução social do
paradigma da modernidade. Esta conceção moderna do direito
tem-se fundamentado na construção científica de um direito
monopolizado pelo Estado, na despolitização de um direito que
oculta a existência de relações de poder para além da relação
entre Estado e sociedade civil, e no uso do direito enquanto
instrumento universal da transformação social politicamente
legitimada. A incapacidade do Estado para traduzir as promessas
de modernidade, de igualdade, liberdade e paz em direitos
fundamentais efetivos revela que a crise desse modelo de
regulação exige um repensar do papel do direito e da justiça nas
sociedades contemporâneas”.

Neste quadro de reflexão, importa sublinhar o reconhecimento de uma noção


plural de direitos estatais e não estatais, formais e informais, que se combinam de modo
diferenciado nas sociedades atuais. Autores como Hakan Hydén (2011: 1-25) sustentam

10
Para uma análise histórica das tradições fundadoras da Sociologia do Direito, consultar, entre
outros, os seguintes trabalhos: Arnaud e Dulce (1996), Diaz (1984), Hunt (1978), Ost (2001), Santos (1994) e
Treves (1988). Uma interessante abordagem histórica da disciplina encontra-se em Andrini e Arnaud (1995).
Exemplos de problemáticas teóricas sociojurídicas são: o direito como variável independente vs. o direito
como variável dependente; o direito como indicador privilegiado da sociedade vs. o direito como expressão
da exploração; uma visão normativista do direito vs. uma visão institucional e organizacional; teoria vs.
empiria; macrossociologia do Direito vs. microssociologia do Direito; o dogma da radical separação entre o
âmbito do ser e o âmbito do dever ser; a impossibilidade da Sociologia do Direito de formalizar o seu objeto
de conhecimento, afirmando, consequentemente, a sua dependência e o seu caráter auxiliar em relação à
ciência jurídica (posição kelseniana) ou delimitando o objeto do conhecimento da Sociologia do Direito em
termos de ação social ou de comportamentos (posições sociológicas), assumindo um antinormativismo. Para
uma análise aprofundada destas questões, consultar Arnaud e Dulce (1996), Nelken (1981) e Santos (1994;
2002).
que diferentes tipos de direito coexistem uns com os outros, embora com diferentes
funções, e em particular, com um impacto/força que varia ao longo do tempo. A
perspetiva de Hydén é a de que a sociedade foi motivando gradualmente mudanças
quanto ao quadro jurídico, sem que o quadro jurídico anterior desapareça
completamente. Assim, diferentes formas jurídicas estão presentes em paralelo, mas com
diferentes funções e com uma força particular que varia ao longo do tempo. A sua teoria
assenta em olhar para o desenvolvimento social em termos de curvas ou ondas, por 17
exemplo, o período entre a velha e a nova sociedade industrial e a atual sociedade de
informação, pode ser descrito como uma sociedade em transição. O desenvolvimento
social é cíclico, sendo caracterizado pelo autor pelas ondas que significam diferentes
desenvolvimentos de sistemas sociais ao longo dos tempos - sob o eixo horizontal - e a
utilidade desses sistemas para os indivíduos - sob o eixo vertical (cf. Figura 6).

Figura 5: Desenvolvimento social e direito

Fonte: Hydén, 2011


Por outro lado, a lógica subjacente ao desenvolvimento jurídico tende a divergir da
do desenvolvimento social. O desenvolvimento normativo e a história jurídica
distinguem-se pelos seus movimentos dentro de um quadro bipolar de pares opostos. O
autor utiliza a ideia da “locomotiva da mudança jurídica/legal”. A metáfora da locomotiva
combina o conflito entre o estático e o dinâmico, e entre o lugar e o movimento, unindo
uma visão sincrónica e/ou diacrónica. A ideia é a de que enquanto a locomotiva segue em
frente, as carruagens estão ligadas, tal como a sociedade, passando por vários 18
desenvolvimentos. A direção do movimento é igual em todo o mundo industrializado, as
diferenças de velocidade e de desenvolvimento dependem, entre outras coisas, da relação
entre diferentes posições normativas bipolares que decidem sobre o padrão normativo
fundamental, o que, depois, se relaciona com um outro número de circunstâncias desde o
desenvolvimento socioeconómico, tradições institucionais e condições tecnológicas.
A questão assenta em observar que o desenvolvimento de normas transporta um
padrão que implica movimento de um pólo para o outro e vice-versa. Os pares opostos
podem ser entendidos como valores bipolares que o desenvolvimento normativo opõe
alternativamente. Quer dizer que, quando o desenvolvimento alcança uma ponta
extrema, volta-se para a direção oposta ao encontro à outra polaridade, apenas para
regressar quando o desenvolvimento alcança novamente o extremo da segunda
polaridade, mais ou menos, como um pêndulo. O desenvolvimento segue uma tendência,
o movimento procura uma certa direcção, durante um certo período de tempo. Daí que a
lógica do desenvolvimento jurídico seja diferente da do desenvolvimento societal. A
sociedade desenvolve-se através de diferentes passos sob a mudança de diferentes
sistemas ou paradigmas ao longo do tempo. Pelo contrário, o desenvolvimento jurídico e
a história legal distinguem-se pelos seus movimentos dentro de um quadro bipolar de
pólos opostos definidos previamente. Por esta razão, a ideia de locomotiva - do latim
locus (lugar) e motivus (movimento) – é a metáfora que melhor se adequa ao
desenvolvimento social e ao desenvolvimento jurídico. Ou seja, o sistema legal move-se
na dimensão vertical, dentro de um espaço, para cima e para baixo entre bipolaridades,
enquanto que a sociedade avança em frente num consequente movimento de mudança.
Outra característica subjacente à ideia de locomotiva é a de que esta contém várias
posições dentro das quais os valores mudam durante o movimento. Mudanças paralelas
nos padrões normativos cooperam, ou contrapõem-se, umas contra às outras, no
processo de mudança jurídica, ao longo do tempo. Apenas quando os movimentos
apontam para a mesma direção é que acontece uma mudança nos padrões básicos
normativos, que por sua vez, cooperam com a criação de mudanças sociais.
Concluindo, afirma que a direção do movimento da sociedade é, ao mesmo tempo, 19
o desenvolvimento do sistema jurídico no quadro do seu lugar, mesmo que existam
diversos lugares paralelos. O sistema jurídico não controla o desenvolvimento, e muito
menos é a força que move o desenvolvimento jurídico. Mas o movimento em frente
obriga que o desenvolvimento na dimensão normativa acompanhe o ritmo, de outro
modo surgiriam problemas (incongruência e anomalias) que levariam a locomotiva a
parar. De todo o modo, estamos perante uma era de transformações na sociedade que
também darão origem a mudanças na esfera jurídica.
Outra orientação teórica é sugerida por Boaventura de Sousa Santos (2017:13),
retomando a linha de análise sociojurídica, acima mencionada, defendendo o
entendimento de que “no mesmo espaço geopolítico, circulam outros direitos que
coexistem com o direito estatal e que conformam as práticas sociais, ora
complementando ora contradizendo o direito estatal”. 11 Apesar da relevância do direito
estatal, este exige a “copresença” de outros direitos no quadro do que a sociologia do
direito identifica por pluralismo jurídico. O pluralismo jurídico parte do princípio de que,
“sendo embora o direito estatal um modo de juridicidade dominante, ele coexiste na
sociedade com outros modos de juridicidade, outros direitos que com ele se articulam de
modos diversos” (Santos, 1994: 153). 12 O conjunto de articulações e interrelações entre
os vários modos de produção e aplicação do direito constitui o que se pode designar por
“formação jurídica” (Santos, 1994: 153). O pluralismo jurídico surge, neste âmbito, como
reação ao processo de redução do direito ao Estado e assenta na ideia de que a lei e a

11
Mais adiante, no tópico dedicado ao estudo da obra de Boaventura de Sousa Santos, esta
questão será retomada.
justiça estatais não são exclusivas nem, muitas vezes, centrais na ordenação da vida social.
Os primeiros estudos empíricos a identificarem normas jurídicas para além da estatal
situaram-se em sociedades sob dominação colonial. Hoje, é generalizadamente
reconhecido que a pluralidade jurídica está virtualmente presente em qualquer sociedade,
ainda que assuma formas e significados sociais e políticos muito diversificados (Merry et
al., 2007; Santos, 2006). A título exemplificativo, confira-se o caso do direito do trabalho.
Embora este seja hoje, um direito estadualmente consagrado e bem definido, é 20
acompanhado por três características. A primeira é a de que a sua génese está associada à
desobediência civil, ao nascimento da classe operária e à repressão sobre as greves e
reivindicações dos trabalhadores, legitimada pela aplicação do direito penal; a segunda é a
de que, enquanto direito social, evidencia o seu caráter alternativo ao direito estadual
através das convenções coletivas e da autorregulamentação, como sublinharam Georges
Gurvitch e Eugen Ehrlich; a terceira reporta-se ao caráter difuso e informal do direito
laboral não estatal, “direito da produção” enquadrável nas abordagens do pluralismo
jurídico. 13

2. Direito e desigualdades: a dupla legalidade e o efeito Mateus

O tema das desigualdades tem sido amplamente analisado pelas ciências sociais,
sendo também objeto de investigação na sua combinação com os fenómenos jurídicos. A
relevância da problemática é incontestável, tendo presente que vivemos em sociedades
cada vez mais desiguais, processo intensificado pela crise de 2008 e pelo impacto das

12
Em relação ao pluralismo jurídico ver, entre outros, Belley (1993), Griffiths (1986), Merry (1988),
Arnaud e Dulce (1996) e Santos (2003).
13
Num momento em que a crise e as desigualdades sociais vão a par com a tendência para a
interpenetração entre a regulação jurídica e a regulação social importa questionaras condições em que a
informalização, o pluralismo jurídico e a desjudicialização se constituem em modos de regulação favoráveis
para os indivíduos e grupos sociais detentores de maior poder e recursos. Perante as tendências que
sustentam que “informal is beautiful”, é necessário acautelar os contextos e situações que conduzem à
imposição repressiva da resolução de conflitos (Santos, 1982; 1988; Pedroso et al., 2003). Sobre a relação
entre a regulação jurídica e a regulação social, consultem-se, entre outros, Arnaud e Dulce (1996), Chazel e
Commaille (1991) e Clam e Martin (1998).
medidas de austeridade. Em causa estão os pressupostos económicos, políticos e jurídicos
da igualdade perante a lei, da igualdade de oportunidades, o fundamento meritocrático
das sociedades capitalistas, o saber-se até que ponto as desigualdades são, ou não,
injustas, e a linha crítica a partir da qual a coesão social é questionada (Dubet, 2014,
2016). 14 De igual modo, ressurgem os debates em torno da conflitualidade entre a
liberdade e a igualdade, o modo como o direito e as políticas públicas reduzem ou
produzem mais desigualdade e o caráter multidimensional das desigualdades sociais 21
(Costa, 2012; Carmo e Costa, 2015). 15

A tradução sociojurídica dos fenómenos das desigualdades pode ser captada em


Boaventura de Sousa Santos (2006: 296, 306; 2017: 32, 33), quando sustenta o argumento
de que “a crise do contrato social” potencia as formas de exclusão social, ao colocar em
causa o “regime geral de valores” da modernidade, a partir do qual a ideia de bem comum
e de vontade geral fundamentavam o princípio do primado do direito e da justiça, e
também em Zygmunt Bauman (2013), quando refere que as desigualdades ao
naturalizarem-se passam a ser perspetivadas como um problema jurídico de Lei e de
Ordem. Em causa estão dois problemas determinantes da nossa vida coletiva enquanto
sociedades democráticas. O primeiro problema emerge do Estado de direito16 que, ao
ressignificar-se material e simbolicamente perante um referente societal intensamente

14
Em 2012, coordenei com o colega João Pedroso o Colóquio Internacional Direito (s) e
Desigualdades no qual de uma forma sistemática se discutiram temas onde a política, o direito e as
desigualdades foram debatidos
(http://www.ces.uc.pt/eventos/direitosdesigualdades/pages/pt/apresentacao.php9).
15
O tema das desigualdades tem estado na base de um conjunto de publicações de entre as quais
opto por mencionar o estudo de Richard Wilkinson e Kate Pickett, O espírito da Desigualdade (2010),
Thomas Piketty, O capital no século XXI (2013), e A Economia das Desigualdades (2014), Joseph Stiglitz, O
preço das desigualdades (2013), François Dubet, La préférence pour l’inegalité (2014) e Goran Therborn, The
Killing fields of Inequality (2013). Entre nós, para além dos já mencionados trabalhos de Renato Miguel do
Carmo e António Firmino da Costa deve ter-se presente o importante contributo que o Observatório das
Desigualdades (http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/) tem dado acerca desta problemática. O
artigo de António Firmino da Costa, “Desigualdades Globais”, publicado em 2012, continua, em meu
entender, a fornecer um dos mais interessantes quadros de análise para a captação das desigualdades e
seus diferentes níveis à escala global, constituindo um estimulante ponto de partida para prosseguir a linha
de interrogações acerca da relação entre o direito e a sociedade. Por outro lado, Mike Savage, em artigo de
2014, também se torna num ponto de partida sugestivo para essa mesma reflexão, utilizando os desafios
que a obra de Piketty coloca à sociologia. De forma algo provocatória, a tese de Harry Frankfurt (2016:
10-13) defende a necessidade de reduzir a pobreza como ideal moral, separando-o da defesa da igualdade.
desigualitário, se vai simultaneamente desqualificando (critério da desqualificação)
perante as obrigações de assegurar a autodeterminação individual e a autonomia do
individuo perante o poder e tornando insuportável (critério da insuportabilidade) as
contradições entre as leis e políticas do estado e os princípios de justiça social da
igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana – “ponto do não direito” ou do
problema do “Estado de não direito” (Canotilho 1999: 11-14). 17

O segundo problema resulta da identificação de duas manifestações de dualidade 22


do direito e suas consequências, que adquirem significado sociológico no quadro do triplo
questionamento do modelo político da democracia liberal, do modelo de dominação legal
racional de Max Weber e do paradigma do positivismo jurídico18. A dualidade assinalada
por Boaventura de Sousa Santos (2017: 366) formula a noção de “dualidade abissal do
direito”, assente na “divisão radical entre dois sistemas jurídicos: o direito dos 1% e o
direito dos 99%, o direito dos opressores e o direito dos oprimidos”. Apesar de produzidos
pelo mesmo sistema legislativo e adjudicados pelo mesmo sistema judicial estas duas
formas de direito “operam através de desvios sistemáticos aos princípios que era suposto
defenderem” (idem). A noção de “dualidade da legalidade”, desenvolvida por Jacques
Commaille (2015: 65-93), encontra-se escorada na oposição entre “direito como razão” e
“dimensões sociais do direito”, entre um direito “imposto de cima para baixo” e um
“direito como recurso” mobilizável pelos diferentes atores sociais e políticos. A este
direito, resultado de lutas, inspirado por Rudolf von Jhering coloca-se, segundo Commaille

16
A propósito da noção de estado de direito consultar Gomes Canotilho (2003: 93-97; 1999:
24-45).
17
No que diz respeito ao “critério da insuportabilidade”e à questão do “estado de não direito”
acompanho com adaptações os argumentos de Gomes Canotilho (1999: 14-36).
18
O positivismo jurídico é uma das duas grandes correntes da filosofia do direito a par com o
jusnaturalismo. Assinalam-se quatro elementos caracterizadores: defende como ideia geral que é possível
construir uma ciência do direito de acordo com o modelo das ciências naturais; considera que os juristas
devem preocupar-se em conhecer o seu objeto afastando juízos de valor; o seu objeto de estudo deve ser o
direito positivo, isto é, o direito “posto” pelas autoridades políticas, excluindo assim o direito natural e a
moral; a ciência do direito deve ser composta por proposições verificáveis ou refutáveis através de
procedimentos análogos aos das ciências naturais. Conferir o Dictionnaire encyclopédique de théorie et
sociologie du droit (1993: 462). Para o aprofundamento dos desenvolvimentos e das perpectivas críticas face
ao positivismo jurídico, pode consultar-se com interesse: Gerald J. Postema (2011), Legal Philosophy in the
Twentieth Century: The Common Law World, e Pattaro e Roversi (2016), Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Civil Law World. Ver também, José Manuel Aroso Linhares (2016: 425-443) e António Hespanha
(2007: 257-282).
(2015), a magna questão da regulação política e a dos que com ela são favorecidos ou
prejudicados. A legalidade dual, no quadro da crise e enquanto modelo de regulação
política, patenteia: “a dificuldade de conciliar a tensão entre o objetivo do «Bem Comum»,
a existência de um laço social e de um laço cívico com a novidade de um indivíduo
democrático (...)”; e, “a convicção cada vez mais largamente partilhada de que a
legitimidade do poder, ela própria procedente do coletivo dos cidadãos, do próprio
«povo», é uma ficção, tal como o «contrato social» se transformou também numa ficção” 23
(Commaille, 2015: 299). Neste sentido, a dualidade do direito, como acima assinalado,
evidencia a característica distintiva do direito na atualidade, enquanto sistema de
recompensas distribuido desigualmente e apropriado por aqueles que se encontram em
posições mais vantajosas no sistema social – “problema do efeito Mateus no direito”. 19

A conjugação da problemática das desigualdades com os problemas do “Estado de


não direito” e do “efeito Mateus do direito” faz surgir uma nova questão: a da
naturalização das desigualdades económicas, sociais e políticas através do cânone da
teoria política liberal e do positivismo jurídico assente na neutralidade do direito, na sua
autonomia e universalidade dos principios gerais e abstratos. 20 Para desarmadilhar este
entendimento de um direito performativo para a naturalização das desigualdades,
importa problematizar o cânone de um triplo ponto de vista: dos pressupostos da
formalidade e independencia do direito face aos sistemas normativos da moral, da ética e
da política; das consequências sociais ou efeitos perversos (desejados ou não desejados)

19
Utilizo o termo utilizado por Robert Merton (1968) para identificar os fenómenos sociais onde
se verifica acumulação de vantagens recorrendo à parábola do Evangelho segundo Mateus “Porque ao que
tem será dado e terá em abundância: mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. Merton começa
por utlizar a parábola no domínio da sociologia da ciência no estudo das comunidades científicas (Merton,
1968: 56-63). Da sua aplicação na análise do direito e das desigualdades resulta que o direito enquanto
recurso social pode contribui para que os mais favorecidos fiquem ainda mais favorecidos e os mais
desfavorecidos fiquem ainda mais desfavorecidos.Pode mesmo falar-se em acumulação de capital jurídico a
este respeito.
20
A relação entre direito e desigualdades não pode excluir a constatação acerca dos indicadores
mais básicos das estruturas das desigualdades que necessariamente produzem injustiça social e
constrangem o papel e funções do direito. Só um exemplo: as 85 pessoas mais ricas do mundo detêm a
mesma riqueza que os 3.5 mil milhões mais pobres
(http://www.statista.com/statistics/203930/global-wealth-distribution-by-net-worth/). Goran Therborn no
livro European Modernity and Beyond: the trajectory of european societies 1995-2000 publicado em 1995,
desenvolveu uma sugestiva aproximação sociológica à relação entre direito e desigualdades.
decorrentes de um entendimento de direito que se considera neutro do ponto de vista
social; e o da neutralização, por via da legalidade positivista, do papel do direito na
promoção da igualdade e da democracia (Scheingold, 2006: xi).
Duas linhas de reflexão podem ser desenvolvidas. A primeira, diz respeito à relação
entre o Estado, a sociedade civil, a política e o direito. As investigações neste domínio
revestem-se de um especial interesse, se considerarmos a ação conjugada de fenómenos
como: o da crise do Estado-Providência e as reconfigurações a que a mesma deu lugar 24
entre o Estado e a sociedade civil; a mudança de paradigmas políticos, com especial
destaque para a tensão entre governabilidade e governação; e a manutenção da
contraposição entre a “juridificação das esferas sociais” e as formas autorreguladas de
direito. O estatuto do direito incorpora cada vez mais os conflitos associados aos
diferentes grupos sociais, reconfigurando este num sistema de distribuição de recursos
escassos e, portanto, de tutela legal de um modelo de justiça social (Campilongo, 1997;
Faria, 1997; Robert e Cottino, 2001). A centralidade do conceito de justiça, em sentido
amplo, é enorme, conduzindo a sua discussão sociojurídica à relativização da distinção
entre justiça legal e justiça social, e entre justiça formal e justiça material. Para além do
reconhecimento sociológico da existência de diferentes “esferas de justiça” 21, promove-se
uma abordagem integrada da justiça formal e da justiça material, e da justiça comutativa e
da justiça distributiva. Deste ponto de vista, já não é possível separar o político e o
jurídico, de tal modo se encontram interrelacionadas as formas de regulação política,
jurídica e social. A opção por uma sociologia política do direito, enquanto estratégia de
análise, tem como principal resultado que a produção e a aplicação das normas, a
efetividade dos direitos, as funções da justiça e do acesso ao direito e as formas de
resolução dos conflitos sejam estudados, atendendo à sua relação com os modelos e
princípios de ordem e regulação sociopolítica e com as questões do Estado, da política, do
poder, da legitimidade e dos conflitos. O próprio debate e luta políticos vão opondo os
partidários do princípio do mercado e do recurso absoluto às fórmulas da
desregulamentação e flexibilização aos que sustentam a necessidade de recurso a
políticas e a formas de regulação social. Deste processo de imbricação entre as esferas
política e jurídica resulta que o “regresso do político” seja, concomitantemente, um
regresso ao direito ou um regresso do direito. 22

A segunda linha de reflexão aprofunda a questão de saber se liberdade e igualdade


são complementares entre si ou se conflituam e qual o papel e funções desempenhados
pelo direito. Parta-se do conhecido ensaio de Steven Lukes “Equality and Liberty, must
they conflict?” (1991: 48-66), onde o autor sustenta que a resposta quanto à 25
compatibilidade ou incompatibilidade dos termos, resultará de uma hermenêutica que
não assuma a radicalidade absoluta de cada um deles e valorize as combinações e
interpretações dos mesmos sob a forma de redefinição dos seus conteúdos, de
identificação das hierarquias que entre eles se estabelecem, ou de uma lógica de
trade-offs. A ideia é a de que é possível refletir em torno de diferentes cenários teóricos
de combinação entre os conceitos de liberdade e de igualdade, tendo, por essa razão, de
se rejeitar as defesas perentórias da precedência de um sobre o outro. À luz desta
perspetiva interpretativa sobressai a crítica às teorias do neoliberalismo e do libertarismo,
as quais escamoteiam a relação entre os conceitos por quererem afastar a intervenção do
estado e valorizar “a ordem espontânea” do mercado, prescindindo de uma estratégia de
construção teórica e de intervenção política onde se considere o papel a desempenhar
pela igualdade, na organização da sociedade e dos sistemas sociais23. Epigramaticamente,

21
Cada “espaço estrutural”, “campo” ou contexto de interação pode ser perspetivado como
indutor das respetivas esferas ou espaços de justiça e de equidade.
22
Estaremos, portanto, perante uma teoria política do direito ou uma sociologia política do direito
que remove a pretensão de separar o político e o jurídico. Ao fazê-lo, reafirma a necessidade de discutir o
Estado, a democracia, a justiça social, a esquerda e a direita, a liberdade, a igualdade e a solidariedade de
um ponto de vista político-jurídico. Esta abordagem pode ser feita numa base de
articulação/transversalidade com os trabalhos dos cientistas sociais defensores de uma noção ampla dos
“estudos políticos” (Bobbio, 1986; Held, 1988, 1991, 1995; Heller, 1991; Mouffe, 1993) e que, partindo de
uma “conceção alargada dos fenómenos políticos”, relativizam categorias canónicas da ciência política
tradicional como a distinção Estado/cidadão, público/privado, nacional/internacional, resgatando-se, por
outro lado, quer a filosofia política “declarada morta” na década de 1950, quer a discussão ético-politica
através dos debates em torno de questões como a justiça social, a equidade, a liberdade, a igualdade, o
“Estado justo”, a teoria democrática, a sociedade civil, o comunitarismo, o contratualismo, a cidadania, o
feminismo, os direitos humanos, etc..
23
Se retomarmos o texto de Steven Lukes (1991), verificaremos a importância dada à relação entre
liberdade e autonomia. A capacidade de controlo da sua própria vida por parte dos indivíduos, expressão de
uma vida autónoma, é também o que confere valor à própria liberdade. Estabelece assim uma estreita
estar-se-á perante a denúncia do “erro de Hayek”, como refere Philip Selznick (2002: 108),
visto que a “miragem da justiça social” se fundamenta na ignorância das sociedades se
encontrarem organizadas socialmente sob a forma de sistemas ou padrões de
sociabilidade e também por, de acordo com Wolfgang Streeck (2013: 160-161), a
hayekização do capitalismo europeu corresponder a uma hegemonia institucionalizada da
justiça de mercado sobre a justiça social.
Endossar a ideia da existência de uma complementaridade por mais tendencial que 26
seja entre liberdade e igualdade, implica ter presente a noção de justiça social e recorrer à
mediação de noções como democracia política e democracia social, direitos liberdades e
direitos reivindicações, igualdade real e igualdade formal, liberdade formal e liberdade
real (Ferry e Renaut, 1984; Schnapper, 2002). No essencial, significa raciocinar tendo
presente não só o princípio da indivisibilidade entre liberdade, igualdade e justiça social,
mas também fazê-lo valorizando as dimensões substantivas e reais da vida em sociedade,
e o modo como os princípios intervêm objetivamente na vida das pessoas.
A invocação da obra clássica de L. T. Hobhouse é sugestiva, dado o autor
mencionar, expressamente, que a liberdade depende, em todos os seus domínios, da
igualdade: igualdade perante a lei, igualdades de oportunidades, igualdade entre as partes
no contrato (Hobhouse apud Wilkinson e Pickett, 2010: 310). No mesmo sentido, Sandra
Fredman (2008: 30) acentua que uma conceção de liberdade deve incluir não somente a
ausência de coerção nos direitos, como também, uma verdadeira capacidade para exercer
esses direitos; o reconhecimento do papel da sociedade e do estado na promoção da

relação entre liberdade e autonomia, incluindo nesta última ideia características como a da ausência de
manipulação e coerção, disponibilidade e acesso a informação adequada e a possibilidade de escolha entre
bens, bem como, ausência de impedimentos ou constrangimentos face aos diferentes modos de ação social
possíveis. Quanto à igualdade, ela assume uma dimensão mais problemática, por merecer uma atenção por
parte do que genericamente aqui se sinaliza como pensamento político de esquerda, na medida em que
mesmo não atingindo uma sociedade igual, pelo menos pretende uma sociedade mais igual. Em
contrapartida, o pensamento político de direito critica este propósito por sustentar que tal conduz à
uniformidade e à diminuição da iniciativa individual. Contudo, as diferentes teorias e ideologias políticas
partilham pelo menos uma conceção de igualdade: a igualdade formal. Porém, logo que se trata de discutir
regras de distribuição igualitárias, igualdade material, igualdade no acesso ao trabalho e serviços públicos,
igualdade de oportunidades, igualdade de resultados, regras antidiscriminatórias etc., estabelece-se o
desacordo.
liberdade; e uma visão substantiva de igualdade que signifique que todos estão aptos para
exercer os seus direitos. É nesta perspetiva não formalista que se deve considerar “que a
qualidade das relações sociais numa sociedade se baseia em alicerces materiais”
(Wilkinson e Pickett, 2010: 25). Richard Wilkinson e Kate Pickett no livro, O espírito da
igualdade (2010), desenvolvem um estudo fundamentado acerca das evidências empíricas
que apontam no sentido da liberdade, da igualdade e da justiça se encontrarem em
relação com diferentes variáveis da desigualdade de rendimentos e de dimensões do 27
bem-estar. Para os autores, as desigualdades sociais refletem a injustiça social, a falta de
liberdade e a falta de igualdade. Sustentam, por isso, a complementaridade entre estes
princípios, tendo em consideração as dimensões objetivas da realidade social24.
As duas linhas de reflexão partilham um conjunto de ideias e de questões
organizadas em torno das temáticas relacionadas com a redução das desigualdades e
injustiças sociais, podendo ser operacionalizadas no quadro da relação direito/sociedade,
partindo de quatro níveis de análise.

2.1 Quatro níveis de análise da relação entre direito e desigualdades sociais

A sistematização das diferentes abordagens sociojurídicas da relação entre direito


e desigualdades que aqui se propõe identifica quatro níveis de análise. O primeiro nível é
o da análise do modo como o direito pode “colaborar” com as desigualdades. O estudo
clássico acerca da problemática da igualdade perante a lei e da desigualdade de facto
encontra, no ensaio seminal escrito por Marc Galanter em 1974 e publicado na Law and
Society Review, intitulado “Why the «Haves» como out ahead: speculations on the limits of
legal change”, um marco fundador. O autor procurou colocar em evidência, após a
realização de uma investigação, o modo como os “haves” - os mais dotados em diferentes

24
Tendo presente os comentários anteriormente desenvolvidos, deve reconhecer-se que é a partir
da crítica ao pensamento político neoliberal e ao formalismo na teoria política que nos reencontramos com
intensos debates teóricos e políticos de que se podem dar como exemplos o movimento feminista, os
movimentos civis, as lutas contra as diferentes formas de discriminação, a interseccionalidade, as queer
theories, os debates acerca dos direitos humanos, as lutas pelo reconhecimento de novos direitos, as lutas
pelo acesso e mobilização do direito, o ativismo judicial e as lutas associadas aos conflitos distributivos e de
reconhecimento.
tipos de capitais, os dominantes - eram melhor tratados do que os “have-nots” - os
dominados - quando entravam em contacto com os tribunais americanos. Esta conclusão,
como refere Liora Isräel (2013: 543), é simultaneamente evidente e surpreendente.
Evidente porque desde Marx que o direito foi considerado como um agente da
reprodução de poder, mas também uma surpresa na medida em que uma vaga de
otimismo percorreu os anos 1950 após as grandes decisões do Supremo Tribunal
favorável aos direitos cívicos, entre outros (período «Warren Court» 1953-1969). 28
A explicação proposta por Galanter acerca da desigualdade estrutural verificada no
funcionamento do judiciário assenta na conhecida distinção entre litigantes frequentes
(repeat players) e litigantes esporádicos (one shooters). De acordo com a investigação, em
virtude das diferenças existentes e dos recursos financeiros, e também no direito
aplicável, alguns dos mobilizadores da justiça recorrem repetidamente aos tribunais
envolvendo-se em litígios similares ao longo do tempo (Santos et al., 1996: 71). No quadro
desta análise, importa compreender que a assimetria entre aqueles que procuram a
instituição judiciária se deve, sobretudo, ao estatuto de litigante frequente que o coloca
em melhores condições face ao sistema judicial. Como referem Santos et al. (1996: 71), o
que torna um litigante frequente ou esporádico não decorre apenas do tipo de litígio em
questão, mas também a sua dimensão e os recursos disponíveis que tornam distinta,
neste caso, menos custosa e mais próxima, a sua relação com o tribunal. Com efeito, o
litigante frequente prevê que vai ter litígios frequentes, corre pouco riscos relativamente
aos resultados de cada um dos casos e tem recursos suficientes para prosseguir os seus
interesses de longo-prazo. Situação bem diferente da do litigante esporádico cujo valor do
litígio é demasiado importante relativamente à sua dimensão, ou demasiado pequeno
relativamente ao custo da reparação para poder ser gerido de forma racional e rotineira
(idem). Daí que se contem entre os litigantes frequentes, grandes empresas, companhias
de seguros etc, enquanto que particulares que têm litígios de divórcios, ou enfrentam
processos de pequenas causas etc, são litigantes esporádicos. 25

Apesar do caráter iminentemente empírico do estudo, ele constitui um bom ponto


de partida para uma reflexão acerca do sentido da justiça e do seu significado para os
atores sociais. Recentemente, e neste sentido, Marc Galanter (2013: 560 e ss), revisitava o
tema, referindo que apesar do seu ceticismo continua seduzido pela ideia de que o direito
pode não só regular os pequenos litígios, como também aproximar-se aos ideais de 29
justiça. Em 1977, o sociólogo francês Nicolas Herpin publicava o livro, A aplicação da Lei,
cujo subtítulo “dois pesos, duas medidas”, sugeria desde logo que o direito se encontra
imerso nos conflitos sociais, variando a sua aplicação de acordo com aqueles a quem é
aplicado. Partindo do quadro teórico da etnometodologia, o autor prossegue uma linha de
investigação próxima da de Marc Galanter, na medida em que questiona a forma como as
desigualdades socioeconómicas interferem nas formas de aplicação do direito na esfera
do direito penal.
Um segundo nível de análise da relação entre o direito e as desigualdades, pode
ser captado à luz das diferentes teorias da justiça com particular destaque para as de John
Rawls. No que diz respeito a Rawls, a sua recuperação pela sociologia tem sido forçosa
pelos potenciais heurístico e hermenêutico que a sua obra encerra (Costa, 2012; Dubet,
2014). As teses incluídas no livro Uma Teoria da Justiça (1971) filiam-se numa teoria geral
da justiça encontrando-se diluído o papel das instituições judiciais no conjunto das
principais instituições sociais através dos quais se distribuem direitos e deveres entre os
indivíduos. Para o autor, uma sociedade será reconhecida como justa se a sua estrutura
básica estiver configurada de acordo com os princípios da justiça, independentemente dos
resultados finais obtidos por todos e cada um dos membros da sociedade (Ferreira, 2014:
74). Deste modo, estudar o judicial e, por extensão, o direito como elementos de uma
teoria da justiça no sentido rawlsiano, conduz à sinalização do seu lugar no quadro das
dinâmicas da justiça distributiva. Da aplicação dos seus princípios de justiça que

25
Entre nós merece destaque a aplicação feita da perspetiva de Marc Galanter por Boaventura de
Sousa Santos et al. no seu clássico estudo Os Tribunais nas sociedades contemporâneas, o caso português
(1996).
combinam liberdade com igualdade como forma de promoção da justiça social resulta que
as desigualdades aceitáveis só serão moralmente permitidas na medida em que possam
beneficiar todos os membros de uma sociedade. Trata-se do “princípio da diferença”,
segundo o qual se defende a maximização da posição daqueles que estão pior colocados
na sociedade. Daqui resulta que o lugar do direito e da atividade do judicial deveria ser
sindicado à luz do seu contributo para este entendimento de justiça como equidade.26
Um desenvolvimento da relação estabelecida entre teorias da justiça, direito e o 30
judicial, é sugerida por Thierry Delpeuch, Laurence Dumoulin e Claire de Galembert (2014:
75-104). Os autores, na esteira da sociologia pragmática com destaque para as propostas
de Luc Boltanski e Laurent Thevenot, referem a importância de se analisarem as
especificidades e complementaridades, as convergências e as divergências, entre as
lógicas da justiça ordinária e as do judicial. Nesta perspectiva, importa examinar as
conceções e perceções individuais de justiça que ocorrem numa dada sociedade, isto é,
analisar os princípios de justiça aos quais aderem os atores sociais e os sentidos de justiça
que desta forma se constroem socialmente. Embora tendo presente que as formas de
justiça ordinária postas em ação por esta dinâmica sociológica estejam em estreita relação
com o direito e com as formas judiciais de resolução dos litígios, permanece relevante
verificar o padrão de relacionamento sociojurídico que se estabelece tendo presente os
princípios de justiça. Assim, sabendo-se que o recurso à instituição judicial constitui a
exceção e não a regra, ou seja, que as condições de passagem da indignação à ação
judicial sofrem diferentes tipos de constrangimentos simbólicos e materiais, afigura-se
pertinente aferir do papel desempenhado nesta decisão pela atividade cognitiva e
julgamento moral que os indivíduos fazem quando colocados perante um conflito. Para
além disso, no âmbito desta abordagem, o direito surge como possibilitador da resolução
de conflitos quando se verifica a impossibilidade de um acordo “natural” entre os
indivíduos. No entanto, apesar da sua dimensão coerciva independente das partes em
litígio o desacordo entre elas pode permanecer à luz dos princípios de justiça ordinária.

26
De uma forma mais orientada para áreas específicas da sociedade encontra-se, também, a
perspetiva da justiça distributiva de Jon Elster (1992) sob a fórmula da “local justice”, definindo-se esta
O terceiro nível de análise decorre dos desafios colocados ao direito social como
modelo de realização do direito face ao sistema de desigualdades inscrito na estrutura
social. Não se trata de captar os “momentos de abertura axiológico-normativa” do direito
à sociedade, de verificar a “abertura autorreflexiva” do direito à sociedade, nem mesmo
de atender à “responsividade do direito” perante as dinâmicas da sociedade. O problema
é o de assinalar quais as formas de direito dominante e atuante perante o contexto acima
descrito, e se é possível ponderar um direito que reforce o sentido da justiça e da 31
democracia. O direito social surge como um bom ponto de partida para o
aprofundamento de um direito democrático e compensador de desigualdade, como entre
nós sugere João Pedroso (2013). Importa, no entanto, ter presente que os direitos sociais
podem ficar reféns das condições situacionais, as quais como assinala Wanda Capeller, se
consubstanciam na noção de “reserva do possível”. É a partir desta nova semântica
jurídica que a concretização dos direitos sociais fica à mercê das capacidades financeiras
do Estado, pelo que se verifica “uma clara «dessignificação material» dos direitos sociais
que haviam sido ressignificados constitucionalmente” (Capeller, 2016: 5).
Apesar das dinâmicas de transformação social apontarem para o aumento das
desigualdades, exclusão e vulnerabilidade sociais, o paradigma da dogmática jurídica
permanece como matricial no ensino jurídico e na afirmação da estrutura nomológica do
direito. Trata-se de
“um sistema concebido basicamente como uma ordem coativa
unitária, completa e fechada, que exclui a contradição e a
descontinuidade, satisfazendo um ideal de racionalização formal
apto a propiciar calculabilidade, previsibilidade, segurança e certeza;
como um conjunto de normas hierarquizadas e vinculadas por meio
de relações lógicas e necessárias, passíveis de métodos
interpretativos de natureza iminentemente lógico-dedutiva” (Faria,
1999: 269).

Deste modo, as tradicionais formas de justiça aristotélica encontram uma “natural”


arrumação, segundo a qual a justiça legal e comutativa cairá no âmbito dos pressupostos

como a alocação de recursos escassos por diferentes instituições sociais segundo critérios diferenciados.
de utilização do paradigma da dogmática jurídica, ficando para o debate público-político
as matérias relacionadas com o problema da justiça distributiva. Contudo, as
circunstâncias das sociedades atuais exigem o confronto deste modelo com quatro
evidências de crítica sociológica ao caráter formal e estilizado deste paradigma de direito.
A saber: (1) como responder ao facto do pressuposto racional-legal da igualdade
perante a lei ser posto em causa pelas assimetrias entre indivíduos, grupos sociais e
organizações?27 (2) o que pensar da verificação empírica de que a personalidade jurídica 32
enquanto repositório de direitos e deveres ligados à pessoa ser confrontada com a
intensidade da separação entre o “cidadão de jure e cidadão de facto”?(3) o que dizer da
dissonância existente entre a ideia democrática do “direito a ter direitos” e a severidade
da violação e falta de efetividade dos direitos conquistados? (4) e finalmente, que ilações
se poderão retirar das formas de produção e aplicação do direito que sob o signo da
exceção põem em causa princípios gerais como os da segurança e confiança jurídicas
quando ocorre um empobrecimento das sociedades e processos de mobilidade
descendente das classes médias?
Como se sabe, a noção de direito social tem tradição afirmada na sociologia do
direito pela mão de Georges Gurvitch, entre outros, o qual publicou em 1932 a obra L’idée
du droit social onde defende o seu entendimento de pluralismo jurídico contrário às
conceções do formalismo e do positivismo jurídico e de crítica do Estado como fonte
exclusiva de direito 28. Neste sentido, a conceção de direito social surge, essencialmente,
como uma alternativa ao formalismo da dogmática jurídica adquirindo o adjetivo “social”
força normativa para contrariar os efeitos perversos gerados por um entendimento do
direito cego por relação aos fatores de desestruturação da sociedade. Autores como
François Ewald (1986, 1993), Jean Paul Fitoussi e Pierre Rosanvalon contribuem para esta

Uma vez mais, o lugar do direito e das instituições judiciais podem ser analisados à luz deste entendimento.
27
A discriminação das mulheres no mercado de trabalho constitui um bom exemplo desta
problemática. A teoria do impacto adverso surgida da doutrina e jurisprudência norte-americana realça o
modo como as normas de direito ditas formalmente neutras produzem um determinado impacto
discriminatório no grupo social das mulheres. A noção de discriminação indireta também pode aqui ser
mencionada (Ferreira, 2005).
28
Entre outros trabalhos onde aborda esta questão, Gurvitch publicará em 1946 La déclaration des
droits sociaux onde resume os seus estudos desenvolvidos entre as duas guerras mundiais.
discussão ao chamarem a atenção para a necessidade de “a nova era das desigualdades”
ou “a nova questão social” conduzirem à necessidade de reformulação dos direitos. A
“busca pela inserção” conduz à emergência de laços inéditos entre direitos sociais e
obrigações morais, de modo a que se ultrapassem os tradicionais direitos liberdade, e
direitos garantias, visando-se um caminho que realize os direitos à integração e à
solidariedade social (Schnapper, 2002).
José Eduardo Faria (1999) fornece uma boa síntese deste entendimento de direito 33
social (cf. quadro 1) ao recensear diversos contributos. Realça, neste sentido, a
importância de mecanismos jurídico-institucionais com propósitos sociais, os quais
assumiriam
“a forma de pautas decisórias e de regras a um só tempo
«corretivas» e «compensatórias», capazes (a) de estimular os
diferentes segmentos sociais e os distintos setores económicos a
negociar suas diferenças, (b) de obrigá-los a fazer concessões
recíprocas e (c) de viabilizar a socialização dos riscos, a
redeterminação dos custos e a distribuição das perdas, que variam
conforme o status das partes envolvidas nas situações conflitivas”
(Faria, 1999: 271).

Acrescenta, ainda, algumas notas caracterizadoras do direito social: a) o facto de


muitas das suas normas e princípios tratarem de valores metafisicamente
incomensuráveis, como os que estão presentes nos conflitos entre o direito à habitação,
ao ambiente e ao trabalho, e os imperativos de maximização da eficiência e da
acumulação no âmbito do sistema económico; b) o caso da evolução da noção de
responsabilidade no caso dos acidentes de trabalho que abriu caminho para uma
racionalidade de tentativa de compatibilização entre a reparação e a indeminização, e a
gestão de riscos futuros através de contribuições obrigatórias e da intervenção do Estado;
c) ser um direito prestacional que contrariamente ao tradicional sistema legal de garantias
individuais forjada pela dogmática jurídica se reconhece numa noção de autonomia do
indivíduo acompanhada do reconhecimento das vulnerabilidades do sujeito o que permite
promover uma seletividade inclusiva; d) contrapõe-se à ideia de igualdade formal
pressuposta pelo paradigma da dogmática jurídica e reconhece em seu lugar a
importância de um “direito das desigualdades, de discriminações positivas ou de
inserção”; e) enfatiza a importância da redistribuição ultrapassando a tradicional oposição
entre interesses particulares e interesses gerais (muito valorizada pela dogmática jurídica
e pela base contratualista do direito liberal); f) afirma, ainda, a importância de enfrentar
os problemas da redistribuição dos recursos comuns da sociedade e da redução das
diferenças de riqueza, poder de consumo e oportunidades (Faria, 1999: 272-273; 276).
Finalmente, destaca três aspetos relacionados com as “leis” do direito social. Em 34
primeiro lugar, não têm uma dimensão exclusivamente normativa, uma vez que exigem a
implementação e execução de determinadas políticas públicas. Em segundo lugar, alteram
o horizonte temporal do judiciário que em vez de aplicar regras gerais, abstratas e
impessoais a factos anteriormente ocorridos entre partes formalmente iguais perante a
lei, incorporando modos de ação que conduzem à realização de determinadas pretensões
da parte considerada materialmente débil. Em terceiro lugar, as leis do direito social
caracterizam-se pela titularidade, reivindicação e exequibilidade coletivas dirigindo-se,
não só a entidades privadas, mas também ao Estado, e determinando uma postura ativa
por parte dos poderes públicos (Faria, 1999: 275).

Quadro 1: Dois “tipos ideais” de direito: características básicas


Modelo de Dogmática Jurídica “Direito Social”
Direito/características
Conflito predominante Interindividual Coletivo

Funções do direito Controlo social e certeza Mudança e integração


jurídica
Efetividade da norma Self-executing Dependente de um welfare
commitment
Sistema jurídico Fechado e autónomo em Aberto e sensível às
relação ao meio social contínuas pressões do meio
social
Conceção de justiça Formal comutativa Material, compensatória,
distributiva e niveladora
Critério básico de Exegese Ponderação e
interpretação balanceamento
Diretriz hermenêutica Caráter lógico-dedutivo “socialização” do julgamento
Fidelidade à lei “normalidade” como
referência - limite
Remédio provido Estrito Amplo

Efeitos Sobre as partes do processo Sobre grupos, classes e


Modelo vencedor/vencido coletividades
Equilíbrio social
Envolvimento dos tribunais Emissão de julgamento Envolvimento continuado

Fonte: Faria, 1999: 279


35
Finalmente, o quarto nível de análise é o do acesso ao direito e à justiça 29. Para
além dos desenvolvimentos verificados no estudo desta problemática (Regan et al. 1999;
Paterson e Goriely, 1996), os trabalhos de Mauro Cappelletti e Brian Garth (1978)
realizados nos finais dos anos setenta, continuam a ser uma referência incontornável. Os
autores assinalaram a existência de dois níveis na análise do acesso: o primeiro
identificava o acesso ao direito e à justiça com a igualdade no acesso ao sistema judicial e
à representação por advogado num litígio; o segundo nível é mais amplo, visto relacionar
o acesso ao direito com a garantia de efetividade dos direitos individuais e coletivos.
Como assinalam Santos et al., (1994:82), este último nível de análise convoca uma visão
mais pluralista que o primeiro e a utilização de uma vasta gama de instrumentos jurídicos
que, potencialmente, envolve todo o sistema jurídico e não só o judicial.
A conceção mais ampla do acesso ao direito e à justiça evidencia a sua importância
enquanto interface entre os sistemas social, político, jurídico e judicial. Neste sentido,
Boaventura de Sousa Santos et al. (1996: 483) considera que
"o acesso ao direito e à justiça é a pedra de toque do regime
democrático. Não há democracia sem o respeito pela garantia dos
direitos dos cidadãos. Estes, por sua vez, não existem se o sistema
jurídico e o sistema judicial não forem de livre e igual acesso a
todos os cidadãos independentemente da sua classe social, sexo,
raça, etnia e religião".

29
A este propósito consultar entre outros (Faget, 1997; Ferreira e Pedroso, 1999; Santos 1994,
1995, 2002; Santos et al. 1996).
O acesso ao direito e à justiça é também uma forma de acesso ao político, o que
pressupõe um espaço público, onde todos possam expressar a sua opinião ou fazer valer
os seus direitos na busca de uma solução para os conflitos, sendo as barreiras ao acesso à
justiça encaradas como barreiras ao exercício da cidadania e à efetivação da democracia.
Com efeito, o grau de realização da igualdade real, e não meramente formal dos cidadãos
perante a lei, é sempre um indicador da qualidade da cidadania e da vida democrática,
constituindo o caso concreto do acesso ao direito e à justiça laborais, pelo lugar estrutural 36
ocupado pelas relações de trabalho nas sociedades capitalistas, exemplo paradigmático da
concretização prática dos princípios da igualdade e justiça sociais.
Enquanto locus de interseção entre o político e o jurídico-judicial, a questão do
acesso revela-se um excelente indicador sociológico do grau de contradição ou
compatibilização entre os diferentes princípios de regulação sociopolíticos, bem patente
nas relações que se estabelecem entre o direito processual e a justiça social, a igualdade
jurídico-formal e a desigualdade socioeconómica.30 O seu estudo implica a identificação
do papel desempenhado pelo Estado e sociedade civil e pelas esferas pública e privada da
articulação entre os princípios de regulação do Estado, do mercado, da comunidade e da
associação, de forma análoga à que ocorre no sistema de resolução dos conflitos.
Se por um lado se identificam diferentes elementos facilitadores do acesso ao
direito e à justiça, por outro, não se pode deixar de considerar a existência de barreiras e
obstáculos. No que a esta matéria diz respeito, e de acordo com estudos realizados pela
sociologia do direito, identificam-se três tipos de obstáculos ao acesso efetivo à justiça por
parte das classes mais desfavorecidas: económicos, sociais e culturais (Santos et al., 1996:
486). Ou seja, custos económicos que compreendem preparos e custas judiciais,
honorários de advogados, gastos de transportes, custos resultantes da morosidade, custos
resultantes da prova testemunhal e faltas ao trabalho, distância em relação à
administração da justiça, desconhecimento dos direitos que estão em relação direta com
o status socioeconómico do sistema judicial, desconfiança e resignação por parte dos

30
Ainda a este propósito, mas num outro registo, é possível assinalar que as estratégias
desenvolvidas pelas profissões jurídicas face ao mercado da consulta jurídica revelam que o acesso ao
mobilizadores que podem estar dependentes de anteriores experiências negativas com a
justiça, medo de represálias se se recorrer aos tribunais (idem).
Em suma, as análises sociojurídicas revelam que a discriminação social no acesso à
justiça é um fenómeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que,
para além das condicionantes económicas, sempre mais óbvias, envolve condicionantes
sociais e culturais, resultantes de processos de socialização e de interiorização de valores
dominantes muito difíceis de transformar. 37

3. Da juridificação e da judicialização

Os laços estabelecidos entre o direito e a sociedade na modernidade adquirem


projeção institucional através do “processo civilizacional”, nomeadamente, pela forma
como o direito foi substituindo a força enquanto elemento organizador das sociedades
(Elias, 1989) no quadro de tendências que adquiriram especial relevo após a Revolução
Francesa e ao longo do sec XIX, momento em que se afirmam as formas de direito
restitutivo e de base contratual as que se afiguram mais ajustadas ao modelo de
sociedade industrial, capitalista e liberal que então se vai afirmando. A esta dinâmica,
associa-se a do papel do estado moderno que, independentemente das suas matizes mais
liberais ou mais interventoras face à sociedade, pressupõe o direito numa relação de
reciprocidade formando uma dupla indissociável. Como refere o Dictionnaire
encyclopédique de théorie et sociologie du droit (1993: 238), por um lado, o direito
reclama pelo Estado na medida em que todas as definições possíveis do fenómeno
jurídico conduzem inevitavelmente ao Estado, o qual se assume como a própria
encarnação da “ideia de direito”, o grande operador indispensável para potenciar a norma
jurídica conferindo-lhe efeitos plenos; por outro lado, o Estado reclama pelo direito, na
medida em que a institucionalização requer um conjunto de transformações, nas formas
de exercício do poder, que passam, numa forma determinante, pela dimensão jurídica. As

direito e à justiça não representam somente uma questão democrática, mas também financeira (cf. Faget,
1997).
relações de interpenetração entre sociedade, Estado e direito, nos termos acima
invocadas, colocam as questões base de saber: como as normas jurídicas adquirem
juridicidade, ou seja, como se tornam historicamente vigentes como normas jurídicas,
como direito – fenómeno da positivização do direito; qual o processo causal que conduziu
à formação dos diferentes tipos de direito – teoria do pluralismo das diferentes fontes de
direito31; qual o papel do Estado na determinação das zonas de fronteira entre direito e o
social, isto é, qual é o grau de interferência do direito na sociedade determinado 38
politicamente – questão da força do direito na regulação jurídica das relações sociais. A
investigação sociojurídica tem acorrido a estas matérias com os conceitos de juridificação
ou juridicização (que são aqui utilizados de forma indiferenciada) e de judicialização ou
judiciarização (que são aqui utilizados de forma indiferenciada), este último enquanto
manifestação específica da juridificação, que requerem algum esclarecimento quanto aos
seus conteúdos e geografia de origem.
Como ponto de partida, deve ter-se presente que a noção juridificação entendida
grosso modo como expansão do direito a áreas e relações sociais que não eram sujeitas a
regulação jurídica, é um fenómeno histórico que adquire contornos particulares com a
sociedade moderna. Como adiante se verificará pela análise dos trabalhos seminais de
Jürgen Habermas, Boaventura de Sousa Santos e de Jacques Commaille e Laurence
Dumoulin, são três as dimensões caracterizadoras dos processos de juridificação na
modernidade: a reconfiguração da relação entre estado e sociedade civil sob as condições
de emegência do Estado liberal, a qual adquire especial forma com a afirmação do
Estado-providência e a emergência do designado “direito regulatório”32; as consequências

31
A questão das fontes do direito estudada pela Teoria do Direito é um bom exemplo de
confluência entre diferentes formas de saber acerca da relação direito/sociedade. Desde logo porque a
teoria do direito reconhece que esta é uma matéria que ultrapassa o sistema jurídico por escapar à sua
“capacidade reguladora” convocando a ideia da teoria pluralista das fontes de direito. Por esta via se
permite a sua combinação com as discussões sociojurídicas associadas aos novos entendimentos
policêntricos do direito, aos modos de produção do direito e muito particularmente com a problemática da
juridificação. A este respeito consultar Arnaud e Dulce (1996: 315), Machado (1983: 154-171) e Neves (1984:
1511-1578).
32
A expressão direito regulatório para identificar a normatividade específica do estado social é
utilizada por Gunter Teubner (1987: 18-19) e encontra-se proxima da designada função promocional do
direito.Consiste básicamente num tipo de direito apostado em induzir comportamentos ou orientar
condutas para atingir determinados fins no quadro da atividade política do estado social.
resultantes da crescente interferência do direito nas relações sociais, autonomia
individual que corresponde, para aplicar o raciocínio de Jürgen Habermas, à crescente
colonização do “mundo da vida” pelo direito; e, finalmente, a crescente interpenetração
entre a justiça e as dinâmicas sociais e políticas expressa nas diferentes formas de
interferência e de mobilização dos tribunais na vida social, segundo as fórmulas do
ativismo judicial e da judicialização da política.
Segundo André-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce (1996: 211), a noção 39
juridicidade utizada na Europa Continental revela revela um caráter mais abstrato quando
contrastada com a expressão juridificação, utilizada pelos autores de língua inglesa. Estes
últimos, de uma forma pragmática, identificam os casos em que o direito vacila perante a
regulação social e vice-versa. Assim, a expressão juridificação de uma área social e o seu
antónimo desjuridificação, de uma área social referem-se aos processos através dos quais
a criação ou aplicação de normas adquire forma num sistema jurídico e, também, à
extensão do direito a um número crescente de setores e relações da vida económica e
social. Com a expressão judicialização sublinha-se a importância dos tribunais nas relações
sociais, assinalando as situações em que o direito de um Estado cria condições, ou a
contrário as desincentiva – desjudicializa -, para que um assunto possa ser levado a
tribunal. Uma nota ainda, para referir que a expressão desjudicialização remete
igualmente para o modo como assuntos que competem às instituições judiciais possam vir
a ser intervencionadas por instituições parajudiciais, ou mesmo privadas, como sucede,
por exemplo, com as formas alternativas de resolução de litígios (cf. Arnaud e Dulce, 1996:
212).
De acordo com o Dictionnaire encyclopédique de théorie et sociologie du droit
(1993: 319-320), juridicização corresponde a um processo relacionado com modos de
criação e aplicação de regras, ou modos de resolução de conflitos semelhantes aos
processos que têm lugar no interior do sistema jurídico. É ainda “extensão do direito e dos
processos jurídicos a um número crescente de domínios da vida económica e social”. No
mesmo sentido, para Mathieu Deflem (2008: 158)
“a juridificação refere-se ao aumento da lei formal através de uma
expansão da regulação legal de esferas anteriormente reguladas
de modo informal ou através de uma densificação da lei na
regulação de ações sociais de forma mais detalhada”.

Para Lars Blichner e Anders Molander (2005: 2), a noção de juridificação


encontra-se relacionada com outros conceitos, como os de judicialização e legalização e
pode numa perspetiva descritiva ser definida como
“a proliferação do direito, a tendência para o aumento do direito
formal positivo, monopólio do campo legal por profissionais,
40
construção do poder judicial, extensão do poder judicial e
capacidade do direito para guiar as ações e expectativas dos
indivíduos”.

Os autores, numa perspetiva normativa, sustentam que a juridificação está ligada


às marcas da democracia constitucional e do triunfo do Estado de direito sobre o
despotismo, sendo possível, neste caso, distinguir cinco dimensões: primeira, é um
processo em que as normas constitutivas da ordem política são estabelecidas, ou
alteradas, através do aumento de competências do sistema jurídico; segunda, é um
processo através do qual a lei regula um crescente número de atividades diferentes
relacionando-se, pois, com a noção de diferenciação social; terceira, corresponde a um
processo em que os conflitos são resolvidos crescentemente por recurso à lei; quarta, é
um processo através do qual o sistema legal e as profissões jurídicas adquirem poder face
à autoridade formal; quinta, é um processo em que as pessoas tendem, crescentemente,
a pensar-se a elas mesmas e aos outros como sujeitos de direito (Blichner e Molander,
2005).

3.1 Juridificação: o contributo de Jürgen Habermas

Jürgen Habermas deu um importante contributo para a refelexão em torno do


conceito de juridicização, o qual se encontra vertido em diferentes textos, mas que
encontra no trabalho seminal “Tendências da Juridicização”, capítulo constitutivo da sua
obra A teoria da Competência Comunicativa, publicada originalmente em 1981 e que aqui
se analisa, momento maior. 33 De acordo com o autor, a noção
“refere-se de maneira geral ao facto, que se pode obervar nas
sociedades modernas, de o direito escrito ter tendência a
aumentar. Este aumento corresponde a dois fenómenos: a
expansão do direito, ou seja: a regulamentação jurídica de aspetos
da vida social até agora submetidos apenas a normas sociais
informais, e a densificação do direito, ou seja: a decomposição, por
41
especialistas do direito, de hipóteses normativas jurídicas globais
em hipóteses normativas mais específicas” (Habermas, 1987: 186).
34

O autor relaciona o fenómeno com a crescente intervenção do Estado na


sociedade, nomeadamente, sob a forma de Estado social35, identificando a existência de

33
Utilizo a tradução do capítulo realizada por Pierre Guibentif e publicada na revista Sociologia
Problemas e Práticas nº2, 1987 (185-204). Na versão inglesa do livro publicada em 1987, consultar o
segundo volume (Habermas, 1987a: 356-373).
34
De acordo com Habermas (1987: 186), a noção de juridicização foi introduzida durante a
República de Weimar por Otto Kirchheimer, tomando o exemplo da institucionalização do conflito de classes
por via do direito tarifário e do trabalho correspondendo, genericamente, à “canalização de diferendos
sociais e de lutas políticas em formas jurídicas”.
35
Em 1987, Gunter Teubner organiza o livro, Juridification of Social Spheres: A comparative
analysis in the areas of labor, corporate, antitrust and social welfare law, onde os temas da juridificação na
sua relação com o Estado-providência são abordados de uma forma promenorizada. No seu contributo
intitulado “Juridificação, Conceitos, Aspetos, Limites e Soluções”, recorre ao estudo de Habermas aqui
analisado, bem como ao trabalho “Law as Mediun and Law as Institutions”, publicado no livro também por
ele organizado em 1985 e republicado em 1988, Dilemmas of Law in the Welfare State. De referir que, no
entanto, Teubner se encontra associado à escola do direito autorreferencial de Luhmann. Teubner (1988:
309) identificou três grandes limitações da regulação jurídica atual, sob a designação de “trilema
regulatório”. O trilema regulatório baseia-se na premissa de que os três subsistemas - a política, o direito e a
vida social - são autónomos, são autorreferenciais e, por isso mesmo, não podem exercer influência uns
sobre os outros, exceto quando os limites autorreferenciais impostos são alienados pelo sistema autónomo.
E quando estes limites são excedidos pelo sistema legal, a crise de juridificação acontece. A primeira, na
expressão de Habermas, é a do direito “colonizar a Sociedade”, submetendo histórias de vida e formas de
viver concretas, e contextualizadas, a uma burocratização abstrata, subjacente à regulação jurídica, a qual
destrói a dinâmica orgânica das diferentes esferas sociais. O Estado-Providência promoveu a
instrumentalização política do direito até aos seus limites. Esta “sobrejuridicização da sociedade”, ao
submeter situações concretas a um direito abstrato, visava a integração social, mas acabou por criar
desintegração social. A segunda limitação revela-se como “materialização do direito”: o reverso da
sobrejuridicização da sociedade é a sobressocialização do direito. O direito fica prisioneiro da política ou dos
subsistemas regulados, "politizando-se", “economizando-se” ou “pedagogizando-se”, acabando por
submeter a uma tensão excessiva, a autoprodução dos seus elementos normativos (Teubner, 1988:311). A
terceira, resulta das referidas disfunções redundarem em ineficácia do direito. A discrepância da
autoprodução interna do direito, com a das outras esferas sociais que regula, torna a regulamentação
jurídica ineficaz ou contraproducente (cf. Santos, 2000; Guibentif, 1992; Pedroso, 2013). Santos (2000:
um processo de juridicização marcada por quatro vagas. A primeira, a do desenvolvimento
do capitalismo que abre espaço à afirmação do direito civil e estabelece um sistema de
direitos e obrigações aplicável a pessoas privadas, envolvidas em relações contratuais.
Esta regulação, através do direito civil, garante a liberdade no mercado, embora o direito
público e o poder político permaneçam nas “mãos do soberano”. É o momento de
afirmação do Estado burguês. Este surto de juridicização dá lugar à sociedade burguesa e
à esfera da experiência burguesa, emancipada pelo direito privado e pela autoridade legal, 42
decompondo os vestígios dos estatutos e dos direitos corporativos.
A segunda, a dos direitos individuais, que garante a não interferência por parte do
poder político e do soberano, corresponde ao desenvolvimento dos Estados
constitucionais e às suas garantias. É o momento do Estado de direito burguês. Este
segundo surto de juridicização assenta na regulamentação pelo direito constitucional de
uma autoridade até agora limitada e ligada apenas pela forma legal e pelos meios
burocráticos de exercício da dominação. Agora, os cidadãos recebem direitos subjetivos
públicos, invocáveis contra o soberano sem que, contudo, participem democraticamente
na formação da vontade deste soberano. Como refere Habermas (1987: 189)
“este processo pode ser considerado como um primeiro passo na
direção de um estado moderno que se legitima pelo seu próprio
direito, que se legitima na base de uma esfera de experiência
moderna”.

A terceira vaga é a dos direitos sociais reclamados politicamente através da


participação democrática e dos direitos que garantem a expansão dos processos
eleitorais. Está-se perante o Estado de direito democrático, pelo qual se consagra, no
plano do direito constitucional, a ideia de liberdade, já investida no conceito de lei

147-148) recusa que a solução para a crise do direito seja a conceção do direito como um sistema
autopoiético, por não dar o devido relevo à relação entre a evolução da sociedade e a evolução do direito.
Por outro lado, para o autor, a discussão sobre a processualização e a reflexividade do direito é uma falsa
questão, por assentar na conceção de autonomia do direito no Estado liberal, que segundo ele, é uma
conceção mistificatória. A crise não ocorreu no direito, mas sim nas áreas sociais que regula. Trata-se,
portanto, da crise de uma política – o Estado-Providência – e não da crise da forma jurídica – o direito
autónomo. O direito moderno, enquanto conceito muito mais amplo do que o direito estatal moderno, está
em crise, não devido à sobreutilização que o Estado fez do direito moderno, mas devido à redução histórica
desenvolvido nas doutrinas do direito natural. Como refere o autor “democratiza-se o
poder de Estado constitucionalizado” (Habermas: 1987: 190), através da juridicização do
processo de legitimação sob a forma de direito de voto igual e generalizado, e da
liberdade organizativa para associações e partidos.
Finalmente, a quarta vaga surge com o desenvolvimento do Estado-Providência,
dos direitos sociais e às suas reivindicações contra o sistema económico, afirmando-se a
democracia e o estado de bem-estar contra a lógica do mercado livre. O desenvolvimento 43
que leva ao Estado de direito social e democrático pode ser entendido como a
constitucionalização de uma relação de forças implicadas nas estruturas de classes, de que
se pode dar como exemplo a legislação laboral, a segurança social etc (Habermas, 1987:
196). As três últimas vagas de juridicização, de acordo com Habermas, correspondem à
teorização do mundo da vida e a sua contraposição às influências do estado e do
mercado. De acordo com Mathieu Deflem (2008), estas vagas correspondem à tentativa
de proteger a liberdade política, a igualdade política e a igualdade económica.
A análise de Habermas do processo de juridificação é indissociável da sua definição
de direito e não pode percecionar-se de uma forma desvinculada da sua teoria social e
dos entendimentos normativos que advoga. 36 Permite esclarecer o seu entendimento de
direito na medida em que se sente a tensão entre a lógica de funcionamento dos sistemas
e as dinâmicas da interação social 37. Neste sentido, Habermas utiliza um conceito dual de

da sua autonomia e da sua eficácia à autonorma e à eficácia do Estado. Os limites da regulação jurídica,
nomeadamente a eficácia, são problemas politicamente determinados (Santos, 2000: 151).
36
Herdeiro da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Habermas é autor de uma vasta obra
insuscetível de aqui ser analisada. Destaca-se, no entanto, o seu trabalho Teoria da Ação Comunicativa que
inclui o capítulo que aqui se analisa, como uma obra maior na qual, grosso modo, se pode afirmar que
Habermas desenvolve a sua microssociologia no primeiro volume, dedicando o segundo à sua abordagem
macrossociológica (Turner, 1991: 270; Ritzer, 1996). Centra-se nos debates da teoria sociológica com base
em dicotomias como ação-teoria, ação comunicativa e mundo da vida, por um lado, e teoria dos sistemas,
ação estratégica e sistema, por outro (Banakar e Travers, 2013: 57). Tomando como ponto de partida esta
obra deve referenciar-se que, em última análise, o elemento explicativo da ordem social reside na
linguagem e na comunicação linguística, possibilitadora da construção de uma base ético-discursiva e das
racionalidades da ação humana. Dela também decorre a sua perspetiva da ação comunitativa e a natureza
dual das sociedades modernas, entendidas em termos de mundo da vida e de sistemas, os quais são
analisados através da fusão teórica entre as abordagens interacionistas e das teorias dos sistemas.
37
Oportuna é a referência à discordância entre Habermas e Luhmann a propósito da relação entre
a moral e o direito. Para Habermas, as normas da moral e do direito são importantes pois constituem
referências estabelecidas, admitidas e reconhecidas a partir das quais é possível um acordo. Já a tese de
direito assente na distinção: direito como meio; e direito instituição ligado ao mundo da
vida. No primeiro caso, o direito está relacionado com os sistemas sociais, funcionando
como meio de organização dos mesmos. É um direito instrumentalizado visando a
organização dos sistemas sociais, como é o caso das normas de direito civil, direito
empresarial, direito económico, etc. No segundo caso, o do direito ligado ao mundo da
vida, enquanto instituição, está ligado a uma estrutura mais complexa que combina
procedimento formal e legitimidade material para a formação das normas jurídicas, 44
designado por Habermas como institucionalização do direito. Nesta perspetiva, os
princípios materiais refletem uma determinada “moralização” por parte do Direito – como
o direito constitucional, direito penal, etc. – de forma a encontrar, no campo da moral,
uma fundamentação legitimadora (Habermas: 1987: 516). Assim, enquanto o direito como
meio teria o papel de organizar e constituir controladamente o Estado e a Economia, o
Direito como instituição, associado a questões de conteúdo moral, não teria qualquer
papel constitutivo, mas tão-somente regulador. O direito no mundo vida expandiu-se na
modernidade através do processo de juridicização, entendido por Habermas como uma
colonização indesejável do mundo da vida pelo direito, enquanto mediador que deu
origem a uma crise de legitimação (Banakar e Travers, 2013: 57). 38

3.2 Judicialização: o contributo de Boaventura de Sousa Santos

Em 2002, Boaventura de Sousa Santos publica “Direito e democracia. A reforma


global da justiça", texto onde fica patente o caráter distintivo da sua análise do tema da

Luhmann é a da separação progressiva do direito e da moral, ou seja, o processo da positivação do direito,


está relacionada com as justificações internas dos sistemas legais.
38
Todavia, Habermas viria a ter uma avaliação mais positiva do direito nos anos 1990,
nomeadamente com a publicação de Direito e Democracia Entre Facticidade e Validade ([1992] 2003)
abandonando o conceito dual de direito e reformulando a sua teoria jurídica com base na conceptualização
do direito enquanto instituição do mundo da vida na sua totalidade. O autor passou então a afirmar que a
regulação tem uma justificação moral e que o direito é o melhor meio através do qual se pode preservar
uma sociedade pluralista e democrática. Assim, a colonização do direito pelo sistema económico e político
não é mais vista como algo negativo, aproximando-o um pouco da perspetiva de Parsons (Banakar e Travers,
2013: 58). Manifestação deste novo entendimento do direito, encontra-se por exemplo em Jurgen
Habermas Obras Escolhidas Volume IV Teoria Política (2015). Ainda acerca da questão do direto em
Habermas, pode consultar-se Aroso Linhares (1989).
judicialização marcada por três notas caracterizadoras: a de relacionar o fenómeno com a
teoria democrática; a do associar à crise do estado providência; e a do enquadrar pelos
impactos dos processos de globalização. Para o autor, a resposta à questão sobre que tipo
de Estado é simultaneamente pressuposto e produzido pela expansão do poder judicial,
parte da hipótese de que existe uma “íntima ligação ou correlação entre a reforma do
judiciário e do sistema jurídico, por um lado, e o Estado, quer como sistema político, quer
como aparelho administrativo, por outro” (Santos, 2002: 151). Quer isto dizer, que na sua 45
perspetiva, a reforma judicial embora sendo uma questão jurídica, é antes de mais, uma
questão política, defendendo, por isso, que “a judicialização da política acarreta a
politização do judiciário” (idem). Porém, trata-se de um fenómeno que ocorre de modo
diferente dependendo da sua localização. Boaventura de Sousa Santos refere que nos
países centrais, em particular na europa continental, o crescente protagonismo dos
tribunais é o sintoma de uma dupla crise do Estado, nomeadamente, “como centro de
regime democrático, a contas com uma crise de legitimidade, e como Estado-Providência
incapaz de manter as altas expectativas dos cidadãos a seu respeito” (Santos, 2002: 151).
A primeira crise – a de legitimidade - está relacionada com a perceção pública da
perda de transparência na governação, resultante da falta de responsabilização e de
controlo público do Estado. Como respostas a esta perceção, surgem o ativismo judicial na
luta contra a corrupção política e a expansão do poder judicial em relação à separação de
poderes e competências estatais. Contudo, o autor adverte que estes são menos
instrumentos de controlo público do Estado do que uma resposta, de eficácia variável, às
consequências da falta de tais instrumentos, sendo que os mesmos passarão sobretudo
pela democracia participativa e pela articulação desta com a democracia representativa
(Santos, 2002: 152).
O ativismo judicial está igualmente relacionado com a segunda crise do
Estado-Providência, entendida publicamente como uma perda da eficiência e da proteção
social estatal. O autor salienta que o crescimento da litigação em áreas como o direito
administrativo, os direitos sociais e económicos, a defesa dos direitos do consumidor e a
proteção do meio ambiente, a higiene e segurança no trabalho, tem sido acompanhado
por um aumento de descrédito do Estado e por uma falta de confiança ou vontade do
Estado na aplicação e defesa dos seus direitos (idem).
As consequências da dupla crise da democracia e do Estado-Providência, pela qual
têm sido responsabilizados tanto o poder legislativo como o executivo, conduzem a uma
deslocação da legitimidade central do Estado dos poderes legislativo e executivo para o
poder judicial. Esta deslocação permanece, porém, uma questão em aberto não deixando
de ser por si só intrigante, principalmente por duas razões. A primeira é a de que o 46
sistema judicial faz parte do Estado e, como tal, deve ser visto mais como parte do
problema do que como parte da solução, e a segunda é a de que o facto de a legitimidade
democrática poder doravante repousar no único poder estatal que, na quase totalidade
dos países, não é eleito diretamente pelos cidadãos (Santos, 2002: 152-153).
Perante este cenário, o autor questiona as razões que estão por trás do aumento
da centralidade dos tribunais nas últimas duas décadas. Focando a Europa, Santos refere
que durante muito tempo a independência dos tribunais teve como contrapartida o seu
isolamento social e a sua neutralização política. Nos finais do século XIX, com a revolução
industrial capitalista e perante os problemas a ela associados que ficaram conhecidos
como a questão social, o sistema judicial manteve-se indiferente, defendendo
pacatamente os direitos de propriedade e as obrigações contratuais estabelecidas entre
particulares, na sua maioria membros da burguesia. Os conflitos coletivos que estavam na
base desses problemas foram institucionalizados, ao longo do séc. XX, por via dos
compromissos de classe promovidos, principalmente, pelas sociais-democracias e que
levaram à formação do Estado-Providência. As clivagens políticas permaneceram
profundas, particularmente no contexto da guerra fria que consitia na transformação dos
problemas sociais em direito efetivamente respeitados, o que se tornou na base da
governabilidade. Os tribunais foram quase totalmente excluídos de todo este processo
político e a sua independência sofreu relativamente pouca interferência política. Nas
últimas décadas, os fundamentos económicos e sociais dos compromissos de classe,
subjacentes ao Estado-Providência têm vindo a sofrer um processo de erosão que atinge a
natureza das obrigações políticas democráticas. Neste sentido, a independência do
judiciário tornou-se condição necessária da pressão por ele exercida publicamente para
que desempenhe um papel mais ativo e dinâmico. A questão de quanto durará esta
situação, afirma o autor que ninguém saberá responder (Santos, 2002: 154).
Contudo, no seu entender tal aponta para uma nova forma de Estado, o
“Estado pós-providência – a versão consensual de um Estado fraco
nos países centrais. Esta nova forma política implica que o Estado
se mantenha como um Estado regulador e intervencionista, mas
sobretudo com o objetivo de abrir espaço para a substituição 47
parcial das suas obrigações políticas para com os cidadãos por
obrigações contratuais entre empresas, organizações
não-governamentais, o próprio Estado e os cidadãos, agora
convertidos em utentes (…) um Estado suficientemente forte para
produzir de uma forma eficiente a sua fraqueza” (Santos, 2002:
155).

Assim se explica o facto da redução do setor administrativo do


Estado-Providência conduzir a um aumento do sistema judicial. Deste modo, o sistema
judicial pode contribuir para manter a legitimidade do pacto-social democrata entretanto
debilitado pela erosão das condições que até agora o sustentavam. Contudo, tal não
ocorre sem problemas, dado que o facto de terem a independência necessária para agir
mas nenhum poder para fazer cumprir as suas decisões, os tribunais podem exceder a sua
real capacidade de resposta, deixando de ser parte da solução para integrarem também
eles parte do problema (idem). No entanto, o papel da judicialização varia de país para
país, nuns países os tribunais fazem parte integrante da transição democrática, noutros o
seu protagonismo deve-se essencialmente ao ativismo dos tribunais constitucionais, como
é o caso da África do Sul, Hungria e Portugal.
Como nos diz o autor, a
“ambiguidade da intervenção dos tribunais (…) revela-se
particularmente útil sempre que as forças políticas não conseguem
chegar a um compromisso político em questões estruturantes (…)
Competirá então ao Tribunal Constitucional arbitrar as diferenças”
(Santos, 2002: 156).
Para além dos tribunais constitucionais, o que deu projeção aos tribunais,
principalmente nos países semiperiféricos, foi que, mobilizados pelos meios de
comunicação social e por organizações cívicas, assumiram um maior ativismo no que
respeita à defesa dos direitos humanos, à proteção constra os danos causados por atores
poderosos e à luta contra a corrupção. Daqui resulta também a ênfase dada às reformas
judiciais como modo de resolver problemas políticos.
Do mesmo modo, registam-se neste domínio duas grandes diferenças entre os 48
países centrais e os países semiperiféricos. Nos países centrais as reformas em curso
parecem responder a dinâmicas internas e tudo se concentra nos tribunais, uma vez que o
Estado de Direito é um dado adquirido e as reformas legislativas constituem processos
políticos correntes. Nos países semiperiféricos, as reformas são conduzidas sobre a
pressão globalizante de alta intensidade dominada pelas instituições e modelos legais
norte-americanos, e o alcance das intervenções é muito maior, contemplando não só a
reforma judicial como também a reforma do sistema jurídico em geral, ou seja, a própria
construção de um Estado de Direito (idem). A este propósito, Boaventura de Sousa Santos
refere que ambas as diferenças se explicam pelas reformas políticas tidas como
necessárias nos países semiperiféricos, sendo que o que está relamente em causa é a
“criação de um Estado pós-ajustamento estrutural” (2002: 157). Desde a década de 1980,
o consenso neoliberal conduziu à expansão do capitalismo global à escala global,
contribuindo de forma decisiva para a queda de estados que envolviam esquemas de
proteção social nas áreas da saúde e da segurança social, sendo substituídos por Estados
fracos, com um modelo desenvolvimento baseado na economia de mercado e na
privatização do setor público (Santos, 2002: 157).
Neste sentido, o autor assinala que o Banco Mundial tem vindo a lamentar-se pelo
Estado se ter tornando demasiado fraco para desempenhar o seu novo papel, de não
somente, facilitador da economia de mercado, como igualmente o seu regulador. A
importância aqui atribuída ao Estado deriva, assim, da necessidade de restabelecer a
capacidade reguladora do Estado em novos termos: “o Estado pós-desenvolvimentista”.
Quer isto significar que o Estado deixou de ser o motor do desenvolvimento e a
transformação social deixou de ser um problema político, reduzindo-se à questão
económica e técnica de proporcionar uma vida melhor para todos os cidadãos. Ou seja, o
“primado do direito e do sistema judicial são, assim, concebidos,
quer como princípios de ordenação social, quer como
instrumentos de uma conceção despolitizada da transformação
social. Os tribunais eficientes são a força por excelência de um
Estado fraco” (Santos, 2002: 158).

Contudo, na sua perspetiva, a despolitização da transformação social poderá ser 49

problemática, dado que simultaneamente se assiste ao crescimento acentuado da


pobreza e desigualdades sociais e à erosão gradual das redes de segurança antes
propiciadas pelo Estado. Para Boaventura de Sousa Santos, gerir este problema com uma
combinação do primado do direito próprio da democracia liberal e ao ativismo judicial,
torna-se insuficiente, pelo que “as reformas do judiciário e do sistema jurídico podem, na
melhor das hipóteses, visar a construção ou restauração de uma capacidade mínima do
Estado” (Santos, 2002: 158-159). Ao anteriormente exposto acresce a função de assegurar
a estabilidade e a previsibilidade jurídica para o setor internacionalizado da economia,
conduzindo à concentração dos investimentos jurídicos e judiciais nos capitais (idem).

3.3 Judicialização: novo ponto de situação de acordo com Jacques Commaille e


Laurence Dumoulin

Jacques Commaille e Laurence Dumoulin publicam na revista L' Année


sociologique, em 2009, um importante artigo onde desenvolvem um trabalho de
inventário da literatura relacionada com o tema da judicialização. Partem das pistas de
reflexão deixadas pelas novas perspetivas de teorização acerca das relações entre
legalidade e poder político, indissociável da crescente utilização do direito na esfera
judicial que tem como consequência atribuir um novo papel e um novo estatuto ao direito
na sua relação com a esfera política.
Os autores partem da constatação de que a judicialização decorre de uma
realidade ou de representações/construções em torno da factualidade do crescimento do
papel da justiça relativamente à política, às políticas públicas e ao funcionamento da
democracia. Partindo do pressuposto de que a judicialização não pode ser dissociada do
regime de legalidade vigente, concebem-na como elemento chave que engloba
numerosos espaços nacionais e transnacionais bem como jurisdições de níveis
diferenciados. Para além disso, sublinham que as novas realidades do direito na sua
relação com a justiça implicam a atribuição de novos papéis e de novos estatutos jurídicos
relativamente ao político. 50
Na organização e sistematização das relações entre legalidade e poder político, e
entre legalidade e democracia, que se interpenetram com o poder judicial, partem três
questões: 1) Será que a judicialização constitui a expressão de formas de legalidade em
evolução, de transformações do princípio de legitimidade da dominação política? 2)
Representará uma manifestação relativamente ao monopólio do Estado moderno no que
respeita à produção do direito? 3) Anunciará uma transformação dos modos de governo?
(Commaille e Dumoulin, 2009: 65).
Na resposta a estas interrogações não deixam de se assinalar algumas das
dificuldades que as ciências sociais têm revelado no relacionamento com um objeto tão
incerto como é o da judicialização seja no que concerne aos factos que supostamente
qualifica, seja nas suas variações em função de contextos institucionais políticos e
culturais diferentes. Dois elementos importantes são de realçar a este propósito. Em
primeiro lugar, a justiça conquistou um papel central na produção de políticas públicas.
Em segundo lugar, esta nova centralidade coloca a justiça no cerne do funcionamento das
democracias. É, a partir destas constatações que as ciências sociais podem ultrapassar as
visões limitadas do lugar tradicionalmente atribuído à legalidade e ao papel da justiça na
constituição e no funcionamento da política. Por esta via, a judicialização pode ser agora
reconceptualizada como um fenómeno polimórfico e com diversas significações (idem:
66).
Estabelecida esta nova analítca para o fenómeno da judicialização passam a
analisar alguns contributos teóricos que consideram ser dos mais relevantes. Começam
por destacar o contributo de Waltman, para quem a "judicialização (...) decorre de uma
diversidade de causas, toma formas diferentes, e pode conduzir a resultados totalmente
heterogéneos de acordo com o sistema político” (Waltman apud Commaille e Dumoulin,
2009: 66). Quanto aos trabalhos de Tate e Vallinder relembram que estes afirmam que o
fenómeno de judicialização é uma questão de "expansão do poder judiciário", ideia
retomado por Guarnieri e Pederzoli com a expressão "crescimento do poder judiciário",
visto como o aumento de poder, ou mesmo, a tomada do poder pelos atores judiciários
(Commaille e Dumoulin, 2009: 66). No entendimento de Ferejohn, a judicialização 51
corresponde a "uma deslocação de grande amplitude do poder, que se observa a nível
internacional e que parte do Legislativo para o judiciário e outras instituições jurídicas"
(Ferejohn apud Commaille e Dumoulin, 2009: 66). Também Horowitz, utilizando o termo,
"jurocracy", Hirsch com a designação "juristocracy", e Scheppele escolhendo a de
"courtocracy", confluem com o pensamento de Fournier e Woehrling de que se está
perante um sistema político em que os profissionais da justiça se transformam nos atores
dominantes, um jogo político em que "o poder de decisão se desloca para os tribunais"
(Commaille e Dumoulin, 2009: 66). Neste caso, e segundo Ferejohn, os juízes estariam
antes de mais associados à vida política e à ação pública, de acordo com uma tripla
dimensão: na imposição de limites substanciais ao poder das instituições legislativas; na
definição do próprio conteúdo das políticas públicas e da sua operacionalização concreta;
e, por fim, na arbitragem da atividade política através da regulação da competição política
pelo financiamento dos partidos ou, ainda, do tratamento do contencioso eleitoral
(Ferejohn apud Commaille e Dumoulin, 2009: 67). Para autores, como Shapiro e Stone
Sweet, a judicialização reenvia para o processo geral, através do qual "o discurso do
direito - normas de comportamento e linguagem - penetra e é absorvido pelo discurso
político" e, portanto, “as políticas «judicializadas» são políticas conseguidas finalmente em
parte através da mediação do discurso do direito" (idem). Um dos aspetos mais relevantes
da judiciarização, segundo Ferejohn, relaciona-se com a constatação da importância
institucional dos tribunais na definição de conteúdo e construção das políticas públicas,
nomeadamente nos Estados Unidos, o que conduz à afirmação de que as construções da
legalidade constituem, ou podem ser encaradas, como políticas públicas e compromissos
para a democracia (Ferejohn apud Commaille e Dumoulin, 2009: 78).
O papel da justiça, no domínio das políticas públicas, não se situa unicamente ao
nível do que seriam as recomposições do trabalho governamental e a deslocação
progressiva desse papel. As questões colocadas dizem respeito à própria natureza da
política e às suas metamorfoses, ao questionamento do equilíbrio tradicional dos poderes
legislativo, executivo e judiciário, e às formas de realização da democracia. É esta 52
amplitude que explica o caráter vincadamente contrastante das aproximações que se
desenvolveram em torno do fenómeno de judiciarização. Deste modo, é possível opor
uma visão encantada do fenómeno a uma visão crítica do mesmo (Commaille e Dumoulin,
2009: 87).
A visão encantada da judicialização, de acordo com Conant, coloca em destaque a
capacidade de esta assegurar o progresso social, melhor defender e assegurar o
crescimento dos direitos do homem, dos direitos dos mais fracos (Conant apud Commaille
e Dumoulin, 2009: 87). A esta visão contrapõe-se a crítica de que, nas sociedades liberais,
o direito adquiriu um caráter ambíguo e contraditório e que, neste caso, as normas
jurídicas e as instituições não garantem a justiça, sendo até um mero obstáculo na procura
de uma sociedade mais justa. Charles Epp, por exemplo, sublinha a dificuldade em
conciliar o "ativismo judiciário" com a democracia e destaca o perigo que representa a
transferência para o judiciário de questões tradicionalmente entregues à responsabilidade
de políticos eleitos e instituições que funcionam de acordo com o princípio da maioria
(Epp apud Commaille e Dumoulin, 2009: 87).
Os autores finalizam o seu artigo afirmando que todas estas questões de análise e
de reflexão, em torno do fenómeno da judiciarização, estão associadas a manifestações da
consciência de uma mudança do regime de legalidade. Tal mudança é resultado das
transformações que ocorrem na política, assente na questionação do Estado moderno, e
no aparecimento de um modelo de dominação legítima que tem a judiciarização, realizada
ou representada, como um dos atributos (Commaille e Dumoulin, 2009: 101) 39.
Em suma, o entendimento do conceito de judicialização, colocado como resultante
de uma alteração paradigmática da relação entre justiça e sociedade, é fundamental
segundo Commaille, que sintomaticamente fala em “novo poder do direito” em artigo
breve, mas relevante, publicado na revista Sciences Humaines de janeiro de 2016. O autor
destaca, desde logo, o facto do direito intervir cada vez mais na regulação das relações 53
sociais e políticas, e num novo contexto de relações que dele exigem também revitalizada
intervenção. A intervenção reguladora da judicialização toma duas formas: uma
judicialização das relações sociais e económicas; e uma judicialização da política. No
primeiro caso, trata-se de recorrer à justiça como instrumento assente em novos
pressupostos de ação coletiva impulsionada por movimentos sociais que tentam
promover uma causa, servindo-se da justiça. No segundo caso, o da judicialização da
política, está-se perante um novo regime de regulação das sociedades, onde a justiça
surge de uma forma mitificada. Tal significa que se torna difícil distinguir o que é realidade
e construção, em função dos meios jurídicos e judiciários que intervêm cada vez mais no
domínio dos direitos sociais, do controle dos resultados das eleições, da
constitucionalidade das leis, da gestão de situações nascidas durante uma ditadura, das

39
Os autores assinalam também que a noção de judicialização abarca igualmente o
desenvolvimento de procedimentos de tipo judiciário em fóruns não judiciários de tomada de posição e de
negociação, como é o caso de administrações nacionais ou internacionais como o GATT (Commaille e
Dumoulin, 2009: 67). Neste contexto o uso do termo ganharia um sentido mimético, a nível institucional que
explicaria que os métodos judiciários seriam importados e adaptados noutros setores. A forma do processo
regulado por um terço imparcial, o princípio do contraditório, a possibilidade de fazer apelo, a obrigação de
motivar toda e qualquer decisão, seriam disposições emprestadas ao modelo judiciário que se difundiriam
por outras administrações, nomeadamente pela circulação de atores entre estes diferentes espaços.
Tratar-se-ia, então, de uma judicialização do interior (from within), por oposição à precedente qualificada
como judicialização do exterior (from without). Esta forma de judicialização marcada por recurso a
procedimentos parajudiciários provocaria um acréscimo de processualização no que respeita à criação das
políticas públicas americanas, o que é denunciado em reflexões de natureza doutrinal (idem: 67-68). A
importância atribuída à justiça "restauradora" em situações como as de violência do apharteid na África do
Sul, da ditadura chilena ou de ditaduras noutros países da América latina, representa uma outra forma de
expressão do fenómeno da judiciarização, de modo mais geral, a multiplicação de jurisdições
supranacionais, de acordo com Hirschl, Sugarman e Lefranc (apud Commaille e Dumoulin, 2009: 68). Deste
modo, e genericamente, a judiciarização seria uma das manifestações de "globalização judiciária",
concomitante das "globalizações jurídicas" e económicas, segundo Slaughter (idem).
relações entre comunidades diferentes no seio de uma mesma sociedade. Ou seja,
trata-se da intervenção do judiciário em domínios que anteriormente provinham da
competência da política. Este facto conduzirá, por vezes, à possibilidade de se falar de um
"governo dos juízes" (Commaille, 2016: 84). Estas diferentes expressões da judicialização
têm um significado muito mais geral do que o das simples transformações do direito e dos
seus procedimentos, revelando uma mudança no regime de regulação social e política das
sociedades contemporâneas. Neste sentido, o direito torna-se um objeto privilegiado de 54
conhecimento do social e do político, na medida em que opera como revelador e
indicador sociológico, numa perspetiva que é herdada dos clássicos da sociologia (idem:
85).

4. As funções do direito e a sua problematização

Para a teoria social, a noção de função ou de análise funcional, convoca uma ampla
discussão. Em regra, destacam-se as limitações decorrentes do postulado do
funcionalismo universal, o caráter conservador do pensamento político que lhe está
subjacente, o privilegiar da estabilidade ignorando os temas do conflito e da mudança
social, e o caráter abstrato e formal da sua análise da realidade social. Com as
especificidades de escolas e autores que lhe são reconhecidas, a tradição do
funcionalismo do precursor Auguste Comte, passando pelos clássicos Herbert Spencer e
Émile Durkheim, pela antropologia funcionalista de Radcliffe Brown e Bronislaw
Malinowski, até ao contemporâneo Talcott Parsons a ele se associando os
desenvolvimentos mais recentes de Niklas Luhmann e dos neofuncionalistas, encontra-se
toda uma tradição teórica marcada pelos elementos anteriormente referidos. A mesma
conviveu a par e passo com os seus críticos, quer estes se situem dentro da teorização
funcionalista, como sucede com Robert Merton e Lewis Coser, ou externamente, como
acontece com Wright Mills e Ralf Dahrendorf, as sociologias críticas e interacionistas, a
etnometodologia etc.. 40

Para a sociologia do direito, a formulação desta problemática teórica adquiriu


contornos particulares pela razão óbvia de se reconhecer que o direito desempenha
algum tipo de funções nas sociedades. Por exemplo, desde cedo o marxismo e as teorias
do conflito assinalaram a forma como o direito desempenha as funções de controlo social
legitimando simultaneamente o exercício do poder, nomeadamente, do exercido pelo 55
Estado liberal e pelas classes possidentes, e regulando pacificamente o conflito de classes.
Por outro lado, para os funcionalistas como Parsons, a função do direito assenta,
sobretudo, na integração social vista como interdependência pacífica entre os membros
de uma sociedade, ilustrando-se este entendimento também com a perspetiva de
Luhmann que identifica o direito como uma estrutura destinada a reduzir a complexidade
graças à sua capacidade de generalizar “as expectativas normativas de conduta” (Arnaud
et al., 1993: 266-268).
Acrescem, ainda, duas questões à utilização da noção de função pela sociologia do
direito. Em primeiro lugar, as funções desempenhadas pelo direito, tanto se reconhecem
nas funções repressivas que consistem na dissuasão das condutas através de sanções
negativas que caracterizam o direito no Estado liberal, como na função promocional que
consiste em estimular as condutas através de sanções positivas que caracterizam o Estado
social (Bobbio apud Arnaud et al., 1993: 267). Em segundo lugar, no diálogo que
estabelece com a teoria do direito e com a filosofia do direito, fica também sublinhada a
relação existente entre função e sentido do direito, que ultrapassa as dimensões
instrumentais desempenhadas pelo direito, e conduz a uma reflexão ético-filosófica, de
onde decorre a questão da função do direito deveria consistir na realização da justiça e do
seu entendimento como processo e mecanismo para alcançar a noção de justiça em
sentido amplo41.

40
Para uma análise detalhada do paradigma funcionalista e das críticas endereçadas ao mesmo, de
entre extensa bibliografia sugiro a consulta de Jonathan Turner (1991) e George Ritzer (1992).
41
Acerca da relação entre sentido e funções do direito consultar: Baptista Machado (1985:32,33);
Manuel Atienza (2014); Castanheira Neves (2011); José Manuel Aroso Linhares (2013).
Assim, como poderá a sociologia do direito ultrapassar as críticas apontadas à
noção de função – universalista, determinista, etc – utilizando-a proveitosamente nas suas
investigações? Pode acompanhar-se Norberto Bobbio que, como assinalam André-Jean
Arnaud e Maria José Farinas Dulce, “explicou com grande clareza” como pode a sociologia
do direito utilizar a noção de função e de análise funcional sem se sujeitar às críticas que
lhe são endereçadas. Segundo Bobbio (apud Arnaud e Dulce, 1996: 128)
“a análise funcional de uma instituição(…)pode perfeitamente 56
prescindir dessa espécie de filosofia social que é o funcionalismo
e(…)não é em absoluto incompatível com uma análise crítica da
instituição assente(…)na maior ou menor utilidade social da função
que essa instituição cumpre”.

Acrescenta, que

“qualquer teoria que coloque o problema de ver não apenas como


funciona uma sociedade, mas também como não funciona ou
como deveria funcionar, não pode ignorar a análise funcional
porque a crítica de uma instituição começa precisamente pela
crítica da sua função(…)” (idem).

Pode densificar-se a defesa da importância da análise das funções do direito


dialogando com a proposta teórica de António Hespanha a propósito das “funções sociais
do direito”, as quais devem ser escrutinadas, no quadro de uma sociologia interpretativa
do direito, como fenómeno social assente em dois pressupostos.
“Em primeiro lugar insistimos no caráter «local» do direito
europeu atual (mesmo em relação ao direito norte-americano;
mesmo em relação à sua própria história) e procuramos clarificar
os pressuposto culturais de que este parte. Em segundo lugar,
procuramos avançar ainda mais na «localização»,
complementando o estudo das características gerais do direito
europeu (ou, mesmo, ocidental) de hoje com uma informação
concreta acerca da prática do direiro [nomeadamente] em
Portugal, nos nossos dias” (Hespanha, 2007: 139-140). 42

Finalmente, um breve apontamento relativo à proposta de Robert Merton que


sugeriu a distinção entre funções latentes e funções manifestas. As funções manifestas ao
contrário das funções latentes, são aquelas que surgem como conscientemente desejadas
pela sociedade e que contribuem para a funcionalidade do sistema. Esta sugestão teórica
no campo do direito e aplicado a casos empíricos revela-se de uma grande virtualidade 57

devido à multidimensionalidade das funções e dos sentidos do direito (Merton, 1970:


85-190).

4.1 Identificação tipológica das funções do direito

No desenvolvimento desta análise tipológica das funções do direito (cf. quadro 2)


cotejaram-se três estudos: o de Vincenzo Ferrari (1989); o de André-Jean Arnaud e María
José Fariñas Dulce (1996); e o de Antonio Enrique Pérez Luño (1994). 43

Quadro 2: Tipologia das funções do direito (síntese)


Funções do direito
Integração social/Controlo social
Resolução de conflitos
Regulação e orientação social
Segurança jurídica
Legitimação do poder social
Promocional

42
António Hespanha na obra o Caleidoscópio do Direito – o direito e a justiça nos dias e no mundo
de hoje (2007) desenvolve entre as páginas 135 a 251 uma estimulante análise das funções sociais do
direito.
43
Pode consultar-se com proveito e, no que diz especificamente respeito às funções
desempenhadas pelos tribunais, o trabalho de Boaventura de Sousa Santos et al., (1996: 51-56) que
Função de integração social
A primeira função que se reconhece ao direito é a de integração social ou de
controlo social, atribuída aos autores funcionalistas, em particular a Parsons e
Bredemeiner. A designação desta função implica partir do pressuposto básico da teoria
funcionalista assente no equilíbrio do sistema social (ordem e paz social). O direito
contribui para atingir este equilíbrio controlando, integrando ou diluindo os conflitos
sociais e os desequilíbrios. Deste modo, a função do direito é a de se constituir no meio 58
mais eficaz para integrar, regular e determinar as condutas sociais. No caso de Parsons e
outros autores funcionalistas, o controlo social exercido pelo direito tem um sentido mais
restrito dado que está direcionado para corrigir as designadas “condutas desviantes”. A
questão centra-se, pois, em definir o que se entende por conduta desviante e como o
direito atua sobre a mesma.
No entender dos autores, de um modo geral, podem assinalar-se duas grandes
formas de explicar o comportamento desviante ambas identificam a origem deste tipo de
comportamento na sociedade e não no indivíduo (Arnaud e Dulce, 1996: 130). A primeira
está ligada à conceção funcionalista da sociedade e inspira-se na teoria da anomia de
Durkheim que explica o desvio social como uma violação do bem conjuntural (Parsons) ou
estrutural (Merton) da norma, ou das formas de conduta esperadas. O controlo social
exercido pelo direito é um tipo de controlo coercivo e à posteriori, mediante o qual é
possível reafirmar os valores protegidos pelo sistema, os mesmos que mantêm a coesão e
a ordem social (Arnaud e Dulce: 130-131). A segunda forma de explicar os
comportamentos desviantes, baseia-se na conceção de desvio como o resultado de um
processo social de discriminação ou estigmatização social. Nestas teorias, o desvio é
resposta ao controlo social, sendo precisamente este último que gera ex ante e aponta a
priori um comportamento caracterizado como desviante (Arnaud e Dulce, 1996: 132;
Becker, 1963). Em suma, seja qual for a postura adotada para explicar a origem dos
comportamentos desviantes, o certo é que o direito, ao ser considerado um mecanismo

identifica três principais funções desempenhadas por estes: funções instrumentais, funções políticas e
funções simbólicas.
de controlo social, cumpre uma função de integração dos conflitos sociais e,
consequentemente, também de manutenção da ordem e coesão sociais (idem).

Função de resolução dos conflitos


Uma segunda função do direito está relacionada com o seu papel na resolução dos
conflitos. Numa perspetiva mais atual, e partindo da perspetiva epistemológica
subjetivista, Arnaud e Dulce identificam o conflito como algo permanente no 59
funcionamento da sociedade, ou seja, consideram a interação social é inevitavelmente
conflitual. Por isso, pode admitir-se que o direito não resolve os conflitos num sentido
funcionalista de que o conflito desaparece do contexto social, mas sim que o direito pode
fornecer um tratamento jurídico de possíveis conflitos de interesses antagónicos das
partes.
O direito apresenta formas de enquadrar os conflitos, oferecendo uma possível
forma de tratar os mesmos, mantendo-os, assim, sob controlo (Arnaud e Dulce, 1996:
133). Por outro lado, uma outra forma de entender esta função parte do “funcionalismo
objetivo” que, com a sua conceção mítica do equilíbrio social, tem omitido a possibilidade
de que o direito também provoque ou gere conflitos. Isto é, o direito não resolve apenas
conflitos no sentido tradicional do termo, como também pode provocá-los. A título de
exemplo, a resolução favorável de uma parte de um processo judicial pode conduzir
outras pessoas a declarar um conflito perante instâncias judiciais. Deste modo, o direito
ao juridificar o conflito, oferece certas possibilidades ou expectativas ao sujeitos imersos
numa relação conflitual (idem: 134). Por último, do ponto de vista sociológico, realça-se o
facto de nas últimas décadas terem surgido instâncias ou sujeitos extrajurídicos que
intervêm na resolução da interação conflitual. São estas as denominadas formas
alternativas de resolução dos conflitos que consistem em sujeitos e órgãos que competem
com os órgãos e sujeitos designados formalmente pelo direito na resolução dos conflitos.
Trata-se de instâncias alternativas (extrajudiciais e extrajurídicas) às expressamente
designadas pelo sistema jurídico, podendo revestir-se das mesmas características formais
que as instâncias estritamente jurídicas. Sociologicamente podem identificar-se as
seguintes figuras: o mediador; o conciliador; o árbitro e o juiz público (idem: 134-135).
Quanto à função de resolução dos conflitos, Vincenzo Ferrari (1989) retrata-a
como forma de dirigir certos contrastes das partes institucionalmente predeterminadas,
procurando modelos e esquemas, tanto materiais como processuais, para a sua
prossecução. Neste âmbito, foca-se a intervenção da pressão ex post factum, depois dos
respetivos sujeitos da interação terem experienciado a impossibilidade de estabelecer um 60
qualquer ponto de encontro nos seus interesses opostos (Ferrari, 1989: 114). O direito,
por sua vez, pode ser utilizado tanto para dar lugar a conflitos como para resolvê-los. Por
um lado, oferece critérios amplamente aceitáveis para regular o desenvolvimento do
conflito, pode levar os sujeitos a reconsiderarem permanentemente a própria posição e as
próprias hipóteses de permanecer na interação social. Por outro lado, o conflito continua,
apesar das decisões contingentes com que se condiciona o seu desenvolvimento entre os
próprios opositores e os demais (idem: 115).

Função de regulação e orientação social


Uma terceira função assenta na regulação e orientação social, podendo
identificar-se como uma função de tipo organizativa, dado que a sua finalidade última é
precisamente a de organização da vida social. Esta função deriva diretamente do caráter
persuasivo das normas jurídicas as quais influenciam, condicionam e persuadem os
membros de um grupo social para que orientem os seus comportamentos no sentido
proposto pelos esquemas ou modelos normativos do sistema jurídico (Arnaud e Dulce,
1996: 135). A função de orientação social realiza-se mediante modelos normativos gerais,
abstratos, universais e coerentes, pressupondo também que o direito proporciona
estabilidade, assim como segurança jurídica, aos mesmos. Simultaneamente os atores
sociais podem conhecer e prever os efeitos dos seus próprios comportamentos e os
comportamentos dos outros, podendo planificar, nesta medida, a sua interação social.
Assim, uma consequência importante da função de regulação e orientação social é a
“calculabilidade e previsibilidade” que o sistema jurídico proporciona aos indivíduos na
atuação social (idem: 136).
Já para Ferrari (1989) a expressão orientação social designa uma função do direito
que parte diretamente do seu caráter enquanto regulamentação persuasiva,
apresentando-se como uma especificidade e simultaneamente como um alargamento. Ao
nível social geral, o direito não é simplesmente uma regra, é uma orientação geral da
conduta através da influência exercida reciprocamente pelos membros de um grupo, 61
mediante modelos, mais ou menos, tipificados e coordenados institucionalmente. Tal
implica uma certa estabilidade dos modelos jurídicos e uma certa segurança resultante do
facto dos atores sociais os considerarem existentes (Ferrari, 1989: 111). O autor, referindo
uma metáfora muito utilizada pelos próprios juristas, afirma que poderíamos dizer que o
direito funciona sobretudo nas interações dos sujeitos como “modelística social” (idem:
112).

A segurança como função jurídica


António-Enrique Pérez Luño (1994) desenvolve a ideia de uma quarta função do
direito ligada à noção de segurança jurídica como função jurídica. Começa por chamar a
atenção para o modo como a insegurança se tem apresentado enquanto um elemento
constante na evolução das sociedades, sustentando a necessidade de perspetivar a
segurança como pressuposto e função do direito. A segurança, que para o autor é
resultado das conquistas políticas da sociedade, tem um desenvolvimento paralelo às
mesmas, constituindo um desejo bem arreigado na vida anímica das pessoas que sentem
terror perante a insegurança da sua existência, face à instabilidade e insegurança a que
estão submetidas. É por esta razão que a exigência de segurança jurídica, enquanto
orientação valorativa, é uma das necessidades humanas básica que o direito tem de
satisfazer, justamente a partir da dimensão jurídica da segurança (Luño, 1994: 24).
Partindo do binómio segurança-insegurança44, a reflexão de Pérez Luño (1994)
parte do pressuposto da necessidade de conferir segurança à insegurança como elemento
fundamental e razão de ser do Estado de direito. Por esta via, o Estado assume a forma
política que assegura a proteção dos direitos e liberdades, no quadro das diferentes
funções do direito. Neste sentido, no Estado de direito, a segurança jurídica assume-se
como um pressuposto do direito não como qualquer forma de legalidade positiva, mas
sim que emana dos direitos fundamentais, quer dizer, dos que fundamentam a ordem 62
constitucional (Luño, 1994: 27). A função do direito é a de assegurar a realização das
liberdades, sendo que é por esta via que a segurança jurídica recusa o risco de
manipulação dos direitos, constituindo-se num valor jurídico ineludível para realizar os
restantes valores constitucionais. A reflexão do autor, que retoma a tensão entre
segurança e liberdade e o papel desempenhado pelo direito entre elas, encontra-se
assente na ótica da segurança jurídica colocada sob a égide do Estado de direito e das
funções do direito, e permite um interessante diálogo com o tema da
segurança/insegurança ontológicas desenvolvido por Anthony Giddens (1994). Este último
destaca o papel da confiança e da segurança, presente no desenvolvimento da
personalidade e identidade dos indivíduos como elementos fundamentais das sociedades.
Ilustra o seu argumento num plano amplo da transformação da modernidade e no plano
microssociológico da autoidentidade (Giddens, 1994). A conjugação entre estes dois
autores permite uma densificação das relações entre a sociologia e o direito, e o direito e
a sociedade lato sensu, deixando antever o modo como a segurança ontológica, na
perspetiva de Giddens, se conjuga com a função de segurança jurídica desempenhada
pelo direito. 45

Função de legitimação do poder social


A quinta função é a de legitimação do poder social, no sentido em que o direito
pode servir para legitimar as decisões de quem tem capacidade e poder para as tomar, os

44
O autor desenvolve a sua reflexão admitindo que a defesa do valor da segurança como
pressuposto e função do direito e do Estado, desempenha um lugar importante na tradição contratualista.
quais buscam no direito a justificação, legitimação, aceitação e o consenso em torno das
mesmas. No entanto, a função de legitimação do poder social pode ser interpretada de
modo mais amplo, isto é, no sentido de que qualquer pessoa que pode ter capacidade de
decisão, num determinado momento, recorre ao direito em busca de aceitação,
legitimidade e consenso para as suas ações. Neste sentido, podem invocar-se diferentes
sistemas normativos e um deles é, naturalmente, o direito (Arnaud e Dulce, 1996:
136-137). 63
Na sua análise da função de legitimação do poder, isto é, do poder entendido
como capacidade de decisão, Vinzenzo Ferrari considera que significa que todos os
sujeitos que disponham de capacidade de decisão ou, que desejam ampliá-la, podem fazer
uso do direito para alcançar o consenso sobre as decisões que pretendem tomar. Em
suma, a expressão não é entendida com referência exclusiva aos que governam e aos que
detêm o maior poder político e formal (Ferrari, 1989: 116). O direito, nesta perspetiva,
assume a posição de elemento que legitima como legitimans e não legitimandum, mesmo
que estas duas posições se misturem facilmente. Contudo, o direito cumpre melhor a sua
função legitimadora quando percebido como legítimo. No âmbito da sociologia do direito
interessa sobretudo o uso que se faz do direito na função do poder, entendido aqui como
variável independente do direito. O conceito de legitimação é também mais amplo e
compreensivo, apresentando a vantagem de compreender de forma única toda a
modalidade de utilização do direito com base nas decisões humanas, incluindo os casos
mais extremos em que os símbolos jurídicos são formulados dependendo da sua função
de legitimação (idem).

Função promocional do direito


A sexta e última função assinalada nesta tipologia é a de função promocional do
direito, ideia defendida por Norberto Bobbio (1997: 13-32), a qual segundo a leitura que
dela fazem Arnaud e Dulce (1996) assenta, quer no incentivo de comportamentos
socialmente desejados mediante o estabelecimento de prémios, concessões, vantagens

45
A propósito da relação entre direito e segurança jurídica pode consultar-se com proveito
económicas etc, quer na função distributiva orientada para a repartição de bens
económicos e oportunidades sociais. Estas funções surgiram no final da década de 1960
estando associadas ao auge do Estado social e do bem-estar (Arnaud e Dulce, 1996:
137-138). A função promocional do direito está diretamente ligada à de regulação dos
comportamentos, já que estes podem ser orientados e regulados de duas maneiras
diferentes: reprimindo os comportamentos socias não desejados e impedindo
coercivamente a sua realização; ou promovendo os comportamentos socialmente 64
desejáveis, incitando a sua realização. Na perspetiva dos autores, na realidade, mais que
uma função em si mesma, estaremos perante uma técnica de regulação de
comportamentos e realização de objetivos. A função promocional representaria, então,
um tipo de técnica de controlo social utilizada pelo Estado Social ao usar técnicas de
“encorajamento”. Tal dá lugar a um tipo de controlo social ativo e preventivo, mediante o
qual se tenta favorecer a realização de comportamentos socialmente vantajosos que
aspiram conseguir maiores níveis de igualdade e solidariedade entre os constituintes de
um grupo social (Arnaud e Dulce, 1996: 138).
Contudo, de acordo com os autores, poderá não se estar perante uma “nova”
função do direito, já que dadas as suas características de orientação e controlo social
apresenta similitude com as técnicas repressivas próprias do direito moderno e do Estado
liberal. Tal reforça a tese de que se está simplesmente perante uma técnica diferente
mediante a qual também se regulam os comportamentos sociais, e também que não
existe uma vinculação intrínseca entre Estado social e a função promocional do direito. O
facto de, num determinado momento, o Estado se estruturar como Estado social, levou ao
surgimento de novas técnicas jurídicas, mediante as quais o Estado pudesse satisfazer
melhor os seus objetivos e finalidades sociais, mas não o aparecimento de funções
diferentes. Os autores sustentam que, apesar da crise do Estado social, as técnicas
promocionais são utilizadas conjuntamente com técnicas repressivas tradicionais (Arnaud
e Dulce, 1996: 138-139).

António Hespanha (2007: 172-182) e João Caupers (in Hespanha, 2007: 176-182).
4.2 As funções do direito segundo Mauricio Garcia-Villegas e François Ost

Em 1993, Mauricio Garcia-Villegas publicava a sua tese de doutoramento La


eficácia simbólica del derecho, na qual, partindo de casos concretos de aplicação do
direito na sociedade colombiana, fundamentava teoricamente a noção de eficácia
simbólica do direito. Nela lançou as bases teóricas para uma reflexão que veio a
aprofundar no livro publicado em 2015, Les Pouvoirs du Droit- Analyse comparée d`études 65
sociopolitiques du droit, onde retoma o tema das funções do direito, apresentadas como
dimensões fundamentais da função sociopolítica do direito.
Ancorado na ideia dos clássicos da sociologia (Karl Marx, Émile Durkheim e Max
Weber) para quem o direito, para além de estar interligado com a realidade e o poder
político, era considerado como instrumento de coesão social, identidade coletiva e
desenvolvimento económico, Mauricio Garcia-Villegas (2015: 9-10) projeta o seu trabalho
como uma sociologia política do direito nos termos em que esta abordagem tem vindo a
ser defendida, entre outros, por Jacques Commaille.
Na obra mencionada, o autor começa por se reportar à eficácia simbólica do
direito, abordando a questão das crenças, do reconhecimento e da coesão comunitária, a
partir de duas narrativas: a primeira resulta de uma pequena história contada por Claude
Lévi-Strauss que coloca em destaque o poder do xamane pelo seu reconhecimento
enquanto tal; a segunda, recolhida de Robert Merton, quando assinala como cerimónias
vividas em tribos indígenas, ainda que sem efeitos práticos, cumprem a função de reforçar
a identidade de um grupo como expressão coletiva de sentimentos que alimentam a
unidade, sendo por essa mesma razão, aparentemente irracionais mas positivamente
funcionais (Garcia-Villegas, 2015: 45-46).
Com os casos referidos, o autor pretende enfatizar a noção de eficácia simbólica
que também é passível de aplicação ao direito, na medida em que normas jurídicas são
frequentemente aplicadas para atingir determinados objetivos, mais pelo efeito
comunicacional que produzem, do que pelo seu conteúdo. Neste contexto, “a eficácia do
direito advém mais daquilo que representa do que daquilo que exprime” (Garcia-Villegas,
2015: 46).
Constitui-se a eficácia simbólica do direito como elemento chave para o
entendimento da sua função sociopolítica, sendo necessário distinguir duas dimensões
políticas no direito, uma interna e outra externa (idem: 47).46

Dimensão interna 66
Encontra-se ligada à interpretação legítima dos que operacionalizam o direito, não
é estranha aos usos simbólicos do direito e, de acordo com os críticos, é um espaço
político; o político é determinado pelo direito.

Dimensão externa
Transforma o direito num instrumento claramente político e aberto aos usos
simbólicos dos textos jurídicos; o direito transforma-se num instrumento do político.
Importa sublinhar que o argumento do autor assenta no pressuposto de que a
eficácia simbólica do direito se encontra no poder da palavra e que as palavras são
indissociáveis da mobilidade do sentido. Pode, assim, afirmar-se que o direito é concebido
simultaneamente como um sistema de regulação instrumental e um sistema cultural de
significações em que
“a força do direito não reside unicamente na ameaça ou
recompensa que promete, ou simplesmente no potencial
regulador que representa para a sociedade, mas também na sua
capacidade de produzir um discurso que seja entendido como
legítimo, verdadeiro, justo, autorizado, etc.” (Garcia-Villegas, 2015:
48).

Nesta perspetiva, admite-se que, enquanto a eficácia instrumental determina


comportamentos pelo seu caráter obrigatório ou pela sua capacidade técnica para regular

46
Convém referir que segundo Mauricio Garcia-Villegas estamos perante uma distinção analítica e
que, na prática, não é muito fácil distinguir as fronteiras entre as duas dimensões.
e organizar o real, a eficácia simbólica atinge os seus objetivos pela comunicação de
imagens de justiça, de igualdade, de segurança e outros valores encarados como
fundamentais para a vida em sociedade (idem: 49).
Maurício Garcia-Villegas associa o reconhecimento da dimensão simbólica do
direito às reflexões teóricas, sociais e políticas, identificando três modos distintos de
abordar a dimensão simbólica. Num primeiro modo, o de visão liberal, a legitimidade
decorre no Estado moderno da legalidade, ou seja, do direito que constrói o seu poder no 67
facto de transformar o uso da força num exercício legítimo de autoridade, sendo o poder
de legitimação um poder simbólico. Tal conduz a que possa falar da força inerente às
normas jurídicas como um dado indispensável para que o poder seja respeitado. O direito
transforma-se na linguagem autorizada pelo Estado e, através dela, a sua legitimidade
produz-se e reproduz-se (Garcia-Villegas, 2015: 52-53). 47

No segundo modo, do caso da visão marxista, que partilha com a visão liberal o
facto de atribuir às normas jurídicas um poder simbólico que reproduz a majestade do
poder e o seu caráter legal e justo, considerando, para além disso, que este poder é um
poder de doutrinamento que mascara a realidade através de conceitos jurídicos, de onde
decorre que como aparelho institucional o direito cria uma falsa consciência ou
consciência enganosa da realidade social (idem: 54-55). 48

Finalmente, considera as visões construtivistas. Se as duas visões anteriores têm


uma perspetiva instrumental do direito, que remete para os aspetos formais, positivos e
comportamentalistas das normas jurídicas (não obstante tudo o que separa a visão liberal
da visão marxista), alternativamente, as teorias sociais construtivistas consideram que “a

47
Na conceção liberal, o poder e o direito existem num estado de simbiose, ou seja, as ações do
estado justificam-se pelas normas jurídicas e estas são eficazes quando têm o suporte do poder do Estado,
ou seja, a força simbólica ou poder legitimador do direito repousa na força material, no poder efetivo do
Estado, numa relação biunívoca. Rousseau, Locke, Weber, Hart e Habermas, entre outros, são pensadores
diversificados mas que nas suas reflexões evocam esta visão liberal e jurídica da eficácia simbólica (Villegas,
2015: 53).
48
O resultado de uma dominação política surge no discurso como natural e não construído, pelo
que deve ser respeitado. Marx e Engels, a este respeito, consideram o direito como tendo duas caras, ou
duas funções: a repressiva e a simbólica, sendo que a primeira, através da força repressiva das normas
jurídicas, oculta a segunda, sedimentada na invocação da justiça e dos valores universais. Nesta linha, o
direito, enquanto instituição social, é um instrumento da burguesia cujo objetivo é a proteção dos interesses
subjetividade e a objetividade, tal como as instituições e as realidades sociais, vivem uma
relação de influência recíproca, marcada pela comunicação e pela cultura”
(Garcia-Villegas, 2015: 58-59). Neste enquadramento, o direito é “espaço de construção
simbólica entre diferentes posições e interesses que lutam para fixar o sentido dos textos
jurídicos” (idem). Ou seja, o que está em causa é a possibilidade do direito produzir
significações nas relações sociais. 49

No quadro seguinte, relacionam-se os usos simbólicos e políticos do direito (cf. 68


quadro 3). Segundo o autor, enquanto estratégia, a eficácia simbólica do direito pode
diferenciar-se de acordo com o tipo de atores e pela posição política que adotam. A
combinação destas duas dimensões origina quatro usos simbólicos do direito.

Quadro 3: Usos simbólicos do direito


USOS SIMBÓLICOS DO DIREITO
ATORES VISÕES
CONSERVADORA PROGRESSISTA
ESTADO Estatal-conservadora Estatal-progressista
(legislador, juízes, - Utilização das normas - Utilização política do direito
funcionários, etc.) jurídicas para fins políticos para concretização da justiça
social
SOCIEDADE CIVIL Social-conservadora Social-progressista
(indivíduos, associações, - Utilização do direito de - Utilização dos direitos, por
movimentos sociais, etc.) modo conservador na luta parte de grupos sociais de
por interesses individuais ou esquerda, como parte de sua
de classe estratégia política:
*emancipação-rutura com a
ordem estabelecida
*lutas emancipatórias
através do direito –
movimentos sociais
progressistas

económicos, através da coisificação ou reificação das normas. Estas são apreendidas pelo todo social como
fazendo parte de uma ordem natural, coisas duras e sólidas (Garcia-Villegas, 2015: 54-55).
49
Como todas as teorias também esta é fruto das profundas mudanças que se fizeram sentir no
direito ao longo das últimas décadas – perda da centralidade da lei; presença dos juízes na vida política;
importância crescente do direito internacional dos direitos do Homem; a transnacionalização do direito e
dos movimentos sociais, para além de outras. Estas mudanças reforçaram os usos políticos do direito ao
mesmo tempo que nos permitem perguntar se “os direitos, interpretados e aplicados pelos juízes, poderão
produzir mudança social” (Garcia-Villegas, 2015: 59).
Fonte: Garcia-Villegas, 2015: 66-75

De acordo com os exemplos apresentados, os regimes autoritários da América


latina que pretendem manter uma aparência democrática, revelam um uso do direito de
tipo estatal-conservador, sendo que o uso estatal-progressista do direito ocorre em países
com forte independência judiciária e onde existe uma declaração de direitos abrangente e
69
“generosa”. Aliás, este contexto é também favorável ao uso social-progressista do direito.
Convém destacar que os dois tipos progressistas de uso do direito, na prática, estão muito
ligados, criando redes jurídicas de apoio e, ao mesmo tempo, prefigurando alianças
simbólicas construtivas entre movimentos sociais e sistemas jurisdicionais (Garcia-Villegas,
2015: 66-75).
A partir das relações entre direito e tempo, François Ost desenvolve uma proposta
sobre as funções do direito. Escorado numa aprofundada investigação onde conjuga o
conhecimento jurídico com o da sociologia do direito, o autor de forma inovadora constrói
um modelo de análise sociojurídico onde a dimensão tempo detém um lugar
fundamental.
É no quadro desta proposta que sustenta a tese
“que a função principal do jurídico é contribuir para a instituição
do social: mais do que interditos e sanções, como outrora se
pensava, ou cálculo e gestão, como frequentemente se acredita
hoje, o direito é um discurso performativo, um tecido de ficções
operatórias que exprimem o sentido e o valor da vida em
sociedade. Instituir quer aqui dizer estreitar o elo social e oferecer
aos indivíduos os pontos de referência necessários à sua
identidade e autonomia. É sob o ângulo do seu contributo para a
subtração ao estado natureza e a sua violência sempre
ameaçadora, sob o ângulo da sua capacidade de instituição, que o
direito será, pois, interrogado” (Ost, 2001: 13-14).

Memória, passado, perdão, presente, promessa, futuro, são elementos da


estrutura conceptual com a qual o autor desenvolve a sua proposta de relação entre o
direito e a sociedade, da qual decorre a ideia de que o direito também desempenha uma
função de legitimação do passado, introduzindo segurança e estabilidade de expectativas.
Mais recentemente, Ost retoma o tema das funções do direito em intervenção
intitulada “À quoi sert le droit?” (2013) a qual foi sistematizada e transcrita por Pauline
Dhaem, Olivier Van der Noot e Catherine Xhardez. Partindo desta análise, Ost coloca a
questão "para que serve o direito?", na intenção de promover a discussão sobre as
funções do direito e suas eventuais finalidades intrínsecas. O autor pretende afastar o 70
risco do essencialismo e a armadilha do funcionalismo por querer considerar a
especificidade do jurídico relativamente a outras técnicas de regulação de
comportamentos e de conflitos.
De acordo com o autor, a armadilha de uma essencialização do direito decorreria,
numa perspetiva ontológica, da constatação daquele como um dado natural, necessário e
até universal. Ora, este essencialismo, estaria também presente na visão dos que
proclamam a morte do direito, de um modo paradoxal, na medida em que esses mesmos
críticos, lhe estariam a atribuir até insidiosamente uma essência pré-definida (Dhaem, Van
der Noot e Xhardez, 2014: 164). No que respeita à segunda armadilha, a do funcionalismo,
ela constata o risco do direito ser concebido em termos de uma análise apologética e
integrativa (idem) dado ser indispensável ao bom funcionamento do todo social. Para
temperar este enviesamento do funcionalismo, sem dele prescindir na análise das funções
do direito, Ost sugere a sua combinação com as teorias do conflito. Justifica esta escolha
pelo facto do conflito ser inerente ao direito e seu terreno priviligiado de ação.
François Ost define dois modos de encarar a questão inicialmente colocada “para
que serve o direito?”: a objetiva ou sistémica e a subjetiva ou actorial, relacionando-os
com dois pontos de vista, o interno ou o externo ao direito como se pode conferir no
quadro seguinte.

Quadro 4: Ponto de vista interno e externo


APROXIMAÇÃO APROXIMAÇÃO
OBJETIVA/SISTÉMICA SUBJETIVA/ATORES
PONTO DE VISTA INTERNO Funções, papéis Objetivos, metas, projetos,
finalidades
PONTO DE VISTA EXTERNO Efeitos/resultados Usos

Fonte: Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 165

Desenvolve também uma comparação entre funções e finalidades do direito e, na


sua análise, podem ser consideradas segundo duas hipóteses alternativas: as finalidades 71
poderiam ser vistas como uma forma de funções, mais estáveis e por isso menos
contingentes; as finalidades, posto que decorreriam de uma natureza mais ideal do que a
das funções, seriam, pelo contrário, mais contingentes do que estas, particularmente no
que respeita ao contexto histórico-cultural do qual as ideias são geralmente tributárias
(Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 166). A acrescentar, na contraposição entre
funções e finalidades está o caráter empírico das funções e o filosófico das finalidades (cf.
quadro 5).

Quadro 5: Ponto de vista interno e externo (2)


APROXIMAÇÃO EMPÍRICA/DE APROXIMAÇÃO FILOSÓFICA/DE
PRIMEIRO GRAU SEGUNDO GRAU
PONTO DE VISTA INTERNO Funções Finalidades intrínsecas

PONTO DE VISTA EXTERNO Efeitos Finalidades extrínsecas

Fonte: Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 168

Seguindo o pensamento de Ost, a identificação das funções do direito é a questão


fundamental para determinar para que serve o direito, sendo organizadas da seguinte
forma - formal/processual e função material (cf. quadro 6).

Quadro 6: Funções do Direito


FUNÇÕES DO DIREITO
FORMAL/ PROCESSUAL MATERIAL
*Permite a “encenação” a partir de “ debate * Baseada na metáfora do jogo e com
argumentativo” e jurisdicional sobre os enquadramento antropológico
interesses, direitos ou valores que se vão
fazer valer e se confrontam no corpo social * Discriminação de papéis dos jogadores:
quem é quem; quem faz o quê; onde e
*Compete ao jurista assegurar a regularidade quando; para quem
dos procedimentos, o respeito pelos prazos;
o contraditório; o respeito pelos direitos da * Esta função é assegurada na medida em
defesa, entre outros aspetos. que o direito encoraja, impõe ou interdita os
“papéis tipo” 72
*Com dimensão reflexiva
* O direito seria a medida mais ou menos
rígida das ações dos sujeitos

Nota: Esta dicotomia funcional seria coordenada por uma metacategoria - FUNÇÃO DE
COORDENAÇÃO - a que competiria uma definição de “ordem global”

Fonte: Quadro elaborado a partir de Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 169-170

O discurso de Ost encara, de seguida, o que designa por “finalidades intrínsecas do


direito”, o ADN do direito, na medida em que garante a sua persistência no que é. Na sua
tentativa de determinar a especificidade do jurídico, considera isoladamente e em
diálogo, que três condições são determinantes: 1) compete ao direito assegurar, no
enquadramento de um jogo social e tomando em linha de conta os diferentes interesses e
forças em conflito, o equilíbrio; 2) o direito deve impor o equilíbrio através da coação; 3) e
deve, ao mesmo tempo, permitir um questionamento e reflexão relativamente às
soluções encontradas (Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 169). Identifica a este
respeito três finalidades intrínsecas do direito que se interligariam às três grandes
alegorias construtoras da imagem da justiça: a balança, a espada e a venda (cf. quadro 7).

Quadro 7: Finalidades intrínsecas do direito


FINALIDADES INTRÍNSECAS DO DIREITO
EQUILIBRAR/ARBITRAR ESTABILIZAR/COAGIR AUTO- DISTANCIAR/RE-
DISCUTIR

Assegurar a integração social Estabelecer regras que assegurem a Sensibilidade do direito face
coexistência pacífica a contextos diferenciados e
Compatibilizar casos particulares
Propiciar a confiança
Legitimar Racionalidade jurídica
Projetar solução para a fragilidade do afastada da certeza
humano
Discussão; reflexão
BALANÇA ESPADA VENDA
ALEGORIAS

Fonte: Quadro elaborado a partir de Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 170-172 73

4.3 As novas funções do direito no quadro da globalização

As transformações e as dinâmicas da sociedade, nomeadamente as que estão


associadas aos processos de globalização, têm constituído um forte desafio aos estudos da
sociologia do direito no que diz respeito ao estudo das funções desempenhadas por este
perante os novos cenários sociais, culturais, económicos e políticos. Assim, na ideia do
direito vis-a-vis, a sociedade global tem estado na origem de uma diversidade de
abordagens e perspetivas da sociologia do direito que passa pelos estudos pós-coloniais
acerca do direito, pela revisitação do paradigma do pluralismo legal e pelas funções do
direito e da regulação na modernidade tardia e na sociedade de risco. São, por isso,
muitos os pontos de partida teóricos que podem estar na base de uma revisitação das
funções desempenhadas pelo direito perante uma multiplicidade de transformações
provocadas pelos processos de globalização e pelas crises que lhe estão associadas.
A título ilustrativo refira-se o trabalho de Boaventura de Sousa Santos que refletiu
abundantemente sobre estas problemáticas, chamando a atenção para a forma como
perante os binómios “emancipação – regulação”, “globalização hegemónica - globalização
contra-hegemónica”, o direito se pode constituir como mecanismo de transformação do
poder, como através da sua mobilização democrática e emancipatória, se podem criar
projetos alternativos contra o colonialismo e o capitalismo.
Também o pluralismo jurídico sofreu um novo estímulo ao constituir uma
plataforma de análise e interpretação das funções do direito no âmbito da sociedade
global. Neste sentido, os estados nacionais e o seu direito tendem a ser, cada vez mais,
desafiados por formas privatizadas de produção e aplicação do direito, como sucede com
a lex mercatória, com as novas normatividades produzidas pelos grandes conglomerados
das empresas multinacionais, ou mesmo as novas formas de governação como a do
“método aberto de coordenação” da União Europeia.
É no quadro destas transformações que, segundo José Eduardo Faria (2008: 71 e
ss), se assiste à emergência de novas formas e funções do direito marcadas pela 74
desformalização dos tradicionais procedimentos de elaboração legislativa. A progressiva
redução do grau de imperatividade do direito positivo, provocada pelos programas de
flexibilização, deslegalização e desconstitucionalização, segue a par e passo novas esferas
de poder e de normatividade com destaque para os poderes fáticos e dos não eleitos. A
financeirização da economia globalizada acaba também por ter um efeito corrosivo sobre
as tradicionais funções do direito fazendo com que autores como Gunther Teubner (2011)
acabem por considerar que os mercados têm funções metaregulatórias semelhantes às
dos tribunais constitucionais. De destacar que, no âmbito destas transformações, serão as
funções anteriormente estudadas de proteção e segurança desempenhadas pelo direito
que mais ficam em causa, assistindo-se ao radical enfraquecimento do direito do trabalho
e à regressão dos direitos fundamentais tutelados pelo direito positivo.
Na ótica de Jacques Commaille (2016: 198-199), as novas funções do direito
ligam-se, também, à emergência do fenómeno das cidades globais. Estas afirmam-se
como palcos de novos conflitos sociais e políticos, enquanto locais de exercício do poder
financeiro globalizado e, ao mesmo tempo, catalisadores do desenvolvimento de uma
“sociedade civil mundial”, protagonista de novas formas de mobilização política que utiliza
recursos jurídicos para promover causas transnacionais.
As “cidades globais” criam uma “nova cidadania” ou diversificam práticas de
cidadania, resultantes do facto de serem constituídas por populações marcadas pelo
caráter fragmentário e diversificado, gerador de reivindicações e da constituição de novos
direitos. No entanto, estas novas funções do direito, num contexto de globalização,
escondem conceções, posições políticas e ideologias fortemente antagonistas. Neste
quadro interpretativo, a exigência de direitos universais aparece associada à prioridade de
instaurar uma “governação global” tendente a dar resposta a uma “hegemonia global”,
numa clara lógica neoliberal mais preocupada com os imperativos de mercado do que
com a consecução da justiça social ou a luta contra a exclusão social. A universalização
estaria, portanto, ao serviço de mecanismos de hegemonização, o que implica, a
contrário, uma “ globalização contra-hegemónica”, radicada em iniciativas e estratégias
operacionalizadas por atores sociais eventualmente ancorados em contextos sociais e 75
culturais específicos, saídos da sociedade civil através de movimentos sociais e no quadro
de mobilizações coletivas.

5. Legalidade e legitimidade: o questionamento das teses liberais da


convergência
5.1 Questionamento de partida

As questões da legalidade e da legitimidade e da relação que entre ambas se


estabelece são temas clássicos para as disciplinas cuja reflexão incide no estudo da
política, do poder e do direito.50 Através da sua análise visibiliza-se o modo como se torna
essencial que a ordem legal, que organiza e justifica o exercício do poder de uma
sociedade, se torne justa e moralmente partilhada pelos membros da comunidade. As
abordagens convencionais dos juristas positivistas tendem a associar legitimidade e
legalidade e, em muitos casos, privilegiam a legalidade por relação à legitimidade.

50
A sociologia política e do direito têm uma longa tradição de análise do fenómeno da legitimidade
e da legalidade, o qual reenvia, como se mencionou, para a questão da aceitação ou da recusa social das
decisões de poder e de comando. Deste modo, estão em causa os mecanismos que envolvem o poder e os
valores que possuem uma legitimidade que torna aceitável o poder para os indivíduos e para os grupos. De
uma forma sinóptica, pode referir-se que, para Parsons, a legitimação é um processo de mediação entre os
valores e a ação social, distinção que será retomada mais tarde por Habermas, para quem a legitimação é a
resposta social às exigências que garantem a integração social.
É conhecido o entendimento formalista e positivista sustentado por Hans Kelsen
para quem o tema da legitimidade se restringe à mera consequência da ordem jurídica
posta. 51 Para Kelsen
“a legitimidade «está intimamaente ligada ao princípio da eficácia.
Para ele, a validade da nova ordem jurídica (…) está em sua
eficácia, ou seja, em termos estritamente jurídicos, a norma
jurídico, para ser válida, deve produzir efeitos (…) a eficácia de uma
ordem jurídica é apenas uma das condições de sua validade, e não
o seu fundamento (…). O fundamento último de validade de uma 76
ordem jurídica (…) segundo Kelsen, reside na norma fundamental
pressuposta»” (Faria apud Wolkmer, 1994: 182).

Kelsen acaba, assim, por confundir legalidade e legitimidade na medida em que a


legitimidade se dilui na legalidade porque o Estado e o Direito são unos.
As opções teóricas aqui apresentadas alternativamente rompem com o postulado
da convergência entre legalidade e legitimidade, retomando-se a tradição de Max Weber
que estabeleceu diferentes formas de conexão entre as duas categorias. Weber tem o
mérito de relacionar legitimidade e legalidade tendo presente a existência de uma
legitimidade apoiada na racionalidade da lei na modernidade mas, também, outras formas
de legitimidade assentes na religião, tradição, carisma e emoções. A abordagem
sociológica e empiricamente informada de Max Weber ultrapassa a fundamentação
normativa e formal de Kelsen.
A relação entre legalidade e legitimidade deixa de ser necessariamente
convergente, assumindo antes um estatuto analítico problematizante. É com base nele
que se torna evidente, de acordo com José Eduardo Faria (1978: 70), que
"a diferença fundamental está no fato de que, enquanto no caso
da força [legalidade estrita] a ordem não é legítima nem a
submissão obrigatoriamente um dever, na hipótese da dominação
a obediência [legalidade com legitimidade] sustenta-se num

51
Outra problemática emerge da relação entre a legitimidade e o processo eleitoral. A
dessacralização da função eleitoral enquanto fonte de legitimação esteve sempre presente nas
contraposições entre o grau de consenso político capaz de assegurar a obediência sem necessidade de
recorrer ao uso da força (a não ser em casos esporádicos) e a contestação da legitimidade por diferentes
forças sociais, como as da oposição aceitando “as regras do jogo”, por um lado, e as diferentes
manifestações dirigidas contra a ordem instituída, desde os movimentos revolucionários até às atuais
revoltas dos indignados e de outros movimentos de contestação social, como o sindical, por outro.
critério externo aos próprios governantes, ou seja, o
reconhecimento e assentimento dos governados".

Tendo presente, a tensão entre as esferas do político, do jurídico e do poder,


segundo a proposta de Norberto Bobbio (1986: 674)
"Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e
um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age
legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no
âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos 77
aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e
muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade,
costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do
poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o
poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada
juridicamente; o poder legal é um poder que está sendo exercido
de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é
um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder
arbitrário".

No mesmo sentido, José Adelino Maltez afirma


“A legitimidade difere da legalidade, da relação do poder com a lei
estabelecida, exigindo um padrão superior que permita considerar
certas leis como injustas, tendo mais a ver com a conformidade
relativamente ao direito do que com a conformidade face à lei,
como dizia Carl Schmitt. Se a legalidade é um mero requisito do
exercício do poder, a justificação do respetivo exercício, já a
legitimidade é o requisito da titularidade do poder, a justificação
do seu título (in
http://maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/Legitimidade.ht
m)”.

De uma forma sintética pode, assim, considerar-se legítimo algo conforme ao


direito (legalidade jurídica), algo justo ou lícito (legalidade moral) e algo verdadeiro ou
autêntico (legalidade científica) (Ródenas, 1990: 76). A delimitação semântica de
legitimidade e legalidade deve ser acompanhada por uma interpretação sociojurídica dos
fenómenos onde estas categorias se definem pelos seus contrários, como poder de facto e
poder arbitrário, ou das situações em que as dinâmicas da sociedade e dos quadros
normativos conduzem a novos entendimentos dos seus conteúdos.
A força material do poder, como atestado pelas evidências históricas e
sociológicas, não é suficiente para fundar uma ordem política e jurídica. Ao poder político
ou jurídico está subjacente “uma condição de valores consensualmente aceito e que
refletem os interesses, as aspirações e as necessidades de uma determinada comunidade”
(Wolkmer, 1994: 179). Deste modo, o poder relaciona-se com os processos de dominação
social, aceitação e obediência coletiva e com a justificação de estruturas normativas. Esta
é a questão que a problematização da temática legitimidade e legalidade coloca. Ambas 78
expressam genericamente uma conduta, práticas e realidades, num processo de
compatibilização com “a existência e a submissão a um corpo sistematizado de leis”
(idem).
Analisam-se de seguida diferentes perspetivas relevantes para a discussão em
torno das combinações entre legalidade e legitimidade.

5.2 O contributo de Max Weber

Como tive oportunidade de refletir noutro lugar (Ferreira, 2014: 250-251), Max
Weber é um clássico da sociologia cuja obra permanece central para a interpretação das
complexas relações existentes entre poder, legitimidade e legalidade. Weber, ao definir o
poder como “a possibilidade de impor a vontade sobre o comportamento dos outros”,
considerou que este estará presente na maioria, senão em todas as relações sociais
(Weber apud Bendix, 1986: 232). O autor identifica a existência de dois tipos
contrastantes de poder que se revelam de especial interesse para as ciências sociais: “o
poder originário de uma constelação de interesses que se desenvolve em mercado
formalmente livre e o poder originário da autoridade estabelecida que atribui o direito de
mandar e o dever de obedecer” (Weber apud Bendix, 1986: 232). É neste último sentido
que Max Weber utiliza o termo “dominação” como sinónimo de “poder autoritário de
comando”. No caso do primeiro, o poder é definido como “fáctico” e a subordinação
resulta da submissão livre do indivíduo a esse poder. No segundo caso, o do “poder
autoritário de comando”, ocorre a necessidade da justificação do seu exercício através de
processos de legitimação (Weber apud Bendix, 1986: 232).
Ainda de acordo com Max Weber, a vontade manifesta (comando) do governante
ou governantes pretende influenciar a conduta de uma ou mais pessoas (governados) e
realmente influencia-a de tal modo que a sua conduta, a um grau socialmente relevante,
ocorre como se o governado tivesse feito do conteúdo da ordem a máxima a sua conduta
(Weber apud Bendix, 1986: 232).
Os temas da dominação, do poder e da legitimidade podem ser decompostos em 5
elementos analíticos: 1) um indivíduo que governe ou um grupo de governantes; 2) um 79
indivíduo ou um grupo que seja governado; 3) a vontade dos governantes de influenciar a
conduta dos governados e a expressão dessa vontade (ou um comando); 4) prova de
influência dos governantes, em termos do grau objetivo de obediência ao comando; 5)
prova direta ou indireta dessa influência, em termos da aceitação subjetiva com que os
governados obedecem ao comando (Bendix, 1986: 233).
A Weber fica ainda a dever-se a identificação da dimensão subjetiva da
legitimidade ao articular esta com uma conceção de poder que se acredita ser legítimo
(Ferreira, 2014: 251). As ordens legítimas podem ser classificadas de acordo com as
motivações dos que obedecem, distinguindo-se três princípios de dominação por forma a
justificar o poder do comando: a dominação legal-racional, a dominação tradicional e a
dominação carismática. Weber clarifica ainda o que pode ser considerada uma “ordem
legítima” ao distinguir a mesma da sua validade. Uma ordem tornar-se-á mais válida
quanto maior for a probabilidade da ação que orienta estar assente na crença da sua
legitimidade.
Em suma, de acordo com a leitura que aqui se faz de Max Weber podem
identificar-se duas dimensões constitutivas da noção de legitimidade: ultrapassa o
reconhecimento da coação como condição básica do conceito de poder “na medida em
que busca nas relações entre as condutas sociais e os valores de uma determinada
conexão que traduza as justificativas internas que levam os governados a aceitar os
comandos e as obrigações [políticas e] jurídicas impostas pelos governantes” (Faria, 1978:
39); e considera a legitimidade como uma crença subjetiva partilhada, em torno da qual os
indivíduos acreditam subjetivamente que as perceções das várias expectativas de acordo
com um comportamento aceitável são elas próprias racionais, tradicionais ou habituais
(Sciulli, 1992: 31).

5.3 A abordagem de Elias Diaz: legitimidade e poder

Num plano muito geral, a questão é analisada por alguns cientistas políticos como
reflexo de uma teoria “dominante do poder” e sua valorização no que se refere à 80
autoridade, dominação, soberania e obediência.
Elias Diaz (1978), numa síntese que combina diferentes tipos de análise,
desenvolve uma abordagem partindo do pressuposto de que o sistema de legalidade se
realiza sempre a partir de uma determinada conceção do mundo, de um determinado
sistema de valores ou sistema de legitimidade. Daí que se possa conceber que existam
legitimidades mais democráticas ou menos democráticas, mais libertadoras ou mais
opressoras, mais propensas a salvaguardar desenvolvimento humano e de valores como a
dignidade, liberdade, igualdade etc.
Deste modo, propõe um roteiro de organização dos estudos, versando a
legitimidade e a legalidade, diferenciado entre três níveis ou setores (cf. quadro 8). O
primeiro, o da ciência do direito que tem como zona central de trabalho o direito válido. É
o nível de análise da legitimidade legalizada assente na análise da interpretação e
aplicação do sistema normativo vigente e, por outro lado, na descrição e explicitação do
sistema de legitimidade incorporado nesse sistema de legalidade.
O segundo, o da sociologia do direito que tem como elemento central de trabalho
o direito eficaz. É o nível de análise da legitimidade eficaz. Investiga a eficácia social do
direito, bem como, a constatação dos sistemas de legitimidade criados ou aceites por uma
coletividade ou por diferentes grupos ou classes da mesma.
Finalmente, o da filosofia do direito, a qual tem como zona central de trabalho o
direito justo. É o nível de análise da legimitidade justa ou crítica. Trata-se de investigar os
critéirio de determinação e de justificação do direito fazendo simultaneamente a crítica
quer do direito válido, quer do direito eficaz, bem como, da legitimidade legalizada e da
legitimidade eficaz (Diaz, 1978: 20-21).

Quadro 8: Legalidade e Legitimidade


Ciência do direito Sociologia do direito Filosofia do direito
Legalidade Direito válido (validez Direito eficaz (eficácia Direito justo
do direito) do direito) (justificação do
direito) 81
Legitimidade Legitimidade Legitimidade eficaz Legitimidade crítica
legalizada

Fonte: Diaz, 1978: 20-21

5.4 David Held e o continuum de legitimidade

Partindo de pressupostos semelhantes aos de Elias Diaz, relacionando legitimidade


com diferentes conceções do mundo, encontra-se a perspetiva de análise em torno da
noção de legitimidade de David Held que se afigura especialmente interessante, quer do
ponto de vista expositivo, quer enquanto estratégia de teorização.
Este admite que a noção de legitimidade pode ser decomposta analiticamente ao
longo de um continuum constituído por sete tipos de obediência, concordância,
consentimento e acordo. 52 Embora o autor considere somente os tipos 6 e 7 como or-

52 Como referi noutro lugar (Ferreira, 2016: 256), o autor considera a experiência empírica
democrática de modo a explorar as tensões entre o princípio da autonomia de indivíduos e a possibilidade
do seu constrangimento. Partindo de um entendimento liberal de autonomia, trata-se de observar as
relações de poder existentes para compreender as condições fundamentais para a participação política e,
assim, identificar formas de legitimação que se lhe encontram associadas. Held fala num mecanismo
analítico que ajuda a identificar modos de aceitação ou conformidade em relação aos acordos políticos e
seus resultados. De acordo com o autor, trata-se de uma experiência acerca do pensamento democrático
que tem como objetivo evidenciar as condições de uma autonomia ideal, ou seja, as condições, os direitos e
deveres que as pessoas aceitariam como necessários para que o seu status correspondesse à afirmação de
membros igualmente livres na sua comunidade política. É uma investigação que parte do abstrato para
dem política legítima e atribua ao tipo 5 um estatuto ambíguo53, no quadro do que aqui se
pode definir como “normalidade democrática” e Estado social de direito, nas atuais
condições de excecionalidade político-jurídica, admite-se que qualquer um dos tipos se
encontra num continuum de legitimidade do Estado democrático de exceção.

82

Figura 6: Tipos de obediência, concordância, consentimento e acordo


Acordo Acordo
Aquiescência Acordo
Coerção Tradição Apatia prático normativo
pragmática condicional
normativo ideal

1 2 3 4 5 6 7

Fonte: Held (1989: 102).

Na figura 7 identifica-se a existência de sete razões e motivações para obedecer a


um comando, conformar-se com uma regra, ou concordar ou consentir alguma coisa: (1)
coerção; (2) tradição; (3) apatia; (4) aquiescência pragmática; (5) acordo condicional (ou
aceitação instrumental); (6) acordo prático normativo; e (7) acordo normativo ideal (cf
Ferreira, 2014: 258). Quanto à “coerção”, significa que as pessoas têm que aceitar ou

relações de poder existentes, de modo a revelar as condições capacitantes fundamentais para uma
participação política e, por isso, para a legitimação de regra (Held, 1995: 160-161).
53 Segundo David Held, só os tipos 6 e 7 da escala são legítimos, dado que a legitimidade implica

que as pessoas sigam as regras e as leis por as considerarem acertadas, corretas e justificadas (Held, 1989:
102).
conformar-se com certas circunstâncias políticas dado não haver qualquer outra
alternativa. No que se refere à “tradição”, trata-se de agir como sempre se agiu,
concordando e submetendo-se às circunstâncias. A “apatia”, por seu turno, expressa
indiferença ou despreocupação quanto às decisões políticas e, na mesma linha, a
“aquiescência pragmática” aplica-se às pessoas que, embora não concordem com a
situação, não conseguem ver uma alternativa, aceitando as condições como se fosse o que
já estava destinado. O “acordo condicional” significa que, embora não estejam satisfeitas 83
com as opções políticas, decidem concordar com elas, pois daí vão retirar algum tipo de
benefício pessoal. O “acordo prático normativo” caracteriza-se por uma decisão que se
considera correta, apropriada e justa, tanto como indivíduos quanto como membros de
uma coletividade, dada a informação disponível naquele determinado momento. Por
último, o “acordo normativo ideal” assume-se como uma situação na qual são dadas todas
as informações disponíveis, e mesmo as alternativas existentes, mas se concorda com as
decisões tomadas (cf. Held, 1995: 161).

5.5 O “novo espírito do capitalismo” como fonte de legitimidade

Podem assinalar-se abordagens macrossociológicas orientadas para a identificação


da articulação entre o Estado e os mecanismos de legitimidade e controlo social,
enfatizando a importância do mesmo em todo este processo. O Estado é, assim, central
como mecanismo de controlo social no quadro do capitalismo, quer se assuma como
burocracia centralizada, quer enquanto sujeito das relações entre Estado, capital e
trabalho no quadro das teorias neocorporativistas, ou enquanto sujeito da relação com os
grupos de interesse no quadro das teorias do pluralismo político.
São estes mesmos mecanismos, mais ou menos informais, e mais ou menos
institucionais, de controlo e legitimidade social, que contribuem para a manutenção e
reprodução da legitimidade do sistema capitalista. Outros autores falarão, ainda, em
captura de interesses, em formas de autorregulação, de governação privada (cf. Moreira,
1997), em diferentes níveis de negociação (macro, meso e micro) e em poderes fácticos e
matrizes anónimas de governação (Teubner, 2009), enquanto fontes de legitimidade
decorrentes da participação dos atores sistémicos “controlados pelas regras de jogo” ou
manipulando as mesmas.
Luc Boltanski e Ève Chiapello (1999), com a sua obra Le nouvel esprit du
capitalisme (O Novo Espírito do Capitalismo), captam a emergência de uma nova
configuração ideológica nos termos da qual a literatura da gestão e o discurso neoliberal
dos anos 1980 e 1990 se constituíram em novas fontes de legitimidade e de legalidade. É
no quadro da sua análise dos regimes de ação e de justiça que estabelecem a existência 84
da passagem das formas ilegítimas de acumulação para formas legítimas. A destituição da
relação salarial fordista e a sua deslocação para as diferentes modalidades de trabalho
flexível ou precário corresponde, assim, a um processo de construção social da realidade
associado ao discurso da justiça, do direito, da legitimidade e da generalidade.
Segundo Boltanski e Chiapello (1999), o espírito do capitalismo teria uma dupla e
contraditória função: por um lado, limitar a acumulação (impondo-lhe imperativos
morais); por outro lado, permitir o envolvimento subjetivo das pessoas no esforço
produtivo. A cooptação e adesão intersubjetiva às formas de legalidade e legitimidade
desta nova realidade capitalista encontram, nas funções sociais do direito, um elemento
simbólico de enorme relevância, considerando-se a sua capacidade de fixar publicamente
regras gerais e princípios de regulação que autolimitam o “novo espírito do capitalismo”.
No quadro da presente discussão, o problema coloca-se na medida em que o lugar
ocupado pelo direito acompanha o movimento de deslocação das fronteiras do legítimo e
do legal, contribuindo deste modo para a prospetiva de novas formas de legalidade e de
legitimidade assentes em “provas de realidade” e justificações morais. Por exemplo, e a
título ilustrativo, é por esta razão que a dissonância cognitiva e normativa resultante do
confronto entre o projeto do direito do trabalho enquanto protetor dos trabalhadores e a
sua aplicação à realidade laboral concreta, marcado por uma legitimidade de base
mercantil e um uso ilegal do direito, pode deixar de ser um problema. Os mecanismos de
justificação do capitalismo, como sucedeu nos períodos anteriores, poderão criar um novo
regime de ação e de justificação onde a realidade fáctica da aplicação do direito do
trabalho se institucionaliza como nova fonte de legalidade convergente com a legitimação
das necessidades do capitalismo.
Boltanski e Chiapello convergem com Erhard Friedberg (1995: 9) quando este
refere que atravessamos um momento onde a regulação voluntária dos comportamentos
através da regra e da lei perdeu em toda a parte a sua legitimidade a favor do livre jogo
das forças e das iniciativas, tendo por referência a desregulação e o neoliberalismo como
novas fontes de direito e de legalidade. Está-se perante uma fórmula onde o direito pode 85
ser utilizado para um fim diverso daquele para que foi criado, constituindo a base de um
modelo regulatório que combina a não aplicação, ou a aplicação seletiva do direito.
Estar-se-á a assistir a uma utilização perversa da propensão do direito do trabalho para
acompanhar as mudanças dos entendimentos sobre os padrões político-jurídicos de
legitimidade e legalidade dos fenómenos laborais.

5.6 A complementaridade entre Niklas Luhmann e Jürgen Habermas

De acordo com Pierre Guibentif, o conceito de legitimidade pode ser, ainda,


observado sob a perspetiva conjunta do trabalho de Habermas e Luhmann. Guibentif
(2010) assinala a complementaridade teórica entre ambos, a qual pode ser organizada de
acordo com quatro perspetivas, das quais se destacam duas. A primeira corresponde ao
que Habermas denomina de perspetiva participante (participant’s perspetive),
referindo-se à situação em que alguém pode estar convencido, após uma discussão
racional sobre a situação de uma experiência concreta, de que existem razões válidas para
aceitar uma certa ordem social ou, em particular, uma determinada regra. A segunda
deriva da análise de Luhmann e do seu trabalho Legitimação pelo procedimento. Os
procedimentos (procedures) são, aqui, mecanismos facilitadores da aceitação por parte
dos indivíduos das regras em vigor, dado que outras pessoas também as aceitam,
tornando mais difícil a oposição a essas regras uma vez que as pessoas contra terão muita
dificuldade em encontrar aliados (cf. Guibentif, 2010: 80).
Niklas Luhmann também refere o papel desempenhado pelo direito na função de
legitimação do poder social, outorgando que as regras jurídicas, que estabelecem
competências e procedimentos para a tomada de decisões, cumprem uma função
legitimadora uma vez que o poder se converte em direito através delas (Arnaud e Fariñas
Dulce, 1996: 137). Quanto a Jürgen Habermas, deve ainda referir-se que o seu discurso
teórico a propósito da relação entre legitimidade e legalidade passa por reconhecer que o
direito pode formalmente ser concebido como a institucionalização de um discurso 86
prática acerca de normas. Habermas acompanha Weber no entendimento da importância
das características formais do direito moderno, mas também reconhece que a
racionalização do direito não esgota a dimensão normativo do direito. Segundo Mathieu
Deflem (2008: 165), Habermas ultrapassa a tensão weberiana entre legitimidade e
legalidade ao defender que o direito moderno, mesmo quando é formalmente
promulgado pela autoridade política e por elas aplicado, continua a requerer legitimação
popular de modo a que seja reconhecido como válido.

5.7 A abordagem de Hakan Hydén

Hakan Hydén, conhecido sociólogo do direito da actualidade, desenvolve uma


proposta de análise das combinações entre legalidade e legitimidade articulando-as com
as dimensões interna e externa do direito. Neste caso, a dimensão interna do direito diz
respeito aos princípios e às normas, e a dimensão externa diz respeito às funções e
consequências do direito. O objetivo e a centralidade da perspetiva interna estão
relacionados com o estado de direito e com a legalidade. A argumentação e os princípios
orientadores são inspirados por objetivos como a coerência e a consistência do sistema
normativo e a racionalidade é orientada por valores no sentido de Weber.
O contraponto à dimensão normativa encontra-se na dimensão funcional
direcionada pela adequação/adaptabilidade e funcionalidade. A diferença entre estas
duas dimensões pode ser representada pela distinção entre legalidade (a dimensão
interna) e a legitimidade (a dimensão externa) (Hydén, 2008: 18). Segundo o autor,
mesmo que a lógica do direito seja dedutiva, o entendimento do direito beneficia em
saber qual o propósito da regulação. O direito nunca existe sobre um vacum social, uma
certa tarefa é alcançada através da regulação jurídica. Por isso, o direito é sempre um
compromisso entre estas duas dimensões, a interna e a externa, que assumem
respetivamente, neste caso, a figura da legalidade e a figura da legitimidade. De acordo
com Hydén, uma imagem equilibrada ou “ponto ótimo” da legalidade e da legitimidade é
assinalada pelo círculo da figura abaixo representada. Por exemplo, em contrapartida, 87
pode considerar-se que no caso do direito de exceção ocorre uma sobreposição entre os
eixos da legitimidade e da legalidade o que configura na linguagem do autor a situação de
um “subótimo” (cf. figura 8).

Figura 7: “O direito é um compromisso entre as duas dimensões, entre a legalidade


e a legitimidade”

Segurança material legal

Legitimidade

Funções

Consequências

Adequação/proporcionalidade

Ética

Princípios e regras

Legalidade

Segurança formal legal

Estado de Direito
Fonte: Hydén, 2008: 18

O modelo heurístico proposto pelo autor permite refletir sobre a relação entre
direito e sociedade, levando em consideração a dimensão temporal e o desenvolvimento
social. Admite-se que quanto mais estável e homogénea é ou for uma sociedade, menor
será a dificuldade em combinar as duas dimensões. Assim, quando uma sociedade ou um 88

setor específico da mesma é estável e bem conhecido, o risco do gap entre as duas
dimensões será menor. Em contrapartida, nas situações em que os aspetos normativos e
/ou cognitivos da sociedade estão sob transformação, o sistema de tomada de decisão
encontra-se sob stress, pelo que nestas situações o risco de sobreposição de uma
dimensão sobre a outra é maior (Hydén, 2008: 20).

5.8 Legalidade e legitimidade: a abordagem da sociologia das emoções

Pode à primeira vista parecer contraditório pretender relacionar o direito com as


emoções. Na raiz desta incomodidade está a dicotomia nos termos da qual o direito surge
associado à ciência jurídica com as suas marcas de racionalidade e instrumentalidade,
onde pontuam o silogismo jurídico e a subsunção jurídica através da qual se enquadra o
caso concreto à norma legal em abstrato; enquanto as emoções parecem remeter para o
irracional, o afetivo, e o subjetivo, o que pode contagiar as decisões jurídicas e
desestabilizar a ordem política. Contudo, o argumento aqui sustentado é outro,
assentando na ideia de que se estabelece uma estreita relação entre direito, legitimidade
e emoções.
A viragem para as emoções tem ocorrido em diferentes áreas do conhecimento
social, da geopolítica54 e da ética (Camps, 2012; Nussbaum, 2012, 2013). Também a

54
A este propósito conferir Moïsi (2015). Ver também Kurasawa (2007).
sociologia das emoções55 procede à identificação da pertinência das mesmas na vida
social e na teoria sociológica. Esta perspetiva defende o entendimento das emoções quer
enquanto efeito e causa social, quer enquanto elemento explicativo e significativo para a
constituição das relações, instituições e processos sociais (Barbalet, 2001: 22-23). A
sociologia das emoções reconhece que o comportamento e as interações humanas são
constrangidos pela posição ocupada pelos indivíduos nas estruturas sociais orientadas
pela cultura (Stets e J. Turner, 2008: 32-46) e pelo sistema simbólico-cultural. As 89
singularidades das diferentes perspetivas teóricas no estudo da sociologia das emoções
reconhecem-se no modo diferenciado como combinam as emoções com a interação entre
as dimensões culturais e sociais das sociedades56.
No campo da sociologia do direito pode referir-se a abordagem de Leon Petrazycki
aos fenómenos jurídicos relacionando-os com diferentes tipos de impulsos emocionais57.

55
Na sociologia, o estudo das emoções constitui um campo de especialização, emergindo nas
teorias contemporâneas nos anos 1970 (Kemper, 1978; Heise, 1979; Hochschild, 1979). Desde então, o
estudo das emoções tornou-se num tópico de investigação interdisciplinar, dando origem a uma extensa
literatura que pode ser conferida na obra de síntese Handbook of emotions (Lewis et al., 2008).
56
A este propósito refira-se o trabalho de Randall Collins (1975), que promove um renovado
interesse sociológico pela emoção. Numa perspetiva teórica da emoção enquanto objeto merecedor de
preocupação social e objeto sociológico, destacam-se diferentes perspetivas, como as de Theodore Kemper
(1978), Harlie Hochschild (1983) e Norman Denzin (1984).
57
A perspetiva de Petrazycki parte da premissa básica que as teorias do direito precisam de ser
ancoradas sob uma visão normativa ou realista. De acordo com o autor, os fenómenos jurídicos são
“processos psíquicos”, os quais incluem as categorias de vontade ativa/manifesta, conhecimento passivo,
emoções passivas e impulsos bilaterais. Os impulsos são bilaterais porque referem-se a uma experiência
passiva de alguma coisa à qual um ímpeto responde ativamente. Os impulsos pressupõem
ação/comportamento, particularmente quando são intensos. A maior parte dos impulsos no dia a dia são
relativamente fracos e inconscientes, mas certas condições como o neutralizar um impulso e o que o
provoca, podem fortalecer os mesmos. Certos impulsos, tais como a fome e o medo conduzem a um certo
tipo de comportamento, enquanto que outros, como por exemplo uma ordem, podem produzir diferentes
tipos de comportamento dependendo do seu conteúdo (Deflem, 2008: 79). Entre estas últimas, o impulso
do dever é particularmente relevante para a sua teoria jurídica. O impulso do dever ocorre em resposta a
uma ideia de conduta que é avaliada em termos normativos. A ideia refere-se a algo considerado errado
implicando que tal não se faça, ou referindo-se a algo correto pode criar o dever de agir em concordância,
denominados de impulsos éticos formando a essência da realidade do direito (idem: 80). A explicitação de
um impulso jurídico pode ser formulada de forma clara através de um ato de legislação tal como a
promulgação de uma lei ou a decisão de um tribunal. Petrazycki refere-se ao conjunto de tais impulsos
jurídicos que são baseados em imagens do ato de legislação ao nível do estado ou outra qualquer subsecção
da sociedade, como direito positivo. Por outro lado, o direito intuitivo refere-se a impulsos jurídicos que são
entendidos como obrigatórios/vinculativos mesmo sem resultarem da imagem de um ato de legislação. As
discrepâncias entre o direito intuitivo e o direito positivo é na perspetiva do autor um dos principais
problemas associado ao direito na sociedade. As pessoas ao experienciarem o direito intuitivo como algo
muito diferente do direito positivo que é oficialmente associado a sanções, experienciam simultaneamente
Susan Bandes em 2000 organiza o livro The Passions of Law, onde diversos tipos de
emoções são associados a questões jurídicas, sendo igualmente de realçar os contributos
de Martha Nussbaum (2004) e Cass Sunstein (2005). Filiando-se neste entendimento do
direito e das emoções, o presente tópico dedicado à questão da legalidade e legitimidade,
tratado na ótica da sociologia das emoções, tem presente o duplo reconhecimento de que
as emoções se encontram em articulação com o direito, e de que as mesmas estão na
base de combinações multidimensionais com quadros institucionais e normativos. 90
Afigura-se possível, deste modo, sustentar que as emoções podem estar na base de uma
conceptualização da relação entre legalidade e legitimidade, tendo por base uma
estratégia de teorização próxima da desenvolvida por Max Weber. Sendo a legitimidade
produtora do consentimento ativo ou passivo dos que obedecem, a crença social num
modelo, regime ou programa, constitui-se na fonte da obediência consentida.
A declinação da noção de legitimidade aqui sustentada reconhece a importância da
ação emocional ou afetiva, onde as emoções se constituem em fundamento da
legitimidade58. Esta legitimidade pelas emoções está na base de um regime que visa obter
a obediência através da adesão dos governados por via da persuasão e da crença em

a ordem jurídica e a ordem social como injustas. Alguns grupos da sociedade poderão tentar transformar o
direito positivo de acordo com o sentido do direito intuitivo, enquanto que alguns grupos mais poderosos
poderão resistir a qualquer mudança no direito positivo, pelo que se a força do direito intuitivo crescer
entre os grupos mais desfavorecidos pode mesmo desencadear uma revolução. Daí que os impulsos
jurídicos sejam também uma fonte importante de mudança social. De uma forma geral, o autor adota um
quadro evolutivo de aumento de complexidade. O direito intuitivo desenvolve-se primeiramente em
sociedades simples como uma resposta psicológica ao comportamento que é tanto prejudicial como útil ao
grupo. Devido à necessidade de aumentar a uniformidade entre estes impulsos, o direito intuitivo torna-se
cada vez mais baseado em legislação, criando, assim, o direito positivo. O estabelecimento do direito
positivo, por seu turno, produz novos impulsos jurídicos que podem ser transformados ao nível intuitivo. Os
legisladores têm um papel privilegiado em procurar conduzir a mudança social em direcionando
propositadamente os impulsos. Esta função de engenharia social ou política jurídica deve ser entendida no
sentido psicológico de mudança de atitudes, sendo essencial no direito. O objetivo final da política jurídica é
a coexistência pacífica entre as pessoas, o que Petrazycki chama de “amor racional ativo”, enquanto que
outros objetivos tais como a prevenção do crime ou o crescimento económico são secundários. Por forma a
atingir estes objetivos, os legisladores deveriam ter provas científicas do impacto que as suas ações irão ter
na mente humana. Mudar a atitude das pessoas através do direito faz com que a política jurídica tenha um
importante objetivo educacional (Deflem, 2008: 81).
58
No quadro desta discussão em torno dos novos processos de legitimação associados às
emoções, pode também explorar-se a ideia de que o poder está incorporado nas relações intersubjetivas e
no mundo da vida. Deste modo, os processos de legitimação e o exercício do poder funcionam através da
lógica das relações sociais tendo por base a partilha de sentidos e de interdependências (cf. Crossley, 1996:
127-149).
qualidades sobrenaturais como sucede com o modelo de austeridade. Com efeito, no
atual contexto de crise e de austeridade, as emoções e as crenças adquirem centralidade
e conferem especificidades aos processos de legitimação vigentes. A obediência e
aceitação das decisões políticas fundadas no reconhecimento objetivo e subjetivo de
inexistência de alternativas ao “poder autoritário de comando” tem por base a crença no
caráter salvático da austeridade catalisado por duas motivações orientadoras da
obediência dos indivíduos: o ressentimento e o medo. Elas conjugam-se com a ambiva- 91
lência do exercício do poder dos governantes, caracterizada pelo uso instrumental,
manipulatório e estratégico das emoções como fator de legitimação. Pode, neste sentido,
perspetivar-se o poder como a possibilidade de impor a vontade dos governantes ao
comportamento dos governados, através da gestão das motivações e expectativas
emocionais dos indivíduos e grupos sociais, de modo a aderirem às decisões políticas.
Converge-se, assim, com a ideia de Elias Diaz de que o sistema de legalidade realiza-se
sempre a partir de uma determinada conceção do mundo, de um determinado sistema de
valores ou sistema de legitimidade estão criadas, assim, as condições, para a afirmação do
processo de positivização e de juridicidade de manifestações como a do direito de
exceção.

5.8.1 Uma justificativa da relação entre direito e emoções segundo Martha


Nussbaum

Martha Nussbaum tem trabalhado sobre a forma como as emoções se relacionam


com o direito. Em particular, no livro Hiding from humanity (2004) apresenta uma crítica
ao papel que a vergonha e a repugnância/nojo assumem na vida individual e social dos
indivíduos e, especificamente, no direito. O seu argumento principal é o de que devemos
ter consciência destas emoções dado que as mesmas estão associadas de uma forma
problemática ao desejo de “esconder” a nossa humanidade, materializando o desejo
irrealista e por vezes patológico de não ser vulnerável. Daí afirmar que o direito sem a
emoção é virtualmente impensável (Nussbaum, 2004: 5). Na sua perspetiva, a necessidade
do direito associa-se justamente ao facto de sermos vulneráveis ao dano de diferentes
formas. A ideia de vulnerabilidade está, assim, diretamente conectada à ideia de emoção.
A autora define as emoções como respostas às formas várias formas de vulnerabilidade,
“respostas nas quais depositamos os danos que sofremos, que poderemos sofrer, ou que
com sorte não sofremos” (Nussbaum, 2004: 6).
Para desenvolver o seu argumento, Nussbaum parte de exemplos em que a ordem
jurídica estabelece as emoções como elemento fundamental na tipificação penal e o seu
peso na decisão e pena a ser aplicada. Afirma que as emoções podem desempenhar dois 92
papéis distintos no direito, embora relacionados entre si. Por um lado, podem figurar
como justificação para tipificar certos atos como ilegais. A título ilustrativo, nomeia as
ofensas pessoais e à propriedade, as quais são universalmente sujeitas à regulação
jurídica, invocando o medo dos cidadãos face a estas mesmas ofensas. Por outro lado, tais
emoções são também peça fundamental no que se considera relevante do ponto de vista
jurídico sobre a mente de um criminoso, o que para além disso tem também muitos
outros elementos não emocionais (tais como a negligência, a premeditação, a intenção)
(Nussbaum, 2004: 7-8). Nussbaum refere também a crítica “antiemoção” no direito, feita
por académicos da corrente utilitarista, os quais afirmam um sistema de direito puro, sem
emoções. Contudo, a autora sublinha que o grande problema destas perspetivas é o de
que não cumprem com esta mesma premissa (cf. Nussbaum, 2004: 8-9). Para Nussbaum,
o direito precisa de tomar uma posição sobre o que se considera um dano significativo, o
que acaba por fazer num sentido normativo. O seu argumento é o de que os julgamentos
sobre o que é razoável no direito são julgamentos normativos que fazem recurso à
imagem hipotética do “homem razoável” [à razão], sendo, por isso, sensíveis às normas
sociais existentes. Para além disso, as emoções podem desempenhar um papel mais
dinâmico ao servir de suporte a normas instáveis, ou mesmo convocar normas que são
necessárias. Assim, o direito não descreve somente normas emocionais existentes, como
ele próprio é normativo, desempenhando um papel dinâmico e construtivo. A autora
acrescenta, ainda, que um sistema jurídico que não tenha frequentemente em
consideração as emoções, ou pelo menos que trate algumas delas com razoabilidade,
constituiria sem dúvida um retrocesso (Nussbaum, 2004: 12).
Deste modo, o seu objetivo é o de realizar um ensaio sobre as bases psicológicas
do liberalismo, assente nas condições institucionais e de desenvolvimento de forma a
sustentar um “respeito liberal” para a igualdade humana. Parte, portanto, da convicção de
Rousseau de que a igualdade política deve ser suportada por um desenvolvimento
emocional que entenda a humanidade como condição de uma incompletude partilhada.
Porém, este liberalismo torna-se mais milliano que rosseauniano ao valorizar a liberdade
tanto quanto a igualdade. Para Nussbaum (2004), tanto Rousseau como Mill, partilhavam 93
o entendimento de que instituições justas, para se tornarem estáveis, necessitam de um
suporte que advenha da psicologia dos cidadãos, destacando o papel da educação em
produzir uma sociedade decente, atenta à igualdade humana. Tendo presente este
entendimento, a questão fulcral da autora é a de saber que normas razoáveis nas
emoções são as mais acertadas de modo a se incluírem no direito, por forma a expressar e
cultivar emoções consideradas apropriadas nos cidadãos? (Nussbaum, 2004: 16).
O objetivo que pretende atingir é o de apresentar uma sociedade que tenha
consciência da sua própria humanidade, uma sociedade composta por cidadãos que
admitam a sua vulnerabilidade e dependência, descartando a representação do ser
humano completo e perfeito que está no coração da miséria humana, tanto privada como
pública (Nussbaum, 2004: 17). Nussbaum convoca uma sociedade na qual esta “ficção”
não esteja presente no direito, e que na construção de instituições que moldam a nossa
vida em conjunto se possa admitir que precisamos de proteção e que não controlamos o
mundo. Trata-se de reconhecer uma igual dignidade a cada indivíduo, constatando
igualmente que a vulnerabilidade é inerente a toda a humanidade (idem: 17-18).

5.8.2 Legitimidade, ressentimento e medo

Apesar da sociologia das emoções enfatizar o nível de análise microssociológico59,


a reflexão em torno do direito, da legitimidade, do ressentimento e do medo, afigura-se

59
Como referi noutro lugar (Ferreira, 2014: 259), a maior parte das teorias sobre as emoções
focam a sua análise num nível micro, examinando processos de interação “face a face”, relacionados com o
poder e com o status. Contudo, os processos de interação que se desenvolvem num nível micro estão
inseridos numa macroestrutura em que o poder e os recursos não são distribuídos de forma igual. Para a
mais interessante quando explora macrossociologicamente esta questão. O argumento de
partida (cf. Ferreira, 2014: 260) é o de que embora as emoções assumam um caráter
transversal na sociedade (presentes em todos os grupos sociais), afetando de forma
diferenciada os vários grupos sociais, os processos de legitimação envolvendo o
ressentimento e o medo, assumem um maior impacto entre os grupos social e
economicamente mais vulneráveis. Daqui decorre que as emoções ligadas ao
ressentimento e ao medo, traduzem uma desigual distribuição do impacto sociológico das 94
mesmas na condução da vida social, que será tanto mais negativa quanto menores forem
os recursos e proteções a que os grupos sociais e os indivíduos tiverem acesso para se
posicionarem perante as ameaças60.

5.8.2.1 Ressentimento

No quadro da sociologia das emoções, o ressentimento articula duas dimensões: a


“coerção”, enquanto inexistência de alternativas; e a ação instrumental, estratégica e
manipulatória dos decisores políticos, orientada para o fomento das tensões intergrupais,
interprofissionais, interclassistas e intergeracionais.
De acordo com Barbalet (2001), autor que explora de uma forma aprofundada a
abordagem sociológica da emoção ressentimento, este define-se como a compreensão
emocional de uma vantagem não merecida. É por esta razão, que o autor entende que a
base interacional do ressentimento assente no ganho de estatuto, de vantagens, de
manutenção de privilégios e direitos ou de menor perda relativa dos mesmos,
considerados imerecidos por parte de outros atores sociais (cf. Barbalet, 2001). Deste

construção de uma teoria estrutural das emoções, é necessário conectar as dimensões micro e macro. Todas
as categorias baseadas no género, classe ou raça, por exemplo, podem experienciar emoções semelhantes
por ocuparem o mesmo lugar no sistema de estratificação. Deste modo, são estruturalmente equivalentes,
podendo partilhar as mesmas experiências e, por isso, ter reações emocionais similares. O trabalho de
Barbalet aproxima-se desta perspetiva ao ligar os processos macroestruturais às emoções num nível micro.
Alguns autores alertam para o facto de esta perspetiva necessitar de densificação teórica e investigação
(Stets e J. Turner, 2008: 32).
60
A este propósito, vale a pena assinalar o trabalho desenvolvido pelo “Centre for the Study of Law
& Emotions”, numa perspetiva que marca a vertente de investigação empírica para a base emocional das
reivindicações dos indivíduos associadas a memórias traumáticas. Procura, ainda, realçar as articulações
sociológicas existentes entre direito e emoções. Consultar: <http://www.csel.org.uk/about_us.html>.
modo, ele é “uma apreensão emocional quanto ao afastamento dos resultados e
procedimentos aceitáveis, desejáveis, decentes e corretos” (Barbalet, 2001: 202).
Enquanto interação, o ressentimento é impulsionado pela consideração de um conjunto
de práticas, valores ou normas externamente aceites, baseando-se não tanto no
envolvimento pessoal, mas antes na visão pessoal do desajuste entre os direitos e os
resultados sociais. Importa realçar que o ressentimento se encontra associado às
discussões sobre emoções que também são fonte dos direitos e de justiça (cf. Barbalet, 95
2001: 196). 61

A abordagem que Barbalet faz no campo da sociologia das emoções ao tema do


ressentimento, adquire relevância sociojurídica, muito especialmente, quando convoca o
trabalho de T. H. Marshall. Partindo dos argumentos deste último, Barbalet (2001: 105)
chama a atenção para a importância da noção de ressentimento de classe enquanto fator
explicativo do conflito de classes, ultrapassando as abordagens estruturais ou cognitivas
associadas a interesses ou à consciência. A combinação entre as dimensões macro e micro
sociológicas também, aqui, pode se mencionada, na medida em que a perspetiva de
Marshall parte do reconhecimento de que a experiência individual de uma emoção pode
ter origem na estrutura social, o que relaciona com o ressentimento de classe. Assim
sendo, a institucionalização do conflito de classes é acompanhada pela institucionalização
do declínio do ressentimento de classe. Deste modo, a leitura que Barbalet (2000) faz da
obra de Marshall acaba por concluir pela relação existente entre a sociologia das emoções
e o tema da cidadania. Ao tratar os conflitos de classe e os elementos subjacentes à
cidadania social em termos de ressentimento, Marshall antecipava alguns dos
pressupostos teóricos na sociologia das emoções62. O autor coloca a questão de uma
emoção social se estabelecer num quadro político-económico, pelo que o nível de
ressentimento de classe é importante, pois determina o nível do conflito de classes, e, na

61
O reconhecimento sociológico concedido ao ressentimento tem representação no trabalho de
Friedrich Nietzsche. O autor considera o ressentimento como uma forma autodestrutiva que funciona como
anestésico para abrandar a dor da ofensa (cf. Nietzsche, 1976: 126-127).
62
Convém levar em consideração que clássicos da sociologia como Tarde, Le Bom, Pareto, Simmel,
Durkheim, entre outros, aceitaram a emoção como raiz dos processos sociais e das instituições.
mesma medida, a estrutura das relações sociais é importante porque determina o nível de
ressentimento de classe (cf. Barbalet, 2000: 35-56; Ferreira, 2014: 261)63.
Para a sociologia do direito, o argumento de partida deste tópico, onde associo o
processo de legitimação ao ressentimento, deve levar em consideração as condições
históricas e fatores de ignição do ressentimento, os quais podem variar contextualmente
(Ferreira, 2014: 262). Este aspeto é relevante quando se procura explorar a relação entre
ressentimento e direitos de cidadania num contexto de crise e implementação de medidas 96
desestruturadoras dos direitos de cidadania. O ressentimento é utilizado como
instrumento de legitimação no quadro de um processo de gestão política intencional,
provocado pelos governos e decisores políticos. Deste modo, o ressentimento resulta da
interpenetração entre as esferas política, jurídica e cultural/simbólica, mobilizadas na
produção e aplicação das políticas e direitos de exceção, associados à ordem social da
sociedade da austeridade.
Em trabalho prévio defendi a tese de que, a institucionalização de um padrão
normativo e de políticas públicas de crise e de exceção, produtoras de efeitos na estrutura
social, têm como resultado uma alteração de estatutos de grupos e indivíduos (Ferreira,
2014: 263). Ora é este novo padrão político-normativo produz um rearranjo no sistema de
direitos e deveres, que tende a relativizar os estatutos, posições e direitos adquiridos por
diferentes grupos sociais, induzindo processos de comparação, frustração e conflito
intergrupal (Marshall apud Barbalet, 2001: 106). A comparação tende a isolar os
interesses e a consciência de indivíduos e grupos, contribuindo para a quebra de laços de
solidariedade e para o fechamento autorreferencial dos interesses sociais. Quanto à
frustração, ela emerge do entendimento de que os privilégios de uns criam a desigualdade
de oportunidade de outros, intensificando o conflito e o ressentimento entre grupos
sociais. No que diz respeito ao conflito, está-se perante a desigual distribuição de

63
Gostaria de salientar que o alargamento do campo analítico da sociologia das emoções ocorre
quando a análise não se situa apenas no plano da experiência dos sentimentos emocionais, estendendo-se
ao contexto social de onde emergem as emoções, o qual é agora percebido como um elemento central da
própria emoção. Tal precisão deve ser mencionada porque as emoções enquanto facto social não se formam
apenas numa relação social, antes constituem uma relação social, isto é, as emoções são elas próprias
relações sociais (cf. Barbalet, 2001: 96; Ferreira, 2014: 261).
autoridade, maior ou menor, dependendo das relações de dominação-sujeição, entre
grupos.
Os processos de comparação, de frustração e de conflito associados ao
ressentimento estabelecem, ainda, as bases do que porventura será a forma mais
depurada de manipulação estratégica do ressentimento sob a forma da aplicação do
princípio de igualdade entre grupos e indivíduos. O processo de legitimação pelo
ressentimento transporta consigo a ilusão da igualdade. Importará desfazer o equívoco 97
daqui resultante, dado que esta suposta igualitarização subverte os pressupostos básicos
da construção do princípio da igualdade ao harmonizar as diferenças sociológicas inscritas
na sociedade. Trata-se de afastar o princípio da diferença e das desigualdades reais em
favor de um “consenso de ponderação de igualdade”: ricos e pobres; trabalhadores da
função pública e trabalhadores do privado; reformados e trabalhadores no ativo; idosos e
jovens; empregados e desempregados; direitos sociais dos trabalhadores e sustentabili-
dade do Estado social; etc.. 64

5.8.2.2 Medo

Para a sociologia do direito, o medo surge vinculado à sociedade enquanto seu


produtor e, também, à criação das condições de padrões normativos de consenso, que se
prestam à instrumentalização política. Em termos sociológicos, o medo assume-se como
um instrumento de definição, de controlo e de governo da ordem social, enquanto
elemento constitutivo da sociedade política ligado à necessidade de proteção e de certeza
através do governo político (Ferreira, 2014: 266). É no quadro deste entendimento

64
Exemplo desta dinâmica do ressentimento é-nos fornecido pelo texto de José Soeiro (2013),
tendo por referente a sociedade portuguesa significativamente intitulado “Os direitos dos mais velhos estão
a bloquear os dos mais novos?”. A sua análise assenta na centralidade da questão da “precariedade dos
jovens” utilizada como argumento que fez despontar uma retórica assente numa suposta “guerra de
gerações”. Assim, como nos diz, tratou-se de mobilizar os mais novos em favor da concorrência, da
liberdade e do mérito contra as barreiras à entrada do mercado de trabalho, bloqueado pelo imobilismo dos
direitos adquiridos que fazia ressaltar a oposição entre os jovens qualificados e dinâmicos, por um lado, e
trabalhadores velhos, instalados e protegidos face às necessidades de mobilidade do mercado de trabalho,
por outro. Em suma, o desemprego e os baixos salários da juventude seriam o preço necessário a pagar pela
proteção dos mais velhos (Soeiro, 2013: 95-96).
sociojurídico do medo que se considera que o mesmo faz parte do processo de
legitimação da relação política entre governantes e governados, facilitador da existência
quotidiana do Estado, da eficácia das leis e do exercício de poder (Mongardini, 2007:
67-70). O medo e o direito são, neste sentido, elementos interdependentes, colocados ao
serviço de regimes de governação política. O governo do medo em períodos de crise da
democracia e de transição social, converte-se num dos instrumentos mais relevantes para
a obtenção do consenso político, sobretudo quando se apagam as diferenças entre as 98
ideologias políticas e se afirma a necessidade imperiosa de impor o modelo
unidimensional de combate à crise. Em diálogo com o estudo de Carlo Mongardini
(Ferreira, 2014), sublinha-se a ideia de que governar o medo é um objetivo
essencialmente político, enquanto governar com o medo é uma das formas políticas possí-
veis, especialmente quando se verifica o risco da perda de consenso social. Daí que,
segundo o autor, se deva atender ao contributo clássico de Georg Simmel, que o inclui
entre as forças psicológicas que mantêm politicamente unidos os indivíduos e que a partir
de um ponto central dominante transformam um território geográfico num espaço
político (Mongardini, 2007: 68). O medo evidencia, ainda, características distributivas
quando diz respeito ao conjunto de indivíduos que o experimentam de uma forma
partilhada no âmbito de uma coletividade social, e características relacionais quando
remete para o medo gerado no quadro de uma relação ou de uma estrutura social
(Ferreira, 2014: 266) 65. Daí que a gestão do medo seja eminentemente uma questão de
poder e de legitimação, adquirindo uma importância crescente no espaço público e no
discurso político e jurídico (cf. Hunt, 2003). O medo, torna-se em mais um mecanismo de
sublimação das questões públicas em problemas biográficos ao interferir em contextos

65
O tema do medo tem sido estudado pela sociologia de acordo com diferentes perspetivas. Uma
boa síntese encontra-se em Frank Furedi (2007), que identifica alguns dos debates e autores relevantes para
a questão. Outros desenvolvimentos podem ser conferidos em François Ewald (1993), Bryan Massumi
(1993), Anthony Giddens (1994), David Altheid (2002), Alan Hunt (2003) e Joanna Bourke (2005). Para o
clássico Norberto Elias (1990: 195), o tema do medo constitui-se como um importante mecanismo de
articulação entre as estruturas sociais e os indivíduos, quer numa perspetiva normativa, quer numa
perspetiva construtivista, funcionando como quadro de referência para a ação, como processo de
estruturação das interações sociais e como fonte das identidades individuais e coletivas. De entre as suas
sociais marcados pelo individualismo neoliberal, onde se minimiza o peso da proteção
social e maximiza a insegurança individual (Bauman, 2006: 16). Enquanto emoção
experimentada por quem verifica que há uma coisa ameaçadora contra a qual não tem
qualquer poder (Innerarity, 2009: 176), o medo torna-se instrumental para a prossecução
dos interesses dos que procuram uma intensificação do controlo social e de uma
legitimação da desigual distribuição do poder e do bem-estar.
Enquanto fonte de legitimidade no quadro das sociedades democráticas, o medo 99
está na base da construção de um regime paradoxal de causalidade. Foi esta a tese que
defendi, e que continua válida (Ferreira, 2014). Ponto que volto a enfatizar,
argumentando que o medo, no âmbito da sociedade em crise, se afirma como um
mecanismo de tradução de um problema estrutural num desígnio individual, ou,
socorrendo-me da proposta de Margaret Somers, num mecanismo de conversão da
narrativa da crise em modelo político-jurídico dominante, assegurando a prioridade
absoluta dos valores morais do neoliberalismo económico e social (Somers, 2008: 3). O
medo e o distopismo são, assim, constitutivos das narrativas de conversão, operando a
fusão entre os níveis coletivo e individual. A este propósito, Margaret Somers parte do
pressuposto de que as narrativas de conversão66 exercem um enorme poder na fixação
das agendas de discussão e tomadas de posição dos atores sociais, já que as assunções
públicas de que são portadoras estão incorporadas e naturalizadas na cultura política,
estabelecendo os parâmetros legítimos para o que realmente interessa nos debates
políticos e sociais (cf. Somers, 2008: 2).

propriedades sociológicas, reconhece-se o modo como se torna num discurso generalizável, facilitando a
partilha de identificações, de expectativas e de experiências dos indivíduos e grupos.
66
Margaret Somers define “narrativas de conversão” como medos induzidos através de previsões
de outros cenários, de modo a converter as narrativas dominantes de uma sociedade de um caráter social
para um caráter económico, fazendo-o através da exposição das implicações morais e económicas de
continuar no curso de políticas sociais (Somers, 2008: 3).
3ª PARTE – UMA SOCIOLOGIA DO DIREITO SITUADA PERANTE
A AUSTERIDADE E A EXCEÇÃO

8. Sociologia do direito em tempos de crise


100
Aquando da apresentação dos objetivos deste relatório, assumiu-se que o mesmo
seria norteado por uma preocupação de apresentar as dimensões caracterizadoras da
sociologia do direito e também os desafios que se colocam à disciplina na atualidade.
Abria-se já caminho para a ideia de uma sociologia do direito situada, uma sociologia do
direito que aceita o desafio de refletir sobre três categorias estruturadoras do presente, a
saber: crise, austeridade e exceção. Tendo presente a tensão para a qual Ulrich Beck
apontou, entre “nacionalismo metodológico” e “cosmopolitismo nas ciências sociais”, o
argumento que aqui se avança é o de que a sociologia do direito pode e deve dar um
contributo para um melhor e mais aprofundado conhecimento da realidade social,
captando as dinâmicas de transformação social, política e jurídica, num quadro de
desmantelamento das instituições e dos direitos que têm procurado assegurar os
princípios da liberdade, da igualdade e da justiça social. As transformações a que me
reporto surgem como uma fonte de precarização e de insegurança de estatutos sociais e
de posições dos indivíduos na sociedade, potenciando a fragilização ontológica, e as
incertezas crescentes acerca do lugar do político e do jurídico. Face a este contexto, as
ideias de crise, austeridade e exceção podem intermutavelmente ser associadas às noções
de sociedade de crise, sociedade de austeridade e sociedade de exceção, partilhando as
consequências da transformação do neoliberalismo que se radicaliza de uma forma
musculada em medidas excecionais e privativas da afirmação humanista dos indivíduos,
orientados pela via unidimensional de que tudo se legitima face à realidade inevitável da
situação económica e da financeirização do mundo.
No bojo desta reflexão está a noção de sociedade de austeridade com a qual
procurei, em trabalhos anteriores, captar as dinâmicas de transformação sociológica,
política e jurídica experienciadas na atualidade. Pareceu-me, pois, que deveria aliar esse
registo de investigação que desenvolvi (Ferreira, 2011, 2012, 2014, 2016) a um registo de
transmissão do conhecimento, onde me fosse possível combinar o trabalho de
investigação, e de publicação, com o do ensino nos termos requeridos por uma docência
de seminário de doutoramento. Esta aliança “investigação-ensino”, como opção de 101
docência e de orientação curricular, objetiva-se na estreita ligação com o trabalho que se
inscreve neste relatória e que agora se apresenta.
Uma observação prévia, para afirmar que a questão do lugar ocupado pela
sociologia deve considerar o modo da sua inserção no debate público e académico. Duas
notas devem ser feitas. A primeira é a de que a austeridade e a excecionalidade normativa
surgem inicialmente como um modelo económico cujos interlocutores privilegiados
seriam especialistas em economia. A legitimidade académica do conhecimento económico
configurou-se como fonte das discussões, podendo afirmar-se que se estaria perante o
monopólio do conhecimento acerca da crise, da austeridade e da exceção, tendo por base
esta área do conhecimento. Por outro lado, as narrativas da austeridade e do
excepcionalismo foram mediatizadas pelos meios de comunicação social, que sublinharam
e acentuaram a pressão, a urgência e o dramatismo enquanto suas notas caracterizadoras
67.

Paralelamente, verificou-se uma tendência para a “essencialização das causas da


crise” (Pinto, 2013: 144) e da austeridade, com a utilização da expressão neoliberalismo
como recurso. Sem estar em causa o impacto do neoliberalismo nas suas manifestações
mais severas da financeirização e da desregulação dos mercados, o facto é que a

67
Utilizo a expressão “narrativas” num duplo sentido. De acordo Wolfgang Streeck (2017:8) este
termo “migrou” da teoria literária e da psicologia para a política, ganhando um enorme destaque. De acordo
com a Wikipedia, uma narrativa é uma história com significado na qual as emoções são transportadas, fornecendo
orientação e transmitindo confiança. Este conceito é especialmente popular nos dias de hoje sempre que na Europa
uma eleição é fracassada, e face aos resultados os “autodenominados” europeus exigem uma melhor narrativa.
Margaret Somers define “narrativas de conversão” como medos induzidos através de previsões de outros
cenários, de modo a transformar o carácter social das narrativas dominantes de uma sociedade num caráter
económico (Somers, 2008: 3).
expressão tem sido utilizada “demasiadas vezes em contextos argumentativos em que os
objetivos ideológicos sobrelevam claramente as exigências de análise baseadas no
conhecimento das ciências sociais” (idem). 68 É neste sentido que José Madureira Pinto
(2013) 69, Wolfgang Streeck (2013a) e Alain Touraine (2010), entre outros, chamam a
atenção para as exigências de uma análise sociológica, quer da crise, quer da austeridade.
A opção pedagógica e teórica, aqui seguida, sustenta, em linha com os autores referidos,
que a sociologia do direito não pode ficar refém de uma reflexão estritamente económica, 102
tendo que desenvolver-se um exame circunstanciado das interdependências existentes
entre os mecanismos financeiros, económicos, políticos e jurídicos, as dimensões
simbólicas, as práticas sociais concretas dos indivíduos, e a forma como o poder, o conflito
e a política encontram novas condições de exercício.

8.1 Quadro teórico e conceptual de referência

A opção pelos três grandes temas estudados (perspetivas da sociologia do direito –


1ª parte; clássicos e contemporâneos da sociologia do direito – 2ª parte; sociologia do
direito situada perante a austeridade e a exceção – 3ª parte) e o tipo de organização da
matéria utilizada ficam agora mais esclarecidos, na medida em que se torna patente a
forma como se extrai de cada um deles elementos imprescindíveis para a construção da
perspetiva de análise da sociologia do direito situada perante a austeridade e a exceção70.
A encimar a fundamentação desta perspetiva de análise está, como não poderia
deixar de ser, a relação entre o direito e a sociedade, estudada na primeira parte.
Tendo-se estabelecido o princípio da interdependência entre o direito e a sociedade
chamou-se a atenção para a importância de três grandes problemáticas: direito e

68
Como refere José Madureira Pinto (2013: 144), “a invocação ritualizada do «neoliberalismo»
acaba então por levar a pensar a crise como o resultado da engrenagem quase naturalizada dos «mercados»
ou de uma «intenção», vagamente associada em termos sincréticos ao chamado «Consenso de
Washington» ”.
69
Em boa verdade, Madureira Pinto acabará por defender um conhecimento mais aprofundado da
dimensão económica ainda que a enquadre na ótica dos fenómenos sociais totais.
70
A noção de exceção, na perspetiva da teoria social contemporânea, convoca de imediato os
nomes do jurista Carl Schmitt e o do filósofo Giorgio Agamben.
desigualdades; juridificação e judicialização; e funções e sentido do direito. Estes
elementos estruturadores da análise sociológica são agora desafiados pela crise dos
mercados financeiros desde 2008 e pelo afirmar, no plano político e no da produção e
aplicação do direito, das ideologias da austeridade e da exceção. Tendo presente que o
direito é revelador das metamorfoses do político, e de que o direito e a política se
combinam socialmente, defende-se que a sociedade de austeridade e as manifestações de
excecionalismo institucional e normativo que lhe são conexas devem ser estudadas por 103
uma sociologia do direito situada. A mesma constitui uma porta de entrada para a
investigação e ensino sociojurídico neste tempo de turbulência. A hipótese geral que aqui
se sustenta é a de que a relação direito-sociedade, a juridificação e judicialização, e as
funções e sentido do direito sofrem com o impacto das mutações societais em curso e
evidenciam a importância de colocar esta estrutura conceptual da sociologia do direito
face aos novos contextos.
Quanto ao pensamento sociojurídico dos clássicos estudados na segunda parte, e
harmonizando as especificidades das suas propostas em torno de uma tese central,
importa destacar a forma como sempre estabeleceram uma profunda afinidade entre o
direito e a sociedade, e como através desta opção analítica e metodológica puderam
estudar as sociedades da modernidade. A centralidade dos clássicos estabelece e assevera
da pertinência dos estudos sociojurídicos em períodos onde as dinâmicas de rutura e de
transformação social são profundas. Assim, observando esta intuição sociológica
procura-se demonstrar como a emergência de modelos de organização social e
económica, como é o caso da sociedade de austeridade, constrangem quadros
institucionais, legais e padrões de normatividade, os quais adquirem agora a forma da
“normalidade da exceção”. Apontando os argumentos ao presente, pode avançar-se com
a ideia de que as sociedades da modernidade avançada, da sociedade de risco, ou mais
propriamente da sociedade de austeridade, colocam uma questão central: a de saber de
que modo em sociedades crescentemente complexas e marcadas pelo acentuar das
desigualdades, da exclusão social e das vulnerabilidades, o direito pode contribuir para a
diminuição, ou pelo contrário, acentuar, estas dimensões negativas e eticamente
atentatórias a uma vida e sociedades dignas.
No que diz respeito aos autores contemporâneos, os seus contributos podem ser
organizados despistando-se as respetivas idiossincrasias teóricas em torno de duas
ideias-chave. A primeira é de que estão cientes da tensão existente entre os debates
político-jurídicos que se desenrolam nacionalmente, e um número crescente de questões
e desafios que são colocados pelas dimensões transnacionais ou globais, incluindo-se as 104
que ocorrem no plano europeu. Essa intuição é acompanhada pela consciência de que
existe uma relação intensa entre “políticas da ciência e políticas do direito” (Guibentif,
2013) a qual convida, ou mesmo, exige, que se esclareça de que modo a sociologia do
direito pode aprimorar o seu regime de conhecimento face à complexidade dos mundos
(Commaille e Thibault, 2014: 21) e, concomitantemente, contribua para a defesa dos
ideais democráticos, da justiça social e da boa sociedade.
As clivagens que hoje em dia atravessam as sociedades com relevância para a
sociologia do direito, considerando-se o contexto económico, social, político e cultural
marcado pela matriz ideológica da austeridade e a normatividade da exceção, estão
associadas às oposições entre mercadorização e política, esquerda e direita, capital e
trabalho, politização e despolitização, democracia e não democracia, justiça social e
desigualdades sociais. É tendo presente a natureza política destes debates que a leitura
então feita dos autores contemporâneos permite deles recolher um conjunto de
influências estimulantes para a sociologia do direito situada. A questão do Estado, central
aos debates políticos e jurídicos, é agora perspetivada à luz da contraposição entre novas
e velhas formas de regulação, crise da regulação política e jurídica, e constrangimentos
impostos ao Estado Social. Os elementos acabados de referir compõem as linhas de força
da relação entre o Estado e o direito, a qual é agora crescentemente condicionada pelo
retomar da noção de Estado de exceção. Por esta via, observa-se que instituições do
Estado Social de Direito Democrático, como os parlamentos e os tribunais constitucionais,
são crescentemente afetados por manifestações como a da judicialização da questão
social e a captura não democrática da constituição democrática, temas incontornáveis na
atual análise sociojurídica. A discussão da noção de poder, nomeadamente no que diz
respeito à teoria da separação de poderes e ao legítimo exercício do poder democrático é
marcada na atualidade pelas diferentes manifestações do poder dos não eleitos e pelas
diferentes formas de constrangimento exógeno.
As atuais condições de exercício do poder de exceção e de produção e aplicação do
direito caucionam a reintrodução das teses liberais da convergência entre legalidade e
legitimidade e da separação entre política, direito e sociedade. Sem deixar de ter presente 105
a análise crítica dos princípios referidos, por exemplo, por Boaventura de Sousa Santos,
Jacques Commaille, Pierre Bourdieu e André-Jean Arnaud, ocorre um ressituar desta
problemática no quadro da análise de Zygmunt Bauman da modernidade líquida e do
direito líquido. Daqui resulta que as noções de legalidade e legitimidade evoluam do
tradicional paradigma weberiano para um campo teórico onde estão presentes as noções
de sociologia das emoções, vulnerabilidade, reconhecimento, medo e ressentimento.
Recupera-se para esse efeito, o contributo de Axel Honneth, Bryan Turner e Martha
Fineman, Zygmunt Bauman, a que se deve aduzir a proposta de Martha Nussbaum a
propósito da relação entre as emoções e o direito.

8.2 A crise financeira de 2008 como problema para as ciências sociais

As crises não são um problema novo para as ciências sociais, quer sejam
perspetivadas na ótica da filiação entre crises da modernidade e transformação das
estruturas do conhecimento sociológico (Wagner, 1994), como a questão hobbesiana da
ordem social enquanto problema de integração dos sistemas sociais, quer como
consequências da recombinação do espaço e do tempo no quadro da globalização
(Giddens, 1992) ou, ainda, como desfiliação e afrouxamento dos vínculos sociais com a
consequente falta de confiança social (Castel, 1995; 1999; 2003; Rosanvallon, 2006; 2008).
Não obstante a constatação feita, muitos autores insistem na necessidade de
estudar a crise financeira de 2008 investigando os novos fenómenos, as respostas
institucionais, as práticas sociais e as formas de conhecimento acerca da realidade social
que estão a ser produzidos, combinando-os com os impactos multidimensionais da
mesma 71 . A este propósito, o diagnóstico de Alexander-Andreas Kyrtsis e Sokratis
Komiordos (2014) observa que as mudanças na realidade social em curso provocadas pela
crise não conduziram a alterações substanciais no desenvolvimento das teorias e da
análise sociológica. Tomando a tese anterior como boa, pode admitir-se que se estará
perante um enviesamento das análises mainstream que ligam a crise aos problemas da
integração social e dos sistemas sociais nos termos em que foram formulados no passado. 106
72 Estar-se-á perante um obstáculo epistemológico provocado pelos pressupostos das
teorias tradicionais que estabelecem o padrão comummente aceite da interpretação das
crises. Assim, a limitação dos quadros teóricos existentes mais vocacionados para pensar o
presente, ou o futuro como projeção da ordem do presente, dificulta a leitura dos
processos de decomposição e declínio do social e das sociedades – o novo fim do social –
e a lógica sociológica e política da exceção e do tempo acelerado como características das
novas coordenadas sociais. 73 Procurar ultrapassar as limitações epistemológicas
assinaladas conduz à formulação de uma questão de fundo: quais são as diferenças e
especificidades da crise de 2008 por relação a outros momentos históricos de rutura
social? 74

71
A crise de 2008 na sua relação com o conhecimento das ciências sociais permanece em aberto. A
análise da literatura disponível revela que esta se tem encaminhado dos primeiros estudos acerca das
causas da crise, enfatizando a falta de regulação dos mercados financeiros e a ganância subjacente ao modo
de acumulação do capital financeiro, para as análises das consequências resultantes da aplicação da fórmula
da austeridade como solução.
72
Existem, como acima se mencionou, semelhanças com Anthony Giddens um dos autores que na
década de 1990 na interpretação sociológica da globalização questionou a filiação Hobbes-Parsons no que
diz respeito à questão da ordem social introduzindo a problematicidade do espaço e do tempo procurando,
assim, ultrapassar as limitações de uma unidade de análise centrada na sociedade nacional e no
estado-nação.
73
É extensa a bibliografia relativa aos temas da crise e da austeridade. A título informativo,
identificam-se alguns dos autores com trabalhos que se afiguram mais interessantes acerca desta temática:
Ulrich Beck (2013); Mark Blyth (2013); David Harvey (2011); OIT (2009); Armin Schäfer e Wolfgang Streeck
(2013); Wolfgang Streeck (2013a); Alain Supiot (2010); Alain Touraine (2010, 2013). Entre nós, destacam-se
Gustavo Cardoso et al. (2011); Boaventura de Sousa Santos (2011); José Reis e João Rodrigues (2011);
António Casimiro Ferreira (2012); e CES (2012), entre outros. De referir ainda o trabalho que tem vindo a ser
desenvolvido por Peter Wagner (2011) na análise da crise na sua relação entre a modernidade económica e
política.
74
As dificuldades mais evidentes relativas ao conhecimento das especificidades e diferenças da
crise de 2008 serão as que se apresentam de seguida. Em primeiro lugar apresenta dificuldades de
investigação sociológica porque: 1) a crise não é sentida de igual modo em todo o lado; 2) ocorrem variações
8.2.1 Crise, revelação e negação

No esquisso de resposta podem assinalar-se, como ponto de partida, duas noções


chave com caráter heurístico: revelação e negação. Como forma de ultrapassar a marca de
uma certa trivialização da noção de crise pode invocar-se a ideia de crisiologia proposta
por Edgar Morin que readquire pertinência face ao atual contexto, nomeadamente, 107
quando o autor considera o valor revelador das crises que emerge da dualidade entre o
latente e o manifesto, o inconsciente e o consciente, o virtual e o real. Com efeito, para
Morin (1998) a noção de revelação decorre da circunstância de considerar que a crise
revela subitamente a presença, a força e a forma do que, geralmente ou, numa situação
normal, permanece invisível. As crises assumem, assim, um caráter revelador quando
consideramos a desordem, o antagonismo, o conflito e até a contradição, não como
acidentes aberrantes na vida social ou individual, mas como traços inerentes a estas
realidades. Para o autor, a crise que não se limita ao setor económico mas que se estende
à cultura, à civilização e à humanidade, perde todos os contornos e faz com que tenhamos
de afirmar que alguma coisa não está bem, embora a informação disponível tenda ao
obscurecimento generalizado da própria noção de crise (Morin, 1998).
Quanto à noção de negação, ela deve ser subdividida em dois momentos: negação
conjugada no passado e a negação do futuro do presente. 75 O primeiro caso encontra
ilustração através de um exemplo dado por David Harvey (2011: 24), o qual refletindo
sobre as crises e as irracionalidades do capitalismo, procura chamar a atenção para as
políticas de negação da crise. O exemplo é o do dia em que a rainha de Inglaterra pergun-

no modo como se combinam as diferentes situações de crise e as respostas que a elas são dadas; 3) e as
novas reconfigurações e reinstitucionalizações políticas, jurídicas, económicas e padrões de sociabilidade
assumem um caráter diverso. Em segundo lugar, acresce ainda que a crise de 2008 do ponto de vista
cognitivo coloca três dificuldades. A primeira reside no facto de não ter ocorrido uma mudança
teórico-metodológica significativa no desenvolvimento do conhecimento das ciências sociais orientado para
a análise da crise e das respostas à mesma. A segunda, que se relaciona com a primeira, coloca um
problema de base: o de saber se podemos estudar a crise e as suas manifestações com as teorias, conceitos
e métodos que se tem utilizado até agora. A terceira coloca a questão de saber se se está a assistir à
emergência de um novo padrão societal ou à regressão do atual.
75
Futuro do presente simples, entenda-se.
tou aos economistas da London School of Economics como é que não tinham previsto a
crise atual (Harvey, 2011: 1). Perante a incapacidade de darem uma resposta imediata,
reuniram-se sobre a égide da Academia Britânica e, passados seis meses de estudo,
meditação e profunda análise com os principais decisores políticos, dirigiram-se numa
carta coletiva a Sua Majestade com a resposta de que, de algum modo, não deram
atenção aos riscos do sistema, e que, como todos, perderam-se em “políticas de
negação”. 108
Mas, afinal de contas, o que estava a ser negado? A crença no mercado sem
atender aos efeitos socialmente perversos da financeirização da economia. E aqui se
encontra a negação do futuro do presente, na medida em que oito anos volvidos desde a
emergência da crise, continua a ser o sistema financeiro a determinar a vida das
sociedades e das pessoas, destruindo o primado da política e do direito sobre o
económico.

8.2.2 A crise como problema político-jurídico

Tendo mencionado o caráter heurístico da revelação e da negação importa


apontar caminhos a partir dos quais se possa construir o pano de fundo para uma leitura
sociológica das diferenças e especificidades da crise de 2008 e das consequências que
continua a ter até aos dias de hoje. O pressuposto geral seguido pelos autores que
analisam a atual realidade social de uma forma mais interessante, passa pelo conjugar de
três noções, as quais se constituem na unidade de análise: crise, austeridade e exceção.
Começo por invocar Wolfgang Streeck (2013a: 262-263), autor que defende a
importância das ciências sociais para o estudo sociológico da crise e da austeridade, no
sentido de se poder estabelecer uma perspetiva histórica e relacional dos eventos que
antecederam a crise, e depois nela desembocaram, explorando a conexão entre os
acontecimentos pela sua sequência e pelas suas causas comuns. O seu argumento é o de
que a política de mediação do capitalismo democrático tem vindo a declinar mais em
alguns países do que noutros mas, sobretudo, por via da emergência do sistema
económico-político global. Em consequência, os riscos são cada vez maiores para a
democracia, dado que os governos têm de levar em consideração as condicionalidades,
obrigações e constrangimentos internacionais – em particular os que se relacionam com
os mercados financeiros –, forçando-os a impor sacrifícios às populações (Streeck, 2013a:
281-282).
Para este autor, o problema está no desequilíbrio fundamental das sociedades
capitalistas avançadas que se encontram divididas entre as exigências do mercado e as da 109
democracia. Tensão permanente que transforma a instabilidade em regra e não em
exceção. Para Streeck, a crise só pode ser compreendida à luz da transformação conflitual
do “capitalismo democrático” insistindo na contraposição entre mercados e democracia.
Em certo sentido, a questão pode ser epigramaticamente nomeada através da expressão
utilizada pelo presidente da Islândia, Ólafur Ragnar Grímsson, quando afirmou “a Islândia
é uma democracia e não um mercado financeiro”.
Alain Touraine, por sua vez, realça o papel das ciências sociais tendo consciência de
que o “sociólogo pensa, também ele, que estamos hoje confrontados com uma coisa
diferente de uma simples crise de conjuntura” (Touraine, 2010: 67). No seu entender, e
perante a interpretação da crise atual é

“preciso abandonar aqui o domínio da economia e entrar no das


ciências sociais para compreender que o futuro depende da
confiança que os membros de uma sociedade têm nela e em si
próprios. Ora essa confiança depende antes de mais dos
comportamentos dos dirigentes e dos governantes que nem
sempre têm consciência de que, quando o bem comum cai nas
mãos de alguns especuladores, o resto da população perde
confiança no futuro da sociedade” (Touraine, 2010:116).

Entendem-se as tensões e contradições estruturais destes processos, realçando as


incoerências da economia e do social no dia a dia das sociedades. A sociologia pode, por
exemplo, evidenciar as continuidades históricas herdadas pela presente crise e identificar
o papel dos Estados democráticos nas transferências de rendimentos da população para
benefício de uma oligarquia global de investidores, comparada ao que C. Wright Mills
designou por “elite de poder” (Mills apud Streeck, 2013a: 284).
Estar-se-á perante um alargamento do conceito de transferência de riqueza, o qual
não está somente associado às transferências globais entre países pobres e países ricos,
ou entre ricos e pobres dentro de uma mesma sociedade, efetuando-se agora entre os
indivíduos e famílias e os “atores não sociais”, como os mercados financeiros. O conteúdo
do poder deixa de estar associado ao político, sendo marcado pela apropriação extrema 110
do poder económico-financeiro tornado poder político, um poder incomensurável para os
detentores do capital, ao mesmo tempo que os cidadãos veem esmagados os seus direitos
democráticos e a sua capacidade de influenciar os interesses políticos e económicos. A
lógica sociológica da austeridade permite interpretar o impacto do poder
económico-financeiro e dos seus interesses na organização das sociedades,
nomeadamente, a sua interpenetração nas dinâmicas sociais, políticas e jurídicas.
A importância dos fatores ligados à crise económica e aos mercados financeiros,
associados por vários autores a mais uma crise cíclica do capitalismo (Schäfer e Streeck,
2013), constituem um elemento crucial, alguns dirão estrutural, na interpretação do atual
momento. Ao apelar a um nível de análise onde se confere prioridade analítica às
dinâmicas sociopolíticas da austeridade, não se desconsideram as dimensões económicas
e financeiras da crise, pretendendo-se aferir o seu impacto e interação nas esferas social,
política e jurídica. Esta é a nova realidade da crise e da resposta da austeridade, que
autoriza uma observação crítica das linhas de descontinuidade no pensamento
político-social e nas dinâmicas sociopolíticas.
A crise obriga, ainda, a retomar a tradição do conhecimento crítico e do
envolvimento cívico dos cientistas sociais com os grandes problemas do seu tempo. É este
sentido de urgência que ressalta do manifesto para as ciências sociais redigido por Craig
Calhoun e Michel Wiewiorka (2013) quando receiam que, perante a crise, as ciências
sociais se arrisquem a ser desqualificadas e a surgir como inúteis ou desorientadas por
relação às dificuldades experimentadas. Propõem, por isso, que as ciências sociais se
envolvam em tempo real com os problemas emergentes e se tornem capazes de fornecer
aos cidadãos e responsáveis políticos os elementos que permitam uma melhor
compreensão do que está em causa. O contraexemplo que enunciam foi o que sucedeu
em 1929 quando, face à Grande Depressão, as ciências sociais estiveram ausentes, não
tendo dado o seu contributo, situação que não pode acontecer na atualidade. Apelando às
ciências sociais para que transformem a crise em debates e conflitos institucionalizáveis
de onde possam sair respostas e alternativas para as nossas sociedades, os autores
recuperam os entendimentos da “sociologia crítica” e da “sociologia pública” como forma 111
de afirmação democrática do projeto de conhecimento das ciências sociais.
De entre as várias expressões deste entendimento das ciências sociais com os
desafios colocados pela crise, pode mencionar-se, entre outros, o livro organizado por
Martine Aubry (2011) que conta com a participação de cinquenta investigadores e
intelectuais com o objetivo comum de se inscreverem numa missão urgente e
indispensável, de tornar visível o mundo que está por vir, dando um curso à ação política.
Não se trata de recuperar a intervenção dos “intelectuais orgânicos”, dos conselheiros do
príncipe, e da expertise e comitologia que tornam o conhecimento enquanto ideologia
legitimante do tempo presente. Pelo contrário, trata-se de defender a afirmação da
possibilidade de envolvimento das ciências sociais e dos seus membros como
participantes na vida pública.
Mais especificamente no domínio da sociologia do direito, a crise iniciada nos
anos 1970, a globalização dos anos 1990 e o projeto europeu estimularam o surgimento
de conceitos político-jurídicos mais flexíveis e ágeis, como é o caso da reflexividade,
empowerment, capacitação, soft law, método de governação aberta, governação,
“reexperimentação”, recalibragem e, particularmente, a vulgata assente na ideia das
crises como oportunidades. Este instrumental de caráter conceptual introduziu fortes
desafios ao pensamento político e jurídico por dificultar o reconhecimento dos princípios
normativos associados à segurança jurídica, confiança, justiça social, etc.. Porém, o pano
de fundo destas alterações é mais amplo, e constitui o lastro de tendências de
transformação nas formas de produção, aplicação e funções do direito que nos chega aos
dias de hoje. José Eduardo Faria (2008; 2011) procedeu ao levantamento destas
tendências, as quais se passam a identificar por deverem estar presentes nos atuais
debates acerca do lugar do direito.
De uma forma sinótica, e sintetizando a argumentação do autor, identifica-se um
conjunto de tendências de transformação do poder, do Estado e do direito: surgimento de
“redes de legalidade justapostas ou paralelas, resultantes não apenas de decisões
emanadas de instituições governamentais, como o legislativo e o executivo, mas,
igualmente, de negociações e deliberações nos diferentes sistemas e subsistemas que 112
compõem a economia e a sociedade”; emergência de um direito que tende a
fundamentar-se numa legitimidade procedimental e vinculada, ao seu modo de produção
normativa, que ocorre “cada vez mais” em instâncias não legislativas; crescente
importância assumida por diferentes atores não estatais, como empresas, fundações,
associações comunitárias, entidades de classe, órgãos de representação corporativa e
organizações não-governamentais que induzem a produção de um direito negociado e
pactuado; afirmação do poder dos não eleitos, os quais conduzem à produção de um
direito não democrático; modelo “heterárquico” e policêntrico de sociedade e de direito;
perda de importância do estado-nação e correspondente afirmação das noções de estado
mundial e direito global, governança mundial e direito sem estado, globalização
económica e pluralismo jurídico; “publicização do direito privado”; “administrativização
do direito público”; processo de desjuridificação que ocorre através dos processos de
deslegalização, desconstitucionalização de direitos e criação de mecanismos alternativos
de resolução de conflitos; judicialização da questão social e retrocesso da política
democrática; e procedimentalização do direito, entendida como uma técnica através da
qual se substituem as decisões unilaterais do Estado e do direito estatal, por formas de
direito negociado, envolvendo grupos de interesses, lobbys, associações comunitárias,
movimentos sociais (Faria, 2008: 7; Faria, 2011: 34).
Para uma abordagem sociojurídica, a trivialização e naturalização da expressão
crise está associada à despolitização dos debates e à admissão da técnica como elementos
cruciais para a intervenção na realidade social. Com efeito, pode afirmar-se que desde a
década de 1970 se vive um permanente estado de crise acompanhado de um permanente
processo reformador. Daqui resulta uma “legitimação pela performatividade”
correspondendo esta a uma intervenção estratégica dos poderes dominantes, os quais
deduzem desta lógica performativa a reprodução do status quo, favorável aos interesses
económicos e, muito particularmente, financeiros. A invocação da crise torna-se, por isso,
indissociável de uma utilização política estratégica, em regra acompanhada pelo discurso
da exceção e da necessidade. Contudo, como lembra Boaventura de Sousa Santos (2011:
11), a definição da crise é um “ato eminentemente político”. Nesse ato conflituam a 113
identificação dos fatores que a provocam, bem como a escolha de medidas que a superem
na distribuição dos custos sociais que estas possam causar (idem). 76 Assim sendo, a
repolitização dos debates em torno das crises e das reformas é imprescindível para uma
orientação de reforma política democrática, a qual não pode ser confundida com a
retórica e permanente invocação das reformas estruturais (Supiot, 2016).
Em síntese: a abordagem sociológica da crise de 2008 e das consequências que
dela emergiram, e cujo impacto se faz sentir nos dias de hoje, constituem-se num desafio
para as ciências sociais. A esse propósito, mencionaram-se algumas propostas
estimulantes a partir das, e com as quais, se pode avançar numa análise sociológica deste
tempo de turbulência. Naturalmente, também para a sociologia do direito, o processo em
curso se constitui num desafio. Atendendo ao olhar sociojurídico sob a realidade, os
problemas colocam-se quando se pondera o lugar ocupado pela política, pelo direito e
pela justiça. Nestes termos, a formulação do problema sociojurídico relacionado com a
crise de 2008 e seus desenvolvimentos pode ser formulado a partir de categorias chave
que anuncio de seguida, preparando o chão teórico, analítico e pedagógico para o
aprofundamento da articulação entre sociedade de austeridade e políticas e direito de
exceção.

76
Nesta medida, Boaventura de Sousa Santos (2011) refere que a primeira condição para a
afirmação das ciências sociais passa por assumir com clareza o modo como se define uma crise e se
identificam os fatores que a causam. A questão está em que os procedimentos de definição e de
identificação da crise determinam as medidas de reforma, as quais, inevitavelmente, são portadoras de
opções quanto à distribuição dos custos sociais que estas causam ou podem causar.
8.2.3 Relação entre direito-sociedade: padrões de sociabilidade da austeridade e
formas de normatividade da exceção

A rutura introduzida pela crise entre sistemas e atores sociais corresponde a uma
mutação desestruturadora do social, introduzida pela austeridade, que conduz à
decomposição dos quadros sociais e vínculos de proximidade entre os indivíduos, e entre
os indivíduos e as instituições, colocando um sério problema à questão da ordem social,
114
pelo menos, em três pilares sociojurídicos. O primeiro, o da perda de confiança nas
instituições públicas e privadas protetoras do risco social, adicionada à perda de confiança
nas formas de conhecimento pericial, introduzida pela indeterminação generalizada
provocada pelo contexto de crise. As expectativas positivas quanto ao futuro são
irremediavelmente substituídas pelas manifestações de insegurança ontológica, jurídica e
política. O segundo, o da incapacidade dos sistemas de resolução dos conflitos nas
sociedades democráticas para darem resposta aos conflitos emergentes das dinâmicas da
austeridade. As instituições políticas, como o governo, o parlamento, os tribunais, os
espaços de diálogo e concertação social, bem como os diferentes canais de acesso aos
bens públicos providos pelo Estado, são condicionados por uma racionalidade económica
desligada da sociedade real, pondo em causa os processos de integração social e
institucionalização dos conflitos. O terceiro, o da afetação dos processos de socialização,
dos padrões de cultura e dos mecanismos de reprodução social face à transição para uma
lógica societal onde a normalização da exceção torna permanente o provisório. Este “novo
normal” fixa padrões de interação social, representações sociais e mecanismos de
controlo social, a uma lógica de austeridade marcada pelo conformismo face às privações
relativas a bens materiais e simbólicos.
A austeridade enquanto modelo reformador de resposta à crise, tem conflituado
com a esfera dos direitos fundamentais e com os princípios do direito democrático. Assim,
importa identificar os impactos resultantes da aplicação das medidas de austeridade nos
direitos fundamentais e das consequências que daí resultam para as relações e práticas
sociais que se lhes encontram associadas. Neste caso, deve partir-se do pressuposto de
que existe uma conflitualidade de base entre o modelo da austeridade e os direitos
fundamentais, assente na dupla tensão onde se contrapõem os princípios da legitimidade
democrática, da política e dos direitos, aos princípios do excecionalismo, e os direitos
fundamentais aos interesses especulativos dos mercados financeiros.
Sem surpresa, a relação entre direito e austeridade constitui um tópico de análise
recente. Se por um lado existe uma substancial linha de investigação a respeito das
medidas de exceção introduzidas pelo 11 de setembro de 2001 na esfera dos direitos
fundamentais de caráter civil e político de que resultou a afetação do entendimento 115
político da liberdade, ressente-se a falta de uma análise do impacto das medidas
legislativas de exceção constitutivas do modelo da austeridade na esfera dos direitos
fundamentais económicos e sociais, com os consequentes efeitos sobre o entendimento
político da igualdade. O argumento central é o de que estamos perante um segundo
momento de exceção de caráter selectivo, tendo por base a narrativa de que a limitação e
emagrecimento dos direitos fundamentais económicos e sociais se torna essencial para o
restabelecimento do equilíbrio económico e financeiro dos países em crise. Sustenta-se
que o padrão dos direitos económicos e sociais fundamentais europeus enformados pelo
referencial da justiça social, tendo como fontes a Carta Social Europeia, a Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia e os Tratados, é posto em causa pela defesa de
uma normatividade austeritária de exceção.
Insisto neste ponto. Dois momentos significativos estão na origem desta
“efervescência social” do excecionalismo que contribuem para a noção de crise política,
jurídica e constitucional: a crise securitária ligada ao terrorismo do 11 setembro de 2001 e
a crise económica ligada à financeirização de 2008. O securitarismo legou-nos um cenário
marcado pela afirmação do direito penal do inimigo, pelo enfraquecimento dos direitos
fundamentais civis e políticos, e pela consequente contração dos direitos liberdades e da
liberdade política, sob a forma do trade-off entre liberdade/segurança. Quanto à crise
financeira, ela estimulou um modelo de “governação neoliberal”, marcado pela afirmação
do direito da austeridade, pelo enfraquecimento dos direitos fundamentais económicos e
sociais, e pela consequente retração dos direitos da reivindicação e da igualdade política
sob a forma do trade-off entre igualdade/injustiça social. O excecionalismo assume uma
forma paradoxal de juridificação, positivização e mobilização do direito e da política que
força os limites do nosso mundo institucional e normativo, questionando o sentido e as
funções do direito, a sua indissociabilidade das expetativas e práticas sociais, e dos bens e
valores de justiça que protege. A categoria da exceção, enquanto fonte normativa,
provoca uma desestabilização do direito democrático assente na soberania estatal,
enfraquecendo os princípios dos direitos fundamentais.
Em síntese: o cânone da austeridade e “o retorno ao direito” de exceção estão na 116
origem de uma configuração sociojurídica nos planos internacional, europeu e nacional
através da qual se alteram o sentido e as funções do direito, o que se repercute nas suas
formas de mobilização, enquadramentos institucionais, e práticas e relações sociais.
Identificam-se dois planos analíticos. No primeiro sublinha-se a importância das tensões e
contradições patentes nas narrativas que fixaram a austeridade como um modelo credível
e imprescindível para a orientação de reformas, em disputa com o acquis europeu em
matéria de direitos sociais e laborais e o Modelo Social Europeu. No segundo, afere-se das
consequências da aplicação do modelo da austeridade para o âmbito nacional, através das
medidas preconizadas nos Memorandos das Troikas.

8.2.4 O excecionalismo da austeridade: complexidade versus justiça social

O excecionalismo da austeridade é um modelo que assenta no princípio geral do


esquecimento dos direitos fundamentais. Nele, o direito contribui para a efetivação da
austeridade e esta para a definição das políticas, no quadro do que se designa por
triângulo do excecionalismo. Tal ocorre: a) quando a austeridade utiliza processualmente
a noção de exceção como metodologia de decisão e implementação das reformas; b)
quando o direito, através do processo de positivização, consigna novos conteúdos
flexibilizantes ao direito substantivo, nomeadamente em matéria social e laboral; e c)
quando se subverte o conceito de ordem político-jurídica assente nos pressupostos do
estado social. Assim, a austeridade, ao destabilizar o direito existente e ao apresentar uma
nova face do direito – o de exceção -, expressa as duas faces de Janus da regulação
político-jurídica. A austeridade é, indubitavelmente, um momento de confronto e desafio
dos limites do mundo normativo existente.
Do que anteriormente fica dito emerge a antinomia entre os problemas
decorrentes da complexidade social, e os problemas oriundos da busca por uma
sociedade mais justa. A ideia em causa é a de que as sociedades se têm tornado, em
diversos sentidos, mais complexas, sendo essa complexidade prioritária face aos temas da
justiça social na medida em que importa preservar o equilíbrio e a ordem da realidade 117
social complexa. Dito de outro modo, está-se perante uma tensão ontológica que opõe os
defensores da complexidade dos mercados financeiros e da financeirização da sociedade,
aos defensores das dimensões normativas, as quais podem orientar as mudanças, nas
instituições promovendo a igualdade e liberdade constitucionais enquanto fonte de
reformas sociais. Os primeiros afirmam o primado explicativo da força dos mercados
financeiros, relegando os valores e ideais político-jurídicos para um papel secundário. Os
segundos, por contraposição, enfatizam a força determinante da consciência social,
concretizada em normas, instituições e representações intersubjetivamente partilhadas
tendo por referência um quadro de valores humanistas, orientados para a dignidade, a
liberdade, a igualdade, a autorrealização, o respeito e a solidariedade.
Três questões se colocam a este respeito. A primeira é a de saber se o projeto
político da modernidade (Habermas, 2010), tendo por núcleo central o iluminismo e os
princípios da liberdade, da igualdade e da justiça está, ou não, esgotado, sendo
substituído por uma sociedade técnica composta por sistemas e mecanismos de
calibragem e de redução da complexidade social. Os defensores da austeridade
concordam com esta última perspetiva. A segunda questão é a de saber se os processos
de diferenciação funcional, os quais significam que a sociedade se divide em subsistemas
que assumem uma função específica na reprodução da sociedade e do seu meio, são
centrais para a criação da ordem na sociedade, pondo em causa a importância dos
padrões de valores culturais e normas comuns para a coesão, integração e solidariedade
sociais. Os defensores da austeridade e da exceção afirmam que sim, isto é, que o mundo
dos sistemas e da comunicação é mais importante do que o “mundo da vida”,
defendendo, assim, que os processos de especialização das instituições e organizações se
combinam com a despersonalização e a impessoalidade das relações sociais. A terceira
questão é a de saber se perante a crise se deve manter, no “horizonte dos possíveis”, a
defesa da dignidade do ser humano e daquilo que se considere ser uma vida que está à
altura dessa mesma dignidade (cf. Nussbaum, 2014) Os defensores da austeridade dirão
que não. Na perspetiva destes últimos, o acréscimo das desigualdades e da exclusão social
correspondem a “danos colaterais” (Bauman, 2011). A gestão de riscos requer peritos, 118
técnicos, expertise e não debate político, intervenção pública e contestação social.

8.2.5 A teoria democrática reavaliada: vulnerabilidade e questionamento da


teoria da separação de poderes

A interação da austeridade, enquanto modelo de resposta à crise, e da exceção,


enquanto a sua fórmula político-normativa, está na base de um padrão sociopolítico que
conduz à reponderação de três fatores estruturantes da teoria democrática: a
reorganização das formas de poder e autoridade; as fontes de legitimação; e os
mecanismos de redistribuição. Quanto ao primeiro, está em causa a teoria da separação
de poderes e a avocação por parte da estrutura tecnocrática do poder dos não eleitos
consubstanciada nas troikas e dos mercados financeiros face ao poder democrático dos
eleitos. O segundo convoca a incorporação nas fontes de legitimação, das categorias do
sacrifício, do ressentimento e do medo. No que diz respeito aos mecanismos de
redistribuição, estes têm estado tradicionalmente assentes nos impostos progressivos, na
proteção social e no direito do trabalho. Contudo, o modelo redistributivo da austeridade
pressupõe que o justo e o injusto percam a sua centralidade enquanto dicotomia
estruturante do pensamento político democrático, e que no caso concreto dos direitos
sociais e do direito do trabalho, estes passem a ser utilizados como mecanismos de
transferência de rendimentos do trabalho para o capital e para o Estado. Esta orientação é
particularmente ajustada para a análise dos países intervencionados pela troika, por se
revelar mais adequada na captação dos efeitos de combinação entre os processos de
produção e implementação das políticas de austeridade, a aceitação e conformação por
parte da sociedade e a transferência de rendimentos. Nessa medida, as sociedades de
austeridade correspondem a uma reorganização das formas de poder, legitimidade e
padrão redistributivo, evidenciada pelo aumento das assimetrias entre os que decidem e
os que são afetados por essas decisões, e os que beneficiam e os que perdem com as
transferências de rendimento tendo por origem o trabalho. O modelo da austeridade 119
enfraquece os pressupostos da teoria e da prática democráticas ao introduzir fatores não
democráticos na organização da sociedade.
Neste sentido, a vulnerabilidade é entendida como a característica de um habitus
austeritário decorrente de uma cultura sociopolítica de excecionalismo que se apresenta
com um caráter geral enquanto “valores, normas e símbolos expressivos partilhados” que
influenciam as expectativas e práticas sociais dos indivíduos e grupos. A conexão entre
austeridade e vulnerabilidade de indivíduos e grupos não é somente uma questão de
desigualdades sociais, exclusão e empobrecimento, mas também expressão de um
modelo político-jurídico de desgaste dos direitos fundamentais e das expectativas sociais
e normativas que lhes estão subjacentes. As novas institucionalidades e normatividades
da austeridade na medida em que questionam a organização de um sistema de proteção e
reparação caracterizado pela socialização dos riscos de existência promovem fatores de
insegurança ontológica, política e jurídica, de falta de confiança social.

O modelo da austeridade está na base de um novo contrato social (Ferreira, 2014)


marcado pela interiorização e aceitação da vulnerabilidade individual e social como
dimensões normais da vida em sociedade que convoca uma reavaliação da teoria da
separação de poderes. Tendo por base a noção de que os três poderes que formam o
Estado - legislativo, executivo e judiciário - devem atuar de forma separada, independente
e equilibrada, a ideia da separação de poderes está no cerne das teorias constitucionais e
dos modernos sistemas políticos ocidentais. Como se sabe, as definições conhecidas da
teoria da separação de poderes têm um lastro teórico e histórico, onde se devem
mencionar os nomes de Locke e Montesquieu, entre outros clássicos. Constitucionalistas,
cientistas políticos, sociólogos da política, desenvolveram um corpus de reflexão que se
prolonga até aos dias de hoje. Com relevância sociojurídica podem dar-se os exemplos de
Niklas Luhmann e de Jürgen Habermas, os quais procuram combinar a organização do
poder político tendo por base a teoria da separação de poderes e o seu impacto na
sociedade, associando-a o primeiro à teoria da diferenciação dos sistemas sociais, e o
segundo à teoria da ação comunicativa.
A diversidade de soluções político-jurídicas e a impossibilidade de explicar de uma 120
forma sociologicamente sustentável a dinâmica dos poderes nos sistemas democráticos,
conduziu a uma interpretação não dogmática da relação entre o princípio da separação de
poderes e os contextos concretos da sua aplicação. A sociologia política e a sociologia do
direito captaram esta dinâmica atendendo a diferentes formas de combinação entre
poderes políticos e poderes sociais, envolvendo partidos políticos, manifestações de
pluralismo político (através de grupos de pressão ou de interesses), manifestações de
neocorporativismo, governação neoliberal e autorregulação, a que acrescem ainda os
fenómenos da judicialização da política, politização da justiça, uso alternativo do direito,
ativismo judicial e direito dos juízes. Ralf Dahrendorf (1993: 39), a este propósito,
distingue entre política constitucional a qual diz respeito ao contexto da ordem social, ao
contrato social e às suas formas institucionais, e a política normal onde se estabelecem as
direções determinadas por interesses e outras preferências por relação a esse contexto. O
momento atual é instigante no que diz respeito a uma reavaliação ou mesmo à
reconfiguração da teoria da separação de poderes. Mantenho como válida esta hipótese
(Ferreir, 2014), tendo presente o referido argumento de Dahrendorf que a crise introduz
uma subversão na relação entre política constitucional e política normal, na medida em
que afirma o poder excecional dos atores e organizações sociais nacionais e globais.
No quadro desta reavaliação adquirem prioridade as noções de poder dos não
eleitos, “poderes selvagens do mercado” e poderes privados. Quanto à noção de poder
dos não eleitos, deve ser destacada a obra de Frank Vibert The rise of the unelected:
Democracy and the new separations of power (2007). Para o autor, o poder dos não
eleitos revela a enorme importância dos atores económico-financeiros no contexto de
crise. Trata-se de um mundo constituído por mercados, organizações financeiras
internacionais, bancos centrais, agências de regulação, agências de rating, etc. (Vibert,
2007: 1), portadores de poderes não democráticos. Confira-se o exercício do poder que
conduziu ao trade-off entre a legitimidade democrática e a legitimidade tecnocrática
(Hespanha, 2013: 48), significativamente ilustrado pelos casos da Grécia e da Itália, onde
governos eleitos democraticamente foram forçados a demitir-se para dar lugar a novos
governos de caráter tecnocrático à margem de qualquer processo eleitoral. 121
Atente-se, igualmente, no atual papel dos bancos centrais que tomam decisões
políticas de grande impacto sem, contudo, se tornarem parte do sistema político. Embora
não participando diretamente na produção do poder e dos consensos nas decisões
coletivas, nem integrando o poder político, eles podem ser comparados, segundo Gunther
Teubner (2011: 40-41), com os tribunais constitucionais que se encontram no topo da
hierarquia do sistema jurídico, sendo responsáveis por decisões fortemente políticas sem
pertencerem ao sistema político. Teubner (2011) vai mesmo mais longe ao incluí-los na
metáfora de “guardiões da Constituição” juntamente com os tribunais constitucionais.
Esta tensão entre a dimensão normativa de uma teoria pura da separação de poderes e a
dimensão fáctica das dinâmicas sociopolíticas concretas revela que o que há de inédito
nestas análises é que elas já não se satisfazem em captar as manifestações de “influência
política e económica” (Dahl, 1981: 23-46), ou de capacidade de regulação de setores e
áreas económicas e sociais diversas, antes passaram a encarar esses atores como
elementos constitutivos da autoridade política, do poder político, dos processos de
legitimação e de legalidade.
Também Luigi Ferrajoli (2011, 2014) tem vindo a desenvolver no quadro da sua
teoria do garantismo, enquanto modelo de direito, uma análise da teoria da separação de
poderes relevante para esta discussão. De acordo com o autor, garantismo é antes de
tudo um modelo de direito. Tal significa submissão à lei a que todos deverão ser sujeitos.
77 Partindo desta ideia básica, a sua análise do direito e do Estado chama a atenção para o
modo como “os poderes selvagens do mercado” e dos poderes privados terem de ser

77
Para uma síntese do pensamento do autor pode consultar-se Ferrajoli (2008).
controlados constitucionalmente. Ultrapassando um entendimento de garantismo tendo
por objeto a limitação do poder soberano estatal, o autor insiste na ideia de que o
garantismo deve estender-se aos poderes privados e à ideia de um mercado omnipotente.
Como refere o autor

“...se hablará de garantismo para designar el conjunto de límites y


vínculos impuestos a todos los poderes -públicos y privados,
políticos (o de mayoría) y económicos (o de mercado), en el plano
122
estatal y en el internacional- mediante los que se tutelan, a través
de su sometimiento a la ley y, en concreto, a los derechos
fundamentales en ella establecidos, tanto las esferas privadas
frente a los poderes públicos, como las esferas públicas frente a los
poderes privados.”
(https://procesalpenal.wordpress.com/2007/11/18/garantias-artic
ulo-de-luigi-ferrajoli/)

Deste modo, o paradigma garantista da democracia constitucional deve


prolongar-se numa tripla direção. Em primeiro lugar, para garantir todos os direitos, não
apenas os direitos liberdade, mas também os direitos sociais. Em segundo lugar, deve
colocar-se frente a todos os poderes, quer sejam público ou privados. E em terceiro lugar,
deve desenvolver-se tanto no plano do direito estatal como internacional. Deve
acentuar-se, que, para Ferrajoli (2011, 2014) é mais importante a defesa de um
garantismo social do que um clássico garantismo liberal de restrição aos poderes estatais
dado que só assim o garantismo pode enfrentar os poderes económicos privados.
Tendo presentes os contributos de Vibert (2007), com a noção de poder dos não
eleitos, e de Ferrajoli (2011, 2014), com a noção de garantismo enquanto modelo de
direito, está-se em condições de perspetivar a situação da separação de poderes nas
sociedades democráticas quando confrontadas com as organizações e atores não
democráticos. Deverá apenas acrescentar-se um terceiro elemento analítico que está
associado às combinações entre a concessão de financiamentos em troca de reformas
políticas e à convergência de interesses entre o poder dos não eleitos e o poder dos
eleitos, quando estes são parlamentarmente maioritários e defensores de uma agenda
neoliberal. Coloca-se em evidência a interpelação feita por estas entidades à constituição
e às funções e competências do sistema político e parlamentar, através da naturalização
do poder dos não eleitos.

8.3 O Estado na exceção e na austeridade


123
8.3.1 A crise da regulação política e jurídica atual

O Estado, por formular, produzir e aplicar o direito através dos seus órgãos
(parlamento, tribunais, administração, etc), e o direito pela maneira como organiza a
expressão da vontade coletiva e define delimitando a atuação do Estado ou como este
estabelece as suas funções políticas e sociais, está no centro das transformações induzidas
pela crise e pelas respostas dadas à mesma. No entanto, as modalidades de congruência
entre direito e Estado têm já vindo a ser postas em causa desde a designada crise do
Estado Providência num processo que chega até aos dias de hoje sob a forma de crise da
regulação político-jurídica, decorrente do modelo da austeridade e das dinâmicas da
exceção colocadas em ação desde 2008. Argumenta-se que a relação entre o Estado e o
Direito conheceu, não obstante as suas variações até à data referida, um padrão de
relacionamento onde os pressupostos da democracia liberal e das formas de “Estado
normal” não foram postas em causa, apesar de sofrerem alterações profundas nas suas
modalidades de combinação. Questão bem diferente, como se advoga, é a que hoje se
experiencia quando o padrão de atuação estatal orientado para a produção e aplicação de
políticas de austeridade tende a precarizar os pressupostos da democracia liberal. Autores
como Wolfgang Streeck, Armin Schafer, Claus Offe, Colin Crouch e Bob Jessop, ajudam-nos
à formulação desta problemática quer ao nível macro do questionamento do capitalismo
democrático, quer aos níveis meso e micro da institucionalização de estados de exceção
constrangedores dos princípios democráticos e legitimados pela crise política e financeira.
Como é sabido, a ideia de Estado de exceção é abundantemente estudada pela
sociologia política, ciência política e sociologia do direito, remetendo, em regra, para o
trabalho de Carl Schmitt e para as diferentes modalidades através das quais a
flexibilização das normas democráticas e dos princípios do Estado de direito se afirmam
como um novo normal em momentos de necessidade. Bastará, aqui, sublinhar a ideia, de
que os regimes de exceção com o seu aparato ideológico assente na realidade da
necessidade e com os seus procedimentos, que põem em causa a separação de poderes e
o princípio da produção democrática do direito, se vão afirmando como o novo normal.
Procurando fixar a noção de Estado e regime de exceção aplicável ao atual 124
momento, utilizam-se três vetores. O primeiro recorre ao clássico trabalho de Patrick
Dunleavy e Brendan O’Leary, Theories of the State (1987), onde os autores utilizam o
critério da intervenção política qualificando-a entre uma intervenção orientada para o
estabelecimento de um quadro legal geral para a sociedade, assegurando que a lei e a
ordem prevalecem, e outra dirigida à regulação da atividade económica, da produção e da
redistribuição da riqueza, nos termos colocados pela questão social. Daqui formula-se
aquela que tem sido uma estratégia, seguida pelos defensores do atual Estado de
exceção, que assenta na separação artificial entre Estado de direito e Estado social. A
seletividade das reformas políticas levadas a cabo orientam-se para a formulação do
problema da reforma do Estado, confundindo esta com o problema da sustentabilidade
do Estado social. O Estado social torna-se o problema. Com esta ocultação do princípio
unitário do Estado social de direito, põe-se fim a um paradigma redistributivo assente no
imposto progressivo sobre os rendimentos, nas políticas sociais que protegem os
indivíduos contra os riscos de existência e na identidade político-jurídica do direito do
trabalho, enquanto direito protetor da parte mais débil. Em seu lugar, o Estado afirma-se
agora pelo modo como facilita a transferência de rendimentos e bens das famílias e dos
indivíduos para o pagamento da dúvida pública e para os mercados financeiros.
O segundo vetor assenta na ideia de um trade-off na intervenção estatal, nos
termos do qual as funções do Estado social são substituídas pelas do Estado penal. Estas
perspetivas teóricas assentam na passagem de um modelo de Estado social de
comunidade inclusiva para o modelo de justiça criminal do Estado excludente. De acordo
com a análise proposta por Loic Wacquant (2000) e Zygmunt Bauman (2007), não
podendo o Estado manter os padrões de proteção e segurança social, a crise de
legitimidade do Estado que daí resulta alimenta uma retórica assente na redução das
expectativas em matéria social, oferecendo alternativamente um modelo de segurança de
law and order através do qual adquire uma nova legitimidade. Esta troca no tipo de
intervenção estatal entre as intervenções de caráter social e as intervenções de controlo
sobre a sociedade tem efeitos na esfera dos direitos sociais e laborais.
Finalmente, o terceiro vetor é o que identifica quatro tipos de Estado e respetivas 125
lógicas de atuação como constitutivos do modelo operacional do Estado de exceção.
Nesta lógica de atuação procedimental da exceção, cada um dos tipos de Estado
protagoniza formas de intervenção na sociedade cujo resultado é o da decomposição, ou
neutralização, dos objetivos do Estado social. É o que sucede com a seletividade na
produção e aplicação dos direitos sociais (Estado paralelo);78 com o recurso a formas
diversificadas de contratualização da cidadania social (Estado contratualizador);79 com a
fragmentação do poder do Estado sob a forma de governação (Estado-governação); e a
emergência de novas formas de autoridade e legitimidade associadas ao Estado de
necessidade ou de exceção (Estado de exceção). Em conjunto, compõem um regime de
exceção assente na combinação em graus e modalidades diversas, dos diferentes tipos de
intervenção sob a forma de produção e aplicação de políticas e de direitos. O quadro
analítico proposto permite utilizar três níveis de análise quanto aos modos de intervenção
do Estado. O primeiro desses níveis – o intranível – privilegia a identificação das lógicas
internas de cada tipo de intervenção estatal. O segundo – o internível – atende às
combinações possíveis entre os diferentes tipos de intervenção estatal. Finalmente, o

78
A noção de Estado paralelo é formulada por Boaventura de Sousa Santos em vários momentos da sua
obra. Com ela, pretende significar a discrepância existente entre os quadros político-normativos formais e as
práticas estatais que se lhe encontram associadas. Do autor pode consultar-se, Santos (1993: 28 e ss.).
79
A ideia subjacente à noção de Estado contratualizador é a da normalização contratual nos termos em que
esta foi identificada por Boaventura de Sousa Santos sob a designação de Estado heterogéneo (1993: 33). Na
exploração teórica da ideia de Estado contratualizador, levo ainda em consideração a análise de Alain Supiot
(2006) quando este contrapõe o “primado da lei” à força dos contratos, e a proposta de Margaret Somers
(2008) em torno das noções de contratualização da cidadania e de desestatização. Levo também em
consideração os debates em torno da teoria neocorporativa e os seus desenvolvimentos mais recentes sob a
forma de diálogo social e de governação reflexiva.
terceiro – o supranível – debruça-se sobre a lógica predominante num dado período
temporal ou área de intervenção.

8.3.2. Estado de direito e Estado de não direito

Assinalo, de seguida, duas questões colocadas simultaneamente à teoria


democrática e à teoria do direito, tendo presente a noção de Estado e de regimes de 126
exceção. Em primeiro lugar, a interpelação ao Estado de direito na sua função de controlo
da legitimidade e da legalidade. É esse o sentido do conceito Estado de direito, “um
Estado ou uma forma de organização político-estadual cuja atividade é determinada e
limitada pelo direito” (Canotilho, 1999: 4), baseando-se as medidas tomadas na lei, isto é,
em diploma aprovado pela própria Nação através dos seus representantes (cf. Guibentif,
2008: 83). A raiz nacional do Estado de direito é um elemento integrante da modernidade
constitucional, na medida em que “o Estado atua sobre os cidadãos segundo as regras
definidas pelos mesmos cidadãos; ou seja, através do Estado de direito, a cidadania age
sobre si própria” (Guibentif, 2008: 84). É certo que as evoluções recentes do Estado de
direito têm vindo a caminhar no sentido de alterar a sua posição na geografia dos
poderes, pondo em causa o modo de regulação política tradicional (Arnaud, 2003; Santos,
2006, 2009), por via da crescente influência das entidades supranacionais e do paradigma
da governação neoliberal. Por essa razão, importa identificar o que se pode designar por
duplo “paradoxo da soberania”, provocado pela nova configuração de poderes: (1) o facto
de a soberania se encontrar ao mesmo tempo dentro e fora da ordem política nacional;
(2) o facto de a soberania se encontrar ao mesmo tempo dentro e fora da ordem jurídica
(cf. Agamben, 1998: 15). Especulando a este respeito, e aplicando o raciocínio à nova
configuração de poderes, pode afirmar-se que o questionamento do Estado de direito é o
que resulta de uma autossuspensão da soberania pela soberania, e de um direito que se
coloca fora da lei através dele próprio. É com base nestas duas premissas político-jurídicas
que se constitui o mecanismo que permite a articulação entre o poder dos eleitos e o
poder dos não eleitos. As lógicas combinatórias entre ambos resultam em reformas
orientadas pelo princípio da incerteza e pela indeterminação. Estando próximos das
origens da incerteza, e sendo a sua própria conduta fonte de incerteza para a situação de
outros, o exercício do poder governativo encontra-se, deste modo, livre para fixar o
regime de exceção da soberania e do direito.
Em segundo lugar, quero realçar a articulação existente entre a aplicação de
medidas de exceção com a seletividade das orientações estatais face às posições
garantidas pelo Estado, na vigência do modelo de Estado social. No atual momento, tal 127
exercício é pertinente por desvelar a heurística das relações contraditórias que mantém
com os diferentes grupos e interesses sociais. É que, para além das aparências visíveis das
estruturas legais, dos processos de tomada de decisão política e do comportamento
político, outras existem que tornam o Estado intérprete de racionalidades reveladoras de
processos de seletividade na sua atuação.
A meu ver, são de dois tipos os processos de seletividade em curso. O primeiro
coloca-se na ótica da aplicação dos direitos. Este tema foi analisado criteriosamente por
António Hespanha (2012) quando identificou a existência de dois tipos de intervenção do
Estado em relação às situações e direitos adquiridos e por ele garantidos: o primeiro
correspondendo à manutenção da garantia de certos direitos; e o segundo na
precarização geral de outros. No quadro do seu argumento, em causa está também o uso
seletivo do princípio jurídico da confiança, o qual é aplicado desigualmente consoante se
esteja perante direitos de propriedade e direitos provindo de contratos entre particulares,
ou direitos relativos a prestações sociais do Estado. Um dos elementos que o autor critica
tendo presente a experiência portuguesa da austeridade é o da aparente distinção entre
as obrigações do Estado consoante esteja em causa um ou outro tipo de direitos. Nas suas
palavras,
“entre as prestações do Estado, tem-se frequentemente tratado
com deferência as que são devidas nos termos de contratos e que,
por isso, estariam blindadas contra alterações motivadas pelo
interesse público, pela correção de vícios estruturais do contrato
(como a desproporção das prestações: contratos leoninos) ou
pelos apertos da crise. Tem sido isso que tem dificultado a
renegociação ou rescisão de contratos de parceria público-privada
geralmente tidos como lesivos (ou altamente lesivos) do interesse
público […]. Em contrapartida, outras prestações do Estado –
nomeadamente, as que decorrem das políticas públicas do Estado
Social, ou mesmo os salários do funcionalismo – ficam fora desta
área de garantia, ficando sujeitas à precarização” (Hespanha, 2012:
18-19).

Este argumento pode-se estender ao modo como se interpretam os regimes de


pensões, subsídio de desemprego e outras prestações sociais. 128

O segundo elemento remete para a problemática da produção do direito e ao


modo como esta é desafiada pela substituição do princípio do direito democrático por um
outro, baseado em normas pretensamente naturais e técnicas (cf. Hespanha, 2007: 83)
mais adequadas ao contexto de crise. O direito daqui emergente segue os padrões do
atual capitalismo financeiro como um modelo forçoso de organização das relações, não
apenas económicas, mas também das relações humanas em geral. O direito de exceção
surge agora como incontornável, não podendo contra ele valer a soberania popular ou o
princípio da produção democrática do direito (cf. Hespanha, 2007: 84-86). Projetando-se
como direito líquido no sentido de Bauman, prescinde dos predicados da previsibilidade,
da segurança e da confiança, transmutando-se em instrumento de dominação da nova
configuração de poderes. A excecionalidade deste direito faz parte do processo de
austerização suportado por uma racionalidade instrumental e de cálculo custo-benefício,
a qual liquidifica e fragiliza os obstáculos colocados pelo direito até então vigente (cf.
Přibáň, 2007: 1). Detenho-me neste ponto, para sustentar a ideia de que o direito de
exceção se configura como um redutor da discrepância existente entre a law in books e a
law in action, no sentido em que diminui a zona de inefetividade dos direitos associada à
não aplicação ou aplicação seletiva do direito por parte do Estado. Retomo aqui os
argumentos apresentados por Boaventura de Sousa Santos (1993: 31) quando designa por
Estado paralelo,
“um estado formal que existe paralelamente a um estado informal;
um estado centralizado que endossa as atitudes contraditórias dos
múltiplos micro-estados existentes no seu seio; um estado oficial
maximalista que coexiste, lado a lado, com um estado não oficial
minimalista”.

Fenómeno particularmente evidente na esfera laboral, onde o direito de exceção


se apresenta em rutura paradigmática com os pressupostos do direito do trabalho,
eliminando o conflito enquanto elemento dinâmico das relações laborais e a proteção do
trabalhador enquanto condição de liberdade. As funções do direito do trabalho são
igualmente questionadas, nomeadamente a função económico-instrumental sempre 129

dependente dos débeis equilíbrios entre a mercantilização do trabalho e os limites


impostos pelo estatuto conferido pelo direito do trabalho ao trabalhador vacila perante as
anunciadas alterações ao tempo de trabalho e descanso, enquanto a função de
organização das relações de poder na esfera laboral, colocada sob o efeito da
dispensabilidade dos trabalhadores e do estreitamento da negociação colectiva, torna a
organização da “submissão voluntária” do trabalhador à autoridade do empregador num
exercício de poder despótico, sem contrapoder (Ferreira, 2012).
Legalizar o contrato leonino, na medida em que o poder fáctico e as práticas ilegais
extracontratuais passam a ser direito, constitui um objetivo a atingir, mesmo que para isso
tenha de se negar as funções antropológicas e sociológicas do direito do trabalho (Supiot,
2006: 9-10). Em nome do realismo da austeridade, não se hesita em “matar no homem a
pessoa jurídica” (Arendt, 1978: 381-383), expulsando do direito as considerações de
justiça. A ressonância schmittiana do argumento não é despropositada na esfera laboral
face à implementação em curso das medidas elaboradas pela troika e aceites pelo
Governo português. Considere-se que no atual momento as reformas da legislação
pretendem inscrever no direito do trabalho algo de essencialmente exterior a ele, ou seja,
nada menos do que a eliminação da sua identidade político-jurídica em troca de
financiamento externo. O direito do trabalho torna-se, assim, num produto de mercado
utilizado como caução do apoio externo. Mas, simultaneamente, ao serem-lhe retiradas as
notas da conflitualidade e da correlação de forças entre os parceiros sociais como fatores
constitutivos de uma busca de equilíbrios sui generis, impondo em seu lugar um
reordenamento do sistema de deveres e obrigações, franqueia-se o caminho a estruturas
hierárquicas capazes de procederem ao último ajuste político-ideológico do direito do
trabalho gerado depois de 1974.

8.3.3 O Estado social como problema

Na atualidade, o debate normativo e a investigação empírica em torno do lugar


ocupado pelo Estado social adquire grande realce. Para além da contraposição a que 130
várias vezes se referiu entre as orientações estatais de tipo social ou neoliberal, um outro
tipo de intervenção estatal é descortinado quando se experimenta, como no atual
momento, um processo de reforma das responsabilidades e funções do Estado onde se
conjuga a sua orientação neoliberal, a qual tem sido predominante, com uma agenda
política de decomposição do Estado social. Sob a designação de refundação do Estado, a
recente experiência portuguesa, marcada pelo contexto de crise e de austeridade,
questiona os termos de referência habituais das discussões em torno da crise e da
reforma do Estado. A expressão “refundação” ultrapassa as habituais contraposições
entre a reforma democrática do Estado e os objetivos de eficácia e eficiência económica
que o mesmo deve prosseguir.
É um momento singular, pela circunstância de os governos afastarem o debate
entre Estado social e neoliberal envolvendo o aprofundamento, ou não, dos direitos de
cidadania económica e social e da expectável qualidade de vida, substituindo-o pela teoria
da necessidade e da exceção, escamoteando o facto de que vivemos num Estado social de
direito. Daqui resulta, sem prejuízo para as diferentes teorias e entendimentos quanto às
articulações entre Estado de direito e Estado social, que se subverte estrategicamente o
princípio da indivisibilidade entre Estado de direito e Estado social, esquecendo que o
“Estado democrático de direito (ou Estado de direito) é o outro nome do Estado social de
direito” (Miranda, 2011: 3).
Numa linha argumentativa onde se conjugam os princípios da socialidade e da
estatalidade social, entendendo-se estas como um contrato político de combate à
exclusão de cidadãos e grupos mais vulneráveis através da intervenção estatal na esfera
do bem-estar das populações no quadro de uma economia de mercado, pode recorrer-se
às seguintes definições de Estado social de direito. De acordo com José Gomes Canotilho
(1999: 39), poderíamos dizer que o Estado social de direito só será de direito se, como
reclamavam os liberais e exigem agora os neoliberais, reconhecer a função estruturante
dos princípios fundamentais do direito civil assentes nos direitos da vontade dos sujeitos
económicos (ou seja, dos proprietários, empresários) e dos princípios norteadores desses
direitos (a livre iniciativa económica e a autonomia contratual). Acrescenta que o Estado 131
de direito só será social se não deixar de ter como objetivo a realização de uma
democracia económica, social e cultural, e só será democrático se mantiver firme o
princípio da subordinação do poder económico ao poder político (idem). Por seu turno,
Jorge Miranda (2011: 2-3) afirma que
“o ponto básico está em que o Estado social de Direito, se
incorpora os direitos sociais, não apaga nem subverte as
liberdades, mormente as liberdades públicas, e, em geral, todos os
direitos e garantias individuais; em que, se afasta o liberalismo
económico, continua fiel ao liberalismo político; e em que, se exige
para o Estado um papel insubstituível na economia, não exclui a
iniciativa privada e o mercado.[…].
[Segundo o autor,] em suma, [trata-se de] liberdade e direitos
sociais, Estado prestador de serviços e interventor, sob feições e
em graus diversos, nos mecanismos económicos, mercado
condicionado e regulado (ou economia social de mercado),
separação de poderes, ou seja, Estado democrático de Direito (ou
Estado de Direito) é o outro nome do Estado social de Direito”.

Também António Avelãs Nunes (2013: 57) realça que “a luta pela democracia
passa hoje pela defesa do Estado social. Porque nas condições do nosso tempo, a
democracia real não pode deixar de contemplar a democracia económica e social”. Se
retomarmos à sua origem, o Estado social surge ao colocar em causa a ordem liberal
assente na propriedade privada, no individualismo e no Estado mínimo, conduzindo ao
abandono da tese segundo a qual o Estado deveria considerar-se uma instância separada
da sociedade e da economia, e, por conseguinte, à aceitação de confiar ao Estado novas
funções no plano da economia e no plano social. Neste sentido, e como refere o autor, o
Estado social trouxe consigo uma diferente representação do Estado e do direito, os quais
têm agora a missão de realizar a justiça social, proporcionando a todos uma vida digna,
significando que “a mão visível do direito começou a substituir a mão invisível da
economia” (Nunes, 2013: 33).
No quadro da austeridade, o Estado de direito e o “primado da lei” convivem com
a produção legislativa, onde se ultrapassam princípios, como o da não retroatividade das
leis, o da segurança jurídica, o da confiança, o da igualdade e o da proporcionalidade. Em 132
nome de uma hipervalorização da nova realidade gerada pela crise e correspondente
estado de necessidade, a retórica subjacente à austeridade e à exceção parte de um
entendimento falacioso da equidade e da igualdade como motores da justiça social.
Assim, igualdade e igualitarismo são utilizados de modo neutral, reportando-se à igual
distribuição dos sacrifícios impostos a todos igualmente. Omitem-se as referências às
desigualdades inscritas na sociedade de que resulta que esta nova igualdade perante o
sacrifício se constitua numa falsa igualdade a partir da qual os mais desiguais são os mais
sacrificados. A austeridade é uma forma musculada de neoliberalismo que tem ao seu
serviço a exceção como mecanismo de legitimação política, dispensando,
tendencialmente, os formalismos processuais normais da sociedade democrática.
A orientação pela austeridade introduz uma nuance nas teses defendidas por Loic
Wacquant e Zygmunt Bauman, assentes na mudança paradigmática do Estado social para
o Estado penal. Para os autores, o modelo da law and order e da justiça criminal seria
induzido pela crise de legitimidade do Estado social, que, não podendo manter os padrões
de proteção e segurança sociais, promove uma retórica assente no abaixamento das
expectativas em matéria social, propiciando, em seu lugar, um modelo de segurança penal
através do qual adquire nova legitimidade.
O Estado de austeridade, por sua vez, não carece de trocas entre a questão social e
as questões da lei e da ordem, na medida em que afirma não existirem alternativas de
combate à crise, a não ser as que residem numa transferência clara dos seus custos para a
sociedade. Põe, deste modo, termo à ambivalência associada à avaliação dos mecanismos
de proteção social, uniformizando sob o signo da austeridade o repertório de medidas da
nova ordem social: impostos; cortes salariais; cortes nas pensões e subsídios; reforma no
sistema de saúde; flexibilização negativa do direito do trabalho, etc. Embora a fórmula de
legitimação do Estado de austeridade seja concordante com a do Estado penal, isto é,
colocando em estreita relação as políticas do medo, da segurança, da incerteza e
ansiedade partilhada, o referente muda. O estado de emergência produzido pelo medo
crescente acerca da segurança pessoal face ao desperdício humano – imigrantes,
criminosos, excluídos, etc. – dá agora lugar ao estado de emergência social, clamando 133
pelo sacrifício em nome do bem comum e reorientando o sistema de deveres e obrigações
(cf. Přibáň, 2007: 5).

8.3.3.1 A antropomorfização dos mercados financeiros

A intervenção do estado de exceção e de austeridade corresponde a uma forma


muito peculiar de colonização do mundo da vida pelos sistemas (Habermas), onde
estruturas institucionais e normativas se interpenetram com espaços de sociabilidade,
interação ou “espaços vitais”, subordinados em conjunto a “redes invisíveis de poder”
(Teubner) e aos interesses dos mercados. Tal significa que as tomadas de decisão
movem-se para outros espaços que estão fora do alcance dos cidadãos e dos governos, no
que se poderia definir como uma política normal democrática agora substituida por uma
logica social assente na antropomorfização dos mercados financeiros.
Segundo Ulrich Beck (2013: 28), os mercados financeiros globais “têm estados
emocionais, assumidos do repertório terapêutico: os mercados ‘estão muito nervosos’,
não se deixam ‘enganar’, são ‘tímidos’, ‘têm medo’ e tendem para ‘reações de pânico’”.
Claro está que o padrão de interdependência entre pessoas e mercado coloca uma
questão de poder, e quanto a isso não há qualquer dúvida. O que a experiência da
austeridade nos traz é a subordinação das pessoas aos mercados através da mediação
estatal. Neste sentido, os mercados exercem poder sobre nós, na medida em que nós
dependemos mais deles do que eles dependem de nós, cunhando uma troca desigual e
assimétrica (cf. Ferreira, 2012: 99-100). Os mercados, ao tornarem-se equivalentes às
pessoas, são agora portadores de emoções, sentimentos e afetos. É nesta ambivalência
que os mercados, tal como as pessoas, são colocados no cerne das lógicas de produção e
reprodução sociais e do pensamento democrático. Contudo, os mercados são demasiado
importantes para falhar e as pessoas demasiado irrelevantes para contar. A retórica
financeira, assente na interdependência entre mercados e pessoas, tende a apagar as
tensões entre os direitos sociais associados à cidadania e os direitos de propriedade
privada de bens financeiros. Quando se diluem as diferenças e se confere igual
importância a pessoas e mercados e respetivos direitos, trata-se de definir quem detém 134
maior poder para melhor proteger os seus interesses.
Uma das expressões mais graves da sociedade de austeridade reside no facto de as
pessoas e os mercados serem agora encarados pela lógica coletiva da atuação do Estado
na sociedade. O poder desmesurado legitimado pelo tempo de exceção faz com que se
continue a alimentar os mercados e, em particular, o sistema financeiro, cujas instituições
e interesses são considerados “demasiado importantes para falharem, enquanto as
pessoas são irrelevantes de mais para contarem” (OIT, 2011: 2-3).
O quadro que abaixo se transcreve, da autoria de Armin Schäfer e Wolfgang Streeck
(2013), sintetiza os elementos que fazem parte do processo de identificação social dos
predicados de pessoas e mercados.

Quadro 9: Elementos do processo de identificação social (pessoas e mercados)

Pessoas Mercados
Nacional Internacional
Cidadãos Investidores
Eleitores Credores
Direitos de cidadania Reivindicação de bens
Eleições (periódicas) “leilões” (contínuos)
Opinião pública Taxas de interesse80
Lealdade Confiança
Serviços públicos Serviço da dívida

Fonte: Ferreira 2014: 131

135
De um ponto de vista sociológico, insisto na ideia de não dicotomizar mercados e
pessoas, mas sim, de considerar que sob as atuais condições sociais, económicas e
políticas os dois termos de referência se encontram numa situação de interdependência e
dualidade, no sentido que Norberto Elias e Anthony Giddens conferem a estes conceitos.
Tal significa que estamos perante uma unidade específica de análise sociológica. Para ela
contribui a tendência para a antropomorfização dos mercados financeiros, como regista
Ulrich Beck (2013). Neste sentido, os mercados exercem poder sobre nós na medida em
que nós dependemos mais deles do que eles dependem de nós (nas atuais condições),
cunhando uma troca desigual e assimétrica (cf. Ferreira, 2012: 99-100). Acresce que nesta
mediação os Estados estão confrontados com um “duplo gap de controlo”. Os governos
perdem soberania, bem como o controlo sobre o processo de produção legislativa em
domínios como o social, orçamental e financeiro, e concomitantemente os cidadãos
perdem confiança na ideia de que haja efetivamente um controlo democrático sobre as
políticas do governo (Offe, 2013: 212).
A equação política, a que o Estado de austeridade dependente dos mercados
financeiros tem de dar resposta, tem dois constituintes: para além das pessoas, tem
também agora os mercados e os seus interesses específicos quanto às políticas públicas.
Os mercados detêm, assim, um enorme poder nos processos de tomada de decisão
política, fazendo aumentar a pressão sobre os cidadãos. A retórica político-financeira
assente na interdependência entre mercados e pessoas tende a apagar as tensões entre
os direitos sociais associados à cidadania e os direitos de propriedade privada de bens
financeiros. Quando se diluem as diferenças e se confere igual importância a pessoas e
mercados e respetivos direitos, trata-se de definir quem detém maior poder para melhor
proteger os seus interesses.

8.4. Austeridade e (in) justiça social

De acordo com Wolfgang Streeck (2013: 99), a economia política do capitalismo


136
democrático do período do pós-guerra ficou marcado pela institucionalização simultânea
de dois princípios de distribuição concorrentes: justiça de mercado e justiça social. À
distribuição do resultado da produção, de acordo com a avaliação pelo mercado dos
desempenhos individuais dos envolvidos expressa através dos seus preços relativos, o
autor designa justiça de mercado que se reconhece juridicamente nas normas do direito
contratual. A justiça social, orientada por princípios políticos e normas culturais, encontra
a sua fundamentação nas fórmulas do direito estatutário e de cidadania. Desindexando a
atribuição de direitos do desempenho económico e da capacidade de desempenho,
reconhecem-se direitos civis e humanos como os de direito à saúde, à segurança social, à
participação na vida da comunidade, à proteção do empregos, à organização sindical, com
especial destaque para os direitos fundamentais em matéria económica e social. Os
princípios que lhes estão subjacentes são os das conceções coletivas de honestidade,
equidade e reciprocidade, orientados pela salvaguarda jurídica a um nível mínimo de vida
(idem).
A controvérsia entre estas duas formas de justiça está patente nas diferentes
correntes da teoria política nomeadamente as que contrapõem o comunitarismo ao
liberalismo, o liberalismo igualitário ao libertarismo, podendo reconduzir-se à contradição
básica entre os que entendem o conceito de justiça social como impraticável como sucede
com Hayek, e os que como Rawls desenvolvem esforços para fundamentar uma teoria da
justiça social. Para os defensores da justiça de mercado e da perfeição do funcionamento
dos mercados, o risco reside na distorção às leis do mercado que podem ser infligidas pela
administração dos princípios da justiça social. Como refere Streeck (2013: 101), “a justiça

80
<https://en.wikipedia.org/wiki/Interest_rate>.
social é de natureza material e não formal, por isso, do ponto de vista da racionalidade
formal do mercado só pode ser considerada irracional, imprevisível e arbitrária”. Este
argumento de ressonância weberiana encontra na teoria dos riscos morais, uma
teorização que visa imunizar o desempenho económico das exigências de justiça social.
O raciocínio anterior pode ser comentado de dois pontos de vista: o das
perspetivas deontológicas, as quais conferem prioridade ao justo, ao dever ser e à norma
moral sobre o bem e as consequências das ações; e o das perspetivas consequencialistas, 137
que fazem a escolha inversa, subordinando o justo ao bem e ao resultado das ações que
maximizam o bem. Os primeiros não considerarão legítimo que, em nome do bem
coletivo, um ato injusto possa ser considerado legítimo pelo facto de as suas con-
sequências produzirem bem-estar geral, enquanto os segundos estarão dispostos a aceitar
o risco.
Admitindo que o utilitarismo é o representante mais importante do liberalismo
consequencialista (Dupuy, 1992: 108)81, a demonstração pelas evidências da realidade
facilmente nos conduz à consideração que o mesmo constitui a “filosofia espontânea” da
economia e dos políticos que defendem o paradigma da austeridade e da exceção.
Forçando o cânone da reflexão da teoria política, pode conceber-se a austeridade
utilitarista como um modelo onde as distribuições injustas de sacrifícios são aceitáveis se
assim se obtiver um maior bem-estar total ou médio. No quadro de uma sociedade
marcada por profundas desigualdades sociais, a crueza do utilitarismo que fundamenta a
violação de valores e direitos e a necessidade de manutenção da “passagem dos
sacrifícios” individuais para o coletivo carecem de uma racionalização aceitável. Ela surge
com recurso à noção de sacrifício enquanto elemento de um contexto onde ocorreu uma
“construção do consenso” que conclui pela exclusividade da resposta racional e lógica da
austeridade utilitarista. É neste quadro sacrificial de partida que os seus defensores
retomam o tema da equidade, invocando uma “ética social” com “justa repartição dos
sacrifícios”, deixando de lado a óbvia constatação de que a distribuição desigual dos

81
Observe-se, todavia, a existência de diferentes entendimentos de utilitarismo e de
consequencialismo (cf. Galvão apud Rosas, 2008).
sacrifícios, numa sociedade económica e socialmente muito desigual, é vantajosa não para
o maior número mas para os mais favorecidos.
A implementação do modelo da austeridade conduz, igualmente, a uma reanálise
das consequências do decisionismo normativo e da exceção, na ótica dos efeitos
perversos, por ele gerado na esfera da justiça social. As noções de efeitos perversos ou
das consequências não antecipadas da ação social foram expostas por Robert Merton e
Raymond Boudon como forma de captar sociologicamente a dissociação existente entre a 138
ação social e os resultados da mesma. A não coincidência entre o que se pretende
alcançar ou a não antecipação das consequências que resultam de determinada iniciativa
constituem a formulação de partida para esta problemática. Orientado por esta
perspetiva, Albert Hirschman publica o seu conhecido livro The Rhetoric of Reaction:
Perversity, Futility, Jeopardy (1991) (O pensamento conservador: perversidade, futilidade e
risco, 1997), onde identifica, na crítica da retórica reacionária ao pensamento democrático
progressista, três dimensões: a da perversidade, ou seja, qualquer ação deliberada para
melhorar a ordem social, política ou económica apenas serve para exacerbar a situação
que se pretende remediar; a da futilidade, em que se argumenta que todas as tentativas
de transformação social são sempre de fachada, simples operações de cosmética, ou
mesmo, ilusórias; e a do risco, segundo a qual o custo das mudanças ou o preço a pagar
pelas reformas é demasiado alto, pondo mesmo em causa as realizações anteriores (cf.
Curto in Hirschman, 1997: v; Hirschman, 1997: 16). Em causa está uma categoria política
chave da modernidade: a de intervir, ou não intervir, politicamente, na sociedade através
de reformas visando a melhoria da vida em sociedade (sociedade justa). Para o
pensamento conservador, de acordo com a análise de Hirschman, não há dúvidas: todo o
esforço de intervenção será inútil. Deste modo, o pensamento conservador cauciona a
lógica da não intervenção (sempre ilusória) na sociedade.
Face ao escândalo da questão social alimentada pela austeridade, os defensores da
intervenção austeritária e de exceção na sociedade assumem uma atitude maquiavélica e
cínica perante a situação social a partir da qual se infere o valor ético-político que
atribuem aos efeitos não intencionais das ações sociais intencionais. Enquanto para os
críticos da austeridade a posição é a de acentuar os aspetos negativos, estando em causa
a sustentabilidade e a coesão do social; para os austeritários, o que importa é o lado
positivo que querem ver nas suas intervenções, visando o controlo dos défices, a saúde do
sistema financeiro e a desestruturação do Estado social.82 Daqui resulta a defesa, feita
pelos apoiantes da austeridade, dos valores e lados positivos desses efeitos perversos. 83
Tal significa que são os defensores do princípio do mercado, enquanto ordem
espontânea ou auto-organizada, os protagonistas de uma intervenção estatal maciça 139
tendo por objetivo o modelo neoliberal de sociedade. As consequências esperadas,
apresentadas como inevitáveis, que acompanham tal campanha, são as da espiral da
pobreza e da erosão da qualidade de vida dos cidadãos, bem como a emergência de
rearranjos políticos e institucionais que traduzem uma nova estrutura de poder –
diminuição do poder do Trabalho. Neste contexto, o principal problema que se coloca aos
defensores da austeridade é o de como justificar, ética e legitimamente, a perversidade e
negatividade dos efeitos pretendidos por via da austeridade. No cânone político ocidental
de matriz rawlsiana, a justiça social oferece-se como um pilar incontornável no acesso à
liberdade e igualdade, portanto, no cânone político da austeridade, a justiça social
atrapalha e, por essa razão, tem de ser ultrapassada. A fórmula utilizada é a de recorrer ao
conceito de sacrifício coletivo, agora entendido como uma nova designação para a justiça
social.
À luz do que anteriormente mencionei, as linhas de intervenção do modelo
político-jurídico da austeridade são captadas por dois debates tradicionais da filosofia e
teoria políticas. O primeiro resulta da contraposição das formas de Estado social às
fórmulas de Estado mínimo. Sabendo-se que na real politik teórica a existência do Estado
nunca foi totalmente questionada (exceção feita ao pensamento anarquista), o debate
contrapõe os libertários e os neoliberais, para os quais o Estado se deveria limitar a dar

82
Utilizo um trocadilho a partir do texto de Ramada Curto (1997: vi).
83
Como Hirschman (1997) defende ao longo do referido livro, e como bem salienta Diogo Ramada
Curto na apresentação da versão portuguesa, o trabalho do autor toca um dos temas-chave das ciências
sociais, analisado por Robert Merton, Raymond Boudon ou Anthony Giddens, entre outros: o dos efeitos
perversos ou efeitos não intencionais das ações sociais intencionais. Para os reacionários, a tendência é a de
empolar os efeitos negativos resultantes das intervenções que visam a afirmação dos ideais nascidos com a
revolução francesa, pelo contrário, os progressistas valorizam a esperança e o lado positivo desses efeitos.
resposta às questões da law and order, aos liberais igualitários, socialistas,
sociais-democratas e terceiras vias de formas diferenciadas, que assumiam a necessidade
de uma intervenção do Estado na designada questão social. Esta tensão paradigmática,
que vigorou até 2008, é posta em causa no momento em que os Estados assumiram uma
intervenção protetora do sistema financeiro, feita à custa da degradação das suas funções
sociais. Para assegurar as expectativas dos mercados financeiros, assumem-se medidas de
transferência de rendimentos dos cidadãos para a acumulação do capitalismo financeiro, 140
as quais se combinam com políticas de rendimentos restritivas, redução dos mecanismos
de proteção social e emagrecimento geral das funções sociais do Estado.
O segundo debate está em estreita relação com o anterior e reporta-se ao tema da
justiça social. Também aqui o modelo da austeridade afeta os termos de referência desta
problemática. De uma forma sintética, e tomando como referência o trabalho de John
Rawls (1981 [1971]), a questão tem sido a de se saber como é que no quadro de
sociedades democráticas desiguais se pode estabelecer um critério distributivo em que os
membros mais desfavorecidos de uma sociedade tenham um acesso mais igualitário aos
bens sociais primários: a liberdade, as oportunidades, o rendimento e a riqueza, e as bases
do respeito por si próprio. A austeridade introduz, contudo, um “véu de ilusão” em torno
das questões da justiça social e da equidade. No seu experimentalismo social, continua a
degradação das condições de vida e da qualidade da democracia através das políticas e do
direito da austeridade, revelando a existência de uma teoria da desigualdade social onde
se testam os limites da desigual distribuição de bens, desvantajosa para os menos
favorecidos, e um falso igualitarismo, tendo por base um suposto consenso produzido na
base da responsabilidade coletiva dos membros da sociedade, independentemente do
lugar que ocupam na estrutura social. Esta perspetiva de justiça social coloca os cidadãos
perante uma identidade coletiva, que, para utilizar a expressão de George Gurvitch,
assenta num “nós” igualmente responsável.84 O “nós”, enquanto interesse coletivo e sob

84
Se seguirmos George Gurvitch, o uso do plural “nós” descreve um todo irredutível à pluralidade
dos seus membros, uma união indecomponível. Um “nós”, de acordo com Gurvitch, que não atribui
características específicas à identidade dos membros que nele participam, constituindo-se, por isso, num
quadro social, num todo concreto. Pressupõe-se, assim, a existência de participações recíprocas da unidade
na pluralidade e da pluralidade na unidade (cf. Gurvitch, 1977: 245).
a forma de esforço conjunto,85 convoca o dilema de como combinar sacrifício individual e
justiça social,86 conduzindo, portanto, à recuperação de um problema clássico da teoria
política: face à crise que a todos afeta, torna-se necessário recorrer a medidas que violam
os direitos fundamentais de alguns. É por esta última razão, que envolve o interesse e o
bem comum e os direitos fundamentais de indivíduos e grupos, que se afigura pertinente
abrir um caminho de reflexão em torno da relação entre justiça e sacrifício.

141

8.5 O Direito da austeridade e da exceção

Para enquadrar a noção de direito da austeridade e da exceção, parto de duas


abordagens sociojurídicas dos tipos ou modelos de direito. A primeira identifica os
diferentes modelos de direito, enquanto regimes político-jurídicos, aos quais se
encontram associados diferentes teorias políticas, princípios de regulação sociopolítica,
padrões de sociabilidade, práticas sociais e quadros institucionais. A singularidade destas
propriedades em cada um dos regimes político-jurídicos é entendida como expressão de
uma governamentalidade e de um regime de verdade, de acordo com a proposta teórica
de Michel Foucault. Assim, enquanto forma de governamentalidade eles correspondem
de per si ao
“conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e
reflexões, cálculos e tácticas que permitem exercer esta forma

85
Um consenso produzido na base de um forte apelo à responsabilidade coletiva da sociedade. De
uma forma indiscriminada, imputam-se às ações dos indivíduos e à sua falta de prudência a situação que se
atravessa. De resto, é esta crença política que estrutura intervenções públicas de governantes. Assim, nós
somos coletivamente «responsáveis. Esta é a hora em que todos os portugueses são chamados a dar o seu
melhor para ajudar Portugal a vencer as dificuldades. Trabalhando mais e apostando na qualidade,
combatendo os desperdícios, preferindo os produtos nacionais. Deixando de lado os egoísmos, a ideia do
lucro fácil e o desrespeito pelos outros. […] Durante muito tempo vivemos a ilusão do consumo fácil, o
Estado gastou e desperdiçou demasiados recursos, endividámo-nos muito para lá do que era razoável e
chegámos a uma “situação explosiva”, como lhe chamei há precisamente dois anos, quando adverti os
Portugueses para os riscos que estávamos a correr», mensagem de Ano Novo de 2012 do Presidente da
República, disponível em <http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=60565>.
86
Na elaboração deste tópico, presto especial atenção ao trabalho de Jean-Pierre Dupuy (1992: 107-160)
acerca do utilitarismo na obra de John Rawls.
bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a
população, por forma principal de saber a economia política e por
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança”
(Foucault, 1979: 171).

O estatuto, a produção e a mobilização dos regimes político-jurídicos recorrentes


no debate político e académico, encontram ancoragem e são, simultaneamente,
decorrências, daquilo que Michel Foucault também designou por regimes de verdade,
142
enformando os parâmetros da discussão e sancionando, por múltiplas vias, os desvios
conceptuais. Como refere o autor

“cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política geral»


de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a
maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona
como verdadeiro” (Foucault, 1994: 10).

Deve, todavia, salientar-se, que na realidade histórica e sociológica concreta, os


diferentes tipos de direito, enquanto regimes político-jurídicos, coexistem em situação de
hierarquia, complementaridade ou de hegemonia de um deles face aos restantes. Por
exemplo, o tipo ou regime político-jurídico da cidadania prevaleceu no período decorrido
entre o término da II Guerra Mundial e os anos 1970, no quadro da afirmação do
Estado-providência. A tensão com o regime político-jurídico de direito neoliberal fica
patente, desde então, por via de uma conceção de direito market-friendly suportada por
um estado crescentemente minimalista. Na atualidade a crise e a exceção, por sua vez,
são as marcas político-jurídicas que se complementam positivamente com as tendências
neoliberais e com a desqualificação do Estado-providência e dos direitos sociais.
A segunda abordagem, por seu turno, faz notar que apesar das diferenças de
conteúdo, os regimes político-jurídicos partilham um entendimento de modelo jurídico
comum definido como “o conjunto de critérios, de procedimentos intelectuais e formais e
de agentes convocados para legitimar e processar a regulação social” (Hespanha, 2013:
36). Neste entendimento de modelo jurídico
“a regulação social é orientada pela protecção de certos interesses
como direitos, dotados de garantias e de permanências, ou seja,
como situações que não podem ser modificadas senão por actos
tipificados pelo direito (rule of law), obedecendo a formalidades
também fixadas pelo direito (due process of law)” (idem).
143

Partindo deste pressuposto, coloca-se a questão de saber como ocorrerá a


mobilidade das situações jurídicas, as mudanças internas no modelo jurídico. A resposta
interna ao sistema jurídico remete para uma epistemologia de ponderação jurídica
orientada pela “justa proporção” das modificações a introduzir. Contudo, como António
Hespanha (2012), também assinala as mudanças verificadas no modelo jurídico sobretudo
a partir dos anos 1980 do século passado ficam a dever-se cada vez mais ao “ declínio do
direito” e do próprio modelo jurídico crescentemente questionados por outros modelos
como o da racionalidade económico e financeira. Este é o fundamento a partir do qual
assinalo os pressupostos do modelo jurídico da austeridade e da exceção. O primeiro é o
de que desde o 11 de Setembro de 2001 até aos dias de hoje tem ocorrido um processo
de afetação dos direitos fundamentais de carácter civil, político e social e dos princípios da
liberdade, da igualdade e da justiça social que conferem uma renovada centralidade
geopolítica ao Estado social de direito democrático e às questões social e da lei e da
ordem. Estes são temas de reflexão em que a sociologia do direito se vê envolvida por
conduzirem a uma recolocação do problema da articulação do direito e da sociedade que
deve ser estudada. O segundo pressuposto é o de que sem deixar de ter presente a
pertinência do que se designa por macrossociologia do direito, ou por relação entre tipos
de sociedade globais e seus sistemas de direito (Guibentif, 1992: 20; Gurvitch, 1977: 273),
a proposta assenta num modelo mediano que permita a compreensão do jogo,
articulações e combinações entre direito e sociedade (cf. Guibentif, 1992: 20). É, nesse
plano, e este é o terceiro pressuposto, que o modelo assenta numa microssociologia do
direito entendida como uma abordagem capaz de observar a relação direito-sociedade,
tendo presente as manifestações de sociabilidade que estão associadas ao direito, o modo
como os diferentes géneros e formas de direito se situam no seio dos ordenamentos
jurídicos e sistemas de direito, a produção e aplicação das normas jurídicas e a
interferência do direito nas práticas sociais (Gurvitch, 1977: 264-265; Guibentif, 1992: 20).
O quarto pressuposto é o de que a questão do direito é sempre, e necessariamente, uma
temática que envolve as questões da justiça e do poder. As relações do direito com a
justiça estão sempre presentes, embora assumam um carácter contingente e 144
diversificado, sendo a sua relação com o poder fundamental, no quadro de uma conceção
não neutral do direito. Direito, justiça e poder são, desta forma, indissociáveis das práticas
sociais, o que significa que analisar o direito como uma forma de poder, ou o direito como
expressão de uma certa forma de justiça, significa reconhecer a sua capacidade de regular
as relações e práticas sociais. O quinto pressuposto resulta da proposta de Philippe Nonet
e Philip Selznick (2009) (cf. tópico 7.4), que na sua proposta das categorias de direito
consideram que a mesma assenta no reconhecimento de que o direito é definido pela sua
relação com o poder político. Os sistemas legais, a justiça e os quadros institucionais da
aplicação do direito são criados e fundados pela autoridade política. Deste modo, o direito
é, simultaneamente, o modo de legitimação do poder político e o modo de exercício do
poder, incluindo juízes, procuradores, operadores jurídicos que aplicam as políticas
estatais sendo, no entanto, esta relação entre o direito e a política variável de acordo com
o tipo de direito predominante (cf. Nonet e Selznick, 2009).
Assinalo de seguida os quatro predicados do direito de austeridade e da exceção.

(1) O modelo do direito de exceção remete para a problemática da produção e


aplicação do direito e a forma como estas são desafiadas pela substituição do princípio do
direito democrático por um outro, baseado em normas pretensamente naturais, técnicas
e excecionais (cf. Hespanha, 2007: 83) mais adequadas ao contexto de crise. O direito
daqui emergente segue os padrões do atual capitalismo financeiro como um modelo
forçoso de organização das relações não apenas económicas, mas das relações humanas
em geral. O direito de exceção surge agora como incontornável, não podendo contra ele
valer a soberania popular ou o princípio da produção democrática do direito (cf.
Hespanha, 2007: 84-86).
(2) O direito de exceção do modelo de austeridade afasta os predicados da
previsibilidade, da segurança e da confiança, transmutando-se em instrumento de
dominação da nova configuração de poderes. A excecionalidade deste direito faz parte do
processo de austerização suportado por uma racionalidade instrumental e de cálculo 145
custo-benefício, a qual liquidifica e fragiliza os obstáculos colocados pelo direito até então
vigente.
(3) Da relação entre tempo e direito resulta que a aceleração do tempo jurídico, o
ritmo acelerado de adoção, de transformação e de alteração da legislação é a marca da
urgência de uma temporalidade de exceção que se impõe hoje como tempo normal (Ost,
2000). A aceleração pressupõe o aumento da velocidade das alterações políticas e
legislativas, sendo fonte de um direito e de uma normatividade precipitada, tempestiva e
instantânea que reclama a urgência como autojustificação para a prontidão da sua própria
emergência. As interpretações dos efeitos sociológicos resultantes da intensificação do
tempo presente da austeridade conduzem-me a vincar três consequências da
temporalidade de exceção (Ferreira, 2014: 335-337).
(3.1) A primeira, a da relativização da história e da memória. As sociedades são sistemas
plurais de tempo nem sempre sincronizados uns com os outros. O tempo, de um ponto de
vista social, só existe na medida em que é composto por grupos, instituições e indivíduos,
o que permite sustentar a ideia da existência de diferenças de ordem social na
organização do tempo. De acordo com a posição de Gurvitch (1973), não existe um
tempo, mas tempos sociais ou uma multiplicidade de tempos sociais (cf. Ferreira, 2005:
115). A dessincronia entre os múltiplos tempos vai de par com as tentativas de regulação
para que esta não ocorra. O modo como as sociedades organizam e sistematizam
temporalmente instituições, normas, valores, relações e práticas sociais (Ost, 2001: 38-39)
traduz o que se pode definir por soberania temporal. Neste sentido, o tempo é poder, já
que regula política, jurídica, e socialmente, a sociedade. Em momentos de temporalidade
de exceção, o conflito entre esta e o reconhecimento do direito à construção da
temporalidade instala-se. A necessidade de introduzir mecanismos de exceção, suscetíveis
de reorganizar a concordância dos tempos, torna-se num campo de tensão entre a
temporalidade da austeridade e a da sociedade nacional. O que está em jogo é o domínio
sobre a capacidade regulatória da sincronização dos ritmos sociais, quer se trate de
partilhar e organizar o tempo de trabalho, de redistribuir o tempo livre e de repensar a
solidariedade intergeracional e os mecanismos de proteção e segurança social (cf. Ost, 146
2001: 41).
(3.2) A segunda consequência é a da transformação do princípio da segurança jurídica em
insegurança jurídica e ontológica. O tempo jurídico é um aspeto importante quando
falamos de segurança jurídica, entendida como o tempo necessário para que ocorra a
construção de uma cultura jurídica adaptada à sociedade que procura regular e de uma
consolidação do próprio direito e dos seus princípios (Commaille, 1998: 320). É nesse
sentido que Jacques Commaile (1998: 321) se refere à visão do tempo por parte do jurista
como sendo paradoxal. Por um lado, a necessidade de que o tempo jurídico acompanhe a
mudança social, por outro, a “ambição de inscrever a lei jurídica no tempo longo da
história e não no tempo curto das paixões humanas e das suas cegueiras perante o
imediato” (Commaille, 1998: 321). O tempo da segurança jurídica é, deste modo, um
tempo longo, característica essencial para a afirmação de uma cultura jurídica que não
seja influenciada por fatores meramente conjunturais. Todavia, o desfasamento entre o
princípio da segurança jurídica e a temporalidade de exceção provoca instabilidade
político-social. Neste caso, as exigências de curto prazo obrigam a alterações legislativas
que colocam em causa princípios gerais do direito. A insegurança jurídica daqui resultante
é, concomitantemente, insegurança ontológica, por desinstitucionalizar relações sociais
cuja consolidação havia ocorrido no tempo longo do direito. A acelerada desjuridificação
ou radical alteração do direito induz, por isso, um efeito de precarização e erosão da
coesão social.
(3.3) A terceira é a do tempo do consentimento na sua relação com a teoria democrática.
O tempo jurídico é uma “construção social, logo, uma questão de poder, uma exigência
ética e um objeto jurídico” (Ost, 2001: 12). O direito tem como função principal contribuir
para a instituição do social, ou seja, dar um sentido e um valor à vida em sociedade. Esta
visão do direito rompe com as perspetivas positivistas e autorreferenciais que
exteriorizam o tempo social e político do direito, realçando que apenas o tempo jurídico
confere uma capacidade instituinte ao mesmo. Neste sentido, Jacques Commaille (1998:
318) considera a relevância da interação e do confronto entre as diferentes
temporalidades existentes na sociedade. 147
(4) O quarto predicado assenta no princípio genérico da precaução, neste caso,
aplicado às necessidades impreteríveis da austeridade e da exceção. Dou o exemplo das
reformas do direito do trabalho. O princípio da precaução na sua articulação com as
políticas de austeridade surge como uma mistificação (apelando ao princípio do “medo
social”) 87 ao escamotear o facto de os nexos de causalidade entre flexibilidade e
segurança laboral serem incertos e das medidas reformadoras tomadas de caráter
preventivo poderem gerar os seus próprios riscos (cf. Sunstein, 2005). Esta questão é de
particular importância porque a relação entre eficiência e equidade tem contornos
indeterminados na esfera laboral, sendo inconclusivas as análises nesta matéria (Louçã e
Caldas, 2009: 327-353). Com a incerteza científica criam-se cenários e conjeturas que
justificam a ultrapassagem dos princípios da proporcionalidade, da não discriminação e da
ausência de coerência com medidas semelhantes já tomadas.88 Convoca-se a atenção
para o facto de o sentimento de insegurança e o pânico coletivo poderem ser provocados
por uma relação inexistente, definida, por isso, como um risco inexistente que se receia
intensamente.89 Ou seja, evitar o “mal social” da rigidez da legislação laboral torna-se
num risco socialmente aceitável, apesar de as probabilidades da sua interferência na
diminuição do desemprego, na criação do emprego, aumento da produtividade e
crescimento económico serem questionáveis. Acresce, ainda, a omissão das discussões
relativas ao impacto das medidas da flexibilidade neoliberal na coesão e integração

87
Em sentido contrário, conferir Alexandra Aragão (2008: 14).
88
A este propósito, consultar Comissão Europeia (2000).
89
Acompanho a análise de Alexandra Aragão que se debruça sobre a questão da perceção social do risco
(2008: 45-50).
sociais.90 Esta “compra da segurança regulatória” (Sunstein apud Aragão, 2008: 45)
funciona como uma ideologia técnica, justificando a imposição do direito do trabalho de
exceção.91

8.6 A publicização do direito privado da culpa


148

A noção de individualismo institucionalizado, tal como é estudada por autores


como Ulrich Beck, Zygmunt Bauman, Scott Lash, entre outros, apresenta-se como uma
noção sociológica relevante no quadro das sociedades da modernidade reflexiva,
constituindo-se numa ferramenta de análise do processo de individualização. Os estudos
destes autores distinguem a tendência sociológica de valorização do indivíduo reflexivo,
sublinhando a sua crescente autonomia, emancipação e liberdade, do individualismo
ideológico associado às teorias políticas liberais, neoliberais e libertárias. Ainda que de um
ponto de vista sociológico não se confundam, a individualização sociológica e o
individualismo político, propendem na investigação de casos concretos a cair numa certa
miscigenação, a mesma que conduz, por exemplo, Pierre Bourdieu, a falar em “ilusão
biográfica” ou, Ulrich Beck, a falar em transmutação dos problemas estruturais em
questões individuais. É na base desta ambiguidade que, por vezes, fica dificultado o
entendimento dos pares autonomia/ vulnerabilidade individuais e devedor/credor. A
análise sociojurídica, do que aqui designo por publicização do direito privado da culpa,
recolhe a problematização feita pelas perspetivas mencionadas, na medida em que os
mecanismos morais que levam à produção da culpa, se tornam fundamentais para
entender o modo como a crise financeira vulnerabiliza a autonomia da liberdade

90
A este propósito, consultar Dornelas et al. (2006: 185-198), Comissão Europeia (2006: 81-91), Tajgman
(2011), OIT (2009, 2009a, 2011a, 2012).
91
Recordo a este propósito que “a incerteza científica resulta normalmente de cinco características do
método científico: a variável escolhida, as medições efetuadas, as amostras recolhidas, os modelos usados e
o nexo de causalidade utilizado. A incerteza científica pode também derivar de uma controvérsia em relação
aos dados existentes ou à inexistência de dados relevantes. A incerteza pode dizer respeito a elementos
qualitativos ou quantitativos da análise” (Comissão Europeia: 2000: 15).
individual, desenvolvendo, simultaneamente, uma representação social de moralidade,
onde o credor surge como único responsável pelas suas decisões. Neste sentido, e como
ficou evidente com a crise de 2008, foram férteis as analogias feitas entre o
endividamento de sujeitos privados (o que o Manuel tem de pagar ao António por lhe ter
pedido um empréstimo), e o endividamento público dos estados (o que um país tem de
pagar às instituições das quais obteve ajuda financeira), resultando daqui a estratégica
confusão entre a responsabilidade individual nos contratos privados com a 149
responsabilidade pública dos contratos políticos. A figura do homem endividado, como
demonstrou Maurizio Lazzarato (2012)92, tornou-se, assim, numa porta de entrada par
explorar as formas de dominação em que o direito é utilizado como mecanismo de gestão
política das crises. Todos são devedores, responsáveis e culpados perante o capital que se
constitui como o grande credor, independentemente de se estar perante indivíduos ou
países.
A crise financeira e o modelo da austeridade revelam a importância agora ocupada
no espaço público pelo “homem endividado”, o mesmo que é depositário do sentimento
de que a sua vida quotidiana e privada está dependente das flutuações sociais às quais se
encontra exposto. Trata-se de uma subjetividade que é induzida pelo neoliberalismo
tendo por base a promessa de que todos podem ser empreendedores e proprietários,
logo, responsáveis pelo seu destino. Duas condições são requeridas para a afirmação e
validação político-jurídica desta subjetividade. A primeira decorre da separação entre a
sorte opcional e a má sorte (Ferreira, 2014: 79), e define-se pela liberdade de escolha e
pela intenção de se aceitarem os riscos independentemente das consequências. A
segunda condição separa o devedor honesto, vítima das circunstâncias que alteraram as
condições iniciais da sua escolha, do devedor fraudulento e criminoso que atua com
dolo.93 Em consequência, o homem endividado honesto é um indivíduo confrontado com
um dilema moral assente na opção entre o sacrifício e o esforço com que cumprirá as suas
obrigações jurídicas ou em constituir-se num sujeito imoral e incumpridor. Neste

92
Acompanho, parcialmente, a proposta de Maurizio Lazzarato (2012), na qual se propõe fazer
uma releitura do neoliberalismo recuperando as teses de Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
93
A este propósito pode consultar-se Robert Kuttner (2013: 5-7).
entendimento da dívida, como elemento da vida em sociedade, existe uma valorização
dos padrões culturais e da moralidade assentes na honestidade, omitindo-se,
intencionalmente, a ideia de que a dívida é uma relação social entre devedores e
credores, em que todos são responsáveis, aplicando-se a ambos os padrões morais.
Foi nesta perspetiva que propus uma abordagem sociojurídica da culpa associada à
sociedade de austeridade (Ferreira, 2014). A formulação desta questão poderá ser feita
nos seguintes termos: em condições económicas e sociais consideradas normais, os 150
conflitos e os litígios associados ao consumo e aos empréstimos são resolvidos pelo
enquadramento jurídico do direito civil e do direito do consumo. A questão está, agora,
em que, no contexto de exceção da austeridade, a pressão sobre os
trabalhadores-consumidores assenta numa difusa consciência coletiva marcada pela
culpa.94 Mas, mais do que isso, verifica-se na consciência social e jurídica uma troca
simbólica nos termos da qual a responsabilidade civil privada se transforma na
criminalização da liberdade dos indivíduos. O exercício dos direitos subjetivos, 95
enquanto exigência da pessoa perante os outros, tendo por base o fundo voluntarista da
ação e o «dever geral de respeito ou obrigação passiva universal» (Mendes, 1984: 569), é
agora sancionado atendendo aos comportamentos irresponsáveis considerados
reprováveis. A dinâmica da liberdade individual, expressa nos direitos subjectivos,

94
O discurso da responsabilidade dos cidadãos consumidores pode, por isso, assentar na sua
ganância pelo consumo (Ranciére, 2005). Como Bob Jessop referia (2009), uma das explicações para a crise
financeira atribui a culpa aos consumidores que fizeram hipotecas sem terem a mínima intenção de as
pagar, utilizaram demasiado o cartão de crédito, e consumiram desenfreadamente, como se um dia não
tivessem de “prestar contas”. Assim, têm de assumir parte da culpa do impacto da crise financeira
incorporando-a na sua própria condição pessoal (<http://blog.theasa.org/?p=228>). Neste sentido,
trivializou-se no discurso dos governantes, nos debates públicos e nos comentários dos opinion makers a
referência ao problema da dívida das famílias e dos indivíduos, a que são associados os mecanismos da
culpa que justifica os sacrifícios.
95
De acordo com Castro Mendes (1979), destacam-se entre as correntes do direito subjetivo: a
teoria da vontade ou do “poder da vontade” de Savigny, Puchta e Windscheid; e a teoria do interesse ou do
interesse juridicamente protegido de Rudolph Von Jhering. Se, no primeiro caso, o conceito de poder da
vontade ou de um poder de querer se aproximava do individualismo liberal, em que a ideia geral de direito é
a de um conjunto de regras destinadas a coordenar entre si o máximo de liberdade dos membros da
coletividade, no sentido kantiano; a teoria do interesse repousa na ideia de segurança jurídica da fruição,
onde os direitos são interesses juridicamente protegidos. Neste caso o direito subjetivo é poder concedido
pela ordem jurídica para a tutela de um interesse ou de um núcleo de interesses de uma ou mais pessoas
determinadas (Mendes, 1979: 5-28;). A propósito da relação entre direito e subjetividade, consultar Renaut
(2010: 560 e ss.) e Ferry e Renaut (1984: 70-86).
torna-se fonte da “consciência coletiva da culpa”, criando um espaço de ambiguidade
onde os indivíduos, para além da renegociação das hipotecas e empréstimos, e do
aumento da taxa de esforço para assegurar os compromissos, são constrangidos pelas
reduções de salários, pelas reformas fiscais de equidade discutível e pela recessão dos
direitos laborais e sociais. Na atualidade, o homo juridicus da austeridade é um “homem
endividado” e progressivamente desprotegido dos direitos sociais com os quais podia
aspirar a um mínimo de segurança socioeconómica. 151
Neste quadro, a minha proposta de análise é a de que a publicização do direito
privado e a administrativização do direito público, enquanto características do Estado
social marcadas pela intervenção estatal, sofrem agora uma metamorfose nas relações de
poder. As relações entre credores e devedores constituem relações específicas de poder
que moldam formas específicas de produção e controlo da subjetividade – e do exercício
dos direitos subjetivos – nos termos das quais o homem endividado se afirma como
paradigma da personalidade jurídica.96 Deste modo, todas as relações sociais, seja entre
capital e trabalho, entre consumidores e fornecedores, entre utilizadores e prestadores de
serviços, etc., são agora perspetivadas a partir do denominador comum do sujeito
endividado. A dívida produz, deste modo, uma forma de dominação através da
moralidade complementar às conhecidas formas de controlo social emergentes da
regulação do trabalho. Esta ideologia do incumprimento e da falta para quem não honra
os seus compromissos, sobreleva juridicamente o princípio do pacta sunt servanda97
enquanto expectativa jurídica e orientação de referência para a ação, precludindo o
princípio do rebus sic stantibus 98 enquanto expectativa social resultante da

96
Numa perspetiva crítica, pode recuperar-se a ideia de Michel Miaille (1979: 104-132): “os falsos
«dados» do sistema jurídico”. Afinal de contas, a pessoa jurídica é apresentada como um dado básico do
sistema de direito, expressando vontade, interesse e, mesmo, poder, independentemente da possibilidade
efetiva dos indivíduos formarem a sua vontade, manifestarem interesse e exercerem poder. Isto é,
personalidade jurídica enquanto entidade independente da possibilidade e capacidade de protagonizar a
experiência da liberdade individual. À afirmação da personalidade jurídica universal contrapõe-se a ideia de
que a equivalência entre personalidade jurídica e indivíduo real está longe de ser evidente. Pessoa enquanto
pessoa jurídica é uma noção histórica e desenvolve-se de acordo com as condições de hegemonia do
capitalismo.
97
“Os contratos devem ser cumpridos” (Correia, 1958: 343).
98
Significa: estando assim as coisas. Entende-se geralmente que nos contratos a longo prazo e com
prestações periódicas sucessivas deve considerar-se implícita a cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual
transformação das condições objetivas do contratado inicialmente. 99 Aliás, pode
considerar-se que, ao tornar os devedores como elementos constitutivos do mesmo grupo
de referência, se pode gerir e harmonizar politicamente os diferentes grupos de pertença
pelos quais se distribuem os indivíduos na estrutura social, manipulando os processos de
mobilidade social e de privação relativa.100 Diluem-se as relações de poder, subjacentes
às assimetrias e desigualdades inscritas nas relações sociais, através de um processo
simbólico de falsa igualitarização dos sujeitos da relação jurídica. Todos são portadores de 152
direitos subjetivos e são requisitados e colocados harmonicamente no espaço público, e,
por isso, igualmente responsáveis pelo cumprimento moral dos contratos privados, agora
tornados obrigação política comum.
Para concluir, sublinho que a publicização do direito privado corresponde a uma
metamorfose do contrato civil do direito privado enquanto elemento da agenda política.
Por essa razão, os padrões de interação e de sociabilidade entre credores e devedores
tornam-se ambivalentes, facilitando a confusão entre responsabilidades individuais
emergentes dos contratos de direito privado e as obrigações políticas associadas ao
contrato político e ao interesse geral.

8.7 A Judicialização da austeridade e a questão democrática

as alterações mais ou menos profundas, não previstas pelos contraentes, que venham a verificar-se na
situação de facto existente à data da celebração do contrato e tornem o cumprimento deste
demasiadamente oneroso para uma das partes, permitem que esta peça a rescisão ou alteração do contrato
(Correia, 1958: 408).
99
A articulação entre as expectativas cognitivas, traduzidas em práticas sociais, e as expectativas
jurídicas, traduzidas nas práticas jurídicas, harmonizam-se através do processo de socialização jurídica,
tendo por referência o processo de positivização do direito. O direito surge aqui como redutor da
complexidade social na medida em que decide conflitos de forma impositiva e estabelece sanções no caso
de transgressões. A efetividade do direito resulta da congruência entre as expectativas e práticas sociais e as
expectativas e práticas jurídicas, quer esta resulte da aceitação da norma jurídica relevante tendo em
consideração a inerente sanção por violação, quer de uma interiorização intensa das normas jurídicas
expressas por uma orientação voluntarista da ação assente na boa-fé (cf. Guibentif, 1992).
100
A este propósito, consultar, entre outros, Merton (1970: 305 e ss.).
As análises que sustentam as articulações existentes entre a justiça e a democracia
são, como já tive oportunidade de mencionar (cf. tópico 3), imprescindíveis na
investigação dos fenómenos sociojurídicos. A transformação do papel da justiça no seio
das sociedades democráticas decorre, em larga medida, das fragilidades das democracias
parlamentares. Uma obra de referência a este respeito é a de Antoine Garapon, O
Guardador de Promessas (1998), na qual o autor faz uma crítica das atuais interações
entre a justiça e a democracia, explicando que um dos paradoxos que se vive na 153
atualidade é o do risco e possibilidade de uma democracia jurídica, ou do governo dos
juízes, se substituir à democracia política. Em todo o caso, a justiciabilidade da política é
um fenómeno captado pela noção de judicialização. Antes de mais, a judicialização através
dos processos judiciais nos casos de corrupção, envolvendo políticos. Depois, a
judicialização da crise do Estado social que fez com que o sistema judicial se encontrasse
envolvido nos debates públicos centrais sobre as disputas em torno da legitimação desse
modelo político e económico, o que operou uma mais ou menos intensa redefinição do
lugar ocupado pelo poder judicial face aos poderes legislativo e executivo. Por fim, a
judicialização da austeridade sob a qual me debruço. Neste caso, está-se perante a
judicialização da política, em que o ativismo judicial surge ligado à questão social, não
mais na ótica da avaliação judicial da incapacidade de resposta do Estado Social às
expetativas dos cidadãos relativamente ao seu desempenho, mas sim centrada no
envolvimento crescente da justiça constitucional no questionamento da validade dos
princípios do Estado Social pelas opções do bloco legislativo-executivo. Foi esta a tese que
defendi e que mantenho como válida, por considerar que a judicialização da política
perfila-se como um indicador sociológico privilegiado das tensões políticas e sociais
associadas à implementação do modelo da austeridade a coberto de uma retórica de
excepcionalidade (Ferreira, 2014). Assim, um dos sinais deste tempo de crise é o crescente
protagonismo judicial na sua relação com a política, numa combinação direta com os
défices resultantes das limitações da democracia representativa e da soberania popular.
Não causa, por isso, surpresa que o atual contexto de austeridade coloque um
novo desafio à justiça constitucional, implicando-a num processo de substituição das
obrigações políticas do Estado para com os cidadãos através da redução de direitos, ao
abrigo do imperativo da excecionalidade. A situação do poder judicial – e dos tribunais
constitucionais em especial – adquire uma centralidade renovada no presente contexto de
crise, sendo crescentemente nuclear no debate público o modo como ele se articula com
as decisões políticas que veiculam a austeridade. Em face do argumento da normatividade
de exceção associada à austeridade, a fronteira entre o constitucional e o inconstitucional
torna-se inevitavelmente um campo de forte disputa política, com particular ênfase para o 154
modo e a intensidade como as decisões dos tribunais valorizam a singularidade do atual
momento. Do mesmo modo, alterações das circunstâncias que determinem a invocação
da excecionalidade para a legitimação da austeridade colocam sob pressão as
interpretações da legislação feitas pelos tribunais. É no âmbito desta tensão que a
jurisprudência constitucional adquire um novo protagonismo, que se configura como uma
judicialização das políticas de austeridade.
A judicialização – designadamente constitucional – das políticas de austeridade
corresponde ao escrutínio “da desigual distribuição da austeridade” (Ferreira, 2012: 46),
modelo de regulação político-económico orientado pela imposição de sacrifícios a todos
os cidadãos. Ora, é esta dimensão coletiva do sacrifício e do esforço de cada um dos
cidadãos que suscita a ponderação entre, por um lado, o bem comum e a busca de
soluções orientadas pela equidade e justiça sociais e, por outro, a eficácia das políticas de
consolidação orçamental. A incapacidade evidenciada pela esfera do político em
encontrar os equilíbrios necessários à prossecução desta orientação, visibiliza a justiça
tornando-a num “espaço de exigibilidade da democracia” (Garapon, 1998: 46).
A relação entre a justiça e a democracia é um elemento muito importante no
quadro da discussão dos fenómenos da judicialização da política. Tem-se insistido na ideia
de que a falta de qualidade da democracia e as perversões do sistema representativo têm
contribuído para a transferência das expectativas dos cidadãos da esfera do político para a
esfera do judicial. Por esta razão, a centralidade adquirida pela justiça interpela a noção
de soberania popular criando um espaço problemático de permanentes deslocações entre
as reivindicações políticas que se judicializam e a devolução através das decisões
jurisprudenciais das mesmas para o espaço público 101.

A judicialização da vida democrática encontra semelhanças com o processo de


juridificação, na medida em que envolve diferentes graus de judicialização das relações
sociais, da economia e da política. Interessa aqui realçar o protagonismo judicial na sua
relação com a política, marcado pela forma como este se vai combinando com os défices
resultantes das limitações da democracia representativa e da soberania popular como 155
mencionado. Estes ao combinarem-se com a crise do estado social, crescentemente
esvaziado do seu contrato de cidadania, com a crise de legitimidade que se lhe encontra
associada e com o aparecimento de fontes de direito supranacionais, tem conduzido a
uma deslocação da “legitimidade central do estado, dos poderes legislativo e executivo
para o poder judicial” (Santos, 2002: 152). A externalização dos conflitos políticos e a
visibilidade dos tribunais, nomeadamente os constitucionais, corresponderá, deste modo,
a um efeito registado nas democracias onde “o direito tornou-se a nova linguagem
através da qual é possível formular os pedidos políticos que desapontados, se voltam
agora, em grande número para a justiça” (Garapon, 1998: 36). Esta deslocação da esfera
do político para o judicial suscita, ainda, duas questões que se interpenetram. A primeira é
resultado da legitimidade democrática poder repousar na esfera judicial, a segunda
decorre da necessária reavaliação da teoria de separação de poderes.
A situação do poder judicial, neste contexto, adquire uma centralidade renovada,
ponderando-se o modo como se articulará com as decisões políticas da austeridade.
Mantendo o argumento da normatividade de exceção associada à austeridade, a fronteira
entre o constitucional e o inconstitucional tornar-se-á inevitavelmente um campo de
disputa política. Em particular, se as decisões dos tribunais valorizarem a singularidade do
atual momento. Do mesmo modo, alterações das circunstâncias que determinem a
invocação da excecionalidade para a legitimação da austeridade colocam sob pressão as
interpretações da legislação feitas pelos tribunais. É no âmbito desta tensão que podem

101
Na teoria política contemporânea, desde os anos 1970 até aos dias de hoje, tem-se assistido a
um deslocamento da democracia da esfera parlamentar para a esfera dos debates acerca da justiça social,
iniciados com a publicação de Uma teoria da Justiça, de John Rawls (1981 [1971]).
convocar-se as discussões sobre o novo constitucionalismo, nomeadamente, quando se
sublinha a ideia de que o ativismo judicial surge quando se está perante situações em que
o Estado intervém, seletivamente, na prossecução de políticas públicas. Dois cenários
interpretativos estão em aberto, o de observar a atividade judicial no quadro das suas
funções regulares de fiscalização e aplicação do direito, ou o de admitir um papel mais
interventivo do judicial, podendo este roçar a judicialização das políticas de austeridade.

156

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