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1
Wanda Capeller (2015: 19) retrata de uma forma certeira as tensões existentes entre a sociologia
e o direito ao referir que: “Historicamente, a sociologia do direito inspirou-se da sociologia nascente, e
construiu-se em reação à dogmática jurídica, procurando situar-se em relação aos saberes jurídicos que lhe
eram próximos, como a filosofia do direito e a teoria do direito, e igualmente em relação às demais ciências
sociais. Percebida como uma disciplina ‘carrefour’ (…), um ‘ponto de encontro’ entre vários saberes, seus
esforços foram inúteis para minimizar as desconfianças existentes entre o direito, a sociologia e demais
ciências sociais. Os juristas veem a sociologia como uma 'empresa de subversão', e os sociólogos veem o
direito como um instrumento do poder, como um veículo da dominação social (…). Por isso a sociologia do
direito procura identificar de que maneira o campo jurídico posiciona-se em relação ao campo do poder (…),
e desvendar as ligações, às vezes perigosas, entre o direito, o poder e o Estado (…). Essas perspetivas têm
inspirado recentemente alguns sociólogos franceses do direito que desenvolvem uma sociologia política do
sociologia do direito como uma fonte de pluralismo teórico e inovação metodológica. 2
direito (…), ou ainda o conceito de governança que aplicado à diferentes práticas podem suplantar o poder
dos governantes (…)”.
2
Caráter que é criticado pelos que o veem como causa de fragmentação teórica, ecletismo e
descontinuidade entre os projetos de investigação.
3
Embora outros autores a vejam como um campo de investigação pressionado entre as tensões
disciplinares do direito e da sociologia (Deflem apud Banakar e Travers, 2013: 3).
outros encontram-se, pois, num ainda mais pequeno denominador
comum: a natureza eminentemente social do direito. Como o
direito imergiu na sociedade, a sua compreensão e explicação não
podem fazer a gestão da tomada em consideração das logicas
sociais, históricas, culturais, politicas e económicas das quais o
direito é o produto, o reflexo e, ao mesmo tempo, um dos seus
componentes. Porque o direito está imerso na sociedade, as suas
compreensão e explicação não conseguem fazer a necessária
análise das lógicas sociais, históricas, culturais, politicas e 7
económicas de que o próprio direito é o produto, o reflexo, ao
mesmo tempo que um dos constituintes. Porque o direito vivifica o
social, a compreensão da sociedade, do poder político, da
economia e das suas transformações podem dificilmente
transformar num beco sem saída o modo como são modelados por
esse mesmo direito. A mínima, a sociologia do direito pode, pois,
ser definida como uma tarefa de conhecimento que tem por
objetivo explicar as relações recíprocas entre direito e sociedade.
No entanto, o acordo limita-se ao esboço desta perspetiva muito
geral.”
4
Para uma análise histórica das tradições fundadoras da sociologia do direito, consultar, entre
outros, os seguintes trabalhos: Hunt (1978), Diaz (1984), Treves (1988), Santos (1994), Arnaud e Dulce
sociedade – efeito Black –, que têm constrangido o debate teórico na sociologia do direito,
constituindo-se como obstáculos epistemológicos. 5,6 Por outro lado, as dicotomias
Estado e sociedade civil, público e privado, produzem um efeito semelhante, como
demonstram as análises de Boaventura de Sousa Santos (2009), de Margaret Somers
(Somers, 2008: 176-177) e de Robert Alford e Roger Friedland (1990: 15-58). Os principais
modelos teóricos da sociologia do direito aqui em causa estruturam-se em torno de dois
grandes paradigmas, o do “impacto do direito na sociedade e o do impacto da sociedade 10
no direito” (Santos, 2000: 185).
Sociedade Direito
Estrutura social Constituição
Interações sociais Leis
Direito inseparável da Direito autónomo face à sociedade
Sociedade
n n
Fonte: Autor
(1996) e Ost (2001). Uma interessante abordagem histórica da disciplina encontra-se em Andrini e Arnaud
(1995).
5
Ainda que o tema da “autonomia do direito” permaneça incontornável, pelo menos como critério
de classificação e organização do pensamento sociojurídico (Nelken, 1988), e ainda que a partir dele se
possam estabelecer inúmeras análises das correspondências ou indiferenças entre o direito e a sociedade
(Guibentif, 1992; Santos, 2003), os modelos de análise sociojurídicos mais interessantes são os que
questionam a raiz da distinção direito/sociedade (Santos, 1986). Ver, ainda, a este propósito, Arnaud e Dulce
(1996: 11-54) e Hunt (1983: 19-46).
6
Hans Kelsen e Donald Black representam, respetivamente, os casos extremos de polarização
entre os que defendem a autonomia do direito face à sociedade e os que defendem a sociologização dos
estudos jurídicos.
Figura 2: Direito/Sociedade
11
Fonte: Autor
7
Não se deve deixar de atender à noção de “crise da sociologia” que tem sido utilizada de forma
abundante desde que Alvin Gouldner (1972) dela fez uso nos debates sobre a reestruturação do
pensamento social. Um levantamento dos usos do conceito pode encontrar-se, entre outros, em Ferreira
(1996). Também o conceito de “reestruturação do pensamento político e social” passou a fazer parte das
análises sociológicas da sociologia desde que Bernstein (1976) o tipificou.
8
A alusão à noção de “espaços estruturais”, desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos,
afasta-nos de perspetivas como a teoria sistémica de Niklas Luhmann e do seu excesso de “autorreferência”
no estudo dos fenómenos sociojurídicos, não obstante autores como David Nelken (1988: 212) detetarem
científico interdisciplinar” (Arnaud e Dulce, 1996) que se constitui a partir de temas,
surgindo o pluralismo metodológico como crítica ao paradigma dominante e à lógica
positivista. 9
algumas semelhanças entre elas. A teoria do “campo jurídico”, de Pierre Bourdieu (1989), a abordagem
sociojurídica entendida como “campo aberto” ou como “campo jurídico vulgar”, defendida por André-Jean
Arnaud e Maria José Dulce (1996: 171-174), e a noção de modes of governance, apresentada por Alan Hunt
(1997), dialogam melhor com a noção de “espaços estruturais”.
9
Quanto aos debates, temas e problemas que refletem as preocupações desta aproximação ao
fenómeno jurídico são de destacar: o nascimento e o desaparecimento das normas jurídicas; a
implementação da norma jurídica; os mecanismos formais e informais de resolução dos conflitos; as
profissões jurídicas; as políticas públicas; os direitos humanos, nas suas mais variadas expressões; a
administração da justiça, enquanto instituição política e organização profissional; o acesso ao direito e à
justiça; a litigiosidade social e os mecanismos da sua resolução existentes na sociedade. A globalização, o
pluralismo, o alternativo e o informal, a multiplicidade dos centros de decisão jurídica, e a reestruturação do
processo de produção da norma jurídica, são outros tantos exemplos dos eixos em torno dos quais se
desenvolve esta perspetiva de análise dos fenómenos sociojurídicos (Arnaud e Dulce, 1996; Santos, 1994).
Figura 3: “Duas perspetivas sobre o direito – a perspetiva interna e externa”
13
A DICOTOMIA
15
10
Para uma análise histórica das tradições fundadoras da Sociologia do Direito, consultar, entre
outros, os seguintes trabalhos: Arnaud e Dulce (1996), Diaz (1984), Hunt (1978), Ost (2001), Santos (1994) e
Treves (1988). Uma interessante abordagem histórica da disciplina encontra-se em Andrini e Arnaud (1995).
Exemplos de problemáticas teóricas sociojurídicas são: o direito como variável independente vs. o direito
como variável dependente; o direito como indicador privilegiado da sociedade vs. o direito como expressão
da exploração; uma visão normativista do direito vs. uma visão institucional e organizacional; teoria vs.
empiria; macrossociologia do Direito vs. microssociologia do Direito; o dogma da radical separação entre o
âmbito do ser e o âmbito do dever ser; a impossibilidade da Sociologia do Direito de formalizar o seu objeto
de conhecimento, afirmando, consequentemente, a sua dependência e o seu caráter auxiliar em relação à
ciência jurídica (posição kelseniana) ou delimitando o objeto do conhecimento da Sociologia do Direito em
termos de ação social ou de comportamentos (posições sociológicas), assumindo um antinormativismo. Para
uma análise aprofundada destas questões, consultar Arnaud e Dulce (1996), Nelken (1981) e Santos (1994;
2002).
que diferentes tipos de direito coexistem uns com os outros, embora com diferentes
funções, e em particular, com um impacto/força que varia ao longo do tempo. A
perspetiva de Hydén é a de que a sociedade foi motivando gradualmente mudanças
quanto ao quadro jurídico, sem que o quadro jurídico anterior desapareça
completamente. Assim, diferentes formas jurídicas estão presentes em paralelo, mas com
diferentes funções e com uma força particular que varia ao longo do tempo. A sua teoria
assenta em olhar para o desenvolvimento social em termos de curvas ou ondas, por 17
exemplo, o período entre a velha e a nova sociedade industrial e a atual sociedade de
informação, pode ser descrito como uma sociedade em transição. O desenvolvimento
social é cíclico, sendo caracterizado pelo autor pelas ondas que significam diferentes
desenvolvimentos de sistemas sociais ao longo dos tempos - sob o eixo horizontal - e a
utilidade desses sistemas para os indivíduos - sob o eixo vertical (cf. Figura 6).
11
Mais adiante, no tópico dedicado ao estudo da obra de Boaventura de Sousa Santos, esta
questão será retomada.
justiça estatais não são exclusivas nem, muitas vezes, centrais na ordenação da vida social.
Os primeiros estudos empíricos a identificarem normas jurídicas para além da estatal
situaram-se em sociedades sob dominação colonial. Hoje, é generalizadamente
reconhecido que a pluralidade jurídica está virtualmente presente em qualquer sociedade,
ainda que assuma formas e significados sociais e políticos muito diversificados (Merry et
al., 2007; Santos, 2006). A título exemplificativo, confira-se o caso do direito do trabalho.
Embora este seja hoje, um direito estadualmente consagrado e bem definido, é 20
acompanhado por três características. A primeira é a de que a sua génese está associada à
desobediência civil, ao nascimento da classe operária e à repressão sobre as greves e
reivindicações dos trabalhadores, legitimada pela aplicação do direito penal; a segunda é a
de que, enquanto direito social, evidencia o seu caráter alternativo ao direito estadual
através das convenções coletivas e da autorregulamentação, como sublinharam Georges
Gurvitch e Eugen Ehrlich; a terceira reporta-se ao caráter difuso e informal do direito
laboral não estatal, “direito da produção” enquadrável nas abordagens do pluralismo
jurídico. 13
O tema das desigualdades tem sido amplamente analisado pelas ciências sociais,
sendo também objeto de investigação na sua combinação com os fenómenos jurídicos. A
relevância da problemática é incontestável, tendo presente que vivemos em sociedades
cada vez mais desiguais, processo intensificado pela crise de 2008 e pelo impacto das
12
Em relação ao pluralismo jurídico ver, entre outros, Belley (1993), Griffiths (1986), Merry (1988),
Arnaud e Dulce (1996) e Santos (2003).
13
Num momento em que a crise e as desigualdades sociais vão a par com a tendência para a
interpenetração entre a regulação jurídica e a regulação social importa questionaras condições em que a
informalização, o pluralismo jurídico e a desjudicialização se constituem em modos de regulação favoráveis
para os indivíduos e grupos sociais detentores de maior poder e recursos. Perante as tendências que
sustentam que “informal is beautiful”, é necessário acautelar os contextos e situações que conduzem à
imposição repressiva da resolução de conflitos (Santos, 1982; 1988; Pedroso et al., 2003). Sobre a relação
entre a regulação jurídica e a regulação social, consultem-se, entre outros, Arnaud e Dulce (1996), Chazel e
Commaille (1991) e Clam e Martin (1998).
medidas de austeridade. Em causa estão os pressupostos económicos, políticos e jurídicos
da igualdade perante a lei, da igualdade de oportunidades, o fundamento meritocrático
das sociedades capitalistas, o saber-se até que ponto as desigualdades são, ou não,
injustas, e a linha crítica a partir da qual a coesão social é questionada (Dubet, 2014,
2016). 14 De igual modo, ressurgem os debates em torno da conflitualidade entre a
liberdade e a igualdade, o modo como o direito e as políticas públicas reduzem ou
produzem mais desigualdade e o caráter multidimensional das desigualdades sociais 21
(Costa, 2012; Carmo e Costa, 2015). 15
14
Em 2012, coordenei com o colega João Pedroso o Colóquio Internacional Direito (s) e
Desigualdades no qual de uma forma sistemática se discutiram temas onde a política, o direito e as
desigualdades foram debatidos
(http://www.ces.uc.pt/eventos/direitosdesigualdades/pages/pt/apresentacao.php9).
15
O tema das desigualdades tem estado na base de um conjunto de publicações de entre as quais
opto por mencionar o estudo de Richard Wilkinson e Kate Pickett, O espírito da Desigualdade (2010),
Thomas Piketty, O capital no século XXI (2013), e A Economia das Desigualdades (2014), Joseph Stiglitz, O
preço das desigualdades (2013), François Dubet, La préférence pour l’inegalité (2014) e Goran Therborn, The
Killing fields of Inequality (2013). Entre nós, para além dos já mencionados trabalhos de Renato Miguel do
Carmo e António Firmino da Costa deve ter-se presente o importante contributo que o Observatório das
Desigualdades (http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt/) tem dado acerca desta problemática. O
artigo de António Firmino da Costa, “Desigualdades Globais”, publicado em 2012, continua, em meu
entender, a fornecer um dos mais interessantes quadros de análise para a captação das desigualdades e
seus diferentes níveis à escala global, constituindo um estimulante ponto de partida para prosseguir a linha
de interrogações acerca da relação entre o direito e a sociedade. Por outro lado, Mike Savage, em artigo de
2014, também se torna num ponto de partida sugestivo para essa mesma reflexão, utilizando os desafios
que a obra de Piketty coloca à sociologia. De forma algo provocatória, a tese de Harry Frankfurt (2016:
10-13) defende a necessidade de reduzir a pobreza como ideal moral, separando-o da defesa da igualdade.
desigualitário, se vai simultaneamente desqualificando (critério da desqualificação)
perante as obrigações de assegurar a autodeterminação individual e a autonomia do
individuo perante o poder e tornando insuportável (critério da insuportabilidade) as
contradições entre as leis e políticas do estado e os princípios de justiça social da
igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana – “ponto do não direito” ou do
problema do “Estado de não direito” (Canotilho 1999: 11-14). 17
16
A propósito da noção de estado de direito consultar Gomes Canotilho (2003: 93-97; 1999:
24-45).
17
No que diz respeito ao “critério da insuportabilidade”e à questão do “estado de não direito”
acompanho com adaptações os argumentos de Gomes Canotilho (1999: 14-36).
18
O positivismo jurídico é uma das duas grandes correntes da filosofia do direito a par com o
jusnaturalismo. Assinalam-se quatro elementos caracterizadores: defende como ideia geral que é possível
construir uma ciência do direito de acordo com o modelo das ciências naturais; considera que os juristas
devem preocupar-se em conhecer o seu objeto afastando juízos de valor; o seu objeto de estudo deve ser o
direito positivo, isto é, o direito “posto” pelas autoridades políticas, excluindo assim o direito natural e a
moral; a ciência do direito deve ser composta por proposições verificáveis ou refutáveis através de
procedimentos análogos aos das ciências naturais. Conferir o Dictionnaire encyclopédique de théorie et
sociologie du droit (1993: 462). Para o aprofundamento dos desenvolvimentos e das perpectivas críticas face
ao positivismo jurídico, pode consultar-se com interesse: Gerald J. Postema (2011), Legal Philosophy in the
Twentieth Century: The Common Law World, e Pattaro e Roversi (2016), Legal Philosophy in the Twentieth
Century: the Civil Law World. Ver também, José Manuel Aroso Linhares (2016: 425-443) e António Hespanha
(2007: 257-282).
(2015), a magna questão da regulação política e a dos que com ela são favorecidos ou
prejudicados. A legalidade dual, no quadro da crise e enquanto modelo de regulação
política, patenteia: “a dificuldade de conciliar a tensão entre o objetivo do «Bem Comum»,
a existência de um laço social e de um laço cívico com a novidade de um indivíduo
democrático (...)”; e, “a convicção cada vez mais largamente partilhada de que a
legitimidade do poder, ela própria procedente do coletivo dos cidadãos, do próprio
«povo», é uma ficção, tal como o «contrato social» se transformou também numa ficção” 23
(Commaille, 2015: 299). Neste sentido, a dualidade do direito, como acima assinalado,
evidencia a característica distintiva do direito na atualidade, enquanto sistema de
recompensas distribuido desigualmente e apropriado por aqueles que se encontram em
posições mais vantajosas no sistema social – “problema do efeito Mateus no direito”. 19
19
Utilizo o termo utilizado por Robert Merton (1968) para identificar os fenómenos sociais onde
se verifica acumulação de vantagens recorrendo à parábola do Evangelho segundo Mateus “Porque ao que
tem será dado e terá em abundância: mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. Merton começa
por utlizar a parábola no domínio da sociologia da ciência no estudo das comunidades científicas (Merton,
1968: 56-63). Da sua aplicação na análise do direito e das desigualdades resulta que o direito enquanto
recurso social pode contribui para que os mais favorecidos fiquem ainda mais favorecidos e os mais
desfavorecidos fiquem ainda mais desfavorecidos.Pode mesmo falar-se em acumulação de capital jurídico a
este respeito.
20
A relação entre direito e desigualdades não pode excluir a constatação acerca dos indicadores
mais básicos das estruturas das desigualdades que necessariamente produzem injustiça social e
constrangem o papel e funções do direito. Só um exemplo: as 85 pessoas mais ricas do mundo detêm a
mesma riqueza que os 3.5 mil milhões mais pobres
(http://www.statista.com/statistics/203930/global-wealth-distribution-by-net-worth/). Goran Therborn no
livro European Modernity and Beyond: the trajectory of european societies 1995-2000 publicado em 1995,
desenvolveu uma sugestiva aproximação sociológica à relação entre direito e desigualdades.
decorrentes de um entendimento de direito que se considera neutro do ponto de vista
social; e o da neutralização, por via da legalidade positivista, do papel do direito na
promoção da igualdade e da democracia (Scheingold, 2006: xi).
Duas linhas de reflexão podem ser desenvolvidas. A primeira, diz respeito à relação
entre o Estado, a sociedade civil, a política e o direito. As investigações neste domínio
revestem-se de um especial interesse, se considerarmos a ação conjugada de fenómenos
como: o da crise do Estado-Providência e as reconfigurações a que a mesma deu lugar 24
entre o Estado e a sociedade civil; a mudança de paradigmas políticos, com especial
destaque para a tensão entre governabilidade e governação; e a manutenção da
contraposição entre a “juridificação das esferas sociais” e as formas autorreguladas de
direito. O estatuto do direito incorpora cada vez mais os conflitos associados aos
diferentes grupos sociais, reconfigurando este num sistema de distribuição de recursos
escassos e, portanto, de tutela legal de um modelo de justiça social (Campilongo, 1997;
Faria, 1997; Robert e Cottino, 2001). A centralidade do conceito de justiça, em sentido
amplo, é enorme, conduzindo a sua discussão sociojurídica à relativização da distinção
entre justiça legal e justiça social, e entre justiça formal e justiça material. Para além do
reconhecimento sociológico da existência de diferentes “esferas de justiça” 21, promove-se
uma abordagem integrada da justiça formal e da justiça material, e da justiça comutativa e
da justiça distributiva. Deste ponto de vista, já não é possível separar o político e o
jurídico, de tal modo se encontram interrelacionadas as formas de regulação política,
jurídica e social. A opção por uma sociologia política do direito, enquanto estratégia de
análise, tem como principal resultado que a produção e a aplicação das normas, a
efetividade dos direitos, as funções da justiça e do acesso ao direito e as formas de
resolução dos conflitos sejam estudados, atendendo à sua relação com os modelos e
princípios de ordem e regulação sociopolítica e com as questões do Estado, da política, do
poder, da legitimidade e dos conflitos. O próprio debate e luta políticos vão opondo os
partidários do princípio do mercado e do recurso absoluto às fórmulas da
desregulamentação e flexibilização aos que sustentam a necessidade de recurso a
políticas e a formas de regulação social. Deste processo de imbricação entre as esferas
política e jurídica resulta que o “regresso do político” seja, concomitantemente, um
regresso ao direito ou um regresso do direito. 22
21
Cada “espaço estrutural”, “campo” ou contexto de interação pode ser perspetivado como
indutor das respetivas esferas ou espaços de justiça e de equidade.
22
Estaremos, portanto, perante uma teoria política do direito ou uma sociologia política do direito
que remove a pretensão de separar o político e o jurídico. Ao fazê-lo, reafirma a necessidade de discutir o
Estado, a democracia, a justiça social, a esquerda e a direita, a liberdade, a igualdade e a solidariedade de
um ponto de vista político-jurídico. Esta abordagem pode ser feita numa base de
articulação/transversalidade com os trabalhos dos cientistas sociais defensores de uma noção ampla dos
“estudos políticos” (Bobbio, 1986; Held, 1988, 1991, 1995; Heller, 1991; Mouffe, 1993) e que, partindo de
uma “conceção alargada dos fenómenos políticos”, relativizam categorias canónicas da ciência política
tradicional como a distinção Estado/cidadão, público/privado, nacional/internacional, resgatando-se, por
outro lado, quer a filosofia política “declarada morta” na década de 1950, quer a discussão ético-politica
através dos debates em torno de questões como a justiça social, a equidade, a liberdade, a igualdade, o
“Estado justo”, a teoria democrática, a sociedade civil, o comunitarismo, o contratualismo, a cidadania, o
feminismo, os direitos humanos, etc..
23
Se retomarmos o texto de Steven Lukes (1991), verificaremos a importância dada à relação entre
liberdade e autonomia. A capacidade de controlo da sua própria vida por parte dos indivíduos, expressão de
uma vida autónoma, é também o que confere valor à própria liberdade. Estabelece assim uma estreita
estar-se-á perante a denúncia do “erro de Hayek”, como refere Philip Selznick (2002: 108),
visto que a “miragem da justiça social” se fundamenta na ignorância das sociedades se
encontrarem organizadas socialmente sob a forma de sistemas ou padrões de
sociabilidade e também por, de acordo com Wolfgang Streeck (2013: 160-161), a
hayekização do capitalismo europeu corresponder a uma hegemonia institucionalizada da
justiça de mercado sobre a justiça social.
Endossar a ideia da existência de uma complementaridade por mais tendencial que 26
seja entre liberdade e igualdade, implica ter presente a noção de justiça social e recorrer à
mediação de noções como democracia política e democracia social, direitos liberdades e
direitos reivindicações, igualdade real e igualdade formal, liberdade formal e liberdade
real (Ferry e Renaut, 1984; Schnapper, 2002). No essencial, significa raciocinar tendo
presente não só o princípio da indivisibilidade entre liberdade, igualdade e justiça social,
mas também fazê-lo valorizando as dimensões substantivas e reais da vida em sociedade,
e o modo como os princípios intervêm objetivamente na vida das pessoas.
A invocação da obra clássica de L. T. Hobhouse é sugestiva, dado o autor
mencionar, expressamente, que a liberdade depende, em todos os seus domínios, da
igualdade: igualdade perante a lei, igualdades de oportunidades, igualdade entre as partes
no contrato (Hobhouse apud Wilkinson e Pickett, 2010: 310). No mesmo sentido, Sandra
Fredman (2008: 30) acentua que uma conceção de liberdade deve incluir não somente a
ausência de coerção nos direitos, como também, uma verdadeira capacidade para exercer
esses direitos; o reconhecimento do papel da sociedade e do estado na promoção da
relação entre liberdade e autonomia, incluindo nesta última ideia características como a da ausência de
manipulação e coerção, disponibilidade e acesso a informação adequada e a possibilidade de escolha entre
bens, bem como, ausência de impedimentos ou constrangimentos face aos diferentes modos de ação social
possíveis. Quanto à igualdade, ela assume uma dimensão mais problemática, por merecer uma atenção por
parte do que genericamente aqui se sinaliza como pensamento político de esquerda, na medida em que
mesmo não atingindo uma sociedade igual, pelo menos pretende uma sociedade mais igual. Em
contrapartida, o pensamento político de direito critica este propósito por sustentar que tal conduz à
uniformidade e à diminuição da iniciativa individual. Contudo, as diferentes teorias e ideologias políticas
partilham pelo menos uma conceção de igualdade: a igualdade formal. Porém, logo que se trata de discutir
regras de distribuição igualitárias, igualdade material, igualdade no acesso ao trabalho e serviços públicos,
igualdade de oportunidades, igualdade de resultados, regras antidiscriminatórias etc., estabelece-se o
desacordo.
liberdade; e uma visão substantiva de igualdade que signifique que todos estão aptos para
exercer os seus direitos. É nesta perspetiva não formalista que se deve considerar “que a
qualidade das relações sociais numa sociedade se baseia em alicerces materiais”
(Wilkinson e Pickett, 2010: 25). Richard Wilkinson e Kate Pickett no livro, O espírito da
igualdade (2010), desenvolvem um estudo fundamentado acerca das evidências empíricas
que apontam no sentido da liberdade, da igualdade e da justiça se encontrarem em
relação com diferentes variáveis da desigualdade de rendimentos e de dimensões do 27
bem-estar. Para os autores, as desigualdades sociais refletem a injustiça social, a falta de
liberdade e a falta de igualdade. Sustentam, por isso, a complementaridade entre estes
princípios, tendo em consideração as dimensões objetivas da realidade social24.
As duas linhas de reflexão partilham um conjunto de ideias e de questões
organizadas em torno das temáticas relacionadas com a redução das desigualdades e
injustiças sociais, podendo ser operacionalizadas no quadro da relação direito/sociedade,
partindo de quatro níveis de análise.
24
Tendo presente os comentários anteriormente desenvolvidos, deve reconhecer-se que é a partir
da crítica ao pensamento político neoliberal e ao formalismo na teoria política que nos reencontramos com
intensos debates teóricos e políticos de que se podem dar como exemplos o movimento feminista, os
movimentos civis, as lutas contra as diferentes formas de discriminação, a interseccionalidade, as queer
theories, os debates acerca dos direitos humanos, as lutas pelo reconhecimento de novos direitos, as lutas
pelo acesso e mobilização do direito, o ativismo judicial e as lutas associadas aos conflitos distributivos e de
reconhecimento.
tipos de capitais, os dominantes - eram melhor tratados do que os “have-nots” - os
dominados - quando entravam em contacto com os tribunais americanos. Esta conclusão,
como refere Liora Isräel (2013: 543), é simultaneamente evidente e surpreendente.
Evidente porque desde Marx que o direito foi considerado como um agente da
reprodução de poder, mas também uma surpresa na medida em que uma vaga de
otimismo percorreu os anos 1950 após as grandes decisões do Supremo Tribunal
favorável aos direitos cívicos, entre outros (período «Warren Court» 1953-1969). 28
A explicação proposta por Galanter acerca da desigualdade estrutural verificada no
funcionamento do judiciário assenta na conhecida distinção entre litigantes frequentes
(repeat players) e litigantes esporádicos (one shooters). De acordo com a investigação, em
virtude das diferenças existentes e dos recursos financeiros, e também no direito
aplicável, alguns dos mobilizadores da justiça recorrem repetidamente aos tribunais
envolvendo-se em litígios similares ao longo do tempo (Santos et al., 1996: 71). No quadro
desta análise, importa compreender que a assimetria entre aqueles que procuram a
instituição judiciária se deve, sobretudo, ao estatuto de litigante frequente que o coloca
em melhores condições face ao sistema judicial. Como referem Santos et al. (1996: 71), o
que torna um litigante frequente ou esporádico não decorre apenas do tipo de litígio em
questão, mas também a sua dimensão e os recursos disponíveis que tornam distinta,
neste caso, menos custosa e mais próxima, a sua relação com o tribunal. Com efeito, o
litigante frequente prevê que vai ter litígios frequentes, corre pouco riscos relativamente
aos resultados de cada um dos casos e tem recursos suficientes para prosseguir os seus
interesses de longo-prazo. Situação bem diferente da do litigante esporádico cujo valor do
litígio é demasiado importante relativamente à sua dimensão, ou demasiado pequeno
relativamente ao custo da reparação para poder ser gerido de forma racional e rotineira
(idem). Daí que se contem entre os litigantes frequentes, grandes empresas, companhias
de seguros etc, enquanto que particulares que têm litígios de divórcios, ou enfrentam
processos de pequenas causas etc, são litigantes esporádicos. 25
25
Entre nós merece destaque a aplicação feita da perspetiva de Marc Galanter por Boaventura de
Sousa Santos et al. no seu clássico estudo Os Tribunais nas sociedades contemporâneas, o caso português
(1996).
combinam liberdade com igualdade como forma de promoção da justiça social resulta que
as desigualdades aceitáveis só serão moralmente permitidas na medida em que possam
beneficiar todos os membros de uma sociedade. Trata-se do “princípio da diferença”,
segundo o qual se defende a maximização da posição daqueles que estão pior colocados
na sociedade. Daqui resulta que o lugar do direito e da atividade do judicial deveria ser
sindicado à luz do seu contributo para este entendimento de justiça como equidade.26
Um desenvolvimento da relação estabelecida entre teorias da justiça, direito e o 30
judicial, é sugerida por Thierry Delpeuch, Laurence Dumoulin e Claire de Galembert (2014:
75-104). Os autores, na esteira da sociologia pragmática com destaque para as propostas
de Luc Boltanski e Laurent Thevenot, referem a importância de se analisarem as
especificidades e complementaridades, as convergências e as divergências, entre as
lógicas da justiça ordinária e as do judicial. Nesta perspectiva, importa examinar as
conceções e perceções individuais de justiça que ocorrem numa dada sociedade, isto é,
analisar os princípios de justiça aos quais aderem os atores sociais e os sentidos de justiça
que desta forma se constroem socialmente. Embora tendo presente que as formas de
justiça ordinária postas em ação por esta dinâmica sociológica estejam em estreita relação
com o direito e com as formas judiciais de resolução dos litígios, permanece relevante
verificar o padrão de relacionamento sociojurídico que se estabelece tendo presente os
princípios de justiça. Assim, sabendo-se que o recurso à instituição judicial constitui a
exceção e não a regra, ou seja, que as condições de passagem da indignação à ação
judicial sofrem diferentes tipos de constrangimentos simbólicos e materiais, afigura-se
pertinente aferir do papel desempenhado nesta decisão pela atividade cognitiva e
julgamento moral que os indivíduos fazem quando colocados perante um conflito. Para
além disso, no âmbito desta abordagem, o direito surge como possibilitador da resolução
de conflitos quando se verifica a impossibilidade de um acordo “natural” entre os
indivíduos. No entanto, apesar da sua dimensão coerciva independente das partes em
litígio o desacordo entre elas pode permanecer à luz dos princípios de justiça ordinária.
26
De uma forma mais orientada para áreas específicas da sociedade encontra-se, também, a
perspetiva da justiça distributiva de Jon Elster (1992) sob a fórmula da “local justice”, definindo-se esta
O terceiro nível de análise decorre dos desafios colocados ao direito social como
modelo de realização do direito face ao sistema de desigualdades inscrito na estrutura
social. Não se trata de captar os “momentos de abertura axiológico-normativa” do direito
à sociedade, de verificar a “abertura autorreflexiva” do direito à sociedade, nem mesmo
de atender à “responsividade do direito” perante as dinâmicas da sociedade. O problema
é o de assinalar quais as formas de direito dominante e atuante perante o contexto acima
descrito, e se é possível ponderar um direito que reforce o sentido da justiça e da 31
democracia. O direito social surge como um bom ponto de partida para o
aprofundamento de um direito democrático e compensador de desigualdade, como entre
nós sugere João Pedroso (2013). Importa, no entanto, ter presente que os direitos sociais
podem ficar reféns das condições situacionais, as quais como assinala Wanda Capeller, se
consubstanciam na noção de “reserva do possível”. É a partir desta nova semântica
jurídica que a concretização dos direitos sociais fica à mercê das capacidades financeiras
do Estado, pelo que se verifica “uma clara «dessignificação material» dos direitos sociais
que haviam sido ressignificados constitucionalmente” (Capeller, 2016: 5).
Apesar das dinâmicas de transformação social apontarem para o aumento das
desigualdades, exclusão e vulnerabilidade sociais, o paradigma da dogmática jurídica
permanece como matricial no ensino jurídico e na afirmação da estrutura nomológica do
direito. Trata-se de
“um sistema concebido basicamente como uma ordem coativa
unitária, completa e fechada, que exclui a contradição e a
descontinuidade, satisfazendo um ideal de racionalização formal
apto a propiciar calculabilidade, previsibilidade, segurança e certeza;
como um conjunto de normas hierarquizadas e vinculadas por meio
de relações lógicas e necessárias, passíveis de métodos
interpretativos de natureza iminentemente lógico-dedutiva” (Faria,
1999: 269).
como a alocação de recursos escassos por diferentes instituições sociais segundo critérios diferenciados.
de utilização do paradigma da dogmática jurídica, ficando para o debate público-político
as matérias relacionadas com o problema da justiça distributiva. Contudo, as
circunstâncias das sociedades atuais exigem o confronto deste modelo com quatro
evidências de crítica sociológica ao caráter formal e estilizado deste paradigma de direito.
A saber: (1) como responder ao facto do pressuposto racional-legal da igualdade
perante a lei ser posto em causa pelas assimetrias entre indivíduos, grupos sociais e
organizações?27 (2) o que pensar da verificação empírica de que a personalidade jurídica 32
enquanto repositório de direitos e deveres ligados à pessoa ser confrontada com a
intensidade da separação entre o “cidadão de jure e cidadão de facto”?(3) o que dizer da
dissonância existente entre a ideia democrática do “direito a ter direitos” e a severidade
da violação e falta de efetividade dos direitos conquistados? (4) e finalmente, que ilações
se poderão retirar das formas de produção e aplicação do direito que sob o signo da
exceção põem em causa princípios gerais como os da segurança e confiança jurídicas
quando ocorre um empobrecimento das sociedades e processos de mobilidade
descendente das classes médias?
Como se sabe, a noção de direito social tem tradição afirmada na sociologia do
direito pela mão de Georges Gurvitch, entre outros, o qual publicou em 1932 a obra L’idée
du droit social onde defende o seu entendimento de pluralismo jurídico contrário às
conceções do formalismo e do positivismo jurídico e de crítica do Estado como fonte
exclusiva de direito 28. Neste sentido, a conceção de direito social surge, essencialmente,
como uma alternativa ao formalismo da dogmática jurídica adquirindo o adjetivo “social”
força normativa para contrariar os efeitos perversos gerados por um entendimento do
direito cego por relação aos fatores de desestruturação da sociedade. Autores como
François Ewald (1986, 1993), Jean Paul Fitoussi e Pierre Rosanvalon contribuem para esta
Uma vez mais, o lugar do direito e das instituições judiciais podem ser analisados à luz deste entendimento.
27
A discriminação das mulheres no mercado de trabalho constitui um bom exemplo desta
problemática. A teoria do impacto adverso surgida da doutrina e jurisprudência norte-americana realça o
modo como as normas de direito ditas formalmente neutras produzem um determinado impacto
discriminatório no grupo social das mulheres. A noção de discriminação indireta também pode aqui ser
mencionada (Ferreira, 2005).
28
Entre outros trabalhos onde aborda esta questão, Gurvitch publicará em 1946 La déclaration des
droits sociaux onde resume os seus estudos desenvolvidos entre as duas guerras mundiais.
discussão ao chamarem a atenção para a necessidade de “a nova era das desigualdades”
ou “a nova questão social” conduzirem à necessidade de reformulação dos direitos. A
“busca pela inserção” conduz à emergência de laços inéditos entre direitos sociais e
obrigações morais, de modo a que se ultrapassem os tradicionais direitos liberdade, e
direitos garantias, visando-se um caminho que realize os direitos à integração e à
solidariedade social (Schnapper, 2002).
José Eduardo Faria (1999) fornece uma boa síntese deste entendimento de direito 33
social (cf. quadro 1) ao recensear diversos contributos. Realça, neste sentido, a
importância de mecanismos jurídico-institucionais com propósitos sociais, os quais
assumiriam
“a forma de pautas decisórias e de regras a um só tempo
«corretivas» e «compensatórias», capazes (a) de estimular os
diferentes segmentos sociais e os distintos setores económicos a
negociar suas diferenças, (b) de obrigá-los a fazer concessões
recíprocas e (c) de viabilizar a socialização dos riscos, a
redeterminação dos custos e a distribuição das perdas, que variam
conforme o status das partes envolvidas nas situações conflitivas”
(Faria, 1999: 271).
29
A este propósito consultar entre outros (Faget, 1997; Ferreira e Pedroso, 1999; Santos 1994,
1995, 2002; Santos et al. 1996).
O acesso ao direito e à justiça é também uma forma de acesso ao político, o que
pressupõe um espaço público, onde todos possam expressar a sua opinião ou fazer valer
os seus direitos na busca de uma solução para os conflitos, sendo as barreiras ao acesso à
justiça encaradas como barreiras ao exercício da cidadania e à efetivação da democracia.
Com efeito, o grau de realização da igualdade real, e não meramente formal dos cidadãos
perante a lei, é sempre um indicador da qualidade da cidadania e da vida democrática,
constituindo o caso concreto do acesso ao direito e à justiça laborais, pelo lugar estrutural 36
ocupado pelas relações de trabalho nas sociedades capitalistas, exemplo paradigmático da
concretização prática dos princípios da igualdade e justiça sociais.
Enquanto locus de interseção entre o político e o jurídico-judicial, a questão do
acesso revela-se um excelente indicador sociológico do grau de contradição ou
compatibilização entre os diferentes princípios de regulação sociopolíticos, bem patente
nas relações que se estabelecem entre o direito processual e a justiça social, a igualdade
jurídico-formal e a desigualdade socioeconómica.30 O seu estudo implica a identificação
do papel desempenhado pelo Estado e sociedade civil e pelas esferas pública e privada da
articulação entre os princípios de regulação do Estado, do mercado, da comunidade e da
associação, de forma análoga à que ocorre no sistema de resolução dos conflitos.
Se por um lado se identificam diferentes elementos facilitadores do acesso ao
direito e à justiça, por outro, não se pode deixar de considerar a existência de barreiras e
obstáculos. No que a esta matéria diz respeito, e de acordo com estudos realizados pela
sociologia do direito, identificam-se três tipos de obstáculos ao acesso efetivo à justiça por
parte das classes mais desfavorecidas: económicos, sociais e culturais (Santos et al., 1996:
486). Ou seja, custos económicos que compreendem preparos e custas judiciais,
honorários de advogados, gastos de transportes, custos resultantes da morosidade, custos
resultantes da prova testemunhal e faltas ao trabalho, distância em relação à
administração da justiça, desconhecimento dos direitos que estão em relação direta com
o status socioeconómico do sistema judicial, desconfiança e resignação por parte dos
30
Ainda a este propósito, mas num outro registo, é possível assinalar que as estratégias
desenvolvidas pelas profissões jurídicas face ao mercado da consulta jurídica revelam que o acesso ao
mobilizadores que podem estar dependentes de anteriores experiências negativas com a
justiça, medo de represálias se se recorrer aos tribunais (idem).
Em suma, as análises sociojurídicas revelam que a discriminação social no acesso à
justiça é um fenómeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que,
para além das condicionantes económicas, sempre mais óbvias, envolve condicionantes
sociais e culturais, resultantes de processos de socialização e de interiorização de valores
dominantes muito difíceis de transformar. 37
3. Da juridificação e da judicialização
direito e à justiça não representam somente uma questão democrática, mas também financeira (cf. Faget,
1997).
relações de interpenetração entre sociedade, Estado e direito, nos termos acima
invocadas, colocam as questões base de saber: como as normas jurídicas adquirem
juridicidade, ou seja, como se tornam historicamente vigentes como normas jurídicas,
como direito – fenómeno da positivização do direito; qual o processo causal que conduziu
à formação dos diferentes tipos de direito – teoria do pluralismo das diferentes fontes de
direito31; qual o papel do Estado na determinação das zonas de fronteira entre direito e o
social, isto é, qual é o grau de interferência do direito na sociedade determinado 38
politicamente – questão da força do direito na regulação jurídica das relações sociais. A
investigação sociojurídica tem acorrido a estas matérias com os conceitos de juridificação
ou juridicização (que são aqui utilizados de forma indiferenciada) e de judicialização ou
judiciarização (que são aqui utilizados de forma indiferenciada), este último enquanto
manifestação específica da juridificação, que requerem algum esclarecimento quanto aos
seus conteúdos e geografia de origem.
Como ponto de partida, deve ter-se presente que a noção juridificação entendida
grosso modo como expansão do direito a áreas e relações sociais que não eram sujeitas a
regulação jurídica, é um fenómeno histórico que adquire contornos particulares com a
sociedade moderna. Como adiante se verificará pela análise dos trabalhos seminais de
Jürgen Habermas, Boaventura de Sousa Santos e de Jacques Commaille e Laurence
Dumoulin, são três as dimensões caracterizadoras dos processos de juridificação na
modernidade: a reconfiguração da relação entre estado e sociedade civil sob as condições
de emegência do Estado liberal, a qual adquire especial forma com a afirmação do
Estado-providência e a emergência do designado “direito regulatório”32; as consequências
31
A questão das fontes do direito estudada pela Teoria do Direito é um bom exemplo de
confluência entre diferentes formas de saber acerca da relação direito/sociedade. Desde logo porque a
teoria do direito reconhece que esta é uma matéria que ultrapassa o sistema jurídico por escapar à sua
“capacidade reguladora” convocando a ideia da teoria pluralista das fontes de direito. Por esta via se
permite a sua combinação com as discussões sociojurídicas associadas aos novos entendimentos
policêntricos do direito, aos modos de produção do direito e muito particularmente com a problemática da
juridificação. A este respeito consultar Arnaud e Dulce (1996: 315), Machado (1983: 154-171) e Neves (1984:
1511-1578).
32
A expressão direito regulatório para identificar a normatividade específica do estado social é
utilizada por Gunter Teubner (1987: 18-19) e encontra-se proxima da designada função promocional do
direito.Consiste básicamente num tipo de direito apostado em induzir comportamentos ou orientar
condutas para atingir determinados fins no quadro da atividade política do estado social.
resultantes da crescente interferência do direito nas relações sociais, autonomia
individual que corresponde, para aplicar o raciocínio de Jürgen Habermas, à crescente
colonização do “mundo da vida” pelo direito; e, finalmente, a crescente interpenetração
entre a justiça e as dinâmicas sociais e políticas expressa nas diferentes formas de
interferência e de mobilização dos tribunais na vida social, segundo as fórmulas do
ativismo judicial e da judicialização da política.
Segundo André-Jean Arnaud e Maria José Fariñas Dulce (1996: 211), a noção 39
juridicidade utizada na Europa Continental revela revela um caráter mais abstrato quando
contrastada com a expressão juridificação, utilizada pelos autores de língua inglesa. Estes
últimos, de uma forma pragmática, identificam os casos em que o direito vacila perante a
regulação social e vice-versa. Assim, a expressão juridificação de uma área social e o seu
antónimo desjuridificação, de uma área social referem-se aos processos através dos quais
a criação ou aplicação de normas adquire forma num sistema jurídico e, também, à
extensão do direito a um número crescente de setores e relações da vida económica e
social. Com a expressão judicialização sublinha-se a importância dos tribunais nas relações
sociais, assinalando as situações em que o direito de um Estado cria condições, ou a
contrário as desincentiva – desjudicializa -, para que um assunto possa ser levado a
tribunal. Uma nota ainda, para referir que a expressão desjudicialização remete
igualmente para o modo como assuntos que competem às instituições judiciais possam vir
a ser intervencionadas por instituições parajudiciais, ou mesmo privadas, como sucede,
por exemplo, com as formas alternativas de resolução de litígios (cf. Arnaud e Dulce, 1996:
212).
De acordo com o Dictionnaire encyclopédique de théorie et sociologie du droit
(1993: 319-320), juridicização corresponde a um processo relacionado com modos de
criação e aplicação de regras, ou modos de resolução de conflitos semelhantes aos
processos que têm lugar no interior do sistema jurídico. É ainda “extensão do direito e dos
processos jurídicos a um número crescente de domínios da vida económica e social”. No
mesmo sentido, para Mathieu Deflem (2008: 158)
“a juridificação refere-se ao aumento da lei formal através de uma
expansão da regulação legal de esferas anteriormente reguladas
de modo informal ou através de uma densificação da lei na
regulação de ações sociais de forma mais detalhada”.
33
Utilizo a tradução do capítulo realizada por Pierre Guibentif e publicada na revista Sociologia
Problemas e Práticas nº2, 1987 (185-204). Na versão inglesa do livro publicada em 1987, consultar o
segundo volume (Habermas, 1987a: 356-373).
34
De acordo com Habermas (1987: 186), a noção de juridicização foi introduzida durante a
República de Weimar por Otto Kirchheimer, tomando o exemplo da institucionalização do conflito de classes
por via do direito tarifário e do trabalho correspondendo, genericamente, à “canalização de diferendos
sociais e de lutas políticas em formas jurídicas”.
35
Em 1987, Gunter Teubner organiza o livro, Juridification of Social Spheres: A comparative
analysis in the areas of labor, corporate, antitrust and social welfare law, onde os temas da juridificação na
sua relação com o Estado-providência são abordados de uma forma promenorizada. No seu contributo
intitulado “Juridificação, Conceitos, Aspetos, Limites e Soluções”, recorre ao estudo de Habermas aqui
analisado, bem como ao trabalho “Law as Mediun and Law as Institutions”, publicado no livro também por
ele organizado em 1985 e republicado em 1988, Dilemmas of Law in the Welfare State. De referir que, no
entanto, Teubner se encontra associado à escola do direito autorreferencial de Luhmann. Teubner (1988:
309) identificou três grandes limitações da regulação jurídica atual, sob a designação de “trilema
regulatório”. O trilema regulatório baseia-se na premissa de que os três subsistemas - a política, o direito e a
vida social - são autónomos, são autorreferenciais e, por isso mesmo, não podem exercer influência uns
sobre os outros, exceto quando os limites autorreferenciais impostos são alienados pelo sistema autónomo.
E quando estes limites são excedidos pelo sistema legal, a crise de juridificação acontece. A primeira, na
expressão de Habermas, é a do direito “colonizar a Sociedade”, submetendo histórias de vida e formas de
viver concretas, e contextualizadas, a uma burocratização abstrata, subjacente à regulação jurídica, a qual
destrói a dinâmica orgânica das diferentes esferas sociais. O Estado-Providência promoveu a
instrumentalização política do direito até aos seus limites. Esta “sobrejuridicização da sociedade”, ao
submeter situações concretas a um direito abstrato, visava a integração social, mas acabou por criar
desintegração social. A segunda limitação revela-se como “materialização do direito”: o reverso da
sobrejuridicização da sociedade é a sobressocialização do direito. O direito fica prisioneiro da política ou dos
subsistemas regulados, "politizando-se", “economizando-se” ou “pedagogizando-se”, acabando por
submeter a uma tensão excessiva, a autoprodução dos seus elementos normativos (Teubner, 1988:311). A
terceira, resulta das referidas disfunções redundarem em ineficácia do direito. A discrepância da
autoprodução interna do direito, com a das outras esferas sociais que regula, torna a regulamentação
jurídica ineficaz ou contraproducente (cf. Santos, 2000; Guibentif, 1992; Pedroso, 2013). Santos (2000:
um processo de juridicização marcada por quatro vagas. A primeira, a do desenvolvimento
do capitalismo que abre espaço à afirmação do direito civil e estabelece um sistema de
direitos e obrigações aplicável a pessoas privadas, envolvidas em relações contratuais.
Esta regulação, através do direito civil, garante a liberdade no mercado, embora o direito
público e o poder político permaneçam nas “mãos do soberano”. É o momento de
afirmação do Estado burguês. Este surto de juridicização dá lugar à sociedade burguesa e
à esfera da experiência burguesa, emancipada pelo direito privado e pela autoridade legal, 42
decompondo os vestígios dos estatutos e dos direitos corporativos.
A segunda, a dos direitos individuais, que garante a não interferência por parte do
poder político e do soberano, corresponde ao desenvolvimento dos Estados
constitucionais e às suas garantias. É o momento do Estado de direito burguês. Este
segundo surto de juridicização assenta na regulamentação pelo direito constitucional de
uma autoridade até agora limitada e ligada apenas pela forma legal e pelos meios
burocráticos de exercício da dominação. Agora, os cidadãos recebem direitos subjetivos
públicos, invocáveis contra o soberano sem que, contudo, participem democraticamente
na formação da vontade deste soberano. Como refere Habermas (1987: 189)
“este processo pode ser considerado como um primeiro passo na
direção de um estado moderno que se legitima pelo seu próprio
direito, que se legitima na base de uma esfera de experiência
moderna”.
147-148) recusa que a solução para a crise do direito seja a conceção do direito como um sistema
autopoiético, por não dar o devido relevo à relação entre a evolução da sociedade e a evolução do direito.
Por outro lado, para o autor, a discussão sobre a processualização e a reflexividade do direito é uma falsa
questão, por assentar na conceção de autonomia do direito no Estado liberal, que segundo ele, é uma
conceção mistificatória. A crise não ocorreu no direito, mas sim nas áreas sociais que regula. Trata-se,
portanto, da crise de uma política – o Estado-Providência – e não da crise da forma jurídica – o direito
autónomo. O direito moderno, enquanto conceito muito mais amplo do que o direito estatal moderno, está
em crise, não devido à sobreutilização que o Estado fez do direito moderno, mas devido à redução histórica
desenvolvido nas doutrinas do direito natural. Como refere o autor “democratiza-se o
poder de Estado constitucionalizado” (Habermas: 1987: 190), através da juridicização do
processo de legitimação sob a forma de direito de voto igual e generalizado, e da
liberdade organizativa para associações e partidos.
Finalmente, a quarta vaga surge com o desenvolvimento do Estado-Providência,
dos direitos sociais e às suas reivindicações contra o sistema económico, afirmando-se a
democracia e o estado de bem-estar contra a lógica do mercado livre. O desenvolvimento 43
que leva ao Estado de direito social e democrático pode ser entendido como a
constitucionalização de uma relação de forças implicadas nas estruturas de classes, de que
se pode dar como exemplo a legislação laboral, a segurança social etc (Habermas, 1987:
196). As três últimas vagas de juridicização, de acordo com Habermas, correspondem à
teorização do mundo da vida e a sua contraposição às influências do estado e do
mercado. De acordo com Mathieu Deflem (2008), estas vagas correspondem à tentativa
de proteger a liberdade política, a igualdade política e a igualdade económica.
A análise de Habermas do processo de juridificação é indissociável da sua definição
de direito e não pode percecionar-se de uma forma desvinculada da sua teoria social e
dos entendimentos normativos que advoga. 36 Permite esclarecer o seu entendimento de
direito na medida em que se sente a tensão entre a lógica de funcionamento dos sistemas
e as dinâmicas da interação social 37. Neste sentido, Habermas utiliza um conceito dual de
da sua autonomia e da sua eficácia à autonorma e à eficácia do Estado. Os limites da regulação jurídica,
nomeadamente a eficácia, são problemas politicamente determinados (Santos, 2000: 151).
36
Herdeiro da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Habermas é autor de uma vasta obra
insuscetível de aqui ser analisada. Destaca-se, no entanto, o seu trabalho Teoria da Ação Comunicativa que
inclui o capítulo que aqui se analisa, como uma obra maior na qual, grosso modo, se pode afirmar que
Habermas desenvolve a sua microssociologia no primeiro volume, dedicando o segundo à sua abordagem
macrossociológica (Turner, 1991: 270; Ritzer, 1996). Centra-se nos debates da teoria sociológica com base
em dicotomias como ação-teoria, ação comunicativa e mundo da vida, por um lado, e teoria dos sistemas,
ação estratégica e sistema, por outro (Banakar e Travers, 2013: 57). Tomando como ponto de partida esta
obra deve referenciar-se que, em última análise, o elemento explicativo da ordem social reside na
linguagem e na comunicação linguística, possibilitadora da construção de uma base ético-discursiva e das
racionalidades da ação humana. Dela também decorre a sua perspetiva da ação comunitativa e a natureza
dual das sociedades modernas, entendidas em termos de mundo da vida e de sistemas, os quais são
analisados através da fusão teórica entre as abordagens interacionistas e das teorias dos sistemas.
37
Oportuna é a referência à discordância entre Habermas e Luhmann a propósito da relação entre
a moral e o direito. Para Habermas, as normas da moral e do direito são importantes pois constituem
referências estabelecidas, admitidas e reconhecidas a partir das quais é possível um acordo. Já a tese de
direito assente na distinção: direito como meio; e direito instituição ligado ao mundo da
vida. No primeiro caso, o direito está relacionado com os sistemas sociais, funcionando
como meio de organização dos mesmos. É um direito instrumentalizado visando a
organização dos sistemas sociais, como é o caso das normas de direito civil, direito
empresarial, direito económico, etc. No segundo caso, o do direito ligado ao mundo da
vida, enquanto instituição, está ligado a uma estrutura mais complexa que combina
procedimento formal e legitimidade material para a formação das normas jurídicas, 44
designado por Habermas como institucionalização do direito. Nesta perspetiva, os
princípios materiais refletem uma determinada “moralização” por parte do Direito – como
o direito constitucional, direito penal, etc. – de forma a encontrar, no campo da moral,
uma fundamentação legitimadora (Habermas: 1987: 516). Assim, enquanto o direito como
meio teria o papel de organizar e constituir controladamente o Estado e a Economia, o
Direito como instituição, associado a questões de conteúdo moral, não teria qualquer
papel constitutivo, mas tão-somente regulador. O direito no mundo vida expandiu-se na
modernidade através do processo de juridicização, entendido por Habermas como uma
colonização indesejável do mundo da vida pelo direito, enquanto mediador que deu
origem a uma crise de legitimação (Banakar e Travers, 2013: 57). 38
39
Os autores assinalam também que a noção de judicialização abarca igualmente o
desenvolvimento de procedimentos de tipo judiciário em fóruns não judiciários de tomada de posição e de
negociação, como é o caso de administrações nacionais ou internacionais como o GATT (Commaille e
Dumoulin, 2009: 67). Neste contexto o uso do termo ganharia um sentido mimético, a nível institucional que
explicaria que os métodos judiciários seriam importados e adaptados noutros setores. A forma do processo
regulado por um terço imparcial, o princípio do contraditório, a possibilidade de fazer apelo, a obrigação de
motivar toda e qualquer decisão, seriam disposições emprestadas ao modelo judiciário que se difundiriam
por outras administrações, nomeadamente pela circulação de atores entre estes diferentes espaços.
Tratar-se-ia, então, de uma judicialização do interior (from within), por oposição à precedente qualificada
como judicialização do exterior (from without). Esta forma de judicialização marcada por recurso a
procedimentos parajudiciários provocaria um acréscimo de processualização no que respeita à criação das
políticas públicas americanas, o que é denunciado em reflexões de natureza doutrinal (idem: 67-68). A
importância atribuída à justiça "restauradora" em situações como as de violência do apharteid na África do
Sul, da ditadura chilena ou de ditaduras noutros países da América latina, representa uma outra forma de
expressão do fenómeno da judiciarização, de modo mais geral, a multiplicação de jurisdições
supranacionais, de acordo com Hirschl, Sugarman e Lefranc (apud Commaille e Dumoulin, 2009: 68). Deste
modo, e genericamente, a judiciarização seria uma das manifestações de "globalização judiciária",
concomitante das "globalizações jurídicas" e económicas, segundo Slaughter (idem).
relações entre comunidades diferentes no seio de uma mesma sociedade. Ou seja,
trata-se da intervenção do judiciário em domínios que anteriormente provinham da
competência da política. Este facto conduzirá, por vezes, à possibilidade de se falar de um
"governo dos juízes" (Commaille, 2016: 84). Estas diferentes expressões da judicialização
têm um significado muito mais geral do que o das simples transformações do direito e dos
seus procedimentos, revelando uma mudança no regime de regulação social e política das
sociedades contemporâneas. Neste sentido, o direito torna-se um objeto privilegiado de 54
conhecimento do social e do político, na medida em que opera como revelador e
indicador sociológico, numa perspetiva que é herdada dos clássicos da sociologia (idem:
85).
Para a teoria social, a noção de função ou de análise funcional, convoca uma ampla
discussão. Em regra, destacam-se as limitações decorrentes do postulado do
funcionalismo universal, o caráter conservador do pensamento político que lhe está
subjacente, o privilegiar da estabilidade ignorando os temas do conflito e da mudança
social, e o caráter abstrato e formal da sua análise da realidade social. Com as
especificidades de escolas e autores que lhe são reconhecidas, a tradição do
funcionalismo do precursor Auguste Comte, passando pelos clássicos Herbert Spencer e
Émile Durkheim, pela antropologia funcionalista de Radcliffe Brown e Bronislaw
Malinowski, até ao contemporâneo Talcott Parsons a ele se associando os
desenvolvimentos mais recentes de Niklas Luhmann e dos neofuncionalistas, encontra-se
toda uma tradição teórica marcada pelos elementos anteriormente referidos. A mesma
conviveu a par e passo com os seus críticos, quer estes se situem dentro da teorização
funcionalista, como sucede com Robert Merton e Lewis Coser, ou externamente, como
acontece com Wright Mills e Ralf Dahrendorf, as sociologias críticas e interacionistas, a
etnometodologia etc.. 40
40
Para uma análise detalhada do paradigma funcionalista e das críticas endereçadas ao mesmo, de
entre extensa bibliografia sugiro a consulta de Jonathan Turner (1991) e George Ritzer (1992).
41
Acerca da relação entre sentido e funções do direito consultar: Baptista Machado (1985:32,33);
Manuel Atienza (2014); Castanheira Neves (2011); José Manuel Aroso Linhares (2013).
Assim, como poderá a sociologia do direito ultrapassar as críticas apontadas à
noção de função – universalista, determinista, etc – utilizando-a proveitosamente nas suas
investigações? Pode acompanhar-se Norberto Bobbio que, como assinalam André-Jean
Arnaud e Maria José Farinas Dulce, “explicou com grande clareza” como pode a sociologia
do direito utilizar a noção de função e de análise funcional sem se sujeitar às críticas que
lhe são endereçadas. Segundo Bobbio (apud Arnaud e Dulce, 1996: 128)
“a análise funcional de uma instituição(…)pode perfeitamente 56
prescindir dessa espécie de filosofia social que é o funcionalismo
e(…)não é em absoluto incompatível com uma análise crítica da
instituição assente(…)na maior ou menor utilidade social da função
que essa instituição cumpre”.
Acrescenta, que
42
António Hespanha na obra o Caleidoscópio do Direito – o direito e a justiça nos dias e no mundo
de hoje (2007) desenvolve entre as páginas 135 a 251 uma estimulante análise das funções sociais do
direito.
43
Pode consultar-se com proveito e, no que diz especificamente respeito às funções
desempenhadas pelos tribunais, o trabalho de Boaventura de Sousa Santos et al., (1996: 51-56) que
Função de integração social
A primeira função que se reconhece ao direito é a de integração social ou de
controlo social, atribuída aos autores funcionalistas, em particular a Parsons e
Bredemeiner. A designação desta função implica partir do pressuposto básico da teoria
funcionalista assente no equilíbrio do sistema social (ordem e paz social). O direito
contribui para atingir este equilíbrio controlando, integrando ou diluindo os conflitos
sociais e os desequilíbrios. Deste modo, a função do direito é a de se constituir no meio 58
mais eficaz para integrar, regular e determinar as condutas sociais. No caso de Parsons e
outros autores funcionalistas, o controlo social exercido pelo direito tem um sentido mais
restrito dado que está direcionado para corrigir as designadas “condutas desviantes”. A
questão centra-se, pois, em definir o que se entende por conduta desviante e como o
direito atua sobre a mesma.
No entender dos autores, de um modo geral, podem assinalar-se duas grandes
formas de explicar o comportamento desviante ambas identificam a origem deste tipo de
comportamento na sociedade e não no indivíduo (Arnaud e Dulce, 1996: 130). A primeira
está ligada à conceção funcionalista da sociedade e inspira-se na teoria da anomia de
Durkheim que explica o desvio social como uma violação do bem conjuntural (Parsons) ou
estrutural (Merton) da norma, ou das formas de conduta esperadas. O controlo social
exercido pelo direito é um tipo de controlo coercivo e à posteriori, mediante o qual é
possível reafirmar os valores protegidos pelo sistema, os mesmos que mantêm a coesão e
a ordem social (Arnaud e Dulce: 130-131). A segunda forma de explicar os
comportamentos desviantes, baseia-se na conceção de desvio como o resultado de um
processo social de discriminação ou estigmatização social. Nestas teorias, o desvio é
resposta ao controlo social, sendo precisamente este último que gera ex ante e aponta a
priori um comportamento caracterizado como desviante (Arnaud e Dulce, 1996: 132;
Becker, 1963). Em suma, seja qual for a postura adotada para explicar a origem dos
comportamentos desviantes, o certo é que o direito, ao ser considerado um mecanismo
identifica três principais funções desempenhadas por estes: funções instrumentais, funções políticas e
funções simbólicas.
de controlo social, cumpre uma função de integração dos conflitos sociais e,
consequentemente, também de manutenção da ordem e coesão sociais (idem).
44
O autor desenvolve a sua reflexão admitindo que a defesa do valor da segurança como
pressuposto e função do direito e do Estado, desempenha um lugar importante na tradição contratualista.
quais buscam no direito a justificação, legitimação, aceitação e o consenso em torno das
mesmas. No entanto, a função de legitimação do poder social pode ser interpretada de
modo mais amplo, isto é, no sentido de que qualquer pessoa que pode ter capacidade de
decisão, num determinado momento, recorre ao direito em busca de aceitação,
legitimidade e consenso para as suas ações. Neste sentido, podem invocar-se diferentes
sistemas normativos e um deles é, naturalmente, o direito (Arnaud e Dulce, 1996:
136-137). 63
Na sua análise da função de legitimação do poder, isto é, do poder entendido
como capacidade de decisão, Vinzenzo Ferrari considera que significa que todos os
sujeitos que disponham de capacidade de decisão ou, que desejam ampliá-la, podem fazer
uso do direito para alcançar o consenso sobre as decisões que pretendem tomar. Em
suma, a expressão não é entendida com referência exclusiva aos que governam e aos que
detêm o maior poder político e formal (Ferrari, 1989: 116). O direito, nesta perspetiva,
assume a posição de elemento que legitima como legitimans e não legitimandum, mesmo
que estas duas posições se misturem facilmente. Contudo, o direito cumpre melhor a sua
função legitimadora quando percebido como legítimo. No âmbito da sociologia do direito
interessa sobretudo o uso que se faz do direito na função do poder, entendido aqui como
variável independente do direito. O conceito de legitimação é também mais amplo e
compreensivo, apresentando a vantagem de compreender de forma única toda a
modalidade de utilização do direito com base nas decisões humanas, incluindo os casos
mais extremos em que os símbolos jurídicos são formulados dependendo da sua função
de legitimação (idem).
45
A propósito da relação entre direito e segurança jurídica pode consultar-se com proveito
económicas etc, quer na função distributiva orientada para a repartição de bens
económicos e oportunidades sociais. Estas funções surgiram no final da década de 1960
estando associadas ao auge do Estado social e do bem-estar (Arnaud e Dulce, 1996:
137-138). A função promocional do direito está diretamente ligada à de regulação dos
comportamentos, já que estes podem ser orientados e regulados de duas maneiras
diferentes: reprimindo os comportamentos socias não desejados e impedindo
coercivamente a sua realização; ou promovendo os comportamentos socialmente 64
desejáveis, incitando a sua realização. Na perspetiva dos autores, na realidade, mais que
uma função em si mesma, estaremos perante uma técnica de regulação de
comportamentos e realização de objetivos. A função promocional representaria, então,
um tipo de técnica de controlo social utilizada pelo Estado Social ao usar técnicas de
“encorajamento”. Tal dá lugar a um tipo de controlo social ativo e preventivo, mediante o
qual se tenta favorecer a realização de comportamentos socialmente vantajosos que
aspiram conseguir maiores níveis de igualdade e solidariedade entre os constituintes de
um grupo social (Arnaud e Dulce, 1996: 138).
Contudo, de acordo com os autores, poderá não se estar perante uma “nova”
função do direito, já que dadas as suas características de orientação e controlo social
apresenta similitude com as técnicas repressivas próprias do direito moderno e do Estado
liberal. Tal reforça a tese de que se está simplesmente perante uma técnica diferente
mediante a qual também se regulam os comportamentos sociais, e também que não
existe uma vinculação intrínseca entre Estado social e a função promocional do direito. O
facto de, num determinado momento, o Estado se estruturar como Estado social, levou ao
surgimento de novas técnicas jurídicas, mediante as quais o Estado pudesse satisfazer
melhor os seus objetivos e finalidades sociais, mas não o aparecimento de funções
diferentes. Os autores sustentam que, apesar da crise do Estado social, as técnicas
promocionais são utilizadas conjuntamente com técnicas repressivas tradicionais (Arnaud
e Dulce, 1996: 138-139).
António Hespanha (2007: 172-182) e João Caupers (in Hespanha, 2007: 176-182).
4.2 As funções do direito segundo Mauricio Garcia-Villegas e François Ost
Dimensão interna 66
Encontra-se ligada à interpretação legítima dos que operacionalizam o direito, não
é estranha aos usos simbólicos do direito e, de acordo com os críticos, é um espaço
político; o político é determinado pelo direito.
Dimensão externa
Transforma o direito num instrumento claramente político e aberto aos usos
simbólicos dos textos jurídicos; o direito transforma-se num instrumento do político.
Importa sublinhar que o argumento do autor assenta no pressuposto de que a
eficácia simbólica do direito se encontra no poder da palavra e que as palavras são
indissociáveis da mobilidade do sentido. Pode, assim, afirmar-se que o direito é concebido
simultaneamente como um sistema de regulação instrumental e um sistema cultural de
significações em que
“a força do direito não reside unicamente na ameaça ou
recompensa que promete, ou simplesmente no potencial
regulador que representa para a sociedade, mas também na sua
capacidade de produzir um discurso que seja entendido como
legítimo, verdadeiro, justo, autorizado, etc.” (Garcia-Villegas, 2015:
48).
46
Convém referir que segundo Mauricio Garcia-Villegas estamos perante uma distinção analítica e
que, na prática, não é muito fácil distinguir as fronteiras entre as duas dimensões.
e organizar o real, a eficácia simbólica atinge os seus objetivos pela comunicação de
imagens de justiça, de igualdade, de segurança e outros valores encarados como
fundamentais para a vida em sociedade (idem: 49).
Maurício Garcia-Villegas associa o reconhecimento da dimensão simbólica do
direito às reflexões teóricas, sociais e políticas, identificando três modos distintos de
abordar a dimensão simbólica. Num primeiro modo, o de visão liberal, a legitimidade
decorre no Estado moderno da legalidade, ou seja, do direito que constrói o seu poder no 67
facto de transformar o uso da força num exercício legítimo de autoridade, sendo o poder
de legitimação um poder simbólico. Tal conduz a que possa falar da força inerente às
normas jurídicas como um dado indispensável para que o poder seja respeitado. O direito
transforma-se na linguagem autorizada pelo Estado e, através dela, a sua legitimidade
produz-se e reproduz-se (Garcia-Villegas, 2015: 52-53). 47
No segundo modo, do caso da visão marxista, que partilha com a visão liberal o
facto de atribuir às normas jurídicas um poder simbólico que reproduz a majestade do
poder e o seu caráter legal e justo, considerando, para além disso, que este poder é um
poder de doutrinamento que mascara a realidade através de conceitos jurídicos, de onde
decorre que como aparelho institucional o direito cria uma falsa consciência ou
consciência enganosa da realidade social (idem: 54-55). 48
47
Na conceção liberal, o poder e o direito existem num estado de simbiose, ou seja, as ações do
estado justificam-se pelas normas jurídicas e estas são eficazes quando têm o suporte do poder do Estado,
ou seja, a força simbólica ou poder legitimador do direito repousa na força material, no poder efetivo do
Estado, numa relação biunívoca. Rousseau, Locke, Weber, Hart e Habermas, entre outros, são pensadores
diversificados mas que nas suas reflexões evocam esta visão liberal e jurídica da eficácia simbólica (Villegas,
2015: 53).
48
O resultado de uma dominação política surge no discurso como natural e não construído, pelo
que deve ser respeitado. Marx e Engels, a este respeito, consideram o direito como tendo duas caras, ou
duas funções: a repressiva e a simbólica, sendo que a primeira, através da força repressiva das normas
jurídicas, oculta a segunda, sedimentada na invocação da justiça e dos valores universais. Nesta linha, o
direito, enquanto instituição social, é um instrumento da burguesia cujo objetivo é a proteção dos interesses
subjetividade e a objetividade, tal como as instituições e as realidades sociais, vivem uma
relação de influência recíproca, marcada pela comunicação e pela cultura”
(Garcia-Villegas, 2015: 58-59). Neste enquadramento, o direito é “espaço de construção
simbólica entre diferentes posições e interesses que lutam para fixar o sentido dos textos
jurídicos” (idem). Ou seja, o que está em causa é a possibilidade do direito produzir
significações nas relações sociais. 49
económicos, através da coisificação ou reificação das normas. Estas são apreendidas pelo todo social como
fazendo parte de uma ordem natural, coisas duras e sólidas (Garcia-Villegas, 2015: 54-55).
49
Como todas as teorias também esta é fruto das profundas mudanças que se fizeram sentir no
direito ao longo das últimas décadas – perda da centralidade da lei; presença dos juízes na vida política;
importância crescente do direito internacional dos direitos do Homem; a transnacionalização do direito e
dos movimentos sociais, para além de outras. Estas mudanças reforçaram os usos políticos do direito ao
mesmo tempo que nos permitem perguntar se “os direitos, interpretados e aplicados pelos juízes, poderão
produzir mudança social” (Garcia-Villegas, 2015: 59).
Fonte: Garcia-Villegas, 2015: 66-75
Nota: Esta dicotomia funcional seria coordenada por uma metacategoria - FUNÇÃO DE
COORDENAÇÃO - a que competiria uma definição de “ordem global”
Fonte: Quadro elaborado a partir de Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 169-170
Assegurar a integração social Estabelecer regras que assegurem a Sensibilidade do direito face
coexistência pacífica a contextos diferenciados e
Compatibilizar casos particulares
Propiciar a confiança
Legitimar Racionalidade jurídica
Projetar solução para a fragilidade do afastada da certeza
humano
Discussão; reflexão
BALANÇA ESPADA VENDA
ALEGORIAS
Fonte: Quadro elaborado a partir de Dhaem, Van der Noot e Xhardez, 2014: 170-172 73
50
A sociologia política e do direito têm uma longa tradição de análise do fenómeno da legitimidade
e da legalidade, o qual reenvia, como se mencionou, para a questão da aceitação ou da recusa social das
decisões de poder e de comando. Deste modo, estão em causa os mecanismos que envolvem o poder e os
valores que possuem uma legitimidade que torna aceitável o poder para os indivíduos e para os grupos. De
uma forma sinóptica, pode referir-se que, para Parsons, a legitimação é um processo de mediação entre os
valores e a ação social, distinção que será retomada mais tarde por Habermas, para quem a legitimação é a
resposta social às exigências que garantem a integração social.
É conhecido o entendimento formalista e positivista sustentado por Hans Kelsen
para quem o tema da legitimidade se restringe à mera consequência da ordem jurídica
posta. 51 Para Kelsen
“a legitimidade «está intimamaente ligada ao princípio da eficácia.
Para ele, a validade da nova ordem jurídica (…) está em sua
eficácia, ou seja, em termos estritamente jurídicos, a norma
jurídico, para ser válida, deve produzir efeitos (…) a eficácia de uma
ordem jurídica é apenas uma das condições de sua validade, e não
o seu fundamento (…). O fundamento último de validade de uma 76
ordem jurídica (…) segundo Kelsen, reside na norma fundamental
pressuposta»” (Faria apud Wolkmer, 1994: 182).
51
Outra problemática emerge da relação entre a legitimidade e o processo eleitoral. A
dessacralização da função eleitoral enquanto fonte de legitimação esteve sempre presente nas
contraposições entre o grau de consenso político capaz de assegurar a obediência sem necessidade de
recorrer ao uso da força (a não ser em casos esporádicos) e a contestação da legitimidade por diferentes
forças sociais, como as da oposição aceitando “as regras do jogo”, por um lado, e as diferentes
manifestações dirigidas contra a ordem instituída, desde os movimentos revolucionários até às atuais
revoltas dos indignados e de outros movimentos de contestação social, como o sindical, por outro.
critério externo aos próprios governantes, ou seja, o
reconhecimento e assentimento dos governados".
Como tive oportunidade de refletir noutro lugar (Ferreira, 2014: 250-251), Max
Weber é um clássico da sociologia cuja obra permanece central para a interpretação das
complexas relações existentes entre poder, legitimidade e legalidade. Weber, ao definir o
poder como “a possibilidade de impor a vontade sobre o comportamento dos outros”,
considerou que este estará presente na maioria, senão em todas as relações sociais
(Weber apud Bendix, 1986: 232). O autor identifica a existência de dois tipos
contrastantes de poder que se revelam de especial interesse para as ciências sociais: “o
poder originário de uma constelação de interesses que se desenvolve em mercado
formalmente livre e o poder originário da autoridade estabelecida que atribui o direito de
mandar e o dever de obedecer” (Weber apud Bendix, 1986: 232). É neste último sentido
que Max Weber utiliza o termo “dominação” como sinónimo de “poder autoritário de
comando”. No caso do primeiro, o poder é definido como “fáctico” e a subordinação
resulta da submissão livre do indivíduo a esse poder. No segundo caso, o do “poder
autoritário de comando”, ocorre a necessidade da justificação do seu exercício através de
processos de legitimação (Weber apud Bendix, 1986: 232).
Ainda de acordo com Max Weber, a vontade manifesta (comando) do governante
ou governantes pretende influenciar a conduta de uma ou mais pessoas (governados) e
realmente influencia-a de tal modo que a sua conduta, a um grau socialmente relevante,
ocorre como se o governado tivesse feito do conteúdo da ordem a máxima a sua conduta
(Weber apud Bendix, 1986: 232).
Os temas da dominação, do poder e da legitimidade podem ser decompostos em 5
elementos analíticos: 1) um indivíduo que governe ou um grupo de governantes; 2) um 79
indivíduo ou um grupo que seja governado; 3) a vontade dos governantes de influenciar a
conduta dos governados e a expressão dessa vontade (ou um comando); 4) prova de
influência dos governantes, em termos do grau objetivo de obediência ao comando; 5)
prova direta ou indireta dessa influência, em termos da aceitação subjetiva com que os
governados obedecem ao comando (Bendix, 1986: 233).
A Weber fica ainda a dever-se a identificação da dimensão subjetiva da
legitimidade ao articular esta com uma conceção de poder que se acredita ser legítimo
(Ferreira, 2014: 251). As ordens legítimas podem ser classificadas de acordo com as
motivações dos que obedecem, distinguindo-se três princípios de dominação por forma a
justificar o poder do comando: a dominação legal-racional, a dominação tradicional e a
dominação carismática. Weber clarifica ainda o que pode ser considerada uma “ordem
legítima” ao distinguir a mesma da sua validade. Uma ordem tornar-se-á mais válida
quanto maior for a probabilidade da ação que orienta estar assente na crença da sua
legitimidade.
Em suma, de acordo com a leitura que aqui se faz de Max Weber podem
identificar-se duas dimensões constitutivas da noção de legitimidade: ultrapassa o
reconhecimento da coação como condição básica do conceito de poder “na medida em
que busca nas relações entre as condutas sociais e os valores de uma determinada
conexão que traduza as justificativas internas que levam os governados a aceitar os
comandos e as obrigações [políticas e] jurídicas impostas pelos governantes” (Faria, 1978:
39); e considera a legitimidade como uma crença subjetiva partilhada, em torno da qual os
indivíduos acreditam subjetivamente que as perceções das várias expectativas de acordo
com um comportamento aceitável são elas próprias racionais, tradicionais ou habituais
(Sciulli, 1992: 31).
Num plano muito geral, a questão é analisada por alguns cientistas políticos como
reflexo de uma teoria “dominante do poder” e sua valorização no que se refere à 80
autoridade, dominação, soberania e obediência.
Elias Diaz (1978), numa síntese que combina diferentes tipos de análise,
desenvolve uma abordagem partindo do pressuposto de que o sistema de legalidade se
realiza sempre a partir de uma determinada conceção do mundo, de um determinado
sistema de valores ou sistema de legitimidade. Daí que se possa conceber que existam
legitimidades mais democráticas ou menos democráticas, mais libertadoras ou mais
opressoras, mais propensas a salvaguardar desenvolvimento humano e de valores como a
dignidade, liberdade, igualdade etc.
Deste modo, propõe um roteiro de organização dos estudos, versando a
legitimidade e a legalidade, diferenciado entre três níveis ou setores (cf. quadro 8). O
primeiro, o da ciência do direito que tem como zona central de trabalho o direito válido. É
o nível de análise da legitimidade legalizada assente na análise da interpretação e
aplicação do sistema normativo vigente e, por outro lado, na descrição e explicitação do
sistema de legitimidade incorporado nesse sistema de legalidade.
O segundo, o da sociologia do direito que tem como elemento central de trabalho
o direito eficaz. É o nível de análise da legitimidade eficaz. Investiga a eficácia social do
direito, bem como, a constatação dos sistemas de legitimidade criados ou aceites por uma
coletividade ou por diferentes grupos ou classes da mesma.
Finalmente, o da filosofia do direito, a qual tem como zona central de trabalho o
direito justo. É o nível de análise da legimitidade justa ou crítica. Trata-se de investigar os
critéirio de determinação e de justificação do direito fazendo simultaneamente a crítica
quer do direito válido, quer do direito eficaz, bem como, da legitimidade legalizada e da
legitimidade eficaz (Diaz, 1978: 20-21).
52 Como referi noutro lugar (Ferreira, 2016: 256), o autor considera a experiência empírica
democrática de modo a explorar as tensões entre o princípio da autonomia de indivíduos e a possibilidade
do seu constrangimento. Partindo de um entendimento liberal de autonomia, trata-se de observar as
relações de poder existentes para compreender as condições fundamentais para a participação política e,
assim, identificar formas de legitimação que se lhe encontram associadas. Held fala num mecanismo
analítico que ajuda a identificar modos de aceitação ou conformidade em relação aos acordos políticos e
seus resultados. De acordo com o autor, trata-se de uma experiência acerca do pensamento democrático
que tem como objetivo evidenciar as condições de uma autonomia ideal, ou seja, as condições, os direitos e
deveres que as pessoas aceitariam como necessários para que o seu status correspondesse à afirmação de
membros igualmente livres na sua comunidade política. É uma investigação que parte do abstrato para
dem política legítima e atribua ao tipo 5 um estatuto ambíguo53, no quadro do que aqui se
pode definir como “normalidade democrática” e Estado social de direito, nas atuais
condições de excecionalidade político-jurídica, admite-se que qualquer um dos tipos se
encontra num continuum de legitimidade do Estado democrático de exceção.
82
1 2 3 4 5 6 7
relações de poder existentes, de modo a revelar as condições capacitantes fundamentais para uma
participação política e, por isso, para a legitimação de regra (Held, 1995: 160-161).
53 Segundo David Held, só os tipos 6 e 7 da escala são legítimos, dado que a legitimidade implica
que as pessoas sigam as regras e as leis por as considerarem acertadas, corretas e justificadas (Held, 1989:
102).
conformar-se com certas circunstâncias políticas dado não haver qualquer outra
alternativa. No que se refere à “tradição”, trata-se de agir como sempre se agiu,
concordando e submetendo-se às circunstâncias. A “apatia”, por seu turno, expressa
indiferença ou despreocupação quanto às decisões políticas e, na mesma linha, a
“aquiescência pragmática” aplica-se às pessoas que, embora não concordem com a
situação, não conseguem ver uma alternativa, aceitando as condições como se fosse o que
já estava destinado. O “acordo condicional” significa que, embora não estejam satisfeitas 83
com as opções políticas, decidem concordar com elas, pois daí vão retirar algum tipo de
benefício pessoal. O “acordo prático normativo” caracteriza-se por uma decisão que se
considera correta, apropriada e justa, tanto como indivíduos quanto como membros de
uma coletividade, dada a informação disponível naquele determinado momento. Por
último, o “acordo normativo ideal” assume-se como uma situação na qual são dadas todas
as informações disponíveis, e mesmo as alternativas existentes, mas se concorda com as
decisões tomadas (cf. Held, 1995: 161).
Legitimidade
Funções
Consequências
Adequação/proporcionalidade
Ética
Princípios e regras
Legalidade
Estado de Direito
Fonte: Hydén, 2008: 18
O modelo heurístico proposto pelo autor permite refletir sobre a relação entre
direito e sociedade, levando em consideração a dimensão temporal e o desenvolvimento
social. Admite-se que quanto mais estável e homogénea é ou for uma sociedade, menor
será a dificuldade em combinar as duas dimensões. Assim, quando uma sociedade ou um 88
setor específico da mesma é estável e bem conhecido, o risco do gap entre as duas
dimensões será menor. Em contrapartida, nas situações em que os aspetos normativos e
/ou cognitivos da sociedade estão sob transformação, o sistema de tomada de decisão
encontra-se sob stress, pelo que nestas situações o risco de sobreposição de uma
dimensão sobre a outra é maior (Hydén, 2008: 20).
54
A este propósito conferir Moïsi (2015). Ver também Kurasawa (2007).
sociologia das emoções55 procede à identificação da pertinência das mesmas na vida
social e na teoria sociológica. Esta perspetiva defende o entendimento das emoções quer
enquanto efeito e causa social, quer enquanto elemento explicativo e significativo para a
constituição das relações, instituições e processos sociais (Barbalet, 2001: 22-23). A
sociologia das emoções reconhece que o comportamento e as interações humanas são
constrangidos pela posição ocupada pelos indivíduos nas estruturas sociais orientadas
pela cultura (Stets e J. Turner, 2008: 32-46) e pelo sistema simbólico-cultural. As 89
singularidades das diferentes perspetivas teóricas no estudo da sociologia das emoções
reconhecem-se no modo diferenciado como combinam as emoções com a interação entre
as dimensões culturais e sociais das sociedades56.
No campo da sociologia do direito pode referir-se a abordagem de Leon Petrazycki
aos fenómenos jurídicos relacionando-os com diferentes tipos de impulsos emocionais57.
55
Na sociologia, o estudo das emoções constitui um campo de especialização, emergindo nas
teorias contemporâneas nos anos 1970 (Kemper, 1978; Heise, 1979; Hochschild, 1979). Desde então, o
estudo das emoções tornou-se num tópico de investigação interdisciplinar, dando origem a uma extensa
literatura que pode ser conferida na obra de síntese Handbook of emotions (Lewis et al., 2008).
56
A este propósito refira-se o trabalho de Randall Collins (1975), que promove um renovado
interesse sociológico pela emoção. Numa perspetiva teórica da emoção enquanto objeto merecedor de
preocupação social e objeto sociológico, destacam-se diferentes perspetivas, como as de Theodore Kemper
(1978), Harlie Hochschild (1983) e Norman Denzin (1984).
57
A perspetiva de Petrazycki parte da premissa básica que as teorias do direito precisam de ser
ancoradas sob uma visão normativa ou realista. De acordo com o autor, os fenómenos jurídicos são
“processos psíquicos”, os quais incluem as categorias de vontade ativa/manifesta, conhecimento passivo,
emoções passivas e impulsos bilaterais. Os impulsos são bilaterais porque referem-se a uma experiência
passiva de alguma coisa à qual um ímpeto responde ativamente. Os impulsos pressupõem
ação/comportamento, particularmente quando são intensos. A maior parte dos impulsos no dia a dia são
relativamente fracos e inconscientes, mas certas condições como o neutralizar um impulso e o que o
provoca, podem fortalecer os mesmos. Certos impulsos, tais como a fome e o medo conduzem a um certo
tipo de comportamento, enquanto que outros, como por exemplo uma ordem, podem produzir diferentes
tipos de comportamento dependendo do seu conteúdo (Deflem, 2008: 79). Entre estas últimas, o impulso
do dever é particularmente relevante para a sua teoria jurídica. O impulso do dever ocorre em resposta a
uma ideia de conduta que é avaliada em termos normativos. A ideia refere-se a algo considerado errado
implicando que tal não se faça, ou referindo-se a algo correto pode criar o dever de agir em concordância,
denominados de impulsos éticos formando a essência da realidade do direito (idem: 80). A explicitação de
um impulso jurídico pode ser formulada de forma clara através de um ato de legislação tal como a
promulgação de uma lei ou a decisão de um tribunal. Petrazycki refere-se ao conjunto de tais impulsos
jurídicos que são baseados em imagens do ato de legislação ao nível do estado ou outra qualquer subsecção
da sociedade, como direito positivo. Por outro lado, o direito intuitivo refere-se a impulsos jurídicos que são
entendidos como obrigatórios/vinculativos mesmo sem resultarem da imagem de um ato de legislação. As
discrepâncias entre o direito intuitivo e o direito positivo é na perspetiva do autor um dos principais
problemas associado ao direito na sociedade. As pessoas ao experienciarem o direito intuitivo como algo
muito diferente do direito positivo que é oficialmente associado a sanções, experienciam simultaneamente
Susan Bandes em 2000 organiza o livro The Passions of Law, onde diversos tipos de
emoções são associados a questões jurídicas, sendo igualmente de realçar os contributos
de Martha Nussbaum (2004) e Cass Sunstein (2005). Filiando-se neste entendimento do
direito e das emoções, o presente tópico dedicado à questão da legalidade e legitimidade,
tratado na ótica da sociologia das emoções, tem presente o duplo reconhecimento de que
as emoções se encontram em articulação com o direito, e de que as mesmas estão na
base de combinações multidimensionais com quadros institucionais e normativos. 90
Afigura-se possível, deste modo, sustentar que as emoções podem estar na base de uma
conceptualização da relação entre legalidade e legitimidade, tendo por base uma
estratégia de teorização próxima da desenvolvida por Max Weber. Sendo a legitimidade
produtora do consentimento ativo ou passivo dos que obedecem, a crença social num
modelo, regime ou programa, constitui-se na fonte da obediência consentida.
A declinação da noção de legitimidade aqui sustentada reconhece a importância da
ação emocional ou afetiva, onde as emoções se constituem em fundamento da
legitimidade58. Esta legitimidade pelas emoções está na base de um regime que visa obter
a obediência através da adesão dos governados por via da persuasão e da crença em
a ordem jurídica e a ordem social como injustas. Alguns grupos da sociedade poderão tentar transformar o
direito positivo de acordo com o sentido do direito intuitivo, enquanto que alguns grupos mais poderosos
poderão resistir a qualquer mudança no direito positivo, pelo que se a força do direito intuitivo crescer
entre os grupos mais desfavorecidos pode mesmo desencadear uma revolução. Daí que os impulsos
jurídicos sejam também uma fonte importante de mudança social. De uma forma geral, o autor adota um
quadro evolutivo de aumento de complexidade. O direito intuitivo desenvolve-se primeiramente em
sociedades simples como uma resposta psicológica ao comportamento que é tanto prejudicial como útil ao
grupo. Devido à necessidade de aumentar a uniformidade entre estes impulsos, o direito intuitivo torna-se
cada vez mais baseado em legislação, criando, assim, o direito positivo. O estabelecimento do direito
positivo, por seu turno, produz novos impulsos jurídicos que podem ser transformados ao nível intuitivo. Os
legisladores têm um papel privilegiado em procurar conduzir a mudança social em direcionando
propositadamente os impulsos. Esta função de engenharia social ou política jurídica deve ser entendida no
sentido psicológico de mudança de atitudes, sendo essencial no direito. O objetivo final da política jurídica é
a coexistência pacífica entre as pessoas, o que Petrazycki chama de “amor racional ativo”, enquanto que
outros objetivos tais como a prevenção do crime ou o crescimento económico são secundários. Por forma a
atingir estes objetivos, os legisladores deveriam ter provas científicas do impacto que as suas ações irão ter
na mente humana. Mudar a atitude das pessoas através do direito faz com que a política jurídica tenha um
importante objetivo educacional (Deflem, 2008: 81).
58
No quadro desta discussão em torno dos novos processos de legitimação associados às
emoções, pode também explorar-se a ideia de que o poder está incorporado nas relações intersubjetivas e
no mundo da vida. Deste modo, os processos de legitimação e o exercício do poder funcionam através da
lógica das relações sociais tendo por base a partilha de sentidos e de interdependências (cf. Crossley, 1996:
127-149).
qualidades sobrenaturais como sucede com o modelo de austeridade. Com efeito, no
atual contexto de crise e de austeridade, as emoções e as crenças adquirem centralidade
e conferem especificidades aos processos de legitimação vigentes. A obediência e
aceitação das decisões políticas fundadas no reconhecimento objetivo e subjetivo de
inexistência de alternativas ao “poder autoritário de comando” tem por base a crença no
caráter salvático da austeridade catalisado por duas motivações orientadoras da
obediência dos indivíduos: o ressentimento e o medo. Elas conjugam-se com a ambiva- 91
lência do exercício do poder dos governantes, caracterizada pelo uso instrumental,
manipulatório e estratégico das emoções como fator de legitimação. Pode, neste sentido,
perspetivar-se o poder como a possibilidade de impor a vontade dos governantes ao
comportamento dos governados, através da gestão das motivações e expectativas
emocionais dos indivíduos e grupos sociais, de modo a aderirem às decisões políticas.
Converge-se, assim, com a ideia de Elias Diaz de que o sistema de legalidade realiza-se
sempre a partir de uma determinada conceção do mundo, de um determinado sistema de
valores ou sistema de legitimidade estão criadas, assim, as condições, para a afirmação do
processo de positivização e de juridicidade de manifestações como a do direito de
exceção.
59
Como referi noutro lugar (Ferreira, 2014: 259), a maior parte das teorias sobre as emoções
focam a sua análise num nível micro, examinando processos de interação “face a face”, relacionados com o
poder e com o status. Contudo, os processos de interação que se desenvolvem num nível micro estão
inseridos numa macroestrutura em que o poder e os recursos não são distribuídos de forma igual. Para a
mais interessante quando explora macrossociologicamente esta questão. O argumento de
partida (cf. Ferreira, 2014: 260) é o de que embora as emoções assumam um caráter
transversal na sociedade (presentes em todos os grupos sociais), afetando de forma
diferenciada os vários grupos sociais, os processos de legitimação envolvendo o
ressentimento e o medo, assumem um maior impacto entre os grupos social e
economicamente mais vulneráveis. Daqui decorre que as emoções ligadas ao
ressentimento e ao medo, traduzem uma desigual distribuição do impacto sociológico das 94
mesmas na condução da vida social, que será tanto mais negativa quanto menores forem
os recursos e proteções a que os grupos sociais e os indivíduos tiverem acesso para se
posicionarem perante as ameaças60.
5.8.2.1 Ressentimento
construção de uma teoria estrutural das emoções, é necessário conectar as dimensões micro e macro. Todas
as categorias baseadas no género, classe ou raça, por exemplo, podem experienciar emoções semelhantes
por ocuparem o mesmo lugar no sistema de estratificação. Deste modo, são estruturalmente equivalentes,
podendo partilhar as mesmas experiências e, por isso, ter reações emocionais similares. O trabalho de
Barbalet aproxima-se desta perspetiva ao ligar os processos macroestruturais às emoções num nível micro.
Alguns autores alertam para o facto de esta perspetiva necessitar de densificação teórica e investigação
(Stets e J. Turner, 2008: 32).
60
A este propósito, vale a pena assinalar o trabalho desenvolvido pelo “Centre for the Study of Law
& Emotions”, numa perspetiva que marca a vertente de investigação empírica para a base emocional das
reivindicações dos indivíduos associadas a memórias traumáticas. Procura, ainda, realçar as articulações
sociológicas existentes entre direito e emoções. Consultar: <http://www.csel.org.uk/about_us.html>.
modo, ele é “uma apreensão emocional quanto ao afastamento dos resultados e
procedimentos aceitáveis, desejáveis, decentes e corretos” (Barbalet, 2001: 202).
Enquanto interação, o ressentimento é impulsionado pela consideração de um conjunto
de práticas, valores ou normas externamente aceites, baseando-se não tanto no
envolvimento pessoal, mas antes na visão pessoal do desajuste entre os direitos e os
resultados sociais. Importa realçar que o ressentimento se encontra associado às
discussões sobre emoções que também são fonte dos direitos e de justiça (cf. Barbalet, 95
2001: 196). 61
61
O reconhecimento sociológico concedido ao ressentimento tem representação no trabalho de
Friedrich Nietzsche. O autor considera o ressentimento como uma forma autodestrutiva que funciona como
anestésico para abrandar a dor da ofensa (cf. Nietzsche, 1976: 126-127).
62
Convém levar em consideração que clássicos da sociologia como Tarde, Le Bom, Pareto, Simmel,
Durkheim, entre outros, aceitaram a emoção como raiz dos processos sociais e das instituições.
mesma medida, a estrutura das relações sociais é importante porque determina o nível de
ressentimento de classe (cf. Barbalet, 2000: 35-56; Ferreira, 2014: 261)63.
Para a sociologia do direito, o argumento de partida deste tópico, onde associo o
processo de legitimação ao ressentimento, deve levar em consideração as condições
históricas e fatores de ignição do ressentimento, os quais podem variar contextualmente
(Ferreira, 2014: 262). Este aspeto é relevante quando se procura explorar a relação entre
ressentimento e direitos de cidadania num contexto de crise e implementação de medidas 96
desestruturadoras dos direitos de cidadania. O ressentimento é utilizado como
instrumento de legitimação no quadro de um processo de gestão política intencional,
provocado pelos governos e decisores políticos. Deste modo, o ressentimento resulta da
interpenetração entre as esferas política, jurídica e cultural/simbólica, mobilizadas na
produção e aplicação das políticas e direitos de exceção, associados à ordem social da
sociedade da austeridade.
Em trabalho prévio defendi a tese de que, a institucionalização de um padrão
normativo e de políticas públicas de crise e de exceção, produtoras de efeitos na estrutura
social, têm como resultado uma alteração de estatutos de grupos e indivíduos (Ferreira,
2014: 263). Ora é este novo padrão político-normativo produz um rearranjo no sistema de
direitos e deveres, que tende a relativizar os estatutos, posições e direitos adquiridos por
diferentes grupos sociais, induzindo processos de comparação, frustração e conflito
intergrupal (Marshall apud Barbalet, 2001: 106). A comparação tende a isolar os
interesses e a consciência de indivíduos e grupos, contribuindo para a quebra de laços de
solidariedade e para o fechamento autorreferencial dos interesses sociais. Quanto à
frustração, ela emerge do entendimento de que os privilégios de uns criam a desigualdade
de oportunidade de outros, intensificando o conflito e o ressentimento entre grupos
sociais. No que diz respeito ao conflito, está-se perante a desigual distribuição de
63
Gostaria de salientar que o alargamento do campo analítico da sociologia das emoções ocorre
quando a análise não se situa apenas no plano da experiência dos sentimentos emocionais, estendendo-se
ao contexto social de onde emergem as emoções, o qual é agora percebido como um elemento central da
própria emoção. Tal precisão deve ser mencionada porque as emoções enquanto facto social não se formam
apenas numa relação social, antes constituem uma relação social, isto é, as emoções são elas próprias
relações sociais (cf. Barbalet, 2001: 96; Ferreira, 2014: 261).
autoridade, maior ou menor, dependendo das relações de dominação-sujeição, entre
grupos.
Os processos de comparação, de frustração e de conflito associados ao
ressentimento estabelecem, ainda, as bases do que porventura será a forma mais
depurada de manipulação estratégica do ressentimento sob a forma da aplicação do
princípio de igualdade entre grupos e indivíduos. O processo de legitimação pelo
ressentimento transporta consigo a ilusão da igualdade. Importará desfazer o equívoco 97
daqui resultante, dado que esta suposta igualitarização subverte os pressupostos básicos
da construção do princípio da igualdade ao harmonizar as diferenças sociológicas inscritas
na sociedade. Trata-se de afastar o princípio da diferença e das desigualdades reais em
favor de um “consenso de ponderação de igualdade”: ricos e pobres; trabalhadores da
função pública e trabalhadores do privado; reformados e trabalhadores no ativo; idosos e
jovens; empregados e desempregados; direitos sociais dos trabalhadores e sustentabili-
dade do Estado social; etc.. 64
5.8.2.2 Medo
64
Exemplo desta dinâmica do ressentimento é-nos fornecido pelo texto de José Soeiro (2013),
tendo por referente a sociedade portuguesa significativamente intitulado “Os direitos dos mais velhos estão
a bloquear os dos mais novos?”. A sua análise assenta na centralidade da questão da “precariedade dos
jovens” utilizada como argumento que fez despontar uma retórica assente numa suposta “guerra de
gerações”. Assim, como nos diz, tratou-se de mobilizar os mais novos em favor da concorrência, da
liberdade e do mérito contra as barreiras à entrada do mercado de trabalho, bloqueado pelo imobilismo dos
direitos adquiridos que fazia ressaltar a oposição entre os jovens qualificados e dinâmicos, por um lado, e
trabalhadores velhos, instalados e protegidos face às necessidades de mobilidade do mercado de trabalho,
por outro. Em suma, o desemprego e os baixos salários da juventude seriam o preço necessário a pagar pela
proteção dos mais velhos (Soeiro, 2013: 95-96).
sociojurídico do medo que se considera que o mesmo faz parte do processo de
legitimação da relação política entre governantes e governados, facilitador da existência
quotidiana do Estado, da eficácia das leis e do exercício de poder (Mongardini, 2007:
67-70). O medo e o direito são, neste sentido, elementos interdependentes, colocados ao
serviço de regimes de governação política. O governo do medo em períodos de crise da
democracia e de transição social, converte-se num dos instrumentos mais relevantes para
a obtenção do consenso político, sobretudo quando se apagam as diferenças entre as 98
ideologias políticas e se afirma a necessidade imperiosa de impor o modelo
unidimensional de combate à crise. Em diálogo com o estudo de Carlo Mongardini
(Ferreira, 2014), sublinha-se a ideia de que governar o medo é um objetivo
essencialmente político, enquanto governar com o medo é uma das formas políticas possí-
veis, especialmente quando se verifica o risco da perda de consenso social. Daí que,
segundo o autor, se deva atender ao contributo clássico de Georg Simmel, que o inclui
entre as forças psicológicas que mantêm politicamente unidos os indivíduos e que a partir
de um ponto central dominante transformam um território geográfico num espaço
político (Mongardini, 2007: 68). O medo evidencia, ainda, características distributivas
quando diz respeito ao conjunto de indivíduos que o experimentam de uma forma
partilhada no âmbito de uma coletividade social, e características relacionais quando
remete para o medo gerado no quadro de uma relação ou de uma estrutura social
(Ferreira, 2014: 266) 65. Daí que a gestão do medo seja eminentemente uma questão de
poder e de legitimação, adquirindo uma importância crescente no espaço público e no
discurso político e jurídico (cf. Hunt, 2003). O medo, torna-se em mais um mecanismo de
sublimação das questões públicas em problemas biográficos ao interferir em contextos
65
O tema do medo tem sido estudado pela sociologia de acordo com diferentes perspetivas. Uma
boa síntese encontra-se em Frank Furedi (2007), que identifica alguns dos debates e autores relevantes para
a questão. Outros desenvolvimentos podem ser conferidos em François Ewald (1993), Bryan Massumi
(1993), Anthony Giddens (1994), David Altheid (2002), Alan Hunt (2003) e Joanna Bourke (2005). Para o
clássico Norberto Elias (1990: 195), o tema do medo constitui-se como um importante mecanismo de
articulação entre as estruturas sociais e os indivíduos, quer numa perspetiva normativa, quer numa
perspetiva construtivista, funcionando como quadro de referência para a ação, como processo de
estruturação das interações sociais e como fonte das identidades individuais e coletivas. De entre as suas
sociais marcados pelo individualismo neoliberal, onde se minimiza o peso da proteção
social e maximiza a insegurança individual (Bauman, 2006: 16). Enquanto emoção
experimentada por quem verifica que há uma coisa ameaçadora contra a qual não tem
qualquer poder (Innerarity, 2009: 176), o medo torna-se instrumental para a prossecução
dos interesses dos que procuram uma intensificação do controlo social e de uma
legitimação da desigual distribuição do poder e do bem-estar.
Enquanto fonte de legitimidade no quadro das sociedades democráticas, o medo 99
está na base da construção de um regime paradoxal de causalidade. Foi esta a tese que
defendi, e que continua válida (Ferreira, 2014). Ponto que volto a enfatizar,
argumentando que o medo, no âmbito da sociedade em crise, se afirma como um
mecanismo de tradução de um problema estrutural num desígnio individual, ou,
socorrendo-me da proposta de Margaret Somers, num mecanismo de conversão da
narrativa da crise em modelo político-jurídico dominante, assegurando a prioridade
absoluta dos valores morais do neoliberalismo económico e social (Somers, 2008: 3). O
medo e o distopismo são, assim, constitutivos das narrativas de conversão, operando a
fusão entre os níveis coletivo e individual. A este propósito, Margaret Somers parte do
pressuposto de que as narrativas de conversão66 exercem um enorme poder na fixação
das agendas de discussão e tomadas de posição dos atores sociais, já que as assunções
públicas de que são portadoras estão incorporadas e naturalizadas na cultura política,
estabelecendo os parâmetros legítimos para o que realmente interessa nos debates
políticos e sociais (cf. Somers, 2008: 2).
propriedades sociológicas, reconhece-se o modo como se torna num discurso generalizável, facilitando a
partilha de identificações, de expectativas e de experiências dos indivíduos e grupos.
66
Margaret Somers define “narrativas de conversão” como medos induzidos através de previsões
de outros cenários, de modo a converter as narrativas dominantes de uma sociedade de um caráter social
para um caráter económico, fazendo-o através da exposição das implicações morais e económicas de
continuar no curso de políticas sociais (Somers, 2008: 3).
3ª PARTE – UMA SOCIOLOGIA DO DIREITO SITUADA PERANTE
A AUSTERIDADE E A EXCEÇÃO
67
Utilizo a expressão “narrativas” num duplo sentido. De acordo Wolfgang Streeck (2017:8) este
termo “migrou” da teoria literária e da psicologia para a política, ganhando um enorme destaque. De acordo
com a Wikipedia, uma narrativa é uma história com significado na qual as emoções são transportadas, fornecendo
orientação e transmitindo confiança. Este conceito é especialmente popular nos dias de hoje sempre que na Europa
uma eleição é fracassada, e face aos resultados os “autodenominados” europeus exigem uma melhor narrativa.
Margaret Somers define “narrativas de conversão” como medos induzidos através de previsões de outros
cenários, de modo a transformar o carácter social das narrativas dominantes de uma sociedade num caráter
económico (Somers, 2008: 3).
expressão tem sido utilizada “demasiadas vezes em contextos argumentativos em que os
objetivos ideológicos sobrelevam claramente as exigências de análise baseadas no
conhecimento das ciências sociais” (idem). 68 É neste sentido que José Madureira Pinto
(2013) 69, Wolfgang Streeck (2013a) e Alain Touraine (2010), entre outros, chamam a
atenção para as exigências de uma análise sociológica, quer da crise, quer da austeridade.
A opção pedagógica e teórica, aqui seguida, sustenta, em linha com os autores referidos,
que a sociologia do direito não pode ficar refém de uma reflexão estritamente económica, 102
tendo que desenvolver-se um exame circunstanciado das interdependências existentes
entre os mecanismos financeiros, económicos, políticos e jurídicos, as dimensões
simbólicas, as práticas sociais concretas dos indivíduos, e a forma como o poder, o conflito
e a política encontram novas condições de exercício.
68
Como refere José Madureira Pinto (2013: 144), “a invocação ritualizada do «neoliberalismo»
acaba então por levar a pensar a crise como o resultado da engrenagem quase naturalizada dos «mercados»
ou de uma «intenção», vagamente associada em termos sincréticos ao chamado «Consenso de
Washington» ”.
69
Em boa verdade, Madureira Pinto acabará por defender um conhecimento mais aprofundado da
dimensão económica ainda que a enquadre na ótica dos fenómenos sociais totais.
70
A noção de exceção, na perspetiva da teoria social contemporânea, convoca de imediato os
nomes do jurista Carl Schmitt e o do filósofo Giorgio Agamben.
desigualdades; juridificação e judicialização; e funções e sentido do direito. Estes
elementos estruturadores da análise sociológica são agora desafiados pela crise dos
mercados financeiros desde 2008 e pelo afirmar, no plano político e no da produção e
aplicação do direito, das ideologias da austeridade e da exceção. Tendo presente que o
direito é revelador das metamorfoses do político, e de que o direito e a política se
combinam socialmente, defende-se que a sociedade de austeridade e as manifestações de
excecionalismo institucional e normativo que lhe são conexas devem ser estudadas por 103
uma sociologia do direito situada. A mesma constitui uma porta de entrada para a
investigação e ensino sociojurídico neste tempo de turbulência. A hipótese geral que aqui
se sustenta é a de que a relação direito-sociedade, a juridificação e judicialização, e as
funções e sentido do direito sofrem com o impacto das mutações societais em curso e
evidenciam a importância de colocar esta estrutura conceptual da sociologia do direito
face aos novos contextos.
Quanto ao pensamento sociojurídico dos clássicos estudados na segunda parte, e
harmonizando as especificidades das suas propostas em torno de uma tese central,
importa destacar a forma como sempre estabeleceram uma profunda afinidade entre o
direito e a sociedade, e como através desta opção analítica e metodológica puderam
estudar as sociedades da modernidade. A centralidade dos clássicos estabelece e assevera
da pertinência dos estudos sociojurídicos em períodos onde as dinâmicas de rutura e de
transformação social são profundas. Assim, observando esta intuição sociológica
procura-se demonstrar como a emergência de modelos de organização social e
económica, como é o caso da sociedade de austeridade, constrangem quadros
institucionais, legais e padrões de normatividade, os quais adquirem agora a forma da
“normalidade da exceção”. Apontando os argumentos ao presente, pode avançar-se com
a ideia de que as sociedades da modernidade avançada, da sociedade de risco, ou mais
propriamente da sociedade de austeridade, colocam uma questão central: a de saber de
que modo em sociedades crescentemente complexas e marcadas pelo acentuar das
desigualdades, da exclusão social e das vulnerabilidades, o direito pode contribuir para a
diminuição, ou pelo contrário, acentuar, estas dimensões negativas e eticamente
atentatórias a uma vida e sociedades dignas.
No que diz respeito aos autores contemporâneos, os seus contributos podem ser
organizados despistando-se as respetivas idiossincrasias teóricas em torno de duas
ideias-chave. A primeira é de que estão cientes da tensão existente entre os debates
político-jurídicos que se desenrolam nacionalmente, e um número crescente de questões
e desafios que são colocados pelas dimensões transnacionais ou globais, incluindo-se as 104
que ocorrem no plano europeu. Essa intuição é acompanhada pela consciência de que
existe uma relação intensa entre “políticas da ciência e políticas do direito” (Guibentif,
2013) a qual convida, ou mesmo, exige, que se esclareça de que modo a sociologia do
direito pode aprimorar o seu regime de conhecimento face à complexidade dos mundos
(Commaille e Thibault, 2014: 21) e, concomitantemente, contribua para a defesa dos
ideais democráticos, da justiça social e da boa sociedade.
As clivagens que hoje em dia atravessam as sociedades com relevância para a
sociologia do direito, considerando-se o contexto económico, social, político e cultural
marcado pela matriz ideológica da austeridade e a normatividade da exceção, estão
associadas às oposições entre mercadorização e política, esquerda e direita, capital e
trabalho, politização e despolitização, democracia e não democracia, justiça social e
desigualdades sociais. É tendo presente a natureza política destes debates que a leitura
então feita dos autores contemporâneos permite deles recolher um conjunto de
influências estimulantes para a sociologia do direito situada. A questão do Estado, central
aos debates políticos e jurídicos, é agora perspetivada à luz da contraposição entre novas
e velhas formas de regulação, crise da regulação política e jurídica, e constrangimentos
impostos ao Estado Social. Os elementos acabados de referir compõem as linhas de força
da relação entre o Estado e o direito, a qual é agora crescentemente condicionada pelo
retomar da noção de Estado de exceção. Por esta via, observa-se que instituições do
Estado Social de Direito Democrático, como os parlamentos e os tribunais constitucionais,
são crescentemente afetados por manifestações como a da judicialização da questão
social e a captura não democrática da constituição democrática, temas incontornáveis na
atual análise sociojurídica. A discussão da noção de poder, nomeadamente no que diz
respeito à teoria da separação de poderes e ao legítimo exercício do poder democrático é
marcada na atualidade pelas diferentes manifestações do poder dos não eleitos e pelas
diferentes formas de constrangimento exógeno.
As atuais condições de exercício do poder de exceção e de produção e aplicação do
direito caucionam a reintrodução das teses liberais da convergência entre legalidade e
legitimidade e da separação entre política, direito e sociedade. Sem deixar de ter presente 105
a análise crítica dos princípios referidos, por exemplo, por Boaventura de Sousa Santos,
Jacques Commaille, Pierre Bourdieu e André-Jean Arnaud, ocorre um ressituar desta
problemática no quadro da análise de Zygmunt Bauman da modernidade líquida e do
direito líquido. Daqui resulta que as noções de legalidade e legitimidade evoluam do
tradicional paradigma weberiano para um campo teórico onde estão presentes as noções
de sociologia das emoções, vulnerabilidade, reconhecimento, medo e ressentimento.
Recupera-se para esse efeito, o contributo de Axel Honneth, Bryan Turner e Martha
Fineman, Zygmunt Bauman, a que se deve aduzir a proposta de Martha Nussbaum a
propósito da relação entre as emoções e o direito.
As crises não são um problema novo para as ciências sociais, quer sejam
perspetivadas na ótica da filiação entre crises da modernidade e transformação das
estruturas do conhecimento sociológico (Wagner, 1994), como a questão hobbesiana da
ordem social enquanto problema de integração dos sistemas sociais, quer como
consequências da recombinação do espaço e do tempo no quadro da globalização
(Giddens, 1992) ou, ainda, como desfiliação e afrouxamento dos vínculos sociais com a
consequente falta de confiança social (Castel, 1995; 1999; 2003; Rosanvallon, 2006; 2008).
Não obstante a constatação feita, muitos autores insistem na necessidade de
estudar a crise financeira de 2008 investigando os novos fenómenos, as respostas
institucionais, as práticas sociais e as formas de conhecimento acerca da realidade social
que estão a ser produzidos, combinando-os com os impactos multidimensionais da
mesma 71 . A este propósito, o diagnóstico de Alexander-Andreas Kyrtsis e Sokratis
Komiordos (2014) observa que as mudanças na realidade social em curso provocadas pela
crise não conduziram a alterações substanciais no desenvolvimento das teorias e da
análise sociológica. Tomando a tese anterior como boa, pode admitir-se que se estará
perante um enviesamento das análises mainstream que ligam a crise aos problemas da
integração social e dos sistemas sociais nos termos em que foram formulados no passado. 106
72 Estar-se-á perante um obstáculo epistemológico provocado pelos pressupostos das
teorias tradicionais que estabelecem o padrão comummente aceite da interpretação das
crises. Assim, a limitação dos quadros teóricos existentes mais vocacionados para pensar o
presente, ou o futuro como projeção da ordem do presente, dificulta a leitura dos
processos de decomposição e declínio do social e das sociedades – o novo fim do social –
e a lógica sociológica e política da exceção e do tempo acelerado como características das
novas coordenadas sociais. 73 Procurar ultrapassar as limitações epistemológicas
assinaladas conduz à formulação de uma questão de fundo: quais são as diferenças e
especificidades da crise de 2008 por relação a outros momentos históricos de rutura
social? 74
71
A crise de 2008 na sua relação com o conhecimento das ciências sociais permanece em aberto. A
análise da literatura disponível revela que esta se tem encaminhado dos primeiros estudos acerca das
causas da crise, enfatizando a falta de regulação dos mercados financeiros e a ganância subjacente ao modo
de acumulação do capital financeiro, para as análises das consequências resultantes da aplicação da fórmula
da austeridade como solução.
72
Existem, como acima se mencionou, semelhanças com Anthony Giddens um dos autores que na
década de 1990 na interpretação sociológica da globalização questionou a filiação Hobbes-Parsons no que
diz respeito à questão da ordem social introduzindo a problematicidade do espaço e do tempo procurando,
assim, ultrapassar as limitações de uma unidade de análise centrada na sociedade nacional e no
estado-nação.
73
É extensa a bibliografia relativa aos temas da crise e da austeridade. A título informativo,
identificam-se alguns dos autores com trabalhos que se afiguram mais interessantes acerca desta temática:
Ulrich Beck (2013); Mark Blyth (2013); David Harvey (2011); OIT (2009); Armin Schäfer e Wolfgang Streeck
(2013); Wolfgang Streeck (2013a); Alain Supiot (2010); Alain Touraine (2010, 2013). Entre nós, destacam-se
Gustavo Cardoso et al. (2011); Boaventura de Sousa Santos (2011); José Reis e João Rodrigues (2011);
António Casimiro Ferreira (2012); e CES (2012), entre outros. De referir ainda o trabalho que tem vindo a ser
desenvolvido por Peter Wagner (2011) na análise da crise na sua relação entre a modernidade económica e
política.
74
As dificuldades mais evidentes relativas ao conhecimento das especificidades e diferenças da
crise de 2008 serão as que se apresentam de seguida. Em primeiro lugar apresenta dificuldades de
investigação sociológica porque: 1) a crise não é sentida de igual modo em todo o lado; 2) ocorrem variações
8.2.1 Crise, revelação e negação
no modo como se combinam as diferentes situações de crise e as respostas que a elas são dadas; 3) e as
novas reconfigurações e reinstitucionalizações políticas, jurídicas, económicas e padrões de sociabilidade
assumem um caráter diverso. Em segundo lugar, acresce ainda que a crise de 2008 do ponto de vista
cognitivo coloca três dificuldades. A primeira reside no facto de não ter ocorrido uma mudança
teórico-metodológica significativa no desenvolvimento do conhecimento das ciências sociais orientado para
a análise da crise e das respostas à mesma. A segunda, que se relaciona com a primeira, coloca um
problema de base: o de saber se podemos estudar a crise e as suas manifestações com as teorias, conceitos
e métodos que se tem utilizado até agora. A terceira coloca a questão de saber se se está a assistir à
emergência de um novo padrão societal ou à regressão do atual.
75
Futuro do presente simples, entenda-se.
tou aos economistas da London School of Economics como é que não tinham previsto a
crise atual (Harvey, 2011: 1). Perante a incapacidade de darem uma resposta imediata,
reuniram-se sobre a égide da Academia Britânica e, passados seis meses de estudo,
meditação e profunda análise com os principais decisores políticos, dirigiram-se numa
carta coletiva a Sua Majestade com a resposta de que, de algum modo, não deram
atenção aos riscos do sistema, e que, como todos, perderam-se em “políticas de
negação”. 108
Mas, afinal de contas, o que estava a ser negado? A crença no mercado sem
atender aos efeitos socialmente perversos da financeirização da economia. E aqui se
encontra a negação do futuro do presente, na medida em que oito anos volvidos desde a
emergência da crise, continua a ser o sistema financeiro a determinar a vida das
sociedades e das pessoas, destruindo o primado da política e do direito sobre o
económico.
76
Nesta medida, Boaventura de Sousa Santos (2011) refere que a primeira condição para a
afirmação das ciências sociais passa por assumir com clareza o modo como se define uma crise e se
identificam os fatores que a causam. A questão está em que os procedimentos de definição e de
identificação da crise determinam as medidas de reforma, as quais, inevitavelmente, são portadoras de
opções quanto à distribuição dos custos sociais que estas causam ou podem causar.
8.2.3 Relação entre direito-sociedade: padrões de sociabilidade da austeridade e
formas de normatividade da exceção
A rutura introduzida pela crise entre sistemas e atores sociais corresponde a uma
mutação desestruturadora do social, introduzida pela austeridade, que conduz à
decomposição dos quadros sociais e vínculos de proximidade entre os indivíduos, e entre
os indivíduos e as instituições, colocando um sério problema à questão da ordem social,
114
pelo menos, em três pilares sociojurídicos. O primeiro, o da perda de confiança nas
instituições públicas e privadas protetoras do risco social, adicionada à perda de confiança
nas formas de conhecimento pericial, introduzida pela indeterminação generalizada
provocada pelo contexto de crise. As expectativas positivas quanto ao futuro são
irremediavelmente substituídas pelas manifestações de insegurança ontológica, jurídica e
política. O segundo, o da incapacidade dos sistemas de resolução dos conflitos nas
sociedades democráticas para darem resposta aos conflitos emergentes das dinâmicas da
austeridade. As instituições políticas, como o governo, o parlamento, os tribunais, os
espaços de diálogo e concertação social, bem como os diferentes canais de acesso aos
bens públicos providos pelo Estado, são condicionados por uma racionalidade económica
desligada da sociedade real, pondo em causa os processos de integração social e
institucionalização dos conflitos. O terceiro, o da afetação dos processos de socialização,
dos padrões de cultura e dos mecanismos de reprodução social face à transição para uma
lógica societal onde a normalização da exceção torna permanente o provisório. Este “novo
normal” fixa padrões de interação social, representações sociais e mecanismos de
controlo social, a uma lógica de austeridade marcada pelo conformismo face às privações
relativas a bens materiais e simbólicos.
A austeridade enquanto modelo reformador de resposta à crise, tem conflituado
com a esfera dos direitos fundamentais e com os princípios do direito democrático. Assim,
importa identificar os impactos resultantes da aplicação das medidas de austeridade nos
direitos fundamentais e das consequências que daí resultam para as relações e práticas
sociais que se lhes encontram associadas. Neste caso, deve partir-se do pressuposto de
que existe uma conflitualidade de base entre o modelo da austeridade e os direitos
fundamentais, assente na dupla tensão onde se contrapõem os princípios da legitimidade
democrática, da política e dos direitos, aos princípios do excecionalismo, e os direitos
fundamentais aos interesses especulativos dos mercados financeiros.
Sem surpresa, a relação entre direito e austeridade constitui um tópico de análise
recente. Se por um lado existe uma substancial linha de investigação a respeito das
medidas de exceção introduzidas pelo 11 de setembro de 2001 na esfera dos direitos
fundamentais de caráter civil e político de que resultou a afetação do entendimento 115
político da liberdade, ressente-se a falta de uma análise do impacto das medidas
legislativas de exceção constitutivas do modelo da austeridade na esfera dos direitos
fundamentais económicos e sociais, com os consequentes efeitos sobre o entendimento
político da igualdade. O argumento central é o de que estamos perante um segundo
momento de exceção de caráter selectivo, tendo por base a narrativa de que a limitação e
emagrecimento dos direitos fundamentais económicos e sociais se torna essencial para o
restabelecimento do equilíbrio económico e financeiro dos países em crise. Sustenta-se
que o padrão dos direitos económicos e sociais fundamentais europeus enformados pelo
referencial da justiça social, tendo como fontes a Carta Social Europeia, a Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia e os Tratados, é posto em causa pela defesa de
uma normatividade austeritária de exceção.
Insisto neste ponto. Dois momentos significativos estão na origem desta
“efervescência social” do excecionalismo que contribuem para a noção de crise política,
jurídica e constitucional: a crise securitária ligada ao terrorismo do 11 setembro de 2001 e
a crise económica ligada à financeirização de 2008. O securitarismo legou-nos um cenário
marcado pela afirmação do direito penal do inimigo, pelo enfraquecimento dos direitos
fundamentais civis e políticos, e pela consequente contração dos direitos liberdades e da
liberdade política, sob a forma do trade-off entre liberdade/segurança. Quanto à crise
financeira, ela estimulou um modelo de “governação neoliberal”, marcado pela afirmação
do direito da austeridade, pelo enfraquecimento dos direitos fundamentais económicos e
sociais, e pela consequente retração dos direitos da reivindicação e da igualdade política
sob a forma do trade-off entre igualdade/injustiça social. O excecionalismo assume uma
forma paradoxal de juridificação, positivização e mobilização do direito e da política que
força os limites do nosso mundo institucional e normativo, questionando o sentido e as
funções do direito, a sua indissociabilidade das expetativas e práticas sociais, e dos bens e
valores de justiça que protege. A categoria da exceção, enquanto fonte normativa,
provoca uma desestabilização do direito democrático assente na soberania estatal,
enfraquecendo os princípios dos direitos fundamentais.
Em síntese: o cânone da austeridade e “o retorno ao direito” de exceção estão na 116
origem de uma configuração sociojurídica nos planos internacional, europeu e nacional
através da qual se alteram o sentido e as funções do direito, o que se repercute nas suas
formas de mobilização, enquadramentos institucionais, e práticas e relações sociais.
Identificam-se dois planos analíticos. No primeiro sublinha-se a importância das tensões e
contradições patentes nas narrativas que fixaram a austeridade como um modelo credível
e imprescindível para a orientação de reformas, em disputa com o acquis europeu em
matéria de direitos sociais e laborais e o Modelo Social Europeu. No segundo, afere-se das
consequências da aplicação do modelo da austeridade para o âmbito nacional, através das
medidas preconizadas nos Memorandos das Troikas.
77
Para uma síntese do pensamento do autor pode consultar-se Ferrajoli (2008).
controlados constitucionalmente. Ultrapassando um entendimento de garantismo tendo
por objeto a limitação do poder soberano estatal, o autor insiste na ideia de que o
garantismo deve estender-se aos poderes privados e à ideia de um mercado omnipotente.
Como refere o autor
O Estado, por formular, produzir e aplicar o direito através dos seus órgãos
(parlamento, tribunais, administração, etc), e o direito pela maneira como organiza a
expressão da vontade coletiva e define delimitando a atuação do Estado ou como este
estabelece as suas funções políticas e sociais, está no centro das transformações induzidas
pela crise e pelas respostas dadas à mesma. No entanto, as modalidades de congruência
entre direito e Estado têm já vindo a ser postas em causa desde a designada crise do
Estado Providência num processo que chega até aos dias de hoje sob a forma de crise da
regulação político-jurídica, decorrente do modelo da austeridade e das dinâmicas da
exceção colocadas em ação desde 2008. Argumenta-se que a relação entre o Estado e o
Direito conheceu, não obstante as suas variações até à data referida, um padrão de
relacionamento onde os pressupostos da democracia liberal e das formas de “Estado
normal” não foram postas em causa, apesar de sofrerem alterações profundas nas suas
modalidades de combinação. Questão bem diferente, como se advoga, é a que hoje se
experiencia quando o padrão de atuação estatal orientado para a produção e aplicação de
políticas de austeridade tende a precarizar os pressupostos da democracia liberal. Autores
como Wolfgang Streeck, Armin Schafer, Claus Offe, Colin Crouch e Bob Jessop, ajudam-nos
à formulação desta problemática quer ao nível macro do questionamento do capitalismo
democrático, quer aos níveis meso e micro da institucionalização de estados de exceção
constrangedores dos princípios democráticos e legitimados pela crise política e financeira.
Como é sabido, a ideia de Estado de exceção é abundantemente estudada pela
sociologia política, ciência política e sociologia do direito, remetendo, em regra, para o
trabalho de Carl Schmitt e para as diferentes modalidades através das quais a
flexibilização das normas democráticas e dos princípios do Estado de direito se afirmam
como um novo normal em momentos de necessidade. Bastará, aqui, sublinhar a ideia, de
que os regimes de exceção com o seu aparato ideológico assente na realidade da
necessidade e com os seus procedimentos, que põem em causa a separação de poderes e
o princípio da produção democrática do direito, se vão afirmando como o novo normal.
Procurando fixar a noção de Estado e regime de exceção aplicável ao atual 124
momento, utilizam-se três vetores. O primeiro recorre ao clássico trabalho de Patrick
Dunleavy e Brendan O’Leary, Theories of the State (1987), onde os autores utilizam o
critério da intervenção política qualificando-a entre uma intervenção orientada para o
estabelecimento de um quadro legal geral para a sociedade, assegurando que a lei e a
ordem prevalecem, e outra dirigida à regulação da atividade económica, da produção e da
redistribuição da riqueza, nos termos colocados pela questão social. Daqui formula-se
aquela que tem sido uma estratégia, seguida pelos defensores do atual Estado de
exceção, que assenta na separação artificial entre Estado de direito e Estado social. A
seletividade das reformas políticas levadas a cabo orientam-se para a formulação do
problema da reforma do Estado, confundindo esta com o problema da sustentabilidade
do Estado social. O Estado social torna-se o problema. Com esta ocultação do princípio
unitário do Estado social de direito, põe-se fim a um paradigma redistributivo assente no
imposto progressivo sobre os rendimentos, nas políticas sociais que protegem os
indivíduos contra os riscos de existência e na identidade político-jurídica do direito do
trabalho, enquanto direito protetor da parte mais débil. Em seu lugar, o Estado afirma-se
agora pelo modo como facilita a transferência de rendimentos e bens das famílias e dos
indivíduos para o pagamento da dúvida pública e para os mercados financeiros.
O segundo vetor assenta na ideia de um trade-off na intervenção estatal, nos
termos do qual as funções do Estado social são substituídas pelas do Estado penal. Estas
perspetivas teóricas assentam na passagem de um modelo de Estado social de
comunidade inclusiva para o modelo de justiça criminal do Estado excludente. De acordo
com a análise proposta por Loic Wacquant (2000) e Zygmunt Bauman (2007), não
podendo o Estado manter os padrões de proteção e segurança social, a crise de
legitimidade do Estado que daí resulta alimenta uma retórica assente na redução das
expectativas em matéria social, oferecendo alternativamente um modelo de segurança de
law and order através do qual adquire uma nova legitimidade. Esta troca no tipo de
intervenção estatal entre as intervenções de caráter social e as intervenções de controlo
sobre a sociedade tem efeitos na esfera dos direitos sociais e laborais.
Finalmente, o terceiro vetor é o que identifica quatro tipos de Estado e respetivas 125
lógicas de atuação como constitutivos do modelo operacional do Estado de exceção.
Nesta lógica de atuação procedimental da exceção, cada um dos tipos de Estado
protagoniza formas de intervenção na sociedade cujo resultado é o da decomposição, ou
neutralização, dos objetivos do Estado social. É o que sucede com a seletividade na
produção e aplicação dos direitos sociais (Estado paralelo);78 com o recurso a formas
diversificadas de contratualização da cidadania social (Estado contratualizador);79 com a
fragmentação do poder do Estado sob a forma de governação (Estado-governação); e a
emergência de novas formas de autoridade e legitimidade associadas ao Estado de
necessidade ou de exceção (Estado de exceção). Em conjunto, compõem um regime de
exceção assente na combinação em graus e modalidades diversas, dos diferentes tipos de
intervenção sob a forma de produção e aplicação de políticas e de direitos. O quadro
analítico proposto permite utilizar três níveis de análise quanto aos modos de intervenção
do Estado. O primeiro desses níveis – o intranível – privilegia a identificação das lógicas
internas de cada tipo de intervenção estatal. O segundo – o internível – atende às
combinações possíveis entre os diferentes tipos de intervenção estatal. Finalmente, o
78
A noção de Estado paralelo é formulada por Boaventura de Sousa Santos em vários momentos da sua
obra. Com ela, pretende significar a discrepância existente entre os quadros político-normativos formais e as
práticas estatais que se lhe encontram associadas. Do autor pode consultar-se, Santos (1993: 28 e ss.).
79
A ideia subjacente à noção de Estado contratualizador é a da normalização contratual nos termos em que
esta foi identificada por Boaventura de Sousa Santos sob a designação de Estado heterogéneo (1993: 33). Na
exploração teórica da ideia de Estado contratualizador, levo ainda em consideração a análise de Alain Supiot
(2006) quando este contrapõe o “primado da lei” à força dos contratos, e a proposta de Margaret Somers
(2008) em torno das noções de contratualização da cidadania e de desestatização. Levo também em
consideração os debates em torno da teoria neocorporativa e os seus desenvolvimentos mais recentes sob a
forma de diálogo social e de governação reflexiva.
terceiro – o supranível – debruça-se sobre a lógica predominante num dado período
temporal ou área de intervenção.
Também António Avelãs Nunes (2013: 57) realça que “a luta pela democracia
passa hoje pela defesa do Estado social. Porque nas condições do nosso tempo, a
democracia real não pode deixar de contemplar a democracia económica e social”. Se
retomarmos à sua origem, o Estado social surge ao colocar em causa a ordem liberal
assente na propriedade privada, no individualismo e no Estado mínimo, conduzindo ao
abandono da tese segundo a qual o Estado deveria considerar-se uma instância separada
da sociedade e da economia, e, por conseguinte, à aceitação de confiar ao Estado novas
funções no plano da economia e no plano social. Neste sentido, e como refere o autor, o
Estado social trouxe consigo uma diferente representação do Estado e do direito, os quais
têm agora a missão de realizar a justiça social, proporcionando a todos uma vida digna,
significando que “a mão visível do direito começou a substituir a mão invisível da
economia” (Nunes, 2013: 33).
No quadro da austeridade, o Estado de direito e o “primado da lei” convivem com
a produção legislativa, onde se ultrapassam princípios, como o da não retroatividade das
leis, o da segurança jurídica, o da confiança, o da igualdade e o da proporcionalidade. Em 132
nome de uma hipervalorização da nova realidade gerada pela crise e correspondente
estado de necessidade, a retórica subjacente à austeridade e à exceção parte de um
entendimento falacioso da equidade e da igualdade como motores da justiça social.
Assim, igualdade e igualitarismo são utilizados de modo neutral, reportando-se à igual
distribuição dos sacrifícios impostos a todos igualmente. Omitem-se as referências às
desigualdades inscritas na sociedade de que resulta que esta nova igualdade perante o
sacrifício se constitua numa falsa igualdade a partir da qual os mais desiguais são os mais
sacrificados. A austeridade é uma forma musculada de neoliberalismo que tem ao seu
serviço a exceção como mecanismo de legitimação política, dispensando,
tendencialmente, os formalismos processuais normais da sociedade democrática.
A orientação pela austeridade introduz uma nuance nas teses defendidas por Loic
Wacquant e Zygmunt Bauman, assentes na mudança paradigmática do Estado social para
o Estado penal. Para os autores, o modelo da law and order e da justiça criminal seria
induzido pela crise de legitimidade do Estado social, que, não podendo manter os padrões
de proteção e segurança sociais, promove uma retórica assente no abaixamento das
expectativas em matéria social, propiciando, em seu lugar, um modelo de segurança penal
através do qual adquire nova legitimidade.
O Estado de austeridade, por sua vez, não carece de trocas entre a questão social e
as questões da lei e da ordem, na medida em que afirma não existirem alternativas de
combate à crise, a não ser as que residem numa transferência clara dos seus custos para a
sociedade. Põe, deste modo, termo à ambivalência associada à avaliação dos mecanismos
de proteção social, uniformizando sob o signo da austeridade o repertório de medidas da
nova ordem social: impostos; cortes salariais; cortes nas pensões e subsídios; reforma no
sistema de saúde; flexibilização negativa do direito do trabalho, etc. Embora a fórmula de
legitimação do Estado de austeridade seja concordante com a do Estado penal, isto é,
colocando em estreita relação as políticas do medo, da segurança, da incerteza e
ansiedade partilhada, o referente muda. O estado de emergência produzido pelo medo
crescente acerca da segurança pessoal face ao desperdício humano – imigrantes,
criminosos, excluídos, etc. – dá agora lugar ao estado de emergência social, clamando 133
pelo sacrifício em nome do bem comum e reorientando o sistema de deveres e obrigações
(cf. Přibáň, 2007: 5).
Pessoas Mercados
Nacional Internacional
Cidadãos Investidores
Eleitores Credores
Direitos de cidadania Reivindicação de bens
Eleições (periódicas) “leilões” (contínuos)
Opinião pública Taxas de interesse80
Lealdade Confiança
Serviços públicos Serviço da dívida
135
De um ponto de vista sociológico, insisto na ideia de não dicotomizar mercados e
pessoas, mas sim, de considerar que sob as atuais condições sociais, económicas e
políticas os dois termos de referência se encontram numa situação de interdependência e
dualidade, no sentido que Norberto Elias e Anthony Giddens conferem a estes conceitos.
Tal significa que estamos perante uma unidade específica de análise sociológica. Para ela
contribui a tendência para a antropomorfização dos mercados financeiros, como regista
Ulrich Beck (2013). Neste sentido, os mercados exercem poder sobre nós na medida em
que nós dependemos mais deles do que eles dependem de nós (nas atuais condições),
cunhando uma troca desigual e assimétrica (cf. Ferreira, 2012: 99-100). Acresce que nesta
mediação os Estados estão confrontados com um “duplo gap de controlo”. Os governos
perdem soberania, bem como o controlo sobre o processo de produção legislativa em
domínios como o social, orçamental e financeiro, e concomitantemente os cidadãos
perdem confiança na ideia de que haja efetivamente um controlo democrático sobre as
políticas do governo (Offe, 2013: 212).
A equação política, a que o Estado de austeridade dependente dos mercados
financeiros tem de dar resposta, tem dois constituintes: para além das pessoas, tem
também agora os mercados e os seus interesses específicos quanto às políticas públicas.
Os mercados detêm, assim, um enorme poder nos processos de tomada de decisão
política, fazendo aumentar a pressão sobre os cidadãos. A retórica político-financeira
assente na interdependência entre mercados e pessoas tende a apagar as tensões entre
os direitos sociais associados à cidadania e os direitos de propriedade privada de bens
financeiros. Quando se diluem as diferenças e se confere igual importância a pessoas e
mercados e respetivos direitos, trata-se de definir quem detém maior poder para melhor
proteger os seus interesses.
80
<https://en.wikipedia.org/wiki/Interest_rate>.
social é de natureza material e não formal, por isso, do ponto de vista da racionalidade
formal do mercado só pode ser considerada irracional, imprevisível e arbitrária”. Este
argumento de ressonância weberiana encontra na teoria dos riscos morais, uma
teorização que visa imunizar o desempenho económico das exigências de justiça social.
O raciocínio anterior pode ser comentado de dois pontos de vista: o das
perspetivas deontológicas, as quais conferem prioridade ao justo, ao dever ser e à norma
moral sobre o bem e as consequências das ações; e o das perspetivas consequencialistas, 137
que fazem a escolha inversa, subordinando o justo ao bem e ao resultado das ações que
maximizam o bem. Os primeiros não considerarão legítimo que, em nome do bem
coletivo, um ato injusto possa ser considerado legítimo pelo facto de as suas con-
sequências produzirem bem-estar geral, enquanto os segundos estarão dispostos a aceitar
o risco.
Admitindo que o utilitarismo é o representante mais importante do liberalismo
consequencialista (Dupuy, 1992: 108)81, a demonstração pelas evidências da realidade
facilmente nos conduz à consideração que o mesmo constitui a “filosofia espontânea” da
economia e dos políticos que defendem o paradigma da austeridade e da exceção.
Forçando o cânone da reflexão da teoria política, pode conceber-se a austeridade
utilitarista como um modelo onde as distribuições injustas de sacrifícios são aceitáveis se
assim se obtiver um maior bem-estar total ou médio. No quadro de uma sociedade
marcada por profundas desigualdades sociais, a crueza do utilitarismo que fundamenta a
violação de valores e direitos e a necessidade de manutenção da “passagem dos
sacrifícios” individuais para o coletivo carecem de uma racionalização aceitável. Ela surge
com recurso à noção de sacrifício enquanto elemento de um contexto onde ocorreu uma
“construção do consenso” que conclui pela exclusividade da resposta racional e lógica da
austeridade utilitarista. É neste quadro sacrificial de partida que os seus defensores
retomam o tema da equidade, invocando uma “ética social” com “justa repartição dos
sacrifícios”, deixando de lado a óbvia constatação de que a distribuição desigual dos
81
Observe-se, todavia, a existência de diferentes entendimentos de utilitarismo e de
consequencialismo (cf. Galvão apud Rosas, 2008).
sacrifícios, numa sociedade económica e socialmente muito desigual, é vantajosa não para
o maior número mas para os mais favorecidos.
A implementação do modelo da austeridade conduz, igualmente, a uma reanálise
das consequências do decisionismo normativo e da exceção, na ótica dos efeitos
perversos, por ele gerado na esfera da justiça social. As noções de efeitos perversos ou
das consequências não antecipadas da ação social foram expostas por Robert Merton e
Raymond Boudon como forma de captar sociologicamente a dissociação existente entre a 138
ação social e os resultados da mesma. A não coincidência entre o que se pretende
alcançar ou a não antecipação das consequências que resultam de determinada iniciativa
constituem a formulação de partida para esta problemática. Orientado por esta
perspetiva, Albert Hirschman publica o seu conhecido livro The Rhetoric of Reaction:
Perversity, Futility, Jeopardy (1991) (O pensamento conservador: perversidade, futilidade e
risco, 1997), onde identifica, na crítica da retórica reacionária ao pensamento democrático
progressista, três dimensões: a da perversidade, ou seja, qualquer ação deliberada para
melhorar a ordem social, política ou económica apenas serve para exacerbar a situação
que se pretende remediar; a da futilidade, em que se argumenta que todas as tentativas
de transformação social são sempre de fachada, simples operações de cosmética, ou
mesmo, ilusórias; e a do risco, segundo a qual o custo das mudanças ou o preço a pagar
pelas reformas é demasiado alto, pondo mesmo em causa as realizações anteriores (cf.
Curto in Hirschman, 1997: v; Hirschman, 1997: 16). Em causa está uma categoria política
chave da modernidade: a de intervir, ou não intervir, politicamente, na sociedade através
de reformas visando a melhoria da vida em sociedade (sociedade justa). Para o
pensamento conservador, de acordo com a análise de Hirschman, não há dúvidas: todo o
esforço de intervenção será inútil. Deste modo, o pensamento conservador cauciona a
lógica da não intervenção (sempre ilusória) na sociedade.
Face ao escândalo da questão social alimentada pela austeridade, os defensores da
intervenção austeritária e de exceção na sociedade assumem uma atitude maquiavélica e
cínica perante a situação social a partir da qual se infere o valor ético-político que
atribuem aos efeitos não intencionais das ações sociais intencionais. Enquanto para os
críticos da austeridade a posição é a de acentuar os aspetos negativos, estando em causa
a sustentabilidade e a coesão do social; para os austeritários, o que importa é o lado
positivo que querem ver nas suas intervenções, visando o controlo dos défices, a saúde do
sistema financeiro e a desestruturação do Estado social.82 Daqui resulta a defesa, feita
pelos apoiantes da austeridade, dos valores e lados positivos desses efeitos perversos. 83
Tal significa que são os defensores do princípio do mercado, enquanto ordem
espontânea ou auto-organizada, os protagonistas de uma intervenção estatal maciça 139
tendo por objetivo o modelo neoliberal de sociedade. As consequências esperadas,
apresentadas como inevitáveis, que acompanham tal campanha, são as da espiral da
pobreza e da erosão da qualidade de vida dos cidadãos, bem como a emergência de
rearranjos políticos e institucionais que traduzem uma nova estrutura de poder –
diminuição do poder do Trabalho. Neste contexto, o principal problema que se coloca aos
defensores da austeridade é o de como justificar, ética e legitimamente, a perversidade e
negatividade dos efeitos pretendidos por via da austeridade. No cânone político ocidental
de matriz rawlsiana, a justiça social oferece-se como um pilar incontornável no acesso à
liberdade e igualdade, portanto, no cânone político da austeridade, a justiça social
atrapalha e, por essa razão, tem de ser ultrapassada. A fórmula utilizada é a de recorrer ao
conceito de sacrifício coletivo, agora entendido como uma nova designação para a justiça
social.
À luz do que anteriormente mencionei, as linhas de intervenção do modelo
político-jurídico da austeridade são captadas por dois debates tradicionais da filosofia e
teoria políticas. O primeiro resulta da contraposição das formas de Estado social às
fórmulas de Estado mínimo. Sabendo-se que na real politik teórica a existência do Estado
nunca foi totalmente questionada (exceção feita ao pensamento anarquista), o debate
contrapõe os libertários e os neoliberais, para os quais o Estado se deveria limitar a dar
82
Utilizo um trocadilho a partir do texto de Ramada Curto (1997: vi).
83
Como Hirschman (1997) defende ao longo do referido livro, e como bem salienta Diogo Ramada
Curto na apresentação da versão portuguesa, o trabalho do autor toca um dos temas-chave das ciências
sociais, analisado por Robert Merton, Raymond Boudon ou Anthony Giddens, entre outros: o dos efeitos
perversos ou efeitos não intencionais das ações sociais intencionais. Para os reacionários, a tendência é a de
empolar os efeitos negativos resultantes das intervenções que visam a afirmação dos ideais nascidos com a
revolução francesa, pelo contrário, os progressistas valorizam a esperança e o lado positivo desses efeitos.
resposta às questões da law and order, aos liberais igualitários, socialistas,
sociais-democratas e terceiras vias de formas diferenciadas, que assumiam a necessidade
de uma intervenção do Estado na designada questão social. Esta tensão paradigmática,
que vigorou até 2008, é posta em causa no momento em que os Estados assumiram uma
intervenção protetora do sistema financeiro, feita à custa da degradação das suas funções
sociais. Para assegurar as expectativas dos mercados financeiros, assumem-se medidas de
transferência de rendimentos dos cidadãos para a acumulação do capitalismo financeiro, 140
as quais se combinam com políticas de rendimentos restritivas, redução dos mecanismos
de proteção social e emagrecimento geral das funções sociais do Estado.
O segundo debate está em estreita relação com o anterior e reporta-se ao tema da
justiça social. Também aqui o modelo da austeridade afeta os termos de referência desta
problemática. De uma forma sintética, e tomando como referência o trabalho de John
Rawls (1981 [1971]), a questão tem sido a de se saber como é que no quadro de
sociedades democráticas desiguais se pode estabelecer um critério distributivo em que os
membros mais desfavorecidos de uma sociedade tenham um acesso mais igualitário aos
bens sociais primários: a liberdade, as oportunidades, o rendimento e a riqueza, e as bases
do respeito por si próprio. A austeridade introduz, contudo, um “véu de ilusão” em torno
das questões da justiça social e da equidade. No seu experimentalismo social, continua a
degradação das condições de vida e da qualidade da democracia através das políticas e do
direito da austeridade, revelando a existência de uma teoria da desigualdade social onde
se testam os limites da desigual distribuição de bens, desvantajosa para os menos
favorecidos, e um falso igualitarismo, tendo por base um suposto consenso produzido na
base da responsabilidade coletiva dos membros da sociedade, independentemente do
lugar que ocupam na estrutura social. Esta perspetiva de justiça social coloca os cidadãos
perante uma identidade coletiva, que, para utilizar a expressão de George Gurvitch,
assenta num “nós” igualmente responsável.84 O “nós”, enquanto interesse coletivo e sob
84
Se seguirmos George Gurvitch, o uso do plural “nós” descreve um todo irredutível à pluralidade
dos seus membros, uma união indecomponível. Um “nós”, de acordo com Gurvitch, que não atribui
características específicas à identidade dos membros que nele participam, constituindo-se, por isso, num
quadro social, num todo concreto. Pressupõe-se, assim, a existência de participações recíprocas da unidade
na pluralidade e da pluralidade na unidade (cf. Gurvitch, 1977: 245).
a forma de esforço conjunto,85 convoca o dilema de como combinar sacrifício individual e
justiça social,86 conduzindo, portanto, à recuperação de um problema clássico da teoria
política: face à crise que a todos afeta, torna-se necessário recorrer a medidas que violam
os direitos fundamentais de alguns. É por esta última razão, que envolve o interesse e o
bem comum e os direitos fundamentais de indivíduos e grupos, que se afigura pertinente
abrir um caminho de reflexão em torno da relação entre justiça e sacrifício.
141
85
Um consenso produzido na base de um forte apelo à responsabilidade coletiva da sociedade. De
uma forma indiscriminada, imputam-se às ações dos indivíduos e à sua falta de prudência a situação que se
atravessa. De resto, é esta crença política que estrutura intervenções públicas de governantes. Assim, nós
somos coletivamente «responsáveis. Esta é a hora em que todos os portugueses são chamados a dar o seu
melhor para ajudar Portugal a vencer as dificuldades. Trabalhando mais e apostando na qualidade,
combatendo os desperdícios, preferindo os produtos nacionais. Deixando de lado os egoísmos, a ideia do
lucro fácil e o desrespeito pelos outros. […] Durante muito tempo vivemos a ilusão do consumo fácil, o
Estado gastou e desperdiçou demasiados recursos, endividámo-nos muito para lá do que era razoável e
chegámos a uma “situação explosiva”, como lhe chamei há precisamente dois anos, quando adverti os
Portugueses para os riscos que estávamos a correr», mensagem de Ano Novo de 2012 do Presidente da
República, disponível em <http://www.presidencia.pt/?idc=22&idi=60565>.
86
Na elaboração deste tópico, presto especial atenção ao trabalho de Jean-Pierre Dupuy (1992: 107-160)
acerca do utilitarismo na obra de John Rawls.
bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a
população, por forma principal de saber a economia política e por
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança”
(Foucault, 1979: 171).
87
Em sentido contrário, conferir Alexandra Aragão (2008: 14).
88
A este propósito, consultar Comissão Europeia (2000).
89
Acompanho a análise de Alexandra Aragão que se debruça sobre a questão da perceção social do risco
(2008: 45-50).
sociais.90 Esta “compra da segurança regulatória” (Sunstein apud Aragão, 2008: 45)
funciona como uma ideologia técnica, justificando a imposição do direito do trabalho de
exceção.91
90
A este propósito, consultar Dornelas et al. (2006: 185-198), Comissão Europeia (2006: 81-91), Tajgman
(2011), OIT (2009, 2009a, 2011a, 2012).
91
Recordo a este propósito que “a incerteza científica resulta normalmente de cinco características do
método científico: a variável escolhida, as medições efetuadas, as amostras recolhidas, os modelos usados e
o nexo de causalidade utilizado. A incerteza científica pode também derivar de uma controvérsia em relação
aos dados existentes ou à inexistência de dados relevantes. A incerteza pode dizer respeito a elementos
qualitativos ou quantitativos da análise” (Comissão Europeia: 2000: 15).
individual, desenvolvendo, simultaneamente, uma representação social de moralidade,
onde o credor surge como único responsável pelas suas decisões. Neste sentido, e como
ficou evidente com a crise de 2008, foram férteis as analogias feitas entre o
endividamento de sujeitos privados (o que o Manuel tem de pagar ao António por lhe ter
pedido um empréstimo), e o endividamento público dos estados (o que um país tem de
pagar às instituições das quais obteve ajuda financeira), resultando daqui a estratégica
confusão entre a responsabilidade individual nos contratos privados com a 149
responsabilidade pública dos contratos políticos. A figura do homem endividado, como
demonstrou Maurizio Lazzarato (2012)92, tornou-se, assim, numa porta de entrada par
explorar as formas de dominação em que o direito é utilizado como mecanismo de gestão
política das crises. Todos são devedores, responsáveis e culpados perante o capital que se
constitui como o grande credor, independentemente de se estar perante indivíduos ou
países.
A crise financeira e o modelo da austeridade revelam a importância agora ocupada
no espaço público pelo “homem endividado”, o mesmo que é depositário do sentimento
de que a sua vida quotidiana e privada está dependente das flutuações sociais às quais se
encontra exposto. Trata-se de uma subjetividade que é induzida pelo neoliberalismo
tendo por base a promessa de que todos podem ser empreendedores e proprietários,
logo, responsáveis pelo seu destino. Duas condições são requeridas para a afirmação e
validação político-jurídica desta subjetividade. A primeira decorre da separação entre a
sorte opcional e a má sorte (Ferreira, 2014: 79), e define-se pela liberdade de escolha e
pela intenção de se aceitarem os riscos independentemente das consequências. A
segunda condição separa o devedor honesto, vítima das circunstâncias que alteraram as
condições iniciais da sua escolha, do devedor fraudulento e criminoso que atua com
dolo.93 Em consequência, o homem endividado honesto é um indivíduo confrontado com
um dilema moral assente na opção entre o sacrifício e o esforço com que cumprirá as suas
obrigações jurídicas ou em constituir-se num sujeito imoral e incumpridor. Neste
92
Acompanho, parcialmente, a proposta de Maurizio Lazzarato (2012), na qual se propõe fazer
uma releitura do neoliberalismo recuperando as teses de Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
93
A este propósito pode consultar-se Robert Kuttner (2013: 5-7).
entendimento da dívida, como elemento da vida em sociedade, existe uma valorização
dos padrões culturais e da moralidade assentes na honestidade, omitindo-se,
intencionalmente, a ideia de que a dívida é uma relação social entre devedores e
credores, em que todos são responsáveis, aplicando-se a ambos os padrões morais.
Foi nesta perspetiva que propus uma abordagem sociojurídica da culpa associada à
sociedade de austeridade (Ferreira, 2014). A formulação desta questão poderá ser feita
nos seguintes termos: em condições económicas e sociais consideradas normais, os 150
conflitos e os litígios associados ao consumo e aos empréstimos são resolvidos pelo
enquadramento jurídico do direito civil e do direito do consumo. A questão está, agora,
em que, no contexto de exceção da austeridade, a pressão sobre os
trabalhadores-consumidores assenta numa difusa consciência coletiva marcada pela
culpa.94 Mas, mais do que isso, verifica-se na consciência social e jurídica uma troca
simbólica nos termos da qual a responsabilidade civil privada se transforma na
criminalização da liberdade dos indivíduos. O exercício dos direitos subjetivos, 95
enquanto exigência da pessoa perante os outros, tendo por base o fundo voluntarista da
ação e o «dever geral de respeito ou obrigação passiva universal» (Mendes, 1984: 569), é
agora sancionado atendendo aos comportamentos irresponsáveis considerados
reprováveis. A dinâmica da liberdade individual, expressa nos direitos subjectivos,
94
O discurso da responsabilidade dos cidadãos consumidores pode, por isso, assentar na sua
ganância pelo consumo (Ranciére, 2005). Como Bob Jessop referia (2009), uma das explicações para a crise
financeira atribui a culpa aos consumidores que fizeram hipotecas sem terem a mínima intenção de as
pagar, utilizaram demasiado o cartão de crédito, e consumiram desenfreadamente, como se um dia não
tivessem de “prestar contas”. Assim, têm de assumir parte da culpa do impacto da crise financeira
incorporando-a na sua própria condição pessoal (<http://blog.theasa.org/?p=228>). Neste sentido,
trivializou-se no discurso dos governantes, nos debates públicos e nos comentários dos opinion makers a
referência ao problema da dívida das famílias e dos indivíduos, a que são associados os mecanismos da
culpa que justifica os sacrifícios.
95
De acordo com Castro Mendes (1979), destacam-se entre as correntes do direito subjetivo: a
teoria da vontade ou do “poder da vontade” de Savigny, Puchta e Windscheid; e a teoria do interesse ou do
interesse juridicamente protegido de Rudolph Von Jhering. Se, no primeiro caso, o conceito de poder da
vontade ou de um poder de querer se aproximava do individualismo liberal, em que a ideia geral de direito é
a de um conjunto de regras destinadas a coordenar entre si o máximo de liberdade dos membros da
coletividade, no sentido kantiano; a teoria do interesse repousa na ideia de segurança jurídica da fruição,
onde os direitos são interesses juridicamente protegidos. Neste caso o direito subjetivo é poder concedido
pela ordem jurídica para a tutela de um interesse ou de um núcleo de interesses de uma ou mais pessoas
determinadas (Mendes, 1979: 5-28;). A propósito da relação entre direito e subjetividade, consultar Renaut
(2010: 560 e ss.) e Ferry e Renaut (1984: 70-86).
torna-se fonte da “consciência coletiva da culpa”, criando um espaço de ambiguidade
onde os indivíduos, para além da renegociação das hipotecas e empréstimos, e do
aumento da taxa de esforço para assegurar os compromissos, são constrangidos pelas
reduções de salários, pelas reformas fiscais de equidade discutível e pela recessão dos
direitos laborais e sociais. Na atualidade, o homo juridicus da austeridade é um “homem
endividado” e progressivamente desprotegido dos direitos sociais com os quais podia
aspirar a um mínimo de segurança socioeconómica. 151
Neste quadro, a minha proposta de análise é a de que a publicização do direito
privado e a administrativização do direito público, enquanto características do Estado
social marcadas pela intervenção estatal, sofrem agora uma metamorfose nas relações de
poder. As relações entre credores e devedores constituem relações específicas de poder
que moldam formas específicas de produção e controlo da subjetividade – e do exercício
dos direitos subjetivos – nos termos das quais o homem endividado se afirma como
paradigma da personalidade jurídica.96 Deste modo, todas as relações sociais, seja entre
capital e trabalho, entre consumidores e fornecedores, entre utilizadores e prestadores de
serviços, etc., são agora perspetivadas a partir do denominador comum do sujeito
endividado. A dívida produz, deste modo, uma forma de dominação através da
moralidade complementar às conhecidas formas de controlo social emergentes da
regulação do trabalho. Esta ideologia do incumprimento e da falta para quem não honra
os seus compromissos, sobreleva juridicamente o princípio do pacta sunt servanda97
enquanto expectativa jurídica e orientação de referência para a ação, precludindo o
princípio do rebus sic stantibus 98 enquanto expectativa social resultante da
96
Numa perspetiva crítica, pode recuperar-se a ideia de Michel Miaille (1979: 104-132): “os falsos
«dados» do sistema jurídico”. Afinal de contas, a pessoa jurídica é apresentada como um dado básico do
sistema de direito, expressando vontade, interesse e, mesmo, poder, independentemente da possibilidade
efetiva dos indivíduos formarem a sua vontade, manifestarem interesse e exercerem poder. Isto é,
personalidade jurídica enquanto entidade independente da possibilidade e capacidade de protagonizar a
experiência da liberdade individual. À afirmação da personalidade jurídica universal contrapõe-se a ideia de
que a equivalência entre personalidade jurídica e indivíduo real está longe de ser evidente. Pessoa enquanto
pessoa jurídica é uma noção histórica e desenvolve-se de acordo com as condições de hegemonia do
capitalismo.
97
“Os contratos devem ser cumpridos” (Correia, 1958: 343).
98
Significa: estando assim as coisas. Entende-se geralmente que nos contratos a longo prazo e com
prestações periódicas sucessivas deve considerar-se implícita a cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual
transformação das condições objetivas do contratado inicialmente. 99 Aliás, pode
considerar-se que, ao tornar os devedores como elementos constitutivos do mesmo grupo
de referência, se pode gerir e harmonizar politicamente os diferentes grupos de pertença
pelos quais se distribuem os indivíduos na estrutura social, manipulando os processos de
mobilidade social e de privação relativa.100 Diluem-se as relações de poder, subjacentes
às assimetrias e desigualdades inscritas nas relações sociais, através de um processo
simbólico de falsa igualitarização dos sujeitos da relação jurídica. Todos são portadores de 152
direitos subjetivos e são requisitados e colocados harmonicamente no espaço público, e,
por isso, igualmente responsáveis pelo cumprimento moral dos contratos privados, agora
tornados obrigação política comum.
Para concluir, sublinho que a publicização do direito privado corresponde a uma
metamorfose do contrato civil do direito privado enquanto elemento da agenda política.
Por essa razão, os padrões de interação e de sociabilidade entre credores e devedores
tornam-se ambivalentes, facilitando a confusão entre responsabilidades individuais
emergentes dos contratos de direito privado e as obrigações políticas associadas ao
contrato político e ao interesse geral.
as alterações mais ou menos profundas, não previstas pelos contraentes, que venham a verificar-se na
situação de facto existente à data da celebração do contrato e tornem o cumprimento deste
demasiadamente oneroso para uma das partes, permitem que esta peça a rescisão ou alteração do contrato
(Correia, 1958: 408).
99
A articulação entre as expectativas cognitivas, traduzidas em práticas sociais, e as expectativas
jurídicas, traduzidas nas práticas jurídicas, harmonizam-se através do processo de socialização jurídica,
tendo por referência o processo de positivização do direito. O direito surge aqui como redutor da
complexidade social na medida em que decide conflitos de forma impositiva e estabelece sanções no caso
de transgressões. A efetividade do direito resulta da congruência entre as expectativas e práticas sociais e as
expectativas e práticas jurídicas, quer esta resulte da aceitação da norma jurídica relevante tendo em
consideração a inerente sanção por violação, quer de uma interiorização intensa das normas jurídicas
expressas por uma orientação voluntarista da ação assente na boa-fé (cf. Guibentif, 1992).
100
A este propósito, consultar, entre outros, Merton (1970: 305 e ss.).
As análises que sustentam as articulações existentes entre a justiça e a democracia
são, como já tive oportunidade de mencionar (cf. tópico 3), imprescindíveis na
investigação dos fenómenos sociojurídicos. A transformação do papel da justiça no seio
das sociedades democráticas decorre, em larga medida, das fragilidades das democracias
parlamentares. Uma obra de referência a este respeito é a de Antoine Garapon, O
Guardador de Promessas (1998), na qual o autor faz uma crítica das atuais interações
entre a justiça e a democracia, explicando que um dos paradoxos que se vive na 153
atualidade é o do risco e possibilidade de uma democracia jurídica, ou do governo dos
juízes, se substituir à democracia política. Em todo o caso, a justiciabilidade da política é
um fenómeno captado pela noção de judicialização. Antes de mais, a judicialização através
dos processos judiciais nos casos de corrupção, envolvendo políticos. Depois, a
judicialização da crise do Estado social que fez com que o sistema judicial se encontrasse
envolvido nos debates públicos centrais sobre as disputas em torno da legitimação desse
modelo político e económico, o que operou uma mais ou menos intensa redefinição do
lugar ocupado pelo poder judicial face aos poderes legislativo e executivo. Por fim, a
judicialização da austeridade sob a qual me debruço. Neste caso, está-se perante a
judicialização da política, em que o ativismo judicial surge ligado à questão social, não
mais na ótica da avaliação judicial da incapacidade de resposta do Estado Social às
expetativas dos cidadãos relativamente ao seu desempenho, mas sim centrada no
envolvimento crescente da justiça constitucional no questionamento da validade dos
princípios do Estado Social pelas opções do bloco legislativo-executivo. Foi esta a tese que
defendi e que mantenho como válida, por considerar que a judicialização da política
perfila-se como um indicador sociológico privilegiado das tensões políticas e sociais
associadas à implementação do modelo da austeridade a coberto de uma retórica de
excepcionalidade (Ferreira, 2014). Assim, um dos sinais deste tempo de crise é o crescente
protagonismo judicial na sua relação com a política, numa combinação direta com os
défices resultantes das limitações da democracia representativa e da soberania popular.
Não causa, por isso, surpresa que o atual contexto de austeridade coloque um
novo desafio à justiça constitucional, implicando-a num processo de substituição das
obrigações políticas do Estado para com os cidadãos através da redução de direitos, ao
abrigo do imperativo da excecionalidade. A situação do poder judicial – e dos tribunais
constitucionais em especial – adquire uma centralidade renovada no presente contexto de
crise, sendo crescentemente nuclear no debate público o modo como ele se articula com
as decisões políticas que veiculam a austeridade. Em face do argumento da normatividade
de exceção associada à austeridade, a fronteira entre o constitucional e o inconstitucional
torna-se inevitavelmente um campo de forte disputa política, com particular ênfase para o 154
modo e a intensidade como as decisões dos tribunais valorizam a singularidade do atual
momento. Do mesmo modo, alterações das circunstâncias que determinem a invocação
da excecionalidade para a legitimação da austeridade colocam sob pressão as
interpretações da legislação feitas pelos tribunais. É no âmbito desta tensão que a
jurisprudência constitucional adquire um novo protagonismo, que se configura como uma
judicialização das políticas de austeridade.
A judicialização – designadamente constitucional – das políticas de austeridade
corresponde ao escrutínio “da desigual distribuição da austeridade” (Ferreira, 2012: 46),
modelo de regulação político-económico orientado pela imposição de sacrifícios a todos
os cidadãos. Ora, é esta dimensão coletiva do sacrifício e do esforço de cada um dos
cidadãos que suscita a ponderação entre, por um lado, o bem comum e a busca de
soluções orientadas pela equidade e justiça sociais e, por outro, a eficácia das políticas de
consolidação orçamental. A incapacidade evidenciada pela esfera do político em
encontrar os equilíbrios necessários à prossecução desta orientação, visibiliza a justiça
tornando-a num “espaço de exigibilidade da democracia” (Garapon, 1998: 46).
A relação entre a justiça e a democracia é um elemento muito importante no
quadro da discussão dos fenómenos da judicialização da política. Tem-se insistido na ideia
de que a falta de qualidade da democracia e as perversões do sistema representativo têm
contribuído para a transferência das expectativas dos cidadãos da esfera do político para a
esfera do judicial. Por esta razão, a centralidade adquirida pela justiça interpela a noção
de soberania popular criando um espaço problemático de permanentes deslocações entre
as reivindicações políticas que se judicializam e a devolução através das decisões
jurisprudenciais das mesmas para o espaço público 101.
101
Na teoria política contemporânea, desde os anos 1970 até aos dias de hoje, tem-se assistido a
um deslocamento da democracia da esfera parlamentar para a esfera dos debates acerca da justiça social,
iniciados com a publicação de Uma teoria da Justiça, de John Rawls (1981 [1971]).
convocar-se as discussões sobre o novo constitucionalismo, nomeadamente, quando se
sublinha a ideia de que o ativismo judicial surge quando se está perante situações em que
o Estado intervém, seletivamente, na prossecução de políticas públicas. Dois cenários
interpretativos estão em aberto, o de observar a atividade judicial no quadro das suas
funções regulares de fiscalização e aplicação do direito, ou o de admitir um papel mais
interventivo do judicial, podendo este roçar a judicialização das políticas de austeridade.
156