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A crise da

psicologia contemporânea - I

FRANCO Lo PRESTI SEMINeRIO

Ao completar um século de existência, um século de hlstória formal e convencio-


nalmente consagrada, a psicologia revela-se em crise. Uma crise que atinge o
sentido das ciências humanas e que volta hoje a questionar, mais uma vez, o
próprio status de cientificidade da psicologia.
Estamos perante uni questionamento que Dlo decorre tanto da pluralidade de
SWIi teorias fragmentadas em direções aparentemente incompatíveis; e nem
depende substancialmente da irredutibilidade de suas infra-estruturas epistemoló-
gicas freqüentemente polarizadas em posições antinômicas; tampouco parece de>
rivar da polêmica metodológica sobre os meios disponíveis para validar empirica-
mente os dados desta ciência.
O que realmente pesa para a crise contemporânea não é esse fermento de
oposições que poderia até tornar-se um impulso à dinâmica de seu progresso. O
que realmente pesa na crise de nossos dias Dlo está no plano da sintaxe ou da
semântica da c1ência, e sim no plano da pragmática. ~ um questionamento que,
por essa via, coloca em cheque os pr6prios objetivos da ciência e de seus usos.
Poderíamos entender melhor esta problemática se nos perguntássemos inicial-
mente: o que visa a ciência? Por que o homem e a cultura construíram a ciência?
A resposta mais imediata é que a ciência foi concebida e elaborada como um
recurso para se ,poder viver melhor, através de um maior controle da natureza. Por
meio desse cqntrole o homem procurou um recurso objetivo para transcender suas
pr6prias limitações, concretizando, assim, ainda que parcialmente, mas já no plano
da realidade, o que o mito e a ~gia s6lhe permitiam efetuar no nível da imagina-
ção. E através da ciência o homem subjugou Inúmeros aspectos e forças da natu-
reza até que, nessa marcha, o paradoxo não tardou a aflorar, quando o homem se
descobriu no seio dessa mesma realidade e passou a buscar o controle de sua
pr6pria natureza.
Ao tomarmos consciência e ao refletirmos sobre este objetivo pragmático
semPre implícito na construçlo de uma psicologia científica, poderemos penetrar
no âmago do problema básico que vem determinando a crise contemporânea.

Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro, 32 (1): 13-29, jan./mar. 1980


Controlar a natureza humana através da ciência significa controlar o próprio
ser humano, seus comportamentos e seus atos observáveis e até mesmo sua expe-
riência subjetiva, suas cognições, suas motivações, seus valores, enfim os determi-
nantes não-observáveis de sua conduta. E aqui surge a pergunta inicial: controlar o
homem, mas para qual fim?
Se tentássemos formar um quadro, derivando-o das proposições de Szasz,
Foucault, Laing e, até certo ponto, Lacan e Canguilhem, poderíamos descrever a
psicologia de nossos dias dentro de poucas pinceladas candentes e impregnadas de
marcantes conotações emocionais. É, aliás, o que até certo ponto N. Heather 1
tentou fazer, ao apreciar as perspectivas, radicais em psicologia.
Nesse quadro, a psicologia teria deixado de ser uma ciência para se converter
numa tecnologia apta a exercer o controle dos seres humanos para fins esdrúxulos.
Segundo J. Lacan, "não há ciências do homem, pois que não existe o homem
da ciência e sim apenas o sujeito"; contudo, "a psicologia ( ...) descobriu os meios
de sobreviver nos ofícios que ela oferece à tecnocracia";2 e, segundo Canguilhem,
é impossível fundar uma psicologia como teoria geral da conduta - dentro da
proposta de D. Lagache - UJlla vez que sua "unidade se parece mais a um pacto de
coexistência pacífica concluída entre profissionais do que a uma essência lógica";
e, ainda, a opção científica foi desde o começo a de se estudar o homem numa
ótica instrumentalista e utilitarista de tal modo que caberia perguntar ao psicólo-
go: "dizei-me em que direção tendes para que eu saiba quem sois"; e, finalmente,
conclui Canguilhem com a célebre galhofa de que o psicólogo, ao sair da Sorbonne
pela Rue St. Jacques, tem dois caminhos: um rumo ao Pantheon, outro direto para
a Chefatura de Polícia?
Neste quadro a psicologia poderia ter-se tomado um sutil e sofisticado instru-
mento de opressão através de seus diversos campos e especializações entre as quais
estaria necessariamente incluída a psiquiatria.
Assim, a psicologia da educação seria apenas um meio para tomar mais efi·
cazes os processos educativos, os quais, por sua vez, teriam como -objetivo moldar
os seres humanos de acordo com o modelo socialmente fixado a partir da ideo-
logia dominante. Seria um recurso para perpetuar melhor, nas gerações subse-
qüentes, um modo de valorar e de viver que assegure a manutenção do status quo
imperante.
A psicologia do trabalho, nessa perspectiva, seria outro instrumento de subju-
gação dos seres humanos a certos interesses nunca claramente confessados. Recru-
tamento, seleção e treinamento afiguram-se nesse quadro como o auge do requinte
na exploração do homem pelo homem. Até mesmo a tentativa de oferécer me-
lhores condições de trabalho seria, no fundo, uma hábil e maquiavélica manipu-

1 Heather, N. Perspectivas radicais em psicologilz. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.


2 Lacan, J. Ecrits 11. Seminário La Science et la Vérité .. Paris, Ed. du Seuil, 1971, p. 224.
3 Canguilhem, G. O que é a psicologia? trad. ln: Tempo Brasileiro, Epistemolop, 2 (30/31):
104-23, 1972/73.: .

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lação exercida sobre a boa-fé e a ingenuidade do. trabalhador para explorá-lo
melhor e sem recriminações.
A psiquiatria e a psicologia clínica, por sua vez, surgiriam nesse contexto com
o objetivo de prevenir e corrigir os desvios: sempre que alguém se revolte contra o
sistema de injustiças e a irracionalidades que o rodeiam ele será o doente e, para
isso, o tratamento deverá reconduzi-Io àquela normalidade que a sociedade exige.
Esta é, aliás, a conhecida tese R. Laing4 e, segundo SchefP seriam as regras
residuais, nas quais está incorporado o não-dito, as que são transgredi das e pre-
cisam ser restabelecidas nesses casos.
Finalmente, ainda neste quadro a psicologia forense e judiciária estaria a
serviço da mais refinada iniqüidade, uma vez que a sociedade, como os antigos
deuses fIlisteus, exige o sacrifício de suas próprias vítim;ts como reparação e
regulação de suas injustiças.
A obra de M. Foucault, Surveiller et punir,6 levanta informações essenciais à
compreensão desse fato.
Preliminarmente queremos afirmar que acreditamos plenamente que tudo isso
realmente aconteça. A posição que vamos defender aceita tudo inicialmente como
um dado de realidade incontestável, sem a pretensão de voltarmos mais adiante e
duvidar desses fatos. Mas há três pontos que consideramos indispensável aclarar.
Em primeiro lugar, essa realidade, ou seja, a tentativa de um uso ideológico da
psicologia ou da ciência não é apenas um mal da nossa sociedade ocidental: é a
enfermidade contemporânea do mundo inteiro. Em segundo lugarro-uso indese-
jável da psicologia ou de qualquer ciência não é tudo o que se faz ou que se pode
fazer nesse campo. É perfeitamente possível fazer ciência e psicologia sem atender
a esses objetivos escusos, explícita ou implicitamente. Em terceiro lugar, os usos
de uma ciência, bem como todas as tecnologias que dela podem derivar, inde-
pendem e não afetam necessariamente a cientificidade de suas proposições.
Vamos analisar o problema em cada um de ~eus aspectos.
A psicologia da educação, ,bem como a própria educação, é oeampo onde a
polêmica pode ser colocada em termos mais precisos.
Educar é formar e, conseqüentemente, moldar pessoas segundo um conjunto
de princípios e regras que a sociedade considera válidas; mas essa validade decorre
dos valores e da ideologia dominante. Cada sociedade, no passado ou no presente,
forma os homens segundo tais princípios. Logo, as diferenças existentes entre os
diversos modelos educacionais decorrem das diferenças existentes entre as plata-
formas valorativas das distintas culturas. Quanto a este aspecto existe hoje um
consenso. O verdadeiro problema surge à medida que se reconheça uma dupla
camada de princípios sociais: os que são publicamente declarados e emocional-
mente enfatizados, por um lado, e o "fío-dito por outro; ou seja, quando se admite

• Laing, A. R. & Esterton, A. Sanity. madnellll and the family. London. Tavistock Publ., 1965.
5' Seheff. F. J. Being ment~lity nr:a IIOciological theory. Chicago, Aldine Press, 1966.

6 Foucault, M. Surveiller et punir. NaillSllnce de la prillOn. Paris, Gallimard, 1975.

Crise da psicologia - I 15
que as verdadeiras regras do jogo estariam sempre sendo camufladas e encobertas
por tais princípios públicos. Na colocaçã'o de P. Ricoeur, essa infra-estrutura da
sociedade seria o equivalente social do inconsciente individual freudiano.
Assim, do mesmo modo que a consciência em cada indivíduo só consegue
admitir e atribuir a si mesma objetivos percebidos como construtivos, analoga-
mente, no plano social, tudo o que atender a interesses escusos, incompatíveis
com a idealização estabelecida pela fachada pública, estaria sistematicamente
oculto; mas, no fundo, seriam essas as regras que governariam o jogo sem serem
declaradas: o não-dito. E mais ainda: também se repetiria nas sociedades, outro
aspecto que Freud mostrou ocorrer em cada indivíduo. Somente os que estã'o
longe ou fora do problema podem começar a enxergar a autenticidade dos motivos
subjacentes e camuflados. A racionalização nunca chega a ser percebida como tal
pelos que estiverem nela envolvidos.
No caso das civilizações e das culturas também se toma possível uma análise
mais objetiva através da distância no tempo ou no espaço. A sondagem dos reais
motivos pelos quais se formava o homem medieval era praticamente impossível
naquela época; já hoje o problema se tornou bem mais delineado.
AqUi talvez pudéssemos colocar uma primeira e importante dúvida: será que o
próprio modo de se propor o problema do não-dito já é o produto de outro
não-dito mais profundo e mais reprinúdo? E onde chegaremos por semelhante
encadeamento?
O que queremos apontar é que em cada momento histórico essa busca do
não-dito poderia sofrer uma distorção: o homem medieval seria, talvez, levado a
buscá-lo a partir de uma plataforma teolÓgica, mística ou mágica; enquanto nos
últimos dois séculos a ênfase volta-se para os determinantes econômicos.
É precisamente sob este ângulo que levantamos a hipótese de uma possível
inversão na maneira de compreender a determinação de certos fatos: enquanto,
nas colocações atuais, a estrutura econômica é freqüentemente defInida como
infra-estrutura, da qual a psicologia e a ciência poderiam decorrer em suas dife-
rentes modalidades e objetivos, em nosso entender a economia e seu manejo já
poderia ser a concretização de exigências psicológicas bem mais profundas: neste
caso, até as injustiças sociais existentes seriam o produto de aspectos primitivos da
natureza humana que usariam - em nossa sociedade - instrumentos econômicos,
assim como poderiam utilizar em outras sociedades instrum~ntos distintos.
W. Reich foi talvez quem .primeiro destacou esse fato quando declarou que a
falência da revoluçã'o russà foi devido à manutenção de um padrão de fundo
patriarcal e altamente autoritário e repressivo. 7 O papel repressor antes exercido
pela estrutura econômica havia-se transferido para a estrutura política, mas a
submissão das massas humanas continuaria a ser ,exercida sempre pelo mesmo
mecanismo através da formação de estruturas de.caráter nas crianças. E Reich via
no caráter o modelo de resistência contra o-prazer instalado em cada ser humano.

7 Reich, W. Mass psichology of fascismo p. 297.

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o caráter seria, portanto, o processo psicológico profundo através do qual
qualquer ideologia, pela mediação da educação, poderia estabelecer a subjugação
dos seres humanos.
Nesta colocação os processos psicológicos ligados quer à formação de caráter,
quer à necessidade de poder, assumiriam o primado: a economia poderia ser
apenas um meio quando utilizada para exercer uma ou outra forma de dominação;
mas a psicologia emergiria como uma ciência autêntica apta a desvendar a gênese
desse processo e a impedir ou prevenir a ocorrência de novas iniqüidades.
Se Reich via na organização do caráter a couraça contra o prazer e nessa
repressão permanente o autêntico mal-estar de toda civilização, é importante
observar que não somente H. Marcuse apresenta uma flagrante afinidade com esse
ponto de vista, mas também, por paradoxal que pareça, B. F. Skinner.
Para Marcuse, 8 dentro de uma linguagem freudiana, o problema da repressão
do prazer, do instinto libidinal é uma constante na civilização, sempre dominada
pelo império do instinto de morte. Mas uma constante nll'<>necessária - como
era para Freud :- e que é possível remover podendo-~e um dia chegar a uma
civilização não mais repressiva e, conseqüentemente, não mais injusta e tampouco
sofredora.
Para Skinner, dentro de uma linguagem behaviorista, o problema liga-se ao
controle do comportamento humano. É impossível para Skinner deixar de exercer
controle; o essencial é, portanto, "não livrar o homem de todo o controle, mas
apenas de alguns tipos de controle".' Ele precisa abandonar todo controle vincula-
do a conseqüências aversivas, que, por ser aparentemente o mais fácil, tem sido
universalmente o mais utilizado. O controle exercido através de reforçamento
positivo, embora mais difícil, é o mais indicado pela estabilidade de seus efeitos e
por não deixar rastros indesejáveis. A vida individual e social poderá tornar-se mais
agradável e menos penosa à medida que se elimine para todos o constante espan-
talho do castigo.
Nesta linha do pensamento skinneriano, preocupada em afastar o que é aver-
sivo, coloca-se também o famoso conceito de dignidade como valorização social
indesejável desses aspectos aversivos. O herói é justamente o que foi condicionado
a saber suportar maior taxa de estímulos aversivos. Mas à medida que a ciência
progride e as causas determinantes da conduta vã<>se tomando mais conhecidas,
esse conceito inconsistente de dignidade deixa de existir.
Cremos sei fundamental, neste ponto, remover um estereótipo freqüente-
mente divulgado pelps que talvez nunca leram com o devido cuidado a obra
Bayond freedom and dignity. Skinner nã"o é o defensor de um padrã'o mercantil e
consumista de sociedade. Muito ao contrário, ele chega a defender abertamente
uma utopia na qUal cada ser humano deveria chegar a produzir fisicamente seu

• Marcuse, H. Eros e dvilizaç4o. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.


9 Skinner, B. F. Beyond freedom and dignity. New York, Alfred & Knopf, 1972, capo 2.

Crise da psicologia - I lJ
próprio alimento, seu vestuário e até sua habitação, resttingindo seu consumo ao
mínimo indispensável, da mesma forma que deveria limitar sua prole. 10
Todas estas considerações podem e devem levar-nos a refletir. Ainda que a
psicologia aplicada à educação possa freqüentemente assumir o caráter de uma
manipulação direta ou indiretamente exercida, o seu papel não se esgota nesses
usos: há pelo menos duas grandes tarefas que poderão lhe caber no presente ou
num futuro próximo.
Em primeiro lugar, no processo educativo não há apenas a instalação de
valores e normas que podem sempre decorrer de um contexto histórico particular;
há também o desenvolvimento das potencialidades cognitivas e das necessidades
afetivas do ser humano que transcendem a contingência histórica de qualquer cul-
tura particular, pois descrevem a trajetória antropológica de uma evolução bem
mais ampla. É em relação a estas características transideológicas da natureza hu-
mana que cabe à psicologia um papel essencial. Mesmo aceitando a tese de Lacan,
de que não há homem da ciência mas apenas um sujeito, se este sujeito tiver carac-
terísticas universais tais como os aspectos racionais transcendentais da fenomeno-
logia ou os aspectos empíricos do "sujeito epistêmico" piagetiano, haverá sempre
um campo de indagação e pesquisa das leis que regem a construção e o deseQvolvi-
mento desse sujeito. E, indiscutivelmente, o próprio Lacan trouxe notáveis contri-
buições para elaboração desse campo da psicologia. Seu penetrante estudo sobre a
psicogênese do real, do imaginário e do simbólico é o mais claro exemplo desse
fato.
Há um segundo papel no âmbito da educação para a psicologia como ciência
que se espera possa um dia desenvolver-se plenamente: é o estudo da psicogênese
da própria ideologia como processo psicológico independente dós conteúdos parti-
culares que a história lhe confere. O estudo da ideologia como verdade existencial
e como closura necessária perante a ambigüidade e a incerteza.
A ideologia, entendida como um metacódigo não apenas político, mas apli-
cável a qualquer campo da cognição humana, emerge como um processo eminente-
mente psicológico.
O ser humano, uma vez que não pode alcançar a plenitude de verificação
empírica no que lhe compete conhecer, permanece sistematicamente à mercê de
grandes lacunas; e essa margem de incerteza residual em qualquer processo verita-
tivo é sempre insuportável e tem que ser vencida através de uma decisão eminente-
mente valorativa que constrói, além da verdade formal e da verdade empírica, unta
verdade existencial ou ideológica. O fato de os psicólogos se declararem em nossos
dias behavioristas, gestaltistas, psicanalistas ou humanistas é a decorrência de uma
opção ideológica de ideologia científica, da mesma forma que no tempo de Galileu
ser geocentrista ou heliocentrista, acreditando que a Terra ou o Sol fossem o cen-
tro do universo, era uma opção ideológica por não haver ainda dados empíricos
que permitissem dissipar essa incerteza a um nível satisfatoriamente seguro.

10 Id. ibid. capo 9.

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Se a psicologia aplicável ao processo educativo é a que nos oferece as maiores
evidências de uma relação entre ciência e ideologia, a psicologia do trabalho é o
campo em que tais evidências assumem um caráter por vezes mais chocante. Como
já tivemos oportunidade de enfatizar, usar um ser humano como mero instru-
mento de maior ou menor produtividade 'e, conseqüentemente, como objeto de
rentabilidade e especulação repugna ao bom-senso e a qualquer forma de moral
existente.
Pensa-se freqüentemente que a socialização das atividades de trabalho pode
vir a ser a solução cabal para tal situação. O que nós procuraremos apontar é que o
problema poderia transcender até mesmo essa solução.
Não bastariam em nosso entender medidas desse tipo e a demonstração mais
clara é que, ao lado de um Taylor ou de um Fayol, alinharam-se na URSS um
Stakhanov e um Agarkor, formulando idêntica proposta de manipulaçã'o do tra-
balhador.
Poder-se-ia objetar que não é mesma coisa para um trabalhador consumar um
esforço adicional em benefício de outras pessoas ou de uma comunidade, mas
poderia ainda ser esta igualmente uma inverdade à medida que continuasse a recair
o maior sacrifício sobre determinados grupos de pessoas e o maior benefício sobre
outros grupos, fato que se toma evidente em todos os regimes totalitários. E
mesmo independentemente dessas desigualdades, poderíamos relembrar que, em
qualquer cultura ou em qualquer regime, até o presente momeIlto, para que pos-
samos ter em nossa mesa um copo e em nossas janelas um vidro haverá grande
número de seres humanos se destruindo fisiologicamente em temperaturas até 80°.
É aqui que o papel do psicólogo e da psicologia podem-se tomar essenciais.
Há pouco mais de uma década o mundo vem despertando para esse pwblema em
termos de uma tecnologia verdadeiramente renovadora: a ergonomia, que visa
reformular o trabalho, seus utensílios, suas ferramentas, seus ambientes e até a
própria cultura em todas as suas manifestações, colocando-a a serviço do homem e
subordinando tudo às exigências psicofisiológicas de cada ser humano.
É chegadO historicamente o momento de inverter o refrão da biologia adap-
tando-se o meio ao ser vivo. A verdadeira diferença entre a solução ergonômica e
todas as anteriores reside nos objetivos. Não se visa pela ergonomia maior produti-
vidade de qualquer empresa ou de qualquer nação; o que se busca é a dignificação
do ser humano pela redução efetiva de seu esforço, seu risco e seu erro. A ergo-
nomia é verdadeiro desafio da psicologia do trabalho de nosso tempo, uma plata-
forma em que os cientistas do Leste e do Oeste estão-se encontrando numa pro-
posta autenticamente humana e humanista.
Muitos conhecem o ardor com que defendemos e lutamos pela implantação
da ergonomia em nosso País. Não se trata apenas de uma postura filosófica ou
ideológica, pois cremos estarmos diante de um imperativo ético-social e de uma
exigência de sobrevivência da civilização. Para os que forem surdos aos apelos da
ética basta lembrar que em breve não haverá mais condições de encontrar trabalha-
dores dispostos a enfrentar tarefas penosas ou desgastantes. Prognósticos já realiza-

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dos na Inglaterra revelam que em poucas gerações toda a humanidade - inclusive
no Terceiro Mundo - poderá alcançar o nível superior. Não esqueçamos a rapidez
dessas transformações em qualquer país. Ainda no século' passado a taxa de analfa-
betismo era bem elevada na maioria dos países desenvolvidos. Hoje, na trajetória
dessa rápida evolução na Europa, já se vai delineando um fenômeno outrora
inimaginável: algumas siderurgias chegaram a importar mão-de-obra do continente
africano por não mais conseguirem-na em seu próprio país para tarefas altamente
penosas. E na maioria dos casos também esses trabalhadores em curto prazol
abandonaram esse emprego em busca de atividade melhor, o que aliás é justo e
desejável. Foi então que as siderurgias dirigiram seu apelo ao Centre d'Etudes
Bioclimatiques, de Strasbourg, um dos mais
importantes centros mundiais de ergo-
nomia, para reformular e humanizar as tarefas.
Talvez este problema, em termos de psicologia do trabalho, tenha muito a ver
com a freqüente discussão" em torno das teorias X e Y de McGregor. 11 Afinal,
ambas as teorias são válidas dependendo apenas do tipo de trabalho. óbvio que :e
ser advogado, engenheiro, economista, médico, professor ou psicólogo agrada
quase sempre, independentemente da remuneração. Mas seria totalmente absurdo
tentar afirmar que alguém tem vocação genuína ou aptidão marcante para ser
faxineiro ou estivador.
Uma pesquisa de seguimento nos ex-orientandos do ISOP,12 15 anos ap6s ter
sido ministrada a orientação, revelou um fato surpreendente e que dificultou a
interpretação inicial dos resultados: 80% desses ex-orientandos qualquer que fosse
o uso que tivessem feito da orientação. recebida, se declaravam satisfeitos com Sua
profissão. O fato é que quase todos eram profissionais de nível superior. Uma
sondagem pouco anterior, que fizemos em cobradores de ônibus, revelou distri-
buição diametralmente oposta aos resultados de satisfação, acentuando ainda o
que Maslow 13 aponta: nesse nível não há lugar para necessidade de realização; o
que leva o trabalhador a procurar ou a mudar de atividade é simplesmente um pro-
blema de pequenas melhorias salariais, motivadas pela necessidade de sobrevi-
vência e não pela maior gratificação das tarefas.
Dentro desse mesmo espírito colocaríamos em dúvida um aspecto da defi-
nição de maturidade vocacional de Super e Crites, que se refere especificamente à
aceitação de suaS próprias limitações quanto ao progresso no nível de estudos.
Ouve-se afirmar freqüentemente que muitos jovens não deveriam aspirar ao nível
superior. No entanto, os que emitem essa opinião são quase sempre pessoas gra-
duadas em nível superior e que dificilmente aceitariam para si tais limites.

1 1 McGregor. The Human size of enterprise. New York, McGraw-Hill, 1960.


12 Cavalcanti, M. V. G. & Augras, M. Estudo de seguimentos: controle dos resultados obtidos
na orientação profissional. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada. Rio de Janeiro, FGV,
(1): 7-25, 1971.
13 Maslow, A. Motivação e personalidade. Harter & Brothers, 1954.

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É claro que a saturação das profissões de nível superior é também um pro-
blema grave, notadamente em face da autêntica poluiçã'o do mercado de trabalho
originada pela proliferaçã'o das escolas de nível superior, que muitas vezes não
proporcionam o preparo exigido em cada profissã'o. Mas a possibilidade de um
mundo futuro em que seja facultado a todos concluir mo apenas um 1.0 grau -
perspectiva utópica há um século e plenamente válida hoje - mas até mesmo um
curso universitário, é mais agradável. Obviamente, o desafio para o psicólogo do
trabalho torna-se bem maior, uma vez que problemas práticos a serem soluciona-
dos poderão depender de propostas basicamente psicológicas.
É interessante observar que, sem se reportar especificamente à ergonomia, H.
Marcuse,14 em 1952, previu uma gradativa soluçã'o dos maiores problemas sociais
à medida que o trabalho pudesse vir a ser reduzido a termos diminutos ~o futuro,
ficando entregue à tecnologia e à mecanizaçã'o a eliminação dos aspectos desagra-
dáveis. O tempo e a vida seriam, entã'o, recuperados para o lazer e principalmente
para o prazer, consagrando-se então naquele momento avit6ria do amor e da
libido sobre o instinto de morte, fonte da dor e da violência que exigiriam atual-
mente dos seres humanos toda espécie de sofrimento e castigo - nele se incluindo
o trabalho - através do princípio do desempenho, manifestaçã'o extremada do
princípio freudiano da realidade.
É de se esperar que a psicologia científica avance com rapidez suficiente para
poder enfrentar, a curto prazo, problemas desta natureza para os quais, em nosso
entender, qualquer medida política, por mais benéfica que possa vir a ser, será
sempre insuficiente e parcialmente ineficaz.
Ainda em relaçã'o à psicologia do trabalho, há um ponto a abordar: é o caráter
instrumentalista e utilitário do objetivo científico da psicologia em geral que G.
Canguilhem, desenvolvendo uma proposiçã'o de Nietzsche, aponta como a fragili-
dade intrínseca do saber psicológico. .
Parece-nos haver uma dupla falácia nesse argumento. Em primeiro lugar, há o
que E. Veron mostrou ocorrer no anticientificismo em que se extrapola da análise
de problemas relacionados com a pragmática de uma ciência para as relações
sintáticas (lógicas) e/ou semânticas (epistemológicas ou metodológicas).15 Em se-
gundo lugar, não haveria nenhuma razã'o de nã'o se desenvolver uma análise cientí-
fica em termos psicológicos dos aspectos instrumentais do psiquismo. Assim como
existe uma fisiologia desses aspectos instrumentais, tal como a locomoção, a mo-
tricidade, a percepçã'o, da mesma forma é possível admitir uma psicologia vincula-
da aos mesmos prOCessos. O que talvez Canguilhem poderia nã'o ter levado em
conta é que a inteligência mo é necessariamente um ~pecto central ou substan-
tivo - e, nesse caso, subvertido e degradado ao papel de instrumento - mas
poderia perfeitamente ser considerada um processo periférico e, nesse caso, instru-
mental da personalidade humana.

14 Marcuse, H. op. cito


15 Veron, E. Ideologia, estrutura e comunicação. São Paulo, Cultrix, 1977.

Oise da psicologia - I 21
Evidentemente, Canguilhem generalizou a psicologia dos aspectos instru-
mentais do psiquismo à exploração instrumental do ser humano, mas essa generali-
zação é, no fundo, paralógica.
Nesta mesma linha de pensamento conviria agora retomarmos temas aos quais
já nos havíamos reportado anteriormente, em particular, o que se refere à seleção
e ao treinamento profissional.
Sem prejuízo do que já foi afirmado, caberia discutir algumas perspectivas
atuais e futuras desses processos.
Quanto à seleção, há pelo menos duas implicações sociais diametralmente
opostas: sob um ângulo é um processo que atua negativamente, cortando ca-
minhos; sob outro, é um meio de evitar riscos para qualquer comunidade. Se um
trabalhador no desempenho de suas tarefas lidar com situações potencialmente
perigosas - para si e para os demais - a seleção, quando eficiente, poderá reduzir
esse risco. Basta pensar num exemplo clássico: se a seleção de médicos for bem ou
mal realizada, as conseqüências sociais serão óbvias.
Em sentido amplo, acreditamos que há pelo menos três situações que justi-
ficam a existência de exames de seleção e seu aperfeiçoamento no intuito de
tomá-los mais objetivos. Em primeiro lugar, a pIesença ora levantada do risco para
si e para os demais; em segundo lugar, a possibilidade de se efetuar a seleção a
partir dos traços residuais - uma forma que sempre defendemos e que constitui o
inverso, um autêntico negativo da seleção propriamente dita - seria um recurso
para assegurar aos infradotados o privilégio no exercício das poucas ocupações e
tarefas que lhes restam; e, finalmente, o exame de tipo seletivo como medida
referencial ao longo de um processo de treinamento.
É evidente que há uma diferença crucial, em nosso entender, entre seleção e
treinamento. Este último processo, ainda que possa vir a ser realizado em função
de objetivos questionáveis, traz sempre consigo uma soma de benefícios pelo
progresso na aprendizagem e na qualificação de qualquer trabalhador com
conseqüente elevação dos recursos humanos de qualquer comunidade.
Na área da psicologia clínica e da psiquiatria, o mesmo problema vem repercu-
tindo há duas décadas de modo bem mais veemente.
Poder-se-ia afirmar que, se no tempo de Pinel foi levada a cabo uma primeira
revolução em relação à doença mental, uma segunda revolução de proporções bem
mais radicais vem sendo atualmente levada a cabo pelo movimento da antipsiquia-
tria. Até certo pon to este movimento integra a revolução promovida há quase dois
séculos por Pinel e poucos outros pioneiros, estabelecendo um respeito bem mais
amplo do ser humano quando é tido como doente. Nisto reside talvez sua con-
seqüência mais conhecida e mais positiva.
A reclusão do doente mental em hospitais, aliada a outras medidas, seria a
perpetuação do mesmo sadismo que existia em outras épocas e que deve, por-
tanto, ser gradativamente- extinta.

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Mas se o tratamento a ser dado ao doente mental constitui o aspecto positivo,
o ponto discutível dessa colocação situa-se em tomo da plataforma epistemológica
e particularmente de dois problemas interligados: o que é a doença mental e como
se desenvolve.
Caberia distinguir aqui posições como a de Szasz, que trata essencialmente do
primeiro problema, dele derivando o segundo; e de R. Laing, que trata predomi-
nantemente do segundo problema, dele derivando conclusões para o primeiro.
Para Szasz não há doenças mentais, só há doenças cerebrais. Isto é, em nosso
entender, incrível recuo, tentando anular os efeitos da revolução freudiana, entre
outros, e recolocando o obsoleto refrão do organicismo disfarçado atrás de um
pseudo-reducionismo sociogênico, mas na verdade pautado num autêntico redu-
cionismo fisiológico.
De fato, n[o se poderia falar em doença mental a n[o ser como uma metáfora,
no entender de Szasz,16 por não existirem regras, ou seja, leis e princípios univer-
sais que regem o funcionamento das estruturas mentais, da mesma forma que há
leis e princípios governando o funcionamento das estruturas anatomofisiológicas.
O mito da doença mental colocado nesses termos toma-se extremamente
frágil até mesmo perante a psiquiatria tradicional que se pretende combater. De
fato, esse argumento revela-se epistemologicamente impotente para afastar hipó-
teses bioquímicas usuais, como as ligadas ao metabolismo intermediário e à do-
sagem de enzima.s e mediadores na produção dos quadros clássicos da doença
mental.
Diferente é a posição de Laing, que se tem preocupado mais com a gênese da
doença mental.
Como para Szasz, o doente é o que não se sujeita às regras do jogo social-
mente imposto. Todavia, na perspectiva de Laing, a preocupação volta-se mais
para a elaboração, a fenomenologia e a dinâmica desse processo.
Há uma trajetória bem conhecida nas três fases de pensamento de Laing.
Partindo inicialmente (1961) de uma avaliação, em termos psicanalíticos, das
distintas partes do eu - as verdadeiras e as falsas, as que aceitam e as que rejeitam
as regras de um jogo impróprio _,17 chegar numa segunda etapa (1964) e sobreva-
lorizar o papel da família l8 para alcançar fmalmente (1967) uma conclusão para-
doxal: o homem sadio é o verdadeiro doente, o que se curva e se contamina com a
doença social, enquanto a personalidade realmente saudável, o esquizofrênico e o
místico ao se rebelarem passam a ser vistos como doentes. 19

I. Szasz. The Mythe of mental illness. Amer. Psychol., 15: 113-8, 1960.
17 Laing, A. R. O Eu e os outros: o relacionamento interpessoal. 2. ed. trad. Aurea Brito.

I.
WeissenpegfPetrópolis, Vozes, 1974.
Laing, A. R. & Esterton A. Sanity, madness and the family. London, Tavistock Publ.,
1965.
I 9 Laing, A. R. The Politics of experience and the bird of paradise-harmonds worth. Penguin,
1967.

Crise da psicologio - I 23
Não negamos que possa ocorrer também essa forma extrema de determinação
na doença mental. Mas em nosso entender esse fenômeno está bem longe de
esgotar o complexo problema da doença mental.
De fato, da perspectiva de Laing deveríamos tirar duas conclusões: em prin-
cípio, ou toda e qualquer sociedade é e será sempre doente, como na tese da
sociedade repressora de Freud, e, neste caso, somente o contestador e o dissidente
são sadios; ou então pode existir uma sociedade sadia, na qual somente o confor-
mista será o homem sadio e vice-versa. .
Isto acarreta de iní,.cio um retorno à perspectiva mágica de uma solução mes-
siânica como das grandes religiões históricas no passado. Acreditamos plenamente
na possibilidade de uma sociedade muito melhor e mais justa do que a atual.
Acreditamos que .as desigualdades hoje existentes deixarão de existir, mas não
parece lógico supor soluções terminantes e terminais. É mais realista supor um
processo no qual o aperfeiçoamento nunca termine, através das transformações
sociais do porvir, por maiores que elas sejam.
Neste aperfeiçoamento sempre haverá notáveis resíduos penosos e diferencia-
dos para cada ser humano. Neste caso o que parece mais válido será tentar avaliar
como cada resíduo opera na estrutura de cada um e no processo de interação entre
o indivíduo e a sua sociedade. Dito por outras palavras, não cremos que os
mesmos tipos de estruturas individuais reagiriam e sofreriam da mesma forma
perante os aspectos doentios da sociedade romana, da sociedade medieval ou da
sociedade contemporânea. Há mais ~a conclusão a ser tirada da perspectiva de
Laing. Se a primeira se referia ao papel da sociogênese da doença mental, a
segunda prende-se à natureza dessa doença, concebida como autêntica reação de
saúde.
Cremos seja este um perigoso equívoco, o de confundir contestadores e lou-
cos como também aproximar esquizofrênicos e místicos. É notório que em sua
obra de 1967 Laing chegou a colocar o misticismo como uma das mais altas
expressões da autenticidade e da vida mental.
Como já foi sobejamente mostrado, o ato de contestar não se confunde com o
delírio. O fato de terem existido contestadores, cientistas e artistas mentalmente
doentes é uma realidade, mas essa realidade nunca conseguiu apontar reforça-
mento das capacidades humanas a partir da evoluçã'o da doença. Muito a con-
trário, todos os gênios mentalmente doentes foram pessoas que conseguiram ven-
cer apesar da doença mental, e, quando esta avançou, sua produção ficou contur-
bada ou anulada, como é o caso de Nietzsche, Reich, Van Gogh e muitos outros.
Até mesmo fenomenologicamente, o ato de contestar é um ato de força sobre a
realidade, um ato bem organizado perante o real. O contrário exato ocorre numa
alucinaçlfo ou num delírio.
Há mais um argumento que é freqüentemente aduzido a favor da inconsis-
tência de conceito de doença mental: é o argumento tirado da práxis e que comete
a clássica falácia de querer negar uma lei a partir de um erro técnico humano. É a
impreciSlfo dos diagnósti""s psiquiátricos. Isto talvez se deva ao limitado avanço

24 A_B.P. 1/80
da psicopatologia teórica. Sob este ângulo estamos convencidos de que a fonnaçlo
dos psiquiatras, ainda mundiahnente conservada na área médica, ou seja, na área
biofisiológica, nlo ajude muito para o progresso da psicopatologia. A fisiologia é
sem dúvida um domínio de conhecimento conexo mas não o campo substantivo.
A.ssim como a patologia orgânica é o aspecto franjal da fISiologia e da anatomia, da
mesma forma a psicopatologia é a área franjal da psicologia. E a psiquiatria é
psicopatologia aplicada. .
Ora, se a psicologia constituiu como um campo de especialização hoje distinto
da medicina, da fIlosofia e da educaçlo, nlo há razlo para uma especialização·
dessa especialização nlo lhe pertencer, sob pena do que está ocorrendo; e o maior
prejuízo vem sendo o que recai sobre os próprios psiquiatras obrigados a se con-
verterem em autodidatas de psicologia ou até mesmo em alunos, novamente, de
cursos de psicologia, o que é uma aberração em ambos os casos. A não ser que se
reduza novamente a psiquiatria à neurologia, o que está implícito na perspectiva
de Szasz quando alega que só existem doenças cerebrais.
Mas neste ponto toma-se fundamental considerar que a imprecisão de
qualquer diagnóstico nlo afeta as possibilidades de uma ciência, poderia apenas
informar sobre seu nível de desenvolvimento.
Mesmo assim, dessa imprecisão decorre mais um aspecto freqüentemente c0-
locado como um argumento contra a cientificidade da psicologia: sã'o os usos
iníquos da psiquiatria e, generalizando, de toda psicologia clínica.
No mundo ocidental, a partir dessa colocaçlo há um argumento freqüente-
mente discutido em termos ideológicos: a psiquiatria seria um meio de opressão
exercido sobre a classe trabalhadora.
Na rea'idade, a este problema superpõem-se dois fatos: em primeiro lugar, o
tipo de tratamento dado a um paciente, seja ele doente mental ou não. O que
efetivamente se registra é que todo doente de qualquer tipo, físico ou mental, em
nossa sociedade é atendido melhor ou pior em funçlo de seus recursos financeiros.
Esse é o verdadeiro e grave problema social.
A partir desse fato não há condições suficientes para se supor que a doença
mental seja uma espécie de engodo criado para fins de opressão. O que ocorre é
que as pessoas mais carentes economicamente, quando adoecem mental ou fisica-
mente, muitas vezes n[o recebem o tratamento condigno que todo ser humano
merece.
O segundo fato que salta à vista é que os doentes mentais não pertencem
somente às classes menos abastadas. O número de pessoas doentes em todas as
classes sociais é um problema alarmante e tampouco há sinais de dif_nças entre
países ricos e países pobres. No decorrer da história é conhecida a loucura e os
desatinos de soberanos.
Basta lembrar o Rei Carlos VI, da França, cujo reino ficou entregue à pior
anarquia e à conseqüente derrota na Guerra dos Cem Anos, e de seu neto Hen-
rique VI, da Inglaterra. Isto sem abordar o espinhoso problema desenvolvido por

Crise da psicologia - I 25
Erich Fromm acerca da doença mental dos autênticos opressores do nosso século,
como AdolfHitler, Heinrich Himmler e Joseph Stalin.
Nã'o pretendemos negar que os conflitos decorrentes de graves dificuldades
econômicas possam tornar-se determinantes diretos ou indiretos da doença
mental; o que questionamos é que sejam esses únicos determinantes. Parece mais
lógico supor que qualquer frustraçã'o marcante acompanhada de prolongados con-
flitos possa ter tais efeitos, mormente quando sofrida nas etapas evolutivas e
plásticas da infância.
E talvez o mais importante ainda seja lembrar que em qualquer doença,
mesmo física, existem condições determinantes que nã'o se confundem nem com a
etiologia e nem com a patogenia.
Se esta mesma discussã'o tivesse sido suscitada há um século iria atingir as
pesquisas de Pasteur podendo-se duvidar da etiologia microbiãna das doenças físi-
cas. Poderíamos de fato nos perguntar, seguindo a atual falácia: doenças precisam
de bactérias para serem explicadas? Nã'o bastam a miséria e as dificuldades mate-
riais? É óbvio que tais condições existem mas a evoluçã'o intrínseca da doença
prende-se a leis fisiológicas, e, no caso da doença mental, é mera precipitação
afastar a existência dessas leis e desses princípios pelo fato de nã'o terem sido ainda
suficientemente esclarecidos.
De qualquer modo, graças ao advento da antipsiquiatria, uma transformação
radical está ocorrendo no tratamento psiquiátrico. Esperamos, portanto, que a
curto prazo possa ser erradicado o pior de todos os usos: o uso policialesco da
psiquiatria como arma para se aniquilarem dissidentes e inimigos do Estado nos
regimes totalitários.
Cremos convictamente que todos os que utilizam deste modo a psiquiatria e a
psicologia e, em sentido abrangente, todos os que utilizam a mentira e a violência
como meio de dominaçã'o nll'o poderiam prejudicar mais seriamente a causa que
imaginam estar defendendo.
Nã'o poderíamos encerrar esta resenha dos problemas da psicologia clínica
sem afirmarmos que há um imenso uso, quer profllático quer corretivo, da psico-
logia clínica; por sua natureza, será sempre aplicável em qualquer tipo de socie-
dade: é sua utilizaçã'o a dinâmica das relações afetivas as quais ainda constituem o
lado mais profundo e dinâmico da vida e do psiquismo.
Concordamos plenamente com Erich Fromm no sentido de que a necessidade
e a capacidade de dar e receber afeto sã'o ainda e sempre serão a razão essencial do
existir de cada um. Concordamos também com Fairbairn ao afirmar que somente
pela dependência amadurecida entre os seres humanos será possível superar o
egocentrismo da dependência infantil.
Cremos, portanto, que a mais importante revoluçã'o a ser operada - ainda que
utópica - seria talvez a que permitisse aos seres humanos perceber e sentir de um
modo distinto do primitivismo afetivo em que a humanidade ainda se debate.

26 A.B.P.1/80
Nesse dia as transformações sociais serlfo eficazes sem o perigo de se transfe-
rirem os meios de subjugaçlfo do homem a partir do atual instrumento econômico
para outros instrumentos e formas de poder.
Neste particular concordaríamos ainda com a proposiçlfo que N. Heather atri-
buiu a Laing, para o qual "nenhuma revoluçlfo meramente econômica poderia mu-
dar a resposta da sociedade aos seus desviantes e ampliar as possibilidades huma-
nas, sem uma concomitante mudança na consciência do homem".2o
Nlfo poderíamos encerrar nossa discusslfo sem enfrentar conclusivamente o
aspecto epistemológico deste problema. À medida que o mesmo já foi por nós
extensamente discutido em artigo anterior,21 vamo-nos cingir a dois problemas
essenciais.
Em primeiro lugar, negar a psicologia como ciência por ser apenas uma tecno-
logia de controle do comportamento significa negar a existência real desse con-
trole. Se nós quiséssemos questionar a cientifiCidade da física nuclear por ter sido
usada na bomba atômica, deveríamos concluir que essa bomba nunca explodiu.
Foi um ato de pensamento mágico ou uma fantasia. Se ela foi real é porque existe
um conhecimento empírico autêntico da infra-estrutura do átomo. E esse conheci-
mento - aspecto semântico do problema - poderá vir a ser utilizado em infinitas
técnicas - aspectos pragmáticos. Da mesma maneira, uma guerra bacteriológica
nunca invalidaria o saber científico da biologia e tampouco seus usos para salvar
vidas humanas. E o mesmo raciocínio é aplicável à psicologia ou a qualquer
ciência. O tabu da nlfo-utilizaçlfo de uma ciência porque já serviu a fms maléficos
é, no fundo, um pensamento mágico porque todas as condutas humanas já tiveram
ao longo da história algum uso nefasto.
O segundo problema prende-se a uma perspectiva que aproxima fundamental-
mente todas as críticas atuais movidas contra a psicologia e contra as ciências
humanas. Quando se coloca o homem como um produto exclusivamente histórico,
n!'o havendo, portanto, psicologia ou ciência humana porque suas leis MO são leis
universais, e sim resultados de uma determinada história particular, o que se está
propondo é mais uma forma de empirismo e positivismo radical.
No fundo há sempre um retorno ao velho argumento de Comte de que só é
ciência a descriçlfo do dado observável. Neste caso só existiria a fisiologia, por um
lado, uma vez que as respostas motoras slfo observáveis, e a sociologia por outro,
por ser a comunicaçlo interpessoal também observável. Entre as duas não poderia
haver psicologia.
A proposta de Comte suscita de antemlfo três objeções. A primeira é que
mesmo no plano do estritamente observável há níveis de organizaçlfo do que nós
podemos privilegiar: se atentarmos para uma microanálise do comportamento dos
órglos e dos tecidos estaremos fazendo um discurso fisiológico; se estivermos

20 Heather, N. Perspectivas radicais em psicologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1977, p. 112.


21 Seminério, F. L. P. Psicologia, ciência, educação. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio
de Janeiro, FGV, 31 (2): 5-16,1979. .

Crise da palcologia - I 27
atentando para a macroanálise das relações interpessoais estaremos fazendo socio-
logia. O que Comte esqueceu é que é possível ser ainda positivista e admitir um
nível de organizaçã'o Íntermediário: do organismo como um todo - as a whole no
dizer de Watson - do organismo como sujeito de comportamento. E devemos a
Watson, com seu famoso artigo Psychology as the behaviorist views it, de 1913, a
correçã'o dessa distorçã'o dentro de um contexto rigorosamente positivista. Desta
forma, a restriçã'o de Comte já permitiria a construçã'o de uma psicologia como
ciência ainda que dentro dos limites do behaviorismo, sem acesso a qualquer
forma de mentalismo.
A segunda objeçã'o que hoje se costuma fazer ao positivismo envolve outra
crítica bem mais abrangente: o cientista para poder descrever o observável coloca
no ato da descriçã'o um mediador essencial - sua própria linguagem impregnada de
certa significaçã'o organizadora. A proposta de neopositivismo surgiu para corrigir
especificamente essa limitaçã'o de positivismo clássico, dedicando-se intensamente
ao estudo das linguagens e, conseqüentemente, das ciências formais. Em psicolo-
gia, a adoçã'o dessa postura é responsável não apenas pela perspectiva de Clark Hull
e do neobehaviorismo, mas também pelo desenvolvimento de um grandioso e
questionado edifício: o da metodologia, da psicometria e da formalização cientí-
fica. Neste caso, o que se tenta controlar é a significação que o cientista utiliza
para fazer ciência.
Mas existe mais um uso da significação em ciência, o que nos leva à nossa
terceira objeçã'o. Se é perfeitamente vâlido que o cientista queira e possa colocar
entre parênteses a significaçã'o do autor da conduta, o que levará a um discurso
behaviorista, nada impede que se tente atuar cientificamente sobre essa mesma
significaçã'o, isto é, sobre o sentido do que leva cada um a agir. Este é, aliás, o
programa implícito ou explícito de todas as correntes mentalistas.
Poderíamos aqui remontar a Dilthey para vislumbrar uma primeira defmição
desse problema em termos de distinçã'o, outra explicação e compreensão, e à
fenomenologia para encontrarmos sua anâlise mais penetrante. Mas devemos indis-
cutivelmente à lingüística e à psicolingüística a operacionalização de métodos e
instrumentos para tratá-lo..
Há, uma evidência a considerar aqui: é que recentemente, um conjunto de
disciplinas no âmbito das ciências humanas e sociais tem-se voltado para este
campo do tratamento da significaçã'o que determina a conduta, quer em termos de
estruturalismo, de açã'o social ou do estudo da subjetividade a nível individual e
social.
A crítica de M. Foucault é que em todos esses casos estaria sempre em pauta
uma ciência exercida sobre a representaçã'o humana. 22 Em última análise, estamos
perante uma construçã'o científica de segundo grau em que o determinante es-
sencial nã'o é mais uma norma generativa original como para os demais fatos

22 Foucault, M. Les Mou et les choses. Paris, Gallimard, 1966, capo 10.

28 A.B.P.1/80
empíricos, e sim um conjunto de nonnas historicamente construídas. ~, portanto,
a ciência em que só é possível reverberar o dado ideol6gico que a construiu.
Em nosso entender, esta posição é uma fonna requintada de positivismo e
principalmente o aspecto extremado do" empirismo. O homem é mesmo uma
tabula rasa. Só há wna máquina fisiológica passiva como um computador na qual a
hist6ria - como fonna socializada de experiência - pode instalar qualquer tipo de
programa. Não há leis generativas, cognitivas nem afetivas dessa programação
mental, nã"o há sequer leis de aprendizagem nesse radicalismo, leis que organizem a
sistêmica da conduta humana, pois se houvesse tais leis, jã haveria um campo
transideológico e meta-histórico para se desenvolver uma psicologia científicà.
É exatamente esse campo que nós aqui reivindicamos como vãlido para pos-
tular uma ciência humana, pois o consideramos como a essência da psicologia no
presente e no porvir. Apesar das dúvidas, restrições, e críticas, a psicologia avança
em suas múltiplas dimensões, quer na vertente condutista, quer na vertente menta-
lista, em busca das leis que regem o comportamento e sua significação, consciente
e inconsciente, ideol6gica e transideol6gica.
Nunca poderíamos negar que o ser humàno é um ser hist6rico, mas sua
hist6ria não é apenas o breve segmento da hist6ria da cultura; é a história da
espécie, é a hist6ria da biosfera.
As leis que regem a natureza humana não podem ser apenas as que se derivam
da hist6ria recentíssima da cultura e da civilização, pois esta já é um produto do
homem e, por mais que o ser humano tenha evoluído e se transfonnado radical-
mente ao longo da história, há sempre princípios constitutivos que transcendem
qualquer momento da hist6ria e da ideologia. E essa natureza não precisa pautar-se
necessariamente nwna base instintivista para alicerçar wna sistêmica cognitiva e
afetiva capáz de dar um sentido à conduta, de gerar a história e com ela, constan-
temente, interagir.
O papel da psicologia não se limita, contudo, à busca dessas leis generativas da
conduta humana, mas amplia-se pelo sentido que o homem imprime à süa história
individual e socialmente, pois nessa relação dialética o homem não apenas sofre,
mas principalmente gera a ideologia, a cultura e a civilização.
~, portanto, essencial que o psic6logo saiba e aprenda a perceber essa marcha
do ser humano, "não apenas dentro dos conflitos imediatos e transitórios do nosso
século, mas dentro de uma amplitude bem maior que abrange essa ilimítada cons-
truçfo que é a história rumo à elaboração gradativa de um universo capaz de
oferecer, numa aproximação constante a todo ser humano, o que cada um real-
mente precisa para dar à sua vida um sentido, para captar no outro um seu
semelhante, uma figura capai de lhe transmitir solidariedade e afeto, e para per-
ceber em seu mundo a concretização mais autêntica de suas aspirações e de suas
metas.

frise CÜl psicologia - I 29

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