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Introdução
François Ost em seu livro “Contar a lei” utiliza-se de diversos textos literários
para discutir Filosofia do Direito. O autor traça uma análise rica de textos como
Antigona, Robinson Crusoé e o Processo de Kafka, com o objetivo de retratar
fontes do imaginário jurídico. Essa proposta de buscar na literatura uma
compreensão do Direito não é nova, mas sempre é interessante, em especial
como método didático nas aulas iniciais de Direito. A literatura auxilia a fazer a
ponte entre o conhecido e o desconhecido mundo dos conceitos jurídicos. A
filosofia do Direito parece algo menos distante do aluno iniciante quando
apresentada por meio de textos literários. Desses textos costuma-se abordar
uma concepção geral de Direito. Isso também pode ser feito por meio de
filmes, porém nesse caso há uma dificuldade em adequar a concepção de
Direito de filmes, geralmente americanos, para o Brasil. Porém, se nos filmes a
contextualização histórica da sociedade que tem aquele direito dificilmente
pode ser esquecida, os textos literários são comumente apresentados sem
esse cuidado e acabam por aparentar como portadores de concepções
universais de Direito, o que não se confirma.
Dick é um escritor americano do século XX, que tem como obra uma profusão
de textos de ficção científica, com uma abordagem social e com uma
concepção de Direito também policialesca. Dick é autor de ficções científicas
em que o futuro não é descrito com foco principal na tecnologia, mas sim na
sociedade. Assim, esse autor torna-se um crítico social, ao representar nas
sociedades futuras, muitos dos anseios e problemas da sociedade moderna.
Muitos de seus livros foram vertidos para o cinema, devido ao seu forte apelo
popular.
A relação da ficção com o Direito também pode ser vista em outras obras de
autores que tem uma visão policialesca do Direito, como “1984” de George
Orwell, “Admirável mundo novo” de Aldous Hxley, “Nós” de Yevgeny Zamyatin
ou “Fahrenheit 451” de Ray Bradburry. Kafka não apresenta uma sociedade do
futuro, como Dick e os autores citados acima o fazem, porém é possível uma
aproximação entre esses autores por estabelecerem uma crítica social, uma
busca pelo onírico e pelo absurdo e uma concepção do direito pautada no
controle social.
Restringiu-se somente a dois autores, que tem uma relação direta, para que o
conceito de Direito e sua relação com a concepção de sociedade apresentada
no texto fosse melhor detalhada. Serão analisados o conteúdo dos textos,
deixando de fora uma análise histórica de sua criação. Os textos selecionados
são: “Minority report” e “O homem duplo” de Dick e “O processo” e “Colônia
penal”.
Essa eterna transformação é apontada por Kafka em seu texto “Colônia Penal”.
Esse texto fala de uma situação em que os direitos estavam mudando, porque
a sociedade não mais legitimava aquele tipo de direito. Há a mudança de um
direito em que a pena era exibida nos corpos dos condenados, para um direito
em que isso não era mais aceito. O direito antigo não era mais aceito e deveria
ser transformado. O investigador se espanta ao descobrir como o antigo direito
era exercido e se choca com a forma da sanção aplicada.
O Direito não pode ser entendido como um contrato entre pessoas para o
estabelecimento de leis. Um contrato seria algo extra-social e o próprio direito é
social. O Direito também não pode ser entendido como algo natural, quando se
entende que natural se diferencia do que é humano. Não há um direito que não
seja humano, nem mesmo o direito divino, uma vez que mesmo este tem de
ser expresso na linguagem humana.
“K. ainda vivia num Estado de Direito, reinava paz em toda a parte, todas as
leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa?”[2]
Nesse mesmo texto há um confronto entre o conceito de lei das pessoas que
prendem e o conceito de Joseph K. O primeiro é de um direito repressivo sem
face, sem conhecimento da população, ou seja, um direito secreto dos
governantes que seria apenas apresentado aos governados em situações de
crime. O direito nesse sentido se transforma em força, que é exercida sem
medidas.
Kafka aponta para um Direito que tem sentenças com punições físicas, como
era comum até a cerca de um século no direito moderno ocidental. Ainda hoje
as sentenças que buscam castigar o físico estão presentes. Sentenças como a
pena de morte, o açoite, o apedrejamento, chibatadas, ainda são sentenças
válidas em muitos países ocidentais e orientais. A violência estatal se expressa
até hoje pela força e não é apenas uma violência simbólica. Kafka choca seus
leitores, com o que é comum, corriqueiro, porém é indesejado. Em “Colônia
Penal” o que está em jogo é justamente a mudança de paradigma das
sentenças. O oficial é a última figura que defende na colônia penal uma
execução da pena com requintes de tortura, que não é mais querida por outros
funcionários do governo.
A situação construída por Dick nessa ficção aponta para uma utopia de muitas
pessoas: a não existência de crimes. Em uma sociedade em que as regras
jurídicas são sempre respeitadas não se tem crime e sem crime não é
necessário um aparato para julgamento das pessoas. O direito se restringe
nesse caso em um código de leis que é cumprido pela população e fiscalizado
por uma polícia.
“-Você está a par da teoria da prevenção do crime, é claro. Suponho que isto
seja ponto pacífico.
-Felizmente não. Nós os pegamos primeiro, antes que comentam qualquer ato
de violência. Desse modo a comissão do crime, em si mesma, é uma
metafísica absoluta. Alegamos que são culpados. Eles, por sua vez, afirmam
eternamente ser inocentes. E, de certa maneira, são inocentes.” (trecho do
texto somente com o diálogo)
“Esta novela tratou de pessoas que foram punidas demasiadamente pelo que
fizeram. Queriam passar uns bons momentos, mas eram como crianças
brincando na rua; podiam ver que de vez em quando uma delas era morta –
atropelada, aleijada, destruída – mas continuavam a brincar, de qualquer
maneira”.
“-Há muito que trabalhamos nisto juntos- lembrou Donna numa voz
moderadamente firme. –Não quero continuar assim por muito tempo. Quero ver
isso acabado. Por vezes à noite, quando não posso dormir, penso, trampa,
somos mais frios que ele, o adversário.
-Quando olho para ti não vejo uma pessoa fria – retorquiu Westaway – Ainda
que creia que na verdade não te conheço tão bem como isso. O que vejo, e
vejo claramente, é que és uma das pessoas mais ardentes que conheço.
-Sou ardente por fora, no que as pessoas vêem. Olhos quentes, rosto quente,
este quente e tramadamente falso sorriso, mas por dentro sou sempre fria e
cheia de falsidades. Não sou o que pareço ser; sou medonha. – A voz da jovem
permaneceu firme e enquanto ela falava sorria. As suas pupilas eram maiores,
mais meigas e sem malícia. –Mas não há nada a fazer. Dei com isso há muito e
fiz-me assim. Não é verdadeiramente mau. (...)”[8].
O Direito entendido como legislação que regula a conduta social, tem por
premissa que não pode regular todas as condutas humanas existentes, ficando
muitas delas de fora dos regramentos. Isso decorre da própria incapacidade de
tudo regrar e também da não necessidade de regrar algumas condutas, pois
elas não têm repercussão jurídica, podendo ser estabelecidas livremente entre
as pessoas.
“A redução do jurídico ao legal foi crescendo durante o século XIX, até culminar
no chamado legalismo. Não foi apenas uma exigência política, mas também
econômica. Afinal, com a Revolução Industrial, a velocidade das
transformações tecnológicas aumenta, reclamando respostas mais prontas do
direito, que o direito costumeiro não podia fornecer”[9].
O direito como normatividade tem crescido tanto, que é difícil se encontrar uma
esfera da vida humana em que ele não regre. O espaço de liberdade em que o
homem pode agir sem regramentos legais tem sido restringido década após
década, em especial nos países que se utilizam de um direito codificado.
Quase todos os aspectos da vida do homem comum passam pelo regramento
jurídico. O mesmo se dá com a cidade e com os bens.
-Não- disse o explorador passando a mão pela testa – Então até agora o
homem não sabe como foi acolhida sua defesa?
Kafka trata da questão das leis em diversos textos, mas é no “Diante da lei”
que aborda o tema da lei entendida como um objeto quase transcendente.
Nesse texto um camponês fica esperando que um guarda abra a porta da lei,
que nunca é aberta apesar de todos os esforços.
Nesse conto Kafka aponta para a dificuldade do acesso do povo à lei, mas
também mostra o distanciamento existente entre aqueles que criam as leis e
aqueles que têm de obedecê-las. Esse texto não destaca que a criação das leis
deveria passar pelo povo, pelo contrário. Kafka apresenta uma sociedade
altamente regulada por leis que não tem participação popular na sua feitura e
que parecem emanar de um centro de poder sem face. Trata-se de uma
situação de intensa heteronomia, em que as leis não são discutidas pela
população em uma situação democrática.
Em “Colônia Penal” Kafka propõe uma situação em que a lei é escrita nas
pessoas como sentença, por meio de uma máquina que imprime na pele do
condenado a lei através de agulhas que perfuram seu corpo e levam o
sentenciado à morte. A lei está impressa, porém não se segue um processo
que permita a defesa do condenado ou mesmo a ciência do crime que
cometeu. A lei é aplicada fisicamente e o poder final apesar de estar na mão do
carrasco, apresenta-se difuso e sem face, pois ele é exercido de forma
autoritária por diversos funcionários públicos. Kafka aponta para uma mudança
de paradigmas na aplicação dessa lei.
Considerações Finais
Kafka e Philip Dick podem ser considerados como críticos de uma sociedade
em que o Direito apresentava sérios problemas, não apenas enquanto
instituição estatal, mas como uma instituição imaginária social. A crítica desses
dois autores é feita utilizando-se da ficção, porém, suas críticas podem ser
muito bem remetidas às sociedades de que faziam parte. No caso desses dois
autores a crítica é feita de fora do mundo do Direito e por duas pessoas que
tinham conhecimento do direito (Kafka estudou formalmente direito, enquanto
que Dick conhecia pela própria experiência, como o direito era aplicado em
uma pessoa marginal com diversos problemas com a lei). As personagens
desses autores retratam um mundo do Direito, em que dificilmente há
participação popular nas discussões políticas, na manufatura das leis e nos
procedimentos de sua aplicação.
Os dois autores estabelecem uma ligação muito forte entre direito e política,
como esperas interligadas. Porém, nenhum dos dois autores consegue ver um
futuro, em seus textos, de um direito autônomo e exercido em uma democracia.
O direito é entendido como repressão e a sociedade está fadada ao extremo
controle normativo que é exercido de uma maneira totalitária. A situação
apresentada pelos dois autores é semelhante também na questão da
possibilidade de alteração da situação relativa à sociedade e ao direito: não há
saída ou ela está muito distante. Não se tratam de utopias fantásticas. Porém,
utopias são necessárias para se continuar a viver e possibilitam uma fonte de
esperança de transformação.
Bibliografia
DICK, Philip K. Minority report: ou a nova lei. São Paulo: Record, 2002.
_____. O homem duplo. Lisboa. Ed. Livros do Brasil. Sd
KAFKA, Franz. Diante da lei. In: O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.
_____. Sobre a questão das leis. In: Narrativas do Espólio. (trad. Modesto
Carone). São Paulo, Cia das Letras, 2002.
_____. O processo. Rio de Janeiro: Globo, 2003.
_____. Na Colônia Penal. trad. Modesto Carone. São Paulo, Cia das Letras,
1998.
WEBER, M. Economia e Sociedade vol.2. UNB, Brasília, 1999.
Notas:
[1] CARRONE, Modesto. Sobre o autor. In: O veredicto e colônia Penal. P. 83
[2] KAFKA. O processo. P. 10
[3] KAFKA. O processo. P. 12
[4] KAFKA. Colônia Penal. P, 44
[5] WEBER, M. Economia e Sociedade. “Natureza, pressupostos e
desenvolvimento da dominação burocrática”
[6] WEBER, M. Economia e Sociedade. Natureza, pressupostos e
desenvolvimento da dominação burocrática. P. 212.
[7] KAFKA. O processo. P. 16
[8] DICK, P. O homem duplo. P. 251-252
[9] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito (Cap. 2.6). p.
76
[10] FOUCAULT, M. Microfisica do poder. “Soberania e disciplina”. p, 106
[11] KAFKA. Colônia penal. P. 36
[12] KAFKA. Colônia penal. P. 37
[13] KAFKA. Diante da lei.
[14] ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. P, 136.