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ponto: parece que o Estado, a partir de suas pró- 1, pp. 90-91) como segundo efeitos, os quais per-
prias instituições (INSS, Poder Judiciário), mantém mitem classificar as “agências” como “de encami-
suas engrenagens funcionando quase que por nhamento” ou “de controle” (Quadro 2, p. 109). No
conta própria. Lembrando Kafka, processos geram primeiro caso, reúnem-se as interdições cujos des-
processos, funcionários públicos criam trabalho fechos, apesar de modificarem direitos e deveres do
para outros funcionários públicos e, nesse sem fim interditado, não alteram seu papel familiar, uma vez
de burocracias, para a sorte de cientistas sociais, que ele já assume a posição de “doente”. No segun-
valores e significados de relações de parentesco, do caso, há modificações de direitos e deveres,
vizinhança, compadrio etc. restam registrados nas além de o papel familiar do interditado passar a ser
linhas e entrelinhas de documentos oficiais. o de doente, transferindo-se, geralmente para
Essa espécie de autofuncionamento e alguém da família, o controle de seu patrimônio e
auto/inter-regulação das instituições do Estado, de sua pessoa.
mesmo não sendo uma das preocupações centrais O tratamento metodológico e analítico dado
do trabalho de Alexandre, nele aparece em várias às categorias desses quadros está muito bem feito e
passagens, tanto que uma das principais motiva- a estratégia narrativa de iniciar cada capítulo com
ções apontadas para as interdições é a de natureza uma breve retomada do anterior, além de uma
burocrática-instrumental, em que o interditando se antecipação do que nele será desenvolvido, favore-
vê em meio a um redemoinho de requisições inte- ce a amarração e a compreensão do conjunto do
rinstitucionais para regularizar certos direitos. trabalho. Nessa linha, o Capítulo 3 começa com a
Porém, outras motivações, desvinculadas de retomada do segundo e o anúncio de que a nove-
demandas burocráticas e relacionadas a interesses la de Balzac – A interdição – foi inspiradora por
mais propriamente familiares, também são aponta- condensar os principais temas em jogo: relação
das como relevantes e, ao enumerá-las, o pesquisa- entre (in)capacidade civil, doença e inadequação
dor dá voz aos “nativos” (funcionários de cartórios, de comportamentos sociais (desvios).
juízes, promotores, peritos médicos, interditandos), Valendo-se bastante de Goffman, o texto flui
valendo-se de suas próprias categorias para com- consistente ao apontar a força normatizadora da gra-
preendê-los. Ao classificarem os processos de inter- mática legal como responsável por uniformizar acon-
dição segundo “tipos”, destacam-se os interesses tecimentos díspares, pois, ao narrá-los, transforma-os
patrimoniais geralmente envolvidos nas interdições, em padronizados fatos jurídicos. Reportando-se a
tornando-se os bens materiais dos interditandos importantes trabalhos de pesquisadoras brasileiras,
objeto de disputa entre seus familiares. como Mariza Corrêa e Joana Vargas, Alexandre enfa-
Outro aspecto analítico importante desse tiza as normas jurídicas como produtoras de rótulos,
capítulo está na menção, ainda que relativamente de interpretações, de papéis familiares e mesmo de
rápida, à disputa entre operadores do Direito e pessoas doentes e sãs. Ao citar autores das áreas da
peritos médicos por posições decisórias no jogo psiquiatria e psicologia social, o texto prossegue,
processual. Quem dá a última palavra? Como os crescendo em profundidade analítica, rumo à pro-
jargões são reciprocamente lidos, compreendidos posta de relacionar literatura e antropologia. A nove-
ou incompreendidos? E como, afinal, esses profis- la de Balzac é, então, detidamente retomada e seu
sionais se compõem (ou não) nas decisões? “caráter paradigmático” é destacado, à medida que
Lembrei-me de outros trabalhos que também abor- ela desvenda o “circuito de relações internas e exter-
dam esse tema e penso na potencialidade desse nas ao processo de interdição” e ordena descritiva-
filão para novas pesquisas em ciências sociais.5 mente “fatos dispersos no tempo numa narrativa que
Na última parte do Capítulo 2, encontramos segue a ordem dos ritos processuais” (p. 140). O
dois quadros e algumas tabelas que, apesar de capítulo termina com mais um quadro profícuo
seguidos de comentários um pouco áridos e des- (Quadro 3, p. 141), no qual é esboçado o percurso
critivos, demonstram-se fundamentais nos capítulos analítico norteador do restante do texto.
posteriores, uma vez que funcionam como visões O penúltimo capítulo é dedicado à descrição
panorâmicas e bem articuladas do conjunto de pro- dos papéis desempenhados por advogados, juízes,
cessos selecionados, tanto segundo tipos (Quadro promotores e médicos em cada etapa processual e
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tem por base as principais peças por eles produzi- 2005), ocasião em que apresentamos nossas atuais
das nesse ritual – petição inicial, termo de interro- pesquisas no mesmo grupo de trabalho – GT 43:
gatório, laudo pericial e sentença. Para tanto, são “Violência de gênero e violência intrafamiliar” –,
apresentados casos e situações de pesquisa, mesmo fiquei muito interessada por sua abordagem socio-
que ainda sem desfecho à época da finalização da jurídica de família à luz das mudanças do Novo
coleta de dados, o que, apesar de deixar o leitor Código Civil (2003), no qual essa instituição não
curioso, não prejudica as análises desenvolvidas, mais é diretamente definida, porém indiretamente
pois interessam menos os casos, em si, e mais seus regulamentada por aspectos pertinentes ao casa-
contextos (situações de interação), bem como sua mento, união estável, relação entre pais e filhos,
força exemplificativa no conjunto dos processos separação de casais etc. É, portanto, com muito
analisados. A metáfora do “jogo” é novamente uti- entusiasmo que aposto na continuidade de suas
lizada para mencionar o desenrolar do processo pesquisas e em diálogos que possamos estabele-
como um conjunto de estratégias de fabricação e cer a respeito da justiça brasileira – “palco de
negociação de papéis entre os envolvidos; papéis encontro entre categorias do senso comum com as
esses que podem variar conforme ocasiões, lugares ditas técnicas oficias”, como bem conclui Alexan-
e modos de condução dos encontros. dre, no último parágrafo do livro.
As instituições e a interdição constituem o
eixo que Alexandre explora, no último capítulo, ANA LÚCIA PASTORE SCHRITZMEYER
ao apresentar mais três casos envolvendo “doen- é professora do Departamento de
ça mental”, patrimônio, negócios, deveres de Antropologia da Faculdade de Filosofia
mãe, alcoolismo e vizinhança. Neles, os discursos Letras e Ciências Humanas da Universidade
médico e jurídico absorvem as falas dos partici- de São Paulo (FFLCH-USP).
pantes; a igreja substitui a família em meio às rela-
ções junto à justiça e à medicina; e, por fim, uma
família inteira é, pouco a pouco, identificada Notas
como “anormal”.
Realmente, Alexandre Zarias, como ele mesmo 1 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégio de sabe-
afirma nas “Considerações finais”, foi além (e muito) res: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros
de um estudo apoiado somente em compêndios (1900-1990), São Paulo, IBCCRIM, 2004.
2 Johan Huizinga, Homo ludens: o jogo como ele-
de medicina, códigos legais e processos jurídicos.
mento da cultura, São Paulo, Perspectiva, 1980.
Foi plenamente atingido seu objetivo de com-
3 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Controlando o
preender a interdição “como um encontro de insti- poder de matar: uma leitura antropológica do
tuições que, de forma ritualizada, negociam cate- Tribunal do Júri - ritual lúdico e teatralizado, São
gorias de identidade […]” (p. 249). Seu livro é rico Paulo, Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia,
em análises e exemplos da diversidade simbólica Letras e Ciências Humanas da USP, 2002.
contida nas relações entre pares de opostos como, 4 Nomes e cores: nomeação pessoal e complexidade
por exemplo, “doença-incapacidade civil/ saúde- identitária na Bahia. Pesquisa coordenada por
capacidade civil”, cujos sentidos, sempre relativos, João de Pina Cabral. Financiamento: Fundação para
multiplicam-se nos processos de interdição. a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e
É, sem dúvida, um ganho para as literaturas Ensino Superior de Portugal. Apoio: Universidade
antropológica e sociológica, em especial as da de São Paulo (Pró-Reitoria de Pesquisa – Projeto 1).
Início: outubro de 2004; término previsto: outubro
antropologia e sociologia jurídicas, a publicação
de 2007.
do mestrado de Alexandre, pois, com toda razão,
5 Ver, por exemplo, Magali Engel, Meretrizes e dou-
ele finaliza seu livro chamando a atenção para o tores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro
quão pouco explorada é a área do direito civil nos (1840-1890), São Paulo, Brasiliense, 1989; Martha
estudos sobre a organização da justiça brasileira. de Abreu Esteves, Meninas perdidas: os populares
Quando conheci pessoalmente Alexandre, e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
na VI Reunión de Antropología del Mercosur – Époque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; e Ana
RAM, em Montevidéu, Uruguai (novembro de Lúcia Pastore, 2004, op. cit.