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148 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº.

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Processos de interdição: improprieties) e unidades de interação –, perpas-


sam os cinco capítulos dando-lhes a consistência
família, direito e medicina de quem soube, com maturidade e criatividade
intelectuais, mesclar, na devida medida, referên-
fabricando capacidades e cias teóricas e dados provenientes de fontes judi-
incapacidades ciais, entrevistas e trabalho de campo etnográfico.
É na “Introdução”, por sinal, que Alexandre,
Alexandre ZARIAS. Negócio público e interesses logo de chofre, lança o leitor no que há de mais
privados: a interdição civil e os dramas de família. íntimo e rico em um material de pesquisa antropo-
São Paulo, Hucitec/Anpocs, 2005. 269 páginas. lógico: anotações do diário de campo. De forma
perspicaz e bem humorada, é descrita uma dili-
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer gência em que juíza, promotora e escrevente, além
do próprio pesquisador, foram à casa de uma inter-
Dispensa elogios um livro com a chancela do ditanda para proceder a um interrogatório. Esse
“Prêmio José Albertino Rodrigues” – melhor dis- “tom etnográfico”, resultante de observações de
sertação de mestrado no Concurso CNPq-Anpocs interrogatórios, de perícias médicas e dos trabalhos
de Obras Científicas e Teses Universitárias em realizados nos cartórios judiciais em que os dados
Ciências Sociais (edição 2004) –, prefaciado por foram coletados, é retomado, em vários outros
Heloísa Pontes – orientadora do autor em seu momentos do texto, sempre com o cuidado de
mestrado em antropologia social na Unicamp – e enfatizar os limites de quaisquer estratégias meto-
apresentado por Sérgio Adorno – seu atual orien- dológicas e, conseqüentemente, as riquezas prove-
tador no doutorado em sociologia da USP. Portan- nientes de possíveis combinações entre elas.
to, sendo redundante, assinalo se tratar de uma Ainda na “Introdução”, é resumido o tema
pesquisa da mais alta qualidade metodológica, te- central do livro – a interdição –, de modo a se
mática e bibliográfica. compreender como funciona, no Brasil, esse
Sem dúvida, minhas apreciações e percep- mecanismo legal de natureza civil pertencente à
ções do trabalho de Alexandre têm a marca da área do direito de família. Nessa oportunidade,
empatia decorrente do fato de termos formações Alexandre apresenta claramente a espinha dorsal
e trajetórias acadêmicas semelhantes, além de de seu estudo: processos de interdição como
interesses temáticos comuns. Como ele, freqüen- espaço privilegiado de interseções e negociações
tei, simultaneamente, graduações em ciências de sentidos entre as esferas da família, da justiça
sociais e em direito, prossegui no mestrado em e da medicina. Sua problemática revela-se de
antropologia social estudando relações entre modo preciso: analisar esse espaço de encontros
medicina e direito1 e já compartilhei, com Sérgio e desencontros entre múltiplos e distintos olha-
Adorno, a execução de várias pesquisas no NEV res, todos voltados para a pessoa do interditan-
– Núcleo de Estudos da Violência da USP. Mas é do e preocupados em classificar seus comporta-
justamente essa afinidade que também me coloca mentos por meio das noções de “doença” e
“incapacidade civil”. O mapeamento da dinâmi-
em posição de leitora crítica e especialmente
ca das relações entre esses representantes das
atenta aos caminhos escolhidos pelo pesquisador,
instituições familiar, jurídica e médica, em fun-
tanto ao recortar como ao analisar a problemática
ção dos esforços classificatórios que cada um faz
elaborada.
em face dos interditandos, é o desafio que o pes-
Começo pela precisa escolha bibliográfica e o
quisador enfrenta.
ótimo uso que Alexandre faz dos principais auto-
É ainda nessa abertura do livro que o autor
res com os quais dialoga – Goffman, Bourdieu,
explicita o amadurecimento de seu projeto de
Foucault, Castel, Cicourel e Mauss, entre outros.
mestrado a partir de pesquisas dos tempos de gra-
Em especial, alguns conceitos de Goffman, como
duação, dos primeiros contatos com arquivos his-
os que embasam sua teoria situacional do desvio –
tóricos e judiciários de Campinas e dos três anos
carreira, impropriedades situacionais (situational
cursados em direito.
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As dificuldades encontradas na coleta de um conjunto de práticas sociais jamais unívocas.


dados em arquivos judiciários – localização dos Assim, nomes de “doenças” variam de acordo com
processos, imprecisões dos livros de registros, as negociações estabelecidas entre os diferentes
greves do Poder Judiciário – estão bem pontua- saberes reunidos nos processos e em função de dis-
das, assim como as influências desses obstáculos putas no interior de um mesmo saber, como é o
e de sua superação sobre os critérios adotados na caso de variadas definições de “loucura” conforme
seleção do material. a tradição das “escolas médicas”. Surge, portanto,
Por fim, os capítulos são apresentados e é nessa arena, não só a “doença” como fenômeno
mencionada, pela primeira vez, a novela de Hono- sociológico, mas também o interditando como
ré de Balzac, A interdição (1836), como fonte de ponto nodal entre os vários discursos que a ele se
inspiração analítica. Fechando a “Introdução”, a dirigem e contribuem para a construção de sua car-
estrutura do livro é comparada à descrição de um reira de incapaz-doente, de doente-capaz ou de
jogo, com suas regras, objetivos, jogadas possíveis saudável-capaz. Nas palavras de Alexandre: “No
e mais freqüentes, movimentos e estratégias de processo de interdição, […] podemos não só acom-
jogadores e equipes. Lamentei esse insight compa- panhar parte da trajetória de vida de uma pessoa,
rativo não ter ido além de um uso metafórico, pois mas também podemos apreender parte das institui-
enriqueceria ainda mais o trabalho a exploração do ções com as quais essa pessoa se envolveu” (p. 77).
conceito de jogo como elemento essencial à cultu- No Capítulo 2, o autor cria categorias para
ra, tal como o faz o filósofo Johan Huizinga em seu descrever o universo de interdições, partindo de
livro Homo ludens, no qual aprofunda, inclusive, a características dos participantes das ações judi-
relação entre jogo e Direito (cap. 4).2 Tal relação, ciais e da forma como direito e medicina reagem
por exemplo, constituiu-se um dos caminhos teóri- às demandas de familiares de interditandos. Nesse
cos fundamentais de meu doutorado em antropo- ponto, chamou-me a atenção o dado de que gran-
logia social, no qual analisei sessões de julgamen- de parte dos processos de interdição se vale da
to pelos cinco Tribunais do Júri da cidade de São justiça gratuita e obedece a uma requisição do
Paulo como rituais lúdicos e teatralizados.3 INSS, pois esse instituto necessita de decisões
Na primeira parte do Capítulo 1, o autor dessa natureza para garantir a regularização de
familiariza os leitores com os termos legais refe- outros benefícios, como aposentadoria por invali-
rentes à interdição e, ao destacar, nesse tipo de dez, pensão por morte e auxílio ao deficiente.
processo, a importância das noções de “doença” e Outra parte dos processos é motivada por requi-
“capacidade civil”, argumenta, com muita proprie- sições do próprio Tribunal para que seja possível
dade, a respeito do poder dos médicos determi- o andamento de processos referentes, por exem-
narem o que é normal e patológico, assim como o plo, a direitos sucessórios.
dos juízes definirem o que é legal e ilegal. Nos Tais dados me fizeram pensar na pesquisa
casos de interdição, esses profissionais, por inter- que atualmente desenvolvo, no sul da Bahia, com
médio de suas instituições e discursos oficiais- alguns colegas de Portugal.4 Trata-se de uma inves-
competentes, fabricam as noções de “doença” e de tigação sobre significados e negociações familiares,
“capacidade civil”, atualizando-nas a cada vez que cartoriais e legais envolvidos na composição e no
decidem que todo incapaz é doente, embora registro oficial de prenomes e sobrenomes de pes-
somente alguns tipos de doentes sejam incapazes. soas da região. Uma das conclusões preliminares a
Na segunda parte, é apresentado um estudo que chegamos, após lermos vários “processos de
de caso realizado a partir de um dos processos de retificação de nome”, foi a de que, especialmente
interdição selecionados, o qual exemplifica como os nos muitos casos em que aparentemente se discu-
documentos judiciais e periciais cristalizam significa- te “apenas” a inserção ou a exclusão da preposição
dos tensamente negociados entre as instituições “de” (Maria do Socorro ou Maria Socorro? José da
familiar, médica e judicial. Ao reproduzir parcial- Silva ou José Silva?), o que está em jogo é a neces-
mente alguns desses documentos, Alexandre anali- sidade, diante do INSS, de a pessoa regularizar
sa a relatividade das categorias “doença” e “capaci- seus documentos para garantir o recebimento de
dade civil”, uma vez que seus alcances resultam de benefícios. Quero, com isso, chegar ao seguinte
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ponto: parece que o Estado, a partir de suas pró- 1, pp. 90-91) como segundo efeitos, os quais per-
prias instituições (INSS, Poder Judiciário), mantém mitem classificar as “agências” como “de encami-
suas engrenagens funcionando quase que por nhamento” ou “de controle” (Quadro 2, p. 109). No
conta própria. Lembrando Kafka, processos geram primeiro caso, reúnem-se as interdições cujos des-
processos, funcionários públicos criam trabalho fechos, apesar de modificarem direitos e deveres do
para outros funcionários públicos e, nesse sem fim interditado, não alteram seu papel familiar, uma vez
de burocracias, para a sorte de cientistas sociais, que ele já assume a posição de “doente”. No segun-
valores e significados de relações de parentesco, do caso, há modificações de direitos e deveres,
vizinhança, compadrio etc. restam registrados nas além de o papel familiar do interditado passar a ser
linhas e entrelinhas de documentos oficiais. o de doente, transferindo-se, geralmente para
Essa espécie de autofuncionamento e alguém da família, o controle de seu patrimônio e
auto/inter-regulação das instituições do Estado, de sua pessoa.
mesmo não sendo uma das preocupações centrais O tratamento metodológico e analítico dado
do trabalho de Alexandre, nele aparece em várias às categorias desses quadros está muito bem feito e
passagens, tanto que uma das principais motiva- a estratégia narrativa de iniciar cada capítulo com
ções apontadas para as interdições é a de natureza uma breve retomada do anterior, além de uma
burocrática-instrumental, em que o interditando se antecipação do que nele será desenvolvido, favore-
vê em meio a um redemoinho de requisições inte- ce a amarração e a compreensão do conjunto do
rinstitucionais para regularizar certos direitos. trabalho. Nessa linha, o Capítulo 3 começa com a
Porém, outras motivações, desvinculadas de retomada do segundo e o anúncio de que a nove-
demandas burocráticas e relacionadas a interesses la de Balzac – A interdição – foi inspiradora por
mais propriamente familiares, também são aponta- condensar os principais temas em jogo: relação
das como relevantes e, ao enumerá-las, o pesquisa- entre (in)capacidade civil, doença e inadequação
dor dá voz aos “nativos” (funcionários de cartórios, de comportamentos sociais (desvios).
juízes, promotores, peritos médicos, interditandos), Valendo-se bastante de Goffman, o texto flui
valendo-se de suas próprias categorias para com- consistente ao apontar a força normatizadora da gra-
preendê-los. Ao classificarem os processos de inter- mática legal como responsável por uniformizar acon-
dição segundo “tipos”, destacam-se os interesses tecimentos díspares, pois, ao narrá-los, transforma-os
patrimoniais geralmente envolvidos nas interdições, em padronizados fatos jurídicos. Reportando-se a
tornando-se os bens materiais dos interditandos importantes trabalhos de pesquisadoras brasileiras,
objeto de disputa entre seus familiares. como Mariza Corrêa e Joana Vargas, Alexandre enfa-
Outro aspecto analítico importante desse tiza as normas jurídicas como produtoras de rótulos,
capítulo está na menção, ainda que relativamente de interpretações, de papéis familiares e mesmo de
rápida, à disputa entre operadores do Direito e pessoas doentes e sãs. Ao citar autores das áreas da
peritos médicos por posições decisórias no jogo psiquiatria e psicologia social, o texto prossegue,
processual. Quem dá a última palavra? Como os crescendo em profundidade analítica, rumo à pro-
jargões são reciprocamente lidos, compreendidos posta de relacionar literatura e antropologia. A nove-
ou incompreendidos? E como, afinal, esses profis- la de Balzac é, então, detidamente retomada e seu
sionais se compõem (ou não) nas decisões? “caráter paradigmático” é destacado, à medida que
Lembrei-me de outros trabalhos que também abor- ela desvenda o “circuito de relações internas e exter-
dam esse tema e penso na potencialidade desse nas ao processo de interdição” e ordena descritiva-
filão para novas pesquisas em ciências sociais.5 mente “fatos dispersos no tempo numa narrativa que
Na última parte do Capítulo 2, encontramos segue a ordem dos ritos processuais” (p. 140). O
dois quadros e algumas tabelas que, apesar de capítulo termina com mais um quadro profícuo
seguidos de comentários um pouco áridos e des- (Quadro 3, p. 141), no qual é esboçado o percurso
critivos, demonstram-se fundamentais nos capítulos analítico norteador do restante do texto.
posteriores, uma vez que funcionam como visões O penúltimo capítulo é dedicado à descrição
panorâmicas e bem articuladas do conjunto de pro- dos papéis desempenhados por advogados, juízes,
cessos selecionados, tanto segundo tipos (Quadro promotores e médicos em cada etapa processual e
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tem por base as principais peças por eles produzi- 2005), ocasião em que apresentamos nossas atuais
das nesse ritual – petição inicial, termo de interro- pesquisas no mesmo grupo de trabalho – GT 43:
gatório, laudo pericial e sentença. Para tanto, são “Violência de gênero e violência intrafamiliar” –,
apresentados casos e situações de pesquisa, mesmo fiquei muito interessada por sua abordagem socio-
que ainda sem desfecho à época da finalização da jurídica de família à luz das mudanças do Novo
coleta de dados, o que, apesar de deixar o leitor Código Civil (2003), no qual essa instituição não
curioso, não prejudica as análises desenvolvidas, mais é diretamente definida, porém indiretamente
pois interessam menos os casos, em si, e mais seus regulamentada por aspectos pertinentes ao casa-
contextos (situações de interação), bem como sua mento, união estável, relação entre pais e filhos,
força exemplificativa no conjunto dos processos separação de casais etc. É, portanto, com muito
analisados. A metáfora do “jogo” é novamente uti- entusiasmo que aposto na continuidade de suas
lizada para mencionar o desenrolar do processo pesquisas e em diálogos que possamos estabele-
como um conjunto de estratégias de fabricação e cer a respeito da justiça brasileira – “palco de
negociação de papéis entre os envolvidos; papéis encontro entre categorias do senso comum com as
esses que podem variar conforme ocasiões, lugares ditas técnicas oficias”, como bem conclui Alexan-
e modos de condução dos encontros. dre, no último parágrafo do livro.
As instituições e a interdição constituem o
eixo que Alexandre explora, no último capítulo, ANA LÚCIA PASTORE SCHRITZMEYER
ao apresentar mais três casos envolvendo “doen- é professora do Departamento de
ça mental”, patrimônio, negócios, deveres de Antropologia da Faculdade de Filosofia
mãe, alcoolismo e vizinhança. Neles, os discursos Letras e Ciências Humanas da Universidade
médico e jurídico absorvem as falas dos partici- de São Paulo (FFLCH-USP).
pantes; a igreja substitui a família em meio às rela-
ções junto à justiça e à medicina; e, por fim, uma
família inteira é, pouco a pouco, identificada Notas
como “anormal”.
Realmente, Alexandre Zarias, como ele mesmo 1 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégio de sabe-
afirma nas “Considerações finais”, foi além (e muito) res: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros
de um estudo apoiado somente em compêndios (1900-1990), São Paulo, IBCCRIM, 2004.
2 Johan Huizinga, Homo ludens: o jogo como ele-
de medicina, códigos legais e processos jurídicos.
mento da cultura, São Paulo, Perspectiva, 1980.
Foi plenamente atingido seu objetivo de com-
3 Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Controlando o
preender a interdição “como um encontro de insti- poder de matar: uma leitura antropológica do
tuições que, de forma ritualizada, negociam cate- Tribunal do Júri - ritual lúdico e teatralizado, São
gorias de identidade […]” (p. 249). Seu livro é rico Paulo, Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia,
em análises e exemplos da diversidade simbólica Letras e Ciências Humanas da USP, 2002.
contida nas relações entre pares de opostos como, 4 Nomes e cores: nomeação pessoal e complexidade
por exemplo, “doença-incapacidade civil/ saúde- identitária na Bahia. Pesquisa coordenada por
capacidade civil”, cujos sentidos, sempre relativos, João de Pina Cabral. Financiamento: Fundação para
multiplicam-se nos processos de interdição. a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e
É, sem dúvida, um ganho para as literaturas Ensino Superior de Portugal. Apoio: Universidade
antropológica e sociológica, em especial as da de São Paulo (Pró-Reitoria de Pesquisa – Projeto 1).
Início: outubro de 2004; término previsto: outubro
antropologia e sociologia jurídicas, a publicação
de 2007.
do mestrado de Alexandre, pois, com toda razão,
5 Ver, por exemplo, Magali Engel, Meretrizes e dou-
ele finaliza seu livro chamando a atenção para o tores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro
quão pouco explorada é a área do direito civil nos (1840-1890), São Paulo, Brasiliense, 1989; Martha
estudos sobre a organização da justiça brasileira. de Abreu Esteves, Meninas perdidas: os populares
Quando conheci pessoalmente Alexandre, e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
na VI Reunión de Antropología del Mercosur – Époque, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989; e Ana
RAM, em Montevidéu, Uruguai (novembro de Lúcia Pastore, 2004, op. cit.

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