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DOI: http//dx.doi.org/10.17666/319101/2016
Podemos dizer que há várias baixadas do pon- O bairro de longe: ausência do Estado e
to de vista de seus moradores e da heterogeneida- ocupação militar de uma “favela da Baixada”
de do território, mas a própria categoria é acio-
nada num sentido unificador, para apontar traços Numa manhã de 2012, um acontecimento re-
que se quer distanciar ou para associá-la a uma colocaria a Baixada no mapa da violência urbana
dimensão comunitária perdida. Na Baixada, isso do país. Num canteiro de obras da Rodovia Dutra,
é constatável pelas diferentes representações sobre um operário encontrou seis corpos de jovens mor-
o lugar: de migração, cidade dormitório, passando tos com marcas de torturas e mãos amarradas. Os
pela violência, a lugar marcado pela ausência do adolescentes estavam desaparecidos desde o final de
Estado, até território produtivo e mercado consu- semana e a notícia já circulava na mídia televisiva e
midor, há uma variação significativa conforme o impressa. A descoberta dos corpos revelava as sus-
ciclo histórico. peitas de que algo grave acontecera. Os primeiros
O bairro investigado, apesar de não representar sinais de violência apontavam características seme-
o conjunto da Baixada enquanto diversidade de di- lhantes a outros crimes com certa espetacularização
ferentes regimes territoriais possíveis, é também in- da violência. Corpos arrumados um ao lado do ou-
fluenciado pela circulação de imagens e significados tro e amarrados como se a execução contivesse a as-
que invadem esses territórios. Essa circulação de re- sinatura dos criminosos para que os verdadeiros au-
presentações e imagens reconfiguram as categorias tores não pudessem ser rapidamente identificados.
prévias que classificariam nossos interlocutores. Com a repercussão nacional, o governo do es-
Desse modo, o objetivo deste artigo é analisar tado enviou 250 policiais, entre PMs e homens do
os sentidos das políticas de pacificação/militarização Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e
a partir de seu impacto na Baixada Fluminense, to- conseguiu o apoio de blindados de fuzileiros navais
mando a denominada chacina como acontecimento. para a ocupação do bairro. O governo, contudo,
Argumento que este tipo de acontecimento permite agiu com cautela e em nenhum momento anunciou
compreender a reconfiguração das práticas do Es- a possibilidade de instalação de uma UPP no bairro.
tado em suas margens e a legibilidade das políticas A ocupação militar imediata daquele território
de controle direcionadas às populações pobres e não teria nada de surpreendente, ao menos depois
vulneráveis, não a partir das favelas cariocas e suas que cenas de ocupação do Complexo do Alemão
representações, mas em outros regimes territoriais, por forças do Exército brasileiro e blindados cor-
em que a Baixada Fluminense se constitui, de modo reram mundo afora e foram replicadas em todas as
específico, como entrelaçamento entre mercado po- demais instalações de UPPs.6
lítico e violência. As manchetes dos jornais também estampavam
O texto está dividido em três partes: na pri- a ocupação do bairro como a “pacificação” de mais
meira, reconstruo a chacina de longe, a partir do uma comunidade violenta e a necessidade de ocu-
impacto midiático e da ação do governo estadual pação policial permanente diante do suposto con-
focado no discurso da ausência de Estado, da ocu- trole do território por traficantes de facções crimi-
pação policial, bem como nas representações dos nosas. A mídia destacava que havia ocorrido uma
moradores do bairro sobre a migração do crime. Na chacina numa “favela da Baixada Fluminense”.7
segunda parte, analiso o bairro de perto, buscando Não tardou a se repetir o mesmo figurino das
mediar as representações sociais da forma específica ações anteriores de outras favelas do Rio. Amplo
como o Estado se configurou na Baixada, situado efetivo policial, prisão rápida de traficantes da co-
entre as imagens veiculadas pela imprensa e de seus munidade, taxados como principais suspeitos do
próprios moradores. Por fim, apresento situações crime, e exibição de imagens do efetivo do Bope
que me possibilitam perceber essas reconfigurações entrando em mais uma favela.
no bairro, sobretudo, à reorganização do mercado Contudo, o desenlace da história não repe-
informal da droga. tiu o trajeto das imagens de ocupação de favelas
e instalação de UPPs com uma bandeira brasileira
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estendida como símbolo da retomada do território favelas cariocas, sendo o acontecimento não mais
pelo Estado. Primeiro, porque os traficantes não um dos muitos que representavam e recolocavam
eram provenientes da localidade. Aos olhos dos a Baixada como lugar violento. Nesse caso, as cau-
moradores, eles eram estrangeiros que migravam sas da violência não provinham da Baixada para o
das favelas do Rio. Segundo, porque a motivação Rio, mas em sentido inverso, eram consequência
do crime, expressa pelos moradores e também pelo das políticas de pacificação que estariam levando à
próprio governo, era a política de implantação das migração territorial de criminosos. O bairro, antes
UPPs na capital provocando a migração de bandi- tranquilo, sem a presença do tipo de violência exis-
dos para o bairro. tente nas favelas cariocas, estaria agora tomado por
O governador Sérgio Cabral declarou que a traficantes sem território.
fuga de “marginais das comunidades pacificadas” Era como se à queixa recorrente da ausência de
no Rio de Janeiro que migravam e buscavam man- investimentos públicos na Baixada se acrescentas-
ter a estrutura de poder garantida pelo território se agora as consequências perversas do processo de
podia ser interpretada como causa da chacina: “eles pacificação carioca. O acontecimento da chacina
conseguem escapar, se reorganizar e tentam manter revelava, portanto, uma situação diferente das ante-
a estrutura do poder paralelo. Isso tem sido bem riores por algumas das seguintes razões:
claro para a gente. A gente não tem ilusão” (Folha
de S.Paulo, 12/09/2012). 1. A interpretação prévia foi que o assassinato dos
O Secretário de Segurança Pública José Ma- jovens por traficantes dentro de um campo de
riano Beltrame repetiria, após a ocupação do treinamento do Exército era resultado do pro-
bairro pelas forças policiais, o mesmo discurso da cesso da migração de bandidos do Rio após a
ausência e descaso do Estado naquela comunida- implantação das UPPs.
de já utilizado em outras ocasiões: “esta região foi 2. A entrada dos blindados não acontecia numa fa-
relegada por décadas. Onde o Estado não estava, vela carioca, mas num bairro da Baixada, distante
o crime se fez presente. Mas hoje quero dizer para do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, as Forças Ar-
esta comunidade que a PM não vai mais sair da- madas eram utilizadas numa área fora da capital.
qui”. No entanto, Beltrame negou a tese da mi- 3. A violência era vista como externa ao bairro,
gração de criminosos das favelas com UPP para causada pela implantação de UPPs no Rio
outras regiões: “a migração acontece no sentido de Janeiro, capital. A despeito de não ocorrer
das lideranças do tráfico. Não há migração em numa favela propriamente dita, mas num bair-
massa” (O Globo, 28/09/2012). ro popular com traços de favelização, a ocupa-
Algumas vozes insatisfeitas de organizações ção foi nomeada pela grande imprensa como
religiosas e da sociedade civil da Baixada também de uma “favela da Baixada”.
se expressaram. A Igreja Católica emitiu nota defi-
nindo a chacina como “uma tragédia anunciada”. E No âmbito da pesquisa, cheguei a esse aconte-
moradores da região reclamaram da escalada de in- cimento pelo discurso da mídia; mas, à medida que
segurança nos bairros pobres, do qual o bairro seria entrava no campo, pude constatar que vários dos en-
mais um exemplo. trevistados percebiam o aumento da violência como
Do ponto de vista dos moradores, tanto a co- consequência da migração de criminosos do Rio de
bertura da mídia como a visão externa reforçavam Janeiro para a Baixada, sobretudo depois da instalação
preconceitos e estereótipos do bairro e causariam das UPPs. Além disso, percebiam uma nova forma de
enorme insatisfação. Atos foram convocados e um controle estranha ao lugar, com a utilização de arma-
movimento denominado “o bairro não é favela” foi mento pesado e controle territorial pelos criminosos.
criado e encampado por lideranças comunitárias, Algo associado pela maioria dos moradores com os
ONGs e moradores. O movimento pretendia mos- traços característicos da violência nas favelas cariocas e
trar que o bairro não era uma favela e a violência distante da Baixada. Desse modo, era a partir do Rio
era uma consequência perversa da pacificação nas que a violência se deslocava para a Baixada.
ESPERANDO A UPP 5
O Bairro de perto: “tem favela, mas não é igrejas evangélicas tradicionais foram constitutivas
uma favela” das primeiras redes de relacionamento e sociabi-
lidade de seus moradores, com um trânsito signi-
Segundo dados da Prefeitura, há poucos equi- ficativo entre as diferentes esferas. É comum ouvir
pamentos públicos no bairro diante do tamanho de nos relatos que os primeiros fundadores da associa-
sua população. Duas escolas municipais de ensino ção foram também aqueles que criaram as primei-
infantil, quatro escolas de ensino fundamental, um ras comunidades religiosas.
Centro de Referência de Assistência Social (Cras) O lugar é um bairro popular antigo, marcado
e um Ciep respondem pelo atendimento de toda a por redes de sociabilidade intensas, o que pode ser
população. Na saúde, existem apenas uma Unidade percebido pela quantidade de igrejas de diferentes
Básica (UBS), uma equipe do Programa de Agen- denominações, cujas funções ultrapassam as di-
tes Comunitários de Saúde (Pacs) e três equipes do mensões propriamente religiosas.
Programa de Saúde da Família (PSF). No momento atual, a dimensão religiosa é pre-
Os serviços públicos são precários. Há apenas ponderante na constituição das redes de sociabili-
duas escolas e dois postos de saúde para uma po- dade do bairro. Para além disso, são as instituições
pulação de 42 mil moradores. O asfaltamento das que disputam com outras redes a condição de ofer-
ruas principais está completo, mas a falta de sane- tar determinados serviços que o Estado não ofere-
amento básico e de água são problemas crônicos. ce. No bairro, há sessenta igrejas, algumas desde
Apesar de estar ao lado dos rios que abastecem boa os anos de 1960, o que daria uma média de uma
parte do Rio de Janeiro, o Sarapuí e o Guandu, a para cada 7 mil moradores. Na percepção de al-
falta de água é crônica. guns moradores que pertencem à Igreja e também
A paisagem do bairro num dia comum não é ajudaram a constituir a associação, a importância
diferente de vários bairros da Baixada: casas de au- dessas denominações se constituía pela simples ra-
toconstrução com tijolo aparente, pequeno comér- zão de articularem redes comunitárias onde antes
cio composto por biroscas, cabeleireiros, padarias, não existia nada.
mercearias, quitandas, lojas de material de cons- Há um contraste entre os dois lados do bairro,
trução, pequenas portinhas com celulares e chips, dividido em duas cidades. Do lado de Nilópolis e
açougues, lan houses e uma paisagem marcada pelo onde moravam os adolescentes, a cidade é conside-
inacabamento e pelo fervilhar de pessoas nas ruas. rada mais equipada, com serviços melhores e uma
É preciso, no entanto, fugir de uma leitura mi- classe média consumidora. Os adolescentes assassi-
serabilista (Wacquant, 2001) que torna indistintos nados estudavam e moravam nessa parte do bairro,
diferentes lugares nomeados como territórios po- eram tidos como de classe média, bons estudantes,
bres ou precários. Se o bairro contém traços das o que causou grande comoção na cidade. Nilópolis
periferias carentes de serviços, forma do Estado é a sede da escola de samba Beija Flor, que marca a
na Baixada Fluminense, é no percurso pelo bair- paisagem e as redes de sociabilidade locais.
ro que percebemos as distinções dos moradores e Do lado de Mesquita, o bairro é considerado
dos lugares por onde circulam. O local é conside- mais pobre, com serviços e infraestrutura precários,
rado um bairro popular e não uma “comunidade”, o que o leva a ter “má fama” (Bourdieu, 1998). No
associada à imagem das favelas do Rio de Janeiro. entanto, não significa que seus moradores assumam
Desse modo, há uma história que identifica a cons- essa visão externa. Delimitadas pelas montanhas do
trução do bairro à ideia de comunidade, mas que o Parque do Gericinó e pelo rio Sarapuí, são nas en-
diferencia de favela. Comunidade, no caso, é a as- costas da montanha que se localizam as casas pre-
sociação gregária entre moradores para a execução cárias e as favelas; a maior parte das casas se localiza
de serviços que visam suprir essa ausência, o que no terreno plano. Algumas “zonas de sombra”, no
confirma também um modo de perceber a presen- entanto, ficam também na parte plana do bairro.
ça do Estado na Baixada Fluminense. Na formação Prédios invadidos e ocupados, becos, favelas e vielas
do bairro, tanto a associação de moradores como as convivem ao lado da maioria das casas e das igrejas.
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instalação das UPPs? Quais os impactos para regi- que um fornecedor de cocaína, de maconha ou de
ões em que as UPPs não foram ou não serão im- armas pode simplesmente subir a favela, procurar o
plantadas?10 “movimento” e vender seu estoque. Em geral, o ge-
Apesar de não estar escrito na forma de códigos rente da área é o encarregado de escolher a melhor
ou leis, os agentes que participam desse mercado co- oferta segundo uma análise das possibilidades no
nhecem as regras informais que regulam seu funcio- mercado. Entre os atacadistas, há policiais e ex-po-
namento. O não cumprimento ou sua incompreensão liciais, grandes traficantes de outras áreas e estados
podem levar a decisões completamente equivocadas e tipos desconhecidos que procuram o “movimen-
que, nesse caso, são decisões de vida ou morte. to” e vendem a mercadoria. Nos últimos tempos,
Diferentes regimes territoriais também influen- esse mercado pode ter se reorganizado e caminhado
ciam a dinâmica desses mercados, mesmo que pos- no sentido de maior concentração tanto pela polí-
samos perseguir determinados padrões de funcio- tica de pacificação como pelo domínio das milícias
namento. Nesse caso, em lugar de estabelecer um em determinadas áreas.
funcionamento comum em todas as “áreas pobres”, Há uma espécie de acumulação primitiva de
é preciso se perguntar como essa dinâmica funciona capital pela alta rotatividade do negócio. Cada
em cada regime territorial particular. Assim, nos pa- dono fica pouco tempo na área e deve se transferir
rece que a própria mercadoria política não objetiva o mais rápido possível para atividades consideradas
as mesmas relações na Baixada e no Rio de Janeiro. legais (frotas de motéis, comércio) ou atividades
O mercado informal da droga das áreas pobres ilegais, mas reprimidas em menor grau e cujos cus-
no Rio de Janeiro tem características essencialmen- tos da mercadoria política sejam menores, como o
te varejistas, e sua principal mercadoria é a cocaí- transporte clandestino.12
na, que tem o melhor custo-benefício em relação a A saída do movimento é possível, desde que
outras mercadorias ilegais desde os anos de 1980. não haja dívidas. Mas é claro que isso varia con-
Vendidas em pequenas unidades chamadas de pa- forme a conjuntura do negócio e da região. Con-
pelote ou papel, são pequenos embrulhos ou paco- versões religiosas também são uma opção autêntica
tes tipo bala, em quantidade e preços variáveis. A de mudança de vida (cf. Teixeira, 2009; Birman e
mistura da cocaína com outros produtos é comum Machado, 2012; Cunha, 2009, 2014) Há proviso-
nos papéis mais baratos.11 riedade de inserção dos donos que devem destinar
O preço depende da qualidade do produto, rapidamente seus investimentos para o mercado
ou seja, sua pureza e as condições de oferta. A in- legal, ou mesmo ilegal, com os menores custos da
formação de que haverá repressão policial na área mercadoria política. No caso dos vendedores dire-
pode tanto precipitar que o estoque seja liquidado tos presentes nas áreas pobres, tudo que se arrecada
como levar a um aumento de preços pela escassez é gasto. Parte considerável dos ganhos é utiliza-
forçada. O aumento de preço pode resultar de uma da para a compra de mercadorias políticas. A li-
perda do estoque por conta da repressão e apreen- bertação de traficantes presos é um negócio re-
são da mercadoria ou pelo aumento de custos da lativamente lucrativo para agentes policiais que
mercadoria política, neste caso a extorsão por parte participam desse mercado. Sem a compra dessas
de agentes policiais ou outros “agentes”. mercadorias políticas, o risco do negócio desapa-
O movimento é variável conforme o lugar e a recer é grande, seja por uma escalada de repressão
época do ano. Essa variação é explicável pelos pre- e apreensão do produto pelos agentes estatais que
ços, pela qualidade do produto, pela repressão poli- descapitalizam o negócio, seja pela maior vulnera-
cial e pelo custo das mercadorias políticas de prote- bilidade e exposição diante de potenciais concor-
ção. Não há uma organização centralizada que dis- rentes.
tribua a mercadoria e controle o poder em todas as Para analisar esse microcosmo do tráfico, resol-
áreas. Essa distribuição é descentralizada, variável, e vemos escolher duas situações que mostram essas
nem sempre depende de contatos e intermediários possíveis nuances entre dois traficantes e sua relação
mais ou menos organizados. Misse (2011) afirma com a mercadoria política.
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O traficante principal resolveu deixar de destinar que não tinha medo da polícia e nenhum problema
parte dos ganhos para o pagamento da mercadoria de enfrentar os policiais durante a noite, isso fazia
política, o que alterou substancialmente o campo parte do “trabalho”, mas que o efetivo policial nun-
de forças do negócio. Com esta decisão inábil, a ca entrava no período noturno, quando ninguém
repressão e apreensão do produto aumentou, obri- estava na rua e a guerra seria menos desigual.
gando o traficante a cada vez mais ampliar a ocupa- O gerente queria, desse modo, dar algum tipo de
ção territorial para proteção dos pontos. A situação assistência à comunidade e colaborar com a entida-
foi se tornando insustentável, o que o levou a uma de. Por isso, acabara tentando tomá-la. Contudo, a
tentativa de diminuir os conflitos buscando fazer conversa o fez pensar em outras formas de viabilizar
um movimento para dentro do bairro. essa “ajuda”.
Quanto mais endurecia, mais os conflitos au- A pergunta do gerente foi: “o que dá para fazer
mentavam. “Não temos medo e não daremos o pela comunidade?”. E sugeriu distribuir 2 mil ces-
dinheiro”. Apesar de ser “cria” do bairro, a pouca tas básicas, realizar uma festa junina, promover um
habilidade e destreza foram fatais e destruíram o baile funk. De modo habilidoso, esse morador con-
negócio. O traficante era um “psicopata” e “não sa- seguiu recusar a ajuda, sem entrar em conflito com
bia administrar situações conflituosas”. Ao querer o traficante. Sua alegação era de que qualquer ajuda
resolver tudo do seu jeito, foi acirrando os ânimos e precisaria ser demonstrada contabilmente em notas
tornando ostensiva a presença do aparato repressivo fiscais para não ter problemas na prestação de con-
e causando maiores problemas para os moradores. tas. E esse recurso não poderia ser contabilizado.
A extensão dos problemas faz com que, pela Essa situação ocorreu um ano antes da tragédia
primeira vez, uma das entidades sociais do bairro e, no período seguinte, a situação só se agravou. A
entrasse em conflito com os traficantes. Num dia, violência e o controle territorial foram se amplian-
homens se plantaram na frente do local para exi- do até a situação ficar insustentável. Segundo rela-
gir a chave. Alvoroço entre os diretores; um deles tos, no dia em que os meninos subiam a cachoeira
é chamado às pressas, mesmo sendo ex-diretor, e para se divertir no parque, os traficantes estavam
se oferece para conversar com o gerente do tráfico. acantonados lá. Subitamente, o celular de um dos
Sobe na garupa do motoqueiro e vai até a rua prin- garotos toca com a música que foi identificada
cipal onde há o movimento. Fica impressionado como de uma facção rival. A história dos aconteci-
com a cena: cerca de cinquenta homens distribu- mentos seguintes da tragédia já é conhecida.
ídos em duas fileiras na rua guardando o ponto e à
espera de alguém. Logo chega o gerente na garupa O traficante evangélico14 que mudou de ramo
de uma moto e armado com duas metralhadoras e
três pistolas, para e diz que gostaria de “desenro- Os trânsitos no mercado ilícito podem ser mais
lar um problema com ele”. O gerente já sabia do insuspeitos do que se imagina. E a regulação desse
que se tratava, mas disse que naquele momento mercado passa pelos valores adquiridos pela mercado-
não podia atendê-lo e propunha a conversa para ria política. O traficante inábil, que resolve decretar
mais tarde, às 21h. E que enviaria alguém de moto a suspensão do pagamento do arrego e vai motivar
para pegá-lo. uma escalada de violência com um fim trágico, pare-
À noite foi informado das razões dos trafican- ce se contrapor ao traficante com maior desenvoltura
tes em quererem tomar a entidade: para eles, com o no negócio e que percebe a necessidade de mudar de
enfrentamento maior com a polícia, o que se dava ramo na hora certa. Com o perigo à espreita, é melhor
era que as forças policiais faziam incursões durante “pegar uma indenização” e com o capital acumulado
o dia, em horário de escola, nos momentos que os comprar três vans e entrar no negócio do transporte
traficantes não estavam. E, em situações de confli- clandestino. Afinal de contas, no caso da Baixada este
to, ocorriam mortes de moradores comuns. O re- é um ramo promissor e em expansão, dado os graves
ceio do gerente era que essas mortes estavam todas problemas estruturais de mobilidade urbana que his-
sendo debitadas na conta dos traficantes. Ele dizia toricamente afetam a região.
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5 Cito algumas referências, tomando por universo empí- “Após morte de adolescentes, polícia ocupa favela do
rico Rio de Janeiro e São Paulo, entre muitas em circu- Rio” (Folha de S.Paulo, 12/09/2012), “Após chacina,
lação nessa área de estudos. Os artigos organizados por PM ocupa favela” (O Estado de S. Paulo, 12/09/2012),
Cabanes et al. (2011), no livro Saídas de emergência, “Após chacina, PM ocupa e instala base permanente
são um importante panorama das diversas alterações em favela da Baixada” (O Globo, 12/09/2012). Nas
nos campos do trabalho, da violência, do associativis- emissoras de televisão, as chamadas eram “Bope faz
mo, dos espaços públicos e privados e da religiosidade, ocupação na favela da Baixada nesta terça-feira” (Glo-
entre outros, pelo qual passou a periferia de São Paulo bo, 11/09/2012) e “Após chacina na baixada, Bope e
nos últimos anos. No Rio de Janeiro, boa parte dos es- Choque ocupam favela” (Record, 11/09/2012).
tudos urbanos em territórios precários se concentra na 8 O “não mais e não ainda” é a célebre expressão aren-
dinâmica das favelas (Valladares, 2005; Zaluar e Alvito, dtiana quando trata da memória. “É só chamando
2006; Silva, 2004), o que só tem se reforçado com a o futuro e o passado no presente da recordação e da
implantação das UPPs (Cunha e Mello, 2011; Fleury, expectação que o tempo existe […] A memória é a
2012). Apesar da noção de periferia ser menos empre- presença do não mais como a expectação é a presen-
gada, também há uma produção sobre essa temática ça do não ainda” (Arendt, 1997). O espaço do “não
em diversos campos: da cultura (cf. Tommasi, 2011), mais e não ainda” é aquele que desatualiza o mundo
da religião (Birman e Machado, 2012), das ocupações que conhecíamos e que nos permitia pensar o futuro
urbanas no centro carioca (Fernandes, 2013). como alternativa aberta do ponto de vista emancipa-
6 No dia 25 de novembro de 2010, 500 homens do tório pelas ações e categorias antes conhecidas. Nessa
Bope, do CORE (Coordenadoria de Recursos Espe- situação, se abre a necessidade de retomar o pensa-
ciais) e os fuzileiros navais da Marinha em verdadeira mento de outra maneira com imaginação e atenção
operação de guerra retomaram do Comando Vermelho à memória. De algum modo, a figura de Dante nos
o controle da Vila Cruzeiro. Os traficantes então fugi- permite entrar no campo para, a partir de suas lem-
ram pelo acesso de uma estrada no meio da mata para o branças num mundo do “não mais e não ainda”, re-
Complexo do Alemão e pressionados a se renderem ou constituir os fios dessas vidas em suspenso e inscrever
fugirem dois dias depois por outra operação nesse local. essas histórias minúsculas como possibilidades de
As imagens da primeira fuga ficaram eternizadas pela contar outras histórias possíveis.
câmera do helicóptero da Rede Globo e foram um sím- 9 Elias (1994) diz que o sociólogo precisa ter a visão
bolo da retomada do controle territorial pelo Estado do aviador e a perspectiva do nadador, buscando
de territórios pobres dominados por facções criminosas combinar elementos de etnografia, baseando-se em
(Lopes, 2014, p. 8). Na minha compreensão, essa ope- pesquisa de campo, análise de documentos, dados
ração marcou uma nova fase no processo de pacificação quantitativos e observação participante. Cada uma
e montou um novo consenso em relação à entrada das dessas perspectivas, se isolada uma da outra, apresenta
forças armadas nas favelas cariocas, identificadas como riscos específicos. Ambas, a visão aérea e a do nadador
ausentes de Estado e dominadas por facções crimino- mostram o quadro com simplificação ou uma ênfase
sas. Esse consenso foi selado entre diferentes forças, tais unilateral. Somente em conjunto nos proporcionam
como os governos federal, estadual e municipal, a mí- um panorama mais equilibrado.
dia, as forças policiais e o próprio Exército para fazer
10 Não pretendemos dizer que esse mercado funciona
um cinturão de segurança para além do circuito de fa-
do mesmo modo em diferentes lugares. Nossa tenta-
velas da Zona Sul. Meu objetivo aqui não é reconstituir
tiva é buscar explicar as proximidades e diferenças do
e analisar esse episódio da ocupação do Complexo do
funcionamento desse mercado na Baixada Fluminen-
Alemão, mas indicar sua importância para a constitui-
se como caso singular, mesmo que influenciado pelo
ção do discurso da “ausência de Estado”. Para isso, co-
funcionamento do mercado informal no Rio de Ja-
meçam a surgir trabalhos que se debruçaram especifica-
neiro. No caso de São Paulo, parece haver outra forma
mente sobre esse acontecimento. Para uma perspectiva
de regulação como citado em alguns estudos. Temos
etnográfica que assinala o cruzamento entre religião e
colhido depoimentos de moradores em áreas da pe-
poder militar, ver Lopes (2014); para uma análise da
riferia sul, na fronteira entre São Paulo e uma cidade
mídia a partir de uma perspectiva crítica do aconteci-
do ABC, que nos citam a venda de uma “biqueira”
mento do Alemão, ver Oliveira (2013).
no valor de 200 mil reais. Não fomos investigar essa
7 As manchetes dos principais jornais que anunciavam situação em profundidade, mas é possível dizer que
a chacina numa “favela da Baixada” eram as seguintes: esse caso mostra certa estabilidade do funcionamento
ESPERANDO A UPP 13
desse mercado que talvez explique a diminuição das BURGOS, M. B. et al. (2011), “O efeito UPP
taxas de homicídio na capital paulista e na Grande SP. na percepção dos moradores das favelas”. De-
11 Essa descrição do mercado informal da droga no sigualdade e Diversidade – Revista de Ciências
Rio de Janeiro parte das anotações do texto de Misse Sociais PUC/RJ, 11: 49-97.
(2011). Aqui apresento uma breve descrição do fun- CABANES, R. et al. (orgs.) (2011), Saídas de emer-
cionamento deste mercado no Rio de Janeiro, sem gência. São Paulo, Boitempo.
atentar para as especificidades de outros regimes ter-
CANO, I.; BORGES, D. & RIBEIRO, E. (2012),
ritoriais que serão tratados no item sobre o “traficante
inábil” e o “traficante evangélico”.
Os donos do morro: uma avaliação exploratória
do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora
12 Este foi o caso de André, um dos entrevistados para
nossa pesquisa, e que será discutido adiante. A análise
(UPPs) no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, LAV/
geral é de Misse, mas não podemos desdobrá-la para Banco de Desenvolvimento da América Lati-
o atual funcionamento desse mercado que pode ter na/Heinrich Böll Stiftung.
sofrido um processo de maior estabilização após a im- CUNHA, C. V. (2009), Evangélicos em ação nas fa-
plantação das UPPs em determinadas favelas cariocas. velas cariocas: um estudo socioantropológico sobre
13 Frase de um dos entrevistados da pesquisa. redes de proteção, tráfico de drogas e religião no
14 Cunha (2014) também busca analisar as diferentes Complexo de Acari. Tese de doutorado em Ciên-
fases do microcosmo do tráfico de drogas em Acari cias Sociais. Rio de Janeiro, Uerj.
através das imagens e da iconografia religiosa que se ______. (2014), “Religião e criminalidade: trafi-
altera entre dos anos de 1980 e 1990 das religiões de cantes e evangélicos entre os anos 1980 e 2000
matriz afro-brasileiras para as religiões pentecostais. nas favelas cariocas”. Religião e Sociedade, 34
Para tanto, ela toma o caso de Jeremias, traficante que
se converte a uma igreja evangélica local. Essa passa-
(1): 61-93.
gem nos demonstra que esse trânsito religioso e suas CUNHA, N. V. & MELLO, M. A. (2011), “No-
conexões com outras dimensões urbanas, como a cri- vos conflitos na cidade: a UPP e o processo
minalidade, já se estabeleciam desde os anos 2000 em de urbanização na favela”. Dilemas: Revista
algumas favelas cariocas. de Estudos de Conflito e Controle Social, 4 (3):
15 Todos os nomes dos entrevistados neste artigo foram 371-401.
trocados para preservação do anonimato. DAS, V. & POOLE, D. (2004), Anthropology in
the margins of the State. Santa Fé, Oxford, School
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14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 91
Palavras-chave: Pacificação; UPP; Baixa- Keywords: Pacification; UPP; Baixada Mots-clés: Pacification; UPP; Baixada
da Fluminense; Periferias; Violência. Fluminense; Suburbs; Violence. Fluminense; Banlieues; Violence.
O objetivo deste artigo é discutir os sen- The purpose of this article is to discuss Cet article a pour but de discuter les di-
tidos das políticas de pacificação a partir the way of pacification policies from the rections adoptées par les politiques de pa-
dos impactos na Baixada Fluminense no impacts in Baixada Fluminense in terms cification à partir de leurs impacts sur la
plano das sociabilidades e representações of sociability and representations in the Baixada Fluminense (NTR: région située
na trajetória de moradores que perten- trajectory of residents belonging to an au Nord de la ville de Rio de Janeiro) en
cem a uma igreja evangélica tradicional e evangelical church and a neighborhood termes de sociabilité et de représentations
uma associação de moradores. Argumen- association. Argument from the field re- dans la trajectoire des résidents apparte-
to, a partir da pesquisa de campo, que search, we can understand the reconfigu- nant à une église évangélique tradition-
podemos compreender a reconfiguração ration of state practices in their margins nelle et à une association d’habitants.
das práticas do Estado em suas margens and legibility of control policies directed L’auteur soutient, à partir de ses études
e a legibilidade das políticas de controle to the poor and vulnerable, not only sur le terrain, que l’on peut, non seule-
direcionadas às populações pobres e vul- from the slums and their representations. ment à partir des bidonvilles de Rio et
neráveis, não apenas a partir das favelas Take the Baixada Fluminense from its de leurs représentations, comprendre la
cariocas e suas representações. Tomar a specific constitution, the intertwining of reconfiguration de certains aspects des
Baixada Fluminense em sua constituição political market and violence on one side pratiques étatiques et la lisibilité des poli-
específica, de entrelaçamento entre mer- and its relational aspect with Rio de Ja- tiques de contrôle destinées aux popula-
cado político e violência de um lado, e neiro, on the other, may lead us to better tions pauvres et vulnérables. Considérer
em seu aspecto relacional com o Rio de understand these different territorial re- la Baixada Fluminense suivant sa propre
Janeiro, de outro, nos leva a compreender gimes caused by the pacification policies. constitution, c’est-à-dire, d’une part l’en-
melhor esses diferentes regimes territoriais chevêtrement entre le marché politique
ocasionados pelas políticas de pacificação. et la violence et, d’autre part, son aspect
relationnel avec Rio de Janeiro, nous
amène à mieux comprendre ces différents
régimes territoriaux causés par les politi-
ques de pacification.