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Vice-Reitoria:
Prof! Maria Beatriz de Carvalho Melo Gomes
Pró-Reitor Acadêmico:
Prof. Dr. Oscar Hipólito
João Cabral:
A Poesia do Menos
e outros ensaios cabralinos
Antonio Carlos Secchin, Doutor em Letras, é Professor Titular de
Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ.

Bibliografia do autor:

A ria de estação (poemas), Rio de Janeiro: Livraria São José, 1973


Movimento (novela), Rio de Janeiro: Coleção Luzerna, 1976
Elementos (poemas), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1983
Diga-se de passagem (poemas), Rio de Janeiro: Ladrões do Fogo, 1988
Poesia e desordem (escritos sobre poesia & alguma prosa), Rio ilc
Janeiro: Topbooks, 1996
Antonio Carlos Secchin /J ^ ^
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João Cabral:
A Poesia do Menos
e outros ensaios cabralinos

' 2a edição, revista e ampliada

U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

164290001

NÃO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

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Copyright © Antonio Carlos Secchin, 1999

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O autor

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Victor Burton

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Im presso no Brasil
NOTA DO EDITOR

João Cabral: a poesia do menos obteve o I o prêmio no Con­


curso Nacional de Ensaios Literários do INL/MEC (1983) e o
prêmio Sílvio Romero da Academia Brasileira de Letras (1985).
Reedita-se aqui, com mínimas alterações, o texto original publi­
cado pela Livraria Duas Cidades, e que o próprio poeta declara
ser o melhor entre tantos que já se ocuparam de sua obra.
A segunda parte do livro estampa ensaios posteriores tam­
bém dedicados ao autor de Morte e vida severina.
SUMÁRIO

João Cabral: a poesia do menos


Introdução.................................................................................... 15
I — O mundo onírico (Pedra do sono)............................. 19
- ; II — Diluição, destruição e reconstrução da poesia
(Os três mal-amados)................................................... 27
i III — A desativação onírica (O engenheiro) ....................... 37
t IV — A fábula, o poema, o poeta
(Psicologia da composição) ........................................ 51
1) A estratégia do silêncio.......................................... 51
2) A estratégia do texto................................................ 60
3) A estratégia do im puro........................................... 66
V — A máquina do real (O cão sem plum as)..................... 71
VI — O prosaico no poema (O rio)....................................... 85
VII — A natureza rarefeita (Paisagens com figuras)........... 95
VIII — Do concreto ao concreto (Morte e vida severina).... 107
IX -— A ética da corrosão (Uma faca só lâmina)................ 119
X .— O controle do discurso (Quaderna)........................... 133
XI — As vozes de fora (Dois parlamentos)......................... 163
XII — Sob o signo do quatro (Serial).................................... 185
XIII — O poema em trânsito (A educação pela pedra)........ 22 l x
XIV — O poeta no espelho (Museu de tu d o )......................... 249
XV.— A família reescrita (A escola das fa ca s)..................... 271
Outros ensaios
M orte e vida cabralina............................................................... 299
João Cabral: m arcas................................................................... 307
Entrevista de João Cabral de Melo Neto................................. 325
João Cabral:
A Poesia do Menos
então, só essa pintura
de que foste capaz,
de que excluíste até
o nada, por demais
(“No centenário de Mondrian”)
INTRODUÇÃO

Este livro procura interpretar a poesia de João Cabral de


Melo Neto a partir da hipótese de que ela se constrói sob o prisma
do menos. Com isso, queremos dizer que a criação de seus textos
é deflagrada por uma ótica de desconfiança frente ao signo lin­
güístico, sempre visto como portador de um transbordamento de
significado. Amputar do signo esse excesso é praticar o que deno­
minamos a poesia do menos. Mas, para João Cabral, desvincular
a palavra de uma tradição retórica não é suficiente: a desconfian­
ça do poeta incide tanto na antiga ordem de significações do sig­
no quanto na nova ordem em que ele o instala. Daí sua poesia fre­
qüentemente confessar-se como um ponto de vista (histórico)
sobre a linguagem, e não como um neutro espaço de onde as pala­
vras emanariam resgatadas numa pureza original. Nosso trabalho
consistirá, também, em mostrar a articulação dialética entre a
palavra esvaziada do poema e o espaço cultural e social que ela
incorpora, balizado igualmente pelos metros da carência e do
desfalque.
Se a obra cabralina comporta essa linha de análise, é eviden­
te que ríela não se esgota. Por isso, sobre enfatizarmos os proces­
sos especificamente ligados à nossa proposta geral, procuramos
depreender outros aspectos a ela não imediatamente vinculados,
mas também relevantes para a compreensão da poesia do autor.
Tais aspectos podem, ainda, não ser os mesmos de livro a livro;
assim, o estudo minudente dos esquemas rímicos, fundamental
para que se perceba a construção de sentido em Serial, se revela­
ria bem menos eficaz se efetuado em Museu de tudo, cujo discur­
so se pauta por outros fatores de organização.___ _______ ______
| U.-s. •J - Facu;;.:::'.') tía L.«-.
15 1 Biblioteca
Como, além dos pontos básicos ramificados nos textos de
João Cabral, persistem questões que, menos privilegiadas no con­
junto, o serão em determinado grupo de poemas, parece-nos dese­
jável que o olhar do crítico busque acompanhar a multiplicidade
de direções que o poeta vem imprimindo a sua obra, e que não
tente reduzi-la a um único esquema analítico previamente eleito,
de que os textos, anulados de suas (às vezes, radicais) diferenças,
seriam a mera confirmação. Preferimos, pois, tentar uma leitura
desamparada do aval diretivo de qualquer das correntes teóricas
que se ocupam do discurso poético. Com isso, não queremos
minimizar a importância da(s) teoria(s), nem insinuar que dela(s)
estaríamos imunes. Seria ingênuo admitir que pudesse haver uma
leitura “pura” da obra literária. Nela, se vislumbram os elementos
que as teorias permitem que se vislumbrem; bom crítico é o que
consegue trabalhar no aguçamento desse território, e nunca fora
dele, porque perfilhar tal hipótese seria admitir que o discurso se
possa produzir além da História. Assim, este discurso — qualquer
discurso — é escrito dentro das fronteiras epistemológicas traça­
das pelas teorias que lhe são contemporâneas, mas não pretende
“ilustrá-las” a partir de poemas de João Cabral de Melo Neto.
Outra questão, esta de âmbito mais específico, diz respeito à
bibliografia sobre o poeta. Certamente nossa leitura de sua obra
se formou também na leitura das leituras que ela suscitou. Neste
trabalho, todavia, a fortuna crítica de João Cabral foi praticamen­
te deixada de lado. Gostaríamos, porém, de que essa posição fos­
se entendida numa literalidade possível: a bibliografia crítica qua­
se não é citada dentro do livro, mas a ele comparece obliquamen­
te: “de lado”. Enquanto versões de um saber frente a um objeto,
os juízos sobre João Cabral nos interessaram tanto no que disse­
ram quanto no que omitiram: por que não dialogar igualmente
com a lacuna? Na verdade, qualquer texto crítico sobrevive nas
margens do silêncio e da omissão legadas pelos discursos que o
precederam; portanto, só através da escuta atenta dessas falas pre-
gressas é que podemos localizar onde começa o seu silêncio.
As edições que utilizamos foram: Poesias completas, Sabiá,
1968, incluindo: Pedra do sono, Os três mal-amados, O enge­
nheiro, Psicologia da composição, O cão sem plumas, O rio, Pai­
sagens com figuras, Morte e vida severina, Uma faca só lâmina,
Quaderna, Dois parlamentos, Serial e A educação pela pedra;

16
Museu de tudo, J. Olympio, 1975; e A escola das facas, J. Olym
pio, 1980.
Para evitar a constante remissão às notas, cada citação ou
transcrição de versos, estrofes ou poemas virá acompanhada do
título da obra de que foi extraída; se, todavia, referir-se ao livro
que esteja sendo o objeto central do capítulo, apenas o número da
página será indicado. As Poesias completas tiveram a ortografia
por nós atualizada de acordo com a reforma de 1971. Os grifos,
salvo menções expressas, não serão nossos.
Os seis capítulos finais deste estudo constituíram a tese de
doutorado que apresentamos à UFRJ em 1982. Os capítulos ini­
ciais compuseram a dissertação de mestrado, defendida, também
na UFRJ, em 1979, e aqui se estampam com algumas modifica­
ções, em versão ligeiramente condensada.
A dissertação e a tese tiveram a orientação acadêmica do
professor Afrânio Coutinho. Compuseram a banca de mestrado,
além do orientador, os professores Gilberto Mendonça Teles e Sô­
nia Brayner; a de doutorado, os professores Anazildo Vasconce­
los da Silva, Bella Josef, Gilberto Mendonça Teles, Leodegário
A. de Azevedo Filho e Mário Camarinha da Silva. A todos, os
meus agradecimentos pelo estímulo e sugestões.

17
I — O mundo onírico

Com Pedra do sono (1941), a poesia de João Cabral não pa­


recia ainda prefigurar a construção de um espaço lírico próprio,
que só começaria a desenhar-se a partir de Os três mal-amados
(1943). A propósito do livro de estréia, com efeito, muito se falou
do tributo a Murilo Mendes e à poética surrealista: primado da vi-
sualidade, captação plástica do real, valorização do onírico em
contraposição às percepções automatizadas do objeto. Nessa tri­
lha, a poesia cabralina privilegiará tanto um universo sintatica-
mente reinventado quanto a subjetividade de quem assim o
formulou:

Automóveis como peixes cegos


compõem minhas visões mecânicas.
(“Poema”, p. 375)

Tenho no meu quarto manequins corcundas


onde me reproduzo
e me contemplo em silêncio.
(“Os manequins”, p. 376)

Minha memória cheia de palavras


meus pensamentos procurando fantasmas.
(“Noturno”, p. 377)

É sintomático que, dentre os vinte textos do livro, encontre­


mos em dezessete a presença do eu-lírico: em quinze, explicita­

19
mente; e em dois através da função conativa da linguagem, que
não elide o peso do sujeito, ao estabelecer uma relação sem dis­
farce entre ele e o objeto evocado.
A não-mediação sujeito/objeto está presente, sob outras for­
mas, em vários poemas de Pedra do sono, e será atenuada pela
produção posterior de João Cabral, em que a primazia da reflexão
impedirá o fluxo integrativo entre quem vê e o que é visto. O dis­
curso cabralino — em seu momento de “sono” — , além de valo­
rizar a primeira pessoa do singular e de promover a fusão de sujei­
to e objeto, vai optar por formas interrogativas de linguagem; ele­
gerá o noturno e o sombrio para endossar o espaço onírico; traba­
lhará com elementos líquidos/inconsistentes. Examinemos breve­
mente a configuração dessas linhas de força da obra.

a) A p rim eira pessoa do singular

Embora seja a forma discursiva predominante no livro, con­


vém salientar que o “eu” funciona antes como espectador do
mundo onírico do que como ator imerso em sua dinâmica:

Ficarei indefinidamente contemplando


meu retrato eu morto.
(“Poema”, p. 375)

As ações do sujeito remetem com insistência a noções de


aniquilamento, morte, letargia, in-ação, e essa passividade frente
ao universo criado é mais uma aproximação que pode ser feita
com o surrealismo:

Mas por detrás da cortina


que gesto meu se apagou?
(“Canção”, p. 380)

Nuvens porém brancas de pássaros


acenderam a noite do poeta
e nos olhos, vistos por fora, do poeta
vão nascer duas flores secas.
(“O poeta”, p. 383)

20
me suicido inutilmente
no espaço jornal.
(“Espaço jornal”, p. 384)

b) A fusão sujeito/objeto

Não se veja um caráter contraditório entre passividade e in­


tegração ao mundo criado: trata-se, apenas, de uma fusão que
rejeita a efusão. O poeta compactua com o onírico sem necessaria­
mente celebrá-lo. Instaurado na mecânica do sonho, dilui-se o per­
fil cotidiano da realidade, e o poeta registra essa nova paisagem:

O telefone com asas e o poeta


pensando que fosse o avião
que levaria de sua noite furiosa
aquelas máquinas em fuga.
(“O poeta”, p. 383)

Num primeiro momento, o poeta é aquele que vê; mais tar­


de (para usarmos expressão do próprio João Cabral, em Museu de
tudo), será aquele que dá a ver.

c) O discurso interrogativo

Em geral associada ao clima de mistério e transcendência da


poesia, a interrogação explícita — escassa no conjunto da obra
cabralina — surge seis vezes em Pedra do sono. Assinale-se,
porém, que o “m istério” é inerente ao movimento cifrado do
inconsciente, não se revestindo de traços místico-religiosos:

Por que não um tiro de revólver


ou a sala subitamente às escuras?
(“Poema deserto”, p. 376)

Meus sofrimentos cumpridos


que sono os arrebatou?

21
Mas por detrás da cortina
que gesto meu se apagou?
(“Canção”, p. 380)

Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
(“Marinha”, p. 380)

Como interrogassem sobre a...?


(“A porta”, p. 381)

onde o mistério maior


do sol da luz da saúde?
(“Poesia”, p. 382)

A maioria das ocorrências remete ao que podemos denomi­


nar uma desistência do real enquanto instância passível de orde­
nação pela consciência. Sono e morte são o estado e a condição
mais identificados à poesia do primeiro João Cabral.

d) O onírico e o noturno

Apesar da freqüente associação entre esses dois termos,


entre eles não existem relações necessárias: se é lugar-comum
admitir a noite como o período mais propício à expansão onírica (-
não apenas pelo sono, mas também pela diluição do contorno diur­
no da matéria), salientemos que tal expansão não duplica forçosa­
mente as condições noturnas (ou não) que a teriam gerado. Pode
haver uma poesia da claridade onírica, pela presença, no próprio
sonho, de signos que se oponham ao predomínio da escuridão:

Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo
(“Poema de desintoxicação”, p. 378)

Em João Cabral, todavia, noite, sono e sonho — como diria,


noutro contexto, Carlos Drummond de Andrade — “suavemente se

22
tocam,/ amorosamente se enlaçam”.1 Os três termos colaboram
para uma concatenação insólita do real, de que o poeta se torna
cúmplice na medida em que não só a ela cede, mas em que a busca:

E nas bicicletas que eram poemas


chegavam meus amigos alucinados.
(“Dentro da perda da memória”, p. 377)

Minha memória cheia de palavras


meus pensamentos procurando fantasmas
(“Noturno”, p. 377)

Uma compilação dos vocábulos sono-sonho-noite-morte (e


de palavras ou sintagmas afins) indica sessenta e cinco incidên­
cias ao longo do livro. Em contraposição, dia e “manhãs” surgem
uma única vez, e “manhãs” apenas para acentuar a inconversibili-
dade do poeta aos apelos da claridade solar:

O nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.
(“Poema de desintoxicação”, p. 378)

e) O líquido, o inconsistente

As obras posteriores de João Cabral tenderão a se fazer den­


tro da esfera do sensível; em Pedra do sono, por oposição, encon­
tramo-nos face a uma poética do deslizamento', quase nada é cor-
póreo; tudo se presta à evasão:

De madrugada, meus pensamentos soltos


voaram como telegramas
(“Noturno”, p. 377)

1 Andrade, Carlos Drummond de. A morte do leiteiro. In. Reunião. Rio de Janeiro:
J. Olympio, 1969. p. 107.

23
Os pensamentos voam
dos três vultos na janela
e atravessam a rua diante de minha mesa.
(“A poesia andando”, p. 379)

Por isso, evidencia-se que, desprezando a imobilidade da


terra e a rápida expansão do fogo, o poeta irá privilegiar a água e
o ar como os suportes “naturais” de seu discurso. Tais elementos,
além de partilharem o atributo da transparência, e o de uma con­
tinuidade apenas artificialmente estancável, apresentam em rela­
ção ao fogo algumas distinções de uma particular pertinência para
a concepção poética do livro. Um exemplo: se a memória é fator
minimizado,

Dentro da perda da memória


uma mulher azul estava deitada
(“Dentro da perda da memória ”, p. 376)

Sobre o lado ímpar da memória


o anjo da guarda esqueceu
perguntas que não se respondem.
(“Infância”, p. 378)

perco a fome a memória


(“Espaço jornal”, p. 384)

notemos que ar e água, ao contrário do fogo, não deixam necessa­


riamente vestígios de sua passagem. Fogo como desordem e alte­
ração brusca, terra como signo do tangível, são igualmente rejei­
tados em favor de água e ar. Admite-se o movimento, mas sob a
condição de que seja sempre idêntico:

Os acontecimentos de água
põem-se a se repetir
na memória.
(“O poema e a água”, p. 385)

Em Pedra do sono, o poema comparece mais subordinado


ao líquido (“As vozes líquidas do poema/ convidam ao crime”,
p. 385), enquanto a percepção do poeta se divide entre água e ar:

24
Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
(“Marinha”, p. 380)

O livro aberto nos joelhos


o vento nos cabelos
olho o mar.
(“O poema e a água”, p. 385)

A quase-totalidade dos textos do livro se inscreve nas gran­


des cinco linhas que acabamos de apontar. Em alguns poemas, no
entanto, já se vislumbra, por parte do eu-lírico, o desejo de um
sistema reflexivo que recuse a fusão imediata com o objeto: o
poeta não se contenta em ver como o fenômeno se dá, mas inten­
ta saber como ele se organiza. Já houve quem procurasse distin­
guir, no que diz respeito à influência do surrealismo no primeiro
João Cabral, duas vertentes naquele movimento: uma alucinató-
ria, dominada pela expansão incontrolável do discurso; e outra
construtivista, em que o rigor na armação dos signos sobrepujas­
se o delírio do automatismo.2 Se ambas as vertentes comparecem
a Pedra do sono, a segunda, todavia, não apresenta a intensidade,
nem a “ vontade sistêmica”, que conhecerá mais tarde. Leiamos
“Poesia” :

O jardins enfurecidos,
pensamentos palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente freqüentado:
onde o mistério maior
do sol da luz da saúde? (p. 382)

Esse poema, e mais especificamente seu último verso, pode­


ria ser apontado como um dos embriões da postura solar que João

2. Crespo, Angel & Gomez Bedate, Pilar. Realidad y forma en Ia poesia de João Cabral
de Melo. Revista de cultura brasileha, Madrid: 3 (8):5-69, mar. 1964, p. 21.

25
Cabral assumiria a partir de O engenheiro. Ressalvemos, todavia,
que, além de o poeta subordinar sol e luz à transcendência de um
“mistério maior”, a possível conquista desse território diurno esbar­
raria na desorganização, no caráter indomado, dos “jardins enfure­
cidos” da poesia. Em Pedra do sono, as reflexões acerca da criação
acabam quase sempre valorizando a mente tumultuada do criador
em detrimento de uma posição crítica frente ao mundo criado:

No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
(“O poeta”, p. 382)

Eu penso o poema da
face sonhada, metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta o papel e a sala.
(“Poema de desintoxicação”, p. 378. Grifamos)

Insistamos em que, não obstante o vínculo entre sujeito e


objeto, o universo proposto em Pedra do sono não se reveste de
aspectos celebratórios. A utilização de vocábulos sem a chancela
da “pureza” da tradição lírica, por exemplo, age no sentido de
impedir que se sufoque completamente um veio de montagem
crítica do texto. Luiz Costa Lima sustenta que já existe no livro
uma “raiz que repudia a palavra demasiado poética” .3 Cremos
que o poeta não chega a banir a palavra “pura”, pois o exclusivis-
mo do “despoetizado” poderia ser tão dogmático quanto a obe­
diência estrita a um purismo vocabular; mas Pedra do sono inte­
gra também a palavra “não poética”, o que já é considerável, se
levarmos em conta o ideário estético da “geração de 45” a que o
poeta, às vezes, é erroneamente assimilado. Num caso, um léxico
fechado, de seleção; noutro — João Cabral — um léxico de
incorporação.

3 Lima, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 250.

26
II — Diluição, destruição e
reconstrução da poesia

Os três mal-amados (1943) é obra colocada em posição


marginal por quase todos os estudiosos de João Cabral de Melo
Neto. A exceção a esse panoram a crítico é João Alexandre
Barbosa, que dela extrai a noção que, a seu entender, comanda
toda a produção do poeta: a “imitação da forma” 1.
Uma vontade ordenadora, apenas aflorada no último verso
de “Poesia”, é agora efetivada por um dos personagens do livro,
Raimundo:

Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de


todos os detalhes de seu corpo, que poderia reconstituir à minha
vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me
seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar
ou uma prancha anatômica, (p. 367)

Mas, como salienta João Alexandre Barbosa2, não se pense


que entre as propostas de Raimundo e as dos dois outros persona­
gens (João e Joaquim) já se consubstanciasse um endosso das pri­
meiras por parte de João Cabral. Não se pode negar a considerá­

1 Cf. Barbosa, João Alexandre. A imitação da forma. São Paulo: Duas Cidades, 1975. O
traço-chave da poesia cabralina seria a imitação que o poema efetua da forma do objeto
que ele expressa. Mas — e o próprio ensaísta assinalou o fato (cf. p. 105) — aprender
com o objeto é apreender algo do sujeito. A relação sujeito/ objeto se torna mais comple­
xa na medida em que os atributos ditos objetivos do objeto são os escolhidos pela subje­
tividade do poeta. Nesse sentido, apenas como “licença epistemológica” se pode admitir
a existência de uma lição intrínseca ao objeto; só assim deveremos entender as várias
aprendizagens “objetivas” a que nos referirmos ao longo do estudo.
2 Ibidem, p. 39.

27
vel similitude entre as concepções estéticas de Raimundo e aque­
las que o poeta viria efetivamente a abraçar. Ocorre, porém, que,
no período em que foi escrita a obra, todos os personagens refle­
tiam, em graus diversos, traços localizáveis em Pedra do sono; e,
dentre esses traços, o princípio de organização da matéria não era,
certamente, preponderante. Em Os três mal-amados ele já se insi­
nua com a mesma intensidade de dois outros (de que falaremos
adiante), mas sua eleição como o grande eixo da poética de João
Cabral só prosperará de fato a partir de Psicologia da composi­
ção. Examinemos, pois, as três diretrizes vigentes no livro, e veri­
fiquemos em que medida a “organização da matéria” pressupõe a
retração dos valores defendidos por João e Joaquim.

a) João, ou a diluição da poesia

As onze falas de João representam a linha de maior conti­


nuidade do “clima” de Pedra do sono. Entre os fatores de aproxi­
mação, citemos: predomínio de metáforas líquidas (presentes em
seis falas); valorização do estado onírico em detrimento da vigília
(“Que intimidade existe maior que a do sonho?”, p. 367); elogio
de um afastamento que, ao diluir o objeto, o tornaria mais “verda­
deiro”:

Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para


medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?
(p. 365)

Esse desejo do longínquo atualiza o que já se encontrava na


estrofe inicial de “Poema” (Pedra do sono):

Meus olhos têm telescópios


espiando a rua,
espiando minha alma
longe de mim mil metros, (p. 375)

Outras aproximações: um léxico que privilegia o visual;


ampla utilização de formas interrogativas.
Para além dessas afinidades, tentemos, porém, compreender
por que o sonho de João já não é mais exatamente igual ao do

28
sujeito lírico da obra de estréia. Em primeiro lugar, trata-se de um
sonho que dispensa a necessidade do noturno e do sombrio.
Ironicamente, a única referência à noite é para destacar o realismo
(desvalorizado) de uma relação amorosa confrontado à riqueza
potencial de que o mesmo acontecimento se pode revestir no
sonho diurno. Por isso, evitemos uma simplificação que consisti­
ria em ver, sob a figura de João, a simples retomada do discurso
desenvolvido no livro anterior. Inexiste agora o livre trânsito de
imagens díspares. Mais do que o sonho, é o devaneio que mobili­
za o personagem:

Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que
durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pega­
da a mim? (p. 366. Grifamos)

Todavia, a fixação num único foco deflagrador de imagens


(Teresa, ou melhor, sua percepção de Teresa), a eliminação do
noturno e a deriva (menos indomável) do devaneio não são sufi­
cientes para impedir a rejeição da concretude do real que João
efetivamente opera. Em vez do objeto, sua representação metafó­
rica; essa representação implicará a recusa do próprio objeto em
sua forma empírica, já que dele apagará as marcas da contingên­
cia, quer espacial (“precisaria de quilômetros para medir a distân­
cia”), quer temporal (“Olho Teresa como se olhasse o retrato de
uma antepassada que tivesse vivido em outro século”, p. 365).
A percepção do objeto, assim dissolvido de sua materialida­
de “por efeito do gás do sonho”, mostra até que ponto o persona­
gem se deixa dominar pela diluição da engrenagem onírica. Mas
o dado novo é que ele busca esse espaço a partir de uma opção
entre a “riqueza” potencial do sonho ou devaneio e uma declara­
da “pobreza” da realidade. Esse cotejo de níveis inexistia em
Pedra do sono, onde a hipótese de se trabalhar com a vigília mal
era aventada. João, de forma voluntária, se conduzirá à entrega
passiva frente ao mundo imaginário:

Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o


único onde me será possível cumprir os atos mais simples,
(p. 372)

29
O imaginário com seu fluxo irrefreável: é do mar que vão
partir várias metáforas de João. Um exemplo de Pedra do sono
condensaria à perfeição esse posicionamento: “não é um rio, é o
mar/ que transborda de meu olho.” (p. 384) Constata-se: uma per­
cepção fundada no visual; uma subjetivação da imagem, subordi­
nada à psique do criador (“meu olho”); ao mesmo tempo, este
perde o controle sobre aquela (que transborda), subordinando-se,
assim, à imagem gerada, que passa a comandar o desdobramento
do texto. Ela aprisiona o poeta, que não logra romper o cerco
rumo a um real que exista externo a seu devaneio (“Donde me
veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo priva­
do, fechado em minha lembrança?”, p. 371-372). Com a cons­
ciência desse impasse — de que, metaforizando, como resposta
subjetiva, o dado empírico, seu discurso só tende a aprofundar o
intervalo entre palavra e objeto, e a fazer deste a longínqua e
imperfeita miragem da poesia — , o personagem chega a questio­
nar a intransitividade do onírico, e se aproxima do que chamaría­
mos sua tentação referencial.

Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormeci­


do, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de
sua geografia, sua história, sua poesia? (p. 370)

b) Joaquim , ou a destruição da poesia

Comparado à fala de João, o monólogo de Joaquim parece


pertencer a um horizonte de fabulação menos complexo. Todo ele
se desenvolve a partir de metáforas obsessivas da destruição. O
sentido devorador da experiência amorosa é o grande detonador
da palavra de Joaquim: amor visto em seu compulsivo trajeto,
chegando a prescindir da nomeação do objeto amado. Enquanto
João e Raimundo estabelecem relações com outros seres,
Joaquim, desde o início, falará exclusivamente do próprio senti­
mento, ou melhor, de seu efeito:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor


comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço,
(p. 365)

30
Em todo o texto, Joaquim é movido por esse efeito, e seu
monólogo só irá reforçar e expandir as áreas de seu fracasso. Co­
locando a intensidade amorosa como um agente de que ele seria
vítima, seu discurso, formalmente, endossa esse jugo. Nele, como
se pôde verificar pelo exemplo, “amor” desempenha a função de
sujeito gramatical, incidindo em verbos que indicam destruição
(além de “comer”, registram-se: “devorar”, “beber”, “roer”), ao
passo que o objeto traz as marcas do enunciador, através dos pro­
nomes possessivos. Desse modo, a capacidade ativa de Joaquim é
praticamente nula: a ele resta, apenas, consignar as agressões que
sofre. Não se trata mais de uma fusão na matéria cósmica, mas de
um aniquilamento da própria materialidade, numa (des)ordem
cujos modelos circulam entre o imenso e o mínimo, entre o espar
ço coletivo e o individual:

O amor comeu meu Estado, e minha cidade. Drenou a água morta


dos mangues, aboliu a maré. (p. 370)

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, nava­


lha, escovas, tesouras de unhas, canivete, (p. 368)

Analogamente à identificação do coletivo (Estado, cidade) e


do pessoal no plano do espaço, também no tempo socializado
repercute o aniquilamento da temporalidade subjetiva do perso­
nagem:

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas.


Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que
as linhas de minha mão me asseguram, (p. 371)

' Definindo-se por tudo aquilo que não tem, o discurso de


Joaquim cinge-se a enunciar o esvaziamento, sem rearticular o
esvaziado. É, literalmente, uma figura do vazio, marcada pela sis­
temática subtração de elementos. Mas esse zero do signo (ele é o
que não foi e o que não mais poderá ser) se esgota na própria pro­
clamação de sua carência, sem remeter a uma absorção dialética
da ausência como estímulo para superação do impasse. Se o dis­
curso poético pode buscar, incessante, a ultrapassagem da aporia
(não que ela morra; mas pode, ao menos mudar de lugar), com­

31
preendemos, então, por que o efeito amoroso, com sua mecânica
obstrutora, torna, em Joaquim, “amor” e “poesia” inconciliáveis:

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu


em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicioná­
rio as palavras que poderiam se juntar em versos, (p. 367)

c) Raim undo, ou a reconstrução da p o esia

Já nos referimos a uma particularidade mimética da fala de


Raimundo: ao invés de buscar a imitação do real empírico ou
reproduzir o estado onírico, Raimundo captará o real num nível
maior de abstração: não aquilo que se dá, mas as relações que
estruturam o fenômeno. Nada mais distanciado de uma realidade
“objetiva” do que o olhar projetado pelo personagem:

Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde


chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e
completo de ver uma flor, de ler um verso. (p. 372)

É sugestivo o jogo de Raimundo com a temporalidade. To­


das as suas intervenções se inscrevem no imperfeito do indicativo.
“Aprisionando” o objeto amado nessa forma freqüentativa, ele
não se submete ao efeito pontual do pretérito perfeito (a exemplo
do que ocorre com Joaquim), nem à atualidade do presente (carac­
terística da fala de João). O aspecto sistemático da captação de
Raimundo revela-se no fato de que o objeto analisado é subtraído
ao evento. Distanciando fato e fala, o imperfeito do indicativo
também consigna a repetição de um fenômeno, o que permite a
apreensão daquilo que, no fato, subjaz como núcleo invariável.
Contra a passagem do tempo, Raimundo constrói uma ima-
gística do estancamento:

Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio


impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos.
/..../ Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento
armado — presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha
fuga. (p. 371. Grifamos)

32
Assim como as formas do imperfeito “acronizaram” Maria,
o personagem busca definir-se a partir de imagens atemporais
(desenho, poema). Em consonância a esse projeto de inalterabili-
dade, o universo metafórico de Raimundo se satura de signos
minerais:

Maria era a praia que eu freqüentava certas manhãs, (p. 365)

Maria era também uma fonte. (p. 366)

Maria era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu


atravessava para chegar em algum lugar. (p. 368)

A proposta de inalterabilidade não contradiz a recorrência


de metáforas líquidas para conotar Maria. Contrariamente a João,
cuja fala evocava a escala macroscópica do oceano, as referências
de Raimundo se dirigem a uma água dominada, ao alcance de um
sujeito que trabalha constantemente com um ideal de miniatura:

Maria era também a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido


dessa forma correta e explorável. (p. 369. Grifamos)

[Maria era] O líquido que começaria a jorrar num momento que eu


previa, num ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias
que eu poderia controlar, (p. 366. Grifamos)

Cremos que através desses exemplos se torna claro o pro­


cesso que denominamos a “reconstrução da poesia” : em
Raimundo, a condição de existência do discurso será o desmonte
do fenômeno em sua evidência empírica; assim, a poesia não cria­
rá um reino autônomo, mas, afastando-se da realidade como apa­
rência, irá reconstruí-la como sistema. Quando a realidade não
mais se agita, a poesia começa a se mover.

Se Joaquim representa uma proposta que só incidentalmen-


te é reencontrada nos poemas de João Cabral, João e Raimundo
configuram uma tensão que persistirá na obra seguinte do poeta.
Por isso, intencionalmente, reservamos o termo “monólogo” ape­

33
nas para as intervenções de Joaquim. As falas de João e Raimun­
do, aparentem ente fechadas em seus respectivos universos,
subentendem um núcleo comum que se alimenta dos dados forne­
cidos pelo entrechoque de uma e outra, como se houvesse duas
vozes atingindo uma única consciência hesitante de linguagem.
Quase todas as intervenções de Raimundo podem ser considera­
das, no nível desse “diálogo implícito”, como uma imensa antíte­
se engendrada a partir de elementos oriundos da imagística de
João (ou vice-versa). Desta forma, a antítese repousa numa mes­
ma base de suportes metafóricos, cujos atributos serão desenvol­
vidos contrariamente pelos dois personagens:

João: “Precisaria de quilômetros para medir a distância, o afasta­


mento em que a vejo” (p. 365)
Raimundo: “Meus gestos simplificados diante de extensões”
(p. 365)
João: “Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar qua­
se azul que envolvem as pessoas afastadas” (p. 365)
Raimundo: “ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina
seus limites” (p. 365)
João: “Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em
toda a intimidade?” (p. 367)
Raimundo: “Maria não era um corpo vago, impreciso” (p. 367)
João: “Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu
quarto” (p. 367)
Raimundo: “Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem pro­
fundeza” (p. 366)
João: “Teresa que /.... / por efeito do gás do sonho senti pegada a
mim?” (p. 366)
Raimundo: “sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem”
(p. 368)
João: “O sonho volta, me envolve novamente” (p. 369)
Raimundo: “sonhos de que disporei, que submeterei a meu tempo
e minha vontade, que alcançarei com a mão” (p. 369)

Raimundo desm obiliza, continuam ente, o m acrocosm o


imagístico de João, traduzindo-o em coisas “ao alcance da mão”.
Um microcosmo concreto, que, ao invés de evocar um mar “que
inundou”, prefere um outro, “sem mistério e sem profundeza”, ou
mesmo uma garrafa de aguardente, “forma correta e explorável”.
É verdade que ainda admite, como impulso inicial, “o rumor e os

34
movimentos de sonhos possíveis” (p. 369), ou, em outras pala­
vras, uma criação deflagrada pela subjetividade incontornável do
poeta, posto que este a domine (ou exorcize) no ato de enunciá-la.
Da mesma forma que falamos da “tentação referencial” de João,
poderíamos, neste passo, falar de uma “tentação onírica” de
Raimundo. Destaquemos, ainda, a analogia entre o microcosmo
concreto do personagem e o espaço, também concreto, em que ele
se registra: a folha, o livro. A folha de papel, com seu perímetro
preciso, é mais uma metáfora do campo sólido e definido onde o
poeta quer exercitar sua depuração do concreto. Opondo-se à
nebulosa caça de uma poesia incorpórea, Raimundo se debruça
sobre a materialidade do objeto-livro, sobre “as folhas claras e
organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos explicati­
vos: poesia, poemas, versos” (p. 370).
III — A desativação onírica

Retomando ao verso, João Cabral publica em 1945 os vinte


e dois poemas de O engenheiro. O embate entre a vertente da ex­
pansão onírica (de que o personagem João foi exemplo) e a do
projeto construtivista (Raimundo) não será totalmente resolvido
na nova obra. Embora a segunda ganhe terreno, persiste, em vá­
rios textos, um clima surreal (há, no todo, dezessete ocorrências
das palavras “sono”, “sonho” e “sonhar”). É necessário, todavia,
não confundir poemas que a) fluem sob a expansão onírica;
b) apresentam um povoamento léxico dela derivado, mas cujo tra­
tamento da imagem está sob a égide da construção1.
Um exemplo da primeira postura cabralina se encontra em
“A paisagem zero”:

A luz de três sóis


ilumina as três luas
girando sobre a terra
varrida de defuntos.

Varrida de defuntos
mas pesada de morte:
como a água parada,
a fruta madura.

1 Nunes, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1971, p. 39.

37
E morte ainda no objeto
(sem história, substância,
sem nome ou lembrança)
abismando a paisagem,
janela aberta sobre
o sonho dos mortos, (p. 341-342)

Aqui, o atropelo de imagens surge como resposta enfática e


empática ao estímulo original (pintura de Vicente do Rego Mon­
teiro), e a pouca força de uma ordenação deixa o poeta à deriva
das sugestões de sua subjetividade diante do objeto, como já
ocorrera na homenagem a outro pintor, André Masson, em Pedra
do sono. Da mesma filiação, apontamos ainda “O fim do mundo”:

No fim de um mundo melancólico


os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol. (p. 346)

e “A viagem”:

Quem é alguém que caminha


toda a manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo


como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua? (p. 343)

A segunda vertente abarca a maioria dos textos metalingüís-


ticos do livro: “A bailarina”, “O engenheiro”, “O funcionário”, “O
poema”, “A lição de poesia”, “A mesa”, “As estações”, “A Paul
Valéry”. Existem, ainda, poemas (“Os primos”, “A moça e o trem”,
“A árvore”, “Pequena ode mineral”) que indicam a ultrapassagem
temática do sonho, e que prefiguram uma nova ordem, de que ele
será banido: o discurso lírico não se organizará, então, contra o
onírico, pois tal categoria sequer será aventada. Não se tratará,
assim, de valorizar a força do poema que se alimenta da seiva
extinta dos sonhos, mas de um movimento que camufle ou sufoque

38
a própria relevância dessa seiva: mesmo que ela faça irromper o
poema, não irrompe no poema.
Procuremos estabelecer as bases do processo de desativa­
ção onírica. Integram esse processo, como dissemos, os textos
que tematizam o papel do sonho para a construção do texto. Es­
pécie de aguçamento da consciência poética, que irá analisar■o
espaço onírico para aprender, por sua superação, a investir na di­
reção do dado concreto. A desativação consistirá, assim, num tra­
balho que, sem abandonar a semântica do sonho, irá miná-la por
dentro, retirando-lhe a aura, quer para explicitá-la como “figura
de linguagem” (o que destrói sua carga de ilusionismo), quer para,
admiti-la na esfera dojndecifrável. Mas essa segunda hipótese
não fortaleceria o aspecto mítico da poesia? Aparentemente, sim,
porque o poeta, querendo desmontar o onírico, admitirá que é
dominado por ele. Há, na obra, diversas referências a tal “mons­
tro indomável”. Mas, por outro lado, ao confessar essa derrota,
João Cabral prefere expressá-la como fracasso a aliar-se ao fluxo
que o vence. Veja-se o exemplo de “A bailarina”:

A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.

A três horas de sono,


mais além dos sonhos,
nas secretas câmaras
que a morte revela.

Entre monstros feitos


a tinta de escrever,
a bailarina feita
de borracha e pássaro.

Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar. (p. 342-343)

Na primeira estrofe, à palavra “borracha” é conferida uma


consistência espacial (“pavimento”), a exemplo das superfícies

39
que serão sonhadas no poema “O engenheiro” . Seu percurso,
também marcado temporalmente (“A três horas de sono”), é espa-
cializado de forma ainda mais concreta na terceira estrofe, quan­
do a bailarina, saída das “secretas câmaras” do poeta, atinge a
folha que a acolherá. Após “aprisionar” o objeto num espaço bem
delimitado (seguindo a lição do mal-amado Raimundo), o poeta
procede à desativação onírica. Na quarta estrofe, decompondo a
imagem, efetiva o périplo que comentamos: dessacraliza o com­
ponente “borracha” como “figura de linguagem”, mas admite a
persistência fluida/inefável do “inseto ou pássaro”, que não sabe
caçar. A equiparação inseto/pássaro é processo antiilusionista que
destrói a pretensa “força necessária” que vincula objeto e ima­
gem. Ao designar outras correspondências possíveis, Cabral ope­
ra com o que se pode chamar metáfora alternativa.
A reincidência do vocábulo “monstro” para designar o que
se relaciona com as manifestações do inconsciente nos impede de
considerar que exista uma aliança sonho/natureza. O exemplo
mais citado para corroborar esse possível pacto costuma ser o
poema “O engenheiro”, de que transcrevemos as duas primeiras
estrofes:

A luz, o sol, o ar livre


envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;


o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre, (p. 344)

Os primejros versos do texto já indicam o cerco (o “envol­


ver”) efetuado pelo natural sobre o sonho; assim, o engenheiro irá
( sonhar as marcas signifcantes de clareza que projetara em vigília,
e não o contrário: é a realidade que penetra o onírico e o modela
à sua imagem.
Os elementos naturais da primeira estrofe serão geometriza-
dos na segunda (saliente-se que a transcrição abstratizada da natu-
i reza é outro ponto de contato com as proposições de Raimundo).

E, se o “mundo justo” se caracteriza por sua face não-encoberta,

40
somente aceitando a clara invasão do dia o sonho encontrai jí um
lugar: não o de um pacto, mas o de uma implícita submissãojj Uma
estrofe de “As estações” (a primavera) retoma essa relação:

Os homens podem
sonhar seus jardins
de matéria fantasma.
A terra não sonha,
floresce: na matéria
doce ao corpo: flor,
sonho fora do sono
e fora da noite, como
os gestos em que floresces
também (teu riso irregular,
o sol na tua pele), (p. 348)

Nela, percebe-se que o sonho não é fecundo: repetirá, fan­


tasma, os inefáveis “jardins” que o fazem existir. Em oposição, a
terra, por não sonhar, será agente transformadora da matéria. Na
equiparação “flor” e “sonho”, observemos que se trata de sonho
fora do sono e da noite, ou seja, também submetido, como em “O
engenheiro”, à máquina do dia. O sonho, ao invés de produzir um
efeito dissonante no real, se quer o resultado de uma produção
ordenada do próprio real. Assim, o universo sonhado só não entra
em conflito com a realidade produzida se for comandado pela
consciência diurna do poeta. Sua força noturna e incontrolável
deve esbarrar no filtro da manhã,

E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente

e fresco como o pão.


(“A mesa”, p. 349)

quando a morte do sonho é a condição vital do verso.


Invadindo a folha branca, o “monstro” onírico é o símbolo
da permanência, no texto, dos fatores inconscientes que consegui­
ram burlar a rede de lúcida vigília:

41
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas


de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
(“A lição de poesia”, p. 354)

Já comentamos que a persistência de tais elementos, longe


de configurar uma aliança estimulante com as forças despertas do
poeta, é reduzida à noção de fracasso. Recusando-se à comunhão
com os dados indomáveis, João Cabral, pela primeira vez (em “A
Paul Valéry”), estabelece a proposta do silêncio:

É o diabo no corpo
ou o poema
que me leva a cuspir
sobre meu não higiênico?

Doce tranqüilidade
do não fazer; paz,
equilíbrio perfeito
do apetite de menos. (p. 359. Grifamos)

Esses versos identificam ao “não” a ordem e a ascese, ao


mesmo tempo em que atribuem aos “monstros” do inconsciente
(“o diabo no corpo”) as causas que levam o poeta à recusa. Mas
não se trata de um silêncio metafísico, que poderia carrear perqui-
rições sobre a impotência da linguagem; ao contrário, será a res­
posta organizada contra o “apetite” da impulsividade, da escrita a
qualquer preço e a qualquer verso. A partir do núcleo implícito
“silêncio” (o “não fazer”), outras imagens são geradas,

Doce tranqüilidade
da estátua na praça
entre a carne dos homens
que cresce e cria.

42
Doce tranqüilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem, (p. 359)

em que, por um lado, é marcada como positiva a ausência de pro­


dução discursiva (o “pensamento da pedra”), e, por outro, são
desvalorizados os signos que indiquem expansão e mobilidade
(“carne dos homens/ que cresce e cria”; “fuga, evaporação,/ febre,
vertigem”). Refratário a uma postura arraigadamente subjetiva,
João Cabral, por não conseguir ainda superá-la, opta pelo apren­
dizado do silêncio:

as águas dissolvem
os líquidos da vida;
e o vento dispersa
os sonhos, e apaga

a inaudível palavra
futura — apenas
saída da boca,
sorvida no silêncio, (p. 359)

Não é o silêncio “natural” que convirá ao poeta, pois “dis­


persar” e “dissolver” são vocábulos que não acentuam a metodi-
cidade de um trabalho a ser desenvolvido. São tributários do mes­
mo fluxo vital que lhes compete destruir (e, não por acaso, os res­
pectivos sujeitos gramaticais, “vento” e “água”, implicam ima­
gens de movimento). Se o silêncio “natural” fosse o mais produ­
tivo, seu melhor exemplo, no endosso da poética romântica, seria
a morte. Mas João Cabral, negando-se à transcendência, não esta­
belece Com a morte qualquer dialética superadora da insuficiência
do que vive. Em vez da extinção da vida, busca a suspensão da
existência, quando, retirado do circuito temporal, um olhar mais
agudo e distanciado se faz possível. Não se pense, no entanto, que
estabilidade se confunde com estaticidade; ou que, ao desvalori­
zar a contingência, o poeta se queira abrigar sob a tutela do eter­
no. A função do estável, basicamente, é a de permitir uma lição
mais precisa:

43
a pedra dá à frase seu grão mais vivo :
obstrui a leitura fluviante, flutuai,
açula a atenção, isca-a com o risco.
(“Catar feijão”, A educação pela pedra, p. 22. Grifamos)

o imóvel mais cabal


mas que ao estar imóvel
está aceso e atual.
(“História natural”, Quadema, p. 144. Grifamos)

Na poesia cabralina, o reino mineral se ofertará como forma


privilegiada para que dela se extraia um conhecimento menos
emotivo. O mineral não foge à cidade e ao tempo dos homens.
Mas, em geral, a tradição lírica não o elegia como matéria indica­
da a apropriações subjetivo-especulares. Com efeito, o que sus­
tenta uma boa parte da tradição lírica, senão um discurso sobre o
que pode morrer?
“Pequena ode mineral” irá contrapor adesão/recusa à tem-
poralidade. Em sua primeira parte, a adesão (ainda que involuntá­
ria, sob a ordem da contingência) recebe do poeta a mesma volta­
gem antiempática reservada aos fenômenos considerados irrepri­
míveis:

Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.

Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,

informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.

Tua alma foge


como cabelos,
unhas, humores,
palavras ditas

44
que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.

Tua alma escapa


como este corpo
solto no tempo
que nada impede, (p. 360)

A desordem na alma (ou o “diabo no corpo”?) é elemento


que simboliza a obstrução da ordem no texto. “Corpo” também é
posto em jogo, mas não no mesmo nível de “alma”: nela se con­
centra, a partir da estrofe 2, o pólo da dispersão. Se o corpo, ao
menos, ostenta sua materialidade (“transparece”), a alma remete
para um horizonte incontrolável e inform e. As duas estrofes
seguintes confirmam o caráter difuso e desordenado da alma,
identificada a “vaga fumaça” e “informe nuvem”, inviabilizando
qualquer esforço (“e cuja face/ nem reconheces”). Os verbos “fu­
gir”, “dispersar”, “perder”, marcados negativamente, integram o
campo semântico de derrota ou de ausência de combate frente à
desordem — o que indicia uma opção pelo silêncio, verificável na
segunda parte do texto. Observe-se ainda que a reintrodução do
corpo (estrofe 4) é efetuada com elementos que dele podem ser
extraídos (cabelos, unhas, humores), constituindo-se, pois, num
excesso, numa expansão de formas. O movimento sem controle
encontra na morte sua estação final (“e impregnam a terra/ com
sua morte”), assim como a poesia sem controle leva à morte do
poema, ou ao silêncio do discurso que se nega a duplicar o
Irrefreável (“como este corpo/ solto no tempo/ que nada impe­
de”). O corpo se corrói no tempo, a alma se dilui no espaço: é
nuvem, e é fumaça.
As seis estrofes finais arquitetam a resposta ao “curso natu­
ral” da existência e a seu determinismo subjacente. Na proposta
de uma suspensão atemporal, a palavra cabralina se instala:

Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.

45
Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.

Nem mesmo cresce


pois permanece
fora do tempo
que não a mede,

pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.

Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro,

de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem. (p. 361)

A primeira estrofe é uma incitação à ordem, formalizada


pelo Imperativo, e de que a pedra se faz imagem, enquanto a par­
te 1 do poema, sob a figura do corpo humano, se teceu na consta­
tação da desordem. A ordem não é atributo do que dura, mas do
que perdura: o ideal de persistência, identificado ao elemento
não-humano, corresponde ao que Merquior denomina a “minera­
lização da existência”2. A estrofe 2 opõe a presença mineral à
fuga e à fugacidade da alma (parte 1). Retoma-se aqui a direção já
apontada pelas estrofes 3 e 4 de “A Paul Valéry”. A terceira estro­
fe da “Pequena ode mineral” atesta o desvencilhamento da crono­
logia “natural” ; na quarta, cabe à solidez substituir a inconsistên­
cia aérea. E à noção de altitude sobrepõe-se a de profundidade
(“que sempre ao fundo/ das coisas desce”); uma ótica fundada,
mineralmente, na escavação do real.

2 Merquior, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972,
p. 88.

46
As duas últimas quadras indicam um sutil avanço em relação
à proposta de “A Paul Valéry” . Nesse poema, constatamos um
tipo de silêncio que não provinha de uma elaboração sistêmica,
confundindo-se antes com o próprio silêncio “natural” (“e o ven­
to dispersa/ os sonhos, e apaga/ a inaudível palavra”). Agora, ele
se produz por si mesmo, e esse deslocamento patenteia a positivi-
dade da “vontade negativa”3 de atingi-lo. É um silêncio que “imó­
vel fala” ; não uma intransitiva mudez do objeto que é silenciado
(pelo vento ou pela morte, por exemplo), mas uma vigorosa e ati­
va afirmação de não-dizer de que o objeto é modelo, e o poeta,
ressonância. Na última estrofe (“voz de silêncio,/ mais do que a
ausência/ que as vozes ferem”) torna-se claro que João Cabral se
inclina não para a simples ausência de um real silenciado, mas
para a presença, “de pura espécie”, de um real que silencia.
O olhar do poeta, no entanto, não se concentrará, ao longo
de O engenheiro, na imobilidade do objeto. É certo que o ideal de
petrificação atinge áreas inusitadas, como demonstra o poema
“Os primos”,

Entre nossas pedras


(uma ave que voa, um raio de sol)
um amor mineral,
a simpatia, a amizade
de pedra a pedra
entre nossos mármores
recíprocos, (p. 345)

mas o objeto móvel também é fonte de surpresas, que se traduzem


não pela transcendência, e sim pela evidência mesma do objeto.
Ao não desprezá-lo em sua perceptível materialidade, o olhar se
deleita com o que a í está, dessacralizado de toda nuvem:

A física do susto percebida


entre os gestos diários
(“A lição de poesia”, p. 355. Grifamos)

3 Nunes, Benedito. Op. c it., p. 56.

47
Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é su rpresa
com o uma f lo r m esm o num canteiro.
(“A Carlos Drummond de Andrade”, p. 355. Grifamos)

Em “O fantasma na praia”, o espanto se dá pela submissão


do espectro às convenções do cotidiano:

camisa branca,
corpo diáfano,
fu n çõ es tran qüilas
no banho de sol.

voz clara e evidente


de enigm a vencido',
a conversa tranqüila
uma fonte de sustos, (p. 349-350. Grifamos)

E, finalmente, em “A Vicente do Rego Monteiro”, o efeito


surpreendente é atribuído a um trabalho de construção,

Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.

— É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã. (p. 357)

o que afasta o poeta de um acrítico deslumbramento frente ao


real: o susto provém de um modo novo (e diurno) de organizá-lo,
e não de uma transcendência que o eter(n)ize. Todavia, o objeto
criado não se confunde com a realidade que o incitou. Nossa lei­
tura de “Pequena ode mineral” mostrou o quanto podem ser con­
flitantes esses dois níveis; o poeta, ao invés de aderir à dinâmica
do natural, optou por suspendê-la. O poema, “crescendo de suas
forças simples” (“O engenheiro”, p. 344), se arma no terreno da
linguagem, sem forçosam ente endossar o “produto natural” .
Leiam-se os tercetos de “A árvore”,

48
O frio olhar salta pela janela
para o jardim onde anunciam
a árvore.

A árvore da vida? A árvore


da lua? A maternidade simples
da fruta?

A árvore que vi numa cidade?


O melhor homem? O homem além
e sem palavras?

Ou a árvore que nos homens


adivinho? Em suas veias,
seus cabelos ao vento? (p. 353)

em que uma série de metáforas alternativas se propõe a conotar o


signo-árvore. Dessa maneira, cria-se uma dissonância entre o
conceito de um “produto da natureza” e suas metáforas, o que
retira da analogia (sucessivamente refeita) seu caráter de necessi­
dade: o poeta, através de contínuas interrogações, vai questionan­
do a adequação objeto/ linguagem. As quadras do poema reinse-
rem um espaço construído:

(O frio olhar
volta pela janela
ao cimento frio
do quarto e da alma:

calma perfeita,
pura inércia,
onde jamais penetrará
o rumor

da oculta fábrica
que cria as coisas,
do oculto impulso
que explode em coisas, (p. 353)

A segunda parte do poema nos mostra que o poeta ainda não


se desvencilhou do apego às imagens de expansão de que o vege­
tal é portador. Com efeito, observa-se no “cimento frio/ do quarto

49
e da alma” uma desvalorização existencial frente ao “oculto im­
pulso/ que explode em coisas”, e que se situa, no dístico final, “na
frágil folha/ daquele jardim” (p. 353). Estabelece-se uma dicoto-
mia entre o inanimado artificial (cimento) e o animado natural
(árvore), que será, em O engenheiro, resolvida pela metáfora da
pedra, que realiza a convergência entre o inanimado de um e o
natural de outro.
Depura-se o poeta para fazer do poema a “máquina de co­
mover” de que fala a epígrafe da obra (Le Corbusier). João Cabral
experimentará, no livro seguinte, mover-se com a mineralização
do espaço poético, num nível conceituai germinado em vários
textos de O engenheiro, e que conferirá ao poema, antes de tudo,
o estatuto de máquina de como/ver o real.

50
IV — A fábula, o poema, o poeta

Formam o volume Psicologia da composicão (1947) três


longos poemas: “Fábula de Anfion”, a própria “Psicologia da
composição” e “Antiode”.

1) A estratégia do silêncio

Divide-se a “Fábula de Anfion” em três segmentos. O pri­


meiro deles, “O deserto”, é composto por dezenove estrofes de
três e quatro versos. Cada segmento, por sua vez, é dividido em
unidades menores, cujos títulos resumem o movimento narrativo
do texto. O segmento central, “O acaso”, compõe-se de nove
estrofes; o derradeiro, “Anfion em Tebas”, de dezoito, exclusiva­
mente sob a forma de tercetos. A posição central do acaso não é
gratuita; será ele, como veremos adiante, o foco de desordem no
jiniverso anfiônico. Os versos iniciais do poema introduzem ,
simultaneamente, o personagem e o meio físico que irá defini-lo:

■No deserto, entre a


paisagem de seu
vocabulário, Anfion. (p. 321)

Observe-se a ambigüidade do possessivo, que tanto pode


referir-se a “deserto” quanto a “Anfion”. Essa bivalência grama­
tical já indicia a analogia entre o personagem e o espaço em que
está, não diríamos apenas inscrito, mas escrito: trata-se de uma
paisagem também lexical.

51
Desde o início, o itinerário é pontilhado por imagens de sub­
tração:

ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto

que fogem as nuvens (p. 321. Grifamos)

Em seu percurso de depuração, o poeta, via Anfion, vincula


a poesia ao sinal de menos; aguça o combate contra o excesso,
“informe nuvem/ que de ti cresce”, como dissera na “Pequena ode
mineral”. Canaliza a representação do real para formas abstratas,
o que nos reenvia à geometrização da experiência:

...Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando (p: 321)

A segunda unidade do primeiro segmento, desviando-se do


personagem, se concentra na descrição do deserto:

(Ali, é um tempo claro


como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite


como ervas
entre pedras.
Ali, é uma terra branca
e ávida
como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza


como a um livro
na estante), (p. 322)

As duas primeiras estrofes demonstram o duplo ataque do


poeta à noção de tempo: em sua dimensão cronológica, como
símbolo do perecível (com a conseqüente opção pelo mineral
enquanto resistência a esse fluxo); e também na dimensão espa-

52
ciai, na dicotomia entre o tempo escuro/coberto da noite e a clari­
dade do dia. Unindo os dois pólos, João Cabral identifica o orgâ­
nico (vegetal) ao noturno, e o inorgânico ao diurno: “fonte” e
“pedra” são os elementos refratários à temporalidade, e por isso
coabitam, cada um a seu modo (um pela transparência, outro pela
opacidade), um “tempo claro”, suspenso como “na fábula” . O
vegetal, ao contrário, é visto como resquício de uma herança
noturna (“Ali, nada sobrou da noite/ como ervas”), e, assim, deve
ser eliminado em busca de uma “terra branca”, sintagma que
reforça o vínculo entre o inorgânico e o diurno. A quarta estrofe,
dirigindo-se ao leitor, opera um corte antiilusionista: passa do
espaço mítico da fábula ao espaço gráfico da cultura (“um livro/
na estante”).
Depois de descrita a paisagem, modelo depurado que pro­
põe a Anfion a lição do vazio, surge, na terceira unidade do texto,
o instrumento que deverá possibilitar a transformação do deserto,
de espaço empírico já dado em proposta formal a ser imitada: a
flauta.

Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca (p. 322)

Num silêncio atingido pela volição, a flauta se descaracteri­


za de suas funções órficas. João Cabral, à maneira do que fizera
com o deserto, vai defini-la por metáforas de subtração:

sem a terra doce


de água e de sono;
sem os grãos do amor
trazidos na brisa (p. 322. Grifamos)

Essa solidariedade retórica reforça, no plano da forma, o


vínculo de sentido entre os dois elementos. A relação que une
1) Anfion a 2) flauta é homóloga à que existe entre 3) deserto e
4) secura — os termos pares da proposição desempenham o papel
de instrumentos privilegiados dos termos ímpares, a tal ponto que
não seria impertinente vê-los como metonímias reduzidas ao tra­
ço básico dos conjuntos mais am plos 1 e 3. A flauta seca é

53
Anfion, menos o seu canto possível; não é à toa que só após a
secura da flauta Anfion estará “lavado/ de todo canto” (p. 324);
uma vez mais, o criador imita a criatura... A secura é o deserto,
menos as hipóteses “de água e sono”. Anfion e a flauta se aproxi­
mam, ainda, pela comum negação do espaço vegetal. Ele busca as
pedras “como frutos esquecidos/ que não quiseram/ amadurecer
(p. 321, grifamos). A flauta se mostra “sem a terra doce/ de água
e de sono” (esta, em nítida oposição à “terra branca” da unidade
anterior). A estrofe seguinte

sua flauta seca:


como alguma pedra
ainda branda, ou lábios
ao vento marinho, (p. 322)

irá acentuar ainda mais o elo entre o criador e seu instrumento, ao


utilizar como metáfora da flauta (“como alguma pedra”) um ele­
mento migrado do espaço que circunda o flautista (“Anfion, entre
pedras”, p. 321).
A próxima unidade radicaliza a aprendizagem da depura­
ção, cuja topografia imaginária se desenha sob o contorno da
secura desértica:

(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.

Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a

o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia), (p. 322-323)

■'X A poética negativa se radicaliza porque, ao lado do elogio


do vazio — essa fome do nada, ou o apetite do menos, de “A Paul

54
Valéry” — se intensifica a técnica da subtração. O ciclo da expan­
são/reprodução é minado em todas as frentes, seja a humana (“sua
flauta seca:/ como/ ..../ lábios”, cf. unidade anterior), seja a ani­
mal (“não choca os velhos/ ovos do m istério”), ou a vegetal
(“Mesmo os esguios,/ discretos trigais/ não resistem”),
As estrofes finais do segmento ratificam as lições de silên­
cio que Anfion obteve da flauta seca. A mudez do personagem
“será de mudo cimento” (p. 323, grifamos); e a imagem põe em
destaque o aspecto fabricado desse tipo de silêncio, que, como
vimos, deve ser elaborado e atingido, e não dado aprioristicamen-
te. Outras imagens de construção encerram a parte 1: “exato,
passará pelo relógio! como de uma faca o fio” (p. 323, grifamos).
O segundo segmento compreende três unidades: a) encontro
com o acaso, b) ataque do acaso, c) conseqüências do ataque. A
primeira, antes da irrupção do acaso nos dois versos finais, conti­
nua a girar em torno do ciclo da esterilidade. Se a carne é símbo­
lo da expansão, o esqueleto lhe contrapõe sua dura resistência:

No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion. (p. 323)

Anfion, isento da tentação vegetal, é cercado unicamente


pela imobilidade, pela inalterabilidade do universo mineral, e
todas as imagens realçarão sua ascese em termos de brancura e
luminosidade:

no deserto, mais, no
castiço linho
do meio-dia, Anfion

agora que lavado


de todo canto (p. 324)

A riqueza calada do mundo inorgânico já havia sido propos­


ta na “Pequena ode mineral”: “Procura a ordem/ desse silêncio/
que imóvel fala.” E é em estado de silêncio, “desperto e ativo/
como uma lâmina” (p. 324), que o personagem se depara com o
acaso; esse encontro reintroduz o movimento e o ciclo orgânico:

55
Ó acaso,raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede (p. 324)

O acaso colide com o “exercício/ puro do nada” (p. 325) de


Anfion; e, sintomaticamente, surge sob formas do mundo animal,
o que o afasta do claro controle da consciência. O inseto (“que
não sei caçar”, de “A bailarina”) rompe o silêncio conquistado. E
a materialização efetiva do acaso endossa as metáforas animais
que previamente o conotaram:

<5acaso! O acaso
súbito condensou:
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa (p. 324. Grifamos)

A mordida consuma a agressão, prenunciada pela “vespa


oculta”. E todos os signos do vazio (a “mão escassa”), laboriosa­
mente arquitetados por Anfion em torno da secura da flauta, são
atacados pela exuberância do acaso, que os substitui pelos signos
da expansão:

o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta (p. 324. Grifamos)

Ressuscitada sem a intervenção consciente de seu dono, a


flauta soa; e Tebas se faz. Na penúltima estrofe do segmento,

Diz a mitologia
(arejadas salas, de

56
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver)
diz, do aéreo
parto daquele milagre (p. 325)

explicitemos o sentido, aparentemente paradoxal, dos “nítidos


enigmas” mitológicos: eles podem apresentar uma face visível;
mas, mesmo diante de uma consciência meridiana, não se deixam
domar, pois sua “noite guardada/ à luz e ao ar livre/ persiste, sem
se dissolver”, à maneira dos “mariscos/ ou simples nozes”, que só
permitem que os adivinhemos sob a crosta opaca. O enigma-aca-
so cumpre, ainda, um percurso etéreo-ascensional (“aéreo/ parto
daquele milagre”), repudiado por João Cabral, como vimos, em
troca de um projeto de escavação. E o tempo-símbolo-do-impre-
visível brota do tempo-em-suspenso onde “nada sobrou da noite”,
e que Anfion, pelo silêncio, procurara imitar.
As três unidades do segmento final mostrarão, respectiva­
mente: o confronto entre a realidade concretizada e a realidade
projetada; o mesmo confronto expresso na fala do personagem; e,
também na voz de Anfion, reflexões sobre a imponderabilidade
do ato criador.
A primeira unidade (simetricamente às unidades iniciais dos
dois outros segmentos) comporta uma referência metalingüística.
Mas, enquanto anteriormente tal referência (a palavra “vocabulá­
rio”) não trazia marcas negativas, existe, agora, o adjetivo “injus­
ta” a sancionar eticamente o substantivo “sintaxe”:

Entre Tebas, entre


a injusta sintaxe
que fundou, Anfion (p. 325)

A sintaxe é injusta porque a relação entre sujeito e objeto


criado não corresponde ao trajeto (de luz e lucidez) de Anfion.
Reinstala-se o ciclo da proliferação:

57
entre Tebas,
entre mãos frutíferas, entre
a copada folhagem

de gestos (p. 325)

Escapando ao domínio do sujeito criador, o objeto pretende,


por sua vez, dominá-lo. Da mesma forma que o deserto transmiti­
ra à percepção de Anfion seus signos de claridade e secura, Tebas,
a nascida de um excesso, começa a veicular ao flautista os traços
dessa exuberância (mãos frutíferas; folhagem de gestos). O per­
sonagem se situa, então, como o palco de um combate entre a pai­
sagem externa — plena — e o rigor de sua “paisagem” interna —
esvaziada:

....no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas

quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies

da alma (p. 325-326)

A segunda unidade será a afirmação de um fracasso — a


irreversibilidade “frutífera” de Tebas, que Anfion, na unidade
anterior, ainda tentara “adivinhar/pelo avesso”, à procura de uma
desertificação que poderia “recuperar” a própria obra. Mas o fra­
casso deve ser relativizado. Leiamos:

“Esta cidade, Tebas,


não a quisera assim
de tijolos plantada,

que a terra e a flora


procuram reaver
a sua origem menor (p. 326)

Pela prim eira vez, Anfion fala — e é uma fala do não.


Duplamente: a) é rejeição do espaço explodido pela flauta; b) é

58
diálogo entre o não e a pedra (destinado aos muros da cidade, que
também não ouvem).
Se a última estrofe desta unidade parece admitir o compo­
nente onírico (“Onde a cidade/ volante, a nuvem/ civil sonhada?”,
p. 326), assinale-se que o sonho do flautista, na esteira de “O
engenheiro”, se submete à consciência diurna do criador, ou seja,
se reveste das mesmas formas claras que a vigília coordena. Em
suma: um sonho projetado; e o léxico de construção (outra analo­
gia com “O engenheiro”) confirma o fato:

Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si

como qualquer laranja;


leve laje sonhei
largada no espaço, (p. 326. Grifamos)

Na unidade final do poema, Anfion, definindo a irrupção do


acaso, intensifica a imagem que o caracterizara no segmento 2
(“Ó acaso/.... / força/ de cavalo”):

“Uma flauta: como


dominá-la, cavalo
solto, que é louco? (p. 327. Grifamos)

A resistência ao ciclo da expansão vegetal, já expressa na


unidade anterior (terra e flora = origem menor), se identifica com
a não-submissão à flauta renascida. Se o vital é imprevisível, é,
por isso mesmo, a melhor imagem da materialização possível do
acaso (lembremo-nos de que a própria esfinge surgira sob a forma
viva de uma cachorra):

Como antecipar
a árvore de som
de tal sementel

daquele grão de vento


recebido no açude
a flauta cana ainda? (p. 327. Grifamos)

59
O gesto final de Anfion

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.” (p. 327)

reitera a estratégia do silêncio por que o personagem decidiu


optar. Não podendo escapar à evidência da coisa criada (Tebas),
descarta-se de seu modo de produzi-la. O impasse é que, perdida
a flauta, renuncia-se não só a Tebas, mas também à reconquista
do deserto que a precedeu.

2) A estratégia do texto

Acreditamos que “Psicologia da composição”, mantendo-se


fiel a várias “lições” da “Fábula de Anfion”, consegue, todavia,
delinear a superação do conflito a que o poema anterior levara.
Atentemos para sua parte I:

Saio de meu poema


como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,


que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha


dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa


vazia, que despi. (p. 327-328)

A primeira declaração é a de um fato já cumprido', e o efei­


to asséptico provém da efetivação mesma da obra. Altera-se o cir­
cuito de Anfion, na medida em que não se estampa um conflito
entre o movimento que constituiu o poema (“o corpo do gesto/
extinto”), a composição em si e o seu efeito (aqui, não doloroso)

60
sobre o criador (“Saio de meu poema/ como quem lava as mãos”).
O circuito psíquico que conduz ao texto é regido pelo “sol da
atenção” ; a natureza mineral da palavra (escrita) encontra em
“conchas” uma primeira formalização; e a palavra-pássaro desa-
brochada pode ser lida como resposta ao “pássaro que não sei
caçar” de “A bailarina”.
As estrofes 3 e 4 jogam com o questionamento de seu pró­
prio tecido imagístico, pela anteposição do vocábulo “talvez”. E
o papel da lembrança — fulcro de um tipo de poesia sentimental-
evocativa — é vigorosamente posto em xeque. Com efeito, a úni­
ca possibilidade evocatória da palavra cabralina se dirige para a
sólida materialidade do gesto que a lançou no texto: um passado
operacional, que desemboca diretamente na construção do poe­
ma. Por isso, para designar a funcionalidade desse passado (dis­
tante da mitificação do sentimentalismo autobiográfico), a ima­
gem escolhida é a da prosaica “camisa vazia” , mesmo assim já
despida pelo poeta.
A parte I dizia do texto executado; a parte II situa o espaço
da folha branca, apta a acolher (ou a repelir) o verso:

Esta folha branca


me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso, (p. 328)

A proscrição do sonho (derrotando os “monstros” que habi­


tavam O engenheiro) acarreta a erradicação de toda uma simbolo-
gia tributária do movimento e da obscuridade:

Como não há noite


cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;

como não há fuga


nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo. (p. 328)

Para estancar o tempo, espacializá-lo na folha branca; cir­


cunscrito a esse perímetro, “cessa toda fuga”. Assim, na segunda

61
estrofe, a praia, essencializada em sua condição mineral, será
outra metáfora do papel — matéria límpida e inorgânica onde o
poeta e seu verso se reconhecem a salvo do fluxo temporal:

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse. (p. 328)

A parte III focaliza outro momento do processo criador:


nem a folha branca (II), nem a obra concluída (I), mas o salto de
um a outro, e as metamorfoses que podem intervir no intervalo
entre ambos:

Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.

(Teme, por isso


a jovem manhã
sobre as flores
da véspera), (p. 328-329)

Encontramo-nos aqui frente ao dado fundamental que pode


indicar a superação da intransigência anfiônica. Embora temida, a
ação do acaso é equacionada e resolvida na própria produção tex­
tual, que, da mesma forma que transformara o inefável “pássaro”
em dura “concha”, se abre para a absorção do risco. O acaso, uma
vez incorporado, passará pelo mesmo crivo de depuração a que
todos os elementos (e não somente os oníricos) se devem subme­
ter. A exemplo do sucedido com a temporalidade e com a evoca­
ção de cunho biográfico, filtram-se vários fatores ético-subjetivos:

Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas

62
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho. (p. 329. Grifamos)

A parte IV, voltando a utilizar as im agens eqüestres da


“Fábula de Anfion”, apresenta o embate das forças inconscientes
contra o projeto de lúcida organização do poema (este, de novo
mineralizado em “cimento”):

O poema, com seus cavalos,


quer explodir
teu tempo claro; romper
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco, (p. 329)

Poder-se-ia apontar uma contradição entre o que acabamos


de afirmar (sobre a incorporação do acaso) e a referência ao ata­
que indesejável dos cavalos, capazes de destruir o “cimento” do
texto. Mas, como se verifica na estrofe subseqüente, o acaso rejei­
tado é o que se materializa/ora de qualquer controle; é o “mons­
tro” que burla a atenção do poeta:

(O descuido ficara aberto


de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça), (p. 329-330. Grifamos)

João Cabral investe numa via de lúcida abertura, cuja execu­


ção é demonstrada na parte V. Nela, o inseto, marcado negativa­
mente na “Fábula de Anfion”, passa a sê-lo positivamente (vespa
---- *- abelha); em vez de ocultar-se nas dobras da “distração”, é
aprisionado pelo poeta como símbolo da produtividade contida:

Vivo com certas palavras,


abelhas domésticas.
Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor) (p. 330)

O mesmo ideal de controle da produção já havia sido pro­


posto em “A lição de poesia” (O engenheiro):

Vinte palavras sempre as mesmas


de que [o poeta] conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar. (p. 355)

A parte VI se estabelecerá na oposição entre o fortuito e o


previsto (que, na verdade, é o pré-visto: horizonte a atingir). Duas
de suas quatro quadras se ocupam do fortuito: são as estrofes do
não. Fala-se de “forma encontrada”, “frouxos areais”, “lance san­
to ou raro”, “lebres de vidro/ do invisível” (p. 330). A terceira
quadra, metaforizando a forma atingida como “ponta de novelo”,
destaca o caráter metódico, contínuo, do ato criador, resposta ao
“lance santo ou raro” . Na última estrofe, “aranha”, imagem de
“atenção”, corrobora o ideal de controle, ao mesmo tempo em que
sublinha um risco:

aranha; como o mais extremo


desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes, (p. 331)

Mãos enormes: a intromissão dos excessos do sujeito; a


imprevisibilidade da matéria viva. A parte VII, então, irá subme­
ter os reinos vegetal, animal e humano à tutela niveladora do
mineral enquanto palavra escrita:

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,

64
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras, (p. 331)

Altera-se a concepção vitalista estam pada em alguns


momentos de O engenheiro (“O poema”):

... o s e r v i v o
q u e é u m v e r s o ,
u m o r g a n i s m o

c o m s a n g u e e s o p r o . (p . 3 5 2 )

O dístico inicial da parte VIII — “Cultivar o deserto/ como


um pomar às avessas” (p. 331) — é a inversão da sexta estrofe de
“Anfion em Tebas”: nela, o flautista pretendia cultivar a exube­
rância da cidade como o avesso de um deserto. Mas em “Psico­
logia da composição” não se trata de cumprir um mero trajeto de
retorno, que acabasse por integrar pacificam ente o elemento
vegetal. Sua cautelosa reinserção é circunscrita à área, tão domés­
tica quanto a das abelhas, do “pomar” . O vegetal, imagem do
ciclo da expansão, tem guarida dentro dos mesmos limites com
que se aceitou o acaso: contido pela vigília. Isso se torna ainda
mais patente com a leitura das duas estrofes seguintes:

( A á r v o r e d e s t i l a
a te r r a , g o t a a g o t a ;
a te r r a c o m p l e t a
c a i, f r u to !

Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras), (p. 331-332)

A série vegetal só é passível de assimilação pelo “outro


pomar”, o da consciência criadora, na medida em que lhe imite os
mecanismos de atenção: no homem, desenrolando-se lenta para a
“ponta do novelo” ; na árvore, destilando “gota a gota” a terra. O
final do texto explora, mais uma vez, o tema do esvaziamento
atingido pela depuração:

65
então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;
onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio. (p. 332)

A depuração do vegetal só se form aliza se admitir, pela


escrita, sua passagem a uma condição também mineral: não deve
vigorar como algo incontrolável, que reluta em se submeter à
atenção. Aí se detivera Anfion, por não ter conseguido minerali-
zar o discurso “frutífero” de Tebas. Mas um segundo tipo de esva­
ziamento, da série mineral (cf. última estrofe), deixa a form a de
seu vazio incrustar-se na página-deserto: afirma no texto seu exer­
cício “puro do nada”. Ultrapassando o impasse de Anfion, o silên­
cio no poema não será o silêncio do poema.

3) A estratégia do impuro

O subtítulo de “Antiode” — “contra a poesia dita profunda”


— estabelece com nitidez o programa que o poeta planeja levar a
cabo. Em suas cinco partes e trinta e duas quadras, procede-se a
uma gradativa desmontagem dos conceitos de “sublime” e “trans­
cendental” a que se poderia associar o fenômeno lírico. Mas, à
diferença do que ocorria em “Psicologia da composição”, o foco
discursivo vai centrar-se no próprio operador de linguagem, e não
na lição de forma que o texto já consumado ensina ao criador. É
nesse sentido que João Alexandre Barbosa fala de uma “psicolo­
gia do poeta” 1.
É contra um certo tipo de profundidade que o eu-lírico se
insurge: a profundidade limitada pelo “bom gosto”, pelo “pudor
do verso”, pela prevalência do ornamental.
Um fato marca o novo texto (a princípio, desvio da implacá­
vel lógica dos dois poemas anteriores): o recurso a um campo

1 Barbosa, João Alexandre. Op. cit., p. 81.

66
imagístico orgânico para definir a poesia. Ora, a estratégia do
poeta será a de combater o “profundo” utilizando suas próprias
armas (dele, “profundo”), perfilhando o avesso de sua retórica —
para revelar, assim, o outro lado da “flor retórica” tradicional:

Poesia, te escrevia
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações. (p. 332-333)

Essas estrofes, da parte A, indicam uma receptividade às


impurezas do texto. Ao invés de a atenção, depurada, dirigir-se a
espaços que imitem a ascese do processo criador (o deserto, por
exemplo), ela passa a privilegiar uma área que se choca, por sua
escatologia, com o olhar que a cristaliza. A intromissão do impu­
ro é, assim, mais um lance da abertura no sentido de uma apro­
priação não-excludente do real. Não se confunde com a presença
dos “m onstros” : esses eram vistos com o frutos do im pulso
inconsciente, enquanto agora a impureza é contingência textual,
originando-se não do sonho, mas da letra. Nesse nível, o poema é
novamente “vitalizado”. Aceito o risco do perecível, aceita-se a
imagem da flor (parte B):

Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda), (p. 334)

Ao desdobrar “como uma corda” a flor-poema, João Cabral


efetua o que Benedito Nunes denomina a “desagregação da metá­
fora”2. Preferimos falar de sua decomposição: ao mesmo tempo

2 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 56.

67
em que, formalmente, a flor se decompõe em novos símiles, ela
aponta, em seu trajeto semântico (enquanto objeto circunscrito ao
ciclo vital), para a decomposição de si mesma:

... as duas bocas


da imagem
da flor: a boca
que come o defunto

e a boca que orna


o defunto com outro
defunto, com flores,
— cristais de vômito, (p. 334)

A parte C critica a própria condição de poeta, ou melhor, do


poeta que se submete ao “vício noturno” da poesia:

O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor. (p. 335)

Operando com metáforas orgânicas (em seu aspecto de


putrefação), João Cabral retoma alguns temas já explorados ante­
riormente; dentre eles, o da “facilidade” lírica dos fantasm as
armazenados na memória:

Venha, mais fácil e


portátil na memória,
o poema, flor no
colete da lembrança, (p. 335)

A impureza, registrada positivamente nas partes A e B, sur­


ge agora associada a uma prática poética que o autor rejeita:

Fome de vida? Fome


de morte, freqüentação
da morte, como de
algum cinema, (p. 335)

Todavia, não se pode falar em contradição. Vindo ao encon­


tro do que antes afirmáramos, constata-se uma rejeição do ciclo

68
vital (e de suas impurezas) apenas como fator que leva ao poema,
com origem na mente “vitalista” do criador:

Como não invocar,


sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horticultura?... .
... e a morna
espera de que se
apodreça em poema (p. 335)

O endosso de João Cabral, como dissemos, se dirige à impu­


reza enquanto contingência textual (só mais tarde ela será hauri-
da, também, no espaço referencial). Assim, não deve o poeta inje­
tar “na carne do dia/ a infecção da noite” (p. 334), da sua noite,
acrescentamos. A flor-poesia defunta é a que simplesmente sal­
tasse do sonho para o papel. Para com bater esse “açúcar do
podre” (“Psicologia da composição”, p. 330), a flor-poema vivo
deve executar (parte D)

o salto fora do sono


quando seu tecido

se rompe. (p. 336)

O mais freqüente meio de incorporação do vegetal é (con­


forme já ressaltamos) sua metamorfose mineral em signo escrito.
A flor, ao mineralizar-se no poema, logo é “posta a funcionar;/
como uma máquina,/ uma jarra de flores” (p. 336). E a analogia
desmistificadora máquina = jarra de flores põe em relevo o cará­
ter não-hierárquico do real em sua transcrição lírica.
A derradeira parte do texto, no entanto, revela que, apesar
da incorporação da linguagem impura,

Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.

... Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais (p. 336-337)

69
persistem ainda outras áreas a serem exploradas. Fala-se de uma
ausência

Sei que outras


palavras és, palavras
impossíveis de poema.
(p. 336-337. Grifamos)

que será preenchida, no livro posterior, pela realidade “impura”


do rio Capibaribe. A impureza vai transitar da categoria de “figu­
ra de linguagem” para o espaço da referencialidade primeira do
texto.

70
III — A máquina do real

Mais do que qualquer obra anterior, é O cão sem plumas


(1950) que exprime com maior consistência as relações entre dis­
curso poético e espaço referencial. Tais relações, diversamente da
explicitação metalingüística do livro precedente, se estabelecerão
pelo próprio modo de o poeta trabalhar com o dado referencial.
Por outras palavras: o curso do rio Capibaribe (“o cão sem plu­
mas”) será representado por um discurso que buscará na forma do
objeto-rio o modelo de sua enunciação. Não se trata, como em
“Psicologia da composição”, de articular um movimento em que
o ponto de partida já surja “pronto” (“Saio de meu poema/ como
quem lava as mãos”), e em que o criador, na fresta entre lingua­
gem e objeto, transfira para o real a didática da mineralização
posta em relevo pela folha escrita. Agora, o estímulo à produção
se origina no espetáculo sensível da paisagem nordestina.
Para Haroldo de Campos, João Cabral “passa da desaliena-
ção da linguagem ao problema da participação poética” 1. Adian­
temos desde logo que a participação será equacionada na tensão
constitutiva do texto — faz-se no e enquanto poema — e não por
meio de “mensagens” que reduziriam a forma a mero suporte de
conteúdos prévios, ainda que bem-intencionados.
As duas partes iniciais do poema têm o mesmo título: “Pai­
sagem do Capibaribe” (I e II). A primeira delas se abre com ima­
gens que, como observou Benedito Nunes, destacam a relação de
trespassamento de seus termos2:

1 Campos, Haroldo de. Metalinguagem. Petrópolis, Vozes: 1967, p. 71.


2 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 66.

71
§ A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada, (p. 305)

A cidade se integra nas séries inorgânica (rua) e orgânica


(fruta). Inversamente, o rio se equipara de início ao orgânico (cão),
e em seguida ao inorgânico (espada). Se em ambos se encontram o
produto natural (fruta, cão) e o fabricado (rua, espada), saliente-se
a fixação das imagens da cidade no pólo inanimado, enquanto o
rio tem dupla natureza: inanimada (espada) e animada (cão).
Das três propostas do jogo relacionai, o poeta extrai uma
comparação (rio = cachorro) para, com ela, caracterizar o movi­
mento do Capibaribe:

§ O rio ora lembrava


a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão. (p. 305)

A apreensão do rio passa pela exclusão de seu oposto.


Assim, são rejeitados os valores que carreiam noções de clareza,
cristalinidade e leveza:

§ Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água. (p. 305)

O não-saber da terceira estrofe se opõe ao saber de uma rea­


lidade impura (“Sabia dos caranguejos/ de lodo e ferrugem ”,

72
p. 305). Rompendo a contigüidade previsível (água — peixes), é
nos elementos vegetal e humano que o rio encontra cumplicidade:

§ Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros, (p. 306)

Começa a delinear-se um mecanismo de conversibilidade


imagística. O mesmo signo — “negro” — transita do vegetal ao
humano, indicando a interpenetrabilidade de uma paisagem em
que cada elemento partilha a mesma cota de carência. Também se
constata uma “recuperação” literal do que antes fora metáfora,
circunscrita então ao que se dá a ver, e não a um investimento
oriundo exclusivamente da subjetividade do poeta:

Como às vezes
p a ssa com os cães
parecia o rio estagnar-se. (p. 307. Grifamos)

O rio, nesta parte inicial, é alvejado pela impotência e infe-


cundidade. Assim, ele “cresce/ sem nunca explodir” (p. 306);
“jamais o vi ferver” (p. 306); “tinha algo, então,/ da estagnação de
um louco” (p. 307). Há uma contínua analogia entre o modelo de
representação do Capibaribe e o espaço de penúria social que o
cerca:

§ Ele tinha algo, então,

do hospital, da penitenciária, dos asilos,


da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando, (p. 307)

Os signos da abundância preservarão um distanciamento


que, ultrapassando o plano da referencialidade, se projeta no nível
imagístico. O avesso da miséria e a linguagem que o diz são tam­
bém solidários:

73
§ (É nelas [nas salas de jantar]
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa), (p. 307-308)

As “grandes famílias” da cidade, recusando o rio, são asso­


ciadas à fecundidade pejorativa dos “ovos gordos/ de sua prosa”.
Elas e o rio se articulam em áreas absolutamente inconciliáveis, e
a utilização dos parênteses é a marca tipográfica dessa diferença:
eles designam a suspensão momentânea do discurso fluvial. A
tática do “desvio”, aliás, é um dos mandamentos do “Catecismo
de Berceo”, de Museu de tudo:

Nem deixar que a palavra flua


como rio que cresce sempre:
canalizar a água sem fim
noutras paralelas, latente, (p. 33)

A “Paisagem do Capibaribe II”, em sua estrofe inicial, reto­


ma, de forma condensada, os símiles da abertura do poema:

§ Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Camo um cão
humilde e espesso, (p. 308)

Desaparecem “cidade” (diluída em “paisagem”), “rua” e


“fruta”. Mas operou-se um deslocamento importante na cadeia
sintagmática: “espada” passa a preceder “cão”. Ora, do mesmo
modo que a primazia de “cachorro” acionou um universo de hu­
mildade e estagnação (parte I), a espada será o símbolo que mar­
cará a “explosão” do rio na parte III. Todavia, apesar desse pri­
meiro índice de metamorfose na resignada natureza das águas, a
“espada de líquido espesso” cede o comando ao cão “humilde e

74
espesso”, e é essa imagem que irá imperar no desenvolvimento da
parte II. Basicamente, voltarão os temas propostos na parte I, o
que justifica o título comum a ambas. No entanto, trata-se de um
retorno seletivo, que intensifica o veio conceituai do texto:

§ Um cão sem plumas


é quando uma árvore sem voz.
E quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem), (p. 309)

A intensificação maior, porém, refere-se ao registro da espé­


cie humana que circunda o rio, e a ele se integra:

§ Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem. (p. 311)

Os excluídos do grande festim das “famílias espirituais”,


referidos em apenas duas estrofes da parte I, sê-lo-ão em dez das
treze que compõem a segunda parte. Um espaço de contigüidade
(“Entre a paisagem/ .... / de homens plantados na lama”, p. 308)
conduz a uma identificação metafórica (“aqueles homens/ são
como cães sem plumas”, p. 309). João Cabral irá atacar as duas
frentes, ora desenvolvendo a imagem “cão sem plumas” (como no
exemplo conceituai), ora se detendo na referencialidade do rio e
dos homens, para melhor ressaltar-lhes a íntima e doída convivên­
cia. Convivência construída a partir de contrários, pois à umidade
do rio se ajusta, ao invés de se contrapor, um (sub)mundo confina­
do ao campo semântico da secura. Os “homens sem plumas”
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu (p. 310)

O seco e o úmido se harmonizam na lama, cuja natureza


engloba ambas as categorias. Seca, transformada em barro, é ima­
gem dos homens que secam além “de sua caliça extrem a” .
Úmida, pode dissolver-se no curso do próprio rio. E, sendo rio, é
ainda símbolo humano, na medida em que a vida também é “dis­
solvida/ naquela água macia” (p. 312). Ocupa, assim, uma posi­
ção central, por ser o veículo literal e metafórico que atesta a tran-
sitividade entre o homem e o rio:

§ Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama. (p. 311)

A parte III (“Fábula do Capibaribe”) se detém essencial­


mente no combate entre o rio e o mar. Este, na “Fábula de An­
fion”, surgira como modelo a ser imitado: “Como traçar suas on­
das/ antecipadamente, como faz/ no tempo, o mar?” (p. 327).
Ascese e banimento do acaso; depuração que levaria, também, ao
limite do silêncio desejado. Contra o mar, o Capibaribe e sua
matéria impura. Na estrofe inicial desta parte

§ A cidade é fecundada
por aquela espada

76
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada, (p. 312)

desaparece o “cão humilde” (parte II); o rio, agora, é apenas uma


espada, cujo caráter fecundo não mais sofre a restrição adjetiva de
que fora objeto na parte I (fecundidade “pobre”, p. 306). Opondo-
se à “úmida gengiva” fluvial,

o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada, (p. 312)

O ideal de limpeza/depuração incorpora tanto o mundo fa­


bril (“camisa ou lençol”, metáfora alternativa) quanto o natural
(esqueletos, areia lavada). Em “Cemitério alagoano” (Quaderna);
reaparece a relação m ar—> assepsia—> ossos:

O mar, que só preza a pedra,


que faz de coral suas árvores,
luta por curar os ossos
da doença de possuir carne. (p. 134)

Na “Fábula do Capibaribe”, como nas partes anteriores, o


foco sobre um novo objeto (agora, o mar) determina a utilização
de parênteses para bem dem arcá-lo do objeto principal.
Combatendo o caráter impositivo da metáfora, João Cabral vai
propor a imagem da bandeira para expressar o oceano. Trata-se
de um recurso de vigília contra o imponderável da nomeação poé­
tica, e duplamente: não só a pertinência da imagem é testada e
explorada sob vários ângulos, como fica à mostra a engrenagem
dos mecanismos verificadores. A imagem hipotética é mais um
recurso antiilusionista do poeta:

§ (Como o rio era um cachorro


o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada no extremo do curso
—■ou do mastro — do rio. (p. 313)

77
Além dessa estratégia de composição, assinalemos no poe­
ma um tipo de metáfora criada por pressão sintagmática, e que se
coloca em relação metonímica (de contigüidade) com o núcleo
gerador. Assim, se o rio é visto como “úmida gengiva”, o mar, em
resposta, é bandeira que tivesse dentes (p. 313). Aponte-se, ainda,
o vínculo entre a areia lavada da segunda estrofe e o mar com seu
sabão da estrofe 4 (p. 313).
Neste texto, pela primeira vez, a assepsia deixa de ser con­
siderada um valor absoluto, desejável em qualquer circunstância
— pois, extremada, corre o risco de converter-se em esterilidade.
Na quinta estrofe:

§ Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia. (p. 313)

O “poeta puro” nivela-se ao “polícia puro”. Nos dois casos,


patenteia-se o impasse (prolongado pelo gerúndio) do exercício
redundante da pureza, numa retomada da parte C de “Antiode” :

Como não invocar,


sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti­
cultura? (p. 335)

A diferença é que, no poema de 1947, o “adestramento” se


referia à subjetividade indesejável do poeta. De qualquer modo, a
prática da forma em si (por mais cristalina que seja) passa a ser
encarada como um obstáculo à criação, já que tende a se fechar
numa dimensão intransitiva da pureza, a exemplo do “roedor
puro” que aflora no texto sem que ao menos se precise sobre o
quê incide sua ação. Na estrofe seguinte, os cinco versos iniciais

78
destacarão o aspecto corrosivo da assepsia marinha, por oposição
ao aspecto dissolvente do rio. Os versos restantes irão corroborar
a desvalorização da pureza repetitiva:

O mar e sua came


vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria, (p. 313-314).

Se o mar destrói, também se destrói; se logra romper a bar­


reira da intransitividade, a ação corrosiva continua a recair nele
mesmo — e o círculo torna a fechar-se. Fecham-se igualmente os
parênteses, para dar passagem ao discurso, de novo fluvial, da
estrofe posterior:

O rio teme aquele mar


como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta, (p. 314)

Animizando o rio, o poeta volta a fazê-lo solidário de um


universo humilde e marginalizado, cujas relações de recusa se es­
tabelecem nos planos natural/natural (rio/mar), natural/cultural
(cachorro/porta) e cultural/cultural (mendigo/igreja).
O movimento inicial do mar é no sentido de rejeitar a conta­
minação do impuro; atitude defensiva que engloba não somente o
curso efetivo do rio, mas as imagens de miséria que a ele se agre­
garam, e de tal modo que lhe constituem uma segunda capa de
realidade:

§ Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio

;g
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo, (p. 314)

A tática ofensiva do mar visa, sobretudo, a atingir o rio no


que ele possa ter de herança do ciclo vital (à maneira do lamento
anfiônico, que dizia da “origem menor” da terra e da flora):

§ Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta. (p. 314)

A solidariedade do espaço marginal, antes articulada pelo


encontro de séries diferentes (a animal e a humana, por exemplo),
efetiva-se agora na própria especificidade do elemento líquido:

§ Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada (p. 315)

Nova interrupção do foco sobre o Capibaribe. Novos parên­


teses, em cujo interior se discutirá a pertinência da analogia entre
“mangue” e “fruta”. Na parte inicial, o encontro do líquido e do
vegetal fora descrito em termos de simples efeito sensorial;

§ Seria a água daquele rio


fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas? (p. 308)

80
nesta parte III, a identificação será recuperada positivamente,
pois a ênfase recairá no processo (e não mais no efeito) comum a
“mangue” e “fruta”:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada — (p. 315)

Depois de ter encarado a poesia como uma “máquina de


comover” (O engenheiro), João Cabral tenta extrair do real a for­
ma de produção que seu texto deve acompanhar. A “ponta do no­
velo” da atenção em consonância com a “mesma máquina/ pa­
ciente e útil” da fruta. E o ensinamento de que o trabalho do cria­
dor não se encerra com a conclusão do objeto (pois ele deve espe­
rar que “a jovem manhã” lhe revele “as flores da véspera”) encon­
tra seu correlato na trajetória infatigável da fruta, “trabalhando
ainda seu açúcar/ depois de cortada”. Não se trata, como vemos,
de nenhuma incorporação acrítica do que antes fora rejeitado: o
ciclo da expansão. Ao contrário, a mesma exigência depuradora
persiste nesse novo passo cabralino; mas, agora, pronta a captar
as engrenagens da “matéria impura”, e sabendo que também nela
(e não apenas na “suspensão” do mundo mineral) é possível se
encontrar um modelo para a elaboração do discurso poético.
A parte final (“Discurso do Capibaribe”) sustenta, em suas
nove estrofes, uma poesia basicamente conceituai, com fortes raí­
zes, todavia, mergulhadas no estrato referencial das partes ante­
riores. Cumprido o encontro entre o Capibaribe e o oceano, o poe­
ta avalia, sobretudo eticamente, a dolorosa permanência do rio na
memória coletiva. Ou, para utilizarmos as palavras do próprio
João Cabral, “o que se valoriza é o coletivo que se revela através
daquela voz individual”3;

* N u i u ‘n, J lr n c d it o ( >{i t ií., j». i ( >5

Kl
§ Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.

Como um cão vivo


dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele. (p. 316)

Mas o rio é também uma espécie de catalisador da memória


intrínseca do texto, na medida em que as imagens que ele, rio,
permitiu (cão, fruta, homem) são continuamente repostas em cir­
culação nas quatro partes da obra. Memória, assim, que se faz ao
fazer-se discurso, incitada pela engrenagem retórica da máquina
do poema.
Na estrofe acima transcrita, ocorre um movimento de inten­
sificação do símile através de uma operação interiorizante que
parte de “sala” para atingir “pele”. Interiorização manifesta em
sua contundência física, diversa da introjeção de “atmosferas”
sentimentais que a lírica tradicional absorve em suas indagações
de cunho transcendente.
A retomada do sintagma “cão vivo” propicia um agencia-
mento hipotático do sistema metafórico. Com a retificação suces­
siva do adjunto adverbial, novos blocos imagísticos se apõem ao
primeiro núcleo (“como um cão vivo/ dentro de uma sala”), de tal
modo que se estabelecem relações de progressividade entre as
diversas partes do conjunto — o surgimento dos símiles se torna
menos aleatório, subordinado a um processo gradativam ente
intensificador.
A mesma noção de continuidade (falamos ainda do nível
imagístico) se registra na estrofe 4, onde a intromissão de cada
novo segmento significará uma leitura aprofundada do anterior,
parâmetro de base a ser superado:

§ Como todo o real


é espesso.
Aquele rio

82
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem. (p. 317)

O real, na segunda estrofe, se definira pela agudeza (“Um


cão, porque vive, / é agudo/ .... / O que vive fere”, p. 316).
Segundo Merquior, não haveria incompatibilidade entre agudeza
e espessura, pois esta também “é feita de privação”4, e se irmana
com aquela sob o denominador comum da carência. A recusa de
João Cabral se dirige para o que, na existência, é refúgio ao desa­
fio impuro da matéria. Não surpreende, pois, que uma vez mais
ele assinale o onírico e o etéreo como sintomas de uma mesma
fuga diante da urgência do real:

§ O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens, (p. 316)

Em vez de mineralizar o ciclo vital, o poeta se debruça, ago­


ra, sobre a “vida que se desdobra/ em mais vida” (p. 318). E os
versos finais do texto

porque é mais espessa


a vida que se luta
cada dia,

4 Merquior, José Guilherme. Op. cit., p. 160.

83
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo), (p. 318)

atestam, de maneira inequívoca, a viabilidade da produção orde­


nada e progressiva, seja ela a do rio, do mangue, da fruta ou da
ave que conquista a “cada segundo” o caminho de seu vôo. Tal
continuidade, como ressaltamos, foi duplicada retoricamente na
rigorosa armação das imagens que a revelaram. Optando pelo sal­
to no que vive, João Cabral ultrapassa o território do silêncio
anfiônico. Mas a implantação do novo espaço não prescinde da
mesma vigília exigida para o outro, nem revela passiva submissão
frente à abundância da matéria viva. Se o silêncio fora conquista­
do, a palavra que o desterra também deve sê-lo, sob pena de, leva­
da pelo espetáculo sensível das coisas, não apreender o rigor de
máquina que nelas subjaz. Superada a poética “negativa” do
silêncio, a poética “positiva” não é simples resposta não-dialética,
pois recusa, de modo cabal, uma positividade órfica, ávida de
integração e celebração da existência.
VI — O prosaico no poema

O rio, ou relação da viagem que fa z o Capibaribe de sua


nascente à cidade do Recife, de 1953, é o texto que parece respon­
der mais de perto às reflexões teóricas de João Cabral sobre a
necessidade de se restabelecer o circuito entre o público e a poe­
sia. Com efeito, ao analisar o impasse a que os poetas modernos
chegaram, fruto de um crescente subjetivismo e da fetichização
do próprio fazer, João Cabral destacava:

[Os poetas] Também não souberam adaptar às condições da vida


moderna os gêneros capazes de serem aproveitados. Deixaram-
nos cair em desuso (a poesia narrativa, por exemplo, ou as “aucas”
catalãs, antepassadas das histórias em quadrinhos), ou deixaram
que se degradassem em gêneros não poéticos, a exemplo da ane­
dota moderna, herdeira da fábula.

Adiante, ao situar a poesia moderna no âmbito do “diário ín­


timo e da declaração de princípios /..../ quase sempre na primeira
pessoa”, frisava que tal tipo de poema “não foi obtido através de
nenhuma consideração acerca de sua possível função social de
comunicação” 1.
Dessa maneira, O rio se propõe como um texto à contracor-
rente tanto da intransitividade narcísica da mensagem lírica quan­
to da exacerbação metalingüística que sobre ela possa incidir. Se,
com João Alexandre Barbosa, entendermos que a obra cabralina

1 Melo Neto, João Cabral de. “D a função moderna da poesia”. In: Congresso Internacio­
nal de Escritores e Encontros Intelectuais. São Paulo: Anhembi, 1957, p. 313.

85
se arma na tensão entre o fazer e o dizer2, será inegável a filiação
de O rio ao segundo termo.
Para Haroldo de Campos,

Aqui vemo-lo já fazer prosa em poesia (não prosa poética nem


poema em prosa, mas poesia que fica do lado da prosa pela impor­
tância primordial que confere à informação semântica). Nesse
sentido, pode-se dizer que JCMN dá categoria estética a muito
daquilo que, no chamado romance nordestino, tinha apenas cate­
goria documentária3.

Assim, explica-se a invasão do prosaico na medida em que


o discurso refletirá, isomorficamente, a miserável cotidianidade
do espaço que irá abarcar. Essa relação de homologia foi destaca­
da por Benedito Nunes, ao falar da repetição dos versos penta e
hexassilábicos, das dissonâncias e estridências, das incompletu-
des e redundâncias — tributo voluntário a uma linguagem oral
transposta ao texto, ao estilo dos cantadores4.
Em O rio, diversamente do ocorrido em O cão sem plumas,
o Capibaribe é o sujeito do próprio discurso: discursa enquanto
corre, e discorre sobre seu curso, longo de sessenta estrofes e
novecentos e sessenta versos. O início do texto retoma a analogia
(do livro anterior) entre o fluvial, o animal e o humano:

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar, (p. 273)

O modelo humano, no entanto, passa a prevalecer como a


imagem mais recorrente do movimento do rio:

2 Barbosa, João Alexandre. Op. cit., p. 92.


3 Campos, Haroldo de. Op. cit., p. 72.
4 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 80.

86
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).

Rio menino, eu temia


aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava, (p. 273)

Na estrofe 3, o rio narra seu primeiro encontro com o ho­


mem do sertão: geograficamente, ocorrido na nascente (na “pri­
meira infância”) do Capibaribe; imagisticamente, nivelado ao
animal e ao mineral:

De onde tudo fugia,


onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra. (p. 274)

Importante, na estrofe 6, é a introdução da figura do retiran­


te, pelo paralelismo que será desenvolvido entre seu caminhar e o
percurso fluvial. Saliente-se, também, um outro movimento soli­
dário, agora dentro de uma mesma natureza (líquida), a exemplo
do que houvera em O cão sem plumas:

Vou andando lado a lado


de gente que vai retirando;
vou levando comigo
os rios que vou encontrando, (p. 275)

Cruzando o Agreste, o Capibaribe registra: “Entretanto, a


paisagem/ com tantos nomes, é quase a mesma” (p. 278). À repe­
tição da paisagem corresponde a repetição do esforço humano
para domá-la, já referido na terceira estrofe:

Há aqui homens mais homens


que em sua luta contra a pedra
sabem como se armar
com as qualidades da pedra. (p. 279)

87
Depois de alusões a vinte e seis lugarejos, o rio-narrador se
detém em Limoeiro; e, como fará mais tarde (ao falar dos “dois
Recifes”), apresenta a cidade em dupla face, mescla de progresso
e miséria:

T e m m e l h o r e s f a z e n d a s ,
t e m i n ú m e r a s b o l a n d e i r a s

P o i s , a q u i, e m L i m o e i r o ,
c o m s e u t r e m , s u a p o n t e d e fe r r o ,
c o m s e u s a lg o d o a i s ,
c o m s u a s c a r r a p a t e ir a s ,
p e r s i s t e a m e s m a s e d e ,
a in d a s e m f u n d o , d e p a l h a o u a r e ia ,
b e b e n d o t a n t o s r ia c h o s
e x t r a v i a d o s p e l a s c a p o e i r a s , (p . 2 8 0 )

Uma variante da identificação hum ano/m ineral (antes:


homem = pedra e rio) é inscrita na estrofe 17: “onde vivem as
mãos/ que calçando as outras, de ferro/....” (p. 281). O que aí é
metáfora (as “mãos de ferro” do camponês) se transfere, via
metonímia, para a estrofe posterior, quando se efetiva o encontro
entre o trem e o rio. Mas, ao mesmo tempo, o Capibaribe nega
eventuais aproximações com o objeto industrial, preferindo loca­
lizar no espaço natural as imagens de seu curso:

L á d e n t r o d a c i d a d e
h a v i a e n c o n t r a d o o t r e m d e fe r r o .

S o u u m r io d e v á r z e a ,
n ã o p o s s o ir t ã o lig e ir o .
M e s m o q u e o m a r o s c h a m e ,
o s r io s , c o m o o s b o i s , s ã o r o n c e i r o s . (p . 2 8 1 )

Com a penetração na Zona-da-Mata, a redundância da pai­


sagem é reforçada, na paisagem textual, pela reiteração do sintag­
ma “planta(s) de cana”:

T u d o p la n t a d e c a n a
n o s d o i s l a d o s d o c a m i n h o ;
e mais plantas de cana

e outras plantas de cana

Tudo planta de cana


e assim até o infinito;
tudo planta de cana
para uma só boca de usina. (p. 285)

A decadência dos engenhos, sufocados pelas usinas, se faz


presente desde a primeira referência aos canaviais (estrofe 21):
“Foram terras de engenho/ agora são terras de usina” (p. 283), e o
tema se prolonga até a entrada do Capibaribe no Recife. Os rios a
serviço das usinas são caracterizados por uma morfologia abaste­
cida no repertório imagístico de O cão sem plumas:

[Os rios]
Contam por que possuem
aquela pele tão espessa;
por que todos caminham
com aquele ar descalço de negros;
por que descem tão tristes
arrastando lama e silêncio, (p. 284)

Compare-se a:

Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
(O cão sem plumas, p. 306)

O paralelismo entre os homens e o rio, ostensivo pela conti-


güidade espacial, no mesmo movimento de travessia da paisagem
(pois o Capibaribe também é um retirante), reforça-se, agora tem-
poralmente, pelo vínculo entre história natural e história econô­
mica; o rio recolhe a memória humana:

89
A história é uma só
que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos
com seus fogos a morrer, (p. 284)

A usina é o signo por excelência da trituração física e social


da terra nordestina, e uma série de imagens vai urdindo a engre-
nagem-voragem da fábrica. O canavial é elemento de ambíguo
trânsito, ao mesmo tempo agente e paciente da usina, destruindo
tudo que para ela não convirja, até ser por ela destruído:

Mas na Usina é que vi


aquela boca maior
que existe por detrás
das bocas que ela plantou:
que come o canavial
que contra as terras soltou;
que come o canavial
e tudo o que ele devorou;
que come o canavial
e as casas que ele assaltou;
que come o canavial
e as caldeiras que sufocou.
Só na Usina é que vi
aquela boca maior,
a boca que devora
bocas quê devorar mandou, (p. 288)

O mesmo procedimento autofágico do canavial (que, ani­


quilando, se aniquila) é transposto, na estrofe 32, para o elemen­
to humano. A m etáfora que o designará (dentes) cria um elo
metonímico com o termo definidor da usina (boca). Operando
com o desdobramento metonímico da imagem inicial, o poeta não
deixa de torná-la mais funcional dentro da sintaxe retórica do
poema:

....essa gente mesma


na boca da Usina são os dentes
que mastigam a cana
que a mastigou enquanto gente (p. 288)

90
Vê-se, assim, que o discurso mais fluente que embasa a “von­
tade de comunicar” não significa a negligência do “fazer”, con­
quanto este não seja tematizado como o fora em obras anteriores.
A entrada no Recife é precedida por sintética recapitulação
dos solidários companheiros do Capibaribe, englobando, além
dos afluentes, os retirantes dos “três Nordestes” (Sertão, Agreste
e Zona-da-Mata). E, se o mar aparece como um espaço utópico de
libertação (da impureza também social), compreende-se a reinci­
dência do símile nivelador do fluvial e do humano:

A gente das usinas


foi mais um afluente a engrossar
aquele rio de gente
que vem de além do Jacarará.
Pelo mesmo caminho
que venho seguindo desde lá,
vamos juntos, dois rios,
cada um para seu mar. (p. 293)

A partir da estrofe 42, encontramo-nos diante do mesmo


ponto referencial de O cão sem plumas: a espessa existência do
homem e do rio na moldura do Recife. Um confronto entre os
dois textos pode revelar várias afinidades. Os sobrados do cais,
situados “no Recife pitoresco,/ sentimental, histórico” (O rio, p.
295), habitados por moças ou “bacharéis em direito” (p. 294), na
cidade “turística” e abastada, remetem, em O cão sem plumas, às
“famílias espirituais”, que, “de costas para o rio”, revolviam sua
“preguiça viscosa”. Na mesma linha (de crítica à alienação) deve
ser lida a irônica descrição da elite recifense:

todos porém no alto


de sua gasta aristocracia;
todos bem orgulhosos,
não digo de sua poesia,
sim, da história doméstica
que estuda para descobrir, nestes dias,
como se palitava
os dentes nesta freguesia. (O rio, p. 296)

A “estagnação/ dos palácios cariados” (O cão sem plumas,


p. 307) é corroborada pelas “poças do tempo/ estagnadas sob as

91
mangueiras” (O rio, p. 295). E, a exemplo do poema de 1950, a
lama é o elemento forte na união entre homem e rio. Em O cão
sem plum as:

§ Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha, (p. 306-307)

Em O rio:

Casas de lama negra


há plantadas por essas ilhas

casas de lama negra


daquela cidade anfíbia

no seu chão de lama


entre água e terra indecisa, (p. 297)

O passado e o presente não corroídos pelo tempo ou pelos


desajustes sociais são evocados na estrofe 50, em antítese à lógi­
ca desagregadora que golpeia o universo da miséria:

Nele passam as pontes


de robustez portuguesa,
anúncios luminosos
com muitas palavras inglesas;
passa ainda a cadeia,
passa o Palácio do Governo,
ambos robustos, sólidos,
plantados no chão mais seco. (p. 297)

A intromissão dos marginais (à margem do rio e da vida) na


geografia humana do Recife “puro” só é admitida em termos de
um espaço de exclusão: a cadeia, eco “do hospital, da penitenciá­
ria, dos asilos” de O cão sem plumas. Também a lentidão do cur­
so do rio, expressa neste texto (“Como às vezes/ passa com os
cães,/ parecia o rio estagnar-se”, p. 307), comparece, em O rio,
atribuída à lama denotativa e à lama-símbolo da miséria social. O

92
vínculo entre os dois tipos de impureza é explicitamente referido
na estrofe 51, onde as “ilhas de terra preta/ [são] imagem do
homem aqui de perto” (p. 298); a marcha do rio tropeça tanto na
realidade física quanto na humana:

Rio lento de várzea,


vou agora ainda mais lento,
que agora as minhas águas
de tanta lama me pesam.

(também a dor desse homem


me impõe essa passada de doença,
arrastada, de lama,
e assim cuidadosa e atenta), (p. 298)

Na estrofe posterior, o Capibaribe vislumbra o oceano: “sur­


ge o mar, afinal/ como enorme montanha azul” (p. 298), e a equi­
paração do líquido “puro” (o mar) ao sólido será mantida, dois
anos depois, no “Pregão turístico do Recife”, de Paisagens com
figuras: “Aqui o mar é uma montanha/ regular redonda e azul” (p.
245). Mas, antes de submergir no silêncio marinho, o rio, rom­
pendo a simultaneidade de curso e discurso que o caracteriza,
dirige a fala, retrospectivamente, aos companheiros humanos que
o seguiram na viagem, e que tiveram de parar na “cidade anfíbia”,
pois

A um rio sempre espera


um mais vasto e ancho mar.
Para a gente que desce
é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram
na cidade que imaginavam mar
senão outro deserto
de pântanos perto do mar. (p. 302)

Sua “simpatia calada” (p. 302) vai para os homens “com raí­
zes de pedra ou de cabra”, todos irmanados, na última estrofe,
pelo “comum retirar” (p. 302). E a paisagem de carência coletiva
de O cão sem plumas (“onde a fome/ estende seu batalhão de
secretas/ e íntimas formigas”, p. 318) é aqui retomada:

93
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga:
que os distinga na morte
que aqui é anônima*e seguida, (p. 300)

O rio foi incluído na “segunda água” da poesia de João Ca­


bral. Com a publicação, em 1956, do volume Duas águas, quis o
poeta estabelecer uma distinção entre textos mais complexos e
outros, valorizadores da oralidade da linguagem (dado o seu grau
mais imediato de comunicabilidade). A primeira água enfatizaria
o “fazer”, a segunda, o “dizer”, e a temática social seria mais os­
tensiva nesta do que naquela. Mas a “intenção participante” não é
exclusiva dos livros da segunda vertente: èla já existia, inequívo­
ca, em obra classificada como de “primeira água” pelo poeta (O
cão sem plumas). Para melhor equacionar a questão, podemos
dizer que o dado fundamental não é o teor social da poesia, mas a
estratégia discursiva utilizada, como deixou claro o próprio João
Cabral, na introdução ao volume de 1956:

Duas águas querem corresponder a duas intenções do autor


e — decorrentemente — a duas maneiras de apreensão por parte
do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lidos em
silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aproveitamento
temático, quase sempre concentrado, exige mais do que leitura,
releitura; de outro, poemas para auditório, numa comunicação
múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos5.

5 Melo Neto. João Cabral de. Duas águas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

94
VII — A natureza rarefeita

À paisagem espessa de O cão sem plum as respondem as


rarefeitas Paisagens com figuras (1955): novamente um espaço de
carência, mas, apesar da eventual incidência do núcleo úm i­
do/líquido da fase anterior, marcado predominantemente pela se­
cura. Todavia, não se esgota aí — em sua literalidade — o alcan­
ce da rarefação a que estamos aludindo: trata-se, também, de um
processo de abstratizar a matéria natural, “lendo-a” de modo a
inseri-la em outras séries (literária ou cultural).
Dos dezoito poemas do livro, oito tematizam o Nordeste,
nove a Espanha, um a ambos. A exceção de “Encontro com um
poeta”, “Fábula de Joan Brossa” e “Alto do Trapuá”, os demais se
apresentam sob a forma da quadra, que se consolida como o tipo
de estrofação largamente preponderante na obra cabralina.
A ampliação do campo referencial, no entanto, não chega a
significar uma grande ruptura no modo de apreendê-lo. Rejeição
da subjetividade, antiilusionismo, mineralização da existência
são traços recorrentes da trajetória de João Cabral. No poeta, o
desafio da paisagem surgirá sob a forma de signos a decifrar, e, no
texto, um aspecto sistêmico prevalecerá sobre o dado empírico.
A tentem os para as estrofes iniciais do “Pregão turístico do
Recife” :

Aqui o mar é uma montanha


regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.

l>5
Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.

Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.

Com os sobrados podeis


aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura, (p. 245)

O espírito engenheiro extrai do real a réplica da lucidez que


comandou sua captação. Assim, o mar é padrão de regularidade
“matemática”, e os sobrados ensinam “lição madura” — elemen­
tos potenciais de sua constituição, mas que só desabrocham quan­
do o olhar a eles dirigido os escava além da aparência sensível.
O “Pregão turístico do Recife” retoma vários tópicos de O
cão sem plumas e de O rio, ficando mais próximo daquele do que
deste pela construção rigorosa de seu tecido lingüístico. As estro­
fes finais repõem em circulação alguns símiles dos longos poe­
mas do Capibaribe, reintroduzindo os temas da lama, da estagna­
ção e do apodrecimento. Referem-se ao “outro Recife” (o não-
turístico), cuja impura umidade contrasta com a assepsia mineral
das primeiras quadras:

E neste rio indigente,


sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,
e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,
podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida. (p. 245-246)

96
Os versos finais são réplicas à estrofe 57 de O rio, onde a
irreversibilidade da desintegração derrotava o movimento vital:

D e s t a c a p it a l p o d r e
s ó a s e s t a t ís t ic a s d ã o n o t íc ia ,
a o m e d i r s u a m o r t e ,
p o i s n ã o h á o q u e m e d i r e m s u a v id a . (p . 3 0 1 )

Recife também está evocado no derradeiro poema nordesti­


no do livro: “Volta a Pernambuco”. O poeta estabelece um módu­
lo de relação que será desenvolvido em todo o texto:

C o n t e m p l a n d o a m a r é b a i x a
n o s m a n g u e s d o T i j i p i ó
l e m b r o a b a í a d e D u b l i n
q u e d a q u i j á m e l e m b r o u .

E m m e i o à b a c ia n e g r a
d e s t a m a r é q u a n d o e m c io ,
e i s a A l b u f e r a , V a l ê n c i a ,
o n d e o R e c i f e m e s u r g iu , (p . 2 6 6 )

A marca da primeira pessoa refere-se à ação de contemplar:


um “eu” que vê, registra, examina; se exercita à maneira do “me­
nino bastante guenzo” que “de tarde olhava o rio/ como se filme
de cinema” (O rio, p. 295). É a realidade do passado, em sua fo r ­
ma, que permite outras aproximações formais. Por isso, a memó­
ria deixa de ser o depósito de evocações subjetivas para transfor­
mar-se em fator de articulação entre referências externas desvin­
culadas espacial e temporalmente, mas atadas pela retenção de
seus traços comuns. A baía de Dublin deságua “nos mangues do
Tijipió” ; a memória se quer o leito desse percurso, onde os elos
entre as coisas possam fluir sem entrave:

e e s s a s v á r z e a s d e T i u m a
c o m s e u s e s t e n d a i s d e c a n a
v ê m d e v o l v e r - m e o s t r ig a is
d e G u a d a l a j a r a , E s p a n h a , (p . 2 6 6 )

97
Como no texto anterior, à paisagem se sucedem as figuras
humanas. Passa-se da série natural (maré, baía, várzea) à cultural
(cidade), e as novas identificações são intensificadas pelo núcleo
comum do esforço do homem:

p o r o n d e i g u a is p r o c i s s õ e s
d o t r a b a lh o , s e m a n d o r ,
v ã o l e v a r o s e u p r o d u t o
a o s m e r c a d o s d o s u o r .

T o d a s l e m b r a v a m o R e c i f e ,
e s t e e m t o d a s s e s itu a ,
e m t o d a s e m q u e é u m c r i m e
p a r a o p o v o e s t a r n a r u a (p . 2 6 7 )

O grupo constituído pelos três “cemitérios pernambucanos”


apresenta notável coesão textual. Compõem-se, todos, de quatro
quadras em redondilha maior, em rimas pares toantes (esquema,
aliás, amplamente majoritário no livro). E podemos lê-los num
regim e de com plem entaridade semântica; o prim eiro deles
(Toritama) se destaca pelo espaço fechado, de impermeabilidade
à paisagem externa, de cuja natureza, no entanto, participa:

P a r a q u e t o d o e s t e m u r o ?
P o r q u e is o la r e s t a s t u m b a s
d o o u t r o o s S á r io m a i s g e r a l
q u e é a p a i s a g e m d e f u n t a ? (p . 2 5 5 )

O segundo (São Lourenço da Mata) marca a progressiva


penetração da paisagem externa (“lamber” por oposição a “iso­
lar” do texto anterior):

É c e m i t é r io m a r i n h o
m a s m a r i n h o d e o u t r o m a r .
F o i a b e r t o p a r a o s m o r t o s
q u e a f o g a o c a n a v ia l .

A s c o v a s n o c h ã o p a r e c e m
a s o n d a s d e q u a l q u e r m a r ,

98
mesmo as de cana, lá fora,
lambendo os muros de cal. (p. 257)

O terceiro cemitério (Nossa Senhora da Luz) configura o


rompimento das barreiras que separavam o dentro e o fora, inte­
grando a ambos numa única “paisagem defunta” que lhes é
comum:

Mortos ao ar-livre, que eram,


hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão, (p. 260)

Progressivamente, o aparato retórico da morte vai sendo


aplainado. Em “Toritama”, ainda é ostensivo, materializado na
“alta defesa” do muro:

Para que a alta defesa,


alta quase para os pássaros,
e as grades de tanto ferro,
tanto ferro nos cadeados? (p. 255)

Em “São Lourenço da Mata”, topos de transição, o aparato


é reduzido ao tosco traçado da cruz:

Também marinho: porque


as caídas cruzes que há
são menos cruzes que mastros
quando a meio naufragar, (p. 257)

Finalmente, “Nossa Senhora da Luz” representa a morte


despojada de toda encenação, desprovida de qualquer prolixidade
que retarde ou impeça a integração final do homem à terra:

Nenhum dos mortos daqui


vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.

99
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva. (p. 260)

Outro poema nordestino, “Vale do Capibaribe”, é mostra


exemplar da rarefação do natural:

Vale do Capibaribe
por Santa Cruz, Toritama:
cena para cronicões,
para épicas castelhanas.

Mas é paisagem em que nada


ocorreu em nenhum século
(nem mesmo águas ocorrem
na língua dos rios secos), (p. 252)

A primeira estrofe vê a natureza como matéria passível de


um discurso épico que a celebrasse. A segunda, todavia, respon­
de de imediato com um duplo modo de esvaziamento: histórico
(nada “ocorreu em nenhum século”) e geográfico (“nem mesmo
águas ocorrem”). Resta, apenas, o simulacro de algo que não
existiu, e a poesia de João Cabral declara esse vazio — modo de
significar a rarefação do in-significante:

Nada aconteceu embora


a pedra pareça extinta
e os ombros de monumento
finjam história e ruína.

No mentido alicerce de
morta civilização
a luta que sempre ocorre
não é tema de canção, (p. 252)

O “Alto do Trapuá” trata da inserção do elemento humano


no espaço vegetal do Nordeste, e a série dos cemitérios já mostra­
ra que a integração prosseguia além das fronteiras da existência.
Se, na morte, o homem era “as cinzas/ para o tempo de semear”
(“Toritama”, p. 255), em vida

100
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural, (p. 263)

Assinale-se ainda, no “Alto do Trapuá”, uma dicção que às


vezes retoma o prosaísmo descritivista de O rio :

Fica na estrada de Nazaré,


antes de Tracunhaém,
Por um caminho à direita
se vai ter a uma igreja
que tem um mirante que está
bem acima dos ombros das chãs. (p. 262)

“Duas paisagens”, texto-ponte entre Espanha e Pernambu­


co, sintetiza o tipo de lição que cada uma dessas regiões oferece a
quem busque representá-las; mas, além das identificações entre
ambas, é importante atentar para o que, sobre um fundo comum
de carência, vai distingui-las. A diferença é revelada pelo con­
fronto da primeira e da sexta estrofes (esta, relativa a Pernam­
buco):

D’Ors em termos de mulher


(Teresa, La Ben Plantada)
descreveu da Catalunha
a lucidez sábia e clássica

Lúcido não por cultura,


medido, mas não por ciência:
sua lucidez vem da fome
e a medida, da carência (p. 268-269)

A presença ou ausência de “cultura” é bem mais do que sim­


ples constatação: é elemento determinante para a leitura que o
poeta efetuará de uma e de outra realidade. No caso da Catalunha,
o primeiro signo de sua paisagem já se origina numa referência
cultural (literária) — que, não obstante, guarda intensa dependên­
cia do estímulo (mais uma vez, organizado) do espaço natural:

101
aquela fácil medida

aprendida certamente
no ritmo feminino
de colinas e montanhas
que lá têm seios medidos, (p. 269)

D iversam ente de Pernambuco, cuja lucidez provém da


ausência e, como vimos, de um vazio também cultural-histórico,
a paisagem espanhola circulará continuamente da referência natu­
ral à cultural, e vice-versa, sem que se possa dizer qual delas pre­
domina. Basta verificar que, dos dez poemas espanhóis, encon­
tram-se em seis referências explícitas a obras ou autores literá­
rios, e dois outros falarão de atividades artísticas (o canto cigano,
a “poesia” da tourada).
Em Paisagens com figuras, o ciclo de Espanha volta a ativar
o “poema de homenagem”, cujos exemplos anteriores remontam à
época de O engenheiro. “Encontro com um poeta”, centrado na
vocação terrestre do poema, registra o elogio da impureza (“um
vento/ soprando armado de areia”), açoite que fustiga a cômoda
assepsia do “literário” e do acadêmico (“Não era a voz expurgada/
de suas obras seletas”). A emulação do natural é tão intensa que o
próprio poeta espanhol só se define em função da paisagem1:

Em certo lugar da Mancha,


onde mais dura é Castela,
sob as espécies de um vento
soprando armado de areia,
vim surpreender a presença
mais do que pensei, severa,
de certo Miguel Hemández,
hortelão de Orihuela. (p. 255-256)

Os “poemas de homenagem” se constituem num interessan­


te correlato do processo de “culturalizar” as regiões espanholas,
visível, por exemplo, em Duas paisagens, cujas metáforas pro­
vieram do objeto-livro. Em contrapartida, e por isso falamos de

1 Barbosa, João Alexandre. Op. cit., p. 137.

102
correlação, será a terra espanhola a base do universo imagístico
que irá “naturalizar” as atividades culturais dos homenageados,
como se constatou em “Encontro com um poeta”.
“Diálogo” homenageia não uma pessoa, mas uma forma de
canto (andaluz). Lançando mão de um repertório de imagens que
será exemplarmente retrabalhado em Uma faca só lâmina, João
Cabral associa o cantar à seta, à faca e à espada:

A — O canto da Andaluzia
é agudo como seta
no instante de disparar
ainda mais aguda e reta.

B — Mas é espada que não corta


e que somente se afia,
que deserta se incendeia
em chama que arde sozinha, (p. 264-265)

Importa notar que o despojamento não mais acarreta, como


na “Fábula de Anfion”, a eleição do silêncio. Inicialm ente se
poderia estabelecer um paralelo entre o cantar andaluz e o percur­
so anfiônico, na medida em que daquele se diz: “a faca melhor/ é
a que recorta o vazio” (p. 264). Mas tal aproximação é apenas
aparente: a proposta de “Diálogo” endossa antes o vazio form ali­
zado (“recortado”) do que a simples demissão da palavra poética.
As divergências se tornam ainda mais flagrantes nas duas últimas
estrofes do texto:

A — Até o dia em que essa lâmina


abandone seu deserto,
encontre o avesso do nada,
tenha enfim seu objeto.

Até o dia em que essa lâmina,


essa agudeza desperta,
ache, no avesso do nada,
o uso que as facas completa, (p. 265)

Anfion, diante da expansão de sua obra (Tebas), procurava


reconquistar a não-produtividade. O canto da Andaluzia, partindo

103
de um recorte no vazio, inverte a proposta e busca uma palavra
que, aguda, se abra em trânsito para a contundência do real.
Também de alcance metalingüístico, “Alguns toureiros”
estampa diversos modos de se situar frente ao risco da criação. O
poema se encerra com o toureiro M anuel Rodríguez, em cuja
caracterização encontramos o maior número de traços que se coa­
dunam com a poética de João Cabral — o controle do fluxo vital,
a tática de contenção (do gesto/ do verso), a rejeição do belo não-
funcional:

[Manuel Rodríguez,]
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida.

e [demonstra] como, então, trabalhá-la [a flor]


com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema. (p. 259)

“Imagens em Castela”, “Medinaceli” e “Campo de Tarrago-


na” obedecem, em graus diversos, a um mesmo processo de rare-
fação da paisagem natural espanhola. No primeiro destes poemas,
como assinalou Benedito Nunes2, a paisagem-experiência empí­
rica é substituída pela paisagem-experiência lexical:

Se alguém procura a imagem


da paisagem de Castela
procure no dicionário:
meseta provém de mesa. (p. 247)

Enquanto restrita a uma paisagem deserta, a imagem inicial


suportava o desdobramento de seu vazio (“E uma m esa sem
nada”, p. 247; “Na casa sem pé direito/ na mesa sem serventia”,
p. 248). Patenteia-se, assim, o rigor cabralino em atacar os limites
do próprio discurso: se “mesa” resistira ao confronto com a “pai­

2 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 57.

104
sagem”, será incapaz, por conotar apenas a ausência, de significar
também as “figuras”. Desse modo, a retificação da metáfora-base
(Castela = conceito de mesa) é um ato de astúcia que prepara a
introdução do elemento humano:

No mais, não é Castela


mesa nem palco, é o pão:
a mesma crosta queimada,
o mesmo pardo no chão.

E mais: por dentro, Castela


tem aquela dimensão
dos homens de pão escasso,
sua calada condição, (p. 248-249)

A “calada condição” dos homens reaparece em “M edi-


naceli”;

[o poema]
que poeta daqui escreveu
com a dureza de mão
com que hoje a gente daqui
diz em silêncio seu não. (p. 247)

mas, diversamente do texto anterior, aqui a rarefação do natural


não deriva de ato apenas metalingüístico: localiza-se no terreno
da própria referencialidade. O que em Medinaceli poderia restar
de natureza é absorvido pela série histórico-cultural:

Pouca coisa lhe sobrou


senão ocos monumentos,
senão a praça esvaída
que imita o geral exemplo;

pouca coisa lhe sobrou


se não foi o poemão
que poeta daqui contou
(talvez cantou, cantochão) (p. 247)

Se em “Medinaceli” os “ocos monumentos” legitimavam a


leitura de um espaço investido culturalm ente pelo homem, o

105
“Campo de Tarragona”, à maneira de “Imagens em Castela”, será
deslocado da série natural pelo viés “bibliográfico” com que as
metáforas de João Cabral irão saturar a paisagem, relacionando-a
a “mapa”, “carta geográfica” e face “clássica de ler” (p. 254). O
que se busca é descobrir uma sistemicidade no empírico,

N o c a m p o d e T a r r a g o n a
[a te r r a ] d á - s e s e m g u a r d a r d e s v ã o s :
c o m o p l a n t a d e e n g e n h e i r o
o u s a la d e c ir u r g iã o , (p . 2 5 3 )

para que a perícia engenheira do poeta possa transformá-lo num


modelo reduzido e geometrizado. Rejeitando um discurso que se
quer somente uma transparência subjugada aó império da referen-
cialidade, João Cabral registra também o peso das imagens que
recobrem o real: nesse sentido se pode falar de uma paisagem
com figuras.

106
VIII — Do concreto ao concreto

Morte e vida severina (auto de natal pernambucano) é texto


escrito no mesmo período de Paisagens com figuras: 1954-1955.
Estudamo-lo nesse passo para acompanhar a alternância entre as
“duas águas” que João Cabral aparentemente quis ressaltar, quan­
do dispôs, nas Poesias completas, a primeira água de Paisagens
entre as segundas de O rio e Morte e vida. Como aquele, o novo
livro se funda em raízes populares: agora, o auto de natal de tra­
dição pastoril, e a virtualidade cênica do texto — poema dramáti­
co “em voz alta”— leva o poeta a optar por uma linha discursiva
menos complexa do que a do livro anterior, e assentada predomi­
nantemente no metro da redondilha maior.
João Cabral, que já emprestara sua voz ao rio, transfere-a,
aqui, ao retirante Severino, que, como o Capibaribe, também
segue no caminho do Recife. A auto-apresentação do persona­
gem, na fala inicial do texto, nos mostra um Severino que, quan­
to mais se define, menos se individualiza, pois seus traços biográ­
ficos são sempre partilhados por outros homens. Querendo distin-
guir-se, mais e mais revela sua dissolução no anonimato coletivo:

— O meu nome é Severino,


não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,

107
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia (p. 203)

Em seguida, passa a detalhar o que, além do nome, o nivela


aos demais habitantes da região — a constituição física e o traba­
lho a que estão sujeitos:

Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra

Somos muitos Severinos


iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta (p. 204)

Os primeiros passos da retirada já o põem em contato com a


morte, e seu diálogo com dois homens a conduzir um defunto é
revelador de que, entre o trabalho sobre a terra ou o descanso sob
ela, a última opção parece mais sedutora; a atração da morte toma
por base o que não mais se fará em vida:

— Mais sorte tem o defunto,


irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada, (p. 208)

O monólogo seguinte (destaque-se, aliás, a rigorosa alter­


nância entre monólogos e diálogos que marcará o texto até a che­
gada de Severino ao cais de Recife) é bom exemplo da adequação
do discurso ao personagem, cuja imagística transita do concreto
ao concreto:

sei que há vilas pequeninas,


todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,

108
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha. (p. 209)

O Capibaribe “também corta/ com pernas que não cam i­


nham” (p. 210). A liquidificação do homem e a humanização do
líquido serão procedimentos recorrentes: tais operações absorve­
rão o que há de menos, de frágil incompletude, no outro elemento.
A nova etapa da viagem excluirá, pela primeira vez, o dis­
curso de Severino. Cantadores rezam excelências para um morto,
e o sentido místico da cerimônia é rebatido por outro personagem,
que, como afirma Luiz Costa Lima, exerce uma paródia em duplo
nível: dentro da história, paródia à reza; fora dela, a uma certa líri­
ca que, como as excelências, prefere caçar o etéreo ao invés de
apontar a espessa privação da contingência1. É em oposição a
essa postura que surge o discurso paródico, aproveitador das for­
mas rituais da religião para melhor perverter-lhes o sentido:

— Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
— Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.

— Dize que levas somente


coisas de não:
fome, sede, privação, (p. 210)

Se, no monólogo anterior, o modelo humano era imitado pelo


rio, agora, quando começa a vacilar sobre a conveniência de sua
retirada (“só morte tem encontrado/ quem pensava encontrar vida”,
p. 211), é Severino quem pensa em imitar o rio (“parar aqui eu não
podia/ e como o Capibaribe/ interromper minha linha?”, p. 211).
Terceiro diálogo, terceiro encontro com a morte. Diversa­
mente dos dois outros, ela não é vista, mas apenas referida. O
confronto entre o protagonista e uma rezadeira é um dos momen­
tos fundamentais no embate dos dois termos que definem a con­

1 Lima, Luiz Costa. Lira e antilira. Op. cit., p. 321.

109
dição severina. O homem se propõe uma produção de vida,
enquanto a produtividade da rezadeira se materializa apenas com
a morte:

— Tirei mandioca de chãs


que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.

— Vou explicar rapidamente,


logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar, (p. 214-215)

“Viver da morte” é a única via aberta para a sobrevivência


na região. A primeira parte do diálogo, em que a função interro­
gativa é desempenhada pela rezadeira, elimina implacavelmente
qualquer outra hipótese: trabalho nos engenhos, trabalho agrícola
ou pastoril. Descartadas as atividades em que poderia empregar
sua força, já que, em sua terra, “ninguém aprendeu/ outro ofício,
ou aprenderá” (p. 214), é Severino quem passa a interpelar a reza­
deira; esta, ao enumerar as vantagens das “profissões que fazem/
da morte ofício ou bazar” (p. 216), utiliza uma imagística do con­
creto, colhida na realidade contígua (a lavoura), e declarando a
morte através do mesmo léxico (com leitura invertida) que define
a vida:

Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita-: recebe-se
na hora mesma de semear, (p. 216-217)

110
No próximo diálogo (após um monólogo em que Severino
reitera o desejo de interromper a viagem), e à semelhança do epi­
sódio das excelências, a morte será vista, e não somente referida;
o protagonista será, também, mero espectador e ouvinte da ceri­
mônia fúnebre. Ao enterrarem um morto, dois personagens com­
param a penúria da vida à irônica melhoria de status encetada
pela morte:

É u m a c o v a g r a n d e
p a r a t e u d e f u n t o p a r c o ,
p o r é m m a i s q u e n o m u n d o
te s e n t ir á s la r g o .

A g o r a t r a b a lh a r á s
s ó p a r a ti, n ã o a m e i a s ,
c o m o a n t e s e m te r r a a lh e ia , (p . 2 1 9 )

Como na outra seqüência, o solo é o elemento comum a uni­


ficar existência e seu término. Mas o descanso além-vida é relati­
vo, pois a obrigação de “trabalhar a terra” continua a perseguir o
morto, da mesma forma que o sujeitara quando vivo:

T r a b a l h a n d o n e s s a te r r a ,
t u s o z i n h o t u d o e m p r e it a s :
s e r á s s e m e n t e , a d u b o , c o l h e it a , (p . 2 1 9 )

Se a rezadeira rentabilizava um discurso incitado pela mor­


te, aqui se atinge um grau maior de concretude, na medida em que
o imperativo da produção agrícola se dá como força contínua que
anula a distinção morte/vida. Com novas imagens fundadas na
esfera da contigüidade referencial, o corpo é associado à semente
que deve vingar:

N ã o l e v a s s e m e n t e n a m ã o :
é s a g o r a o p r ó p r io g r ã o .

D e s p i d o v ie s t e n o c a i x ã o ,
d e s p i d o t a m b é m s e e n t e r r a o g r ã o . (p . 2 2 1 )

No monólogo seguinte, contrastando com a geografia insa­

111
ciável da morte, a palavra de Severino ainda se pretende uma afir­
mação vital:

O que me fez retirar


não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
da tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;

o que pensei, retirando,


foi estendê-la um pouco ainda. (p. 222)

A chegada em Recife em nada altera a imersão de Severino


num espaço saturado de corrosão, e a escuta do diálogo entre dois
coveiros lhe fortalece a intuição de que a retirada foi inútil. A
maior diferença entre os mortos do interior e os da capital reside,
no último caso, na duplicação post mortem da rígida diferencia­
ção social que separava os homens em vida, contrariamente à
morte geral e anônima do sertão. A paródia da estratificação
social leva, inclusive, a que os cemitérios da cidade sejam passí­
veis de uma divisão em “bairros”, correspondentes aos diversos
graus de miséria ou riqueza. No topo da pirâmide:

As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia, (p. 224)

A pobreza se divide em subníveis. Assim, se no cemitério


de Santo Amaro os corpos são comparados a comboios que che­
gam à “estação dos trens” (p. 224), a morte se faz ainda mais múl­
tipla no da Casa Amarela: “parada de ônibus,/ com filas de mais
de cem” (p. 225). Em escala maior de miséria , ocupando a larga
base da pirâmide, surgem os retirantes severinos: “E a gente dos
enterros gratuitos/ e dos defuntos ininterruptos” (p. 227). Para

112
esses homens expulsos do interior e marginalizados na capital, o
coveiro apresenta uma sugestão:

— Na verdade, seria mais rápido


e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte. (p. 228)

A partir daí, quando Severino parece propenso a seguir a


proposta,

A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia (p. 230)

opera-se uma mudança no modo de o protagonista relacionar-se


com os demais personagens. Com efeito, o discurso de Severino
se vinha caracterizando por uma afirmação de vida, corroída sis­
tematicamente por todos os encontros que efetuara desde o sertão.
Agora, passa a sustentar um discurso de renúncia,

E chegando, aprendo que,


nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia, (p. 229)

que será rebatido pela conclamação à resistência efetivada por


novo personagem (seu José, mestre carpina):

— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço, (p. 231)

A presença de seu José propicia a passagem para o que

113
Benedito Nunes chamou “o auto dentro do Auto”2 com a transpo­
sição à paisagem nordestina dos elementos que tradicionalmente
representam a celebração do nascimento de Cristo, e a esperança
num tempo mais justo que daí decorre. A identificação entre seu
José/são José, além da homonímia se faz pelo ofício de ambos (a
carpintaria) e pela alusão a Nazaré (da Mata), local de origem do
mestre carpina.
O diálogo entre José e Severino — este querendo “saltar nu­
ma noite,/ fora da ponte e da vida” (p. 233) — se interrompe
quando se anuncia ao primeiro o nascimento do filho, através do
mesmo verbo (“saltar”) que acabara de designar a desistência de
viver:

Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida? (p. 233)

A função sacralizadora do auto dentro do Auto é neutraliza­


da pela vinculação do “celebratório” à contingência da realidade
mais “impura”3. Assim, se o início da fala dos vizinhos ainda
segue o modelo tradicional, de celebração (“Todo o céu e a terra/
lhe cantam louvor”, p. 233), evoca-se em seguida um ambiente
corroído e putrefato, que suspende momentaneamente suas carac­
terísticas:

— Foi por ele que a maré


fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
— E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante, (p. 234)

A adoração dos reis magos é representada pelas pessoas que


oferecem prendas ao recém-nascido. Vozes anônimas que se soli­

2 Nunes, Benedito. Op. cit.. p. 85.


3 Ibidem, p. 88.

114
darizam no mesmo refrão: “Minha pobreza tal é”. Em seguida,
enumeram-se os presentes, que visam, com poucas exceções, a
necessidades básicas de sobrevivência:

— Minha pobreza tal é


que coisa não posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar.

— Minha pobreza tal é


que não tenho presente melhor:
trago papel de jornal
para lhe servir de cobertor (p. 235)

O próximo passo são as profecias de duas “ciganas do


Egito”. Seus vaticínios, no entanto, não indicam a ultrapassagem
da condição severina. A primeira delas prevê ao menino um ciclo
que, partindo de formas inferiores de vida, atingirá a condição
animal para, em seguida, retornar ao estágio inicial:

aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, com goiamuns

depois, aprenderá com


outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.

e vejo-o, ainda maior,


pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão, (p. 237)

Não há propriamente uma oposição entre os augúrios da pri­


meira e da segunda mulher; esta, apenas, sem romper a linha con­
tínua de miséria (“também venho dos Egitos,/ vou completar a fi­
gura”, p. 237, grifamos), associa o futuro da criança a uma reali­
dade que diverge não em natureza, mas somente em grau, da pre­
vista pela primeira. Pescador ou operário, a cicatriz da impureza
persistirá como o traço definidor de sua existência:

Não o vejo dentro dos mangues,


vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina (p. 238)

A comunidade se reúne para celebrar a formosura do recém-


nascido. Novamente', o encantatório cede lugar a uma visão críti­
ca. Louvam-no como símbolo de uma resistência coletiva ao
império da morte (“mas a máquina de homem/ já bate nele, inces­
sante”, p. 239), e, por isso, o com param a tudo que também
expresse um obstinado empenho em sobreviver:

— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.

— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva, (p. 239)

A fala final do texto endossa a afirmação vital que Severino


tanto buscara durante sua retirada. A “máquina de homem”, mes­
mo sujeita a múltiplas opressões externas, encontra em si própria
a dinâmica e a razão que a fazem prosseguir:

E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;

116
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina. (p. 241)

Morte e vida severina e Paisagens com figuras consubstan­


ciam propostas divergentes: nesta última, João Cabral freqüente­
mente operava com modelos do real, abstraídos a partir da senso-
rialidade paisagística. No auto de natal, as reflexões sobre a lin­
guagem (embora não ausentes) são menos explícitas. Daí advém
um grau maior de transparência discursiva, próprio da segunda
água cabralina, em que o real se representa mais enquanto evento
do que enquanto sistema. Se, no nível dos fatos narrados (e dra­
matizados), se privilegia a concretude referencial do universo
severino, as figuras retóricas dessa paisagem — como já observa­
mos — irão reforçá-la ainda mais, na medida em que literalidade
e imagem são construídas sob o comando comum dos signos do
concreto.

117
IX — A ética da corrosão

Uma faca só lâmina (1955), como o seu subtítulo indica


(ou: serventia das idéias fixas), se constitui na culminância de al­
gumas das obsessões que vinham marcando a poesia de João
Cabral. A primeira vista, o texto surge como radicalização da
“primeira água” : discurso voltado para o fazer(-se), em que o
exercício da metalinguagem, autocentrando o poema, o desviaria
da espessura do real. Pensamos, todavia, que, não obstante, a
hipertrofia dos dados da “composição”, a nova obra situa-se na
encruzilhada dialética das “duas águas”, pois, ao questionar os
mecanismos da linguagem, o poeta não os dissocia de sua eficá-
çia no nível do uso: de sua serventia. ,A^própria noção de carên­
cia.— atributo.maior da faaysò lâmina-— não se reduz ao papel
cV de estratégia composicional. Ultrapassando o âmbito da reflexão

r poética, instala-se num universo mais amplo, da experiência


humana1. ^ * y0 . ;
Ademais, entre as duas investidas (na composição/na comu­
nicação) não deve haver lugar para nítidas barreiras: O cão sem
plumas foi um exemplo. Nele, a construção do poema como ato de
linguagem não excluía um heterodirecionamento referencial; ape­
nas, esse movimento passou pelo questionamento das condições
em que o discurso pode atuar eficazmente como articulador dos
espaços “textual” e “real”. Antes de incorporar uma realidade
èxtíadiscursiva, o poeta examina, pesa,i testa a viabilidade do sal-

1 Merquior, José Guilherme. Op. cit., p. 149.

119
.J Jo j A.partir, sobretudo, de O engenheiro\ João Cabral passou a des-
r yencilhar-se de tudo o que — vinculado à_metafísica do sujeito —
não lhe permitia responder a um aprendizado da co n cretu d eA
oct j Assim. ísüa poética combate o que, na tradição lírica, pertence
j l antes à mitologia do sujejtCLdo que à carência do objeto: q onírico,
- obscuro, o confidencial — categorias que se podem associar a
uma concePÇão egocráticaj da literatura, y . ' : f. '
Uma faca só lâmina, enTSOTS dez segmentos, em suas oiten­
ta e oito estrofes de quatro versos, em seus trezentos e cinqüenta
!e dois hexassílabos, é o último poema longo em que João Cabral
yocalizou as condições do “fazer” (sem que, insistamos, tal “fa-
jzer” seja unicamente “poético”, e sem que a preocupação com o
(“comunicar” não lhe seja correlata). Se a metalinguagem. explíci-
ta ou não, continuará sendo um dos eixos propulsores de seu per­
curso poético, é Ujiiü faca só lâm ina/i textQ mais sistematizado,/
a matriz de que muitos poemas posteriores se valerão para reto­
mar, numa^espécie de diálogo crítico, as idéias propostas neste
texto-base.
A parte inicial.(sem a nomeação alfabética que caracteriza­
y rá o poema
A a 1partir do 1próximo segmento)
G _K estampa^oa^cês-gran-
,
? des núcleos de idéias fixas a desenyolv er — balai relógiç, faca/—
j - ■ na condição de comparantes sem comparados, como bem obser-
, vou Benedito Nunes2:
-< _ Xj Y^: \ /' ■
Assim como umaíbala /
i w-, . t a l '
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso I t-Cr ' X- d-
um dos lados do morto; , ;•-> /,.? c? I o
~".i Jo pá
assim como umaí bala
do chumbo mais pesado, __ bs> ■
no músculo de um homem o
pesando-o mais de um lado; r v-
— pJlJijá'- dc,: - o-
qual bala que tivesse
umfvivo mecanismoTV
-t=r-------------- - i ■ / /V
&C. í
aVí>
t
bala que possuísse o■ 1~ - -----
umícóração ativo

2 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 99.

120
igual ao de um Relógio!
submerso em algürrrcorpo,
ao de um relngio vivo -b>
e também revoltoso,

[relógio que tivesse


!o gume de uma faca
e toda a impiedade -> j Tf;
de lâmina azulada;
— ^ V
assim como uma faca \ i . I j. f ■i ^
que |em bolso oiiijainhã'.' ei> vj^Q ?a> O -.*• ••••- f
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima ^


ou faca de uso interno, ;
habitando num corpo "í
como o próprio esqueleto —

de um homem que o tivesse, ^ ; ^


e sempre, doloroso. •*------ — {</„•,< !' a '- /c n.:-,r , •
de Homem que se ferisse
contra seus próprios ossosj(p. 187-188) :
■d
I ■-if ;
/ O comparado — a ausência — surgirá apenas no segmento c
( posterior. Desta maneira, o "vazio Se diz exatamente pela ausência
i do próprio signo que o nomearia.
O encadeamento de imagens cria níveis sucessivos de afas-
tamento do real. Com efeito, se “Assim como uma bala” já se ?
identifica, de saída, como uma figura, o relógio, por sua vez, se ^
define em relação à bala: imagem de segundo grau. A faca é com-
parante de relógio: imagem de terceiro graur Examinemos mais
atentamente o registro de cada um desses elementos: a balasse
condensa em chumbo, e entre bala/chumbo se destaca a m esm a
I relação (de matéria) que vincula faca/lâmina. Observemos q u eü .
esse prolongamento metonímico dos dois termos (bala c facaj.se..
] contrapõe um trajeto metafórico do terceiio: “um. coração. íitivo/
l igual ao de um relógio’’. O texto todo operará com disseminações
; metonímicas entre bala e faca, e com sucessivas apreensões meta-
' Joricas do relógio: gaiola, coração,, abelha. ^
. y
y' I ^ 121 j Sy4r zc
i /• ., v ' ( ' J , ,, J' ■ 1'Ji.olMir.,^ i,/l
Esse estatuto particular dò relógio, (como veremos) não fica­
rá sem conseqüências. Cotejado aos outros elementos, seu menor
grau de contundência já se patenteia no modo menos agudo de
interiorização: é algo submerso, a que se contrapõem a bala enter­
rada e (com percussão ainda maior) a faca “parte/ de vossa ana-
] tomia”. Impossível da penetração literal de bala e faca, é o relógio
[ o único objeto da tríade cujo adentramento no corpo humano se
j coloca forçosamente como “figura de linguagem”.
I Neste segmento introdutório, enquanto o humano é situado
na morte (“um dos lados do morto”), os três termos minerais se
caracterizam pela vida (^balai com yivQjnecanismo, faca habitan­
do um corpo) e pela insulmíissão (relógio) “também revoltoso”). E
a taca. desde logo, marcará sua diferelíça. É a única que traz fim
si um postulado ético: “e toda a impiedade/ de lâmina azulada” J2
certo que a ética da corrosão e da impiedade passará também, aser
atributo dos demais termos — mas sob esse “impulso” inicial da
faca^Klém disso, análoga àcarência que busca instaurar, e la é o
único elemento a ser especificado porísubtraçãcP. faca(sèfft) bolso
ou bainha (compare-se a bala “que possuísse / um coração” e a
relógio “que tivesse! o gume”^/S.e bala_ e relógio sc definem por
incorporação, a faca* ao ser acionada,Já se apresenta co m e como
um “sinal de menos”. Ela será “o melhor/ dos símbolos usados”,
e isso se afere, ainda, sob o aspecto quantitativo. Em todo o poe­
ma, o par faca/lâmina surgirácinqüenta e sete vezes?7bala/chum­
bo, vinte e três; relógio (atestando sua força menor), dezenove.
Temos, assim, nas oito primeiras estrofes do poema, o deli-
neamento de um projeto de corrosão, que, acentuado em bala e
faca, e aflorado em relógio, se concentrará, no segmento A, na
ausência. Antes de analisá-lo, tentemos demonstrar os processos
de imbricamento tramados por João Cabral:

TERMO ORIGINAL ESPECIFICAÇÕES DO TERMO U- a "


í MECANISMO VIVO 7 c■f
BALA
l CORAÇÃO ATIVO vko icfofic
í GUME / ck u -
RELOGIO
l LÂMINA AZULADA Jc,.-.
FACA ► | SEM BOLSO
SEM BAINHA I^ ^ ’ba
I l vy\
Como vemos, a especificação metafórica de um elemento é
sempre baseada em metonímia do elemento seguinte. Cumpre, to­
davia, reiterar a constituição menos “sistemática” de relógio^n=.
quanto faça irrompe a partir de dua.s incitações metonímicas
(gume, lâgiina), o relógio se apoiaránumacaracterização também
metafórica (coração)^Outra divergência: bala e faca partem do
exterior para atingir o interior (do corpo) — e esse percurso é
similar à viagem conceituai (de adentramento da realidade) que o
poema propõe. Ora, a máquina-relógio vigora, aprioristicamente,
dentro de um espaço já interno; vive “em jaula” (Serial, p. 91).
Não representa, desse modo, a conquista de um novo território.
Dela, a melhor lição não virá da contundência, mas do ritmo, do
aceso mecanismo.
A primeira estrofe do segmento A

Seja bala, relógio,


ou a lâmina colérica, ^
é contudo uma aúsêriciaj” '
o que esse homem leva. (p. 188)

agrupa a tríade mineral na direção comum da ausência. Levar o


vazio como opção, não como contingência, é o modo de propiciar
um investimento mais ávido frente ao real:

nenhum [símbolo] melhor indica


aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca


entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente. (p. 189)
I - v Jiõ ■'!■'>- y «'Q i
A Os três termos, nivelados pela carência, voltarão a indivi­
dualizar-se, e sua redistribuição os devolverá (com os mesmos
atributosjjia mesma ordem em que surgiram na parte introdutó­
ria. D^'bala; reitera-se o chumbo (“tem o ferro do chumbo”, p.
188); do rélógio, a viva engrenagem (“pulsando em sua gaiola/
sem fadiga, sem ócios”, p. 188); daffaca, a lâmina e sua ética (“é

123
a lâmina cruel”, p. 188). Nessa nova aparição, contudo, os ele-
imentos se enriquecem de novos matizes. Na bala, por exemplo,
/ fala:se da “fibra compacta” (p. 188) — e já sabemos que o elogio
jdo compacto, ou, se preferirmos, o desprezo pelo etéreo, é outra
j “idéia fixa” de João Cabral, o_c j t j o pj>c , a i / r í
! —- (A faca é o_símbolo mais potente e apto para operar e cortar
o vazio füéela que melhor e mais diz a ausência. O poeta explicita
as razões da escolha:

Por isso é que o melhor


dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se dé Pasmado):

porque nenhum indica


essa ausência tão ávida
I como a imagem da faca
í que só tivesse lâmina (p. 188)

Já comentamos a incidência do procedimento de “dar a ver”


a própria elaboração do texto na obra cabralina^fSem sermos
exaustivos, podemos falar de imagens hipotéticas (cf. “Estudos
para uma bailadora andaluza”, Serial, p. 127-134), imagens auto-
destruídas (cf. “Imagens em Castela”, estrofe 8, p. 248), imagens
relativizadas (cf. “O vento no canavial”, estrofe 8, p. 250), ima­
gens endossadas graficamente (cf. “Paisagem pelo telefone”,
Quaderna, estrofe 12, p. 136 omo ponto de convergência, o
desm ascaram ento das pretensões ilusionistas do discurso
literário. _
'7 Tendo um sinal de menos (ausência de cabo), a faca signifi­
ca mais do que os outros elementos, que não sofreram, como ela,
um processo de condensação. Por isso, apesar de o poeta preten­
der minimizar a eleição do “símbolo melhor”,

Das mais surpreendentes

. 1 ç -joccij j aca ou qualquer metáfora


y , í\ pode ser cultivada, (p. 189. Grifamos)
oq!>Lo
f/K-.V,----------
3 Lima, Luiz Costa. Op. cit., p. 257.

124
explora, a seguir, quase unicamente a ação da faca:

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua. (p. 189)

Escolhendo-a como objeto privilegiado de seu “cultivo”, o


poeta enumera, por seu turno, quais os elementos que a faca,
então sujeito, ataca para sua própria subsistência. Mas, à seme­
lhança da fome, a lâmina crescerá por uma ausência do objeto que
cultiva. Esse crescimento pelo vazio é o modelo gerador das ima­
gens deste segmento, centrado em antíteses e na busca do avesso:

Do nada ela destila


a azia e o vinagre

aQârninajSespida
que cresce ao se gastar,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte

(Que a vida dessa faca;


se mede pelo avesso:'(p. 189-190)

Observemos, ainda, o intercâmbio de parcelas de significa­


ção entre os três termos básicos do poema. O atributo do ritmo, da
precisão (relógio), antes transferido à bala (segmento introdutó­
rio) é agora incorporado à lâmina:

E como facayque é,
fervorosa e'enérgica,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa: (p. 189: Grifamos)

y [jS máquina, no universo cabralino, é sempre captada-por


. dentro, como engrena pem de um modelo infatigável. Nada mais
avesscTà celebração utilitária da máquina: ela interessa a João
Cabral na medida em que representa uma certa forma de produzir,
de ordenar o real, de combater-lhe a entropia. Na estrofe acima,

125
outra “idéia fixa”: a da força centrífuga, que explode de si mesma,
sem estímulos externos. Dentre os textos que retomam a propos­
ta, citemos “Diálogo” (espada “que deserta se incendeia”, p. 265),
“Estudos para uma bailadora andaluza” (que é capaz “de incen­
diar-se com nada/ de incendiar-se sozinha”, p. 128) e “A paio se­
co” (Quaderna). O canto a paio seco exige, “sem tempero ou aju­
da”, “o ser-se ao meio-dia” (p. 161). Colocando-se sob o signo da
claridade, da secura e do vazio, e deixando que o objeto “seja” por
si, d poeta tenta não selransferir à “atmosfera” da coisa;, opera
i nela-coisa,.desentranha-lhe o avesso. E essa penetração antiem-
páticajjreside, na poesia de João Cabral, a várias metáforas, de
*'; cirurgia, do ato jiteralmente operatório do escritor.
O segmento C enumera as precauções de que se deve cercar
r. a tríade para evitar que perca seu poder de agressão e agudeza, e
: em dois níveis: a perda no próprio elemento e no elemento em
P contato com um alvo. Assim, no primeiro caso, a bala “seus den-
^ tes já /..../ os traz rombudos” (p. 190); no segundo, os dentes “se
Q embotam mais no músculo” (p. 190). O relógio pode apresentar
um coração “espasmódico” (p. 190), ou seu ritmo pode desvir­
tuar-se “com o pulso do sangue” (p. 190). Quanto,à fuca^ “a_hai-
nha.-do corpo/ pode absorverxLaço” (p. 191)j3ii “seu corte às
vezes/ tende, a tornar-se rouco” (p. 191).
Neste segmento, e no anterior, o jogo de encadeamentos
metafórico-metonímicos apresenta grau ainda maior de comple­
xidade e recíproca infiltração. Indicamos abaixo o desdobramen­
to dos termos iniciais:
' ^ ^ ■ 3'
J- BALA — CHUMBO — DENTES
i FACA — LÂMINA — BOCA' '
4 ' RELÓGIO — CORAÇÃO — PULSO
J 'M
Constatamos que o relógio continua sendo o elemento me­
nos forte da série, na medida em que remete, por metáfora, exclu­
sivamente ao mundo animado, sem apresentar a mesma consis­
tência, mineral-metonímica, de chumbo e lâmina. Ainda: a bala
se enfraquecia em contato com o músculo. Ora, o relógio é cono-
tado exatamente por coração: traz em si a metáfora do que deve
ser evitado pela bala. Por outro lado, acentua-se, entre esta e a
faca, a solidariedade de suas representações: já unidas metonimi-
camente em chumbo/lâmina, terão seus respectivos desdobra­
mentos metafóricos (dentes/ boca) interligados por nova relação
de contigüidade.
“Cuidado com o objeto,/ com o objeto cuidado” (p. 190).
Todo o segmento é uma incitação à vigília contra o que seja sinô­
nimo de irregularidade, fraqueza ou decadência. O pulso do reló­
gio não deve imitar o pulso humano, onde o sangue bate “já sem
morder mais nada” (p. 191). E o corte da faca às vezes “tende a
tornar-se rouco/ e há casos em que ferros/ degeneram em couro”
(p. 191). Estabelece-se uma hierarquia de contundência, que sub­
mete o reino animal (couro) ao mineral (ferro). Na estrofe seguin­
te, também o vegetal será visto como categoria inferior:

O importante é que a faca


o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira, (p. 191)

O segmento D analisa o que, no anterior, era simples pre­


nuncio: a perda do estado de vigília, pelo desaparecimento do po­
der de corrosão — perda intrínseca ou devida a desgaste de agen­
te externo.
^ Assim como atribuíra à lâmina um poder aulogcxativo.,. ago­
ra João Cabral lhe. confere uma capacidade autodestrutiva:

Pois essa faca às vezes


por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague


e somente adormeça, (p. 191)

A ressalva, que desloca a faca da extinção (o apagar-se) ao


sono, deixa implícita a possibilidade de ressurgimento de seus
atributos, momentaneamente em suspenso. E o que se efetiva na
derradeira estrofe:

(Porém quando a maré


já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais), (p. 192)

A degenerescência do metal será metaforicamente expressa


por sua conversão a outras matérias. O processo, já presente em
C, é agora ampliado:

tudo segue o processo


de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,


ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel. (p. 192)

Apesar da junção dos três termos em torno de “madeira”, sa­


liente-se mais uma vez a primazia do símbolo-faca: é o seu pro­
cesso que será imitado pelos demais; é tambémfc único elemento
| cuja...decadência, ainda comporta um sinal de menos: faca sem.
. I vértebras.
I P O quinto segmento trata do segundo tipo de desgaste: o
Jlí> oriundo de um contato efetivo com o espaço externo. Indica as
precauções que se devem tomar para que a tríade não perca a con­
tundência. E o melhor antídoto contra a decadência é a interiori-
zação:

Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura (p. 192)
\--
^Relâmpago” não é apenas o que brilha; significa, primor­
dialmente, o que ofusca, agride em luz; essa valorização da agres­
sividade é retomada duas estrofes abaixo, onde os três elementos
são equiparados a “brasa”: aquilo que, aceso, queima.
A noção de umidade também se associa, metalingüistica-
mente, à produção do discurso “confessional-romântico”,

128
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências), (p. 192)

enquanto a faca opta por “câmaras severas” (p. 193). Instada a


explodir, a lâmina deve buscar paisagem análoga à dureza e ao
rigor que traz em si. O externo responde ao desafio da carência
buscada pelo metal:

Mas se deves sacá-los


para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.
D
Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro
sem sombra e sem vertigem, (p. 193)

/ A cutnplicidade entre a lâmina e uma natureza cáustico-cor-


rosiva demonstra-se no fato de o sol mineralizar. o vegetal (“à fe-
V 1bre desse sol/ que faz de arame as ervas”, p. 193), numa réplica ao
estágio degenerativo que marcou a “maré-baixa” do metal.
O segmento F, invertendo a exposição ao aberto do anterior,
opera com a interiorização máxima dos elementos, a tal ponto .que
eleS;e o corpo atingidoíformam u m ã!iajIãidãdE -João Cabral
A declara a irreversibilidade da condição-faca — uma vez adquiri­
da, não pode ser banida nem por gesto voluntário (“ninguém do
próprio corpo/ pode retirá-la”, p. 194), nem por ação exterior:

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha, (p. 194)

No próxim o segmento, um novo bloco de imagens vem


reforçar as qualidades já enunciadas dos três elementos, numa
espécie de diálogo com as imagens da parte introdutória. Nela, a
bala era “do chumbo mais pesado”; aqui, retoma-se o elogio da

129
espessura, pois ela “faz menos rarefeito/ todo aquele que a guarde”
(p. 195). Na introdução, o relógio possuía vivo mecanismo; agora,
é “indócil e inseto” (p. 195). A faca era “íntima”, “de uso interno”,
“habitando num corpo/ como o próprio esqueleto”; agora,

O fio de uma faca


mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando, (p. 195)

Ressalte-se que, como na “Fábula de Anfion”, o reino ani­


mal é valorizado enquanto potencial de agressão. Na parte E,
Cabral falara da “carne selvagem” da faca; em G, o que designa
sua ação é o verbo morder. A agressividade animal não se consu­
ma apenas ofensivamente; implica, também, a vigília defensiva
— imagem do que, no homem, é arma contra a diluição:

pois lhe mantendo vivas


todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo


que a guarda crispado
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago (p. 195)

De proposta existencial, o texto se canaliza, na seção H,


para o universo específico da criação literária:

Quando aquele que os sofre


trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca. (p. 196)

Inverte-se a ordem de apresentação dos elementos: pela pri­


meira vez, o relógio inaugura um segmento. Embora a imagem
preponderante continue a ser a da faca, é lícito supor que o sím­
bolo menos forte se coloca em primeiro lugar por ser o deflagra­
dor das metáforas do trabalho contínuo que os poetas-operários-

130
tla-linguagem devem desenvolver. A diluição existencial comba­
lida na seção anterior encontra eco na diluição da potência lírica:

Os homens que em geral


lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

palavras que perderam


no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal. (p. 196)

O criador não é quem “sabe fazer” (produção “acadêmica”),


nem quem se recusa o fazer, mas o trabalhador que aprende, ao
apreender o real, a manipular a máquina de linguagem posta a ser­
viço dessa apreensão:

Pois somente essa faca


dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário (p. 196)

A parte inicial do segmento I (oito primeiras estrofes) mos­


tra o itinerário de concretude que a faca impõe aos objetos com
que se defronta, modelando-os à agudeza de seu corte:

Em volta tudo ganha


a vida mais intensa
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado


que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas, (p. 197-198)

131
As derradeiras estrofes de Uma faca só lâmina efetuam,
como observou Benedito Nunes4, o desmonte e a inversão do per­
curso metafórico do poema,

pois de volta da faca


se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,


a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada (p. 198-199)

partindo-se da imagem de terceiro grau (faca), desta à de segundo


(relógio), daí à de primeiro (bala), numa espécie de work in regress.
Em seguida, dá-se o salto para fora da tríade (“e daí à lem­
brança/ que vestiu tais imagens”, p. 199) até se atingir a realida­
de, cuja força supera a do discurso:

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,


prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta, (p. 199)

(-ji • Haveria aí uma confissão do fracasso da linguagem? Não é


'exatamente desse modo que encaramos o final do poema.IXquÊ
se diz 6 que j5~realidade;ejnquanto processo é inapreensível, não se
esgotando em nenhum a de suas m anifestações5. João Cabral
rejeita o idealismo da Totalização; o discurso poético, renuncian­
do ao silêncio ou à autocomemoração, traduz, assim, o preenchi­
mento, parcial e possível, de uma incompletude, que persiste
sempre em aberto. Por isso, se quiser preenchê-la — “toda ima­
gem rebenta”.

4 Nunes, Benedito. Op. cit., p. 102.


5 Merquior, José Guilherme. Op. cit, p. 154.

132
X — O controle do discurso

Com Quaderna (1959), João Cabral de Melo Neto retoma


uma abrangência temática já expressa em Paisagens com figuras:
o Nordeste, a Espanha, e o diálogo entre ambos, marcados pelo
vetor comum de uma condição humana definida pelos signos da
carência e do menos. Quaderna, todavia, não se limita a esse hori­
zonte: pela primeira vez na obra cabralina destaca-se a presença
do feminino como referência do poema. Esse fato, evidenciado
em oito dos vinte textos do livro, não deve, porém, conduzir-nos a
crer que haja homogeneidade na captação da mulher. O novo
objeto será apreendido sob vários ângulos, e servirá a diversas
intenções. O único aspecto verdadeiramente unificador da aborda­
gem do feminino é o padrão formal dos poemas a que ele, femini­
no, comparece. Um exame atento da metrificação, do esquema
rímico e da estrofação do livro nos leva a uma constatação: se
excluirmos “Jogos frutais” (peça, como veremos, atípica enquan­
to organização de verso), o espaço onde cabe a mulher apresenta­
rá oito ou doze estrofes; terá sempre versos heptassílabos; se
constituirá através de uma única rima toante. Temos, assim:

— “Estudos para uma bailadora andaluza”— seis partes de


oito estrofes em redondilha maior; primeira parte: rimas
em /i/, segunda em /e/, terceira em /i/, quarta em /i/, quin­
ta em /e/, sexta em lil.
— “Paisagem pelo telefone” — doze estrofes em redondilha
maior; rimas em /i/.
— “A m ulher e a casa” — oito estrofes em redondilha
maior; rimas em /a/.

133
— “A palavra seda” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em /e/.
— “Rio e/ou poço” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em lei.
— “Imitação da água” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em /i/.
— “Mulher vestida de gaiola” — doze estrofes em redondi­
lha maior; rimas em /i/.

A verificação do esquema rímico e da metrificação, quando


não reduzida a simples tabela de incidência, pode assim revelar-
se como atividade de grande valia: em João Cabral, tão conscien­
te das barreiras retóricas que se impõe (cf. entrevista, p. 331), a
coincidência que assinalamos aponta para a produção de sentido.
Para falar da mulher, as regras do jogo retórico serão as acima
levantadas. Por isso, não incluímos na rubrica “tematização do
feminino” o poema “História natural”: é composto em hexassíla-
bos e em rim as consoantes, dois traços que o distinguem do
modelo geral. Nesse texto, além disso, em momento algum o poe­
ta descreve a mulher: detém-se nos sucessivos estágios por que
passa um casal em seu relacionamento erótico, numa linguagem
a que falta a intensa sensorialização que marca os demais poemas.
Falamos, no tocante à elaboração discursiva do objeto
mulher, em angulações diferentes que modulavam a presença
comum do feminino. Cabe, agora, tentar a explicitação das dife­
renças, o que propiciará a formação de dois grupos em proporção
bastante desigual: o primeiro se resume a “Estudos para uma bai-
ladora andaluza” ; o segundo engloba os restantes. A utilização
das pessoas gramaticais do discurso (segunda ou terceira) já é um
critério para o estabelecimento das dessemelhanças entre os gru­
pos. Em “Estudos para uma bailadora andaluza”, terceira pessoa;
nos outros, segunda. Nesse último caso, a cumplicidade lingüísti­
ca imediata entre o sujeito lírico e seu objeto repercutirá numa
percepção que será a de um olhar a incidir diretamente num cor­
po. Em “Estudos para uma bailadora andaluza”, o olhar recairá
sobre uma atividade, a dança, de que o corpo se faz veículo.
Ademais, ao dar-se em espetáculo “a quem está na assistência”
(p. 132), a mulher rompe a esfera de privacidade que é a tônica do
segundo grupo.

134
Os oito segmentos desse poema desenvolvem um trajei o
que põe em relevo, de um lado, a situação que se representa, e, de
outro, o questionamento da própria possibilidade de representa­
ção. O movimento da bailadora se exerce numa espécie de palco
duplo, em que ao desafio da dança corresponde o desafio à lin­
guagem que tentar sua apreensão:

Dir-se-ia, quando aparece


dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo


que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,


de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva. (p. 127)

De início, há uma fórmula hipotética (“D ir-se-ia”) cujo


preenchimento pelo signo “fogo” se torna, assim, passível de
endosso ou contestação. Em seguida, o desdobramento do texto
polariza para o campo da imagem-hipótese um circuito metafóri­
co que a decompõe. Ao “deflagrar” o fogo, o poeta lhe empresta
sintagmas realimentadores, redes verbais de sustentação (“gestos
do fogo”, “carne de fogo”); evita que um novo filão de imagens
possa penetrar no poema antes que a pertinência do símile inicial
tenha sido posta à prova. Outra observação — válida para todo o
universo feminino da poesia de João Cabral — é que, afastando-
se do termo comparado, o investimento sensorial (bem como seu
efeito erótico, conforme verem os mais tarde) incrusta-se no
comparante:

Então, o caráter do fogo


nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,

135
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza. (p. 127)

O comparado, não obstante, ressurge obliquamente, pois


encontra um canal de ressonância nos vocábulos que, metonímias
do corpo da bailadora (cabelo, língua, nervos), compõem as ima­
gens do fogo. Duplo e recíproco movimento: a mulher se minera-
liza na matéria ígnea, e o fogo se animiza nos elementos humanos
a ele outorgados.
Nas estrofes subseqüentes, o com parante será rejeitado,
numa afirmação da incompatibilidade da “figura” para com a
“paisagem” feminina que ela quis abarcar. O segmento se encerra
pelo retorno ao termo inicial, já enriquecido de um vazio — o do
símile descartado por insuficiência:

Porém a imagem do fogo


é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz


de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha, (p. 128)

Mais uma vez, reciprocidade entre os termos: assim como a


mulher repercutiu metonimicamente nos “nervos” do fogo, este
agora cede sua “faísca” para a caracterização do humano.
O segundo segmento abandona o símile mineral para incor­
porar simultaneamente a imagística animal e a humana:

Subida ao dorso da dança


(vai carregada ou a carrega?)

136
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua. (p. 128)

A estratégia de captação, todavia, não se alterou: o desdo­


bramento das imagens levará à conclusão de que, em separado,
ambas são insuficientes:

e que é impossível traçar


nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é a égua e a cavaleira, (p. 129)

Mas, se atentarmos bem, verificaremos que a rejeição dos


comparantes deste segmento não é idêntica à do anterior: agora, o
poeta recusa a fratura de sua imagem dupla (égua e cavaleira),
negando que a um único signo-base (bailadora) deva correspon­
der um único signo conotativo. A premissa da correspondência
entre unidades é corroída, macrotextualmente, pela acumulação
de termos que dizem a bailadora; microtextualmente, pela convi­
vência e conivência do duplo (égua/cavaleira) no mesmo segmen­
to, na mesma quadra, no mesmo verso.
Assiste-se, progressivamente, à liberação do trânsito do sig­
no “bailadora” na direção de camadas imagísticas aparentemente
arbitrárias como motivação inicial (telegrafia, segmento 4; árvo­
re, 5; espiga, 6), mas que deixam de sê-lo pela fala didática do
poema: ela justifica a inclusão dos sucessivos elementos, pinçan-
do neles as parcelas de significações aptas a expressar o movi­
mento do corpo em dança.
O desnudamento do processo de aproveitamento ou descar­
te de imagens e a desconfiança frente aos preenchimentos meta­
fóricos da linguagem são fatores que dizem respeito a um modo
de estruturação, mais do que a um sentido que dele decorre. Ou
melhor — o sentido básico é indagar como se dá a produção de
sentido:

já não cabe duvidar:


deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,

137
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida, (p. 130)

Nesse exemplo, patenteia-se o diálogo isomórfico entre o


que o texto evoca e a produção lingüística da evocação: a imagem
da dicção “linear, numa só corda” atribuída à dança projeta-se na
palavra “tão morse e tão desflorida” do poema — à base de aná-
foras, epístrofes, intencionais redundâncias léxico-sintáticas. A
fatura m etalingüística do texto se faz à revelia do enunciado
explícito; intromete-se, sub-reptícia, nas frases que, dizendo a
bailarina, com ela aprendem a melhor maneira de dizê-la. O seg­
mento final acentua o enlace entre dança e poesia:

Parece que sua dança


ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.

a imagem que a memória


conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga, (p. 133-134)

O vocábulo “imagem” surge apenas na primeira e na última


estrofe; nesta, porém, associado à memória e ao futuro do indica­
tivo, ergue uma promessa de resistência não compartilhada por
qualquer outro termo, donde se infere ser a espiga “o melhor/ dos
símbolos usados” (p. 188). Ora, analogamente ao desnudamento
da folhagem, o poeta se despojou de várias comparações para
reter apenas a da espiga — discurso metalingüístico que, aparen­
temente, não põe em questão esse nível: ele circula, infiltrado no
próprio espetáculo da dança.
O segundo grupo de textos com temática feminina se marca,
conforme assinalamos, pela utilização da 2? pessoa gramatical. O
eu-lírico não se incluirá diretamente no espaço que descreve, e o
tornará infenso ao sentimento amoroso. Os poemas não se subdi­

138
vidirão em segmentos, porque prevalecerá o sistema de desdobra­
mento de uma só imagem-base, sem a linha heterogênea (já que
tecida em campos semânticos díspares) de “Estudos para uma
bailadora andaluza”. No interior do grupo, composto por “Paisa­
gem pelo telefone”, “A palavra seda”, “Rio e/ou poço”, “Imitação
da água”, “Jogos frutais”, “A mulher e a casa” e “Mulher vestida
de gaiola”, será lícito operar um novo recorte; mas assinalemos,
antes, que todos os textos se irmanam por estampar no título a
metáfora nuclear a ser desenvolvida para a elaboração do femini­
no, a saber; a gaiola, a casa, a fruta, a água, o rio e/ou poço, a pala­
vra (e a coisa) seda, a paisagem. O subgrupo 1, composto dos cin­
co primeiros poemas acima citados, valorizará o mineral líquido;
eventualmente incluirá metáforas vegetais e incorporará o topos
nordestino; mas, sobretudo, referenciará um espaço aberto. O
subgrupo 2, composto de “A mulher e a casa” e “Mulher vestida
de gaiola”, já indica a afinidade dos textos a partir de seus pró­
prios títulos: coincidência de vocábulo “mulher” e existência de
um suporte simbólico ancorado na noção de fecham ento que
“casa” e “gaiola” compartilham.
“Paisagem pelo telefone” é poema divisível em duas partes
delimitadas pelo ponto que encerra um primeiro e longo período
gramatical espraiado por sete estrofes. A primeira, com a relação
voz/luz,

Sempre que no telefone


me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida (p. 134)

deflagra a apreensão sinestésica visual-auditiva que predominará


em todo o texto: a luz como tradução metafórica da em issão
vocal. Nas três estrofes seguintes,

sala que pelas janelas,


duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia


no prumo do meio-dia,

139
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda (p. 135)

mais do que descrever a mulher, o poeta descreve sua contigüida-


de, iniciada (estrofe 1) com “sala”. Há uma contínua gradação no
alargamento do campo de referência: da “voz ao telefone” chega-
se ao ponto máximo do “Nordeste de Pernambuco”.
O caráter de fechamento consubstanciado em “sala” é cor­
roído em várias frentes, na busca de um horizonte que o subverta.
Assim, o prim eiro elemento invasor é luz\ a seguir, janelas,
duzentas, com sua transparência para o externo. Manhã de praia
condensa o tecido de ar e água que, afinal, estampa o aspecto
simultaneamente luminoso e líquido, mas sempre transparente,
dessa voz de mulher.
À expansão máxima do espaço (estrofe 4), responde a retra­
ção, também máxima, contida nas estrofes 6 e 7,

[velas] que, como muros caiados


possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste


de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham (p. 135)

através de “muros caiados” e de “cristais que dentro tinham”. A


paisagem metafórica inaugurada por “sala” retorna a um signo do
fechamento (“muro”), mas o trajeto das imagens alterou os dados
da questão: agora não é mais o externo (luz) que libera o interno;
é o próprio interno (cristais) que encontra os meios de sua libera­
ção, dentro da mesma perspectiva de endosso às forças que se
geram independentes de auxílio de fora (“possuem luz intestina”).
A segunda parte do texto, também expressa por um só perío­
do gramatical, reitera o foco de expansões metafóricas líquido-
luminosas a partir do “ponto zero” —■a voz ao telefone:

140
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

[eu diria] que estavas de todo nua,


só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal


seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas, (p. 135-136)

O “ponto zero” já perdeu, nesta parte, a vizinhança fechada


(da sala) que o emoldurara na parte anterior; e, diversamente do
que lá ocorrera, a captação do poeta cola-se à presença imaginá­
ria da mulher, nas marcas do “tu” que percorrem todas as estrofes.
A lição de desvelamento apreendida na paisagem natural se trans­
fere para a paisagem do corpo feminino (“estavas de todo nua”) e
acarreta igualmente o desnudamento do próprio discurso enquan­
to materialidade gráfica: “sim, como o sol sobre a cal/ seis estro­
fes mais acima”.
A oscilação etéreo/líquido na caracterização do feminino
resolve-se pela eliminação do primeiro termo em “Rio e/ou poço”
e “Imitação da água”. “Rio e/ou poço” produz uma curiosa rever­
são do par horizontal x vertical, ao propor que a melhor imagem
da verticalidade feminina seja a da horizontalidade do rio, e que
ao poço corresponda a mulher deitada. O poeta cria essa antítese
aparente ao reter, de rio e poço, apenas as noções de “movimen­
to” e “estaticidade” . Desfaz-se o paradoxo se associarm os a
mulher “vertical” ao estanque, e a “horizontal” ao fluido:

Quando tu, na vertical,


te ergues, de pé em ti mesma,
é possível descrever-te
com a água da correnteza;

141
só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda. (p. 165-166)

“Imitação da água”, como “Paisagem pelo telefone”, reme­


te à tensão espaço interno x externo (mulher na cama x onda no
mar), mas, ao contrário da construção à base de metáforas grada-
tivam ente am plificadas de “Paisagem pelo telefone” (sala
---- >- p ra ia---- >- Nordeste), elabora-se em imagem única, com­
pactuando assim, na urdidura de seu discurso, com o idêntico pro­
cesso de enovelamento da onda em si mesma:

De flanco sobre o lençol,


paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.

Uma onda que parava


ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava


naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila, (p. 175)

Há novamente um desvio do ponto de referência (a mulher),


em prol da reverberação imagística que ele propõe; mas, à manei­
ra do que vimos em “Estudos para uma bailadora andaluza”, o ser
vivo se reintroduz metonimicamente na caracterização metafóri­
ca do ser inanimado: “a pálpebra da onda/ cai sobre a própria
pupila”.
De “Rio e/ou poço”, constatamos o jogo entre o fluido
(onda) e o estanque (montanha), vazado embora na oposição (lá
inexistente) entre sólido x líquido:

Uma onda que parara


ao dobrar-se, interrompida,

142
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista

e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda. (p. 175)

O desejo de solidificar o líquido remonta à opção pela for­


ma domável, menos fugidia — por horizontal e fixa — e onde,
portanto, a consciência se pudesse deter sem o risco da instabili­
dade. Daí as imagens que procuram cristalizar o m ovim ento
(“Uma onda que parava” ; “que contivesse um m om ento/ seu
rumor”). O corpo da mulher se imobiliza numa espécie de instan­
tâneo imune às flutuações da temporalidade. Assim, o poema
refuta qualquer referência ao transcurso do tempo, optando por
expressar a mulher enquanto movimento represado no espaço.
Conforme verificam os em “Estudos para uma bailadora
andaluza”, a linguagem que cria o objeto poético é também a lin­
guagem que exam ina a própria possibilidade de criação.
Fenômeno análogo ocorre em “A palavra seda”:

A atmosfera que te envolve


atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras


impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa


não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda. (p. 159)

A exem plificação das palavras “im possíveis de poem a”


(podemos falar, a propósito de João Cabral, numa “poética da
especificação”) é contradita pela própria utilização dos vocábulos
“interditos” . Nesse jogo ambíguo repousa (ou inquieta-se) a rede

143
de significação do texto: ela utiliza certos signos (ouro, seda) na
expectativa de remover-lhes as conotações já sedimentadas pelo
uso. Para combater a metáfora-clichê, o poeta percorre, inicial­
mente, um trajeto de esvaziamento do signo, desobstruindo-o
daquilo que o costume lingüístico estatuíra ser sua “verdade”:

E é certo que a superfície


de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem da superfície


luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”, (p. 159)

A poética de desconfiança frente ao universo de conotações


é traço marcante da arte cabralina. Em “Antiode”, João Cabral
escrevera: “Flor é a palavra/ flor” (p. 336); a manutenção dessa
postura atravessa toda sua poesia. Se, por exemplo, observarmos
grande parte da produção romântica brasileira, verificaremos que
a incorporação do real não tinha como pressuposto uma travessia
na linguagem. O real era concebido como um mundo de signifi­
cações externas, atreladas às coisas; a consciência ingênua acre­
ditava que falava diretam ente de coisas, e não de palavras.
Comparar a amada às rosas e às estrelas era aceitar um código
envelhecido da linguagem, mascarado enquanto construção para
se pretender como inocência de discurso “natural”. Ora, quase
tudo que se postula “natural” postula também (mesmo implicita­
mente) a discriminação do que seja a “boa” (a sua própria) natu­
reza e do que sejam seus (inaceitáveis) “desvios”. Em outros ter­
mos: seleciona o que cabe “naturalmente” no texto e o que dele
deve ser proscrito.
A essa tutela, subterrânea ou não, se submeteram os discur­
sos que endossaram a coibição das “violências de linguagem”
(temas “escabrosos”, léxico de extração popular etc.), ignorando
que qualquer criação é, em si, um ato de violência, uma forma
nova de assédio ao real, que será tanto mais fecundo quanto mais
violar as pontes e balizas já demarcadas pela mumificação dos
significados, pela diluição do complexo no esquemático. A super­

144
fície “luxuosa, falsa, acadêmica” assim é a partir de um lugar his­
tórico da linguagem, embora o discurso “natural” simule um cará­
ter não-situado: o que não teve “começo” certamente não terá
“fim” — ambos se perdem na “eternidade da natureza”. Nas pri­
meiras estrofes do poema, João Cabral amputou dos signos os
significados comprometidos com a diluição, deixando como cica­
triz um significante vazio, determinado pela ausência e pelo não.
Em seguida, re-significa os vocábulos, mas atento à perspectiva,
ao ponto que tornou possível o discurso renovado:

Mas em ti, em algum ponto,


talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,

há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta •
persiste na coisa seda. (p. 159 -160)

Não se veja contradição entre o que afirmamos — a inge­


nuidade de se opor o signo à coisa — e os dois versos finais: a coi­
sa seda é também a palavra da coisa (como flor é a palavra flor),
mas já reconstruída, em contraposição à palavra gasta dos versos
iniciais.
“Jogos frutais” , mais longo poema desse subgrupo (e de
Quaderna), é, como dissemos, o texto feminino mais atípico no
que tange à estrofação e ao esquema rímico. Com efeito, estende-
se por vinte e oito estrofes de sete versos, cada uma, por seu tur­
no, passível de divisão, entre uma quadra inicial (marcada por um
ponto) e um terceto; há, em conseqüência, dois períodos gramati­
cais completos por estrofe. A rima, toante, se distribui de modo
bastante flexível; apenas uma linha básica pode ser verificada: a
presença de ao menos três vogais tônicas idênticas em cada estro­
fe, à exceção da vigésima e da vigésima-quinta; em três estâncias
há cinco versos rimados entre si.

145
O título — “Jogos frutais” — prenuncia um componente
lúdico a intervir na fatura do texto. E, de fato, o poeta se compraz
em jogos de aproximações e de afastamentos entre a mulher e as
frutas do Nordeste. Até a sétima estrofe, as aproximações giram
em tomo da textura, dos cristais internos (cf. “Paisagem pelo tele­
fone”), do motor animal, da concisão e da tensão (cf. “Estudos para
uma bailadora andaluza”) que mulher e fruta propiciam. A seguir,
se rejeitam as frutas que não ofereçam uma lição de forma, e, por
oposição, se valoriza a cana-de-açúcar, “que é pura linha” (p. 180).
E nunca é demais reiterar a técnica de deslocamento no tratamento
do tema erótico; o poeta, desviando-se (aparentemente) do objeto
feminino, efetua intensa sexualização das imagens que o conotam:

O mesmo metal da cana


tersa e brunida
possuis, e também do oiti,
que é pura fibra.
Porém profunda
tanta fibra desfaz-se
mucosa e úmida

Fruta que se saboreia,


não que alimenta:
assim descrevo melhor
a tua urgência.
Urgência aquela
de fruta que nos convida
a fundir-nos nela. (p.180-181)

A dim ensão da temporalidade, entrevista na estrofe 16


(“Não te vejo em semente,/ futura e grávida”, p. 181) como con­
vite à fruição do presente, assume um desenvolvimento mais
ostensivo a partir da estrofe 19; num aproveitamento do ciclo ver-
dor-m adureza-degenerescência da fruta, surgem os adjetivos
“jovem ” (3 vezes), “verde” (6), “m aduro/a” (2), “podre” (2),
“corrupta/s” (2). A corrosão do tempo encontra barreira na pre­
servação da memória:

Não és fruta que o tempo


ou copo de água

146
lava de nossa boca
como se nada. (p. 183)

A intensificação da carga erótica do poema pode ser busca­


da em seu registro estésico, predominantemente visual em outros
textos do feminino. Aqui, é também gustativo (et pour cause),
olfativo,

Não és uma fruta fruta


só para o dente,
nem és uma fruta flor,
olor somente.
Fruta completa:
para todos os sentidos,
para cama e mesa. (p. 181) -

e tátil:

E há em tua pele
o sol das frutas que o verão
traz no Nordeste.

É de fruta do Nordeste
tua epiderme;
mesma carnação dourada,
solar e alegre, (p. 178-179)

A toda uma imagística luminosa, vem unir-se, no final do


poema, o gosto da “manga mórbida,/ sombra e langor” (p. 183).
Essa conjunção é um dos dados fundamentais do texto: a fruta
jovem já prenuncia um “leve sabor de podre” (p. 183). Ou seja: a
instalação na momentaneidade do gosto-prazer não consegue
abolir uma dimensão prospectiva nela incrustada “como a fruta
dentro da casca” 1.
Os dois poemas femininos subordinados à imaginação do
fechado são, conforme dissemos, “A mulher e a casa” e “Mulher
vestida de gaiola”. No primeiro, o fechamento se estabelece pela
incorporação do externo:

1 Assis, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, 2a
ed„ p. 259.

147
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Seduz pelo que é dentro,


ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas; (p. 153)

A tensão externo/interno, num primeiro exame, evoca a


situação de “Paisagem pelo telefone”; mas, neste poema, a área
de fechamento era minada desde a estrofe inicial, quando a voz já
se liberava num espaço de luz. Agora, embora não hostil ao exter­
no, o feminino busca seduzi-lo à casa-corpo, invertendo o circui­
to macrotópico da voz ao telefone. Enquanto a voz tinha na ultra-
passagem do fechado (sala) sua linha de força, a casa convida à
permanência no recluso, em metaforização do ato sexual:

os quais [espaços de dentro] sugerindo ao homem


estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem


efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la. (p. 154)

Em sentido oposto, “Mulher vestida de gaiola” representa o


espaço interno refratário à invasão do externo:

Parece que vives sempre


de uma gaiola envolvida,
isenta, numa gaiola,
de uma gaiola vestida,

de uma gaiola, cortada


em tua exata medida
numa matéria isolante:
gaiola-blusa ou camisa, (p. 176)

148
A mulher cabralina, mesmo em sua recusa ao externo, não
se veda de todo: está em gaiola', nova versão da mulher vestida de
água (“Paisagem pelo telefone”), desnudada em espiga (“Estudos
para uma bailadora andaluza”) ou ainda em casa que se abre em
“riso franco de varandas” (p. 153). Mas, “isenta, numa gaiola”, a
referência feminina do texto apresenta um traço específico: não
há alusão a sua forma ou movimento a não ser em termos estrita­
mente defensivos. O que era oferta ostensiva em “Jogos frutais”
transmuda-se em resguardo; o fechado não surge para abrir o
compasso ao aberto, representado pela tentativa de invasão do
pássaro ao território-reduto do corpo feminino:

por que (o pássaro] deseja assaltar


precisamente a área estrita
da gaiola em que resides,
melhor: de que estás vestida? (p. 178)

Se os poemas femininos de Quaderna se situam no campo do


descoberto (patente ainda no fato de não haver referência às vestes
da mulher, salvo a “gaiola” e as saias sucessivamente despidas da
bailadora andaluza), o único texto a se ocupar da paisagem es­
panhola — “Sevilha” — se pauta pela imagística do encobrimento:

§ A cidade mais bem cortada


que vi, Sevilha;
cidade que veste o homem
sob medida.

Justa ao tamanho do corpo


ela se adapta,
branda e sem quinas, roupa
bem recortada, (p. 166)

Aqui, todavia, e diversamente do constrangimento entre o


externo e a gaiola, o fora — a cidade-roupa — se harmoniza com
o dentro — o homem que a habita ou veste — e nessa confluência
o espaço urbano recebe significados derivados da relação erótica:

Que ao sevilhano Sevilha


tão bem se abraça

149
que é como se fosse roupa
cortada em malha.

E mais que intimidade [o sevilhano usa Sevilha]


até com amor,
como um corpo que se usa
pelo interior, (p. 166-168)

Sevilha convertida em roupa: um dos recursos metafóricos


de que João Cabral se vale é o da míniaturização do real, numa
espécie de “topografia do mínimo”. Os grandes espaços referen­
ciais podem ser compartimentados, fracionados (cf. a viagem de
O rio), quando não reduzidos a miniatura simbólica. A contenção
da grandeza referencial, atada à contenção retórica, se traduz, em
livro posterior (Serial), na existência de textos dedicados à ara­
nha, ao relógio, ao ovo de galinha. Destaquemos que, ao projetar
em escala microtópica o real (como o arquiteto em sua prancha),
João Cabral trabalha um universo domável/desmontável em seus
elementos constituintes, o que é relevante para um poeta cujo
“olho é tacto” (“Escritos com o corpo”, Serial, p. 56).
Assinalemos em “Sevilha” outro procedimento caro ao poe­
ta: a repercussão progressivamente interiorizada da imagem. Ela,
ao invés de atingir faixas de referência cada vez mais amplas
(como em “Paisagem pelo telefone”), passa a retrair-se por conti-
güidade,

§ O sevilhano usa Sevilha


com intimidade,
como se só fosse a casa
que ele habitasse.

Com intimidade ele usa


ruas e praças;
com intimidade de quarto
mais que de casa.

Com intimidade de roupa


mais que de quarto;
com intimidade de camisa
mais que casaco, (p. 167-168)

150
recurso análogo ao utilizado na parte IV de O cão sem plumas
(1950):

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele. (p. 316)

Quaderna apresenta outro poema de motivo espanhol, sem,


todavia (como em “Sevilha”) privilegiar um espaço geográfico; a
ênfase, agora, recairá no espaço cultural (e nas implicações esté­
ticas) do cante “A paio seco". O texto se divide em quatro seg­
mentos: 1) definição do cante; 2) relação entre o cante e o silên­
cio; 3) redefinição do cante; 4) exemplificação de situações e de
objetos a paio seco.
Na parte 1, o cante, através de discurso conceituai, é asso­
ciado às noções de economia (1.1), solidão e claridade (1.2):

1.1 Se diz a paio seco


o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a paio seco


a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino. (p. 160)

Os três versos iniciais atestam a solidariedade entre o concei­


to expresso e a palavra que o revela, na medida em que a concisão
do cante se faz acompanhar da progressiva redução das formas lin­
güísticas do texto, até o atingimento desadjetivado do signo cante.
A revitalização do clichê “sol a pino”, transformado em meridiano
silêncio (verso 8), prepara o diálogo com 3.2, onde o poeta dirá da
verticalidade, do movimento ascensional, que o cante abraça.

151
Em 1.2, ressurge outra imagem advinda do “repertório de
ascese” que o poeta m aneja desde “Fábula de A nfion” : a do
deserto.

1.2 O cante a paio seco


é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar


num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha. (p. 160-161)

A semelhança entre o itinerário anfiônico e a caracterização


do cante não deve ocultar uma diferença básica: nada mais, em
João Cabral, remete à tentação de silêncio de que padecera o perso­
nagem da fábula. Mantém-se a moldura, mas o quadro, agora, é o
da positividade da voz. Projetado num horizonte de sólida solidão
(“só a lâmina da voz/ sem a arma do braço”, 1.3, p. 161), o cante,
num rigor anti-retórico (“sem tempero ou ajuda”, 1.3, p. 161), exi­
ge a contundência da luz, para que sua prática não se impregne da
aura-diluidora-de formas que a noite carrega em seu bojo (1.4):

é um cante que exige


o ser-se ao meio dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia. (p. 161)

A contundência do cante, em 2.1, é condensada na imagem


do diamante, pedra capaz de cortar a resistência do silêncio. Todo
o segundo segmento se estabelece na relação tensa e hostil com
que silêncio e cante se defrontam. Formalizado no sólido (2.1),
no líquido (2.2, 2.3, 2.4) e no etéreo (2.4), o corpo-silêncio reve-
la-se apto a ocupar qualquer fresta inadvertidamente aberta pelo
canto. E, se o líquido é o agente corrosivo mais enfatizado (“apo­
drecendo o cante / de dentro, pela espinha”, p. 162), ele o é por
atingir o âmago de um canto que se define como seco.
Para consumar o canto, consumir-se nele — única via para
derrotar o silêncio:

152
3.1 A paio seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:

enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego, (p. 162-163)

A oposição cantar x calar percorre a terceira parte do poe­


ma, onde, conforme dissemos, se redefine o cante — agora,
mediante imagens que trazem em si o antídoto do silêncio:

3.2 A paio seco é o cante


de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio

3. 3
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente. (p. 163)

Finalmente, a parte 4 opera a extensão do sentido do cante,


transposto de modo de cantar a modo de existir. 4.1 é demonstra­
ção da técnica de intensificar pela subtração, tão marcante na
poesia cabralina:

4.1 A paio seco canta


o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a paio seco canta


ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio. (p. 164)

Trata-se de um processo imagístico que define o objeto, de


início, pela exclusão de um contexto referencial mais “poético”

153
(“sem bosque”) e o transfere a outro sem circulação no discurso
lírico (“fio de cobre”); depois, subtrai o próprio termo inicial
(“sem qualquer pássaro”), destacando o mineral como presença
mais contundente, como permanência final. A parte 4.2 consolida
a vitória do mineral como símbolo mais efetivo do cante', “bigor­
na”, “martelo” e mesmo o pássaro araponga, “que inventa o pró­
prio ferro” (p. 164). A força mineral também atinge 4.3, onde o
domínio especificamente musical do cante é extrapolado para que
ele abarque, literalmente, “situações e objetos” (p. 164): “a ele­
gância dos pregos”, “o arame dos insetos” (ibid.).
As estâncias finais sintetizam a didática do poema:

4.4 Eis uns poucos exemplos


de ser a paio seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não o de aceitar o seco


por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente, (p. 164-165)

O contraste entre aceitar e empregar é bastante revelador:


não a constatação irremediável de uma secura, mas sua busca
deliberada; uma secura ativa, avessa à retórica da melodiosidade
e do entorpecimento — no cante, sim, mas também na condição
a paio seco da existência.
A secura-condição-de-vida reaparece ainda num texto que
engloba as paisagens mineralizadas da Europa e do Nordeste.
Referimo-nos a “Poema(s) da cabra” . Na desinência, plural, o
poeta sugere a convivência de dois poemas num só, ou de um tex­
to embutido no outro. Dividido (pelo sinal de parágrafo) em onze
partes, o poema admite a cisão conjunta de suas extremidades
(“parágrafos” 1 e 11), criando assim, de 2 a 10, um segundo tex­
to. Três critérios justificam o recorte: a) 1 e 11 são as únicas par­
tes que vêm entre parênteses, implicando espaço discursivo dis­
tinto; b) apenas em 1 e em 11 se abrigam referências à paisagem
européia (o Mediterrâneo e suas margens) — entre 2 e 10, ou a
cabra é descrita sem determinação geográfica, ou é associada ao
solo nordestino; c) há um emprego sistemático do grifo na última

154
estrofe de cada parte do “poema 2”. Ausente de 1 e 11, o grifo é
uma espécie de condensador temático dos segmentos.
A primeira parte do “poema 1” arma-se na dialética entre
ocupação e resistência:

§ (Nas margens do Mediterrâneo


não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo


não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

não se vê um palmo de terra,


por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.) (p. 168-169)

Invasão da pedra sobre a terra; invasão da cabra sobre a


pedra; simultaneamente, resistência da cabra sobre a terra-pedra,
através da técnica (de extração barroca) de “dissem inação” e
“colheita”: terra, pedra e fera se espalham pelas estrofes iniciais
para serem reagrupadas na derradeira, onde o elemento mineral é
subjugado pela tenacidade do animal cabra.
O último segmento, aproximando Mediterrâneo e Sertão,
trabalha o binômio ordem/desordem:

§ (O Mediterrâneo é mar clássico,


com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú. (p. 174)

Se a oposição entre o “clássico” e o “sem estilo” se sustenta


em nível de paisagem, não se sustenta em nível de seus habitan­
tes; a diferença cede vez à identidade:

155
Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos das do Moxotó). (p. 175)

É basicamente da “atmosfera maior” do signo cabra que o


“poema 2” vai tratar. Seus nove segmentos propõem uma viagem
conceituai em torno do núcleo “cabra” que, pouco a pouco, tem
seu raio de significação ampliado até transformar-se em símbolo
das condições de vida do homem nordestino. Esse adentramento
conceituai despreza o dado empírico em prol da “atmosfera”, às
vezes colidente com a aferição objetiva:

§ O negro da cabra é o negro


da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara. (p. 170. Grifamos)

Até o sétimo segmento do “poema 2” o discurso não se des­


via do animal-cabra. O oitavo e o nono, porém, desvelarão o
alcance efetivo desse signo, transpondo-o a outros contextos que
também partilham do “núcleo de cabra”:

§ Um núcleo de cabra é visível


por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Os jumentos são animais


que muito aprenderam da cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta. (p. 173)

Finalmente, o nono segmento é inteiram ente dedicado à


absorção do “núcleo” pelo habitante do Nordeste:

A cabra deu ao nordestino


esse esqueleto mais de dentro:

156
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento, (p. 174)

Assim entendido, o “poema 2” se permite uma leitura re­


trospectiva, pela qual podemos atribuir ao homem o mesmo esta­
tuto e a mesma estatura existencial da cabra. Ou seja: os termos
grifados (como o aço do osso), que, antes do segmento 9, eram
tributados apenas ao animal, passam a ser atribuíveis também ao
nordestino, então definido (entre outras designações) como ser
mais barato (segmento 1), apenas côdea (3) e capaz de pedra (6).
Se “Poema(s) da cabra” falou da obstinação e da resistência
do homem, há outros textos que falarão de sua morte: os que
tematizam os cemitérios do Nordeste. Em “Cemitério alagoano
(Trapiche da Barra)”, existe a retomada do tópico (cf. O cão sem
plumas, p. 313) da ação sanativa do mar:

Sobre uma duna da praia


o curral de um cemitério,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antissético. (p. 134)

O registro da “ação sanativa” é uma das idéias fixas do poe­


ta. O que tende a atravessar sua obra é mais o conceito da “ação”
do que um signo que privativamente o expresse. Algo análogo à
“condição cabra”, que, uma vez detectada, se concretiza em áreas
diversas — e que, por isso mesmo, se enriquece: sua atribuição ao
humano, por exemplo, implica a mobilidade do conceito, mas
nunca o seu abandono.
“Cemitério pernambucano (Floresta do Navio)” é, na série,
o poema que mais particularmente reativa as implicações entre
linguagem e metalinguagem:

Antes de se ver Floresta


se vê uma Constantinopla
complicada com barroco,
gótico e cenário de ópera.

É o cemitério. E esse estuque


tão retórico e florido
é o estilo doutor, do gosto
do orador e do político,

157
de um político orador
que em vez de frases, com tumbas
quis compor esta oração
toda em palavras esdrúxulas,

esdrúxula, na folha plana


do Sertão, onde, desnuda,
a vida não ora, fala,
e com palavras agudas, (p. 151-152)

A “dicção em preto e branco” do poeta privilegia espaços


que lhe aprofundem o exercício de depuração. Daí o tom crítico
que perpassa o texto, incidindo num território assinalado não pela
elipse, mas pelo excesso. O discurso, ironicamente, infla-se à altu­
ra do objeto, hiperbolizando o que já seria, em si, um referencial
de pretensão hiperbólica: “se vê uma Constantinopla/ complicada
com barroco”. O embate entre o dizer inflado e o dizer a paio seco
se verifica na contraposição dos três versos que designam o cemi­
tério na estrofe 1 (versos 2, 3 e 4) e a incisão com que ele é referi­
do no início da estrofe 2: “E o cemitério”. Nessa estância, o obje­
to cemitério volta a servir de base à crítica da linguagem propen­
sa ao enfático (“o estilo doutor”). A confluência do objeto e da
ornamentação discursiva que dele emana, por conotação, surge
ainda na estrofe 3. A inadequação do cemitério (e da linguagem a
ele similar) à concepção do Nordeste cabralino se explicita na
estrofe 4, onde o esdrúxulo torna-se agudo, o “cenário de ópera”
cede o passo à “folha plana”, o estuque se desmascara em nudez,
e a oratória se transmuda em fala contida. Em todo esse ciclo, o
que era abundância se transforma em lição de severa economia.
Em “Paisagens com cupim”, poema da série nordestina, o
mesmo termo antes aplicado ao “belo” (a paisagem feminina) o
é a um inseto (cupim), demonstrando a incorporação de realida­
des consideradas não-poéticas, ou antipoéticas, pela tradição do
discurso lírico.
O texto percorre a temática da decomposição ou desagrega­
ção do que antes era matéria sólida, revelando ainda o esforço no
sentido de combater a degenerescência. A passagem do sólido ao
liqüefeito é sustentada por imagens de corrosão do “núcleo
cupim”, expandidas em duas direções: uma líquida (os “cupins do
mar”) e outra sólida (os “cupins do canavial”); neste caso, o con­

158
fronto se dá entre elementos igualmente portadores de consistên­
cia (canavial x cidade, por exemplo), mas tal equivalência é des­
feita pela adjunção metafórica do líquido ao canavial: o “mar
canavial”. Ou seja: como a cana-cupim leva à diluição, é conota-
da nas reverberações do signo “água”.
Dessa paisagem diluída, excetuam-se — metalicamente —
Recife, Moreno e Paulista:

Essas existem matemáticas


no alumínio de suas fábricas.
Essas têm a carne limpa,
embora feia, em série, fria.

O cupim não lhes dá combate:


nelas motores vivos batem
que sabem que enquanto funcionem
nenhuma ferrugem os come. (p. 151)

As partes 1 e 10 do poema centram-se no Recife; as oito


intermédias captam o predomínio do cupim sobre uma paisagem
a que não comparece o ser humano, salvo através de raras alu­
sões; uma delas é a herança “do m estre-de-obras português”
(p. 150), ocasião para nova crítica à exuberância “de fachada” do
barroco:

Eis os pais de nosso barroco,


de ventre solene mas oco
e gesto pomposo e redondo
na véspera mesma do escombro, (p. 150)

Pertence ainda à série de poemas nordestinos “De um


avião”, que descreve os sucessivos graus de afastamento propi­
ciados por um avião que parte do Recife. O texto revela as altera­
ções de percepção paisagística, desde a mínima até a máxima dis­
tância frente à matéria visível (e, simetricamente, da atuação
mínima à máxima da memória):

1. Se vem por círculos na viagem


Pernambuco — Todos-os-Foras.

159
Se vem numa espiral
da coisa à sua memória.

O primeiro círculo é quando


o avião no campo do Ibura.
Quando tenso na pista
o salto ele calcula, (p. 136)

Vir “da coisa à sua memória” se aproxima da “imagem que


a memória/ conservará em sua vista” (“Estudos para uma bailado-
ra andaluza”). O distanciamento do objeto é, em paradoxo apa­
rente, o melhor modo de nele se penetrar. A contradição desfaz-se
quando vinculamos o objeto à sua capacidade de resistência fren­
te ao processo seletivo da memória. Daí a utilização, na primeira
estrofe, de duas imagens que embasam o movimento do texto: de
um lado, a espiral, relativa ao trajeto gradativamente ascensional
do vôo; de outro, o círculo: o vôo circular acabará recuperando
seu ponto de partida. A volta, pela ação da memória, ao objeto
primeiro já fora o percurso registrado em Uma faca só lâmina:

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda, (p. 199)

O suporte circular e o tema da viagem são dois elementos


que unem Uma faca só lâmina e “De um avião”. Mas o que, no
poema de Quaderna, se propõe ser um roteiro espacialmente bali­
zado (da terra de Pernambuco às altitudes que a elidem, para que
a memória possa recuperá-la) é, no outro texto, uma viagem con­
ceituai, em que os “círculos” não marcam distâncias físicas, e sim
graus superiores de abstração, metáforas de metáforas de metáfo­
ras. Sob esse contraste porém, ambos os poemas, reencontrando-
se no círculo, aterrissam graças ao solo comum da memória, ins­
tância que busca resgatar o que serviu de incitação ao ato da escri­

160
ta. Em Uma faca só lâmina, como vimos, a emulação (indistinta)
do real; em “De um avião”, seu componente especificamente
humano:

até aquilo que, por primeiro


se apagar, ficou mais oculto:
o homem, que é o núcleo
do núcleo de seu núcleo, (p. 142)

161
XI — As vozes de fora

( Dois parlam entos (1960), composto por “Congresso no


Polígono das Secas” e “Festa na Casa-grande”, é livro de particu­
lar importância na obra de João Cabral, pois representa o (até ago­
ra) fecho de uma vertente praticada desde O cão sem plumas: a do
poema longo de temática social. Por “temática social” entende­
mos não a mera referência a um contexto que abarque a coletivi-
\ dade; a isso acrescentaríamos a problematização das relaçõesjjtíe
coorçi&muiL (e subordinami-o viver comunitário/. Nesse sentido,
\D o is parlamentos se aproxima de O cão sem plumas, O rio e
Morte e vida severina, mas à sintonia da matéria social devemos
acrescer o contraste das angulações sob que ela é proposta, para
que não entendamos a nova obra como simples retomada do dis­
curso das três anteriores.
Diversamente das imagens líquidas dos textos precedentes
(pois sustentadas pelo curso do Capibaribe), pertencerá à terra o
núcleo metafórico de “Congresso no Polígono das Secas”. A ter­
ra, é certo, estava presente em O rio e Morte e vida severina, mas
na condição de elemento de trânsito: sob a pisada do retirante, ou
parceira paralela aos rios do sertão, ela se ofertava como o palco
de uma travessia a todos os que, homens e rios, dela queriam
fugir. Em “Congresso no Polígono das Secas”, não se pode falar
da travessia humana, mas, antes, de sua paragem final: a morte.
João Cabral especifica que o poema tem “ritmo senador;
sotaque sulista”, acusando o distanciamento entre a palavra e a
realidade que ela pretende significar. Distanciamento em dois
níveis: social (em “senador”) e espacial (em “sulista”). O discur-

163
so de quem fala está, assim, duplamente apartado da coisa de que
fala. Essa “descontaminação” do objeto traduz-se pela ausência
de empatia com que ele é tratado; o registro de sua condição é
meramente constatativo:

1
— Cemitérios gerais
onde não só estão, os mortos.
— Eles são muitos mais completos
do que todos os outros.
— Que não são só depósito
da vida que recebem, morta.
— Mas cemitérios que produzem
e nem mortos importam.
— Eles mesmos transformam
a matéria-prima que têm. (p. 103)

Ao retirar a voz ao sertanejo, João Cabral, ironicamente,


delega-a a quem, de modo literal, não pode falar (sotaque sulista)
em seu nome; a um parlamento cujas várias vozes (cf. emprego
do travessão) só alcançam repetir os mesmos fatos ancorados
num presente do indicativo que abriga, ad infinitum, a aporia de
um real insustentável.
Os cemitérios gerais, o império unânime da morte, ocupam
a totalidade das 16 estâncias do poema, divisível em quatro gran­
des blocos estróficos de numeração intervaladamente regular: I)
estrofes 1, 5, 9, 13; II) 2, 6, 10, 14; III) 3, 7, 11, 15; IV) 4, 8, 12,
16. Seja nessa ordem sintagmática do texto, seja na recomposição
da ordem numérica consecutiva (ou qualquer outra), a leitura
pouco se alteraria, dado o caráter reiterativo da obra, armada num
tabuleiro lingüístico com peças autônomas para os mais diversos
encadeamentos. Todavia, ao propor os dois acessos (o que acima
explicitamos e o de numeração contínua), o poeta introduz no tex­
to dois tipos de seqüência rítmica, privilegiando ou a identidade,
ou a diferença, como se verá adiante. Cada estrofe se compõe de
16 versos: a metrificação dos 4 primeiros será (com pouquíssimas
exceções) repetida, também de 4 em 4, pelos 12 versos restantes.
No esquema abaixo, registramos a metrificação-base de todos os
blocos; a lista da direita assinala o número de sílabas dos 4 sub­
conjuntos de 4 versos que formam cada estrofe:

164
I) estrofes 1, 5, 9, 13 6 - 8 - 8-6
II) estrofes 2, 6, 10, 14 8 - 6 - 6-8
III) estrofes 3, 7, 11, 15 8 - 8 - 6 -6
IV) estrofes 4, 8, 12, 16 6 - 6 - 8-8

Delineiam-se com clareza as vias formais de acesso a que


nos referimos: a leitura numericamente salteada (1, 5, 9, 13 etc.)
se compõe de estâncias com o mesmo esquema silábico (logo, rit­
micamente apoiadas em identidade); a leitura contínua (1, 2, 3, 4
etc.) incide, de estrofe a estrofe, numa alternância métrica,
expressão da diferença rítmica.
Outro princípio unificador dos blocos com as estâncias
intervaladas é a presença, em todas elas, de um primeiro verso (e
de parte do segundo) em comum:

I) estrofes 1, 5, 9, 13 “Cemitérios gerais/ onde não....”


II) estrofes 2, 6, 10, 14 “Nestes cemitérios gerais/
não há....”
III) estrofes 3, 7, 11, 15 “Nestes cemitérios gerais/ os
mortos não....”
IV) estrofes 4, 8, 12, 16 “Cemitérios gerais/ que não....”

A morte e o não se constituem, assim, em dois grandes pro­


pulsores de sentido. Mas uma indagação permanece: a que esse
não se dirige? A resposta é surpreendente: à própria morte. Não
se trata de uma contraposição vida x morte, em que a resistência
ao último termo se cristalizaria na negativa em aceitá-lo. O não
do texto, sua marca distintiva, aponta para os vários tipos de mor­
te que não sejam a dos cemitérios gerais; deles os cemitérios pres­
cindem, pois já são “muito mais com pletos/ do que todos os
outros”. Resta-nos especificar como se atinge essa completude;
os processos dominantes são: o despojamento (estrofes 2, 4, 5, 6,
7, 8, 12, 16) e a coletivização (3, 9, 10, 11, 13, 14, 15). Apenas a
primeira estância se esquiva desse binômio, centrando-se, antes,
nas etapas de produção que nivelam os cemitérios a uma fábrica
de morte:

— Eles mesmos [os cemitérios gerais] transformam


a matéria-prima que têm.
— Trabalham-na em todas as fases
do campo aos armazéns.

165
— Cemitérios autárquicos,
se bastando cm todas as fases.
— São eles mesmos que produzem
os defuntos que jazem. (p. 103)

O ritmo febril e fabril da vida se transporta à indústria da


morte, designando-lhe os sucessivos estágios, desde o reçebimen-
to do corpo-matéria-prima até sua nadificação absoluta nos últi­
mos versos da última estrofe: “como uma gotaI de nada em outra
de nada”, p. 112). Por outras palavras: trata-se, no território cole-
tivizado da morte, de se atingir o despojamento do nada. Con­
quanto o coletivo e o despojado se entrelacem na topologia dos
cemitérios gerais, podemos acompanhar o contorno específico
dessas categorias, a partir, inclusive, da própria distribuição temá­
tica que o poeta operou: em nenhuma estrofe paira ambigüidade
sobre o predomínio semântico do menos (o esvaziamento do
homem e de sua morte) ou do mais (a amplitude numérica do
fenômeno).
O despojamento, num momento inicial, se refere à ausência
de signos que caracteriza o cemitério dos anônimos, em contrapo­
sição aos “signos do belo” do cemitério convencional:

5
— Cemitérios gerais
onde não é possível que se ache
o que é de todo cemitério:
os mármores em arte.
— Nem mesmo podem ser
inspiração para os artistas,
estes cemitérios sem vida,
frios, de estatística, (p. 103)

Situado no plano da não-artistificação previsível (“o que é


de todo cemitério”), o Polígono das Secas reclama para si uma lin­
guagem avessa aos topoi utilizados no discurso sobre outras reali­
dades — assim o tema da “inspiração criadora”. Desvinculando-
se do mito de arte como inspiração, um dos legados mais persis­
tentes das estéticas anteriores ao século XX, o texto se encaminha
para o repúdio de qualquer liame supra-racional entre o sujeito e
sua verbalização. Atentemos para o fato de que o poeta não

166
assevera a impossibilidade de “fazer arte” com os cemitérios
gerais, o que seria uma contradição irremovível pela existência
mesma do poema; o que ele recusa é uma arte em “mármores”.
Num segundo momento, a ótica do despojamento aparenta
ser bem mais restrita — vai do todo à parte, passando do cemité­
rio ao morto:

2
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á a m o r t e e x c e s s o .
— E l a n ã o d á a o m o r t o
m a i o r v o l u m e n e m m a i s p e s o . (p . 1 0 5 )

Continuamos, contudo, no domínio da generalização, uma


vez que o morto desindividualizado é metonímia de todas as mor­
tes da região. E, analogamente à “máquina da vida” que o poeta
busca na matéria que pulsa, interessa a João Cabral a compreen­
são da “máquina da morte” que age no ser inerte; eis-nos, ainda,
no território da produção, e não do produto:

— A m o r t e a q u i n ã o é b a g a g e m
n e m e x c e s s o d e c a r g a .
— A q u i , e l a é o v a z i o
q u e f a z c o m q u e s e m u r c h e a s a c a .
— Q u e e s v a z i a m a i s u m a s a c a
a li á s n u n c a p l e n a .
— E l a e s v a z i a o m o r t o ,
a m o r t e a q u i , j a m a i s o e m p r e n h a .
— A m o r t e a q u i n ã o i n d i g e s t a ,
m a i s b e m , é m o r t e a z i a .
— E o q u e c o m e p o r d e n t r o
o i n v ó l u c r o q u e n a d a e n v o l v i a , (p . 1 0 5 )

A morte é, portanto, aquilo que consegue extrair algo do


zero, e, nessa operação do menos, ela se desnuda de tudo que con­
tribua para criar “atmosferas” em tomo de si. E refratária à acu­
mulação de sentidos paralelos, que poderiam tomá-la hiperbólica,
ou, ao contrário, diluir sua contundência. Morte é morte, sublinha
a tautologia operacional do poeta:

167
6
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á a m o r t e g o s t o ;
tá c til, s e n s o r i a l ,
c o m a u r a , a r d e b a n h o m o r n o .
— C e r t o b a f o q u e b a n h a o s v i v o s
e m v o l t a d a b a n h e i r a
d e n t r o d a q u a l o m o r t o
b a n h a n a s u a a u r é o l a e s p e s s a .
— A m o r t e a q u i é a o a r liv r e ,
s e c a , s e m o r e s s a i b o
n a t u r a l n o u t r a s m o r t e s
e n o s a b o r d e R i l k e o u d e c r a v o . (p . 1 0 6 )

Verifica-se, a rigor, um exercício de “desaprendizagem”, de


esquecimento de todos os símbolos atenuadores das agressões do
real. Por isso, se exige o “ar livre”, como, em Uma faca só lâ­
mina, se exigira “algum páramo/ ou agreste de ar aberto” (p 193).
A nudez do cemitério, e da linguagem que sobre ele se arma,
têm outro correlato na figura — literalmente — despida do morto:

7
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
o s m o r t o s n ã o t ê m o a l i n h o
d e v e s t i r - s e a r i g o r
o u m e s m o d e d o m i n g o .
— O s m o r t o s d a q u i v ã o d e s p i d o s
e n ã o s ó d a r o u p a c o r r e t a
m a s d e t o d a s a s o u t r a s ,
m í n i m a s e t i q u e t a s , ( p . 1 0 8 )

O “vestir-se a rigor” é adorno supérfluo à morte substantiva


e sem aura. Ou, como já se lia em Morte e vida severina: “Despi­
do vieste no caixão,/ despido também se enterra o grão.” (p. 221)
A estrofe 4 focaliza o movimento de assepsia e de subtração
do nada efetuado pelos

— C e m i t é r i o s g e r a i s
q u e n ã o e x i b e m r e s t o s .
— T ã o s e m o s s o s q u e a t é p a r e c e

168
que cachorros passaram perto.

— C o m o q u e o s c e m i t é r i o s
r o e m s e u s p r ó p r i o s m o r t o s .
— ■ E c o m o s e , c o m o u m c a c h o r r o ,
a p ó s r o e r , c o b r i s s e m o s o s s o s .
— E i s p o r q u e e l e s s ã o
p a r a o t u r i s t a u m l o g r o .
— S e p e n s a : n ã o p e n s e i q u e a m o r t e
h o u v e s s e d e s f e i t o t ã o p o u c o s , (p . 1 1 0 )

A transformação da matéria-prima, referenciada na estrofe


1, recebe uma metaforização (o ato de ser roída) de antigo curso
na poesia cabralina; mas, anteriormente, a ação asséptica era pri­
vativa do elemento líquido, tanto em O cão sem plumas,

§ U m a b a n d e i r a
q u e t i v e s s e d e n t e s :
q u e o m a r e s t á s e m p r e
c o m s e u s d e n t e s e s e u s a b ã o
r o e n d o s u a s p r a i a s , ( p . 3 1 3 )

quanto em “Cemitério alagoano” {Quaderna)'.

O m a r , q u e s ó p r e z a a p e d r a ,
q u e f a z d e c o r a l s u a s á r v o r e s ,
l u t a p o r c u r a r o s o s s o s
d a d o e n ç a d e p o s s u i r c a r n e (p . 1 3 4 )

Em “Congresso no Polígono das Secas”, a assepsia emana


da própria terra, consorciada à calcinação do “ar livre” nordesti­
no. O curioso é que o trio mineral da assepsia (água-terra-ar) ape­
la sempre às formas animais vivas (principalmente ao cão) para
metaforizar sua ação posí-mortem.
O logro a que aludem os versos finais da estrofe 4 levanta
uma questão interessante: ele refere-se, inequivocamente, a um
olhar “de fora” (turístico), decepcionado pela apreensão de um
vazio. Ora, como em “Congresso no Polígono das Secas” o sota­
que é sulista, temos que uma voz “de fora” ironiza um olhar “de
fora” ; logo, essa voz não se julga externa, pois supõe dominar
uma verdade vedada a outros. A voz busca legitimar-se no pró­

169
prio gesto de ilegitimação do olhar alheio. Mas não nos esqueça­
mos de que o mesmo foco que desqualifica a “verdade” turística
já fora, pelo Sul e pela senatoria, colocado sob suspeição pelo
poeta.
A mineralização da alma — proposta ética de Uma faca só
lâmina — é algo situado fora do alcance desses mortos gerais,
reduzidos a um oco suporte externo (o corpo) sem que em seu
interior tenha vicejado a mínima possibilidade de problematiza-
ção existencial:

1 6
— T a l v e z p o r q u e o s m o r t o s
n ã o t e n h a m ta l r e s í d u o , a a l m a .
— T a l v e z p o r q u e e s t a t e m
c o n s i s t ê n c i a m a i s r a la .
— E s e j a n o a r f á c i l s o r v i d a
c o m o u m a g o t a e m o u t r a d e á g u a . (p . 1 1 2 )

Em contrapartida, cabe ao corpo, morto, propiciar-se a


mineralização de que o espírito fora incapaz, num “queimar de
etapas” que acelera o trânsito previsível da decomposição:

12
— N e m c o n h e c e m a f a s e ,
p r i m a , d a p o d r i d ã o ,
e m q u e o s d e f u n t o s s e p r o j e t a m ,
q u a n d o n a d a , e m e x a l a ç ã o .
— S ó r e s t o s m i n e r a i s ,
i n f e c u n d o s , c a l c á r i o s ,
s e e n c o n t r a m n e s t e s c e m i t é r i o s ,
m e n o s c e m i t é r i o s q u e o s s á r i o s . (p . 1 1 1 )

O segundo grande eixo semântico do poema é, conforme


dissemos, o da coletivização:

9
— A t o d o s o s d e f u n t o s
l o g o o S e r t ã o d e s a p r o p r i a ,
p o i s n ã o q u e r d e f u n t o s p r i v a d o s
o S e r t ã o c o l e t i v i s t a .

170
— E a s s i m n ã o r e c o n h e c e
o d i r e i t o a t ú m u l o s e s t a n q u e s ,
m a s s o c i a l i z a s e u s d e f u n t o s
n u m a s d t u m b a g r a n d e , (p . 1 0 4 )

O ideal de coletivização se dissemina ao longo do poema


através de várias formas. Na estrofe 13, apresenta-se sob o aspec­
to de extrapolação do humano, mediante uma solidariedade entre
o homem, o animal e o vegetal, a dividirem, todos, a mesma ração
de morte:

— O n d e o m o r t o n ã o é,
s ó , o h o m e m m o r t o , o d e f u n t o .
— D e m o r t o s m u i t o m a i s g e r a i s ,
b i c h o s , p l a n t a s , t u d o .
— D e m o r t o s l ã o g e r a i s
q u e n ã o s e p o d e a p a r t a ç ã o , (p . 1 0 5 )

A abrangência dessa estrofe é marcadamente espacial, com


abolição dos signos de separação entre o plausivelmente fechado
(o cemitério) e o aberto: “— Cemitérios gerais/ onde não cabe fa­
zer cercas” (p. 104). Já na estância 10, a abrangência terá uma
dimensão temporal:

— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á m o r t e i s o l a d a
m a s a m o r t e p o r o n d a s
p a r a c e r t a s c l a s s e s c o n v o c a d a s .
— N u n c a e l a v e m p a r a u m s ó m o r t o ,
m a s s e m p r e p a r a a c l a s s e ,
a s s i m c o m o o s e r v i ç o
n a s c i r c u n s c r i ç õ e s m i l i t a r e s .
— H á c l a s s e s n u m e r o s a s , c o m o
a d e S e t e n t a - e - s e t e ,
m a s s e m p r e c a d a a n o
o r e c r u t a m e n t o s e r e p e t e , ( p . 1 0 6 )

O caráter compulsório do “serviço militar” funciona como


metáfora da irreversibilidade da (em duplo sentido) marcha para
a morte, que, comandante rigorosa do batalhão, é hostil a quais­
quer variações do modelo que ela determina: “— Vão todos com

171
a morte padrão, / em série fabricada” (p. 107). E o contingente,
nivelado no espaço anônimo da terra, no calendário comum da
seca e da fome, termina ainda por ver anulados os traços de sua
eventual distinção física:“- De qualquer forma, todos,/ gêmeos e
morti-natos” (p. 108).
A noção de “morte em vida” se colhe também na subversão
do humano confrontado a outras categorias. Com efeito, a nota
sarcástica não advém apenas do fato de que o nordestino seja
situado abaixo do homem,

11
— E i s u m d e f u n t o n a d a h u m a n o
q u e n e m l e m b r a u m h o m e m , s e o f o i,
e n o q u a l n a d a m o s t r a
s e a m o r t e d o e u , o u d ó i . (p . 1 0 9 )

mas de que esteja abaixo do animal e do mineral:

— S e l e m b r a a l g o , l e m b r a é a s p e d r a s ,
e s s a s d e a r n ã o i n t e l i g e n t e ,
a s p e d r a s q u e n ã o l e m b r a m
n a d a d e b i c h o o u g e n t e . ( p . 1 0 9 )

O em brutecim ento é o com ponente que retira da vida a


mínima possibilidade de se afirmar, do que decorre a “morte em
vida”. Por isso, se essa fatalidade é inerente ao próprio cerne da
existência-cassaco, a estrofe 15 assinala que o torpor da vida pas­
sa, sem brusca transição, para o sono da morte, ausente qualquer
linha demarcatória que indicasse violência na passagem:

— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
o s m o r t o s n ã o m o s t r a m s u r p r e s a .
— A m o r t e p a r a e l e s
f o i c o i s a r o t i n e ir a .
— N e n h u m t e m o a r d e t e r m o r r i d o
e m i n s t a n t â n e o o u g u i l h o t i n a , (p . 1 0 9 )

Uma unívoca postura conformista é tributada a esses seres


menos do que pedras, cujo fim, em tom menor, repudia, uma vez
mais, a retórica altissonante de um verso vestido “a rigor/ ou mes­

172
mo de domingo”: “— Todos morrem em prosa/ como foram, ou
dormem” (p. 109).
“Festa na Casa-grande”, o segundo texto do livro, obedece­
rá a processos de escalonamento numérico semelhantes aos de
“Congresso no Polígono das Secas”, e será igualmente construído
a partir de uma ótica de dupla distância: hierárquica e espacial.
No plano hierárquico, utiliza “ritmo deputado” para falar do
cassaco; espacialmente, tem “sotaque nordestino”. Com esse últi­
mo dado, como se falar de um distanciamento no espaço? Sim­
plesmente porque se trata de um discurso localizado na Casa-
grande, contígua ao sertão-senzala, mas que dele não se “conta­
mina”; logo, um topos reservado, que, em sua “festa”, não deixa
fresta para convidados inconvenientes.
As vinte estrofes do poema surgem, na vontade sintagmáti-
ca do autor, com numeração intercalada de cinco em cinco, acar­
retando, portanto, a existência de cinco blocos:

I ) e s t r o f e s 1 , 6 , 1 1 , 1 6 ;
I I ) e s t r o f e s 2 , 7 , 1 2 , 1 7 ;
II I ) e s t r o f e s 3 , 8 , 1 3 , 1 8 ;
I V ) e s t r o f e s 4 , 9 , 1 4 , 1 9 ;
V ) e s t r o f e s 5 , 1 0 , 1 5 , 2 0 .

Contrariamente a “Congresso no Polígono das Secas”, o


número de sílabas dos versos é constante: seis. Devemos, assim,
procurar outros critérios para justificar as leituras (contínua e
alternada) que o texto propicia.
Analisemos o bloco I. Com exceção da primeira estrofe, as
demais se constroem, nos dois versos iniciais, segundo o modelo
abaixo:

“ — O c a s s a c o d e e n g e n h o ! q u a n d o é . . . .” r c r i a n ç a ( e s t r o f e 6 )
■t m u l h e r ( 1 1 )
l v e l h o ( 1 6 ) .

No bloco II:
versos 1 e 2: “— O cassaco de engenho/ de longe é. ...”;
verso 3: “— De perto é que se vê”.
No bloco III, os dois primeiros versos:

173
“ — O c a s s a c o d e e n g e n h o / q u a n d o . . . .” r e s t á d o r m i n d o ( e s t r o f e 9 )
n ã o e s t á d o r m i n d o ( 5 )
n o t r a b a l h o ( 1 3 )
n ã o t r a b a l h a ( 1 8 ) .

N o b l o c o I V , o m o d e l o é :

" — ü c a s s a c o d c e n g e n h o / V E R B O a m a r e l a m e n t e "

e s t r o l e 4 : l a z
e s t r o f e 9 : v a i
e s t r o f e 1 4 : é
e s t r o l e 1 9 : v ê .

F i n a l m e n t e , o b l o c o V r e t o m a a f o r m a - p a d r ã o d e III:

d o e n t e c o m f e b r e ( e s t r o f e 5 )

p o e m a
O b s e r v e m o s

n ã o s e i n s e r e
q u e , a e x e m p l o

r i g o r o s a m e n t e
(
d a

n o
v a i m o r r e n d o
o c a r r e g a m , m o r t o
d e f u n t o

p r i m e i r a ,

m o d e l o
e j á
( 1 0 )

n o c h ã o

a ú l t i m a

g e r a l d e
( 1 5 )
( 2 0 ) .

e s t r o f e

s e u b l o c o ,
d o

p o i s n e l a a c o n j u n ç ã o “ q u a n d o ” n ã o c o m p a r e c e a o t e x t o c o m o n a s

e s t â n c i a s 5 , 1 0 e 1 5 ; é t e r m o e l í p t i c o .

O s e s q u e m a s a c i m a p e r m i t e m q u e s e e n t e n d a o d u p l o c a m i ­

n h o d e l e i t u r a : o u o e s p a c e j a m e n t o ( 1 , 6 , 1 1 , 1 6 e t c . ) e s t r ó f i c o

c o m identidade f o r m a l , o u a c o n t i n u i d a d e ( I , 2 , 3 , 4 e t c . ) c o m

alternância. M a s i s s o n ã o é t u d o . C h a m o u - n o s a a t e n ç ã o a r e i t e ­

r a ç ã o d o s i n t a g m a “ O c a s s a c o d e e n g e n h o ” e o l a r g o e m p r e g o d o

s i n a l d e d o i s p o n t o s e m f i m d e v e r s o . C o m a l o c a l i z a ç ã o d e s s e s

d o i s e l e m e n t o s n o e s p a ç o g e r a l d o p o e m a , p o d e m o s d e p r e e n d e r

o u t r o s p ó l o s s i m é t r i c o s n o i n t e r i o r d e c a d a b l o c o . A c o l u n a c e n ­

t r a l d e s i g n a q u e v e r s o s c o n t é m “ O c a s s a c o d e e n g e n h o ” ; a d a d i -

a s s i n a l a q u e v e r s o s s e u t i l i z a m d o s i n a l d e d o i s p o n t o s :

1) e s t r o f e s 1, 6 , 1 1 , 1 6 1 , 5 , 9 1 0 2 , 6 , 1 0 . 1 4
II) e s t r o f e s 2 , 7 , 1 2 , 1 7 1 , 5 2 , 6
III) e s t r o f e s 3 , 8 , 1 3 , 1 8 1, 1 3 2 . 1 4
I V ) e s t r o f e s 4 , 9 , 1 4 . 1 9 1, 9 1 0 , 1 4
V ) e s t r o f e s 5 , 1 0 , 1 5 , 2 0 1 2 , 6 , 1 0 , 1 4

174
O r i g o r c o m q u e J o ã o C a b r a l a r m o u a c o n j u n ç ã o e a d i s ­

j u n ç ã o d o s b l o c o s n o s p o d e l e v a r a i n d a a o u t r a s c o n s i d e r a ç õ e s .

A s v á r i a s v o z e s d e s s e p o e m a ( c a d a t r a v e s s ã o i n d i c a n o v a f a l a )

o c u p a m , i n d i v i d u a l m e n t e c o n s i d e r a d a s , d o i s o u q u a t r o v e r s o s .

A s s i m , a p r e s e n ç a d e d o i s p o n t o s e m ' v e r s o p a r , a l i a d a a o t r a v e s ­

s ã o d o v e r s o s u b s e q ü e n t e , c o n d u z à complemcntariclade d a s f a l a s ,

i n c a p a z e s d e c r i a r t e n s ã o o u d i s c o r d â n c i a : c a d a u m a r e t o m a o f i o

l i n g ü í s t i c o q u e s u a p r e d e c e s s o r a d e i x a r a s u s p e n s o n o s d o i s p o n ­
t o s . A d e m a i s , o s b l o c o s s e c o m p õ e m d e d u a s e s t â n c i a s p a r e s e

d u a s í m p a r e s ; a n a l o g a m e n t e , s u a s s i m i l i t u d e s s e d i v i d e m e n t r e o

p a r ( d e todos o s v e r s o s c o m d o i s p o n t o s ) e o í m p a r ( d e todos o s

v e r s o s c o m “ — O c a s s a c o d c e n g e n h o ” ).

O u t r o a s p e c t o a s e r a s s i n a l a d o é a r e i n c i d ê n c i a , n o b l o c o V ,

d a n u m e r a ç ã o d o b l o c o I n o q u e s e r e f e r e à u t i l i z a ç ã o d e d o i s p o n ­

t o s ( c f . e s q u e m a a c i m a ) . A m b o s , c o m o f r i s a m o s , j á e s t a v a m u n i ­

d o s p e l a a t i p i c i d a d e d e s u a s r e s p e c t i v a s p r i m e i r a s e s t r o f e s , c u j o

v e r s o i n i c i a l n ã o e r a e x a t a m e n t e i d ê n t i c o a o s p r i m e i r o s v e r s o s d a s

d e m a i s e s t â n c i a s d o s b l o c o s . M a s a s a f i n i d a d e s e n t r e I e V n ã o s e
e s g o t a m n e s s e d i á l o g o d e f o r m a s : é t a m b é m d i á l o g o d e c o n t e ú d o s

c o m p l e m e n t a r e s . I s i t u a i n f â n c i a e v e l h i c e d o c a s s a c o , f a l a n d o

i g u a l m e n t e d e s u a m o r t e ; l o g o , c e n t r a - s e n a v i d a e a b r e e s p a ç o

p a r a s u a e x t i n ç ã o . E m r e s p o s t a s i m é t r i c a , V c e n t r a - s e n a m o r t e ,

f a l a n d o , a i n d a , d a v i d a ( a g ô n i c a o u d o e n t e ) . N o s b l o c o s i n t e r m é ­

d i o s , a m o r t e n ã o é f o c a l i z a d a .

H á m a i s . U m o u t r o d a d o s e r e v e l a p e r t i n e n t e p a r a a a p r o x i ­

m a ç ã o d e I e V : a e x t e n s ã o e a d i s p o s i ç ã o d a s f a l a s n o i n t e r i o r d a s

e s t r o f e s . C a d a e s t â n c i a d e s s e s d o i s b l o c o s r e g i s t r a o i t o “ v o z e s ” d e

d o i s v e r s o s . N o s d e m a i s , t e m o s :

I I ) q u a t r o f a l a s d e d o i s v e r s o s , d u a s d e q u a t r o ;

I I I ) d u a s f a l a s d e d o i s , q u a t r o d e d o i s , d u a s d e d o i s ;

I V ) d u a s f a l a s d e q u a t r o , q u a t r o d e d o i s .

C o n f e r i n d o a I I I a p o s i ç ã o n u m é r i c a d e centro d o s b l o c o s ,

n o t a m o s a i n d a q u e e l e d e s e m p e n h a u m p a p e l m ediador e n t r e a s

c o n f i g u r a ç õ e s a n t i t é t i c a s d e I I e I V . A o s e r a c i o n a d o c o m “ d u a s

f a l a s d e d o i s v e r s o s ” , I I I r e p a r t e - s e e q u a n i m e m e n t e e n t r e a s “ d u a s

f a l a s ” q u e a c i o n a m I V e o s “ d o i s v e r s o s ” q u e i m p u l s i o n a m II. A

e v e n t u a l a l e g a ç ã o d e s i m p l e s c o i n c i d ê n c i a ( m a s , a e s t a a l t u r a .
s e r i a p o s s í v e l a v e n t a r o f o r t u i t o p a r a f a l a r d a o r g a n i z a ç ã o c a b r a l i -

n a ? ) d e s f a z - s e c a s o r e t o r n e m o s a o u t r o c r i t é r i o : o d a u t i l i z a ç ã o d e

d o i s p o n t o s . P o r e l e , c o n s t a t a m o s q u e o b l o c o II c o n t é m d o i s p o n ­

t o s n o s v e r s o s 2 e 6 ; o I V , n o s v e r s o s 1 0 e 1 4 . O I I I ? N o s v e r s o s 2

e 14, d o n d e , m a i s u m a v e z , a f u n ç ã o m e d i a d o r a d e f o r m a s .
“ — A c o n d i ç ã o c a s s a c o / é o d e n o m i n a d o r ” ( p . 1 1 2 ) : e i s a

p r o p o s t a e s t a m p a d a n a p r i m e i r a e s t r o f e . O b l o c o I e n f a t i z a r á ,
p o i s , a a p r e e n s ã o d o c a s s a c o n ã o a p e n a s c o m o o t r a b a l h a d o r d o
a ç ú c a r , m a s c o m o r e v e l a d o r d e u m a c o n t i n g ê n c i a q u e a b a r c a
t o d o s o s s e r e s . U m a v e z q u e a “ c o n d i ç ã o ” a t o d o s i g u a l a , n e l a s e

i n c l u e m a s c r i a n ç a s ( e s t r o f e 6 ) , a s m u l h e r e s ( 1 1 ) e o s v e l h o s ( 1 6 ) ,
o u s e j a , a s “ f o r ç a s m e n o r e s ” d e u m s i s t e m a d e p r o d u ç ã o q u e a c a ­
b a p o r d e v o r a r , s e m h i e r a r q u i a , s e u s e l e m e n t o s i n t e g r a n t e s :

6
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é c r i a n ç a :
— P a r e c e c r u z a m e n t o
d e c a n i ç o c o m c a n a .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
c r i a n ç a é m a i s c a n i ç o :
— P u x a m a i s b e m a o p a i
p o r q u e n ã o é m a c i ç o .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é c r i a n ç a :
— N ã o s ó p u x a a o c a n i ç o ,
p u x a t a m b é m à c a n a .
— M a s à c a n a d e s o c a ,
r e p e t i d a e s e m f o r ç a :
— A c a n a f i m d e r a ç a ,
d e q u a r t a o u q u i n t a f o l h a . (p . 1 1 3 )

A e s t r o f e s e b i p a r t e e m d o i s s e g m e n t o s n o q u e s e r e f e r e à

c o n s t r u ç ã o d e s e n t i d o : d o v e r s o 1 a o 8 e d o 9 a o 1 6 . O s v e r s o s i n i ­

c i a i s ( e i d ê n t i c o s ) d e a m b o s o s s e g m e n t o s c o n s t i t u e m u m s u p o r t e

d e e n u n c i a d o a s e r m e t a f o r i z a d o n o s s u b s e q ü e n t e s : “ — P a r e c e

c r u z a m e n t o / d e c a n i ç o c o m c a n a . ” ; “ — N ã o s ó p u x a a o c a n i ç o /

p u x a t a m b é m à c a n a . ” A s s i m , o p r e e n c h i m e n t o i m a g í s t i c o d e 1 e

9 s e e f e t i v a c o m a u t i l i z a ç ã o d o s m e s m o s v o c á b u l o s ( c a n i ç o ,

c a n a ) . N o j o g o t e c i d o e n t r e o h u m a n o e o v e g e t a l , o b s e r v e m o s ,

a i n d a e s s a v e z , a s u p r e m a c i a d e s t e s o b r e a q u e l e : a c a n a f i m d e

176
r a ç a m e l a f o r i z a a c r i a n ç a c a s s a c o ; o u s e j a : o q u e s i g n i f i c a térm i­
no d e p e r c u r s o d e u m a e s p é c i e v e g e t a l s i g n i f i c a , t a m b é m , o início
d a e s p é c i e h u m a n a . T a l p o s i ç ã o d e i n f e r i o r i d a d e s e r e i t e r a n a

e s t r o f e 1 1 , c o n q u a n t o e x p r e s s a e m t e r m o s d o v e g e t a l j á i n d u s ­

t r i a l i z a d o :

— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é m u l h e r :
— E u m s a c o v a z i o
m a s q u e s e t e m d e p é .

— N ã o é u m s a c o c a p a z
d e c o n s e r v a r , c o n t e r , (p . 113)

A p r i n c i p a l d i f e r e n ç a e n t r e a m u l h e r , e m v i d a , e o s m o r t o s
g e r a i s d e “ C o n g r e s s o n o P o l í g o n o d a s S e c a s ” é a v e r t i c a l i d a d e d a

p o s i ç ã o f e m i n i n a ( “ q u e s e t e m d e p é . ” ), c o n t r a p o s t a à h o r i z o n t a -

l i d a d e d a q u e l e s , d e c u j a m o r t e s e d i z q u e “ e s v a z i a m a i s u m a s a c a /

a l i á s n u n c a p l e n a ” ( p . 105). P a r a t o d o s , a m e s m a i m a g e m d e i n v ó ­
l u c r o d o n a d a .

O b l o c o I I a c i o n a o e l e m e n t o e l i d i d o e m I: o c a s s a c o

h o m e m . O s d o i s v e r s o s i n i c i a i s d e c a d a u m a d e s u a s e s t r o f e s

s u g e r e m u m n i v e l a m e n t o e n t r e o t r a b a l h a d o r n o r d e s t i n o e o s

d e m a i s s e r e s h u m a n o s , l o g o d e s f e i t o n o s v e r s o s 3 e 4 . A s e s t r o f e s

s e d e s e n v o l v e r ã o , p o r t a n t o , a p a r t i r d a c a t e g o r i a d o menos a t r i b u í ­
d a a o c a s s a c o :

2
— O c a s s a c o d e e n g e n h o ,
d e l o n g e é c o m o g e n t e :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
o q u e h á d e d i f e r e n t e , ( p . 1 1 4 )

7
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é d e o s s o e c a r n e :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e d e o u t r a q u a l i d a d e , ( p . 1 1 5 )

177
12
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é o m e s m o b a r r o :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e o d e l e f o i m a i s b a ç o . (p . 1 1 5 )

1 7
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é b r a n c o o u n e g r o :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e é a m a r e l o m e s m o . (p . 1 1 6 )

Podemos, no interior do bloco, detectar a presença de dois


subgrupos, compostos, respectivamente, pelas duas primeiras e
pelas duas últimas estâncias. No primeiro, o traço distintivo no
confronto longe x perto é o “corte”, a constituição física do traba­
lhador; no segundo, é sua cor. Em ambos, a diferença do menos se
denuncia pelo cotejo com o “modelo comum” do humano:

2
— N ã o h á n a d a d e h o m e m
q u e n ã o t e n h a , e m d e t a l h e ,
e l u d o p o r i n t e ir o ,
n a d a p e l a m e t a d e .
— E i g u a l , m a s a p e s a r ,
p a r e c e r e c o r t a d o
c o m a t e s o u r a c e g a
d e a l f a i a t e b a r a t o , (p . 1 1 5 )

7
— T e m a t e x t u r a b r u t a
e a o m e s m o t e m p o f r o u x a ,
m e n o s q u e a l g o d ã o z i n h o ,
s i m p r ó p r i a d a s e s t o p a s .
— E d o s p a n o s p o í d o s
c h e g a d o s a o e s t a d o
e m q u e , n o p o r t u g u ê s ,
p a n o p a s s a a s e r t r a p o . (p . 1 1 5 )

As imagens vegetais, definidoras da criança e da mulher,


também o serão do homem cassaco. E este, como aquelas, surge
vinculado ao menos do vegetal (trapo).

178
O d i s c u r s o , p a r a e v i t a r i n v e s t i m e n t o s a l e a t ó r i o s d e s e n t i d o ,

c r i a i m a g e n s c o m c o n s t i t u i n t e s m e t o n í m i c o s d o r e f e r e n c i a l . S e o s
" p a n o s p o í d o s " e s t ã o e m r e l a ç ã o d e c o n t i g i i i d a d e c o m o c a s s a c o

( h o m e m / v e s t i m e n t a ) , s e r á ta l e l e m e n t o c o n t í g u o a m e t á f o r a d o

h u m a n o e x t r a í d a , p o r t a n t o , d e u m r e f e r e n t e m e t o n í m i c o a o
q u e e l a c o n o l a . O m e s m o s u c e d e r a c o m a c r i a n ç a , c o n t í g u a à c a n a
e p o r e l a m e t a f o r i z a d a . P a r a a c r i a n ç a , a d e g e n e r e s c ê n c i a v e g e t a l
( c a n a f i m d e r a ç a ) f o r a o s í m i l e ; i d ê n t i c a n o ç ã o d e d e c a d ê n c i a s e
d e s c o b r e n a c a r a c t e r i z a ç ã o d o a d u l t o , a p e n a s t r a n s f e r i d a p a r a o

v e g e t a l i n d u s t r i a l i z a d o ( p a n o , e s t o p a , t r a p o ) .

O s u b g r u p o c o n s a g r a d o à c o r d o c a s s a c o i n c o r p o r a o u t r a
c a t e g o r i a a o s f o c o s i m a g í s t i c o s u t i l i z a d o s p a r a s u b s i t u a r o t r a b a ­
l h a d o r n o r d e s t i n o . A p ó s t e r s i d o c o t e j a d o a o v e g e t a l e a o h u m a n o

( e m c o n f r o n t o s d e q u e s a í a i n v a r i a v e l m e n t e p e r d e d o r ) , a g o r a o ê
a o m i n e r a i , s e m q u e o r e s u l t a d o s e a l t e r e :

!2
— U cassaco dc engenho
é opaco e mortiço:
Nunca aprende com os aços
de uma usina, seu brilho.
— N e m com o brilho mais cego
do cobre que ele vê
nas laeluis em que mexe
nos engenhos bangiié. (p. 1 16)

O b l o c o III a d m i t e u m a b i p a r t i ç ã o e n t r e u m s u b g r u p o c o n ­

c e r n e n t e a o s o n o e à v i g í l i a ( e s t r o f e s 3 e 8 ) e o u t r o r e l a t i v o à p r o ­
d u ç ã o e a o d e s c a n s o ( 1 3 e 1 8 ) . N o i n t e r i o r d o s s u b g r u p o s , t o d a ­

v i a . a s a n t í t e s e s d o s t e r m o s s e d e s f a z e m s o b o i m p é r i o d o “ m e s ­
m o ' ’: d o r m i r o u n ã o d o r m i r e m n a d a a l t e r a a c o n s t i t u i ç ã o f í s i c o -
p s í q u i c a d o c a s s a c o , n u m a e q u i v a l ê n c i a a n á l o g a à a n t e r i o r m e n t e

e s t a b e l e c i d a e n t r e v i d a / m o r t e :

ts
—O cassaco de engenho
quando não está dormindo:
—- li com o se seu sono
ainda o encharcasse, limo. (p. 1 17)

K s t a d o s d i s t i n t o s - - s o n o / v i g í l i a — s e t r a d u z e m , e a s s a e a -

179
m e n t e , p e l a i n d i s t i n ç ã o ; a b a r r a d e m a r c a t ó r i a s e a p a g a e m p r o l d e

u m t o r p o r t a m b é m e x i s t e n c i a l , q u e v e d a o a f l o r a m e n t o d a s m a r ­

c a s d a l u c i d e z :

— N ã o t e m c o m o e v i t a r
q u e o m a r a s m o o e m b e b a
e o i m p e ç a d e s u b i r
à c o n s c i ê n c i a s e c a . (p . 1 1 7 )

A s s i m , a p o u c o e p o u c o s e v a i c o n f i g u r a n d o u m l e q u e d e
c a p t a ç õ e s q u e s u b t r a i a o t r a b a l h a d o r n o r d e s t i n o q u a i s q u e r h i p ó t e ­
s e s d e u m a p o s t u r a c r í t i c a f r e n t e à e x i s t ê n c i a , d o m e s m o m o d o
c o m o o “ r i t m o d e p u t a d o ” j á l h e f u r t a r a a v o z . A v o z d e p u t a d a , p o ­
r é m , n ã o a c o d e à r e t ó r i c a p a r a a d o r n a r - s e c o m e u f e m i s m o s q u e
d i l u a m a s a r e s t a s c o n t u n d e n t e s d o e s p a ç o r e f e r e n c i a d o . E m M or­
te e vida severino., e n u n c i a d o s p e l o retirante , d e p a r a m o s c o m o s
s e g u i n t e s v e r s o s : “ o s a n g u e / q u e u s a m o s t e m p o u c a t i n t a ” ( p .
2 0 4 ) ; e m “ F e s t a n a C a s a - G r a n d e ” , e s t r o f e 1 3 : “ — É c o m o s e s e u

s a n g u e , / q u e e n t r e t a n t o é m a i s r a l o ” ( p . 1 1 8 ) . A d i f e r e n ç a e n t r e o s
d o i s e x e m p l o s r e s i d e n o p o n t o d e e n u n c i a ç ã o : n u m c a s o , u m a v o z
n o t r â n s i t o d a m i s é r i a ; n o o u t r o , u m a v o z r e f e s t e l a d a n a C a s a -
g r a n d e . O q u e s e f a l a n ã o é i m u n e a o l u g a r d e o n d e s e f a l a : u m a
f r a s e i d ê n t i c a p r o f e r i d a e m d o i s e s p a ç o s d i v e r s o s n ã o é , p o r i s s o

m e s m o , i g u a l : a p o n t a r á , a n t e s , p a r a o i n t e r v a l o a b e r t o e n t r e s e u s

d o i s p ó l o s d e e m i s s ã o .
O v e r s o s e v e r i n o , s e n ã o e s c a m o t e a v a a c o n d i ç ã o - m i s é r i a ,
d e i x a v a a o m e n o s e n t r e v e r d e n t r o d e l a e s t á g i o s d e s o b r e v i v ê n c i a

c o m m e n o r p r e c a r i e d a d e ( c f . a f a l a d a s e g u n d a c i g a n a , p . 2 3 7 -
2 3 8 ) . E m “ F e s t a n a C a s a - G r a n d e ” , a o c o n t r á r i o , s ã o n e g a d a s a s

h i p ó t e s e s d a ( r e l a t i v a ) a s c e n s ã o s o c i a l , u m a v e z q u e o t r a b a l h o e
o n ã o - t r a b a l h o r e m e t e m a h o r i z o n t e s i n d i f e r e n c i a d o s :

1 3
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o n o t r a b a l h o :
— T u d o c o m q u e t r a b a l h a
l h e p a r e c e p e s a d o , (p . 1 1 8 )

1 8
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o n ã o t r a b a l h a :

180
— A s c o i s a s c o n t i n u a m
s e n d o - l h e b e m p e s a d a s , (p . 1 1 8 )

A s q u a t r o e s t r o f e s d o b l o c o I V u n e m - s e e m t o r n o d a n o ç ã o

d e ‘" a m a r e l o ” , t r a n s f i g u r a d a à d i m e n s ã o d e c o r moral q u e d e f i n e
o d e n t r o e o f o r a d o c a s s a c o :

4
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
f a z a m a r e l a m e n t e
t o d a c o i s a q u e t o c a
t o c a n d o - a , s i m p l e s m e n t e .
— E o c o n t r á r i o d o b a r r o
d a s c a s a s - d e - p u r g a r
q u e s e b o t a n o a ç ú c a r
a f i m d e o b r a n q u e a r .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
p u r g a t u d o a o c o n t r á r i o ;
— C o m o o b a r r o , s e in filtr a ,
m a s d e i x a t u d o b a r r o . (p . 1 1 9 )

I n v e r t e - s e a l e n d a d e M i d a s , q u e p u r i f i c a v a , p e l a n o b r e z a

a m a r e l a d o o u r o , o s o b j e t o s e m q u e t o c a v a . A i r r e d u t i b i l i d a d e à
diferença ( r e p r e s e n t a d a , n o j o g o c r o m á t i c o d a e s t r o f e , p e l o bran­
quear) c o r r o b o r a o q u e a f i r m á v a m o s a c e r c a d o s m e c a n i s m o s d e
n e u t r a l i z a ç ã o ( s o n o x v i g í l i a , p r o d u ç ã o x d e s c a n s o ) : o o u t r o

( b r a n c o ) s e m p r e s e n i v e l a a o m e s m o ( a m a r e l o ) n a c a r a c t e r i z a ç ã o

d o c a s s a c o .
A s e s t â n c i a s s e g u i n t e s t r a b a l h a m a d e m a r c a ç ã o d e d o i s t e r ­
r i t ó r i o s a n t a g ô n i c o s : o d o a m a r e l o e o d a s d e m a i s c o r e s . A n o n a
e s t r o f e s i t u a a m a r c h a d o c a s s a c o p o r “ t o d o e s s e a z u l / q u e é

P e r n a m b u c o s e m p r e ” ( p . 1 2 0 ) , o n d e o c é u s e m p r e - a z u l é i r ô n i c o
c o n t r a p o n t o à a m a r e l e c i d a e x i s t ê n c i a d o h o m e m . O a z u l c o m o

i m a g e m - m i r a g e m r e a p a r e c e n a e s t r o f e 1 4 :

— P r i m e i r o , a a g u a r d e n t e
l h e d á u m c e r t o a z u l
e e s q u e c i d o o a m a r e l o ,
e l e q u e r ir - s e a o S u l . ( p . 1 2 0 )

A l i b e r a ç ã o p r o m e t i d a p e l o á l c o o l é a m b í g u a , p o i s , s e p a r e ­

c e a t e n u a r a d o r d a c o n d i ç ã o c a s s a c o , a p e n a s l h e r e f o r ç a o i m p a s -

181
s c . N o d e v a n e i o e t í l i e o . o p a r a z u l / S u l , m a i s d o q u e u m a r i m a , é
e n t r e v i s t o c o m o u m a s o l u ç ã o . M a s , p o r o u t r o l a d o , o á l c o o l p o d e
a c e n d e r a c o n s t a t a ç ã o d o f r a c a s s o , c a n a l i z a n d o o i m a g i n á r i o p a r a

a d e s i s t ê n c i a f r e n t e a o d e s a f i o d e s o b r e v i v e r :

14
..A o cassaco de engenho
depois o azul é roxo:
— Já em .vez de ir-se ao Sul
deseja e ir-se morto. (p. 120)

O r o x o - m o r t e o b s t r u i o t r â n s i t o e n t r e o a m a r e l o p a l p á v e l e
u n i a z u l p o s s í v e l , s e n d o , p o r i s s o , u m s i g n o d e r e f o r ç o d a p r á t i c a

e x i s t e n c i a l e s v a z i a d a .
A e s t r o l e l l) c o m p l e m e n t a a d i s t r i b u i ç ã o c r o m á t i c a d o s

c a m p o s o p o s i t i v o s . O d e m a r c a p o s i t i v a , s i t u a d o f o r a d o a l c a n c e

c a s s a c o ,

— O cassaco de engenho
vê amarelamente
todo o rosa-Brasil
que ele liahila e não sente. (p. 121 )

e o d e m a r c a n e g a t i v a , p i n t a d o e m c o r e s a l i a d a s a o i m p é r i o d o

a m a r e l o :

Para ele. a água do rio


não é azul mas barro,
e as nuvens, aniagem.
pardas, de pano saco. (p. 121. Grifamos)

O q u i n t o b l o c o a p r e s e n t a u m d a d o a u s e n t e d o s d e m a i s : u m

a c o m p a n h a m e n t o progressivo d e s e u o b j e t o . A o d e s c r e v e r a d o e n ­

ç a ( e s t r o f e 5 ) , a a g o n i a ( 1 0 ) , a m o r t e e o e n t e r r o ( 1 5 ) e a d e c o m p o ­

s i ç ã o ( 2 0 ) d o c a s s a c o , o b l o c o s e a r m a n u m a s i n t a x e d e consecuti-
vidade , d i v e r s a m e n t e d o o l h a r p r i s m á t i c o d o s b l o c o s a n t e r i o r e s ,

o n d e u m s e g u n d o o u t e r c e i r o â n g u l o n ã o s e p a u t a v a p o r u m a r e l a ­
ç ã o d e c a u s a / e l e i t o f r e n t e a o â n g u l o p r i m e i r o .

I r o n i c a m e n t e , a m á q u i n a d o c o r p o - t ã o v a e i i a n t e e p r e c á ­

r i a n a v i d a c a s s a c a — s ó i n t e n s i f i c a a p r o d u ç ã o q u a n d o a s e r v i ç o
d a m o r t e :

182
5
— P o r f o r a , s e s e t o c a
n o s e u c o r p o d e g e n t e :
— S e p e n s a q u e a c a l d e i r a
d e l e a f i n a l s e a c e n d e , (p . 1 2 1 )

10
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o v a i m o r r e n d o :
— E n t ã o s e u a m a r e l o
s e i l u m i n a p o r d e n t r o , ( p . 1 2 2 )

A s s i m , o r i t m o f a b r i l / f e b r i l s e p õ e a s e r v i ç o d o s e u p r ó p r i o

a n i q u i l a m e n t o . E , c o m o ú l t i m a s u b t r a ç ã o d o t e x t o , a t é o n a d a -

m o r t e é e s v a z i a d o ; à v i d a l o g r a d a d o c a s s a c o s e s e g u e o l o g r o d o

v a z i o q u e s u a m o r t e l e g a :

1 5
— O e n t e r r o d o c a s s a c o
é o e n t e r r o d e u m c o c o :
— U n s p o u c o s e n v o l t ó r i o s
e m v o l t a d o c e n t r o o c o . (p . 1 2 3 )

20
— E o v e n t o c a n a v i a l
d á t a m b é m s u a d e m ã o :
— V a r r e - l h e o s g a s e s d a a l m a ,
l e v a n d o - a ( l a v a n d o ) , s ã o . ( p . 1 2 3 )

O s v e r m e s e o v e n t o , s u p r i m i n d o a l e m b r a n ç a d o c a s s a c o ,

s ã o o s ú l t i m o s d e s t r u i d o r e s d o “ c e n t r o o c o ” . Q u a n d o n a d a r e s t a

d e s e u c o r p o e a l m a , i n t e r r o m p e - s e a f a l a d a “ F e s t a n a C a s a -

G r a n d e ” . A h i s t ó r i a d o c a s s a c o f o i , l i t e r a l m e n t e , a d o c a s s a c o s e m

h i s t ó r i a , o u a d o h o m e m c o n d e n a d o a s o f r e r a n o n i m a m e n t e u m a

H i s t ó r i a s e m e s c a l a p r o s p e c t i v a , q u e r e d u z à s u b v i d a a p r á t i c a d e

v i d a p o s s í v e l a o h o m e m c a s s a c o .

183
XII — Sob o signo do quatro

E n t r e 1 9 5 9 e 1 9 6 1 , J o ã o C a b r a l c o m p ô s o s d e z e s s e i s p o e ­
m a s d e Serial, e l e v a n d o a g r a u m á x i m o a o b s t i n a ç ã o d e o r d e m n a
s u a p o e s i a . A a f i r m a ç ã o p a r e c e r á , t a l v e z , e x c e s s i v a s e n o s l e m ­
b r a r m o s d o r i t u a l d e r i g o r e c o n t e n ç ã o d e s e n v o l v i d o e m Uma. fa ca
só lâmina ( 1 9 5 5 ) , m a s , a í, t r a t a v a - s e d e u m e x e r c í c i o d e d e p u r a ­

ç ã o e m n í v e l , s o b r e t u d o , d e v e rso ; a g o r a , s e m d e s c u r a r d e s s e
a s p e c t o , e m p e n h a - s e o p o e t a e m e s t a b e l e c e r p a r a a obra inteira
p r i n c í p i o s r e g u l a r e s e r e g u l a d o r e s d e c o m p o s i ç ã o , a s s e n t a d o s n o
n ú m e r o quatro , v e r d a d e i r o f u l c r o n o r t e a d o r d o s p o e m a s - s é r i e s d e
Serial. T e n t e m o s , p o i s , l e v a n t a r o s a c e s s o s a o t e x t o - l i v r o q u e o
n u m e r a l p r o p i c i a , s e m q u e s e v e j a n a o r d e m d e l e v a n t a m e n t o
q u a l q u e r h i e r a r q u i a — j á n e s s e p a s s o c o l h e m o s a p r i m e i r a l i ç ã o

d o q u a t r o : é u m n u m e r o s e m c e n t r o , n o s e n t i d o , p o r e x e m p l o , e m

q u e o t r ê s s e r i a t o p o l o g i c a m e n t e o c e n t r o d o c i n c o : 1 - 1 - (T) 1. - 1 -
A n t e s , u m a d e n d o : a c r í t i c a d o p o e t a , e m e s c a l a p r a t i c a m e n t e u n â ­
n i m e , d e s t a c o u a i m p o r t â n c i a d a q u a d r a ( e , p o r e x t e n s ã o , d o q u a ­

t r o ) n a p r o d u ç ã o c a b r a l i n a , m a s n e g l i g e n c i o u , t a l v e z e m d e m a s i a ,

a “ c o s t u r a m i ú d a ” d o t e x t o ( e s q u e m a r í m i c o , e s t r o f a ç ã o e t c . ) . D e
n o s s a p a r t e , j u l g a m o s d i s p e n s á v e i s o s e s t u d o s c o n s a g r a d o s u n i c a ­
m e n t e à c o n t a g e m d e s í l a b a s , o u à v e r i f i c a ç ã o d e q u e a s r i m a s d e

t a l p o e t a t e n d e m o u n ã o a s e r e s d r ú x u l a s . M a s , n a a n á l i s e d e Qua-
derna, j á d e m o n s t r a m o s c o m o d e t e r m i n a d o s m ó d u l o s r í m i c o -
m é t r i c o - e s t r ó f i c o s e r a m prenunciadores d e c e r t o p r e e n c h i m e n t o
s e m â n t i c o ( n o c a s o , a t e m a t i z a ç ã o d o f e m i n i n o ) . E n e s s a r e l a ç ã o

c o m o c a m p o s i g n i f i c a t i v o q u e o “ e s q u e m a ” n o s i n t e r e s s a , q u a n ­

d o , e n t ã o , d i s p e n s a a s a s p a s c o m q u e o n o t a m o s n e s t a f r a s e . E o

q u e o c o r r e e m Serial : n e s s e l i v r o , o s d a d o s d a c o m p o s i ç ã o a t i n ­

185
g e m t a l h i p e r t r o f i a q u e n o s p a r e c e m i n c o m p l e t a s a s l e i t u r a s q u e

n ã o o s l e v a r e m e m c o n t a , q u e n ã o a t e n t a r e m p a r a o a r c a b o u ç o
f o r m a l q u e t o r n o u a o b r a p o s s í v e l . A d i a n t e m o s n o s s a h i p ó t e s e :

Serial d á a c e s s o a u m e s p a ç o d e s e n t i d o s l i m i t a d o p o r u m p e r í m e ­
t r o f o r m a l i m p l a c a v e l m e n t e c o n f i g u r a d o . E x i s t e u m a p l a n t a - b a i -
x a d e l i v r o , p r e e n c h i d a p e l o s c o r p o s d i v e r s o s q u e s ã o o s p o e m a s

i n d i v i d u a l m e n t e c o n s i d e r a d o s , O e s p a ç o f o r m a l d o d i z e r é , a s s i m ,
a n t e r i o r a q u a l q u e r d i t o . C r i a - s e , p o r t a n t o , u m a c o n e x ã o e n t r e

e s q u e m a s p r e v i a m e n t e d e s e n h a d o s e c o n t e ú d o s q u e g r a d a t i v a -
m e n t e o s o c u p a m . O s p a r â m e t r o s f o r m a i s ( r e p e t i m o s : b a s e a d o s
n o n ú m e r o q u a t r o ) c o m p õ e m a i d é i a d e u m m a c r o t e x t o a l i m e n t a ­

d o p o r s u a s r í g i d a s r e g r a s d e b a l i z a m e n t o , e s t a b e l e c e n d o l i n h a s
d e c o n t a t o e s e p a r a ç ã o e n t r e o s v á r i o s m i c r o t e x t o s o u p o e m a s .

A f i m d e p e r m i t i r m o s u m a a p r e e n s ã o m a i s s i n t é t i c a d o s c i r ­

c u i t o s d e c o n s t r u ç ã o d a o b r a , v e r i f i c a m o s e e s q u e m a t i z a m o s n o s

p o e m a s ( n u m e r a d o s n a o r d e m d e s u a a p a r i ç ã o n o l i v r o ) o s s e g u i n ­

t e s d a d o s : d i s p o s i ç ã o d a s r i m a s ; m e t r i f i c a ç ã o ; e s t r o f a ç ã o ( c a d a

p o e m a p o s s u i s e m p r e q u a t r o p a r t e s , c o m n ú m e r o c o n s t a n t e d e

e s t r o f e s , m a s t a l n ú m e r o s e a l t e r a d e t e x t o a t e x t o ) ; u t i l i z a ç ã o ( o u

n ã o ) d o g r i f o e m p a l a v r a s - c h a v e d o p o e m a ; e s p e c i f i c a ç ã o d o s i n a l

t i p o g r á f i c o q u e m a r c a a d i v i s ã o d a s p a r t e s o u s e g m e n t o s e m c a d a

t e x t o . U m a d e r r a d e i r a o b s e r v a ç ã o : a s e x c e ç õ e s ( s o b r e t u d o n o q u e

s e r e f e r e à m é t r i c a ) n ã o f o r a m c o m p u t a d a s n o e s q u e m a g e r a l . D e

r e s t o , a p a r c e l a d e d e s v i o s é t ã o í n f i m a q u e a n o t á - l o s s e r i a , a l é m

d e p r i v i l e g i a r o a c i d e n t a l , d e s c o n h e c e r q u e Serial s e q u e r o r g a n i ­

z a r e x a t a m e n t e p e l a s u p e r a ç ã o d o f o r t u i t o .

N a p á g i n a s e g u i n t e , o s n ú m e r o s à e s q u e r d a c o r r e s p o n d e m a :

1 ) “ A c a n a d o s o u t r o s ” ; 2 ) “ O a u t o m o b i l i s t a i n f u n d i o s o ” ; 3 ) “ E s ­

c r i t o s c o m o c o r p o ” ; 4 ) “ O s i m c o n t r a o s i m ” 5 ) “ P e r n a m b u c a n o

e m M á l a g a ” ; 6 ) “ O o v o d e g a l i n h a ” ; 7 ) “Claros varones”', 8 ) “Ge-


n cra cio n es y sem b la n za s”\ 9 ) “ G r a c i l i a n o R a m o s : ” ; 1 0 )

“ P e s c a d o r e s p e r n a m b u c a n o s ” ; 1 1 ) “ C h u v a s ” ; 1 2 ) “ V e l ó r i o d e u m

c o m e n d a d o r ” ; 1 3 ) “ U m a s e v i l h a n a p e l a E s p a n h a ” ; 1 4 ) “ F o r m a s

d o n u ” : 1 5 ) “ O r e l ó g i o ” ; 1 6 ) “ O a l p e n d r e n o c a n a v i a l ” .

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187
Podemos, agora, analisar cada um desses parâmetros, e seus
eventuais imbricamentos.
Rimas : dois esquemas; aabb em quatro poemas (nos 1 ,2 ,7 ,
11) e -a-a (rimas em versos pares) nos restantes. No entanto, esse
segundo bloco é divisível em duas séries, se observarmos que
quatro de seus integrantes (3, 5, 6 e 12) se unificam pela utiliza­
ção do parágrafo entre os segmentos e pela ausência de grifo no
corpo dos textos. Ademais (cf. ESTROFES), compõem uma
seqüência crescente regular e completa (2-4-Ó-8) no que tange ao
número de estrofes que possuem em seus segmentos.
Métrica', há quatro textos em hexassílabos (1, 8, 11, 14),
quatro em heptassílabos (2, 5, 12, 15), quatro em octossílabos (3,
6, 9, 16) e quatro com quatro combinações diversas entre hexas­
sílabos e octossílabos (4, 7, 10, 13). Os quatro grupos contêm um
número exatamente igual de estrofes: oitenta. E, se somarmos a
numeração dos poem as de cada série, chegaremos a um idêntico
total de 34 (T + 8 + 11 + 14 etc.). ratificando a não-arbitrariedade
da seqüência de textos em Serial.
Estrofes: há quatro poemas com segmentos de duas estrofes
(1,5.9, 13), quatro de quatro (2, 6, 10, 14), quatro de seis (3, 7, 11,
15), quatro de oito (4, 8, 12, 16). A numeração ascendente — cada
poema, até atingir o limite de oito estâncias por segmento, terá
necessariamente mais duas estrofes do que seu predecessor — é
outro fator que elimina qualquer aleatoriedade na ordem dos textos.
G rifo : há oito textos com vocábulos grifados. O grifo incide
em quatro categorias (substantivos comuns, substantivos pró­
prios, adjetivos e verbos) e em quatro poemas atinge os substan­
tivos próprios (2, 4, 11, 13).
Separação : para a separação de seus quatro segmentos, qua­
tro poemas se valem de números (1, 14, 15, 16); quatro de aste­
riscos (2, 8, 9, 11); quatro de parágrafos (3, 5, 6, 12); quatro de
travessões (4, 7, 10, 13).
De todos os critérios que ajudaram a montar a “quadratura”
da obra, é o último o mais diretamente relacionado ao problema
das significações no texto, e é, por isso mesmo, o critério a ser uti­
lizado para sistematizar em quatro grupos de afinidades os dezes­
seis poemas da obra.
Os núm eros indicam que o texto se constrói com relativa
autonomia entre seus segmentos: o olhar do poeta captará quatro
seres, objetos ou situações distintas. Assim, “A cana dos outros”

188
focaliza quatro etapas do cultivo da cana, a cargo de trabalhado­
res diversos. “Formas do nu” tratará de quatro espécies animais
em suas relações com a nudez e o velamento. “O relógio” disse­
minará a noção de motor entre quatro elementos: o próprio reló­
gio, o pássaro, o martelo e o coração humano. Finalmente, “O
alpendre no canavial” se desenvolve em torno da temática do
tempo; cada lim dos segmentos incidirá em percepções sensoriais
específicas (paladar, olfato, audição, tato e visão).
Os asteriscos implicam a ênfase num mesmo objeto, ser ou
situação, independentemente de seu deslocamento para contextos
diversos (registrados nas quatro partes do poema). ‘‘O automobi-
lista infundioso” apresenta o tema da travessia em espaços físicos
diferentes. “Generaciones y semblanzas” confronta a verdade
íntima e a aparência social do ser humano em espaços psicosso-
ciais distintos. “Graciliano Ramos:” aponta para um único ideal
de contundência em quatro situações de fala claramente diferen­
çadas. “Chuvas” descreve um único fenômeno meteorológico em
quatro áreas geográficas.
Os parágrafos remetem a textos concentrados num só ser ou
objeto, mas sem a mobilidade do grupo anterior: a mulher (“Es­
critos com o corpo”), a cana (“Pernambucano em Málaga”), “O
ovo de galinha” e o “Velório de um comendador”.
Os travessões delimitam os poemas de maior autonomia no
que se refere ao agenciamento das partes (com exceção de “Uma
sevilhana pela Espanha”). A rigor, trata-se de segmentos que,
embora unidos aos demais por um parentesco semântico, se per­
mitem leitura autônoma. Seu sentido não se complementa em
segmentos vizinhos, pois não são sua causa ou decorrência: rela­
ção antes de afinidade do que de subordinação. E o caso de “O
sim contra o sim” (cujas partes focalizarão alternadamente pinto­
res e poetas), de “Claros varones”, centrado na vida de quatro
homens nordestinos, e de “Pescadores pernambucanos”, revela­
dor de quatro estratégias de pesca e de composição poética.
Diante de tantas alternativas, qual delas escolher para o aces­
so à obra? A resposta é: nenhuma. Cremos que o melhor tributo
crítico que se pode prestar à poesia de Serial é aceitar o incitamen­
to à “produção de séries” que o texto propõe, e sustentar que, além
das taxinomias visíveis, o discurso analítico pode estatuir mais um
conjunto na instância deixada a descoberto pelo poeta: a temática.

189
Assim, o crítico imita o movimento que deu origem ao livro, res­
ponde a seu desafio exatamente no ato de desrespeito às balizas tão
meticulosamente armadas por João Cabral — vai buscá-las onde
ele presumivelmente não se importara em deixá-las traçadas. Uma
ressalva: as outras séries se baseiam em dados objetivos e mensu­
ráveis. recolhidos ao longo dos dezesseis poemas; a série temática
só passa a existir em função da coerência argumentativa de quem
optou por essa nova hipótese; por não oferecer critérios já prontos,
tal série se constrói 110 interior do discurso que a demonstra: ela
não está num “antes” que a crítica simplesmente recenscaria.
Trabalharemos, pois, com dois conjuntos de quatro textos;
um deles (poemas 3, 4, 9, 15) se refere à estratégia melalingüística
de João Cabral, explícita (4 e 9) ou implícita (3 e 15), neste caso
manifestando-se na descrição da linguagem com que um objeto (o
corpo feminino e a máquina do relógio) se mostra. A outra série
(1,2. 11, 12) abarca um referente privilegiado em João Cabral: o
Nordeste — embora o objeto de um dos poemas (o comendador)
não constitua realidade privativa daquele espaço. Como no grupo
anterior, uma bipartição é possível: há um subgrupo (2, II) que
vincula Nordeste e Europa (quase sempre Espanha).
Os poemas de fatura metalingiiística (3, 4, 9. 15), se con­
frontados às artes poéticas de outros livros cabralinos, não che­
gam a inová-las. "O sim contra o sim" enumera oito artistas, agru­
pados dois a dois por segmento, alternadamente poetas e pintores.
Esses exercícios de admiração seguem a trilha preferida pelo poe­
ta em tais circunstâncias: a captação do fazer, do modo de produ­
ção, e não a do produto artístico já concluído. Senão, atentemos
para as primeiras quatro estrofes do texto:

Maria/me Moore, em vez cie lápis,


emprega quando escreve
instrumento cortante:
bisturi, simples canivete.

Hla aprendeu que o lado claro


das coisas é o an verso
e por isso as disseca:
para ler textos mais corretos.

Com mão direta ela as penetra,


com lápis bisturi.

190
e com eles compõe,
de volta, o verso cicatriz.

E porque é limpa a cicatriz,


econômica, reta,
mais que o cirurgião
se admira a lâmina que opera. (p. 58)

A relação poeta/poema passa inicialmente pela prim azia


concedida ao instrumento que permite tal vínculo: o canivete,
repositório de toda a semântica de corte e de incisão que povoa o
texto. Com isso, minimizou-se tanto o papel do “cirurgião” quan­
to o da matéria a ser tratada, em prol da valorização da “lâmina
que opera”. A “coisa” operada não é sequer nomeada: importa,
antes, o modo de atingi-la.
Mais uma vez, a lição cabralina incide na relevância da
perspectiva nova para a obtenção de um objeto poético também
novo, já que a inovação não se valida em nível meramente con-
teudístico. Por isso, se abdica do utensílio previsível — o lápis —
por uma ferramenta que conduza à imagem do adentramento na
matéria viva: o bisturi. A noção de profundeza que ele carreia,
opõe-se o deslizamento horizontal do lápis sobre a folha de papel.
Um dado intessante nessa proposta de escavação cabralina é
a espécie de descida para cima que ela endossa: se é fundamental
a dissecação das coisas, ela o é porque as coisas são penetradas ou
atingidas no âmago exatamente para que possam “ vir à tona”,
revelar uma face solar que a crosta do lápis-discurso-horizontal
conseguia manter oculta. Quer-se ler um real subterrâneo não para
se mergulhar numa noite espessa e funda, mas para se descobrir
que o velado é apenas o disfarce epidérmico da claridade possível:
“Ela aprendeu que o lado claro/ das coisas é o anverso”. Essa prá­
tica sem subterfúgios pressupõe também a contenção do gesto que
a promove: a mão é “direta”. O traçado sinuoso, o discurso exces­
sivo a rodear o objeto, tangencia (para ficarmos fiéis à imagística
do poema) a hemorragia verbal: toldada a percepção do sujeito,
entregue à admiração de seu próprio fluxo verbal, perde-se a fatu­
ra “econômica, reta” do objeto. O ver mais exige a poesia do (ver­
se) menos. Curiosamente, o “par” do segmento (Francis Ponge) é
catalogado numa poética do (aparente) dispêndio:

191
Francis Ponge, outro cirurgião,
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.

Apalpa-as com todos os dez


mil dedos da linguagem:
não tem bisturi reto
mas um que se ramificasse.

Com ele envolve tanto a coisa


que quase a enovela
e quase, a enovelando,
se perde, enovelado nela.

E no instante em que até parece


que já não a penetra.
ele entra sem cortar:
sallou por descuidada fresta, (p. 59)

Existe uma clara oposição entre o corte de Moore e o salto


de Ponge; entre a “mão direta” da poetisa e o bisturi “que se rami­
ficasse” do autor francês; entre a singularidade (um “lápis-bistu-
ri”) e a pluralidade instrumental (dez mil dedos da linguagem”);
entre um universo retilíneo e um esférico (consubstanciado em
“girar” e “enovelar”). Não obstante, a tática de envolvim en-
to/enovelamento de Ponge, embora associada ao gasto discursi­
vo, empreende um cerco em torno do objeto, e um dizer mais
intenso implica superações sucessivas do dizer mais extenso.
Seria algo análogo ao efetuado pela bailadora andaluza, que pro­
longa sua presença no palco do texto para ofertar a imagem final
de sua nudez e despojamento. Ou ainda o que se lê em “A paio
seco”, expressão definida ao longo de três versos, para identifi­
car-se afinal à fórmula mais econômica: “Se diz a paio seco l o
cante sem guitarra;/ o cante sem; o cante ”.
A produção artística foi, assim, no segmento inicial, associa­
da a duas maneiras do fazer (o reto e o sinuoso); será, no segmen­
to 2, relacionada a dois modos do saber. O primeiro, de Miró:

Miró sentia a mão direita


demasiado sábia

192
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.

Quis então que desaprendesse


o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.

Pois que ela não pôde, ele pôs-se


a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta, (p. 59)

No outro segmento, a equação arte = operação (em duplo


sentido) sublinhara o instrumento de produção; agora, a produção
passa pelo crivo da consciência crítica explícita do artista, que se
redimensiona a partir das próprias reflexões. Além disso, enquan­
to em Mariane Moore existiu a conquista de uma “ciência” (“Ela
aprendeu que... .”), em Miró ocorre a prática de uma “desaprendi -
zagem”, ou seja, a perspectiva de superação de um saber cristali­
zado em meio a fôrmas: a conquista do novo (“a linha ainda fres­
ca da esquerda.”) na medida em que supere dialeticamente o lega­
do da tradição. Afinal, o novo só o é em relação a; e, na poesia
brasileira, João Cabral é dos autores que mais insistem na questão
da perspectiva. Demonstração cabal disso é o recurso de saturar
com dois, três ou mais símiles um único signo-base: assim, se a
imagem 1 é válida, sob certo ângulo a 2 é mais pertinente... Desse
modo, relativiza-se também o “poder de verdade” do emissor,
pois sua verdade não tem centro que a imobilize: altera-se ao
sabor dos deslocamentos imagísticos. O poder da fala, em João
Cabral, não é sinônimo da fala do poder; esta, ancorada em cate­
gorias absolutas, pode ser assimilada ao falso saber da literatura,
saber falsificado ou ideológico. Por ideologia do literário pode­
mos entender o conjunto de prescrições que subjazem no sistema
de produção textual de determinada época ou autor. As normas
atingem duas faixas: a) a do que pode ser dito; b) a de como se
pode dizer o dizível. A primeira, de ordem semântica, se sustenta
nas convenções de referentes condenados por qualquer instância.
A segunda reporta-se aos procedimentos formais que, à força da
propagação, se convertem em dogmas pretensamente imunes ou

193
infensos a transformações históricas. A versão mais ostensiva
desse fenômeno é localizável na prática beletrista, na veiculação
das “verdades” das frases-feitas e clichês, no torneio ornamental
do discurso. O segundo bloco do segmento 2 (dedicado a
Mondrian) alerta para a necessidade de uma postura crítica diante
de qualquer “saber prévio”; saber é desconfiar do que se sabe:

Mondrian, também, da mão direita


andava desgostado;
não por ser ela sábia:
porque, sendo sábia, era fácil. (p. 60)

Nesse ponto, formulamos a seguinte indagação: a lógica


ordenadora da poesia cabralina não acabaria por se constituir num
sistema excessivamente fechado em seus estritos limites? Ou ain­
da: a recusa ao ideológico da furma não terminaria erigindo uma
resposta também ideológica, só que para uso próprio? Não parece
difícil arrolar argumentos nessa direção. Afinal, tratar-se-ia da
substituição de um código retórico por outro, nem por isso menos
im obilizado em leis e prescrições; ademais, todo rigor seria
repressivo:

Fez-se [Mondrian] enxertar réguas, esquadros


e outros utensílios
para obrigar a mão
a abandonar todo improviso.

Assim foi que ele, à mão direita,


impôs tal disciplina:
fazer o que sabia
como se o aprendesse ainda. (p. 60. Grifamos)

Cremos, porém, que a posição de João Cabral é a de comba­


ter a fôrm a da forma. Se Serial se auto-alimenta, se cada texto é
um tijolo lógico na arquitetura da obra, o sistema só existe para
ser destruído. Ou seja: essa laboriosa construção, uma vez con­
cluído Serial, não mais será aproveitada no livro-construção
seguinte; desautoriza-se, assim, a perpetuação do modelo, e se
parte em busca de novas formas de organização. A poesia cabra­
lina abarca o projeto de um arqui-sistema, sempre em aberto, teci­
do a partir da elaboração (e da superação) de sistemas pontuais,

194
identificados com a produção específica de cada livro. A obses­
são do rigor ultrapassa qualquer forma que a queira expressar —
por mais obsessivamente rigorosa que seja. Desse modo, o rigor
vai perdurando para deixar atrás de si o rastro insatisfeito de sua
própria trajetória.
O segmento 3 apresenta Cesário Verde e Augusto dos An­
jos. João Cabral vai conceituar pictoricamente o literário, em
compasso simétrico à escrita que depreende na pintura ou nos ob­
jetos que se ofertam a uma captação visual (cf. “Escritos com o
corpo”, p. 54). Cesário Verde e Augusto dos Anjos se marcam
pela antítese dos tons que os caracterizam: o claro e o escuro, res­
pectivamente. O sim contra o sim, a opção entre ambos se resol­
ve — como nos casos anteriores — pela opção por am bos:

Cesário Verde usava a tinta


de forma singular;
não para colorir,
apesar da cor que nele há.'

Talvez que nem usasse tinta,


somente água clara,

Augusto dos Anjos não tinha


dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a Fábula, (p. 60-61)

No poeta português valoriza-se a assepsia, o mecanismo de


filtragem das impurezas do real: “escrevia lavando:/ relavava,
enxaguava/ seu mundo em sábado de banho” (p. 61). Em Augusto
dos Anjos, ressaltemos sua afinidade com as águas do Capiba­
ribe, também escurecidas (cf. O cão sem plumas, p. 308) como as
do poeta paraibano:

Tais águas não são lavadeiras,


deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos, (p. 61)

195
É ainda uma discussão de perspectivas que preenche o seg­
mento final do poema. O jogo claro x escuro dos versos anterio­
res é substituído pela percepção do real pautada pelo binômio lon­
ge x perto:

Juan Gris levava uma luneta


por debaixo do olho:
uma lente de alcance
que usava porém do lado outro.

Jean Dubujfet, se usa luneta


é do lado correto;
mas não com o fim vulgar
com que se utiliza o aparelho, (p. 62)

Em ambos os casos, a mesma atitude de perversão do ins­


trumento, de desvio de uma utilização “prática” que só levaria a
ver o previsto. Em meio a lápis que cortam, bisturis que enove-
lam, águas que encardem, inserem-se lunetas que servem para
distanciar a percepção (Gris) ou para só aproximar o que já está
próximo (Dubuffet). O dedo, já transformado em bisturi (Ponge),
reaparece instrumentalizado em luneta, delegando-lhe o poder de
um alcance tátil:

Com essa luneta feita dedo


[Dubuffet] procede à auscultação
das peles mais inertes:
que depois pinta em ebulição, (p. 63)

“Graciliano Ramos:” é outro texto que vincula o discurso à


produção de uma carência. Mas, à diferença dos demais poemas
de homenagem, João Cabral não elabora um discurso para
Graciliano: cria uma simulação de texto, ou melhor, um modo de
se relacionar com o texto, de Graciliano, como indicam os dois
pontos pospostos ao nome do escritor alagoano.
Os quatro segmentos do poema abordam aspectos distintos
e complementares do ato de comunicação lingüística. No primei­
ro, releva-se o material a ser utilizado:

196
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara. (p. 75)

A pequena extensão do repertório (vinte palavras) melhor


servirá para fazer circularem de modo obsessivo os signos perti­
nentes à magra paisagem. O caráter voluntariamente tosco e limi­
tado desse contingente lexical já é prenunciado no verso 1 que
repete na mesma pessoa, tempo e modo o verbo “falar”. A primei­
ra estrofe abriga uma dupla afirmação do menos: o das escassas
“vinte palavras” e o da depuração que elas sofrem pela ação
asséptica do sol, “que as limpa do que não é faca”. Lição de poe­
sia da mesma linhagem de “A lição de poesia” (O engenheiro),

Vinte palavras sempre as mesmas


de que [o poeta] conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar. (p. 355)

onde a evaporação e a densidade menor foram meios de subtrair


o que — vinte palavras — já era subtração. A segunda estrofe de
“Graciliano Ramos:”, por seu turno, denuncia os significados
“cheios”, excessivos, aderentes à “crosta viscosa” do banquete
das palavras.
Isom orficam ente, o poem a se constrói com um número
aproximado de vinte palavras por estrofe (com variantes entre
dezoito e vinte e quatro); duas estâncias tangenciam o total de
vocábulos referendado pelo poeta: a segunda do segmento 1 (aci­
ma transcrita), com 19, e a primeira do segmento 2, com 21:

Falo somente do que falo:


do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre: (p. 75)

197
O segmento tematiza o assunto a ser veiculado pelo material
escolhido na primeira parte do texto. E o assunto é solidário à for­
ma que o expressa, na medida em que registra, num sentido lite­
ral, o que tinha sido a metáfora mais apta para significar o mate­
rial: o sol e a secura. Outra analogia pode ainda ser levantada
entre os dois segmentos: — é em suas respectivas estrofes 2 que
se revelam os signos do excesso:

que reduz tudo ao espinhaço,


cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude, (p. 75-76)

Folhagem, folharada: tudo remete ao mesmo universo do


encobrimento, da produção não-desbastada a velar um núcleo de
contundência. Folhagem, folharada: a mesma fraude de uma fala
sem risco.
Propostos o repertório (segm ento 1) e o referente (2),
amplia-se o quadro com o emissor (segmento 3):

Falo somente por quem falo:


por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes


de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua, (p. 76)

Sintomaticamente, quando a palavra passa à plena responsa­


bilidade de quem a emite, torna-se desnecessária a tematização do
excesso: o discurso acompanha apenas a dinâmica do desfalque,
onde o outro lado (o da prolixidade) não existe nem como arma
retórica (de antítese). E, a rigor, se poderia falar numa delegação
discursiva de segundo grau: João Cabral fala por Graciliano, que
fala pelo nordestino: “Falo somente por quem falo” — a mesma
palavra repartida entre três emissores.
O derradeiro segmento completa o circuito, introduzindo o

198
destinatário (homem nordestino) como imagem especular do
próprio emissor:

Falo somente para quem falo:


quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,


a contra-pelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos. (p. 76)

Mais: a solidariedade entre as partes do texto é também


guiada pelo vocábulo “sol”, que ilumina todos os segmentos do
poema numa espécie de signo-síntese da causticidade da condi-
ção-Nordeste. A esse campo de significação se associam, entre
outros substantivos, “faca”, “lâmina”, “vinagre”, “gavião”, “mín­
gua”, “despertador”, “socos”. A observar nesse levantamento o
predomínio amplo de nomes concretos. E os substantivos abstra­
tos, quase todos, estão ligados aos sentidos e às sensações: rea­
ções físicas diante da míngua do real.
“Escritos com o corpo”, poema que incluímos no subgrupo
da metalinguagem implícita, traz de novo (e pela primeira vez em
Serial) o tema da mulher. O título registra a convivência de duas
linguagens: a erótica (centrada no corpo) e a da transcrição desse
erotismo sob forma de “escritos”. Se tal corpo se articula como
uma escrita, refletir sobre o discurso é, simultaneamente falar da
corporalidade. Conforme já assinalamos, a maneira mais constan­
te de João Cabral lidar com o feminino é através do afastamento
de uma ostensividade literal do objeto em prol das imagens que
ele possa gerar, comumente indiciadas no próprio título do poema
(cf. “Rio e/ou poço”, “A mulher e a casa”, “A palavra seda”,
“Imitação da água”, “Mulher vestida de gaiola”, “Jogos frutais”).
E o que ocorre com “Escritos com o corpo”:

§ Ela tem tal composição


e bem entramada sintaxe
que só se pode apreendê-la
em conjunto: nunca em detalhe.

199
Não se vê nenhum termo, nela,
em que a atenção mais se retarde,
e que, por mais significante,
possua, exclusivo, sua chave.

Nem é possível dividi-la,


como a uma sentença, em partes;
menos, do que nela é sentido,
se conseguir uma paráfrase, (p. 54-55)

O discurso intenta uma aproxim ação não-em otiva (cf.


“atenção”, estrofe 2) e não-atomizada (cf. verso 4) com seu obje­
to. Não há recortes tópicos que sejam mais propensos à captação
poética: “Nem é possível dividi-la/ como a uma sentença, em par­
tes”. Apreendido em bloco inteiriço, o feminino torna-se literal­
mente algo linear: um corpo que se traduz pela linha que o dese­
nha. As estrofes acima vão de encontro ao olhar-fetiche, à eleição
de uma parte do corpo como receptáculo mais “autorizado” para
expansões erótico-afetivas. E é exatamente da corporalidade ple­
na, não-segmentada, que falam as três estrofes finais do segmen­
to (que são, também, as únicas que incluem um corpo-parceiro
para a mulher, admitido sob a mesma exigência de totalidade):

E assim como, apenas completa


ela é capaz de revelar-se,
apenas um corpo completo
tem, de apreendê-la, faculdade.

Apenas um corpo completo


e sem dividir-se em análise
será capaz do corpo a corpo
necessário a quem, sem desfalque,

queira prender todos os temas


que pode haver no corpo frase:
que ela, ainda, sem se decompor,
revela então, em intensidade, (p. 55)

Descrevendo a mulher, João Cabral endossa o tipo de lin­


guagem que ela evoca, e os termos se entrelaçam de maneira a se
tornarem indistintos: são duas categorias que se implicam a partir

200
de noções comuns de “completude”, “inteireza”, “indecomponi-
bilidade” . Efetua-se, ao mesmo tempo, o elogio de um corpo e de
uma escrita, da escrita do corpo (como quer o título) e do corpo da
escrita (como também quer o poema).
Coerente com o que se preconizou (“Não se vê nenhum ter­
mo, nela,/ em que a atenção mais se retarde”), o segmento 2 irá
trabalhar a onipresença da pele, mediante o jogo contrastivo lon­
ge x perto:

§ De longe como Mondrians


em reproduções de revista
ela só mostra a indiferente
perfeição da geometria.

Porém de perto, o original


do que era antes correção fria,
sem que a câmara da distância
e suas lentes interfiram,

porém de perto, ao olho perto,


sem intermediárias retinas,
de perto, quando o olho é tacto,
ao olho imediato em cima,

se descobre que existe nela


certa insuspeitada energia
que aparece nos Mondrians
se vistos na pintura viva. (p. 55-56)

Já podemos colher indícios de como a postura pretensamen-


te neutra do observador com eça a ser corroída. D elineia-se o
endosso da proximidade entre quem vê e o que é visto, de tal
maneira que o espaço discursivo se funda basicamente na con­
fluência dos sentidos: o visível é o tangível.
Forma pictórica e forma do corpo se alimentam reciproca­
mente, mas a função do comparante-pintura não é simplesmente
a de expressar o comparado-mulher; ao tentar expressar o corpo,
a pintura se define a si, na medida em que consegue (ou não) sig­
nificar o outro termo. O comparante não explica o comparado,
mas nele se implica parcialmente. Por isso, embora seja lícito
falar em corpo-tela (e vice-versa), como se falou em corpo-frase,

201
é necessário estar atento para a linha de divergência semântica
que separa a mera explicação de um objeto (quadro) por outro
(mulher) em favor de suas implicações — quando, então, se abre
campo para a exploração da diferença'.

E que porém de um Mondrian


num ponto se diferencia:
em que nela essa vibração,
que era de longe impercebida,

pode abrir mão da cor acesa


sem que um Mondrian não vibra,
e vibrar com a textura em branco
da pele, ou da tela, sadia. (p. 56)

A “textura em branco/ da pele”, ao opor-se à “cor acesa” de


Mondrian, revela seu resíduo de irredutibilidade ã total instalação
imagística do segundo termo; A é quase como B, e nesse “quase”
reside o intervalo, a ausência: há sempre uma fresta de incomple-
tude plantada entre os limites de apropriação da linguagem e o
desejo de ultrapassar esses mesmos limites. João Cabral denuncia
a mitificação da onipotência do verbo: a carência não está na
“coisa”, numa realidade plácida ou turbulentamente arm ada no
tabuleiro referencial; está na linguagem que se supõe apta a fla­
grá-la, à “coisa” ; por isso, é parcial o preenchimento do discurso.
Mas é o horizonte de suprimento de carência que impulsiona a
linguagem a se arriscar na direção da impossível suficiência; é
desse horizonte inatingido que se~ alimenta a força do discurso.
Um clichê como “não ter palavras para dizer algo” comporta, des­
se modo, uma leitura que não apenas enfatize o “algo” inominá­
vel, mas que ressalte, em “não ter palavras”, o ainda ter palavras
para dizer essa ausência — tornada mais próxima, mais “preen-
chível”, pela voz que afirma seu malogro. Assim, a ausência que
se declara como tal é parcialmente suprida pelo discurso que a
registra, metamorfoseada que seja no topos do indizível. Presença
e ausência são noções parciais, relativas; é nesse jogo de aproxi­
mações e divergências que a linguagem se constitui: a tela de
Mondrian está presente no corpo feminino, mas “num ponto se
diferencia”: se ausenta.

202
O terceiro segmento do poema situa a camada metafórica na
perspectiva elaborada no segmento anterior: a de um “olho per­
to”. Ou seja: pela primeira vez, as imagens se vão tecer no interior
(ou na superfície) do espaço-base (o corpo), e não em sua “tradu­
ção” nas gramáticas do verbo e da pintura:

§ Quando vestido unicamente


com a macieza nua dela,
não apenas sente despido:
sim, de uma forma mais completa.

Então, de fato está despido,


senão dessa roupa que é ela.
Mas essa roupa nunca veste:
despe de uma outra mais interna.

E que o corpo quando se veste


de ela roupa, da seda ela,
nunca sente mais definido
como com as roupas de regra.

Sente ainda mais que despido:


pois a pele dele, secreta,
logo se esgarça, e eis que ele assume
a pele dela, que ela empresta.

até acabar [a pele dela] por nada ter


nem de epiderme nem de seda:
e tudo acabe confundido,
nudez comum, sem mais fronteira, (p. 56-57)

As imagens se constroem a partir de uma aparente dicoto-


mia, “o corpo” (do outro) x “ela”, que vai sendo progressivamen­
te minada até a inteira unificação de “nudez comum, sem mais
fronteira”. Notemos que “o corpo” continua a ser expresso em
sentido intensivo (pela reiteração) e extensivo (é referido em sua
globalidade, não-setorizado). O mesmo se pode dizer da nudez; a
tensão não se efetua entre o velado e o não-velado, mas entre o
desvelado e o mais desvelado ainda. A nudez, intensa e extensa
(“Mas essa roupa nunca veste:/ despe de uma outra mais interna”),

203
se faz acompanhar da supremacia do tátil (pele, epiderme) sobre o
visual, diversa da confluência sensorial do segmento anterior.
O derradeiro segmento opera simultaneamente com a pre­
sença e a ausência do corpo: “Está, hoje que não está,/ numa
memória mais de fora” (p. 57). Ou seja: pela primeira vez se con­
signa não a forma ostensiva, mas os vestígios por ela impressos
na memória. Ausência física contrabalançada pela presença inde­
lével no olhar que reteve o corpo. A transposição do empirica-
mente captado para o imaginariamente reconstruído se faz através
de uma anulação de oposições entre uma presença corpórea e uma
presença-memória. Senão, vejamos: no verso inicial, estar e não
estar se eqüivalem; o tempo verbal empregado em todo o poema
é o presente, não havendo, pois, mudança de registro que distinga
o rememorado do atual. A “memória mais de fora”, por seu turno,
anula o contraste dentro x fora; ao situar externamente uma ins­
tância interna (a memória), o poeta a torna “física” como o corpo
que ela resgata:

Numa memória para o corpo,


externa ao corpo, como bolsa:
que como bolsa, a certos gestos,
o corpo que a leva abalroa.

Memória exterior ao corpo


e não da que de dentro aflora;
e que, feita que é para o corpo,
carrega presenças corpóreas. (p. 57)

Pensar o corpo é pensar fora do corpo. A anulação de opos­


tos resolvida na “memória externa” alcança agora o par corpo x
não-corpo, cuja oposição se desfaz pela equiparação do corpo-
memória ao não-corpo-bolsa. Ambos os termos se caracterizam
pela possibilidade de um preenchimento; como a memória se tor­
nou “física”, ela também (igualmente à bolsa) se tornou portado­
ra de “presenças corpóreas”.
As três últimas estrofes do poema vão intensificar esse pro­
cesso de cancelamento de antíteses; cada termo pressupõe e aga­
salha seu contrário:

204
Pois nessa memória é que ela,
inesperada, se incorpora:
na presença, coisa, volume,
imediata ao corpo, sólida,

e que ora é volume maciço,


entre os braços, neles envolta,
e que ora é volume vazio,
que envolve o corpo, ou o acoita;

como o de uma coisa maciça


que ao mesmo tempo fosse oca,
que o corpo teve, onde já esteve,
e onde o ter e o estar igual fora. (p. 57-58)

De início, se reitera a assimilação desenvolvida nas duas es­


tâncias anteriores, visto que o corpo se identifica com o que lhe
está contíguo, “na presença, coisa, volume, imediata ao corpo,
sólida”, como antes se identificara à bolsa. A penúltima estrofe
desvia-se dessa direção, pois, embora também se elabore a partir
dos contrários (o maciço e o vazio, o envolver e o ser envolvido),
eles são propostos num regime de alternância (“ora... ora”), e não
de simultaneidade. A percepção integral e integradora do corpo,
abolidora de limites ou de angulações unívocas, cede vez à postu­
ra menos totalizadora do segundo segmento, rigidamente atento
às diferenças — e à irreconciliabilidade — entre o “longe” e o
“perto”. A última estrofe, todavia, restaura a simultaneidade dos
opostos (“uma coisa maciça/ que ao mesmo tempo fosse oca”) e a
anulação das diferenças (“onde o ter e o estar igual fora”). A con­
vergência semântica entre “ter” e “estar” encontra um suporte na
afinidade fônica estabelecida por “teve” e “esteve”; ainda aqui se
inscreve uma lição de linguagem: se o som é solidário ao sentido,
se o sentido se prenuncia e repercute na forma, como erguer bar­
reiras entre o dentro e o fora?
Em “O relógio”, penúltimo poema do livro, o objeto da lin­
guagem do poeta (o relógio) oferece o exemplo da linguagem do
objeto a ser percebida por João Cabral, num movimento de recí­
proca infiltração (como processo de conversibilidade) assemelha­
do ao que examinamos no texto anterior, que dizia da linguagem
do corpo ao mesmo tempo que dizia do corpo da linguagem.

205
Uma faca só lâmina (1955) foi a primeira obra cabralina a
tematizar explicitamente o relógio, e guarda afinidades com o
poema de Serial no que se refere às constelações metafóricas de
ambos. No primeiro desses textos, deparamo-nos com as seguin­
tes imagens: “relógio vivo” (p. 187); “pulsando em sua gaiola” (p.
188); “com o seu coração” (p. 190); “a sua abelha cessa” (p. 190).
Elas reaparecem, com variações, em “O relógio”: a atribuição de
vida ao mecanismo se encontra na primeira estrofe (“se ouve pal­
pitar um bicho”, p. 91); a comparação das caixas às gaiolas, na
segunda (“mais perto estão das gaiolas/ ao menos pelo tamanho”,
p. 91); a imagem do “coração” ocupa as duas estrofes finais (p.
99); o cessar do movimento, embora sob outra figuração, compa­
rece na primeira estrofe do último segmento (“Quando por algum
motivo/ a roda de água se rompe”, p. 93).
Essas aproximações, contudo, não nos devem levar a supor
um simples reaproveitamento de material: o contexto em que as
metáforas se inscrevem é bastante diverso. A começar por um
nível de hierarquia: enquanto em Uma faca só lâmina o relógio
era gerado por imagens cujo núcleo era outro objeto, a faca, no
poema de Serial é ele que vai gerá-las. De modo simetricamente
oposto, no texto de 1955 o relógio é gerador do próprio movimen­
to, enquanto no de 1961 tal força é extrínseca a seu mecanismo.
Essas características são fundamentais, pois remetem a duas con­
cepções distintas de temporalidade: em Uma faca só lâmina, a
máquina assume ativamente o engendramento (e a manutenção)
de sua existência; em “O relógio”, surge apenas como registro de
um “fluido” (o tempo) que com ela não se confunde. Isso impli­
cará diferença frente ao “relógio humano” (o coração), a que se
transferirá a capacidade de auto-alimentação atribuída à máquina
no texto anterior.
Importa assinalar, em ambos os poemas, a ênfase concedida
à regularidade, ao ritmo contínuo e homogêneo das engrenagens
que aferem o tempo. Esse é, a nosso ver, o ângulo que mais apro­
xima os dois textos. A temporalidade não é figurada por signos de
corrosão ou mudança; o poeta não busca o efeito da passagem do
tempo sobre a superfície ou as entranhas da matéria, mas a elei­
ção de objetos que, por sua estabilidade produtiva, parecem desa­
fiar a inexorabilidade do fenômeno-tempo que consignam.

206
As quatro partes do poema de Serial vão insistir nessa pro­
posta, atualizada em versões diversas, mas complementares. Na
primeira, a comparação relógio = pássaro permite que emerja a
analogia entre o som da máquina e o canto da ave:

Mas onde esteja: a gaiola


será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade

que continua cantando


se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente, (p. 91-92)

Se, na estrofe 1, no relógio “como em jaula,/ se ouve palpi­


tar um bicho” (p. 91), agora o “pássaro ou pássara” na gaiola fun­
ciona como especificação e correção daquela primeira camada
imagística: a ave reduz a amplitude semântica de “bicho”, e a
gaiola reduz e retifica a noção de “jaula” ; os novos termos são
signos de menos em relação aos iniciais. Considerando “pássaro”
como pertencente a um subconjunto dentro do conjunto maior
“bicho” , constatamos que esse movimento de concentração do
signo se acentua quando, do pássaro, apenas a marca do canto é
retida (“e de pássaro cantor/ não pássaro de plumagem”). Apesar
da ênfase concedida aos componentes visuais nas primeiras estro­
fes, serão os auditivos os grandes propulsores de sentido no texto.
A transição de um a outro pólo (do visual ao auditivo) se cristali­
za na sinestesia “alada palpitação”; a partir daí decresce a impor­
tância do visual e o texto incorpora uma vertente metalingüística
a ser ampliada na parte 2. A derradeira estrofe da parte 1 (a tercei­
ra que transcrevemos) associa o canto a um ato produtivo inde­
pendente da emulação e da expectativa de quem o possa colher:
algo análogo à mensagem da bailadora andaluza, que “nos passa
despercebida” (p. 130).

207
Falamos em versões diversas e complementares do tema
“regularidade rítmica”. Diversas porque, na parte 1, ele se forma­
liza em “pássaro” e “canto”; na 2, em “canto” e “martelo” ; na 3,
em “martelo” e “roda de água”; na 4, em “roda de água” e “cora­
ção”. Complementares porque o segundo termo de cada parte será
o primeiro da subseqüente.
Infenso ao peremptório, o poeta inicia a parte 2 com a rela-
tivização da “certeza” obtida anteriormente: a de que o “pássaro
cantor” era a melhor imagem do relógio. Essa desconfiança se
desdobrará adiante, quando novos signos (martelo etc.) serão efe­
tivamente testados para conotar o termo-base relógio.

2. O que eles cantam, se pássaros,


é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;

desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;

têm sempre o mesmo compasso


horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:

dir-se-ia que não importa


a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários (p. 92)

A passagem pássaro ---- >- operário, abrindo caminho para


o segundo grande filão metafórico do relógio, atravessa uma série
de caracterizações partilhadas pelos dois termos e também por
um terceiro: a poesia. É o ideal a paio seco que predomina, atra­
vés do combate à exuberância do canto (“cantam numa linha bai­
xa”; “desconhecem as variantes/ e o estilo numeroso”). A reitera­
ção do repertório pertence ao universo das idéias fixas cabralinas
e das intensas “vinte palavras” que o abastecem. E a irrelevância
do efeito poético, ou melhor, do poema que busque um “efeito”

208
(“dir-se-ia que não importa/ a nenhum ser escutado”) também já
fora expressa em “A paio seco":

cante que não se enfeita,


que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está. (p. 163)

A distinção artista x operário, que especifica o contingente


humano apto a preencher imagisticamente o signo “relógio” (em
complemento ao contingente animal representado pelo pássaro
cantor), põe em jogo o binômio produção x reprodução do canto:

[operários] para quem tudo o que cantam


é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,

de operário que executa


seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar, (p. 92)

Não se veja um caráter depreciativo nesse “trabalho rotina,


em série”. Trata-se de um canto que, uma vez deflagrado, encontra
em si os mecanismos de perdurabilidade, isento, portanto, das flu­
tuações de seu titular: “mais que o cirurgião/ se admira a lâmina
que opera” (“O sim contra o sim”, p. 58). Do mesmo modo, o mar­
telo, outra imagem que dialoga com “A paio seco ” (“A paio seco
cantam/ a bigorna e o martelo”, p. 164), se sobrepõe ao usuário pe­
la regularidade de seu ritmo-relógio, imune à falibilidade humana:

3. A mão daquele martelo


nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;

ela é por demais precisa


para não ser mão de máquina,
e máquina independente
de operação operária, (p. 93)

209
Observamos a mesma reelaboração restritiva da imagem
que ocorrera na passagem da parte 1 à 2. Nela, a afirmativa inicial
de correspondência entre o relógio e a ave era atenuada pela con­
dicional: “O que eles [relógios] cantam, se pássaros” ; agora, a
mão operária da parte 3 cede lugar, mas sem desaparecer de todo
(“mal deve ser de operário”), à “m áquina independente” . As
estrofes subseqüentes a essa desvalorização (provisória, como se
verá) do humano se concentram no ponto nodal a ser discutido no
texto: a origem da força que faz mover o mecanismo do relógio.
O relógio-pássaro-operário-máquina vai receber uma configura­
ção mineral (“roda de água”) que, isenta de vida, recorre a um
fator exógeno (um “fluido”) para poder simulá-la:

que fluido é ninguém vê:


da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.

E porque tampouco cabe,


por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo. (p. 93)

O desvelamento do “fluido” se faz por exclusões: elimina­


dos vento e água, carentes de plena regularidade rítmica, resta o
próprio tempo como agente do impulso que aciona as engrena­
gens. Mas há máquinas que dispensam a força externa para se
porem em ação; é delas que trata a parte final do poema, iniciada,
sintomaticamente, com o momento de fracasso do relógio-roda-
de-água aparentemente infalível:

4. Quando por algum motivo


a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro,


imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa, (p. 93-94)

210
Ressaltemos que o objeto que dá título ao poema dele está
ausente em toda a parte 4. Do relógio se manteve apenas, por me-
tonímia, a “máquina”, transformada, por metáfora, no motor
humano, o coração. Por isso falamos da provisória desvaloriza­
ção do humano, na parte 3. Agora, o texto percorre um circuito de
interiorização e, o que é fundamental, a máquina “de dentro do
hom em ” surge como produtora e ativa, em contraposição às
engrenagens minerais:

Então se sente que o som


da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo


de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria, (p. 94)

A penúltima estrofe da parte 4 se refere à “bomba motor/


(coração noutra linguagem)” (p. 94). O discurso não se limita a
registrar algo que exista neutramente antes de sua intervenção. A
“outra linguagem” incide no mesmo referente, mas exatamente
por ser “outra” , o apropria sob o nome de “coração”. Em João
Cabral, a herança lírica desse vocábulo é desprezada (afinal, essa
herança é “outra linguagem”) para ser substituída pela metafori-
vação de um músculo que trabalha (bomba motor). Esse olhar
descontaminado do peso da tradição poética é um dos objetivos
estéticos do poeta-operário de Uma faca só lâmina, ao recuperar

palavras que perderam


no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal. (p. 196)

Dos outros poemas que retivemos para análise, talvez seja


“Velório de um comendador” o que mais exemplifique a estraté­
gia de economia sígnica executada pelo poeta. Haverá uma ima-
gem-matriz, gerada, expandida e corroída no interior de cada seg­
mento; ela cede, ainda, uma parcela de sua significação às ima­

211
gens que formarão os segmentos subseqüentes. Foi esse o proce­
dimento utilizado em “O relógio”, é esse o procedim ento de
“Velório de um comendador”.
Os quatro “parágrafos” do texto abordarão obsessivamente
a figura morta de um comendador, e insistirão, com ironia, no
enfoque do único elemento que lhe “sobreviveu” : a própria
comenda, a m edalha — então — inútil. O com endador surge
esvaziado de qualquer gesto ou legado que ultrapasse o nível de
crônica social dos “medalhões” ou da compulsão que tais perso­
nagens experimentam para a caça de novos lauréis. Confrontada
à morte, a condição-comendador se instala numa perspectiva
rigorosamente oposta à “severina”; esta se marca por um parale­
lismo entre morte e vida, situadas, ambas, na esfera semântica da
carência e do desfalque; aquela se marca pela antítese entre um
viver supostamente cheio (ou abarrotado) e um morrer que revela
o vazio.
A primeira parte do poema explora e experimenta a perti­
nência do signo “água” para conotar o cadáver do comendador. O
signo receberá dois registros, e do choque de ambos provirá o
efeito humorístico do discurso: um registro centrado na hipérbo-
le, assinalando o “pleno” da vida, e um dirigido à hipossemia,
ridicularizando a pretensão do prim eiro. Esquem aticam ente,
teríamos:

VIDA:algodão- -preamar — água viva - mar de água


(“arrebentava
ÁGUA • represas”)
x x x x x
MORTE: bacia - poça — água morta — banheira
(“drinque”)

Ainda a anotar nessa parte inicial: enquanto o registro


“vida” se circunscreve ao comendador, “morte” tanto a ele se
refere quanto, metonimicamente, ao caixão que o acolhe (“ba­
cia”, “banheira”). Isso é importante na medida em que o “tanto”
(homem) caber em “tão pouco” (esquife) é um dos espantos irô­
nicos mais constantes do texto. Senão, leiamos o início da parte 2:

§ Todos que o vejam assim,


coberto de tantas flores,

212
pensarão que num canteiro,
não num caixão, está hoje.

O tamanho e as proporções
fazem o engano mais perfeito;
pois é idêntico o abaulado
de leirão e de canteiro.

Nem por estar numa sala,


está essa imagem desfeita:
se em salas não há jardins,
há contudo jardineiras, (p. 84)

Permanece a relação conteúdo (corpo)/continente (caixão),


com três diferenças, no entanto: o aproveitamento de um novo
signo-conotação (terra); a inexistência do jogo vida x morte (o
que leva o discurso a prescindir da hipérbole e da hipossemia); a
explicitação de que se está num espaço de investimento metafóri­
co (“Nem por estar numa sala,/ está essa imagem desfeita”). A
metáfora que se confessa como tal é mais um traço da poesia
cabralina, inimiga da pretensão ilusionista que o discurso pode
acalentar:

E só não se enganaria
nem cairia na imagem,
alguém que entendesse muito
de jardins e reparasse: (p. 84. Grifamos)

Se a imagem acarreta um ludibrio das convenções lingüísti­


cas (e perceptivas) — inclusive para denunciar a própria falsifica­
ção da “neutralidade” convencional — , João Cabral alerta o leitor
para desconfiar até daquilo que o poema parece endossar.
Descarta, assim, tanto o ludibrio convencional (o da linguagem
dita “neutra”), quanto o ludibrio do ludibrio: a metáfora. Não cair
na imagem implica ao mesmo tempo reconhecer o apelo de uma
(outra) “verdade” que ela, imagem, contém e defender-se de sua
sedução. A crítica frente a uma leitura pré-estabelecida do real
não impede a desconfiança ante as imagens que a desconstroem.
Portanto, o discurso poético se auto-relativiza, e na confissão da
própria insuficiência ganha maior credibilidade, apesar (ou por
causa) do risco, admitido, de se “cair na imagem”.

213
A circulação de significados de uma a outra parte do texto
pode ser melhor aferida no confronto entre os segmentos 1 e 3, de
um lado, e 2 e 4, de outro. O primeiro, conforme se viu, trabalha­
va com metáforas líquidas; o terceiro “responde” com o signo
“barco”. O segundo operava com metáforas da terra (flores, jar­
dins); no quarto predominam elementos extraídos do solo (milho,
feijão).
Ideal de imobilismo e obsessão da comenda se consorciam
no segmento 3, onde o metal da medalha, através da hipérbole em
“âncora”, torna pertinente uma leitura de “barco” para conotar
“caixão”, ao mesmo tempo que desautoriza a comparação car-
ro/esquife:

E agora tem, no caixão,


esse veículo buscado;
não é um carro, porém
é um veículo, um barco.

via nela [na comenda] só o metal,


a âncora a atar-se ao pescoço
para não deixar que nada
se mova de um mesmo porto.

Morto, ei-lo afinal que encontra


seu tão buscado modelo:
o barco em que vai, parado,
não tem roda, é todo freios, (p. 86)

De qualquer modo, insiste-se na caracterização da comenda


como único vestígio de sobrevida do comendador: o que dele per­
manece é a instituição, simbólica e materialmente mais forte do
que o indivíduo que a representa. Observemos como, no texto, o
laurel é sempre descrito num plano que escapa à morte física de
seu portador:

Não há dúvida, a água morta [= comendador]


se toma muito mais densa:
ao menos, se vê boiando,
nesta, o metal da comenda, (p. 83)

214
Na verdade, as flores todas
fecham rápido suas tendas.
A não ser a flor eterna,
por ser metal, da comenda (p. 84)

mesmo com essa comenda


no peito, a recomendá-lo,
e é nele como a medalha
de um produto premiado (p. 87)

O último segmento, como o primeiro, coteja a (pretensa)


exuberância da vida e o desmascaramento da morte. Novamente
comparecem a antítese, a hipérbole e a hipossemia. A antítese se
concentra no par mercador (ser vivo) x mercadoria (ser morto),

§ Está no caixão, exposto


como uma mercadoria;
à mostra, para vender,
quem antes tudo vendia (p. 86)

pela qual se procede à reificação do sujeito, colaborando para


extrair ainda mais do corpo a estatura simbólica e megalomanía­
ca do comendador. Já a hipossemia, anteriormente (segmento 1)
inscrita no plano da morte, surge agora na prática cotidiana da
vida comendadora, flagrando a distância entre o gesto mínimo e a
pretensão máxima:

ou com gestos joalheiros


espalhava no balcão
para melhor demonstrá-las
suas gemas: milho, feijão (p. 86)

Se “Velório de um comendador” traça o roteiro da conversão


póstuma do mercador em mercadoria, “A cana dos outros”, reto­
mando a meada da condição severina, trata de outra espécie de rei­
ficação: a oriunda do trabalho alienante. As etapas do processo de
cultivo, colheita e prensagem da cana enfatizarão o distanciamen­
to do homem frente às tarefas que executa. O próprio título escla­
rece que o esforço não reverte em benefício de quem o envida: a
cana é dos outros. O andamento retórico do texto é menos com-

215 F üriv.ü - *•«< i -'v..


plexo do que o do anterior. Sua figura-base será a antítese,
mediante o confronto entre uma série de ações distanciadas e hos­
tis e outra série que não denuncia uma ruptura sujeito/objeto:

1. Esse que andando planta


os rebolos de cana
nada é do Semeador
que se sonetizou.

É o seu menos um gesto


de amor que de comércio;
e a cana, como a joga,
não planta: joga fora. (p. 51)

A estrofe inicial retira do plantio toda sua “literatura” (ver­


sos 3 e 4), numa rejeição do simbólico aparentada à que se lê em
“Jogos frutais”: “Não és O Fruto/ e nem para A Semente/ te vejo
muito” (p. 181). Arma, também, o primeiro par opositivo: andar
plantando x semear, a que se acrescentam, na estrofe 2, comércio
x amor e jogar fora x plantar.
O esquem a antitético é mantido nas partes seguintes.
Segmento 2 (centrado na “limpa” do terreno): não entender a pró­
pria práxis x entendê-la; mato x cana. No 3 (centrado no corte da
cana): sanha x amor (termos correlatos de derrubar x colher);
mutilar x conservar. Segmento 4 (centrado na prensagem da
cana): atar em feixes x vestir; tombar x enterrar.
Pode-se dizer, em síntese, que o poema, retratando o ciclo
vida-morte da cana, propõe em cada estrofe uma expectativa de
conduta, invariavelmente frustrada. O tratamento que o lavrador
dispensa à cana admite ser lido como a réplica da conduta de que
ele é vítima por parte dos que detêm a terra em que trabalha: nes­
se sentido, é ele a “cana dos outros” 1. Seria arbitrário apontar no
“enterro da cana” o mesmo ritual precário do “enterro severino”
(cf. p. 221)7

4. A gente funerária
que cuida da finada

1 Senna, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro: Antares, 1980, p.
156.

216
nem veste seus despojos:
ata-a em feixe de ossos. (p. 52)

Dos textos que tratam simultaneamente do Nordeste e da


Espanha — “O automobilista infundioso” e “Chuvas” — é este o
mais simétrico. Cada uma das regiões ocupa dois segmentos, ca­
bendo ao Nordeste as extremidades e à paisagem européia o mio­
lo do poema (partes 2 e 3). Os dois pares referenciam um espaço
geográfico mais restrito em seus respectivos primeiros segmen­
tos. Assim: Carpina (1) < Sertão (4); Sevilha (2) < Galícia (3).
Se os dois subgrupos se aproximam pelo tema da chuva,
choverá diversamente num e noutro. Seus espaços não se cons-
troem por afinidades, nem se cobrem de metáforas aparentadas.
Para o registro espanhol, a rede verbal erguerá um território de
indistinção, de homogeneidade. À chuva-Sevilha corresponde a
imagem de um pássaro; tal signo, se distingue a cidade em seus
momentos solares,

Em pássaros tropicais
pintam portas, portais:
quentes, para que queimem
sobre a cal das paredes, (p. 80)

é também o portador da similitude (donde: o não-distinto) entre


Sevilha e outras cidades européias:

À chuva, de outros pássaros,


então, revela os traços:
de pássaro da Europa
ganha então a cor nódoa,

cor galinácea, suja,


que ela só tem na chuva,
e que na Europa, todas
têm, chova ou não chova. (p. 80)

Já nas estrofes da Galícia a indistinção decorre da anulação


das noções de alto x baixo e dentro x fora, motivada pela intensi­
dade do fenômeno da chuva. Na imagem a ser desenvolvida — a
de um aquário — reforça-se o topos da matéria líquida rigorosa­

217
mente contida num limite, patenteando-se a observância desse
limite na especificidade da chuva-Galícia: tal água pertence uni­
camente a tal aquário. Movimento de homogeneidade interna,
diverso do efetuado no segmento anterior (quando a chuva-pássa-
ro “migrava” para além das fronteiras sevilhanas):

Mas na Galícia a chuva,


de tanta, se descura:
cai de todos os lados
e inclusive de baixo.

É a chuva feita estado:


nela se está em aquário,
onde ninguém atina
onde é embaixo, em cima. (p. 81)

É em linha oposta que se armam os segmentos nordestinos:


neles, a chuva tem um caráter distintivo, seja na relação com o
seco (parte 1),

Carpina é o município
de clima mais ambíguo.
Ele é Agreste em parte
e Mata a outra metade.

No meio de Carpina
atravessa uma linha
mais extraordinária:
é a chuva que a traça. (p. 79)

seja, metaforicamente, na relação com a sexualidade m asculi­


na/feminina, onde o último termo é marcado pela sinuosidade
(parte 4):

No Sertão masculino
a chuva sem dissimulo
demonstra o que ela é:
que seu sexo é mulher.

218
Por mais que em linhas retas
caia em cima da terra,
caída, mostra a chuva
que é feminina, em curvas, (p. 81-82)

O trabalho metódico da natureza, gerando imagens fabris, é a


tônica da parte inicial do poema. Fala-se da chuva que “com água
em fibras/ uma cerca edifica” (p. 79); da “chuva engenheira/ de­
marcando fronteiras” (p. 79); na região seca, de “um telheiro, cons­
truído/ invisível, de vidro” (p. 80). Tanto o enxuto quanto o molha­
do são igualmente construídos; a produção de ambos remete à idéia
de padrões regulares. Ora, a forma perpetuada — do seco, do úmi­
do, do relógio, do ovo de galinha (p. 64) — pela produção em série
é o contraponto temático da organização em série de Serial.
“O automobilista infundioso” apresenta, conforme disse­
mos, um recorte assimétrico, na medida em que o sertão só com­
parece em uma das quatro partes do poema, cujo espectro de refe­
rência geográfica também abarca a Provença, a Inglaterra e La
Mancha. O texto promove uma espécie de “turismo sensorial”,
principalmente olfativo e tátil, anotando em cada paisagem o
modo pelo qual um corpo com ela se relaciona:

Viajar pela Provença


é ir do timo à alfazema;
ir da lavanda à mostarda
como de uma a outra comarca.

É viajar nos cheiros castos,


ainda vegetais, em mato:
do casto normal de planta,
do sadio, de criança, (p. 52)

Igualmente assimétrica é a distribuição dos pólos olfativo/


tátil, cabendo ao primeiro o comando da percepção no segmento
inicial. O tátil, por seu turno, bifurca-se entre o sólido (partes cen­
trais do texto) e o líquido (último segmento):

Quem vai de carro em La Mancha


recebe impressão estranha:
a de que ele vai rolando
na água aberta do oceano, (p. 54)

219
A estrofe acima apresenta um dado pouco usual na poesia
cabralina: uma representação liqüefeita para designar a paisagem
espanhola. Em geral, a Espanha do poeta se materializa em torno
da agressividade e da secura; esses fatores surgem atenuados em
Serial, não só neste passo como também em “Pernambucano em
Málaga”, onde o elemento líquido é de novo acionado para confi­
gurar uma postura de fragilidade:

§ A cana doce de Málaga


dá domada, em cão ou gata:
deixam-na perto, sem medo,
quase vai dentro das casas.

Em poças, não tem do mar


a pulsação dele, nata:
sim, o torpor surdo e lasso
que se vê na água estagnada, (p. 63-64)

Em “O automobilista infundioso”, o contraste mais flagran­


te entre o espaço da diluição e o da contundência se estampa nas
caracterizações da Inglaterra e do sertão. Enquanto àquela acode
o repisamento da imagem do algodão em todas as quatro estrofes
(com as variantes adjetivas “algodoento” e “algodoal”), ao
Nordeste afluem designações que compartilham as marcas do
incômodo e da aspereza:

Após léguas de Sertão


só o carro vai resvalão,
pois a alma que ele carrega
se arrasta por paus e pedras.

Ela vai qual se a ralasse


a lixa R da paisagem;
ou qual se em corpo, despida,
varasse a caatinga urtiga; (p. 53)

Num caso e noutro, o espaço observado se incorpora ao


observador. Inglaterra: “o contacto/ também se faz algodoado”
(p. 53); Sertão: a alma “se arrasta por paus e pedras”. E, ainda
uma vez, é pela carência que o poeta valoriza seu objeto, no sinal
de menos da paisagem despida.

220
XIII — O poema em trânsito

Quatro anos após a publicação de Serial, João Cabral lança


A educação pela pedra (1966), derradeiro livro incorporado à
edição de suas Poesias completas, e referido, na dedicatória a
Manuel Bandeira, como prática de uma “antilira”.
O título da obra é revelador de três tendências do poeta, con­
centradas num só sintagma: a) o veio pedagógico de sua poesia —
educação — como proposta de modelos éticos/estéticos de apro­
priação do real; b ) a ênfase no nome concreto — pedra; c ) o de­
sejo de que as “lições” do real emanem de processos localizáveis
nas próprias coisas, e não dos investimentos apriorísticos da sub­
jetividade: educação pela pedra.
A organização dos poemas no conjunto do livro só encontra
paralelo no rigor com que Serial foi armado, embora os critérios
de composição de uma e outra obra sejam nitidamente diversos.
A primeira grande articulação perceptível em A educação pela
pedra é de ordem semântica. Há 24 poemas pernambucanos e 24
com temas variados, compartimentados em quatro seções, referi­
das, na primeira edição do livro, como “a”, “b”, “A” e “B” (cada
qual còm doze textos). Nas seções ou partes minúsculas, os poe­
mas têm 16 versos; nas maiúsculas, 24. Em “a” e “A”, os temas
são pernambucanos; em “b” e “B”, variados. A rima, nas duas
seções iniciais, comparece, toante, nos versos pares, tendo esque­
ma bastante diversificado (mas nunca deixando de existir) nas
partes finais.
Outro ponto importante diz respeito à estrofação no interior
dos grupos: em cada um haverá 50% de poemas isostróficos, con­
forme se poderá verificar pela tabela abaixo:

221
a) 6 poemas com 2 estrofes de 8 versos; 6 com 1 estrofe de 6 ver­
sos e 1 de 10;
b ) idêntico ao anterior;
A) 6 poemas com 2 estrofes de 12 versos; 6 com 1 estrofe de 8
versos e 1 de 16;
B) idêntico ao anterior.

As relações entre pessoas, objetos e situações nas duas es­


trofes de cada poema se tecem em torno de quatro modelos bási­
cos: “X e Y”, “X mais Y”, “X x Y” e “X e X”. Exemplifiquemos
com o primeiro grupo de textos. O modelo “X e Y” expõe dois
termos sem que haja oposição simétrica entre ambos (cf. “Elogio
da usina e de Sophia de Melo Breyner Andersen”). O segundo
modelo se marca pela presença solidária dos dois elementos de
base nas duas estâncias do poema (cf. “O mar e o canavial”). O
terceiro contrapõe simetricamente os dois termos, cada qual ocu­
pando uma estrofe (cf. “Na morte dos rios”: vegetal x humano). O
quarto incide numa única situação ou ser, captado em ângulos
complementares (cf. “O sertanejo falando”); esse modelo, unitá­
rio quanto ao objeto, é o preponderante na obra.
A separação das estrofes no corpo do texto reaproveita dois
dos quatro sinais empregados em Serial: o asterisco e o número;
daí advém mais uma simetria, já que, por grupo, há exatamente
seis poemas numerados e seis outros divididos pelo asterisco.
O livro apresenta duas novas propostas formais. Uma é a
prática sistemática do_verso longo, não rigidamente isossilábico,
mas em torno do endecassílabo; recusa, talvez, da tradição meló­
dica do decassílabo português. Outra proposta é a permutação de
versos entre os poemas.
A utilização da técnica perrnutacional obedece aos seguin­
tes critérios: as seções ímpares (“a” e “A”) apresentam uma per-
muta interna; as pares, duas. Além dessas permutas intragrupais,
há duas (“a” <— > “b” ; “A” <—► ”B”) intergrupais. A_permuta
pressupõe a utilização de uma só matriz de verso em mais de um
poema, sob formas integral ou parcialmente idênticas. A listagem
abaixo nomeia os textos submetidos ao regime de trocas:
I
a) “O mar e o canavial” — “O canavial e o mar”.
b ) “Uma mineira em Brasília” — “Mesma mineira em Brasília”

222
“Nas covas de Baza”— “Nas covas de Guadix”.
Intergrupal: “Coisas de cabeceira, Recife (“a”) — “Coisas de
cabeceira, Sevilha” (“b”).
A ) “The country o f the houyhnhnm s” — “The country o f the
houyhnhnms (outra composição)”.
B ) “A urbanização do regaço” — “O regaço urbanizado” .
“Comendadores jantando” — “Duas fases do jantar dos
comendadores”.
Intergrupal: “Bifurcados de habitar o tempo” (“A”) — “Habitar o
tempo” (“B”).
Observemos que a permuta não se restringe ao campo de
dois textos diversos: pode efetuar-se entre as estrofes de um úni­
co poema. E um exemplo disso, na abertura do livro, “O mar e o
canavial”:

O que o mar sim aprende do canavial:


a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
*

O que o canavial sim aprende do mar:


o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama, (p. 7)

A rigor, se pode falar numa dupla permuta: uma formal,


baseada na identidade morfossintática dos segmentos, simétricos
até nos sinais de pontuação de cada fim de verso: dois pontos,
ponto-e-vírgula, vírgula e ponto compõem o esquema-base, que
se multiplica por quatro. A outra permuta é de ordem semântica,
baseada no jogo de recíproca aprendizagem que mar e canavial
entretecem; é dessa transitividade pedagógica que se ocupam os

223
quatro versos iniciais de cada segmento. A lição do canavial é sua
horizontalidade; a do mar, a metódica progressão com que invade
e domina o espaço. Em conseqüência, o circuito aberto entre
ambos se interrompe quando os signos da contenção (plena hori­
zontalidade, avanço gradativo) são substituídos por um universo
de expansão irrefreada; “a veemência passional da preamar”; “o
desmedido do derramar-se da cana”. A troca se efetua apenas no
nível da economia, da produção controlada.
Ao transpor para o vegetal e o mineral a lição mútua de con­
cisão, o poeta reitera o olhar econômico que ele próprio já dirigiu,
em outros textos, a essas duas categorias. Portanto, é ilusório
acreditar na existência de uma poesia literalmente objetiva: quan­
to mais não fosse, a estratégia da objetividade é opção subjetiva,
e o sujeito não se marca apenas através de uma presença explíci­
ta. Pretender que o “culto do eu” possa ser substituído pelo “cul­
to do objeto” é transitar num pensamento ingênuo, preso a uma
dicotomia epistemologicamente equivocada. O “eu”, ao falar de
si, já fala de um “outro” — topicamente localizado no próprio
emissor. O “eu”, ao falar do “outro”, fala também de si — en­
quanto opção particular pela escolha desse “outro”.
As linguagens, comunicantes ou excludentes, do mar e do
canavial fornecem o modelo de apreensão da paisagem pernam­
bucana em todos os poemas da primeira parte do livro, onde a
averiguação do controle (ou do descontrole) da produção se torna
o procedimento-chave. Leiamos “O sertanejo falando” :

A fala a nível do sertanejo engana:


as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.

224
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho, (p. 7-8)

O verso 1 declara que “a nível do sertanejo” a fala é falácia;


a lisa presentificação do discurso é crosta que envolve “o caroço
de pedra” (verso 6). Ao juízo do verso inicial se agregam compa­
rações que reforçam os traços do que se dissolve (confeito, pílula,
glacê) no continuum da enunciação verbal. No campo oposto, o
“caroço de pedra” (que conota a dura raiz de onde a fala doce/
dócil emana) se prolonga em outras mineralizações do vegetal
(“amêndoa pétrea”, “árvore pedrenta”).
O primeiro verso do segmento 2 (como o primeiro do poe­
ma) é assertivo, mas seu desdobramento será contrário ao da
estrofe anterior; nesta, palavras “rebuçadas”; agora, “de pedra”.
Ou seja: do “dócil” ao “duro”, segmento 1, e do (caroço) “duro”
ao (discurso) “dócil”, em 2. De modo sintético: constatação da fa­
la; mergulho no (pétreo) mecanismo que a produz; avaliação des­
se mecanismo interno; retomo à superfície da enunciação: “Daí
também porque ele fala devagar:/ tem de pegar as palavras com
cuidado.” Esses dois versos talvez sejam os que demonstrem com
mais nitidez a dimensão metalingüística do poema: neles se expli­
cita uma atitude de fala assemelhada à atitude de texto proposta
por João Cabral — a parcimônia e o cuidado são qualidades rele­
vadas nas partes II, III, IV e V de “Psicologia da composição” .
Através da pedra, a fala do sertanejo e um discurso de poe­
sia se definem. João Cabral distribui os atributos da “amêndoa
pétrea” em poemas que não a evocam diretamente, mas que aco­
bertam o mesmo ideal de tangibilidade e de concretude, em poe­
mas que falam de coisas “densas, recortadas/ bem legíveis, em
suas formas simples” (“Coisas de cabeceira, Recife”, p. 10). Em
nenhum texto, porém, o endosso à pedra é tão ostensivo quanto
no poema que dá título à obra, e que pode ser entendido como o
pendant “teórico” de “O sertanejo falando” :

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal

225
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética; sua camadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta;
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
*

Outra educação pela pedra: no Sertão


(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma. (p. 11)

A segunda estrofe particulariza a “teoria” estampada na pri­


meira, e recoloca a pedra no âmago (“de dentro para fora”) do
ser/dizer sertanejo. A conquista da pedra, em João Cabral, é soli­
dária de tantas outras travessias para o Obstáculo: a busca do
deserto anfiônico, o caminho para a faca intensa em lâmina —
nos três casos, a prevalência de um espaço mineral que, por diver­
so do homem, não lhe devolve a imagem narcísica de um espelho
consolador. Defrontar-se com a pedra, com o deserto e com a
lâmina não é, certamente, abolir o espelho (nem cremos que isso
seja possível), mas é alterar-lhe o ângulo pré-fixado pelo confor­
to de uma tradição lírica. A educação pela pedra implica a apren­
dizagem de uma “desaprendizagem” do “poético” (trata-se de
uma “antilira”), balizada pelo signo-pedra que a condensa: lição
anti-retórica (versos 3 e 4), ética (5), concisa (8).
O tema feminino também está presente na primeira parte do
livro. A equiparação da mulher ao mineral líquido não é fato novo
na poesia de João Cabral (cf. “Rio e/ou poço” e “Imitação da
água”). A novidade é que, agora, o poema não valoriza a ostensi-
vidade da matéria, o espetáculo sensível, plástico, do curso do rio
e do corpo da mulher. A similitude entre ambos, curso e corpo, é
basicamente uma questão de ritmo (ou de ausência dele). “Uma
mulher e o Beberibe” expressa um caminhar fora do compasso
ideal de João Cabral,

Adulto no mangue, [o rio] imita o imovimento


que há pouco imitara dele uma mulher:

226
indolente, de água espaço e sem tempo
(fora o do cio e da prenhez da maré), (p. 15)

que diversas vezes enfatizou o movimento controlado como o


mais propício para tecer o fio do discurso poético.
Na parte “b”, sob a capa de Brasília, Baza, Sevilha, Guadix
e outros substantivos, próprios ou comuns, presentes nos títulos
dos poemas, pode-se vislumbrar a fixação do poeta num tópico
genérico, de que os textos seriam sucessivas atualizações; esse
tópico é o da organização do espaço e deve ser entendido num
triplo aspecto: a) o da organização de um espaço referencial apro­
priado pelo poema (ex. “Uma mineira em Brasília”, “Fábula de
um arquiteto”, “Tecendo a manhã”); b) o das relações explícitas
entre esse espaço e a linguagem que o incorporou (ex.: “Catar fei­
jão”); c) o das relações entre as linguagens de mais de um espaço
textual (ex.: os poemas permutacionais). Nos três casos, é de
metalinguagem que se está falando, e não seria impertinente fri­
sar que a metapoesia cabralina se constrói quase sempre na veri­
ficação dos processos de organização de um objeto; portanto,
qualquer objeto (e não apenas o poema) pode ser alvo de uma
captação que privilegie a forma que o define — o que, em última
instância, remete a um modelo de constituição de linguagem que
o aproxima (ou não) do modelo de linguagem valorizado (ou não)
pelo poeta. Quanto à tripartição de aspectos acima proposta (e
válida para todo o livro), cabe ressaltar que se trata de um recorte
refratário ao estanque. Um texto como “Nas covas de Baza”, con­
siderado como universo autônomo de significação, apontaria para
a rubrica “organização do espaço referencial” ; cotejado a “Nas
covas de Guadix”, o dado mais ostensivo passa a ser o imbrica-
mento de dois espaços lingüísticos análogos.
“Uma mineira em Brasília”, em sua estrofe inicial, efetua a
confluência de um discurso prospectivo (futuro do indicativo) e
de um discurso retrospectivo (pretérito perfeito) no registro do
perfil ainda informe da capital:

Aqui, as horizontais descampinadas


farão o que os alpendres sem ânsia,
dissolvendo no homem o agarrotamento
que trouxe consigo de cidades cãibra.

227
Mas ela já veio com o lhano que virá
ao homem daqui, hoje ainda crispado:
em seu estar-se tão fluente, de Minas,
onde os alpendres diluentes, de lago. (p. 16)

Organizada em dois blocos sintáticos, a estrofe, nos versos


de 1 a 4, focaliza a cidade; de 5 a 8, a mulher mineira. Se a cida­
de futura remete à descompressão existencial (versos 2 e 3), ano­
temos que ela assim se desenha exatamente pela dissolução de um
conceito do que seja o “espaço urbano” (agarrotamento, cãibra) e
pela intromissão de um “ser-no-espaço-rural” de que a mulher é
metoním ia (“em seu estar-se tão fluente, de M inas,/ onde os
alpendres diluentes, de lago”).
A segunda estrofe repete o andamento semântico da primei­
ra, centrando-se em Brasília nos quatro versos iniciais e na intera­
ção mulher/cidade nos restantes:

No cimento de Brasília se resguarda


maneiras de casa antiga de fazenda,
de copiar, de casa-grande de engenho,
enfim, das casaronas de alma fêmea.
Com os palácios daqui (casas-grandes)
por isso a presença dela assim combina:
dela, que guarda no jeito o feminino
e o envolvimento de alpendre de Minas. (p. 16)

O novo (a capital) se instaura pelo aproveitamento metafó­


rico do antigo (casa-grande). A essa dimensão de encruzilhada
histórica se alia, na caracterização da cidade, a sexualização do
espaço (“casaronas de alma fêmea”), de raiz mineira e feminina.
Assim entrevisto, o feminino extrapola sua referencialidade cos-
tumeiramente atada ao ser vivo, e atinge a categoria mineral do
cimento de Brasília.
Não é a prim eira vez, em João Cabral, que a questão da
adaptabilidade entre habitante e habitação (urbana) é levantada.
Reportemo-nos a “Sevilha”: nesse texto, o feminino presidiu a
sensação de um envolvimento presente, enquanto, em Brasília, a
conquista do aconchego se projeta nos calendários do futuro. De
qualquer modo, neste poema, a im agem final do fem inino
(“alpendre de Minas”), envia, como o verso 1 (“horizontais des-

228
campinadas”) a uma espacialidade marcada pela abertura percep-
tiva. O derradeiro verso fala de um lugar — o alpendre — simul­
taneam ente aberto e protegido, da mesma form a que, em
“Sevilha”, a metáfora da roupa-proteção não era impeditiva do
livre movimento, da elasticidade:

§ Ao corpo do sevilhano
toda se ajusta
e ao raio de ação do corpo,
ou sua aventura.

Nem com os gestos do corpo


nunca interfere,
qual roupa ou cidade que é
cortada em série. (p. 167)

Essas considerações são relevantes quando nos defrontamos


com um texto comoí^Fábula de um arquiteto”. Nele se contra­
põem dois espaços — o primeiro (primeira estrofe), de abertura e
liberação:

O arquiteto: o que abre para o homem,


(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa. (p. 20)

É evidente a manutenção da “poética da claridade” estampa­


da no poema “O engenheiro”. Basta cotejarmos os substantivos
do último verso (ar, luz, razão) com os versos iniciais do poema
de 1945: “A luz, o sol, o ar livre/ envolvem o sonho do engenhei­
ro” (p. 344). E a razão de 1965 encontra seu correspondente, vin­
te anos antes, em “o engenheiro pensa o mundo justo,/ mundo que
nenhum véu encobre” (p. 344).
A outra estrofe da “Fábula de um arquiteto” se refere a um
estágio posterior do processo criativo do arquiteto, agora guiado
pelo princípio da reclusão:

2
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.

229
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto. (p. 20-21)

A estrofe repõe em circulação a imagem do feminino como


base de sexualização do espaço, mas a topologia do fechado é ine­
quivocamente contrastante com a “aventura” sevilhana e o alpen­
dre mineiro. O fechado e o profundo não são categorias recusadas
por João Cabral, mas na medida em que o mergulho deixe a pro­
messa da emersão: descer ao fundo para trazer à luz solar o que lá
se escondia (cf. “O sim contra o sim”); às vezes, porém, o mergu­
lho ao poço não tem retorno. A mulher cabralina se configura nes­
ses dois aspectos de profundeza: enquanto possibilidade de tra­
vessia (cf. “A mulher e a casa”) e enquanto espaço de imobilida­
de (“Fábula de um arquiteto”), geralmente associado a metáforas
do período uterino.
Em “Tecendo a manhã”, o título do poema estabelece uma
proposta de espacialização (fundada no produto do tecer) de uma
realidade temporal (a manhã). A parte II de “Psicologia da com­
posição” (1947) já propunha operação semelhante:

Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse. (p. 328)

Mas, pelo exemplo, constatamos que a espacialização do


tempo era, na verdade, um ardil para sua recusa: tratava-se de um
tempo imóvel, suspenso, isento da contingência; espécie de fuga
(“Eu me refugio”) ao tempo através de um espaço mineral e sem
riscos: “praia pura”. Outra é a proposta do poema de A educação
pela pedra:

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos

230
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo;
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos. (p. 19-20)

Agora, trata-se de um registro dinâmico da temporalidade,


baseado na construção solidária, contínua, do espaço coletivo da
manhã. Ao “eu” de “Psicologia da composição” respondem “to­
dos os galos” de “Tecendo a manhã”. Fortemente apoiado em
sinestesias (“apanhe esse grito”), em elipses verbais (“De um que
apanhe esse grito que ele”), em paralelismos morfossintáticos, o
poema sustenta que a paisagem se confunde com a passagem: do
grito de um galo ao grito geral, da noite elidida ao dia comum.
É patente o teor social dos versos; mas é um social que se
esquiva do jogo simplificador de comiseração ou paternalismo
para com o trabalho anônimo, e que foge dos “lugares” propícios
ao discurso engajado. O poeta expressa o social entre os galos e a
fabricação da manhã, e não nas antinomias ideologicamente previ­
síveis (pobre x rico, trabalhador x patrão). E a tessitura do verso
cabralino acompanha o mesmo movimento a que o nível semânti­
co do texto conduz: um verso sozinho não tece um poema. O ver­
so 1 possui caráter assertivo, e é imediatamente posto “a funcio­
nar”, dinamizado pelos versos seguintes; formalmente, há, portan­
to, o mesmo vínculo de solidariedade deflagrado, no nível semân­
tico, pelo galo inicial. Mais: os fios de sol/os fios do verso não
podem ser rompidos; entrecruzados, formam, “desde uma teia
tênue”, a manhã e o texto. Os signos ausentes (elípticos) não impe­
diram a construção do espaço textual, da mesma forma que a
ausência de um galo não seria suficiente para obstar a construção
da aurora: num e noutro caso, a interação/integração dos galos e
das palavras presentes compõe o fio do curso do dia, e do discurso
que o está gerando. E à possível solidão do galo (versos 1 e 2) cor­
responde, ainda formalmente, o isolamento sintático da frase que a
encerra. Uma vez aberto o circuito da transitividade, da teia cruza­
da, as orações se encadeiam (versos 3-12) num único e longo
período: nele cabem todos os galos.
Um desenho sintático sim etricam ente invertido é o da
estrofe 2:

231
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. (p. 20)

O coletivo ocupa o período sintático maior (versos 1-4) e


constrói um objeto (a manhã) que, tecido, se libera do tecelão.
Assim autonomizado, ocupa solitariamente os versos finais, do
mesmo modo que o “galo sozinho” ocupara o verso inicial.
Outros aspectos da relação produtor/produto são focaliza­
dos em “Catar feijão” e “Dois p.s. a um poema” ; mas, nos dois
textos, o produto (diversamente de “Tecendo a manhã”) é referi­
do explicitamente como verbal (a escrita).
“Catar feijão” partilha com o poema anterior a não-indivi-
dualização do sujeito operador — galos anônimos, e, agora, mãos
trabalhadoras:

Catar feijão se limita com escrever:


joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar. (p. 21-22)

O duplo compasso semântico do texto, enlaçando o catar e o


criar, enfatiza uma convergência para o menos: a eliminação da
matéria supérflua (“e depois, joga-se fora o que boiar”).
Em João Cabral, todavia, o endosso dos pontos comuns não
vai abolir a vigília da diferença: o discurso opera na tensão entre
consonância e dissonância imagística. Se há uma zona de aproxi­
mação (consubstanciada, por exemplo, no jogar o feijão-palavra
no alguidar-papel), existem também irredutibilidades, campos de
significados infensos a dupla apropriação:

2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

232
obstrui a leitura fluviante; flutuai,
açula a atenção, isca-a com o risco. (p. 22)

Desfaz-se a corresporidência quando se introduzem as rea­


ções conflitantes que o risco gerou. O desejo do risco — materia­
lizado em “pedra” — é o traço que distingue criar e catar. Obser­
vemos ainda que em “um grão qualquer, pedra ou indigesto”, há
um termo paradigmaticamente substantivo que desempenha fun­
ção (adjunto adnominal) de categoria adjetiva: isomorficamente, o
“grão” que atingiu a sintaxe foi o signo “pedra”, que já contém em
si a noção de obstáculo que seu posicionamento frasal ratificou.
A vinculação entre o trabalho manual e o poético é uma
constante na obra cabralina, com sucessivas substituições dos
vocábulos que comporão o eixo das atividades manuais, ou de
seus resultados. Já em Os três mul-amados se encontra uma ana­
logia entre o produto-poema e o cimento armado (p. 371). “An-
tiode”, de forma irônica, fala da “horticultura” da poesia (p. 335).
Uma faca só lâmina identifica o poeta ao operário (p. 196). “O
sim contra o sim” associa os poetas a cirurgiões e pintores (p. 58-
61). Ainda em Serial, a pejorativa “horticultura” de “Antiode”
reaparece no “poeta-hortelão” de “Generaciones y semblanzas”
(p. 71), símbolo do cultivo obsessivo do próprio “eu”.
Na mesma linha de “Catar feijão” — a da troca parcial de
significados entre dois termos — pode ser lido “Dois p. s. a um
poema”. Seu ponto de referência, seu scriptus, extrapola os limi­
tes de A educação pela pedra para localizar-se na parte 1 de
“Estudos para uma bailadora andaluza”. Os dois “p. s.” (a cada
um corresponde uma estrofe) funcionam como adendo, como
acréscimo de informação ao poema de Quaderna:

Certo poema imaginou que a daria a ver


(sua pessoa, fora da dança) com o fogo.
Porém o fogo, prisioneiro da fogueira,
tem de esgotar o incêndio, o fogo todo;
e o dela, ela o apaga (se e quando quer)
ou o mete vivo no corpo: então, ao dobro. (p. 19)

Mas, a rigor, o que ocorre é um acréscimo nas subtrações de


sentido que o poema anterior principiara a efetuar: aumenta-se o
número dos sinais de menos. Diz-se mais sobre o outro texto para

233
dizer que ele não dizia suficientemente o “menos” que há entre o
fogo e a bailadora. De outro modo: a divergência que “Estudos pa­
ra uma bailadora andaluza” propusera, depois de uma aproxima­
ção inicial, entre “bailadora” e “fogo”, não se restringe ao “arran­
car-se de si mesma” (p. 128) de que só a primeira é capaz; alcan­
ça o apagar ou o ampliar instantâneo de que falam os dois versos
finais do “p. s.” 1. Aumentando-se o vácuo entre comparado e
comparante, enfatiza-se a dimensão de insuficiência deste último,
“imagem pouca e pequena”, conforme o segundo “p.s.” (p. 19).
A correspondência discursiva entre poemas do livro atinge
grau máximo em dois textos que abordam a relação (física) entre o
homem e a terra, configurada como o feminino-matemal (fechado,
protetor). São eles: “Nas covas de Baza” e “Nas covas de Guadix”.
Falamos em “grau máximo” porque o segundo poema (na ordem,
de surgimento no livro) utiliza todos os versos do primeiro, dispos­
tos em novo arranjo. Para sintetizar numa só transcrição as duas
montagens, colocamos abaixo os dezesseis versos, numerados a
cada par; a numeração da esquerda corresponde à seqüência de
“Nàs covas de Baza”; a da direita, à de “Nas covas de Guadix”:

O cigano desliza por encima da terra


1 não podendo acima dela, sobrepairado; 1
jamais a toca, sequer calçadamente,
2 senão supercalçado: de cavalo, carro. 4
O cigano foge da terra, de afagá-la,
3 dela carne nua ou viva, no esfolado; 7
lhe repugna, ele que pouco a cultiva,
4 o hálito sexual da terra sob o arado. 6

De onde quem sabe, o cigano das covas


5 dormir na entranha da terra, enfiado; 3
dentro dela, e nela de corpo inteiro,
6 dentros mais de ventre que de abraço. 2
Contudo, dorme na terra uterinamente,
7 dormir de feto, não o dormir de falo; 5
escavando a cova sempre, para dormir
8 mais longe da porta, sexo inevitável. 8
(p. 17)

234
Atente-se para a simetria do reaproveitamento: cada estrofe
de “Nas covas de Guadix” comporta dois “dísticos” da estrofe 1 e
dois da estrofe 2 de “Nas covas de Baza”. A soma total, por estân­
cia, da ordem dos “dísticos” de “Nas covas de Baza” é idêntica: 1
+ 4 + 7 + 6 = 1 8 ; 3 + 2 + 5 + 8 = 18. É certo que, para uma tal radi­
calização do processo (permuta global), muito contribui a fatura
sintática do discurso: predomínio da parataxe, e construção de
frases com sentido completo de dois em dois versos, o que os tor­
na bem mais maleáveis para o jogo permutacional.
A inscrição do masculino no universo do feminino pauta-se,
conforme dissemos, por duas trilhas distintas. Por uma delas, o
feminino corporifica trânsito, fluência, espaço de não-vedamento
(cf. “Jogos frutais” e “Paisagem pelo telefone”). A segunda trilha,
que anula ou sufoca a sexualização quase sempre explícita da pri­
meira, vê a conjunção sexual em nível de agressão a ser evitada,
tanto pela m ulher (“M ulher vestida de gaiola”), quanto pelo
homem que na parceira busca apenas a imagem de repouso da
vida uterina: “dormir de feto, não o dormir de falo” ; “até refechar
o homem: na capela útero” (“Fábula de um arquiteto”, p. 21).
Ora, muitas versões do feminino podem circular ambiguamente
entre as duas trilhas. A casa, por exemplo (cf. “A mulher e a
casa”), é espaço de recolhimento, mas também é local de circula­
ção. Essa ambigüidade, nos poemas de Baza e de Guadix, é repre­
sentada pela terra: superfície aberta à luz, mas igualmente escuri­
dão e profundeza. Há apenas cinco substantivos do gênero femi­
nino nos textos: terra, carne, cova, entranha e porta. Sendo a por­
ta, através de um aposto, figurada como “sexo inevitável”, a
expressão da duplicidade do feminino fica assim esquematizada:

Carne e porta compõem o eixo do “fora”; entranha e cova, o


do “dentro”; todos esses termos são oriundos, por metáfora ou
metonímia, do signo-matriz terra, que se define pelo fato de ser o
ponto de entrecruzamento dos contrários.

235
Vários poemas do terceiro conjunto (“A”), de temática per­
nambucana, atualizam, sob formulações diversas, a oposição forte
x fraco. Assim, “Duas bananas & a bananeira” registra a agressão
do gesto de “dar banana” e a docilidade da banana-fruta (p. 24).
Com uma única exceção (que veremos adiante), a agressão é, pre-
visivelmente, atributo do termo “forte”. “Agulhas” tem como “fra­
co” o macio e como “forte” a categoria do duro (estrofe 1):

Nas praias do Nordeste, tudo padece


com a ponta de finíssimas agulhas:
primeiro, com a das agulhas da luz
(ácidas para os olhos e a carne nua),
fundidas nesse metal azulado e duro
do céu dali, fundido em duralumínio,
e amoladas na pedra de um mar duro,
de brilho peixe também duro, de zinco.
Depois, com a ponta das agulhas do ar,
vaporizadas no alíseo do mar cítrico,
desinfetante, fumigando agulhas tais
que lavam a areia do lixo e do vivo. (p. 25)

Instalados num território ostensivamente mineral, os ele­


mentos da paisagem sofrem um processo de solidificação: o mar
é “duro”; o brilho do peixe, “de zinco” . Outros signos reforçam o
caráter mineral, asséptico e corrosivo das praias nordestinas:
“agulhas”, “ácidas”, “fundidas”, “metal”, “duralumínio”, “cítri­
co”, “desinfetante” . Essas imagens, tão caras à poesia de João
Cabral, são contrastadas, na estrofe 2, por metáforas impulsiona­
das pelo “vento”, responsável pelo espaço da não-contundência:

O vento, que por outras [praias] leva punhais


feitos do metal do gelo, agulhíssimos,
no Nordeste sopra brisa: de algodão,
despontado; vento abaulado e macio; (p. 25)

j Em “Rios sem discurso”, a fragilidade se traduz na ação


j solitária. E lícita a leitura desse poema como uma espécie de
j “Tecendo a manhã” sob o prisma do mineral: um rio sozinho não
; tece o mar. E, como no texto dos galos, a construção do percurso
fluvial é também reflexão sobre o discurso da poesia; como em

236
“Tecendo a manhã”, não é preciso falar do social para que ele seja
dito:

Quando um rio corta, corta-se de vez


o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água eqüivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

Salvo a grandiloqüência de uma cheia


lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate, (p. 26)

O poema se articula num rigoroso enlace entre o curso do


rio e o ato de linguagem, já a partir do embricamento do verso 2:
o “discurso-rio”. São tão intensas as permutas de significado dos
dois termos que apenas por uma questão de precedência sintag-
mática somos induzidos a ler “discurso” como metáfora de “rio”,
e não o oposto. Podemos optar por leitura diversa: ao invés de um
comparante e de um comparado, defrontamo-nos com dois signos
reciprocamente metafóricos, que convergem para um terceiro ter­
mo, tecido pela indissociabilidade dos precedentes: o discurso-
rio. Esse movimento comanda a produção de sentido do texto, e é
reiterado nos versos de 3 a 7 da primeira estrofe. Neles, arma-se o
seguinte jogo de equivalências: água de poço = palavra dicionária
= palavra no poço. Palavra no poço: o líquido e a linguagem numa
só fluência-, o terceiro termo.
A solidão da estância inicial transmuda-se em solidariedade

237
na estrofe 2, mediante um trabalho contínuo e paciente (“em fra­
ses curtas, então frase e frase”), que supera, pela consistência
interna e homogênea do “discurso único”, as soluções “de fora”
(“uma cheia/ lhe impondo interina outra linguagem”). E, ainda
esta vez, a força é marcada pela agressão: “em que se tem voz a
seca ele combate”.
Em “Os reinos do amarelo”, a agressão, excepcionalmente,
partirá do espaço da fragilidade. O poema antagoniza as catego­
rias do brilhante e do baço; àquela corresponde, na estrofe 1, o
amarelo da fruta nordestina, “que o sol eleva de vegetal a mine­
ral” (p. 34). Nessa estrofe, o poeta alude ainda a um “amarelo
aquém do vegeral” (p. 34), explicitando a seguir:

Só que fere a vista um amarelo outro:


se animal, de homem: de corpo humano;
de corpo e vida; de tudo o que segrega
(sarro ou suor, bile íntima ou ranho),
ou sofre (o amarelo de sentir triste,
de ser analfabeto, de existir aguado):
amarelo que no homem dali se adiciona
o que há em ser pântano, ser-se fardo. (p. 34)

A agressão, portanto (o “que fere a vista”), desliga-se dos


componentes físicos que a marcaram em poemas anteriores para
situar-se num âmbito ético. A vista atingida pelo espetáculo da
miséria humana não é, todavia, portadora de “soluções” ou de
piedade: João Cabral a vê “dando a ver” o que ela vê, sem lhe
impor “interina outra linguagem”. Assim exposto — como se diz,
de um nervo, que está exposto — o amarelo-condição-de-vida
repercute, no poema de A educação pela pedra, o amarelo-cassa-
co-de-engenho de Dois parlamentos:

— O cassaco de engenho
faz amarelamente
toda coisa que toca
tocando-a, simplesmente.

— Limpa tudo do limpo

238
e deixa em tudo nódoa:
— A que há em sua camisa,
em sua vida, no que toca. (p. 119)

Em ambos os textos, a cor está ligada ao que é sujo ou


excrescente — é a “mancha” ironicamente indesejável no fulgor
do produto vegetal (estrofe 1 de “Os reinos do amarelo”). A vida
humana ou animal invade a paisagem como a entropia do claro,
do simétrico, de que o mineral e o vegetal a ele assimilado são os
melhores exemplos. O vegetal é categoria que opera em mão
dupla, ora sendo “alçado” à matéria mineral, ora sendo “rebaixa­
do” ao território da vida e do desgaste, parceiro do homem e do
bicho na mesma ração de impureza. No primeiro caso, temos “A
cana de açúcar de agora” (a cana, em João Cabral, é o mais mine­
ral ou mineralizável dos vegetais):

Agora nos partidos, se entrevê pouco


da arquitetura clara do objeto cana:
seu desenho, preciso até o cortante,
entre a palha informal que a enliana;
sua coluna, matemática mas nervosa,
em seções construidamente, modulada,
escorando toda a laje folhai imensa
com uma leveza de colunas para nada;
seu verniz metalizado; ... . (p. 30)

No segundo caso, “O hospital da Caatinga”. Nesse texto a


oposição forte x fraco não é direta: constitui-se em distribuição
complementar. Ou seja: se “hospital” engloba tanto o elemento
que cura quanto o que deve ser curado, o poema opta por setori-
zá-los, cada qual ocupando uma faixa da imagem:

O poema trata a Caatinga de hospital


não porque esterilizada, sendo deserto;
não por essa ponta do símile que liga
deserto e hospital: seu nu asséptico.
(Os areais lençol, o madapolão areai,
os leitos duna, as dunas enfermaria,
que o timol do vento e o sol formol
vivem a desinfetar, de morte e vida), (p. 29)

239
Numa “ponta do símile” se inscreve o mineral, ligado à ação
desinfetante, sanativa (enfermaria, timol, formol). O que deve ser
limpo e curado localiza-se na outra “ponta”, e reitera a entropia a
que a vida nordestina (inclusive a vegetal) tende:

O poema trata a Caatinga de hospital


pela ponta oposta do símile ambíguo;
por não deserta e sim, superpovoada;
por se ligar a um hospital, mas nisso.
Na verdade, superpovoa esse hospital
para bicho, planta e tudo que subviva,
a melhor mostra de estilos de aleijão
que a vida para sobreviver se cria,
assim como dos outros estilos que ela,
a vida, vivida em condições de pouco,
monta, se não cria: com o esquelético
e o atrofiado, com o informe e o torto; (p. 29)

Há um reaproveitamento semântico do vocábulo “deserto”,


que, de (substantivo) “terreno árido” passa a (adjetivo) “despo­
voado”, advindo daí a ambigüidade de a Caatinga ser algo simul­
taneamente “deserto” (primeiro sentido) e “não-deserto” (segun­
do). Em ambos os contextos, todavia, se pode infiltrar o “hospi­
tal”, visto como o espaço da assepsia (o primeiro “deserto”), ou,
metonimicamente, como o próprio destinatário da assepsia: a
população (o “não-deserto”) nele abrigada — fechando, assim, as
duas “pontas” do “símile ambíguo”. E outra vez a vida surge sob
a égide do menos: “em condições de pouco”, “com o esquelético”
— contrafações, pela ostensividade de seus desfalques, de um
“modelo normal” inatingido.
A paisagem assim rarefeita responde dialeticam ente a
escassez lingüística de seus habitantes humanos. O “falar pouco”
(cf. “O sertanejo falando”) é novam ente explorado em “The
country o f the houyhnhnms” e “The country o f the houyhnhnms
(nova composição)”. O primeiro texto (como, de resto, o segun­
do, que se utiliza de 16 versos do anterior) repõe em circulação a
imagem da pedra para conotar o discurso do nordestino, mas,
agora, a ênfase recai no como falar sobre o homem, ao invés de

240
privilegiar sua fala mesma; todavia, a mudança não esquece o
ponto de partida, uma vez que o falar sobre, em sua forma, incor­
pora aquilo a que se refere:

Para falar dos Yahoos, se necessita


que as palavras funcionem de pedra:
se pronunciadas, que se pronunciem
com a boca para pronunciar pedras.
E que a frase se arme do perfurante
que têm no Pajeú as facas-de-ponta:
faca sem dois gumes e contudo ambígua,
por não se ver onde nela não é ponta.

Ou para quando falarem dos Yahoos:


furtar-se a ouvir falar, no mínimo;
ou ouvrr no silêncio todo em pontas
do cacto espinhento, bem agrestino;
aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não\
avivar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não. (p. 27)

O poema delineia duas situações frente aos Yahoos: a da fala


e a da escuta (estrofe 2). Se a primeira é simbolizada pela pedra e
pela faca, a segunda o é pelo cacto; assim, todos os três termos
são metonímias do espaço geográfico do discurso. Mas, mesmo
assediando com metáforas topologicamente “de dentro” a paisa­
gem nordestina, a voz do poeta é “de fora” ; é sintomático que a
poesia cabralina evite o falar com o sertanejo. Não há incitamen­
tos, não há soluções nem conselhos que configurem uma instân­
cia de poder socorrendo os “necessitados”.
O confronto dos Yahoos cabralinos com os de Swift abre
margem para analogias interessantes. O título do poema resultou
do aproveitamento parcial do título da quarta parte das Viagens de
Gulliver: “Viagem ao país dos Houyhnhnms”. Gulliver, abando­
nado em terra estranha, depara-se com uma civilização em que os
cavalos desepipenham o papel do homem, e este {Yahoo) é ser
irracional, comparado às piores feras da região. Tal espécie “hu­
mana” (perseguida pelos eqüinos, que buscam torná-la mais sub­

241
missa e produtiva) possuiria um lugar social similar ao do serta­
nejo: admite-se o Yahoo, mas desde que seu suor converta apenas
em benefício dos Houyhnhnms. Quanto ao narrador, uma seme­
lhança e uma divergência com João Cabral:

.... articulei afoitamente Yahoo, em voz alta, imitando, ao mesmo


tempo, o melhor que pude, o relinchar de um cavalo à vista do que
ficaram ambos [os cavalos] visivelmente surpreendidos; e o ruço
repetiu duas vezes a mesma palavra, como se pretendesse ensinar-
me a exata acentuação; eu o imitei da melhor maneira, verifican­
do que melhorava perceptivelmente cada vez, embora ficasse ain­
da muito aquém da perfeição. Em seguida, experimentou-me o
baio com uma segunda palavra, muito mais difícil de pronunciar-
se mas que, reduzida à nossa ortografia, pode soletrar-se desta for-
ma, “Houyhnhnm”1.

Expressei o meu constrangimento pelo ouvir chamar-me tantas


vezes Yahoo, odioso animal a que eu dedicava uma aversão e um
desprezo tão absolutos2.

A semelhança reside no (confesso) procedimento de capta­


ção de uma realidade outra, “estranha”, através da mimese da lin­
guagem com que esta realidade se formaliza; e ainda: o caráter
“difícil” desse idioma é análogo à “dificuldade pétrea” do discur­
so nordestino (com a ressalva de que João Cabral não intenta
fazê-lo reduzir-se “à nossa ortografia”).
A segunda transcrição acima sustenta uma postura ideológi­
ca antagônica à cabralina. Gulliver, sem maiores hesitações, rene­
ga seu parentesco e solidariedade com a espécie dos Yahoos, e, de
bom grado, se agrega à voz (ou às patas) do poder, que, exercen­
do as funções tidas como privativas do humano, promulga de fato
uma “eqüinidade” sem eqüidade, visto que a “boa ordem” dos
cavalos racionais ainda repousa num rígido sistema de manuten­
ção das diferenças sociais. Gulliver chega, inclusive, a propor
sugestões no sentido de melhor exploração do potencial físico de
seus (des)semelhantes Yahoos. Em João Cabral:

1 Swift, Jonathan. Viagens de Gulliver. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967, p. 391.


2 Ibidem, p. 402.

242
ouvir os planos-afinal para os Yahoos
com um sorriso na boca, engatilhado:
na boca que não pode balas, mas pode
um sorriso de zombaria, tiro claro. (p. 27)

Em outro contexto, a metáfora do tiro é aproveitada. Re-


ferimo-nos a “O sol em Pernambuco” — que, contrariamente ao
modelo majoritário da terceira seção do livro, não contrapõe for­
ça e fragilidade. Suas duas estrofes explorarão aspectos diversos
de um mesmo eixo de agressividade, mineralmente agregado ao
signo “sol”. Os quatro primeiros e os quatro últimos versos do
texto pontuam com imagens bélicas o percurso solar:

(O sol em Pernambuco leva dois sóis,


sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois, o fuzil de fogo,
incendeia a terra: tiro de inimigo).

(O sol em Pernambuco leva dois sóis,


sol de dois canos, de tiro repetido;
o segundo dos dois, o fuzil de luz,
revela real a terra: tiro de inimigo), (p. 35).

Tais versos (paralelos em sentido e sintaxe), ocupando a


entrada e o fecho do poema, reforçam isomorficamente a noção
circular, cíclica, da ação do sol — tiro repetido — sobre a terra
pernambucana. Atacando em fogo ou em luz, o sol produz o mes­
mo efeito de dèvastação, conquanto com resultados diferentes. En­
quanto o fogo implica agressão ostensivamente física (“assim,
mais do que acender incendeia,/ para rasar mais desertos no cami­
nho”, p. 35), à luz cabe a agressão pelo desmascaramento, quando
a dor assume foro ético diante do que é dado a ver: “dá-se que hoje
dói na vida tanta luz:/ ela revela real o real, impõe filtros” (p. 35).
A quarta seção da obra, como a segunda, se abre com um
tema do feminino; mas, se a seção 2 o localizara nas cantoras do
flamenco, agora ele incide no espaço físico da Espanha. “A urba­
nização do regaço” expressa uma ambigüidade (já referida) da
poesia cabralina: de um lado, o poeta contesta em teoria a topolo­
gia do fechado, do uterino (cf. “Fábula de um arquiteto”); de
outro, endossa o aconchego, a proteção, que a mesma topologia
(então “na prática”) pode proporcionar:

243
Os bairros mais antigos de Sevilha
criaram uma urbanização do regaço,
para quem, em meio a qualquer praça,
sente o olho de alguém a espioná-lo,
para quem sente nu no meio da sala
e se veste com os cantos retirados.

Eles têm o aconchego que a um corpo


dá estar noutro, interno ou aninhado,
para quem torce a avenida devassada
e enfia o embainhamento de um atalho,
para quem quer, quando fora de casa,
seus dentros e resguardos de quarto, (p. 36)

A combinação léxica dos versos iniciais encaminha uma


proposta de gradativa interiorização do espaço, a partir do subs­
tantivo de referencialidade geográfica mais ampla (“bairros”) até
o de mais restrita (“cantos de sala”), atravessando, intermediaria-
mente, “praça” e “sala”. Os versos finais intensificam esse per­
curso de adentramento, com “quarto” e “corpo interno”.
Não deixa de ser interessante observar que outro poema do
livro — “O regaço urbanizado” — se compõe exatamente dos
mesmos 24 versos da “A urbanização do regaço”, dispostos em
nova ordem. Assim como os títulos de ambos já estão, virtual­
mente, “um no outro”, os textos, em sua íntegra, “têm o aconche­
go que a um corpo/ dá estar noutro, interno ou aninhado”. João
Cabral reserva a permuta total de versos aos poemas que temati-
zem a interação masculino/feminino: corpos textuais que se inter-
penetram como os corpos evocados no discurso. Lembremos que
apenas outro par, “Nas covas de Baza” e “Nas covas de Guadix”,
promove a utilização em comum de todos os seus versos, e, como
o par de Sevilha, focaliza o vínculo homem-terra a partir de metá­
foras uterinas.
O veio explicitam ente metalingüístico, nesta derradeira
seção da obra, é representado por “Retrato de escritor” e “Para a
feira do livro”. O primeiro fala da divergência entre o criador e o
objeto criado; traça o “retrato” de um descompasso escritor/escri­
ta, em que os dois termos acabam desqualificados:

244
Insolúvel: por muito o dissolvente;
igual, nas gotas de um pranto ao lado,
e nas águas do banho que o submerge,
em beatitude, e de que emerge ingasto.

solúvel, mais: na [tinta] da fita da máquina


onde mais tarde ele se passa a limpo
o que ele se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito (p. 40)

A comoção com o longínquo (dor indonésia) contraposta à


indiferença com o próximo (pranto ao lado) toma solúvel e fala­
ciosa a integridade ética de tal escritor frente à expectativa de
coerência que João Cabral implicitamente reclama. Mas devemos
indagar se a disjunção arte/existência não estaria, neste passo,
sendo trabalhada de maneira algo simplificadora pelo poeta, na
medida em que a exigência de “equivalências” repousa na ênfase
à figura do criador, que se disseminaria, sem maiores contradi­
ções, em sucessivas versões de que a obra seria um retrato. Com
isso, além de se atrelar a leitura a discutíveis critérios de nexo bio­
gráfico, corre-se o risco de não se compreender o retrato, ou de só
se conseguir enxergá-lo com a presença, em tomo, do retratista.
Mas convém perceber um outro ângulo desse “Retrato de escri­
tor”, para verificar que a voz do poeta não incide apenas na ques­
tão que acabamos de levantar. Mais do que simplesmente contras­
tar vida insolúvel e texto solúvel, interessa a João Cabral carica­
turar as formas pelas quais o par se apresenta. Para a caracteriza­
ção da insolubilidade, promove a convivência do “poético” e do
“prosaico” (“pranto” e “águas do banho”). Já a solubilidade é
marcada por metáforas líquidas extraídas do instrumental utiliza­
do nas diversas etapas gráficas por que passa o texto (tinta de
escrever, caneta-tinteiro, tinta da rotativa), conduzindo a um pro­
duto final também liqüefeito: “(impresso, e tanto em livro-cister-
na/ ou jornal-rio, seu diamante é líquido)” (p. 40).
Do registro líquido-mineral de “Retrato de escritor”, a mate­
rialidade da obra passa à categoria do vegetal em “Para a feira do
livro” :

Folheada, a folha de um livro retoma


o lânguido e vegetal da folha folha,

245
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero. (p. 47)

O signo “folha” (literalmente, ou em formas cognatas, ele


comparece onze vezes nos nove versos iniciais) se inscreve num
espaço textual que anula a diferença entre folha de árvore/folha
industrializada do livro, sendo esta expressa pelos elementos
naturais que circundam ou produzam aquela (vento, árvore). A
“árvore do livro” é, assim, o sintagma-convergência das instân­
cias produtoras ou preservadoras das duas espécies de folha. Com
a equiparação da voz humana ao vento (verso 15), completa-se
um quadro de perfeita simetria, em que cada termo oriundo da
série natural encontra correspondente na série cultural: folha de
árvore/folha de livro; desfolhar/folhear; árvore/livro; vento/voz.
Mas, se o cultural “repete” (verso 5) e “finge” (7) o natural, não
deixa, finalmente, de superá-lo. Enquanto a relação vento/folha
vegetal é marcada pela passividade do último elemento, na folha
do livro se destaca a capacidade de lançar, e não de sofrer, o ven-
to-voz: “mais do que imita o vento, profere-o”.
A segunda estrofe do texto abandona a referência ao natural
para cotejar o objeto livro a outros produtos culturais:

Silencioso: quer fechado ou aberto,


inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:

246
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto, (p. 47)

Nem eterno como o quadro “aberto a vida toda” (cuja expo­


sição contínua dialoga com a inestancabilidade do tempo), nem
fugaz como a música (“viva apenas enquanto voam suas redes”),
o livro concentra um tempo potencial, pronto a ser atualizado
pela participação efetiva do leitor (“exige que lhe extraiam, o
interroguem”). O silêncio do livro, complementar à semântica do
ruído que definira (via vento e voz) a folha, é o ponto de partida a
que se agregam, entre outras, as noções de paciência e de severi­
dade. Não seria infundado ler3, na ótica de contenção que tais
vocábulos propiciam, a reafirmação de atributos que, lançados à
órbita geral do objeto livro, pertencem também, e privilegiada-
mente, à órbita específica da poesia cabralina.

3 Escorei, Lauro: A pedra e o rio. São Paulo: Duas Cidades, 1973, p. 9.

247
XIV — O poeta no espelho

O décimo-quarto livro de João Cabral, editado em 1975,


apresenta um título aparentemente paradoxal. E Museu, com toda
a implicação de hierarquia e seletividade que o substantivo con­
tém; mas é de tudo, e o pronome indefinido desautoriza os recor­
tes, a setorização, que o primeiro termo parecia impor. Que crité­
rios, então, nos poderiam ajudar a compreender — e a visitar cri­
ticamente —- um Museu de tudo ? O bilhete de acesso (ao museu
e a sua interpretação) nos é fornecido pelo próprio poeta no pri­
meiro texto da obra, espécie de roteiro ou prospecto dos objetos
que ela guarda;

Este museu de tudo é museu


como qualquer outro reunido;
como museu, tanto pode ser
caixão de lixo ou arquivo.
Assim, não chega ao vertebrado
que deve entranhar qualquer livro:
é depósito do que aí está,
se fez sem risca ou risco. (p. 3)

Esclarece-se um conceito de museu: reunião de objetos


diversos sem serventia (“caixão de lixo”), mas, ainda assim, pas­
sível de uma operação que agencie os objetos em grupos homogê­
neos (“arquivo”). Ou — para retomarmos parcialmente uma ima­
gem do autor — um “lixo” que não prescinde de uma “triagem”.
É bem pouco complacente o olhar avaliativo que João Cabral diri­
ge à matéria coletada; ele admite que seu museu é produto aleató­

249
rio (“é depósito do que aí está”), desvinculado, portanto, das rigo­
rosas matrizes semânticas ou formais que geraram as duas obras
anteriores — daí a alusão à ausência do “vertebrado”. Mas, se ao
livro falta a coluna, não podemos apressadamente concluir que lhe
faltem as vértebras. O trabalho com cada texto (numa totalidade
de oitenta), isoladamente considerado, não abdica do crivo orde-
nador que João Cabral imprime a sua obra. Assim, a quadra está
presente em 42 poemas, as rimas são quase exclusivamente toan-
tes e em versos pares, e os poemas que referenciam em visada
erótica o feminino se constituem monorrimicamente. Esses siste­
mas de organização, todavia, não se refletem na concepção do
livro como totalidade: são estratégias formais incrustadas na
“microscopia” de cada texto, fornecendo a imagem de um museu
a que podemos aceder por inúmeras portas, e onde as salas não se
concatenam por relações causais ou cronológicas. Mas, conforme
salientamos, a reiteração de objetos afins (mesmo expostos em
salas distantes) nos permite, parcial e retrospectivamente, reperto-
riar o “tudo” que o museu prometera — e admitir, como se com­
provará em breve, que a ampliação do espectro semântico cabrali-
no foi menor do que o título da obra parecia sugerir.
Um aspecto interessante a relevar nesse museu é o largo
espaço que ele concede a “retratos” (ou quadros que apresentem
um rosto humano), em sua grande maioria de artistas. Museu de
tudo, no conjunto das produções de João Cabral, é a obra que
mais referencia e reverencia a própria arte. Basta lembrar que, dos
80 poemas metalingüísticos acolhidos na antologia Poesia crítica
(1982), nada menos do que 40 pertencem ao livro de que ora nos
ocupamos. Por isso, se quisermos distribuir tematicamente as
peças desse museu, não há dúvida de que o agrupamento mais
numeroso será o que engloba o binômio “criador/criação”.
Ao menos quatro outros grupos podem ser localizados: a ) o
de seres humanos não-artistas; b ) o de objetos (à exceção dos
artísticos) e paisagens da ordem cultural; c) o de elementos e pai­
sagens pertencentes à ordem natural; d) o de situações que envol­
vam a problematização do tempo e da morte.
Delineadas as principais conjugações de sentido da obra,
convém salientar que alguns textos podem filiar-se a mais de um
grupo ou série. Assim “Viagem ao Sahel”: suas estrofes 1, 2 e 3
pertencem à “ordem natural” ; a derradeira tematiza o tempo.

250
O grupo “criador/criação” é um bom exemplo de como João
Cabral, aparentando incorporar novas faixas à constituição de seu
universo poético, permanece fiel a ângulos já obsessivamente tra­
balhados. É verdade que, no livro, têm guarida os nomes de mui­
tos criadores até então ausentes da referência cabralina. Duas
questões, porém, podem ser levantadas: a que domínios perten­
cem tais artistas? O que neles se privilegia? Focalizam-se escrito­
res e artistas plásticos, o que vem sendo a tônica de João Cabral
desde O engenheiro', todos os artistas homenageados possuem ao
menos um traço em comum com a concepção (e prática) cabrali­
na da poesia. Em “Para Selden Rodman, antologista”, o poeta
revela: “Há um contar de si no escolher” (p. 79): o discurso do
outro como disfarce de um discurso no espelho. O olhar antolo­
gista do poeta se traduz no exercício de uma identidade, no espa­
ço de uma ressonância, na “luva sósia” de que fala o mesmo poe­
ma. No jogo entre o rosto do artista e sua projeção na linguagem
alheia, o risco que tangencia o criador é a suposição de que sua
face já possua uma “versão final”; e, aqui, a poética de João Ca­
bral parece assumir ares de “balanço definitivo”, na minuciosa
compilação, via espelho, de seus elementos constituintes. Um le­
vantamento não-exaustivo indica a plasticidade (“Acompanhan­
do Max Bense”, p. 4, “A escultura de Mary Vieira”, p. 12), a lumi­
nosidade (“À Brasília de Oscar Niemeyer”, p. 64, “A escola de
Ulm”, p. 71), a concretude (“Díptico”, parte 1, p. 15, “Fábula de
Rafael Alberti”, p. 89), a concisão (“Joaquim do Rego Monteiro,
pintor”, p. 47), a rudeza (“Máquinas, de Vera Mindlin”, p. 62,
“Exposição Franz Weissmann”, p. 75) e a lucidez (“A insônia de
Monsieur Teste”, p. 5).
Um texto condensa todos esses atributos: referimo-nos a
“No centenário de Mondrian”. Suas duas partes vêm numeradas
como “ 1 ou 2” e “2 ou 1”, indicando a inexistência de uma ordem
prévia de acesso ao poema. Cada parte é composta por doze qua­
dras de versos preponderantem ente hexassílabos, com rimas
toantes em versos pares. Os segmentos partem de situações exis­
tenciais antagônicas; em “ 1 ou 2”, a tensão:

Quando a alma já se dói


do muito corpo a corpo
com o em volta confuso,
sempre demais, amorfo,
se dói de lutar contra
o que é inerte e a luta,
coisas que lhe resistem
e estão vivas, se mudas (p. 16)

O incômodo existencial que esses versos expressam decor­


re, em última instância, do desejo de uma prática do menos. A es­
trofe inicial sugere a presença de um núcleo (ao evocar, por con­
traste, o espaço do “em volta”) incompatível com as propostas do
excesso (“muito”, “demais”), e marca pela dor o caráter de tal in­
compatibilidade. A dor conjuga-se, na estrofe 2, à resistência que
o menos e o mais reciprocamente se oferecem.
Descartando-se do prolixo, a alma efetua, a partir da estrofe
3, exercícios de depuração através de imagens que espacializam,
como em camadas, os sucessivos estágios de aprendizagem do
pouco:

para chegar ao pouco


em que umas poucas coisas
revelem-se, compactas,
recortadas e todas,

e chegar entre as poucas


à coisa coisa e ao miolo
dessa coisa, onde fica
seu esqueleto ou caroço (p. 16)

Observemos que a terceira estrofe desmonta, pela antítese, o


quadro erguido nos primeiros versos; nestes, “o em volta confu­
so,/ sempre demais, am orfo” ; agora, “umas poucas coisas”,
“compactas”: diminuição de quantidade, reforço de densidade.
Um outro degrau na escalada do menos é transposto na estrofe 4,
onde à quantidade mínima (“e chegar entre as poucas/ à coisa coi­
sa”) se alia a densidade máxima (“o miolo/ dessa coisa”). Esse
(provisório) fim de percurso, essa plenitude máxima que, segun­
do João Cabral, só o mínimo pode deflagrar, não guarda vestígios
de essências inefáveis: traz, ao contrário, nas metáforas de
“esqueleto ou caroço” as cicatrizes da dureza e da resistência que
marcaram sua obtenção. Todavia, alcançar esse limite do pouco
favorece o desejo de ultrapassá-lo: por isso falamos do provisório

252
fim de percurso. Trabalhar, então, já a partir do ponto extremo da
condensação é o imperativo expresso nas estrofes 5 e 6, que com­
pletam o circuito de aquisição de um modo de enfrentamento do
real análogo (como veremos adiante) ao da arte de Mondrian:

que então tem de arear


ao mais limpo, ao perfil
asséptico e preciso
do extremo do polir,

ou senão despolir
até o texto da estopa
ou até o grão grosseiro
da matéria de escolha (p. 16)

As estâncias subseqüentes focalizam os esforços encetados


para manter viva e atuante a tensão reforçada na travessia das pri­
meiras estrofes:

pois quando a alma já arde


da afta ou da azia
que dá a lucidez brasa,
a atenção carne viva

quando essa alma já tem


por sobre e sob a pele
queimaduras do sol
que teve de incender-se

e começa a ter cãibras


pelo esforço de dentro
de manter esse sol
que lhe mantém o incêndio

centrada na idéia fixa


de chegar ao que quer
para o quê que ela faz
seja o que deve ser (p. 17)

À maneira de Unia faca só lâmina (e não deixa de ser suges­


tiva a re-utilização do sintagma “idéia fixa”, também empregado

253
no subtítulo do livro de 1956), a lucidez se baseia na sustentação
do incômodo, espécie de punhal de uso interno a impedir o enlan-
guescimento da consciência. Para manter a ordem da atenção,
concorre um preenchimento léxico cujo ponto comum é a ênfase
na agressão ao corpo, ou à alma organicamente m aterializada
(“arde”, “brasa”, “carne viva”, “queimaduras”, “cãibras”, “incên­
dio”). A alma, assim ressequida, cabe um imperativo ético: o de
não transigir, o “de chegar ao que quer”. A causticidade do sol
como imagem adequada à impiedosa vigília que o olhar crítico
deve exercer sobre si mesmo está, aliás, presente em “A insônia
de Monsieur Teste”:

Uma lucidez que tudo via,


como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele (p. 5)

Os dois últimos quartetos de “ 1 ou 2” relativizam o alcance


da depuração obtida, ao confrontá-la com a pintura de Mondrian:

então só essa pintura


de que foste capaz
apaga as equimoses
que a carne da alma traz

e apaga na alma a luz,


ácida, do sol de dentro,
ao mostrar-lhe o impossível
que é atingir teu extremo, (p. 17)

Se a arte do pintor holandês é o marco (inatingido) que o


movimento da alma tentara imitar, o discurso do poeta é a imita­
ção dessa imitação. A voluntária dificuldade que a alma se impôs
encontra réplica no longo e tortuoso desdobramento sintático do
texto — que comporta um único período gramatical tramado em
48 versos: em nenhum momento o obstinado “fio” é rompido, até
seu ponto terminal, assinalado pela palavra “extremo”. “Extre­
mo”, portanto, é duplo indicador: dando um sentido concludente
ao universo semântico da parte “ 1 ou 2”, é também o derradeiro

254
(ou extremo) signo a que o poeta recorre para falar dessa mesma
conclusão.
Conforme dissemos, o segundo segmento (“2 ou 1”) parte
de situação contrastante à do primeiro: neste, a tensão; agora, a
dispersão:

Quando a alma se dispersa


em todas as mil coisas
do enredado e prolixo
do mundo à sua volta,
ou quando se dissolve
nas modorras da música
no invertebrado vago,
sem ossos, de água em fuga (p. 18)

A alma de “2 ou 1” expressa exatamente o movimento de


adesão e aderência ao “em volta confuso” e “amorfo” tão avesso
à alma de “ 1 ou 2”. Mas, enquanto à alma acesa a lição de Mon-
drian apontara um intervalo intransponível, sinônimo de fracasso
(“e apaga na alma a luz”), confinando-a ao não fazer de um sol
extinto, agora se trata de um incitamento à produção:

só essa pintura pode,


com sua explosão fria,
incitar a alma murcha,
de indiferença ou acídia,

e lançar ao fazer
a alma de mãos caídas,
e ao fazer-se, fazendo
coisas que a desafiam, (p. 19)

O estilo de Mondrian ensina a superação da letargia (“2 ou


1”); uma vez desperta a consciência, o mesmo estilo, por inatingí­
vel (“ 1 ou 2”), a conduz à inação — ou vice-versa, se nossa ordem
de leitura for “1 ou 2” e “2 ou 1”. Nesse círculo implacável, a al­
ma “discípula” está sempre aquém da pintura “mestra”. Entretan­
to, nas estrofes centrais de “2 ou 1”, o poeta se desvencilha mo­
mentaneamente da ótica “magistral” explícita, centrando-se na
arte de Mondrian e não nas insuficiências de quem busca atingi-la:

255
então, só essa pintura
de que foste capaz,
de que excluíste até
o nada, por demais,

e onde só conservaste
o léxico conciso
de teus perfis quadrados
a fio, e também fios,

então, só essa pintura


de cores em voz alta,
cores em linha reta,
despidas, cores brasa,

só tua pintura clara,


de clara construção,
desse construir claro
feito a partir do não (p. 18-19)

Chegar “à coisa coisa e ao miolo” era, ainda, chegar a algum


lugar. Ao eliminar, por excessivo, o próprio nada, Mondrian se
define pela radicalidade: “construir claro/ feito a partir do não”. É
desse esvaziamento (agora, sim) máximo, dessa depuração abso­
luta, que a arte do pintor se alimenta. E a relação entre palavra e
poema torna-se análoga entre a linha e o quadro, pelo aproveita­
mento de um referencial lingüístico para designar elementos pic­
tóricos: “cores em voz alta” (revitalização do clichê “cor berran­
te”) , “léxico conciso”.
Tensão, desafio, lucidez e obsessão diante do objeto que se
cria; economia, concretude, clareza,_ plasticidade e assepsia no
objeto criado: tais são os traços relevados pelo poeta e, não por
acaso, relevantes no poeta.
Ainda no plano metalingüístico, as anti-homenagens (ou o
espelho negado) se resumem a dois textos: “Retrato de poeta” e
“Anti-Char”. Em ambos, João Cabral ataca as pretensões pseudo-
filosóficas do discurso pouco rigoroso: condena o que não se con­
densa. No primeiro, o léxico escatológico nivela produto de ativi­
dade fisiológica a produto artístico de quem “apenas joga/ com o
fácil” :

256
Pois tal meditabúndia
certo há de ser escrita
a partir de latrinas
e diarréias propícias, (p. 10)

“Anti-Char” pode ser colocado na mesma linha de diluição:

É uma luta fantasma,


vazia, contra nada;
não diz a coisa, diz vazio;
nem diz coisas, é balbucio. (p. 58)

A prática de uma palavra etérea, sem coisas nitidamente


referenciadas, é o oposto do que prega o “Catecismo de Berceo”,
certamente rezado por João Cabral: que “a palavra leve/ pese
como a coisa que diga” ; que “a palavra frouxa/ ao corpo de sua
coisa adira” (p. 33). A aspiração ao evanescente, denunciada no
poeta francês, é ainda descartada na autodefinição contida em
“Resposta a Vinícius de Moraes” : “quem por incapaz do vago/
quer de toda forma evitá-lo” (p. 43).
O setor do “museu” reservado a vultos não-escritores ou
artistas é bastante diminuto. Inclui uma personalidade histórica
(“Frei Caneca no Rio de Janeiro”, p. 92) e mulheres não nomea­
das: “Retrato de andaluza”, “Outro retrato de andaluza” e “A cria­
dora de urubus”, esta última numa ótica de reminiscência

A mulher de Seu Costa


(com medo se sabia)
criava urubus no galinheiro
junto com a criação comezinha. (p. 67)

que se fará mais intensa no livro seguinte, A escola das facas. Já


os dois retratos, trazendo o clima erótico de outros poemas dedi­
cados à mulher de Espanha, são tirados de ângulos diferentes. No
primeiro, João Cabral define seu objeto mediante analogias com
o espaço geográfico espanhol, retomando imagens topológicas da
contenção e do adentramento:

Estatura pequena e nítida


das cidades de onde ela era:

257
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,

cidades que ainda se podem


abraçar de uma vez, completas,
e que dão certo estar-se dentro,
àquele que as habita ou versa,
a entrega inteira, feminina,
e sensual ou sexual, de sesta. (p. 31)

O “abraçar de uma vez, completas” é traço das mulheres (e


das “cidades fêmeas”) já expresso, de forma quase idêntica, em
“Imitação da água”: “e certo abraçar completo/ que dos líquidos
copias” (Quaderna, p. 176). Também o aconchego do “estar-se
dentro” conjugado ao solo urbano se constitui nurna retomada
parcial do tecido imagístico de “A urbanização do regaço” (p. 36)
e de “O regaço urbanizado” (p. 44). A diferença entre esses dois
textos e “Retrato de andaluza” é que neste, João Cabral erotiza a
mulher através de metáforas do espaço da cidade, enquanto na­
queles erotizara a cidade através de metáforas oriundas do espaço
feminino. O que os une é o caráter de uso do feminino: a mulher
como “abrigo natural” do homem, seja para o “dormir de feto” ou
para o “dormir de falo” (p. 17). Entrevista como receptáculo do
masculino, cabe-lhe uma espécie de natureza menor, porque
subordinada ao amplo comando do homem (é dela “a entrega
inteira”). A sintaxe do desejo apresenta-se, pois, com uma única
oração principal: ao masculino incumbe desejar o(a) outro(a): o
eros feminino não tem alvo definido, sua função se reduz a provo­
car o desejo alheio, sem necessariamente desejar esse desejo.
Contínuo domínio, de um lado; contínua disponibilidade, de
outro: eis as pontas desse desenho assimétrico. Essa (er)ótica é a
que prevalece, independentemente das formalizações que receba.
Em “Outro retrato de andaluza”, altera-se o ponto de vista, mas não
se altera o olhar: ao invés da vinculação do feminino à geografia de
sua origem, há uma captação conceituai acionada por operações
sinestésicas envolvendo o visual, o tátil, o gustativo e o auditivo,

Clareza para vários sentidos,


e de luz, mas sem transparência:

258
não clareza de um copo de água,
mas interna, carnal, espessa.

Clareza não só para a vista:


clareza ao dente do pão fresco,
do riso claro à vista e ao ouvido,
ao tacto, de coxa ou de seio. (p. 78)

onde a referência espanhola do retrato só tem guarida no derradei­


ro verso do poema (“ar tanguillo das saias dela”, p. 78). De qual­
quer modo, a postura de passividade não se modifica: a mulher
não vê, é vista; e também não deixa de ser sintomática a metafo-
rização do relacionamento masculino/feminino em torno de “den­
te/pão fresco”, em que o papel devorador é atributo do primeiro
termo. A própria aproximação tátil é marcada unilateralmente,
reforçando a noção de um assédio privativo do masculino.
A distinção entre objetos (ou elementos) e paisagens das
séries cultural e natural não é pacífica, embora a discutibilidade de
algumas inserções num ou noutro grupo não chegue a se constituir
em obstáculo crítico que impeça a validação de ambos. Parece-
nos mais criterioso postular a existência das séries em nível de
incidência (e não de exclusividade) temática. Para ficarmos num
texto já mencionado: a “Viagem ao Sahel” é pontuada por elemen­
tos naturais (sol, água, vento) que são conotados por instrumentos
da cultura (lâmina, bisturi, lixas). Isso não obsta a que tal poema
pertença à ordem dos “elementos e paisagens naturais” : é a partir
dessa ordem que o preenchimento de imagens é deflagrado.
Há casos, porém, em que a armação da obra não permite que
aventemos a existência de uma ordem primeira ou preponderante:
o poema se faz na encruzilhada de natureza e cultura. Sirvam de
exemplo “Pernambuco em mapa” (p. 24) e “El toro de lidia” (p.
56). Os títulos dos textos já indicam a interseção: temos Per­
nambuco — um espaço físico e social — transcrito semiologica-
mente em “mapa”; temos el toro lançado no espaço cultural da
tourada. Situações, pois, diversas da que assinalamos em “Via­
gem ao Sahel”, onde a cultura surgia como metáfora do natural, e
não como um referente a ele contíguo.
Ambas as séries são passíveis de subdivisão no que tange à
escala de grandeza dos elementos que as compõem: há níveis de
micro e de macro-espacialidade. Assim, para o primeiro desses

259
níveis, deparamo-nos com um poema dedicado a um decanter
(série cultural) e com outros sobre a rosa de areia e o avelós (série
natural). Para o segundo nível, a natureza fornece “Impressões da
Mauritânia” (p. 26), “As águas do Recife” (p. 34), “O sol no Se­
negal” (p. 38), “Viagem ao Sahel” (p. 41), “A arquitetura da cana-
de-açúcar” (p. 54), “O cabo de Santo A gostinho” (p. 85). A
ordem da cultura apresenta “Em Marraquech” (p. 20), “Na mes­
quita de Fez” (p. 45), “A capela dourada do Recife” (p. 51).
“Um decanter ” é boa mostra da dimensão ética que João
Cabral costuma atribuir a objetos de pequeno porte. Sem chega­
rem a constituir maioria no espectro de referência cabralino, eles
tendem, não obstante, a ser um dos eixos primordiais da vertente
filosófica do poeta: basta citarmos Uma faca só lâmina, “O reló­
gio”, “Num monumento à aspirina” e “Para mascar com chiclets”
(ambos de A educação pela pedra), entre outros. “Um decanter”
não foge a essa via. Seus seis quartetos ilustram uma espécie de
pedagogia do álcool centrada inicialm ente na capacidade de
expandir o ser humano (“e fazer ainda fluir/ a alma estancada em
rolo”, p. 27) e, posteriormente, na de contribuir para que a expan­
são não se transforme em diluição:

E porque essa garrafa


é em perfis, em cristal, forma,
concreta no espaço nada,
anônimo, em sua volta,

pode ela depois deter,


fazendo-se noz ou centro
daquilo em que se derrama
o que antes fora nó denso,

e mesmo impedir que a alma


já desenodoada, solta,
derrame-se desfiada,
sem carretei, forma ou fôrma. (p. 27)

Atentemos para a sabedoria imagística com que o poeta ex­


trai do objeto um modelo ético: enquanto, para dissolver a intran-
sitividade da alma, o poeta trabalhou o signo “álcool” (explorando
a natureza líquida do que dissolve e flui), a contenção é buscada

260
não no conteúdo (álcool), mas no continente (decanter), que, em
duplo sentido, contém o líquido: o guarda e lhe dá forma precisa,
contida e cristalizada em sua própria forma recipiente. O sólido e o
líquido, a contenção e a liberação, não surgem, pois, como catego­
rias excludentes, mas, antes, passíveis de engenhosa articulação.
A convivência de contrários também está presente (e de
modo mais explícito) num dos poemas do subgrupo “macro-espa-
cial”, série da cultura. Trata-se de “A capela dourada do Recife”,
que promove o consórcio da contradição (no sentido de dicções
contrárias) mediante um jogo entre a abundância e a concisão:

O barroco prolixo
com todos os seus tiques,
e o reto, tão correto,
direto ao que insiste,
são linguagens que rara­
mente coexistem:
só as vi na Capela
Dourada do Recife, (p. 51)

Os dois outros poemas do subgrupo, do ponto de vista da


referencialidade do espaço cultural, compõem um par que atomi-
za o binômio dentro/fora, formando, nesse aspecto, uma tríade
perfeita com “A capela dourada do Recife”: este abarca o dentro
e o fora; “Em Marraquech” explora o fora (o território aberto de
uma praça); “Na mesquita de Fez” estampa a concepção de um
espaço unicamente “de dentro”:

A mesquita de Fez não tem


um de fora, uma casca;
as tendas que se apóiam nela
é que lhe são fachada.

Tem de entrá-la, pois só de dentro


inteira se revela
essa arquitetura que existe
só pela face interna, (p. 45)

Esses três poemas se apresentam, assim, sob o duplo regis­


tro da identidade e da complementaridade: identidade quanto à

261
natureza de seu objeto (arquitetônico), complementaridade na
distribuição dentro/fora de que tal objeto é passível. Já o subgru­
po “micro”, série natural, se constitui a partir da dessemelhança
de objeto: mineral, na rosa de areia de “Díptico” (parte 2), vege-
tal em “O avelós”. Também têm alcances diversos a pedagogia da
areia e a do arbusto. Em “O avelós”, há uma espécie de teleologia
ética (pautada pela agressão) para explicar o convívio de vida e
cinzas no cenário nordestino:

Uma cerca viva existe


pelo incinerado Nordeste

Não é verde para mentir


o incinerado em volta, é adrede:
dá um leite que queima
quem é de fora e a desconhece, (p. 39)

As lições da rose de sable são de ordem metalingüística.


Tensão e diluição, associadas, respectivamente, a verso e prosa,
são as impregnações estéticas que o poeta vai colher no deserto.
Ressaltemos ainda que a oposição (tão cara a João Cabral) entre
consistência e inconsistência, abandonando os pares concreto x
abstrato, e sólido x líquido, desloca-se prioritariamente para a
antítese vertebrado x invertebrado, com quatro ocorrências; uma
delas, em “Díptico”:

Na Mauritânia só deserto,
no seu texto de areia frouxa,
se descobre a rose de sable,
cristal de verso em plena prosa.

Rosa de areia, se fez forma,


se fez rosa, areia empedrada;
aglutinou sua areia solta,
se vertebrou numa metáfora, (p. 15)

A organização da natureza como linguagem é o contrapon­


to, no poema, à organização da linguagem como natureza, na pri­
meira parte do díptico, dedicada a T. S. Eliot (“nessa meditação
areai/ em que ele se desfez, quem tenta/ encontrará ainda cris­

262
tais”, p. 15). Jogo recíproco de textos especulares, onde as metá­
foras do primeiro são a sustentação referencial do segundo, cujas
metáforas são a sustentação referencial do anterior...
Apesar das diferenças que apontamos (de natureza e de
alcance), os elementos desse subgrupo (o avelós e a rosa de areia)
desempenham uma função análoga quanto à sintaxe que estabele­
cem com o espaço que os circunda. Ambos significam uma rup­
tura, uma cisão, diante do que se apresentava homogêneo: fosse o
frouxo deserto mauritano, fosse o exangue solo nordestino.
Dissolver a homotopia pela incorporação da diferença, eis o prin­
cípio que aproxima os dois poemas.
O subgrupo da macro-espacialidade, série natural, conta
com vários textos que enfatizam as relações entre elementos sóli­
dos e líquidos. Ora, como em “O sol no Senegal”,

Aqui, [o sol] deixa-se manso


corroer, naufragar;
não salta como nasce:
se desmancha no mar. (p. 38)

com a liquefação do sólido; ora, como em “Im pressões da


Mauritânia”, com a solidificação do líquido:

Nem o mar é de água: é de zinco,


tecto ondulado, estendido
até o além-olho, no areai
de um país praia integral, (p. 26)

Nos dois exemplos, a conversão da paisagem a um único ele­


mento representa exatamente o contrário do movimento efetuado
no subgrupo anterior: neste, um único espaço (deserto ou solo nor­
destino) permitia a captação de uma diferença (a rosa; o verde);
agora, espaços heterogêneos se confrontam, ocorrendo a absorção
de um deles pelo outro — atinge-se a uma identidade pela anula­
ção imagística da divergência (sol diluído', mar metálico).
“As águas do R ecife” apresentam perspectiva diversa.
Embora, a rigor, ainda se possa falar na solidificação do líquido
(com a animização da água em touro, parte 1), parece-nos mais
fecundo abordar o poema sob outro prisma, revelador de uma
idéia fixa cabralina no que tange à representação dos cursos flu­

263
viais. Antes, porém, transcrevamos as duas “pontas” do texto: as
estrofes 1 (parte 1, subtitulada “Os dois touros”) e 8 (parte 2, sub-
titulada “A queda de braço”) :

O mar e os rios do Recife


são touros de índole distinta:
o mar estoura no arrecife,
o rio é um touro que rumina.

Um certo instante estão imóveis,


nem maré alta nem baixa, ao par;
até que uma derruba e vence,
e ao vencer, perder: se exilar, (p. 34-35)

A parte 1 apresenta os contendores conjunta (estrofes 1 e 4)


e individualmente (2, o mar; 3, o rio). Importa assinalar que o
símile “touro” provisoriamente unifica os adversários, para, em
seguida, demarcá-los em campos díspares (“de índole distinta”).
E, se a aliteração “rio/rumina” reforça, no plano fônico, a solida­
riedade entre o nome e o gesto de que ele é capaz, a paronomásia
“estoura/touro” faz que o verbo já contenha em si a força do subs­
tantivo que o impele.
A parte 2 retrata o combate entre rio e mar. Ambos são refe­
ridos em todas as estrofes, diversamente da alternância par/unida­
de no movimento inicial do texto. A vitória de um dos contendo­
res, minimizada na medida em que significa sua condenação ao
exílio, é, sob o ângulo de nossa análise, menos relevante do que a
existência mesma da luta. O que merece ênfase é o fato de os cur­
sos d ’água, na composição do universo cabralino, deflagrarem
com freqüência um imaginário bélico. Em João Cabral, não há
espaço para o regato, o sereno córrego, o riacho suave e sem ris­
co: o poeta em presta à m atéria líquida a m esm a obstinada e
tumultuosa luta pela sobrevivência que localiza no homem nor­
destino. Já em O cão sem plumas, rio e mar duelavam. Em O rio
e Morte e vida severina, em “Os rios de um dia” e “Rios sem dis­
curso”, a corrente d’água se faz porta-voz do tenaz desejo de
prosseguir, aliando-se a outros rios ou encontrando em si mesma
o ímpeto para não esmorecer. O combate da instância “fraca”
contra a morte é tão recorrente em João Cabral que, noutro poema
de Museu de tudo, "El toro de lidia”, a situação do animal lança­

264
do na arena é equiparada à de “um rio/ na cheia” (p. 56). Da mes­
ma forma como o touro metaforizara a luta do rio, é agora o rio
que sustenta imagisticamente o animal que se defronta com a
morte, numa reversibilidade comparante/ comparado.
A quinta série de poemas poderia, a princípio, repartir-se
entre as anteriores: a categoria do tempo é quase sempre trabalha­
da em relação a um ser ou a um objeto que, de algum modo, a
expresse. Optamos por conceder-lhe autonomia não apenas em
função de sua grande incidência no livro, como também por con­
siderar que ela responde dialeticamente à ótica de ocupação de
espaço que concedemos às séries da cultura e da natureza.
Dentre as várias faces com que a temática do tempo se apre­
senta na obra, as mais recorrentes são a da corrosão e a da morte.
Ambas são focalizadas em duplo registro: o da especulação
(genérica) e o da verificação efetiva. No nível genérico, isto é, no
da morte, e não no do morto nomeado, o poeta considera diversas
formas de aniquilamento, seja o decorrente de causa localizada
(câncer e enfarte em “Meios de transporte”, p. 6), seja o tributário
do desgaste não-pontual, mas contínuo — o que, afinal, se con­
funde com a própria ação do tempo. Para essa direção apontam os
versos de “Viagem ao Sahel”, parte 4,

§ Como o tempo, ainda mais sem corpo,


pode trabalhar suas verrumas?
E se seu corpo é nada,
onde é que as dissimula?
Ora, como mais que o vento é oco
e sua carne é de nada, é nula,
não agride a paisagem:
é de dentro que atua. (p. 42)

e de “Anúncio para cosmético” :

Mas o tempo é de dentro;


dentro ele faz-se, escorre,
e esse escorrer interno
não há nada que o corte. (p. 83)

Tanto nesses exemplos, quanto nos que são fornecidos por


“M eios de transporte” (o câncer é equiparado a um ônibus, o

265
enfarte a um táxi), a etiologia das seqüelas do tempo é provenien­
te de uma produção organizada no interior do objeto, embora à
sua revelia. Daí a recusa cabralina em admitir o tempo como cate­
goria autônoma e externa. Daí, também, as metáforas da corrosão
apoiarem-se em signos (ônibus, táxi) que remetem a uma ocupa­
ção “de dentro”.
“W. H. Auden” (p. 25) e “O espelho partido” correspondem
à verificação prática dos postulados genéricos acima lançados.
João Cabral falara do enfarte; agora (“W. H. Auden”) fala do ser
enfartado (“pois [a morte] matou-te com a guilhotina,/ fuzil lim­
po, do ataque cardíaco”, p. 25); falara do câncer, agora fala do ser
que a ele sucumbiu (Marques Rebelo),

1. A morte pôs ponto final


à arvore solta do jomal-
romance pelo autor previsto
como câncer não como quisto.

Como câncer: signo da vida


que multiplica e é destrutiva,
câncer que leva outro mais dentro,
o câncer do câncer, o tempo. (p. 72)

quando ressalta, mais uma vez, a interiorização da temporalidade


devoradora (“câncer que leva outro mais dentro”).
Já “Duplicidade do tempo”, como o próprio título indica,
não revela apenas a face cáustica do fluxo cronológico; resgata
igualmente sua potencialidade regeneradora: “os humores, vivos
dejetos,/ não se corrompem mais: o tempo/ seca-os ao fim, com
mil cautérios” (p. 65). Por essa via, a temporalidade passa a incor­
porar o atributo da assepsia até então privativo do mineral, vincu­
lando-se a um verbo (secar) que, em João Cabral, é o de mais fre­
qüente utilização para compor o topos da depuração da matéria
física.
Em “O número quatro”, o poeta sustenta que apenas o tem­
po é capaz de superar a solidez e equilíbrio que o quatro confere
aos objetos que de alguma forma o contenham. O texto atribui ao
numeral toda uma rede de significados atrelada a noções de esta­
bilidade e firmeza. Se “a roda, criatura do tempo,/ é uma coisa em
quatro, desgastada” (p. 57), é evidente que o desgaste pertence à

266
“coisa”, não ao “quatro”: sua força ordenadora sobrepaira acima
dos corpos desgastáveis em que eventualmente se materializa.
Estabelece-se, assim, uma relação ambígua entre o que perdura e
o que perece, na medida em que aquele (o número) só adquire
vida através dos objetos que o tempo condena à morte.
Um dos caminhos para contornar a corrente inestancável do
tempo está traçado em “O autógrafo”:

Calma ao copiar estes versos


antigos: a mão já não treme
nem se inquieta; não é mais a asa
no vôo interrogante do poema.
A mão já não devora
tanto papel; nem se refreia
na letra miúda e desenhada
com que canalizar sua explosão.
O tempo do poema não há mais;
há seu espaço, esta pedra
indestrutível, imóvel, mesma:
e ao alcance da memória
até o desespero, o tédio. (p. 87)

O texto joga com três níveis de temporalidade, a saber: a ) o


da escrita dos versos; b) o de sua transcrição; c) o do poema tor­
nado autônomo de seu criador. Enquanto os dois primeiros foca­
lizam uma vivência marcada pelo contraste de sensações dentro
da cadeia temporal (tensão pretérita/calma presente), o terceiro
provoca a disjunção entre o texto-pedra-irredutível e as flutua­
ções da memória (“até o desespero, o tédio”). “O tempo do poe­
ma não há mais” no sentido de que ele escapa às contingências do
tempo do sujeito: o discurso não duplica a precariedade de seu
agente; é este que, em momento de calma retrospecção, imita a
placidez-pedra da coisa criada.
De todos os textos desse subgrupo, o que talvez apresente
perfil mais particular no tratamento do tema seja “Num bar da Calle
Sierpes, Sevilha”. Nele, há uma espécie de anulação da temporali­
dade em favor da plena sensorialização da experiência cognitiva:

Vendo tanto passar


só não assisto o tempo.

267
No corredor tortuoso
da rua é menos denso.

Quanto mais faz passar


em todos os sentidos
o tempo ou se distrai
ou se apaga, dormido.

Seja o que for, o tempo


aqui não é sentido:
nem há como captá-lo,
múltiplo que é e tão rico.

Dá-se a tantos sentidos


que nenhum o apanha,
na vária Calle Sierpes
de Sevilha da Espanha, (p. 7-8)

A primeira estrofe desvincula dois termos em geral associa­


dos: “passar” e “tempo”, para, logo em seguida, minar os traços
ostensivamente físicos que o fluxo temporal poderia deixar: trata-
se de fluxo rarefeito (“menos denso”). O poeta vai, pouco a pou­
co, descaracterizando o tempo como instância perceptível (“ou se
distrai/ ou se apaga, dormido”), e essa imperceptibilidade se deve
exatamente à sua disseminação sensorial (“nem há como captá-
lo/ múltiplo que é e tão rico”). Assim, a onipotência do tempo se
confunde com sua impalpabilidade enquanto realidade autônoma
(“Dá-se a tantos sentidos/ que nenhum o apanha”). Percebe-se um
vazio ou ausência (a do tempo), e nessa ausência se concentra a
promessa do que pode perdurar: o tempo não-marcado é festa
sensorial, e não o cortejo lamuriento da matéria decadente. Um
outro texto (“O alpendre no canavial”, de Serial) já trabalhara a
percepção do tempo nesse nível, mas, então, a materialidade fora
atribuída não aos objetos, e sim ao próprio tempo;

... porque ele...


por contraste com a vida rala,
se condense, se faça coisa,
que se vê, se escuta, se apalpa, (p. 95)

268
materialidade, ademais, expressa em compartimentos estanques
(ver-escutar-apalpar), diversamente do tratamento sinestésico do
poema de Museu de tudo. Ralo, “Num bar da Calle Sierpes, Sevi­
lha”, é o tempo; perde a consistência ao espraiar-se em todos os
sentidos. O que não impede — como se verá adiante — que a
obsessão cabralina com a temporalidade só esporadicam ente
abrace a hipótese de anulação de sua força corrosiva.

269
XV — A família reescrita

A escola das facas (1980) não deixa de ser, à sua maneira,


um outro “museu”: o de Pernambuco. Seus quarenta e quatro poe­
mas atravessam em múltiplas direções o solo pernambucano, dele
extraindo a História e as histórias; aquela, em geral, ligada a per­
sonagens políticos (Abreu e Lima, Frei Caneca), estas à inserção
do poeta no espaço de suas origens, seja através de rememorações
da infância, seja através de explorações genealógicas. Eventual­
mente, a História se entrecruza com as histórias, como em “O en­
genho Moreno”, onde se comenta a vinda de D. Pedro II a pro­
priedade dos antepassados do poeta. Completam o “museu” des­
crições das paisagens vegetais e minerais de Pernambuco e home­
nagens a artistas nordestinos.
Como no livro anterior, é no “texto de entrada” (“O que se diz
ao editor a propósito de poemas”) que o poeta avalia sua produção:

Eis mais um livro (fio que o último)


de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

Poema nenhum se autonomiza


no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do dactilografá-lo.

Um poema é sempre, como um câncer:


que química, cobalto, indivíduo

271
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro. (p. 6).

Enquanto em Museu de tudo o poema-preâmbulo buscava


justificar a heterogeneidade da obra, o acesso ao novo livro
desempenha outra função: a de conduzir a considerações sobre a
poesia em geral, e sobre o embate entre o criador e o objeto que
ele cria. João Cabral reitera algumas concepções já estampadas
em O engenheiro ( 1945) e na “Fábula de Anfion” (1947): poesia
como força indomável, que só se cristaliza plenamente quando
“extinta” no repouso mineral da folha impressa. Assim, “embal­
samar” e “mumificar” são as condições para que, livre do poeta,
o poema efetivamente nasça. Em sucessivas operações de distan­
ciamento de um jorro original (esboço, construção, versão final),
a poesia culmina no “corpo estranho” do livro, já liberta do cor-
po-matriz do criador.
A escola das facas obedece aos modelos rímico e estrófico
largamente majoritários em João Cabral: rimas toantes em versos
pares; estrofes de quatro versos. Se, de um lado, a quadra perde a
predominância numérica absoluta (estando presente em vinte
poemas), não deixa, por outro, de comandar textos com estrofa-
ção diversa: neles, os quartos versos (e os múltiplos de quatro)
tendem a concluir unidades autônomas de sentido (marcadas pelo
ponto e pelo ponto-e-vírgula), num modo indireto de “enquadrar”
o texto.
Analisado no conjunto, o livro revela traços de continuida­
de e de renovação na poesia cabralina. Continuidade, conforme já
assinalamos, pela manutenção de um arcabouço formal prove­
niente de muitas experiências pretéritas; pela recorrência temáti­
ca de Pernambuco e seus topoi: o rio, o canavial, o sertão. Res­
saltemos, no entanto, que o preenchimento temático, em si, é cri­
tério insuficiente para dizer do grau de inovação que uma obra
possa conter: exemplo disso foi Museu de tudo, onde a uma diver­
sificação de temas não correspondeu uma estratificação no modo
de trabalhá-los. Não é esse o caso de A escola das facas. O poeta
consegue criar no texto uma perspectiva até então praticamente
inexistente: a do próprio sujeito lírico enquanto ser histórico. Pela
primeira vez de forma sistemática, o “eu” se confere um lugar
explícito no corpo do poema. De sujeito camuflado sob a 3a pes­

272
soa gramatical (o poeta se contava pelo que via fora de si), João
Cabral passa a incluir o personagem de si mesmo junto à matéria
que conta. O que era antes puro olhar ganha materialidade e se
agrega à série de objetos passíveis de poema. Quase 50% dos tex­
tos trazem as marcas da I a pessoa, e o livro, reveladoramente, se
abre com “Menino de engenho” e se fecha com “Autocrítica” :
permeia as duas pontas da meada a condição histórica do sujeito,
balizada prospectiva (“Menino de engenho”) e retrospectivamen­
te. Mas as pontas não se excluem: se elas são duas, é uno o fio que
as intermedia. Assim, no primeiro poema, se o menino é prospec-
tivo, é retrospectiva a voz que o recria:

A cana cortada é uma foice.


Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana


cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;


o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina, (p. 9)

A carga memorialística do texto já se prenuncia em seu títu­


lo homônimo à obra de Lins do Rego. Mas se trata de um memo-
rialismo que concede ao objeto o papel de destaque no palco da
escrita: para saber do menino, é precis*o saber do ângulo agudo em
foice da cana-de-açúcar. Conforme precisamos, essa estratégia de
encobrimento do sujeito num objeto que especularmente o desve­
la é uma constante na poesia cabralina. Movimento dialético: a
cicatriz que o objeto teria deixado no poeta é também a marca que
o poeta nele imprime para sua caracterização; “um dar-se mútuo”,
uma ressonância de agressividade e contundência que sujeito e
objeto compartilham, verso só lâmina, cana só gume.
Em João Cabral, o componente anedótico não se esgota em
inventário do circunstancial: não se registra apenas um incidente

273
biográfico, já que o evento cede lugar à perquirição ética de seu
sentido. Mas tais indagações, como vimos, estão estreitamente
vinculadas à percepção de formas: daí fazerem convergir o ético
e o estético, de tal modo que ambos os níveis se implicam recipro­
camente. Nessa convergência, o tratamento autobiográfico no
livro acaba traduzindo-se por uma biografia de linguagem, com
“poemas de iniciação” a várias instâncias de produção discursiva.
Em “Autobiografia de um só dia”

Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,

pois são blasfêmias sangue e grito


em meio à freirice de lírios,

mesmo se explodem (gritos, sangue)


de chácara entre marés, mangues, (p. 57)

já se desenha uma relação dissonante entre o gesto do recém-


nascido e o espaço religioso da família (blasfêmia/quarto-dos-
santos), ao mesmo tempo em que se revela outro par de incompa­
tibilidades (chácara/mangue). O discurso do poeta fugirá dos dois
signos de “pureza” (lírios e chácara), privilegiando tanto a topo­
logia “suja” dos mangues quanto uma forma “impura” de expres­
sá-la. Mas as marcas de sua origem (“Parido no quarto-dos-san-
tos”) indiciam uma expectativa de linguagem antagônica àquela
que o poeta desenvolveu. Por isso, é importante acompanhar a
circulação discursiva da instituição familiar, para vermos a partir
de que impasses a dicção cabralina se alimentou. É nessa direção,
finamente metalingüística, e não como evocação sentimental do
passado, que entendemos a problematização da família em João
Cabral de Melo Neto.
Sua ascendência familiar mais longínqua é evocada em três
textos consecutivos: “O engenho Moreno”, “Antonio de Moraes
Silva” e “Fotografia do engenho Timbó” . O prim eiro fala do
fechamento afetivo de um espaço frente a um ocupante intruso,

Essa casa que hospedou,


quando veio, o Imperador,

274
sem saber, com sua frieza
disse nossa indiferença, (p. 16)

o que vem a ser a inversão da indisponibilidade do poeta para


com o espaço-lírio em que nasceu: enquanto coube à casa rejeitar
o Imperador, coube a João Cabral rejeitar a casa.
O segundo poema contrapõe o desgaste físico da matéria a
seu resgate na ordem da cultura,

Nada sobra dos engenhos


que teve esse quarto avô
e é até difícil saber,
dos que tinha, ele habitou.

o que foi, de tanta terra,


o que hoje em dia sobrou,
o que a moenda do tempo
ainda não mastigou?:
O léxico em mel-de-engenho
que ao português integrou,
o pão alegre da cachaça
que de certo destilou,
a sintaxe canavial,
a prosódia de calor (p. 17)

sendo que os signos da ordem cultural (léxico, sintaxe, prosódia) se


fazem cercar por imagens com elementos hauridos na referência da
paisagem natural (mel, canavial, calor). Esse é um dos traços da
poética de João Cabral: o controle de uma vertente abstrata da lin­
guagem através de sua contínua “tradução” por signos do concreto.
Em “Fotografia do engenho Timbó”, a noção de incompati­
bilidade espacial (que, como estamos verificando, é uma das sus­
tentações do discurso familiar do poeta) adquire novo matiz; ago­
ra, trata-se do conflito de um espaço consigo mesmo e não do
confronto de duas áreas hostis:

Casas-grandes quase senzalas,


como a desse Engenho Timbó
que tenho na minha parede
(casa onde nasceu uma avó).

275
A Casa-grande é menos grande
do que a estrebaria e a senzala,
do que a moita morta do engenho,
de que só resta a ruína rasa.

O que de Casa-grande havia


nesse Timbó de um Souza-Leão?
Entre urinóis, escarradeiras,
um murcho, imperial, brasão, (p. 19)

Estabelece-se uma discrepância entre a forma (inferior à da


senzala) e a função (Casa-grande). Esse equívoco semiológico,
que consiste em atribuir um significado a um significante que pa­
rece não comportá-lo, seria possivelmente remediado pela nobili-
tação emanada do símbolo imperial. Mas a relação de contigüida-
de acaba por esvaziá-lo (é brasão murcho), repetindo-se, interna­
mente na Casa, a mesma hipossemia por vizinhança que se confi­
gura no lado externo (estrebaria, senzala, moita morta, ruína
rasa).
Se transpusermos e animizarmos o vínculo senzala-Casa-
grande para o período de infância do poeta, encontrarem os o
binômio trabalhador-patrão. Dado interessante: os empregados da
família, aparentemente, fogem à condição severina tão enfatizada
no trabalhador-tipo da terra nordestina. Habitam um mundo onde
a entrega ao imaginário não é punida, abrindo-se, assim, para a
implícita conivência do poeta. Em “Horácio” , a ruptura com a
ordem pragmática é propiciada pela bebida; em “Cento-e-Sete”,
pelo delírio místico; em “A imaginação do pouco”, pela capacida­
de fabuladora:

Siá Floripes veio do Poço


para Pacoval, Dois Irmãos,
para seguir contando histórias
de dormir, a mim, meu irmão. (p. 90)

Como aspecto recorrente nos três poemas acima referidos,


notamos que, na impossibilidade de negar ou dissolver a vertica­
lidade hierárquica entre senhor e empregado, o poeta a atenua de
duas maneiras: seja, conforme dissemos, pela não-referência ao
caráter eventualmente opressivo da relação (dos três personagens,

276
apenas Siá Floripes é retratada “no trabalho”); seja por sua pró­
pria dissolução na horizontalidade da classe social a que pertence.
Instalado no espaço do “senhor”, o poeta nunca diz “eu” sem res­
paldar-se no “nós”. Em “Horácio” : “Quando nós, de meninos,/
vivemos a doença/ de criar passarinhos” (p. 10). Em “Cento-e-
Sete” :

Antes, estivador no porto,


sua matrícula, “cento-e-sete”,
dispensava-o, e nos dispensava,
de dar seu nome, ou de o saber-se. (p. 33. Grifamos)

Em “A imaginação do pouco”, a presença do irmão (compo­


nente do “nós”) se esgota na primeira estrofe. Mais do que a fra­
ternidade sangüínea, importa a confraternização discursiva. A
escuta do sujeito lírico não é sinônimo de passividade, mas de
articulação potencial com a fala do outro:

Para compor-me o céu dos contos


no começo o vi como igreja;
coisas caídas no contar
fazem-me ver é a bagaceira.

Marianne Moore a admiraria.


Pois se seus jardins eram vagos,
eram altos: o céu rasteiro
era o meu, parco imaginário, (p. 91)

O imperativo da tangibilidade (igreja; bagaceira) experi­


mentado pelo menino é sua resposta — sua tradução — à etérea
imponderabilidade evocada pelo discurso de Floripes: são dela as
palavras, mas é do menino a opção em dirigi-las à esfera do con­
creto. Ele aprisiona à terra o que dela parece evolar-se: daí a apa­
rente autocrítica contida em “céu rasteiro” e “parco imaginário” ;
aparente na medida em que a concretização do abstrato foi pro­
cesso abraçado pela poesia do “eu” adulto; na medida em que, se
o pretérito perfeito de “ver” é atribuído à criança, o presente do
indicativo de “fazer” toma o adulto, ainda agora, cúmplice daque­
la visão.
É também a escuta do menino que leva à fala do poeta em

277
“Tio e sobrinho”. Inexiste o desnível social (não problematizado)
do grupo anterior, mas permanece a assimetria da relação discursi­
va, cujo comando pertence invariavelmente ao ser mais idoso. Se
a criança pouco fala, pode, no entanto, ouvir de igual para igual:

Onde a Mata bem penteada


do trópico açucareiro,
o tio-afim, mais a fim
que outros de sangue e de texto,
dava ao sobrinho menino
atenção que a um homem velho (p. 45)

A aprendizagem do menino implica trair a tradição; não


importa se havia outras hipóteses “de sangue e de texto” já prepa­
radas para que a elas a criança recorresse. A rigor, a dissensão se
iniciara no próprio ato de nascimento, como se lê em “Autobio­
grafia de um só dia”:

os netos tinham de nascer,


no quarto-avós, frente à maré.

Porém em pleno Céu de gesso,


naquela madrugada mesmo,

nascemos eu e minha morte,


contra o ritual daquela Corte (p. 56-57)

Substituir o ritual passa pela reescrita de seu discurso, pela


corrosão das certezas e previsibilidades em que ele, ritual, se fun­
da e com que se quer perpetuar. Daí, em “Tio e sobrinho”, a com­
posição de uma nova ordem genealógica e textual pela eleição de
um ser menos “afim” — o que, na perspectiva da tutela familiar,
denuncia o corte na Corte.
Os seis segmentos do poema atam a História (segmento 1),
a literatura popular (2) e a Geografia (3) a uma escuta que absor­
ve tanto o anedótico —

[O sobrinho]
lembra ainda o que ele contou
de um defunto cachaceiro

278
que levavam numa rede
ao cemitério padroeiro:
acordou gritando: “Água!”
e fez derramar-se o enterro, (p. 46)

quanto os estilos (de ser/de contar) de quem detém o discurso:

Certo, a lixa de Sertão


do que faz, em pedra e seco,
muito apreendeu desse tio
do Ceará mais sertanejo, (p. 47)

A assimilação do estilo “lhe dando o Sertão, seu osso deu-


lhe o gosto do esqueleto” (p. 48). Da anedota (como em “Menino
de engenho”) se destaca o momento em que uma forma de orga­
nização verbal da realidade ganha existência e consistência. Não
é outra a direção de “Prosas da maré na Jaqueira”, onde, entretan­
to, a função pedagógica não é exercida por ser humano, mas pela
maré personificada. Poucos poemas, em toda a obra do poeta,
serão tão confessadamente “de aprendizagem” como esse. Suas
oito partes não apenas registram a interiorização de uma expe­
riência sensível, mas também expressam a maré com a mesma
lição de comedimento que ela ensinara ao menino:

Maré do Capibaribe,
já tens de maré o estilo;
já não saltas, cabra agreste,
andas plano e comedido: (p. 63)

O andar “plano e com edido” do texto se estende por 24


estrofes de 4 versos em redondilha maior, invariavelmente rima­
dos nos versos pares. A primeira parte do poema é a única que faz
confluírem maré e espaço doméstico de João Cabral:

Maré do Capibaribe
em frente de quem nasci,
a cem metros do combate
da foz do Pamamirim.

Na história, lia de um rio


onde muito em Pernambuco,

279
sem saber que o rio em frente
era o próprio-quase-tudo.

Como o mar chega à Jaqueira,


e chega mais longe, até,
no dialeto da família
te chamava de “a maré”, (p. 62)

Na primeira estrofe, ao “nascimento” textual da maré res­


ponde, no verso 2, o nascimento do poeta; esse desejo de conti-
güidade é, no verso 3, ameaçado pelo distanciamento espacial da
origem de ambos (“a cem metros do combate”, com outro signo
bélico, “combate” tributado à água). Parcialmente distanciados
no espaço, o menino e a maré também o serão no tempo: a segun­
da estrofe contrasta o saber da História lida à ignorância da histó­
ria vivida (“sem saber que o rio em frente”): ambas falam do Ca­
pibaribe; o poeta, porém, lhes atribuía cursos paralelos, obstando
a que a História desembocasse na história. Com a terceira estrofe,
ocorre, afinal, a plena incorporação do objeto maré e da palavra
que o indica: “no dialeto da família/ te chamava de ‘a m aré’”. A
intimidade com o objeto, agora duplamente “familiar”, é avaliza­
da por uma espécie de “dicionário doméstico”: se o poeta perma­
nece fiel ao léxico da família, buscará, todavia, a maneira de se
desagregar dessa primeira e confessada herança. O texto familiar
não tem voz; dele, apenas uma palavra (maré) não naufragou no
fluxo do Capibaribe e da existência.
Um ponto comum irmana as partes restantes: a ênfase na
maré enquanto objeto passível de apreensão sensorial; daí decor­
rem as lições de forma anotadas pelo poeta. No segundo segmen­
to, a contenção e a parcimônia do (dis)curso:

Teu rio, quase barbante,


a areia não o bebe mais:
é a maré que o bebe agora
(não é muito o que lhe dás), (p. 63)

No terceiro, a valorização da materialidade de que a lingua­


gem é formada:

280
Muita coisa discorria(s),
coisas de nada ou pobreza,
pelo celulóide opaco
que em sessão contínua levas. (p. 64. Grifamos.)

Já em O rio (1953), há imagem semelhante: “de tarde olha­


va o rio/ como se filme de cinema” (p. 295). Agora, especifica-se
que se trata de um filme não-transparente\ a opacidade do rio-
celulóide transformou em espetáculo a própria consistência do
líquido; o filme projeta a forma e o ritmo de que é feito. Além de
si mesmo, ele só deixa ver, no máximo, os elementos do mínimo,
material ou social (“coisas de nada ou pobreza”).
O quarto segmento reitera o tópico anterior: a espessa mate­
rialidade do rio (“o discurso de tua água/ sem estrelas, rio cego”,
p. 65) e sua convivência com a ordem socialmente enjeitada
(“água de lama e indigente”, p. 65). A esse rio, que se recusa a ser
portador do convencionalmente belo (“tua água sem azuis”, p.
65), o poeta atribui a pedagogia da negatividade: “Não sei se foi
para sim/ ou para não teu colégio” (p. 65) — mestre não interes­
sado em propagar relações harmônicas com o real. E a assimila­
ção crítica do conceito de recusa se estampa com nitidez no quin­
to segmento: se o rio refuta certas versões apaziguadoras do real,
o modo mais produtivo de incorporar essa postura é permitir-se a
recusa, mesmo parcial, dos valores que o próprio rio faz circular.
A lição “negativa” do rio é exemplar na medida em que, ensinan­
do a recusa, admite que a aprendizagem do “não”, fala de dois
gumes, se volte contra quem a incentivou:

Maré do Capibaribe,
mestre monótono e mudo,
que ensinaste ao antipoeta
(além de à música ser surdo?).

Nada de métrica larga,


gilbertiana, de teu ritmo;
nem lhe ensinaste a dicção
do verso Cardozo e liso (p. 66. Grifamos.)

A possibilidade de captar plasticamente o tempo é a lição do


sexto e do sétimo segmento: com isso, a noção de tempo adquire

281
form a palpável e visível. Há uma escala decrescente de impregna­
ção do movimento na matéria, até o atingimento do (literal) “pon­
to morto”:

O tempo se vai freando


(lago que a brisa arrepie)
o rolo de água maciça
que enche e esvazia o Recife,

até frear, todo espaço


(lago sem brisa no rosto),
frear de todo, água morta,
paralítica, de poço. (p. 67)

A apreensão do tempo se expressa, pois, de maneira parado­


xal: é possível quando ele deixa de existir. Convertido em “todo
espaço”, o tempo se permite sentir; mas essa espacialidade máxi­
ma repousa exatamente na ausência de dinamismo, uma vez que
se liga à m atéria inerte (água morta). A velocidade do tempo
impede sua captura no corpo das múltiplas matérias vivas em que
ele, vertiginoso, apenas roça (cf. “Num bar da Calle Sierpes,
Sevilha”); logo, sua fixação só e viável quando ele é totalmente
assimilado à noção de espaço, e com ela se confunde:

Em se mostrar como espaço


ou mostrar que o espaço tem
o tempo dentro de si,
que eles são dois e ninguém? (p. 68)

O derradeiro segmento do texto concentra elementos disse­


minados em estrofes anteriores: o vínculo entre o rio e a infância
do poeta; o passo pesado e pausado do Capibaribe; a marcha do
líquido associada ao fluxo temporal:

Maré do Capibaribe
na Jaqueira, onde menino,
cresci vendo-te arrastar
o passo doente e bovino.

dos quandos no cais em ruína


seguia teu passar denso,

282
veio-me o vício de ouvir
e sentir passar-me o tempo. (p. 69)

Apesar de toda a empatia estabelecida entre o Capibaribe e


seu espectador, as últimas quadras do poema não deixam de assi­
nalar que a identificação só ocorre porque atinge seres heterogê­
neos. O registro da diferença entre um e outro, menino e rio, im­
pede que o percurso de ambos se a visto como algo comum: tra­
jetórias solidárias, mas solitárias. O poeta não se confunde com
seu objeto-interlocutor: se as “prosas” se dirigem à maré, João
Cabral, não obstante, está na Jaqueira; assiste, sem dele partici­
par, ao filme-rio; percebe o “passar denso” instalado no cais. Que
melhor homenagem prestar a esse professor de “passo doente e
bovino” senão modular a retórica da celebração pelo compasso
discreto e “sem azuis” que o aluno aprendeu em suas águas?
Também “Descoberta da literatura” pertence à série que
denominamos “poemas de iniciação” — sendo que, agora, a prá­
tica e a dimensão comunitária do texto formam o ponto de con­
fronto entre o sujeito e a instância familiar. O poeta relata seu
contato com a literatura de cordel, e assinala o contraste entre a
socialização da palavra (por ele executada) e a indignação domés­
tica com a ciência de tal prática. O discurso é, antes de tudo, o
exercício de uma consciência de lugar, quando a “Casa-grande”
se dirige à “senzala”, sua fala se escora num muro intransponível
para o lado subalterno. A confiança em que as duas linguagens
“não se misturam” é o indicador mais seguro de que as coisas “es­
tão em seus lugares”, e deles não devem ser removidas; qualquer
deslocamento seria suspeito. Mas a fala de João Cabral, ao se des-
centrar da tutela familiar, não chega a se colocar exatamente no
espaço do Outro social, apesar de compactuar com os rituais que
o compõem. Senão, vejamos:

No dia-a-dia do engenho
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.

283
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante

receava que confundissem


o de perto com o distante,

e que o acabassem tomando


pelo autor imaginante (p. 74-75)

Como já constatamos em outros textos, o convívio do poeta


com o universo dos trabalhadores se dá pela supressão do caráter
pragmático do labor: irrompe um “segredo” no “dia-a-dia” ; se
uma elipse contorna o teor e o suor desse “dia-a-dia”, o “segredo”
é desvelado: trata-se da acolhida do imaginário (um novo roman­
ce), que não se harmoniza (conspirantes) com a ordem cotidiana.
Mas, conforme dissemos, o desgarramento de um espaço social
(de domínio) não é condição suficiente para total integração em
outro espaço (dominado). Observemos que a palavra do poeta é
“especial”, pois a ela cabe explicar o folheto: persiste a assimetria
num território que ainda mantém as coisas, mesmo mágicas, “em
seu lugar” (“receava que confundissem/ o de perto com o distan-
tante”). Contígua ao cassaco do eito, a palavra de João Cabral,
não querendo ser a da dominação, mas também não podendo dei­
xar de sê-lo, acaba por reduzir-se a “puro alto-falante”, porta-voz
de um discurso que não é o seu. Palavra, portanto, duplamente
deslocada: as marcas da Casa-grande e a empatia para com os
cassacos tornarão precária a permanência do poeta em qualquer
dos dois espaços. Longe de encobrir o impasse, João Cabral per­
mite que aflore na própria organização do texto: utiliza-se de um
metro popular, típico do cordel (redondilha maior), mas se esqui­
va da tradicional cesura na 3a sílaba, e trabalha com uma rima
“difícil” (-ante) em termos de contingente vocabular.
A reação Casa-grande, estampada nos dez versos finais, sur­
ge entre parênteses, sinal tipográfico que reforça o isolamento de
ambos os espaços. O incidente tem uma leitura fam iliar bem
diversa:

284
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçange
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes), (p. 75)

Recriminam-se tanto a linguagem alheia (cf. quatro últimos


versos) quanto o leitor “errado” (“um filho-engenho”) daquela
literatura. O texto não revela se os senhores conseguiram impedir
a continuação dessa prática de descentramento levada a cabo pelo
menino; de qualquer modo, o revide diante de uma situação que
levou à interdição de um discurso foi a criação de um outro texto
abastecido na própria proibição: “Descoberta da literatura”. E o
desempenho censório da Casa-grande acrescentou outras signifi­
cações ao título do poema: a descoberta do cordel, para João
Cabral, implicou o perigo de uma literatura descoberta social­
mente, isto é, sem “cobertura” fam iliar para sua prática; esse
exercício sem proteção possibilitou, via delação, que ela fosse
descoberta e punida pela Casa-grande.
A problematização do par família/discurso constitui o dado
mais sedutor de A escola das facas. Mas, ao lado dessa questão (e,
às vezes, dentro dela), prosseguem reflexões advindas de livros
anteriores, nomeadamente no que concerne às categorias da tem­
poralidade e do feminino, ambas (como tudo o mais) detonadas a
partir de elementos da paisagem pernambucana.
“O teatro Santa Isabel do R ecife” e “Forte de Orange,
Itamaracá” indagam sobre a permanência da matéria, e oferecem
respostas diversas: positiva no primeiro texto, negativa no segun­
do. Ora, como a percepção se baseia num cotejo de, no mínimo,
dois objetos, a contradição das respostas se explica se relacionar­
mos o teatro e o forte a seus respectivos “pares” de contraste. No
Santa Isabel, personificado no poema, o confronto se dá entre seu
“dentro” (a música e a oratória que ele abriga) e seu “fora” (a for­
ma arquitetônica):

285
em vez das redes que lá dentro,
te envolvem, dissolvem, se vão,
fica o meu mudo perfil lúcido,
cristal oposto ao fumo e ao vão. (p. 53)

A ostensividade concreta da arte espacial se sobrepõe à


fugacidade das artes temporais de que o Santa Isabel, literalmen­
te, é palco. A transcrição imagística do fluir do tempo se apóia em
signos (rede, fumo) que compartilham a noção de fragilidade e
inconsistência, fios que não se enredam em matéria sólida e com­
pacta — em “cristal”.
Já em “Forte de Orange, Itamaracá”, o ideal de persistência
é mimado no âmago da própria matéria sólida. É no convívio de
formas minerais (antes, em João Cabral, quase sempre poupadas
do circuito do desgaste) que o poeta vislumbra as marcas da cor­
rosão. Para sermos fiéis ao trespasse cronológico de que o texto
trata, podemos triparti-lo em “estágios”, da exuberância à deca­
dência do metal. O primeiro:

A pedra bruta da guerra,


seu grão granítico, hirsuto,
foi toda sitiada por
erva-de-passarinho, musgo.
Junto da pedra que o tempo
rói, pingando como um pulso,
inroído, o metal canhão
parece eterno, absoluto, (p. 20)

Dentro da ótica de guerra que o texto propõe, a rendição ao


tempo se traduz pela ocupação no espaço, e compete ao musgo o
papel de ponta-de-lança da agressão. Ao evocar o roer do tempo,
“pingando como um pulso” , João Cabral novamente abre seu
compasso dialético, envolvendo dentro e fora: a cicatriz — o roí-
do — é externa, mas seu agente — o pulso — é interno. O segun­
do estágio reitera a inexorabilidade desse m ovimento in ter­
no/externo:

Porém o pingar do tempo


pontual, penetra tudo;
se seu pulso não se sente,

286
bate sempre, e pontiagudo,
e a guerrilha vegetal
no seu infiltrar-se mudo,
conta com o tempo, suas gotas
contra o ferro inútil, viúvo. (p. 20)

Assinalemos que a derrota da matéria mais dura, a do metal-


canhão, é expressa, imagisticamente, pela atuação da matéria
“frágil” e microscópica: “gotas/ contra o ferro inútil, viúvo”. É da
rendição final da dureza (e da durabilidade) que se ocupa o tercei­
ro estágio:

E um dia os canhões de ferro,


sua tesão vã, dedos duros,
se renderão ante o tempo
e seu discurso, ou decurso:
ele fará, com seu pingo
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem,
se possuam ferro e musgo. (p. 20)

O consórcio ferro/musgo corresponde à mesma invasão de


terreno verificada no primeiro estágio, relativa ao vegetal e à
pedra. Nos dois casos, o objeto supostamente inalterável se curva
diante de um fluxo: rio Capibaribe (“Prosas da maré na Jaqueira”)
ou pingar de pulso, é no elemento líquido que João Cabral colhe
a imagem do que é contínuo.
A outra categoria a que nos referimos (a do feminino) foge
parcialmente ao modelo em que se apresentava: poemas monorrí-
micos, rim a toante. Dissemos “parcialm ente” porque “Olinda
revisited” obedece a esse padrão. Seus 32 versos hexassílabos
desenvolvem um ideal de aconchego e adentramento que a arqui­
tetura da cidade propicia:

chãos de tijolo, telhas,


rebocos que respiram
anchuras, estreitezas,

quem visita tal casa


não só passeia nela:
geralmente se casa
com ela, ou se amanceba. (p. 38-39)

287
Tanto em “Olinda revisited” quanto em “As frutas de Per­
nambuco” e “A cana-de-açúcar menina” o poeta não trabalha
com o comparante “mulher”: concentra-se em outros objetos re­
presentantes do feminino, categoria mais ampla de que a mulher
é um dos preenchimentos possíveis. “As frutas de Pernambuco” e
“A cana-de-açúcar menina”, em dísticos rimados, exploram duas
versões antagônicas do feminino: a do despudor e a do recato.
“Jogos frutais” já tematizara as frutas pernambucanas sob o pris­
ma do contato sensual, ávido ou cauteloso. O novo poema, elidin­
do a nomeação específica de cada fruta, a todas atribui um mes­
mo fim — a entrega, dissolvida e “dissoluta”:

Pernambuco, tão masculino,


que agrediu tudo, de menino,

é capaz das frutas mais fêmeas


e da femeeza mais sedenta.

São ninfomaníacas, quase,


no dissolver-se, no entregar-se,

sem nada guardar-se, de puta. (p. 40)

João Cabral seleciona um traço do feminino — o que ele


denomina “femeeza” — e o aplica a comparações (“ninfomanía­
cas”, “puta”) que configuram uma prática intensiva da sexualida­
de; o oposto da versão estampada em “A cana-de açúcar menina”,
onde o descobrir-se (“sem nada guardar-se”) da fruta cede lugar
ao velamento da cana:

A cana-de-açúcar, tão pura,


se recusa, viva, a estar nua:

desde cedo, saias folhudas


milvestem-lhe a perna andaluza.

E tão andaluza em si mesma


que cresce promíscua e honesta:

cresce em noviça, sem carinhos,


sem flores, cantos, passarinhos, (p. 44)

288
Registremos o endosso ético (andaluza honesta) à sensuali­
dade encoberta (saias folhudas) e reprimida (sem carinhos), con­
traponto à crítica ao erotismo que não guarda limites de entrega:
“de puta”. Essa concepção moralista do desejo decorre, talvez, da
arregimentação de categorias polarizadas (o lúbrico x o casto).
Em ambos os textos, a insistência na marca (positiva ou negativa)
despoja de complexidade o feminino, tornando-o, assim, propício
a um rito sumário de julgamento.
Em vários poemas a cana é plantada no solo simbólico da
contenção erótica. Na derradeira estrofe de “O fogo no canavial”,

(O inferno foi fogo de vista,


ou de palha, queimou as saias:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la). (p. 31)

nos dísticos finais de “A cana e o século dezoito”,

mas guardam a elegância pessoal,


postura e compostura formal,

muito embora exposta à devassada


luz sem pudor, sem muros, de várzea, (p. 70)

e em “A Carlos Pena Filho” (“com medo de que a dispam, se


enluta/ (mas a foice logo a desnuda)”, p. 55), há uma espécie de
tangenciamento de um universo de sexualidade e, sim ultanea­
mente, uma postura (ou compostura) de defesa frente a esse mes­
mo universo: recusa de um erotismo que ela própria (“exposta”)
libera e interdita.
Na poesia cabralina, a cana responde pelo acionamento ima-
gístico de espaços díspares. Em “Jogos frutais”, fora definida
como “pura linha” (p. 180): linha que, no imaginário, pode ser
estendida para todos os lugares, prestando-se a uma notável plu­
ralidade de significações. Acabamos de vê-la como feminina; é
masculina em “Tio e sobrinho” (parte 6). É vegetal (“A cana dos
outros”), m ineral (“A cana de açúcar de agora”) e anim al
(“Pernambucano em Málaga”). A escola das facas explora esse
largo manancial metafórico da cana (e do canavial) em 13 de seus

289
44 poemas; em alguns deles, como em “Menino de engenho”, ela
ocupa o centro irradiador da visão poética e existencial do sujeito.
Um ponto comum depreendido das várias versões em que a
cana se oferece é sua capacidade de se ofertar em modelo de lin­
guagem. As “puras linhas”, unidas, compõem uma frase sem
melodia (“A voz do canavial”):

Voz sem saliva da cigarra,


do papel seco que se amassa,

de quando se dobra o jornal:


assim canta o canavial,

ao vento que por suas folhas,


de navalha a navalha, soa,

vento que o dia e a noite toda


o folheia, e nele se esfola. (p. 13)

O andamento binário das estrofes se acompanha de um tra­


tamento binário da imagem: os signos repercutem num outro
(segundo) segmento: “sem saliva” e “seco” se correspondem;
igualmente “jom al”/”folhear” e “navalha”/ “esfolar”. “Canavial”
é a palavra localizada exatamente na metade do corpo gráfico do
poema: isomorficamente, tudo conduz ao “centro”, e tudo dele
parte: o som que não entorpece e que, “de navalha a navalha,
soa”. Esse discurso elaborado na substituição do melódico pelo
agressivamente metálico reaparece em “A escola das facas” :

O coqueiro e a cana lhe ensinam, [ao alíseo]


sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada. (p. 35)

Cana e coqueiro, unidos no aguçar do vento, revelam, quan­


do confrontados, linhagens antinômicas de fala, patenteadas em
texto que João Cabral, de forma quase didática (para sublinhar a
oposição), intitulou “A voz do coqueiral” :

290
O coqueiral tem seu idioma:
não o de lâmina, é voz redonda:

cujo sotaque é o da sua fala,


côncava, curva, abaulada: (p. 32)

Também construído em dísticos, o poem a se inicia por


explícita alusão (e negação) ao som-canavial: “não o de lâmina”.
Contudo, o modo por que as duas vozes se expõem é o mesmo:
um regime imagístico sinestésico, com desdobramentos táteis de
efeitos acústicos (voz do canavial: o amassar do papel, o dobrar
do jornal; voz do coqueiral: côncava, curva, abaulada). E, ao
definir o que é duração (fala) através da plasticidade, João Cabral
utiliza num outro terreno (o do discurso) o mesmo processo de
espacialização do tempo já detectado em poemas anteriores.
O canavial tende a ser caracterizado pela economia retórica
de sua expressão, “a elocução horizontal de seu verso” (cf. o poe­
ma “O mar e o canavial”): secura do som-lâmina e despojamento
da linha reta se correspondem; o auditivo e o visual representam
angulações diversas de um mesmo estilo. Assim, “A cana e o
século dezoito” pode ser lida como a apresentação material de
uma página cuja partitura já nos fora executada em “A voz do
canavial”:

A cana-de-açúcar, tão mais velha


que o século dezoito, é que o expressa.

A cana é pura enciclopedista,


no geométrico, no ser-de-dia,

de certa esbelteza linear,


porte incapaz de se desleixar (p. 70)

A História (o século dezoito) é aqui depreendida (como a


cana) pela forma de um discurso: “geométrico”, “de certa esbel­
teza linear”. Em ambas, um mesmo texto de clareza e claridade,
“no ser-de-dia”, se deixa ler.
Em “Moenda de usina”, o poeta, de modo cab(r)al, equipa­
ra a linha da cana à linha do verso. Acompanhar o trajeto da cana
à moenda é seguir o roteiro da desconstrução de um poema:

291
Clássica, a cana se renega
ante a moenda (morte) da usina:
nela, antes esbelta, linear,
chega despenteada e sem rima. (p. 71)

Repete-se o léxico do texto anterior (“esbelteza linear”) para


promover sua subversão (“despenteada”). A violência contra a
cana (contra o estilo/escrita da cana) promove o contraste entre a
ordem antiga e sua gradativa transformação em desordem:

(Jogada às moendas dos bangüês,


onde em feixes de estrofes ia,
não protestava contra a morte
nem contra o que a morte seria).
Na usina ela cai de guindastes,
anárquica, sem simetria:
e até que as navalhas da moenda
quebrando-a, afinal, a paginam,
a cana é trovoada, troveja,
perde a elegância, a antiga linha (p. 71)

A linguagem da cana se desarticula quando incorporada a


um outro texto, o da usina — instância de agressão a uma forma
literalmente arrancada de sua história e “paginada” num espaço
imposto pela força:

Nas moendas derradeiras tomba


já mutilada, em ordem unida:
não é mais a cana multidão
que ao tombar é povo e não fila;
ao matadouro final chega
em pelotão que se fuzila, (p. 71-72)

Como se leu, a produção de uma linguagem, e seu eventual


silenciar-se (cf. “Descoberta da literatura”), passaram pela pro-
blematização do nível social que o texto, enquanto forma, é capaz
de repercutir. Não seja isso, entretanto, pretexto para se inferir
que o poeta proponha uma visão empobrecedoramente formalista
da História. A form a tematizada já é conteúdo; seria formalismo
demonstrar com que assimetrias, fendas e rupturas a História se
escreve e se deixa ler na relação entre esses dois termos?

292
O livro termina por dois poemas de retorno: “De volta ao
cabo de Santo Agostinho” e “Autocrítica”. No primeiro, há a
consciência de que, se a viagem conduziu ao mesmo lugar, o
lugar já não é o mesmo — História como sinônimo de alteridade,
de transformação do objeto dialeticamente vinculada à mudança
de percepção de quem o acolhe:

Sem a luz não se explicaria


um Pernambuco que existia,

e seja a mesma luz, sem quebra,


hoje é uma luz que não desperta, (p. 92)

“Autocrítica” se reporta à dupla marca da poesia cabralina


em termos da carta topográfica de sua produção discursiva:

Só duas coisas conseguiram


(des)feri-lo até a poesia:
o Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha. (p. 93)

A vacina é o veículo, tanto no primeiro (“Menino de enge­


nho”), quanto no último texto da obra, que m etaforicam ente
designa a incorporação de uma poesia do menos (contra o “falar
rico”). Deflagrada na opção pelo espaço do despojamento, a poe­
sia de João Cabral de Melo Neto “nunca esquece/ o arco de que
foi flecha” (“Descrição de Pernambuco como um trampolim”, p.
22). E não esquece porque, em seu vôo, a flecha carrega dentro de
si — como uma vacina — o arco que a impulsionou.

Rio de Janeiro, maio de 1982.

293
Bibliografia

A) Obras de João Cabral de Melo Neto

1. MELO NETO, João Cabral de. Joan Miró. Rio de Janeiro, MEC,
1 9 5 2 .
2 . . Duas águas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
3 . . Da função moderna da poesia. In: Congresso internacional de
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Janeiro: Edit. do Autor, 1966.
7 . . Poesias completas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.
8 . . Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
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10 . . Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

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Perspectiva, 1974.
2 . . A imitação da forma. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
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4. CAMLONG, André. Le vocabulaire poétique de João Cabral de
Melo Neto. Toulouse: Université de Toulouse-Le-Mirail, 1978.
5. CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo:
Cortez & Moraes, 1978.

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6. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1967.
7. CARONE, Modesto. A poética do silêncio. São Paulo: Perspectiva,
1979.
8. CRESPO, Angel & GOMEZ BEDATE, Pilar. Realidad y forma en la
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Madrid: 3(8):5-69, mar. 1964.
9. ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
10. FREIXIEIRO, Fábio. Da razão à emoção II. Rio de Janeiro: Tempo
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11. GARCIA, Othon Moacir. A página branca e o deserto. Revista do
Livro, Rio de Janeiro: (7):59-71, set. 1957; (8):75-85, dez. 1957;
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12. HOUAISS, Antônio. Drummond mais seis poetas e um problema.
Rio de Janeiro: Imago, 1976.
13. LEITE, Sebastião Uchoa. Participação da palavra poética.
Petrópolis: Vozes, 1966.
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15 . . A metamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Eldorado 1974.
16 . . Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
17. LOBO, Danilo. O poema e o quadro. Brasília: Thesaurus,1981.
18. MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
19 . . A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
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Poetas do modernismo. Antologia crítica. Brasília: INL, 1972,
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21. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
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23. PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva,
1971.
24. RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O modernismo na poesia. In:
COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. 2a ed., Rio de
Janeiro: Sul-Americana, 1971, vol. 5.
25. SAMPAIO, Mana Lúeia Pinheiro. Processos retóricos na obra de
João Cabral de Melo Neto. São Paulo: HUCITEC, 1978.
26. SENNA, Marta de. João Cabral, tempo e memória. Rio de Janeiro:
Antares, 1980.
27. SOARES, Angélica Maria Santos. O poema, construção às avessas.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
28. ZAGURY, Eliane. A palavra e os ecos. Petrópolis: Vozes, 1971.

295
Outros ensaios
MORTE E VIDA CABRALINA*

O sertão se comprime em poucas páginas da vasta obra de


João Cabral de Melo Neto. Poeta pernambucano, sim, mas de um
Pernambuco aquém-sertão, situado entre as muitas crinas dos
canaviais da Mata e o apelo oceânico do Recife. Na contramão
dos nordestinos que migram com e como o rio Capibaribe, João
Cabral, retirante às avessas, sobe do Recife de O cão sem plumas
(1950) para o sertão inaugural de O rio (1953). Duplamente inau­
gural: por abrir o poema e por comparecer pela primeira vez à
obra do escritor:

Lembro-me bem de que baixava


entre terras de sede

Rio menino, eu temia


aquela grande sede de palha

Por isso é que ao descer


caminhos de pedra eu buscava.1

Curiosa aparição no imaginário do poeta — o sertão já nas­


cendo sob a forma de um lapso, uma lacuna: “não consigo me
lembrar/ dessas primeiras léguas/ de meu caminhar”2. Fiel a essa

* Comunicação apresentada no Colóquio Sertão: Realité, Mythe et Fiction (Universidade


de Rennes, 1991) e posteriormente publicada no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, em
22/03/1992.
1 MELO NETO, João Cabral de, Poesias completas. 2’. ed., Rio de Janeiro: J. Olympio,
1975, p. 273.

299
marca de esquecimento, o sertão recalcou-se no discurso do poe­
ta, para só reaparecer com vigor doze anos depois, em A educa­
ção pela pedra. Ao ocultar-se na memória do rio-criança, que
dele não se recorda, o sertão, todavia, não deixa de vincar a paisa­
gem lexical do texto: “terras de sede” , “caminhos de pedra” .
Coisas que o rio-menino, já no Agreste, nem sabe se viu, mas de
que se fez testemunha “por ouvir contar”3; e o pior cego é o que
não quer ouvir. Impossível apagar as imagens de um vazio “onde
só pedra é que ficava”4: domínio mineral de uma topografia
ostensivamente cheia de nada. Em Cabral, o sertão nasce para
anunciar a morte: sertão, serThânatos. Natureza desfalcada, palco
de atores — bichos, homens, rios — em perpétua retirada, ele
também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma afir­
mação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devasta­
ção e resistência que a poesia de morte e de vida cabralina vai ten­
tar traduzir o sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-
lo, levá-lo além, de um ponto a outro: do verso do poeta ao rever­
so do deserto (ou desertão) onde a vida severina pede passagem.
Traduzir o deserto solar do sertão no deserto polar da página bran­
ca, pois “o sol de palavra/ é natureza fria”5.
Por enquanto, fixemos este ponto: no início, Cabral apenas
sabe que (h)ouve um sertão, sobre o qual não pode falar com juste­
za. Dele falará quando o discurso poético aprender a apreendê-lo no
vazio e na vertigem da carência, numa linguagem rarefeita contra a
cultura do supérfluo. Traduzir o sertão é traduzir-se nele: deixar-se
conduzir com palavras desencapadas para o lado menos confortável
da fala, onde nem mesmo exista o consolo de uma pedra no meio do
caminho, pela simples razão de a pedra confundir-se com o cami­
nho inteiro: “Por isso é que ao descer/ caminhos de pedra eu busca­
va” — o rio fala, e Cabral assina. De tanto caminhar sobre palavras-
pedra, e de tanto apanhar apanhando-as, o discurso cabralino
desembarcou mais tarde em A educação pela pedra, livro que, sem
dúvida, mais explicitamente incorpora e desenvolve a temática ser­
taneja. Nessa travessia, alguns poemas já foram sinalizando aquilo
que, em Cabral, o sertão viria evocar —■um modelo ético e poético:

2 ld„ ibid.
3 Id„ ibid.
4 Ibid., p. 274.
5 MELO NETO, João Cabral de. Primeiros poemas. UFRJ: Faculdade de Letras, 1990,
p. 45.

300
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.6

Para que a missão da vida se transforme em insubmissão à


morte, há que se fazer a travessia referencial do seco ao úmido da
Mata, e textual do úmido de um discurso “piedoso” ao seco de
uma fala só lâmina:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca.7

Análoga preocupação em transformar a palavra florida em


palavra-ferida já acompanhava o poeta desde a longínqua (1947)
Fábula de Anfion. Nela, e não à toa no cenário de um deserto, o
personagem, derrotado pela súbita folhagem do acaso, opta pelo
silêncio. Desfaz-se da flauta, devolvendo-a àquilo que não domi­
na: a água, os imponderáveis caminhos — “A flauta, eu a joguei/
aos peixes surdo-mudos do mar”8.
Ambigüidade da água: portadora da vida, é também agente
do excesso, da exuberância, de uma proliferação descontrolada
que repugna ao poeta. Daí a água de Cabral ser aquela do sertão:
fios de rios exíguos, que elevam à mais alta tensão o combate
entre o líquido e o sólido. A água lhe interessa, antes de tudo,
como elemento de trânsito, de articulação, espécie de correspon­
dente metafórica da sintaxe, linha que tece a ligação entre ele­
mentos. Em Cabral há um discurso que fia e que desconfia, que
apalpa o que vê para tentar fugir ao embuste, “folha prolixa,
folharada,/ onde possa esconder-se a fraude”9.
Água moldada pela terra — poeta fluvial, não marítimo. Ou
água contida, imóvel — num poço ou numa garrafa, “forma cor­

15Id. (1975), p. 165.


7 Ibid., p. 75.
8 Ibid., p. 327.
s>Ibid., p. 76.

301
reta e explorável”, 10 como dissera em Os três m al-am ados
(1943). Essa obsessão da represa leva o poeta a imobilizar a pró­
pria água do oceano:

De flanco sobre o lençol


paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha.11

O mar que mais atrai João Cabral é aquele passível de disci­


plina, de ordenação, “o avançar em linha rasteira da onda;/ o
espraiar-se minucioso” 12, “o mar e seu tão puro/ professor de geo­
m etria” 13. Em outro poema, de caráter m etalingüístico
(“Catecismo de Berceo”), o poeta reafirma seu interesse pela
água sinônima de ramificação, e não de volume:

Nem deixar que a palavra flua


como rio que cresce sempre:
canalizar a água sem fim
noutras paralelas, latente.14

Chovem exemplos dessa aliança entre água e algo que a


conduza, numa espécie de rede hidrossintática que irriga a super­
fície áspera do texto e da terra de João Cabral. Água sempre
oriunda das entranhas do solo, sem referência a dádivas de
nuvens. O arrancar-se de si mesmo é um dos tópicos obsessivos
que o poeta recolhe de sua perscrutação ética da natureza, e será
também vislumbrado no âmago da fala nordestina: “o caroço de
pedra, a amêndoa pétrea,/ dessa árvore pedrenta (o sertanejo)/
incapaz de não se expressar em pedra” 15.
A singular harmonia entre forças contrárias vem expressa
em “Na morte dos rios”:

“>Ibid., p. 369.
Ibidi., p. 175.
12 Ibid., p. 7.
13 Ibid., p. 314.
14 MELO Neto, João Cabral de, Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975,
p. 33.
15 Idem. Poesias completas. 2‘. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 8.

302
Desde que no Alto Sertão um rio seca,
a vegetação em volta, embora de unhas,

faz alto à beira daquele leito tumba.16

Percebemos, numa sábia teleologia, que o Alto Sertão é


auto-sertão, ao disciplinar internamente suas relações, aqui entre
os reinos vegetal e mineral. E compete ao ser humano quebrar
essa harmonia de naturezas em trégua na mesma desolação:

Desde que no Alto Sertão um rio seca,


o homem ocupa logo a múmia esgotada:
com bocas de homem, para beber as poças
que o rio esquece, e até a mínima água17.

O sertão de Cabral é singularmente silencioso. Não há urros


animais ou humanos, nem estrondo de águas, nem mesmo o cre-
pitar de folhas sob um sol assassino, ou ainda o impacto de cascos
na caatinga. Reduzida a sua expressão mais tosca — as pedras e o
rio, e de vez em quando alguma coisa viva aí no meio — , a
Natureza, ainda assim, não cessa de falar: não cessa de, ao dar-se
a ver, exibir o modelo pelo qual ela se articula em paisagens e
palavras: “Quando um rio corta, corta-se de vez/ o discurso-rio de
água que ele fazia” 18.
O sertão não é unicamente um lugar; é um estilo. Captá-lo,
traduzir-se nele, é estar atento a suas incontáveis configurações,
sobretudo as discursivas. O que João Cabral absorve de um tio
sertanejo não se restringe às anedotas, privilegiando, antes, a for­
ma de contá-las:

a lixa do Sertão
do que faz, em pedra e seco,
muito aprendeu desse tio
do Ceará mais sertanejo.19

O estilo-sertão, em tudo oposto ao estilo-doutor, incorpora-


se, como memória portátil, ou coisa de cabeceira, à trajetória do

is Ibid., p. 9.
n Ibid.
is Ibid., p. 28.
19 MELO NETO, João Cabral de. A escola das facas, Rio de Janeiro: José Olympio,
1975, p. 175.

303
poeta, que vai localizá-lo em realidades aparentemente distancia­
das de seu foco de origem, Guimarães Rosa já não disse que
sertão é quando menos se espera? Pode, por exemplo, compor o
estilo das cabras mediterrâneas, sobre as quais afirma o poeta:

Mas não minto o Mediterrâneo


nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos das do Moxotó.20

Atmosfera cheia de luz, espaço sempre diurno: sertão é uma


palavra cercada de sol por todos os lados.
Chegamos, pois, a uma equação bastante curiosa. Aquilo
que é empecilho à vida — a secura, a esterilidade — é exatamen­
te a seiva de que se vale Cabral para sertanizar seu discurso: é o
sertão vazio que subjaz à eclosão do texto. Alimentado por essa
dupla operação do menos — a de um discurso “pobre” haurido
numa realidade que lhe serve, por míngua, de espelho — o poe­
ma cabralino, a exemplo da fome, expande-se no interior de sua
própria carência.
Gerado, portanto, a partir de um paradoxo — o de dizer,
sim, que só se pode dizer no não — , o texto de Cabral, também na
sua vertente sertaneja, se abastece na obsessão pelo avesso. Os
signos se alargam pela convivência menos ou mais pacífica com
seus opostos, num processo em que o choque se transforma em
incorporação, horizonte de contínuas travessias de um a seu con­
trário. Em “Fazer o seco, fazer o úmido”, o povo seco da caatinga
produz a úmida, langorosa música do cordel21; em outro texto22,
a entonação adocicada do sertanejo abriga um caroço de pedra.
Minerais se animizam, animais se vegealizam, homens se minera-
lizam. Nesse universo ern. turbulência matafórica, cujo ponto últi­
mo e ótimo parece ser a perfeição imortal da pedra, os minerais,
por via alegórica, suprem o papel vital de homens e bichos. Mas,
quando assim investida, a água propende para a mesma autodes-
truição dos viventes. Como, em princípio, a natureza mineral é
infensa à dicotomia vida/morte, cabe ao campo da metáfora matar
aquilo que não pode morrer: “O rio corre; e assim viver para o rio

20 MELO Neto, João Cabral de. Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975,
p. 175.
Ibid., p. 13.
22 Ibid., p. 7.

304
(...) viver vale suicidar-se todo o tempo”23. O rio passa a ser
exemplo de “suicídio permanente”, e “induz ao suicídio a pressa
deles”, sobressaindo-se, nesse último verso, um componente éti­
co. Já em “A fumaça no Sertão” a ênfase recai no estético: “Onde
porém, porque não pode o barroco,/ ela [fumaça] pode empinar-
se essencial, unicaule; (...) uma palm eira coluna, sem folha­
gem”24. A nudez em riste do caule remete à obsessão da reta, do
caminho mais econômico e sem insterstícios, numa clara recusa
ao barroco, à volúpia da voluta. Cabral deseja um espaço que se
componha por subtração, até, quem sabe, roçar a miragem da
ausência absoluta. Esse ir direto, esse defrontar-se com a coisa
desguarnecido de acolchoamentos eufemizantes, está na origem
do que alguns acusam ser a “desumanidade” do poeta, hostil à
hipérbole e aos espasmos de comiseração. Não se encontram em
seus textos conselhos ou incitações aos miseráveis do Nordeste. E
não se procure em A educação pela pedra um único sertanejo per­
sonalizado, que possua um boi, uma esperança, um chinelo. Só
encontraremos o sertanejo, figura exemplar, conjugação potencial
de traços localizáveis em séries de Severinos. ■Como rímbéiti e
figura exemplar, na planície geral da literatura brasileira, o poeta j
João Cabral dè Melo Neto, aütõFde~urna obra admirável pela coe- j
rência em rejeitar as avenidas noturnas e fáceis do lirismo, e pela j
ousadia de se embrenhar nos desvios mais íngremes da lingua-/
gem, para neles buscar as palavras e os poemas que esperam, semj
pressa, amanhecer. -------------- —------''

23 Ibid., p. 28.
24 Ibid., p. 11.

305
JOÃO CABRAL: MARCAS*

Marca — (...) 2 — Sinal que se faz num objeto


para reconhecê-lo. (Aurélio)

Em pelo menos três acepções podemos falar de marcas do


discurso cabralino, conforme o ponto de vista se abalance para
uma angulação retrospectiva, prospectiva ou interna. Pela primei­
ra, cabe averiguar que traços da herança modernista se inscreve­
ram na obra de Cabral; se esses traços sofreram transformações e
qual o efeito dessas eventuais mudanças. Pela segunda angulação,
prospectiva, cabe avaliar sua ressonância nos autores e movimen­
tos que se lhe seguiram; pela terceira, cabe apontar os elementos
que constituem a especificidade de seu universo poético. A pri­
meira e a segunda perspectivas privilegiam o que, em Cabral,
transborda para autores pregressos ou futuros; a última incide em
núcleos idiossincrásicos que, conjugados, formam sem dúvida
um corpo estranho no percurso de nossas letras: o que o precede
não o anuncia, o que o sucede não o denuncia. É claro que todo
discurso é situado historicamente, e seria ingênuo sustentar a
crença em falas absolutamente inaugurais. Negar as expectativas
de um tempo não significa anulá-lo, mas reescrevê-lo sob um
outro viés. Autores que respondem canonicamente à demanda de
suas épocas correm o risco de desaparecerem com elas, por não
terem injetado em seus textos um suplemento de sentido que os
capacitasse a suportar demandas vindouras. As notas dissonantes,
ainda que pouco perceptíveis a olhares contemporâneos, cons-
troem a precária ponte de onde um texto assina e encara a própria

* Conferência apresentada no concurso para professor titular de literatura brasileira da


Faculdade de Letras da UFRJ (1993) e posteriormente publicada em Range rede n° 0.
Rio de Janeiro: Palavra palavra/ Grupo de Estudos Literários, outono de 1995, p. 5-17.

307
posteridade. Todavia, a institucionalização do novo a qualquer
preço conduz ao seguinte impasse: se o texto que não rompe nor­
mas é em si previsível, também é previsível o texto que as rompa
na obediência ao rompante estatutário prescrito pela gramátiva do
novo. Conservar o dito, num caso, e conservar o processo de des­
truição do dizer, no outro. Falta postular uma terceria hipótese, a
do texto que irrompe fora do dualismo, às vezes rígido e artificio-
so, entre o antigo e o moderno, e que dissove polarizações marca­
das como boas ou más num gesto dialético refratário às simplifi­
cações do direito e do avesso. Diríamos que, em larga medida, a
tentação do avesso condensa o fascínio e o declínio das vanguar­
das. Tomemos o exemplo da paródia: com ela, supõe-se demolir
um edifício, quando, a rigor, ele é reconstruído de cabeça para
baixo no subsolo. Numa relação algo incestuosa com a lingua­
gem, o texto-matriz cintila sobre os escombros, pois, pretensa-
mente aniquilado, transforma-se na grande fonte de sustentação
do novo texto que o acusa. Ao fim e ao cabo, o texto paródico ter­
mina endossando, mesmo às avessas, a força fecundadora daqui­
lo que pretendeu, pela derrisão, sufocar. O mais grave é que
vários procedimentos, estratégicos na linha de frente de 1922,
quando ao menos correspondiam a ataques contra a m áquina
obsoleta do tardoparnasianismo, acabaram cristalizando-se em
clichês de uma discutível tradição do contrapoético. Nem é mais
preciso que o leitor, com sua abúlica indiferença, aponte a demis­
são da poesia: os próprios poetas, gostosamente, se incumbem da
tarefa. Diversos autores mimeografados, por exemplo, restringi-
ram-se a criar paródias involuntárias a certos rituais (contra-) esti­
lísticos de 22. Qualquer espasmo verbal quis legitimar-se pelo
filão da poesia-minuto; desajeitadamente, inventou-se a poesia-
segundo. O desconhecimento flagrante do legado literário e cul­
tural travestiu-se de “pureza primitiva de expressão”; afinal, não
é necessário “ver com olhos livres?” O veio do coloquialismo ser­
viu de respaldo à indigência vocabular. Matérias que exigissem
reflexão mais densa eram a priorí descartadas, por serem “coisa
de literatos” . Assim, a desritualização da linguagem literária —
sempre empurrada pela ritualização do avesso — confinou a poe­
sia, em mãos epígonas, a um receituário lúdico de ocasião, a uma
estreiteza perceptiva que, na mitificação do antinormativo, só exi­
gia do escritor, no limite, uma condição: a de que não soubesse

308
escrever. Oswald de Andrade não pode ser o culpado da “contri­
buição milionária de todos os erros” cometidos em seu nome:
seus próprios equívocos já são suficientes. Mas é em Oswald, cer­
tamente, que podemos lastrear não somente alguns pontos de
conexão com a poesia de Cabral, como, sobretudo, pontos de des­
conexão similares com que ambos os poetas trabalham frente a
certos padrões líricos. Em outros termos: a marca maior é pela
ausência, espécie de poética negativa am parada em recusas
comuns. E nítido, porém, que a operacionalização dessa recusa,
ou seja, o desdobramento desse “não”, leva a resultados inteira­
mente diversos, quer no plano detalhado da microcomposição do
poema, quer no plano geral da arquitextura das respectivas obras:
uma, tramada sob o signo da premência, da euforia, da elipse, da
parataxe; outra, a cabralina, sob o signo da paciência, do ceticis­
mo, da análise, da hipotaxe. A minimização do melódico, a dilui­
ção de fronteiras entre o prosaico e o poético, a utilização de um
léxico sem chancela, o gosto em solapar o sublime são pontos de
contato entre os dois. Mas a densa urdidura do verso e do projeto
cabralino é algo bastante distanciado do rigor destrutivista de
Oswald, inventor de ruínas incapaz ou indesejoso de desenvolver
outro gesto que não fosse o da irrisão e da paródia, acrescido da
satisfação orgulhosa de não saber metrificar.
Um outro poeta costuma ser evocado por João Cabral na
reconstituição de seu percurso: Murilo Mendes. Se de Murilo
excluirmos a religiosidade, o hermetismo, a epifania, o encantató-
rio, os versos polimétricos, a metafísica, o salvacionismo — isto
é, se de Murilo excluirmos Murilo — , o que sobrar influenciou
Cabral. E o que resta? A escrita onírica embebida no surrealismo,
a celebração do mundo em sua ostensiva plastividade (diríamos,
até, tactilidade). Ora, o influxo onírico comparece de forma níti­
da apenas no primeiro livro de Cabral, Pedra do sono (1942); já
no segundo, O engenheiro (1945), reveste-se de tonalidades bas­
tante esmaecidas. Se é cronologicamente restrito o tributo cabra­
lino ao autor de A poesia em pânico, encontraremos mais tarde
uma curiosa confissão no Murilo tardio de Convergência (1970):
“Joãocabralizei-me” .
Não há, portanto, na poesia brasileira, uma linhagem osten­
siva onde comodamente se possa instalar a obra de João Cabral de
Melo Neto. Essa espécie de orfandade, que faz dele um autor-ilha,

309
não implica, insistimos, um processo criador isento da História,
inclusive porque uma ilha só se percebe por oposição ao conti­
nente. Diante desse continente literário, com suas fam ílias e
genealogias bem assentadas, a ilha cabralina é uma poesia
encharcada de silêncio por todos os lados. Autor situado no tem­
po, mas não sitiado por ele, capaz, portanto, de grafar-lhe as mar­
cas da recusa, da negação, da dissonância.
Examinemos, agora, o outro aspecto da questão: a poesia de
Cabral terá forjado sucessores? Restrinjamo-nos aos principais
grupos ou tendências: a geração de 45, o concretismo, os poetas
dos CPCs, a poesia marginal. Quanto a esta, julgamos desneces­
sário, aqui, xerocar o que já dissemos sobre o mimeógrafo; deste
grupo, quase nada sobrevive, vinte anos e vinte e seis poetas
depois. No que tange a 45, ouçamos o depoimento do próprio
poeta:

Pertencer a uma geração é um fenômeno biológico, não se


pode mudar o ano de nascimento. Mas alguns reduzem uma gera­
ção à idéia de escola literária; nessa perspectiva, nada tenho a ver
com a escola de 45 e com seu ideário estético.

Já o projeto de poesia popular do início dos anos 60, palan­


que de um conteudismo explícito, apenas comprova que, muitas
vezes, é com a melhor das intenções que se faz a pior das literatu­
ras. Poesias ditada pelo clamor cívico do momento, poesia datada
pelo naufrágio estético dos poemas e pelo naufrágio político da
esquerda.
É sem dúvida no concretismo que a ascendência cabralina
se faz convocar. João Cabral, como se sabe, é um dos raros auto­
res brasileiros a merecerem guarida no panteão de concretos. Lê-
se no “plano-piloto” do grupo: “joão cabral de melo neto: lingua­
gem direta, economia e arquitetura funcional do verso” . A tática
de autolegitimação através de parcos e nobres antecessores (Mal-
larmé, Oswald, Cabral) acaba, implicitamente, desqualificando,
por perempta, a quase totalidade da poesia contemporânea, culpa­
da, dentre outras mazelas, pelo anacrônico hábito de ainda utilizar
versos para compor um poema. Algo inadmissível, uma vez que,
por augusto decreto, o movimento comunicou à praça que estava
“extinto o ciclo histórico do verso”. Os concretistas, que aspira­

310
vam a representar “o mínimo múltiplo comum da linguagem”,
geraram, na prática, um máximo divisor de tendências, através de
grupos e subgrupos envolvidos em guerrilhas pelo poder literário,
com ramificações e controvérsias que até hoje perduram nas que-
relas da crônica menor de nossas letras. Seria equivocado maxi­
mizar os traços formais que aproximam Cabral e concretos em
detrimento do imenso fosso ideológico que os distingue. No tex­
to concretista, em sua vertente combinatória, a obra pode até ser
aberta, mas só com as chaves do dono. Poe exemplo: no poema
“Alea I, variações semânticas”, de Haroldo de Campos, há um
convite à “criatividade” do leitor, solicitado a efetuar permuta­
ções aleatórias em duas palavras de cinco letras. O autor antecipa
que existem 3.628.800 combinações previstas — há mil maneiras
de preparar um poema, invente a sua... Talvez a poesia comece
na milésima primeira, aquela não legislada pela voz autoritária do
texto, que, cercando as combinações por todos os lados, reduz o
poema a um jogo de cartas e letras marcadas. João Cabral não
compartilha desse triunfalismo, dessa jubilosa certeza do verbo.
Na sua obra, ao contrário, o vínculo entre palavra e realidade será
sempre lacunoso, claudicante. Daí a necessidade das contínuas
versões e leituras com que cerca um objeto, criando metáforas
“até certo ponto”, metáforas de vigência restrita, convocadas para
serem suprimidas pela denúncia de sua própria insuficiência.
Temos, pois, a palavra como assédio maciço a uma realidade
inesgotável, a uma plenitude ilegível no todo, mas que se deixa
entreler em seus restos no poema.
A partir dessa reflexões é que podemos acercar-nos das con­
figurações específicas do universo cabralino, mas não sem antes
examinarmos o registro pelo qual ele se quer demonstrar: o da
objetividade. Em que consiste a objetividade num poema? Para
tentar algumas respostas, recorramos à divisa predileta de Cabral,
reiterada em inúmeros depoimentos: a poesia deve “dar a ver” .
Tal sintagma pressupõe um ponto de visibilidade ideal e a neces­
sidade da remoção de obstáculos que estejam toldando essa idea-
lidade. O problema já se instala no fato de que o instrumento apto
a clarificar a percepção é o mesmo que serve para encobri-la: a
palavra. A partir de que valores, portanto, podemos avalizar uma
percepção como mais isenta e exata do que outra? A simplifica­
ção didática da expressão “poesia objetiva” esconde uma série de

311
mal-entendidos e de contradições, sobretudo se nos ativermos a
critérios de natureza estritam ente form al, considerando, por
exemplo, que seria objetivo o texto que não contivesse as marcas
lingüísticas da primeira pessoa. Nesse caso, onde catalogar as
muitas descrições (em terceira pessoa) acintosamente emociona­
das dos românticos? E como classificar os textos em que o “ele”
é máscara transparente do próprio “eu”, oculto no biombo da ter­
ceira pessoa? Toda obra revela simultaneamente a percepção e o
percebido, seja a percepção exterior ou interna, seja o percebido
uma pedra ou o mais inefável dos sentimentos. A objetividade
plena pressuporia eliminar-se o foco de enunciação, pois este
inflete inevitavelmente sobre aquilo que está capturando. Dar a
ver não é deixar o objeto objetivamente falar, é escolher estraté­
gias discursivas propícias a uma simulação de objetividade, onde
as impregnações mais visíveis do sujeito se camuflem em prol de
uma cena em que os objetos pareçam falar de si, mas sempre por
meio do sotaque de quem os vê. Por mais que o artista deseje, a
escrita do mundo não é autografa. A fé num registro descontami-
nado foi enterrada com a hipostasia naturalista; destruída a fé,
resta a simulação, conforme lemos no poema “Dúvidas apócrifas
de Marianne Moore” (de Agrestes, 1985):

Sempre evitei falar de mim,


falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor


de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?

Como saber, se há tanta coisa


de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?

Por essa via, podemos concluir como são relativas as bases


da proclamada objetividade cabralina; tratar-se-ia, ao contrário,
de uma poesia sutilmente confessional, urdindo uma espécie de

312
autobiografia em 3a pessoa. É pela marca exaustiva sobre deter­
minados signos que se vai desenhando o rosto de quem a impri­
me. Na “seleção dessas coisas” o poeta se reconhece.
Auscultemos, pois, em sua obra, os elementos que insistem, con­
signando apenas, em sumários registro, obsessões de ordem for­
mal, já apontadas à exaustão pela crítica: a quadra, a rima toante,
o isossilabismo, os versos com metrificações pares.
No poema “Graciliano Ramos:”, de Serial (1959), encontra­
mos os famosos versos:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca.

Em “A lição de poesia” (de O engenheiro), deparamo-nos


com:

Vinte palavras sempre as mesmas


de que [o poeta] conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

Não faltou, inclusive, quem submetesse ao computador a


obra cabralina, à caça de pistas para esse “tesouro lexical” que, no
fim das contas, está ali, à flor do texto. Ademais, devemos filtrar
os dados cegamente quantitativos: às vezes, uma palavra reitera­
da num único livro poderia conotar uma dimensão que, de fato,
não possui no conjunto da obra: é o caso da “bala” de Uma faca
só lâmina (1955). Mais produtivo para nossos propósitos é fisgar
os signos que abram uma extensa zona de ressonância ao longo de
todo o percuso do autor. Acompanhar os diferentes matizes de
suas reaparições é, de certa forma, verificar as transformações da
própria obra refletidas nas reelaborações que ela empresta a tais
signos. Pernambuco, Espanha, pedra, rio, terra, deserto, poema,
pintura, cana, bicho, luz, tempo, homem, mulher, sol, fome, secu­
ra, canto, água, corpo, faca e silêncio estão entre os tópicos subs­
tantivos mais recorrentes do imaginário cabralino, muitos deles,
evidentemente, comportando subconjuntos, como a Andaluzia e
Sevilha, na Espanha, e sertão, Agreste, Zona da Mata e Recife,

313
em Pernambuco. A observar no contingente a pequena incidência
de termos abstratos e a preferência por signos que, de algum
modo, evoquem uma experiência sensorial, como pintura, luz e
canto. Mesmo o tempo, categoria passível de indagações abstra­
tas, será traduzido pela materialidade dos sentidos; dele se diz, em
“O alpendre no canavial” (Serial), que tem sabor e cheiro, que é
palpável, audível, visível. Esse (não exaustivo) repertório estabe­
lece entre seus componentes redes de infiltração recíproca, seja
em caráter opositivo (água x secura, canto x silêncio), contrastivo
(Pernambuco x Espanha, rio x terra) ou complementar (poema x
pintura, homem x mulher). Do conjunto, alguns elementos —
pedra, mulher, pintura, tempo — já foram bastante analisados por
outros estudiosos. Propomo-nos aqui a verificar mais de perto o
alcance do signo cana, por entendermos que se trata de uma das
marcas que mais exemplarmente operam na confluência entre lin­
guagem e metalinguagem. A cana, progressivamente, deixará de
ser capturada como simples referencial paisagístico para tomar-se
modelo de uma arquitetura textual, atravessando de permeio
outros níveis que iremos apontar.
A primeira referência data de Os três mal-amados, 1943:
“[o amor] comeu o verde ácido das plantas de cana”; relevou-se a
cor, não a forma. Já em O rio (1954), lemos: “muita folha de cana/
com sua lâmina fina” e “Que nem ondas do mar/ multiplicadas,
elas [canas] se estendem”. Agora, além da alusão à forma (“lâmi­
nas”), surge outra das imagens obsessivas de Cabral: a similitude
entre o canavial e o mar. Essa aproximação, inicialmente adstrita
ao nível da plasticidade, logo desem bocará em im plicações
sociais, pelo viés do sentido metafórico de coletividade e poten­
cial de insubmissão que onda e cana compartilham: no poema “O
mar e o canavial” (de A educação pela pedra, 1966), o poeta assi­
nala a “veemência passional da preamar”, “o desmedido do derra­
mar-se da cana”. Multiplicada, a cana indicia o poder transfigura-
dor do coletivo, o ímpeto que não aceita ser contido, como se lê
em “O vento e o canavial”, de Paisagens com figuras (1956):

Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol

314
É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.

O mesmo poema traz à tona, pela primeira vez, o vislumbre


de aproximação entre cana e texto, ao figurar um canavial sem
vento como “papel em branco de escrita”. Ainda em Paisagens
com figuras (“Alto do Trapuá”), localiza-se outra vertente, a da
sexualização da cana:

Só canaviais e suas crinas,


e as canas longilíneas
de cores claras e ácidas,
femininas, aristocráticas.

Tal concepção será retomada em Quaderna (1960), e a par­


tir daí a feminilidade da cana desencadeará um torneio ambíguo
de sedução e recato, de oferta e pudor, deixando entrever a nudez
através da palha e valendo-se da palha para vedar a nudez. Cada
vez mais o corpo da cana, feminino, passa a ser imagem do corpo
do texto. Essa acumulação de sentidos se estampa com clareza em
“A cana de açúcar de agora” (de A educação pela pedra), onde,
antes de observar que a cana “Se resguarda, multiplicando as
saias”, o poeta se refere a seu “desenho preciso”, à “coluna mate­
mática”, à “elegância fina e moderna”. A força centrífuga do sig­
no cana ascende a outro patamar no livro A escola das facas, de
1980. Ao lado do persistente jogo erótico do velar/desvelar —

O inferno [incêndio] foi fogo de vista,


ou de palha, queimou as saias:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la.

— , avulta na obra a consciência de que assinalar um objeto é ins­


crever nele a marca especular do sujeito; transforma-se o marca­
dor na coisa marcada. Há um texto que, de modo explícito, traba­
lha a questão — “Menino de engenho”:

315
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana


cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;


o inoculado tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.

Dupla leitura em dois estágios: a foice, atacando a cana, dá-


lhe ao mesmo tempo a lesão e o poder de corte; a cana, agredindo
o menino, concede-lhe simultaneamente uma ferida e uma arma,
no negativo do vírus e no positivo da vacina. A cicatriz é o deno­
minador que atinge todos, inclusive o poeta, que consegue perce­
bê-la, invisível, a partir do menino de ontem: não é por imaginá­
ria que uma ferida deixa de doer. O mesmo “dar-se mútuo”, que
aqui irmana poeta, menino, cana e foice, alicia outro personagem,
o vento, no poema que dá título à obra, “A escola das facas” :

O alísio ao chegar ao Nordeste


baixa em coqueirais, canaviais;
cursando as folhas laminadas,
se afia em peixeiras, punhais.

Ao freqüentar as folhas da cana, o vento aprende-lhe a lição


de corte: nenhuma leitura é impune. Desta maneira, em “A voz do
canavial”, o vento já surge exercitado por uma oficina poética
a paio seco:

Voz sem saliva de cigarra,


do papel seco que se amassa,

de quando se dobra o jornal:


assim canta o canavial.

316
A secura do som e o despojamento da cana retilínea se cor­
respondem, modulações diversas de um mesmo estilo. Já em
“Moenda da usina”, a construção do texto literário se faz sobre os
destroços e ruínas do texto da cana; antes, no canavial, “esbelta,
linear”, ela chega à usina “despenteada e sem rima” .
Pudemos, portanto, flagrar na obra de Cabral as sucessivas
(ou simultâneas) configurações que a cana foi assumindo até
alçar-se a modelo de uma produção discursiva, chegando mesmo,
em “Menino de engenho”, a constituir-se num foco de irradiação
ética e poética para o sujeito. Vimo-la feminina; é masculina em
“Tio e sobrinho” . E vegetal, mineral (“A cana de açúcar de ago­
ra”) e animal (“Pernambuco em Málaga”). Em “Jogos frutais”, de
Quaderna, fora definida como “pura linha” — linha que, do ima­
ginário, lança-se para todos os lugares, prestando-se, desse modo,
a uma notável pluralidade de sentidos.
Cabe-nos ainda registrar outro tema, que, sem freqüentar a
reiterada “seleção de coisas” de Cabral, assume, em seus últimos
livros, uma dimensão de tal maneira fecunda que chega inclusive
a reorientar a compreensão da poesia anterior. Referimo-nos às
relações familiares de infância, cuja presença se avoluma a partir
de A escola das facas. Tendo lançado, em 1968, suas Poesias
completas, o autor como que fechou um ciclo balizado por duas
pedras: a primeira, do sono, e a última, d’A educação. Tresleu-se
nisso um protocolo precoce de aposentadoria poética, desmentido
cab(r)almente pelo vigor criativo de A escola das facas. O teor
memorialístivo do volume, a matéria garimpada na experiência
autobiográfica concreta, franqueiam a Cabral o acesso ao grupo
dos grandes poetas brasileiros (dentre eles Bandeira e Drum-
mond) que se ocuparam da questão. Estabeleçamos, pois, à guisa
de confronto, alguns traços específicos no tratamento do tema em
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral
de Melo Neto.
No primeiro, a infância é um refúgio idílico, onde a imagem
do menino se preserva, inteiriça, da contaminação do adulto,
compondo a nostalgia de uma plenitude sem fraturas:

O menino que não quer morrer,


Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na visita do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelos atrás da porta.

317
A perda é vivenciada por notações eufêmicas (“Estão todos
deitados/ Dormindo/ Profundamente”) e a sensação de alumbra-
mento acolchoa uma experiência pretérita sob a égide da alegria
— perdida, mas alegria. Se conjecturas ensombreadas de melan­
colia acabam vincando o adulto (“A vida inteira que podia ter
sido e que não foi”), ele, mesmo defrontando-se com a morte,
encena-lhe o ritual pelo compasso da desdramatização:

Quando a Indesejada das Gentes chegar

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,


A mesa posta
Com cada coisa em seu lugar.

Já em Drummond, a meninice e os laços de família consti­


tuem um pólo de alta tensão e reverberação, que emerge desde o
segundo poema, “Infância”, de seu primeiro livro:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.

E, de fato, essa história não acabaria. A dispersão expressa


nos versos iniciais de “Infância” — o pai no campo, a mãe na ca­
sa, o irmão no sono, o menino no quintal — levará o poeta à bus­
ca da impossível recomposição da fissura. Querendo a unidade,
caminhará entre cacos, prisioneiro da dissipação (“Pai morto,
namorada morta./ Tia morta, irmão nascido morto”). Permeia sua
obra a pulsação do fracasso, o sentimento culposo da volatiliza-
ção de uma herança. Não preserva em si a figura íntegra do meni­
no, mas a dor de quem “ao sol posto/ perde a sabedoria das crian­
ças” . Esse herdeiro “que melhor não fora nado”, como dirá em
“Os bens e o sangue”, carrega indelevelmente o peso e a frustra­
ção de seus mortos, pois herança não é apenas aquilo que recebe­
mos, mas aquilo de que não conseguimos nos livrar.
Em Cabral, a infância perde a aura cúmplice de Bandeira,
sem, com isso, estam par o selo angustiado de Drummond. E

318
encarada como um período de desafio de linguagens, sob o disfar­
ce de anedotas enganosamente inócuas. Uma paráfrase do poema
“Descoberta da literatura” diria que se trata da história do garoto
João, que gostava de ler o cordel, escondido, para os trabalhado­
res do engenho, apesar de temer que lhe atribuíssem a autoria dos
livretos. Um dia, sua família descobre essa prática e, muito prova­
velmente, a coíbe. O poeta, em aparência, não emite juízo sobre a
coibição. Leiamos o texto, para depois verificar o que a malícia
da forma pôde acrescentar a um enredo tão simples:

No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando

319
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes).

O poema se desenvolve em três etapas. Na primeira, do ver­


so 1 ao 14, a ênfase é concedida ao evento da leitura e à apresenta­
ção dos personagens: o garoto leitor e os trabalhadores ouvintes.
Na segunda, versos 15 a 34, estampa-se a avaliação do menino
quanto ao que lia, incluindo-se aí tanto as caracterísitcas do cordel
como o comportamento do público. Na última, surge, a partir do
verso 35, a reação indignada da família de engenho. No segmento
inicial constatamos uma oposição entre a ordem pragmática (“dia-
a-dia do engenho”) e a circulação clandestina do im aginário
(“cochichavam -m e” , “conspirantes”). Conquanto o leitor vá
expressar, na parte 2, a vontade de ser apenas porta-voz, observa­
mos que sua função é dupla: ler e explicar, diferenças que impli­
cam superioridade. De qualquer modo, o domingo (a feira) se
infiltra no dia útil via literatura, abrindo um referencial de todo
apartado do suor cotidiano. Esse referencial se desdobra na segun­
da parte: o mirabolante, crimes, amor, lances que eletrizavam o
ambiente. Agora, o cordel se demonstra em sua carga de impacto
sobre a platéia, e outra vez o conivente leitor vai detectando as di­
ferenças: assinala a redundância dos relatos (“coisas já sabidas”) e,
mais do que isso, registra a cisão, mal percebida pelos demais,
entre espaço real e o espaço imaginário (“receava que confundis­
sem/ o de perto com o distante”). Frisemos que essas disjunções
entre leitor e ouvintes parecem ocorrer à revelia do menino, cujas
interferências ele próprio prentenderia evitar: “puro alto-falante”,
“sem querer im antara”. No segmento final, uma fala delatora
(“contar tudo à Casa-grande”) obsta o trânsito desse discurso —

320
em duplo sentido — “na moita”. A linguagem alheia, da “senza­
la”, sofre duas sanções: uma intrínseca, por ser “letra analfabeta”;
outra, na medida em que o erro lingüístico é encarado como sinto­
ma de desvio social: “cegos de feira,/ muitas vezes meliantes”. A
família, resguardada socialmente na Casa-grande, e graficamente
nos parênteses do texto, sabe que a tutela do discurso é arma efi­
caz para garantir que as coisas permaneçam em seus devidos luga­
res: o domínio formal da fala atua como emblema exteriorizado
desse poder demarcatório. A infração ao código ocorre quando
uma voz errante da Casa-grande se põe a serviço da voz “errada”
dos trabalhadores. O problema é que, recusando a chancela de ori­
gem para fazer-se cúmplice da palavra alheia, o personagem não
consegue apagar a marca inicial, não consegue desalfabetizar-se
passando ingenuamente para o outro lado do discurso. Mesmo lá
manterá vivos os sinais que tentou abafar, no afã de ser apenas
“puro alto-falante”. Algumas astúcias na construção do poema
dramatizam o impasse desse discurso que bate às portas de outro,
mas sem a inocência ou o cinismo de supor que se possa instalar
sem dano dentro dele. Vai-se perceber, no poema do adulto, um
descompasso entre o desejo de imitar o cordel e as interferências
letradas que inviabilizam a empreitada; trata-se de um texto que
encena pela forma a própria impossibilidade de ser aquilo para o
qual supostamente se dirige. Senão, vejamos: o lado-cordel se
concretiza pelo teor narrativo, pela estrofe monorrímica, pelo
emprego da redondilha maior. O poeta, com as marcas de menino
de engenho (e arte), interfere nesses esquemas, dificulta-os.
Assim, se existe uma só rima, ela não será em “ão” ou “ar”, mas
em “ante”, opção que conduz a um contingente lexical infinita­
mente mais restrito e sofisticado; na redondilha maior, o autor pro­
move uma flutuação de tônicas, impedindo a cristalização melódi­
ca dos tradicionais acentos em 3a e 7a sílabas. A forma, portanto,
transmite ao mesmo tempo os rituais do cordel e a impossibilida­
de de fazer o texto soar plenamente como cordel. Essa dualidade
entre o popular e o erudito acompanhará toda a obra do poeta, atra­
vés de sistemas paralelos e eventualmente cruzados de dicções em
entrechoque: a poesia de Cabral nunca desistiu de ser também a
poesia do João. Podemos, de regresso ao texto, destacar ainda as
várias implicações de seu título: ele evoca a descoberta de uma
literatura, a do cordel; a prática dessa leitura era descoberta, ao ar

321
livre, e descoberta porque carente de legitimação. Finalmente,
essa literatura descoberta foi descoberta pela Casa-grande. O poe­
ma não revela os efeitos imediatos da ação censória, se o menino
abriu ou não alguma brecha para continuar descobrindo a literatu­
ra. Mas o gesto inibitório — a longo prazo — fermentou uma ardi­
losa vingança simbólica contra a família, pois o revide diante da
censura foi a criação de um texto abastecido na própria censura:
“Descoberta da literatura”. A proibição de falar levou-o a falar da
proibição, não mais na condição de simples “alto-falante”, e sim
na de auto-falante, tentando dizer-se nesse arco de linguagem
estendido entre a Casa-grande e a “senzala”. Palavra, portanto,
plantada num hiato, e duplamente deslocada: as marcas de origem
e a empatia para com o Outro social tomarão instável o assenta­
mento do poeta em qualquer dos dois pólos. Como vemos, as con­
vocações biográficas da família, longe de trilharem os meandros
da reconciliação póstuma, ou da complacência sentimental, ilumi­
nam uma nova leitura da poesia de Cabral, na medida em que tra­
zem à tona um tenso processo de aprendizagem discursiva de que
conhecíamos apenas o resultado — a obra — , mas não a árdua ela­
boração na confluência da trama tecida entre sangue e texto.
Examinamos, num primeiro momento, as marcas de João
Cabral no pocesso literário brasileiro; em seguida, estudamos
algumas das construções simbólicas obsessivas em sua poesia,
para, depois, restringirmos o campo de investigação através da
leitura mais cerrada de um texto. Arriscaríamos ainda, neste enca­
minhamento final de nossas reflexões, invocar outra marca, de
ordem subjetiva: aquela impressa em seus leitores, ou, mais exa­
tamente, neste leitor que agora lhes fala. Após tantos anos de fre-
qüentação atenta e amorosa de sua obra, não me cansei de sur­
preender atalhos e desvios naquilo que supunha serem questões
resolvidas. Descobri neste poeta crítico que força criadora e rigor
analítico podem partilhar o mesmo solo de linhagem. Convivi
com poemas que não propõem um estoque de saberes, mas o
exercício de sucessivas desaprendizagens para aprender melhor
aquilo de que o olhar domesticado não consegue dar conta, na tra­
vessia tormentosa para o novo.
O poeta, um dia, falou de um recém -nascido Severino.
Valho-me aqui dos versos que ele então escreveu, para, através
deles, definir o próprio texto de João Cabral:

322
Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas

Belo porque tem do novo


a surpresa e a alegria

como o caderno novo


quando a gente o principia.

NOTA: As citações do texto foram extraídas de:

1) ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio,


1969.
2) ANDRADE, Oswald. Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1967.
3) BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio,
1966.
4) CAMPOS, Augusto de, et alii. Teoria da poesia concreta. São Paulo:
Invenção, 1965.
5) CAMPOS, Haroldo de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1992.
6) MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. 2a ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1975.
7 ) . Museu de tudo e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
8) MENDES, Murilo. Convergência. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
9) SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo:
Duas Cidades, 1985.

323
Entrevista de João Cabral de M elo Neto *

— Você às vezes é arrolado entre os poetas da geração de


45. Quais as afinidades e as divergências entre a sua poesia e a
dessa geração?

— Creio que foi Ortega y Gasset quem tratou com mais inte­
ligência o problema das gerações em arte. Endosso as idéias de
Ortega: pertencer a uma geração é um fenômeno biológico, não se
pode mudar o ano de nascimento. Mas alguns reduzem uma gera- )
ção à idéia de escola literária; nessa perspectiva, nada tenho a ver
com a escola de 45 e com seu ideário estético, formulado, aliás,
por um pequeno grupo dentre os nascidos em 1920 e adjacências.

— No sentido literário, o que caracterizaria uma geração ?

— Uma geração é menos o comportamento de seus membros


do que o condicionamento sócio-cultural que todos sofrem ao se
interessarem por literatura. A base histórica é uma, as realizações
serão múltiplas. No caso da literatura brasileira, chamo a atenção
para uma geração de que ninguém fala, pois só consagrou um
grande nome, Vinícius de Moraes: a dos artistas nascidos por vol­
ta de 1913. Vinícius não foi o único poeta do período. Há outros,
já esquecidos, como Deolindo Tavares, M aria Isabel, Julieta
Bárbara, que foi mulher de Oswald de Andrade. Rubem Braga é de
1913. Quem salta da geração de 30 à de 45, onde inclui Vinícius?
E Mauro Mota, assimilado a 45, é mais velho do que Vinícius.

* Concedida no dia 4 de novembro de 1980, no Rio de Janeiro.

325
— Houve algum escritor brasileiro particularmente impor­
tante para sua formação literária?

— O grande poeta brasileiro, não só de agora, mas de qual­


quer época, é Carlos Drummond de Andrade. Foi ele quem mé con­
venceu, com Alguma poesia, de que eu também poderia ser poeta.
Sempre fui antimusical, e na minha adolescência essa postura era
incompatível com a poesia. No colégio, tinha um imenso enjôo dos
versos tipo “Ora, direis, ouvir estrelas”, com esse ritmo chatíssimo.

— Mas você só se está referindo ao Drummond de 1930...

— Certo. Na altura de Rosa do povo, acentuou-se nele o


interesse político. Para atingir as massas, valeu-se de algo mais
retórico, discursivo. É a fase em que ele lia Neruda, e a retórica do
poeta chileno pesou em sua produção. Mesmo assim, depois de
45, ele inova onde menos se espera. Cito o genial soneto “Oficina
irritada”, que é contrário à harm onia do soneto praticado no
Brasil, em Portugal e na Espanha.

— A crítica observa que Pedra do sono, seu livro de estréia,


é pouco representativo do sistema rigoroso a que você iria sub­
meter a poesia. A inclusão desse livro nas Poesias completas teria
apenas a função de acentuar o contraste entre o discurso dele e o
discurso do resto de sua obra?

— Eu poderia perfeitamente eliminar Pedra do sono. Nele, a


influência surrealista é muito forte, mas o surrealismo só me inte­
ressou pelo trabalho de renovação da imagem. Antonio Cândido,
quando o livro foi lançado, escreveu um artigo admirável chama­
do “Poesia ao Norte”, dizendo que meus textos eram aparente­
mente surrealistas, mas com uma organização cubista. Por esse
aspecto de construção é que decidi não renegar Pedra do sono.

— Em O engenheiro, há uma epígrafe de Mallarmé e um


poema dedicado a Valéry. Em que esses poetas foram importan­
tes para sua obra ?

— Admiro em Mallarmé o rigor, o trabalho de organização


do verso. Não me agrada o lado prosódico, muito apegado à tra­

326
dição melódica: nada inovou quanto à metrificação. Já a poesia de
Valéry sempre me pareceu secundária, uma espécie de Mallarmé
passado por água. O que me interessava nele era a explicação teó­
rica de Mallarmé, seu mestre. Só que a poesia do mestre conduziu
a um beco sem saída. Todos os que se influenciaram por ele
deram um ou dois passos atrás.

— Como avalia a influência de Murilo Mendes em Pedra do


sono e O engenheiro?

— O dado da imagem com componentes absurdos é impor­


tante. Mas Murilo nunca construiu um poema. A única diferença
entre seus textos e o dos surrealistas é que estes faziam poemas
enormes, e os de Murilo eram curtos. Em todos, a mesma justapo-
siçãode imagens. Não há uma estrutura fechada em si mesma. Há
imagens paralelas que, de repente, cessam...

— Além dos nomes de que já falamos, cresce em seu segun­


do livro a importância de arquitetos e de pintores. Isso se deve ao
caráter fundamentalmente visual de seus poemas?

— Certamente. Aliás, a maior influência que sofri foi a de


Le Corbusier. Aprendi com ele que se podia fazer uma arte não
com o mórbido, mas com o são, não com o espontâneo, mas com
o construído. Foi ele quem me curou do surrealismo definido
como arte fúnebre em seu livro Quando as catedrais eram bran­
cas. A partir de O engenheiro, optei pela luz em detrimento da
treva e~cfa morbidez.

— E a organização dos poemas nesse livro?

— Segue a ordem cronológica. Os primeiros lembram ainda


o surrealismo. Mas há um texto que diz: “onde o mistério maior/
da luz do sol da saúde?” É uma confissão de enjôo frente ao mór­
bido. Tive de lutar para conseguiressa poesia solar.

— Mesmo assim, na Fábula de Anfion, a busca do “puro


sol ”redunda em fracasso...

— Isso é a história de toda a minha vida. Escrever para mim


é um sofrimento. Já me dizia Joaquim Cardozo: é muito melhor ler

327
do que escrever. Admiro quem chega a um ponto de tal lucidez e
consciência de si que, em decorrência, passe a ser, potencialmen­
te, capaz de tudo. Ora, quem atinge esse estágio não precisa fazer
nada, pois tudo será bastardo ou inferior em relação a seu poten­
cial. É o que está em Une soirée avec monsieur Teste, de Valéry.

— Na sua criação, qual o papel do acaso?

— Prefiro partir de um exemplo. Em Barcelona, quando


escrevi O cão sem plumas, achei que esse seria o meu adeus à
poesia. Na volta ao Brasil, sofri perseguições políticas, daí eu ter
criado O rio, na intenção de inscrevê-lo num importante concur- ,
so de poesia. Pensava em obter boa classificação, para que minha
situação no Itamaraty fosse reconsiderada. Logo, houve obra do
acaso, que é termo mais abrangente do que inspiração. Acaso, aí, \
foi meu interesse político. )

— Você cria sempre o poema que quer?

— É meu objetivo. Mas há dias em que se está mais dispos- i


to. Se você chama isso de inspiração... E o mesmo fenômeno com j ^
o sapateiro. Tem dias em que ele bate direito no sapato e não bate \
com o martelo no dedo.

— Em Psicologia da composição, você diz: “Esta folha bran­


ca/ me proscreve o sonho O dado onírico, as forças do incons­
ciente, são elementos sem relevância alguma para sua poesia?

— Não, mas eu procuro que sejam. Eu gostaria de criar \


como um matemático^ sempre a partir de elementos racionais. A
matemática é o extremo racional da linguagem, e a poesia tam­
bém se dirige à inteligência. Eu impeço tanto quanto possível que v
o inconsciente governe minha mão. Mas, de repente, o incons­
ciente faz uma má-criação e a pessoa acaba derrotada. É verdade
que ele colabora com associações novas de palavras, com “saí­
das” para poemas...

— Você optaria, em nome da coerência, por não terminar o


poema que ele, o inconsciente, termina por você?

— Eu deixaria o poema de lado, e, um dia, o terminaria ou

328
não. Mas se o inconsciente agir, contra a minha vontade, e me der
uma solução que eu julgar válida, sou suficientemente cínico para
aproveitá-la.

— Por que, a partir de O cão sem plumas, você passou a se


interessar pela poesia de tema social?

— Esse livro nasceu do choque emocional que experimen­


tei diante de uma estatística publicada em O observador econômi­
co e financeiro. Nela, soube que a expectativa de vida no Recife
era de 28 anos, enquanto na índia era de 29. Nunca tinha suposto
algo parecido. Quando ocorre uma catástrofe na índia, as senho­
ras brasileiras fazem tricô para socorrê-la, ao passo que a miséria
do Recife é maior.

— Depois de um texto tão denso como O cão sem plumas,


alguns críticos não se mostraram entusiasmados com o que ju l­
gavam ser a falta de rigor de O rio...

— Quando fui para a Espanha, não tinha conhecimento da


antiga literatura brasileira, e continuo sem ter. Mas estudei a velha
literatura ibérica para compensar essa falta de back-ground cultu­
ral. Comecei a estudá-la — sou um leitor doentio —- pelo poema
do Cid. Fiquei no ouvido com o ritmo desse poema, que é o mes­
mo de O rio. Ritmo áspero, de coisa grosseira, mal acabada. Existe
na Espanha um verso chamado de arte maior, com a primeira par­
te variável e a segunda fixa. Em O rio fiz o contrário: a primeira
parte, a dos versos ímpares, é fixa, todos têm seis sílabas. Os ver­
sos pares podem ter qualquer número silábico. Isso cria um ritmo.

— A partir de O rio, você não abandonaria praticamente


jamais a rima toante. Em que medida ela se integra às suas con­
cepções de antimusicalidade ?

— A rima é algo necessário. Valéry me convenceu de que,


para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante
do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu
extremo. Para mim, a rima é uma dificuldade de que preciso para
me impor. Como diz Robert Frost, escrever versos sem rima é
como jogar tênis sem rede: fica-se totalmente livre. A ausência de
rima inibiria minha expressão. Não uso a consoante porque, na

329
adolescência, tinha asco da poesia por associá-la à melodiosidade
tipo parnasiana dessa rima.

— Como surgiu a idéia de juntar a Espanha e o Nordeste, a


partir de Paisagens com figuras?

— Saí do Brasil em 1947. Meu primeiro posto foi o vice-


consulado em Barcelona. Nos arredores da cidade, vi paisagens
áridas como as do Nordeste, era uma espécie de volta a
Pernambuco. Se me houvessem designado para um país verdejan-
te, até hoje eu seria um diplomata inadaptado, queixoso.

— Com Morte e vida severina você voltou a concentrar-se


no Nordeste, e fe z um texto de comunicabilidade mais imediata.
Como você encara esse seu tipo de poesia mais “fácil ”?

— Esse texto não podia ser mais denso. Era obra para teatro,
encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxa­
da que escrevi. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambuca­
no, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa.
Eu era consciente de que não tinha tendência para o teatro, não
sabia criar diálogos no sentido de polêmica. Meus diálogos vão
sempre na mesma direção, são paralelos. Observe o episódio das
pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a
mesma coisa. A cena do nascimento, com outras palavras, está em
Pereira da Costa. “Compadre, que na relva está deitado” é transpo­
sição desse folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama.
“Todo o céu e terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo
pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e
os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão
em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu
só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimis­
tas. Com Morte e vida severina, quis prestar uma homenagem a
todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provém do
romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore cata­
lão. O encontro com os cantores de incelenças é típico do
Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem gale­
ga ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes
de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega.

330
— Se Morte e vida severina é sua obra mais relaxada, qua!
a mais tensa ?

— Como estrutura de livro, A educação pela pedra. Como


verso, Uma faca só lâmina. Vejo um caráter muito mais ético do
que poético nesse poema. Falo da vantagem de se viver com uma
obsessão, não importa qual: pode ser uma idéia política, o amor de
uma mulher. A pessoa toma-se mais lúcida, mais criativa, mais
capaz, se tem uma obsessão. Coloquei mais tarde o subtítulo — da
serventia das idéias fixas — para facilitar a compreensão do texto.

— No plano formal, qual o dado novo de Dois parlamentos?

— Nele desenvolvo, além da preocupação com cada poema,


princípios de estruturação da obra globalmente considerada, tan­
to no nível da estrofação quanto no da métrica. A primeira parte
trata do problema da seca. Um grupo de senadores sulistas vai ver
o Polígono da Seca. É como se dissessem: essa miséria não é tão
grande. Na segunda, há algo semelhante, mas o número-base, do
ponto de vista formal, é o cinco; na outra parte, era o quatro.

— Em Quadema, surge pela primeira vez a temática fem ini­


na. Por que essa inclusão, relativamente tardia em seu percurso?

—- É um tratamento feminino que não é usado para falar de


mim, de minha vida. É verdade que sempre falamos um pouco de
nós, a simples escolha do assunto já é uma opção pessoal. Mas
quase sempre, veja o caso de Vinícius de Moraes, o tema femini­
no é abrigo de reações excessivamente subjetivas e até biográfi­
cas. Além disso, por que só a mulher deve monopolizar essa libe­
ração de ânimo? O poeta deveria demonstrar seu estado de espíri­
to até no ato de descrever um açucareiro. Na m inha poesia a
mulher é um tema a mais, como qualquer outro. Não o utilizo
para confessar frustrações amorosas. Descrevo uma mulher sem
biografia; o que ela representou na minha vida não vem ao caso.

— Em Serial, intensificaram-se as homenagens a pintores.


Em que eles foram importantes para a sua obra?

— A grande arte, para mim, é a pintura. Não como teoria:


em geral, os pintores são maus teóricos. Miró quase não tem teo­

331
ria: quando leu meu livrinho sobre ele, não entendeu nada. É um
pintor-operário. Picasso diz boutades. Apollinaire só disse bestei­
ras sobre pintura.

— Você parte de uma estrutura prévia, e o tema decorre


dela? Em A educação pela pedra, por exemplo, houve um plane­
jamento form al anterior a qualquer poema?

— A princípio, eu preciso das barreiras vazias. A educação


pela pedra é um livro baseado na dualidade. Uma vez, os concre-
tistas publicaram um manifesto de Max Bill, que falava nas sete
leis da estrutura. Acho que são apenas quatro: polarização, que
prefiro chamar de dualidade, progressão, enumeração e desenvol­
vimento lógico. Cheguei a planejar quatro livros, cada um seguin­
do um princípio, mas queria terminar a obra antes dos 45 anos:
tenho a impressão de que, depois, a arteriosclerose chega. Tam­
bém desenvolvi a técnica dos poemas permutacionais. De um dè-
les fiz quarenta e oito versões, mas incluí apenas duas na edição.

— Há algum princípio ordenador em Museu de tudo?

— Fiz o que todos os poetas fazem: escrevi, escrevi e publi­


quei o livro. Por isso, ele é menos rigoroso como concepção geral,
mas não creio que se possa dizer o mesmo quanto à concepção do
verso.

— Para inverter a ordem cronológica de apresentação de


seus livros nas Poesias completas você se baseou em que critério?

— Sempre ponho os mais novos na frente porque tenho a


impressão de que ninguém chega ao fim de um livro desses.

— Quais os seus projetos mais imediatos em termos de


criação?

— Está saindo A escola das facas, textos com temas per­


nambucanos. Quanto ao resto, não sei. Será preciso muita resis­
tência física, e escrever me deixa excitado, me cansa muito. Cito
A casa de farinha, poema longo que já está todo estruturado e cro­
nometrado com vistas a uma possível encenação. Tudo se passa
na casa: o dono diz que vai vendê-la, vai mudar-se para o Sul. No

332
último dia de funcionamento, todas as famílias vão preparai' a
farinha e travam diálogos com tons pessimistas ou otimistas.
Outro poema longo serão as Memórias prévias de Jerônimo de
Albuquerque. É meu antepassado; foi chamado de “o Adão per­
nambucano”. No poema, Jerônimo vai narrar todas as persegui­
ções e desgraças que a sua terra adotiva (ele era português)
sofreu, falará de frei Caneca, de todos os mártires.

— Em sua obra, você julga que há aspectos mal ou insufi­


cientemente analisados pela crítica?

— Acho errado ver Uma faca só lâmina exclusivamente


como arte poética. Também ainda não se enfatizou o grande pre­
domínio dos substantivos, adjetivos e verbos concretos nos meus
textos. Sim, porque adjetivos e verbos admitem essa categoria.
Por exemplo: o adjetivo sublime é abstrato, como tristeza. Maçã
é tão concreto quanto o adjetivo torto. A literatura espanhola usa
preponderantemente o concreto, e por isso me interessou. As lite­
raturas primitivas me interessam. Parece que a linguagem come­
çou pelas palavras concretas.

— Isso é negar qualquer valor à poesia de cunho metafísico


ou subjetivo ?

— Não. Em alguns poetas que falam de si diretamente,


como Rilke, se pode constatar uma construção, um sistema.

— Como julga a poesia brasileira contemporânea?

— A poesia funciona como um pêndulo. Numa hora oscilou


para o rigor, e eu coloco aí o concretismo e a práxis. Agora, o
relógio vai noutra direção. Muito da nova geração se traduz em
poemas relaxados, mais pobres de linguagem, em confissões dire­
tas e não através das coisas. Parece que as pessoas criam em dois
minutos, de um só jato, e que não têm muita paciência para ler.

— Cabral, o ser humano é uma pedra imperfeita?

— Não sou a favor da pedra contra o ser humano. Acho que


temos que nos petrificar um pouco, mas não creio que esse seja o
ideal maior do homem.

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