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Emilio Gennari – Educador Popular

E-mail: epcursos@gmail.com

Sob o peso da servidão: a ação sindical frente ao novo trabalhador coletivo

Introdução

No Brasil, há várias ideias de sindicato que se revelam na atuação de suas direções. Aqui,
evitaremos discutir as teses e as posturas de cada uma delas, mas partiremos do pressuposto pelo
qual não há sindicalismo que ajude a derrotar a exploração sem dar aos trabalhadores os meios para
pensar e dirigir os enfrentamentos. Neste sentido, realizar ações no local de trabalho, rumo a
perspectivas mais amplas, parece lógico e viável, mas há uma pergunta intrigante: por que é tão
difícil envolver trabalhadores e trabalhadoras nas lutas por seus direitos?
Para responder, nada impede que recorramos a teóricos consagrados. Mas estes guias nos
fornecem mais ferramentas de análise do que respostas ao cotidiano no trabalho onde as pessoas são
modeladas para extrair delas o máximo possível e neutralizar o potencial de conflito semeado pelo
descontentamento. Mescla de coerção e convencimento, o equilíbrio entre exploração e ausência de
reação tende a ser mais duradouro quando os empregados assumem voluntariamente as exigências
dos empregadores como parâmetro para pensar o presente e projetar o futuro.
Sendo assim, compreender a visão de mundo do trabalhador coletivo em relação às tarefas
diárias, aos problemas que surgem na sua realização e às perspectivas de afirmação pessoal que são
oferecidas é um passo essencial para conhecer o que desperta raiva, angústia, indignação, satisfação,
reconhecimento, compromisso e desejo de adaptação.
Para que as propostas de luta façam sentido para as pessoas às quais se dirigem, o sindicato
precisa dialogar com as leituras da realidade, os conflitos e as situações vivenciadas pelo trabalhador
coletivo. Longe de incorporar acriticamente o senso comum, a compreensão dos elementos que o
compõem permite plantar dúvidas no que parecia líquido e certo, ampliar a visão dos problemas,
identificar o que se esconde sob o manto dourado das aparências e mostrar que dá para “dizer não”
ao que era percebido como natural e impossível de ser mudado.
Temos consciência de que as dificuldades dos nossos dias nascem de escolhas que marcaram
as três últimas décadas. O resultado com o qual nos deparamos passa longe do que desejávamos, mas
é sobre ele que devemos lançar o alicerce do amanhã enquanto movimento sindical. Por isso,
conhecer o mundo em que se movimenta o trabalhador coletivo e enfrentar seus desafios é parte
essencial do esforço de capacitá-lo para as mudanças com as quais buscamos construir o futuro da
classe trabalhadora.
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As feições do “novo” trabalhador coletivo.

Um aviso importante a você que se interessou pelas reflexões que vamos esboçar. Ao
tratarmos do “novo” trabalhador coletivo, não nos referimos a um grupo de empregados jovem ou
recém-contratados. No texto, o termo “novo” é apenas sinônimo de “diferente do que era antes”.
Falamos assim de pessoas que atuam no mesmo ambiente de trabalho e, em seu conjunto,
apresentam características comuns que se distanciam das que podíamos esperar no passado, tanto em
termos de compreensão e vivência do cotidiano, como de resistência ao envolvimento nas lutas.
Desde já, alertamos que as conclusões a que chegaremos não devem ser aplicadas como uma
receita, mas servem de subsídio à reflexão, como estímulo a superar paradigmas de análise
cristalizados pelo tempo e convite a verificar se são pertinentes com a realidade na qual você está
inserido a fim de que possa testá-las em sua prática diária.
Pelo que observamos em inúmeros encontros, estudos, cursos e diálogos informais com
pessoas de diferentes categorias, acreditamos poder resumir as características do novo trabalhador
coletivo nos pontos que seguem:

1. Herdeiro da incerteza criada pelo desemprego e a informalidade.


Com a vida familiar marcada pela insegurança, o trabalhador enfrenta o presente tendo como
parâmetro a manutenção do emprego a qualquer custo. Não contar com uma renda mensal é
sinônimo de perder o controle sobre a própria vida, as decisões e os planos para o futuro; é abrir mão
da visibilidade conquistada e se deparar com a perda do que dava sentido ao cotidiano. A angústia
que se instala a partir do dia da admissão tem sua origem no medo que o desemprego aniquile o que
dá cor e forma ao presente deixando o indivíduo, literalmente, “sem chão”.
Esta realidade amplia a disposição a se moldar ao trabalho como forma de ser aceito pelo
grupo, de garantir a própria empregabilidade, de não ter problemas com a hierarquia e elevar a
sensação de segurança. E isso num ambiente que pede sempre mais, exige o compromisso
permanente a superar o desempenho do dia anterior e não admite sinais de hesitação ou fraquezas.
Homens e mulheres devem estar dispostos a vencer os próprios limites, a acelerar o ritmo das tarefas
individuais e a se encaixarem sem falhas na organização do trabalho.
Este processo faz com que atuar sob a pressão das cobranças ou em condições ruins seja visto
como natural, como ocasião para mostrar competência e capacidade de segurar o rojão, algo diante
do qual se rebelar traz prejuízos irremediáveis. Em sentido oposto, recusar uma tarefa por ser
perigosa ou se queixar da sobrecarga de trabalho pode ser publicamente condenado pelas chefias e
interpretado pelos colegas como falta de vontade de trabalhar, covardia diante do risco, ser ruim de
serviço, etc.
Assim, adaptar-se voluntariamente ao que é solicitado permite desfrutar da tranquilidade do
“dever cumprido”, alivia o sofrimento e proporciona uma sensação de superação que fortalece o
orgulho e a autoestima. Aos poucos, o que deveria ser visto como estranho e prejudicial à integridade
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física do trabalhador se torna familiar a ponto de não ser percebido como um fator de desgaste.
Aguentar passa a ser a opção sábia e conveniente de quem não procura sarna pra se coçar.
O problema desta saída aparentemente lógica e inevitável está nas consequências que não
demoram a aparecer. O esforço de se moldar às demandas do trabalho suga as melhores energias do
trabalhador coletivo, leva seus integrantes a abrirem mão de valores, ideias e vivências que
constituem parte fundamental do que o indivíduo é, pensa e alimenta como marco que o diferencia
dos demais. Por isso, à medida que vai se conformando e integrando ao ambiente, desenvolve uma
falsa identidade de si mesmo que desestrutura a sua subjetividade na mesma proporção em que se
esforça para reprimir sentimentos e expressões que perturbariam a imagem construída perante os
demais.
A aparente vitória sobre a ameaça de perder o emprego introduz no cotidiano do trabalho
situações e vivências que produzem patamares alarmantes de servidão voluntária, inviabilizam a
capacidade de agir para mudar e levam o indivíduo a caminhar rumo à exaustão. Do ponto de vista
sindical, detectar o grau de domesticação e submissão às relações de poder no trabalho dá uma ideia
dos desafios impostos pela visão de mundo que permeia o trabalhador coletivo e também dos passos
necessários para superar os impasses que ela coloca.

2. Sem tradição de luta.


É comum nos depararmos com situações em que, ferido na sua dignidade, o trabalhador
deseja reagir, mas não sabe por onde começar. Esta situação sinaliza que sob a aparente passividade
das pessoas se movimenta um potencial de conflito que estimula a não aceitar a realidade e a dar vida
a ações de resistência. O problema é que a passagem da revolta individual à luta coletiva só pode se
concretizar quando os trabalhadores são capazes de fazer amadurecer as condições que dão asas ao
descontentamento. Sem este passo essencial, os sentimentos de revolta e indignação causados pelos
problemas diários se perdem nas malhas do conformismo que reafirma a adaptação como meio e fim.
Na origem da ausência de tradição de luta, encontramos elementos e escolhas que dependem
do movimento sindical ao lado de situações fora do seu alcance. Em grandes linhas, resumimos no
primeiro bloco os elementos que seguem:
a. Nos anos 80, a liberação para o exercício do mandato sindical é a opção necessária para
viabilizar momentos de mobilização e agitação da categoria. Neste processo, saem do
ambiente de trabalho as pessoas que sabem o que fazer para organizar os colegas, deixando
um vazio que se ampliará com o passar do tempo. Sem inserção na base, torna-se impossível
aos dirigentes identificar, avaliar e tornar coletivas as ações que nascem nos subterrâneos da
indignação e expressam um “não” à submissão. Ainda que limitados em suas perspectivas de
mudança, estes momentos representam uma vitória sobre o medo e o primeiro engajamento
em enfrentamentos que concretizam a possibilidade de uma reação coletiva. A ausência deste
aprendizado, a rotatividade e as políticas de “caça aos militantes”, promovidas pelos
empresários, dificultam cada vez mais o envolvimento dos trabalhadores, apagam a tradição
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de luta, tornam insustentáveis as expressões de rebeldia e fazem da aceitação da realidade o


único caminho viável.
b. Paralelamente a isso, assistimos a uma progressiva institucionalização dos movimentos
populares e ao esvaziamento das comunidades de base ligadas à igreja católica. Movimentos
de bairro e pastorais funcionavam como celeiros à medida que estimulavam o envolvimento
de pessoas simples em grupos de reflexão e ação e ofereciam o primeiro engajamento na
construção de processos reivindicatórios. A participação levantava questões que só o
conhecimento teórico poderia responder ao passo que a apropriação deste saber colocava
tarefas novas e desafiadoras. A dinâmica ação-formação-ação constituía a base a partir da
qual se formavam militantes e novas lutas podiam ser pensadas num processo que alimentava
a necessidade de conhecer e mudar a realidade. Muitos diretores sindicais tiveram suas
primeiras experiências de luta no âmbito das pastorais e movimentos populares e aprenderam
por estes caminhos o que fazer e como dialogar com o povo. Hoje, é comum que dirigentes
recém-eleitos não tenham vivências de luta e organização anteriores e, uma vez empossados,
vejam os problemas da categoria desabarem sobre eles como uma tempestade que arrasa a
vontade de fazer, espalha frustrações, exige um saber desconhecido e um jogo de cintura que
só a experiência pode dar. O resultado está sob os olhos de todos: a maioria deles deixa o
sindicato num período de 3 a 6 meses da posse.
c. A partir dos anos 80, ser combativo se torna sinônimo de resolver os problemas da base. Este
compromisso, que visava criar um contraponto ao imobilismo dos sindicatos pelegos, deixa o
trabalhador no papel de expectador que, uma vez comunicado o motivo de suas queixas,
espera pra ver no que vai dar. À medida que esta postura caminha lado a lado com uma
eficácia menor das atividades de agitação e com a ausência de organização de base, abrir um
processo na justiça se apresenta como caminho eficaz para cobrar um direito negado. Ano
após ano, assistimos assim a uma enxurrada de ações individuais e a um crescimento
incomum dos departamentos jurídicos.
Sendo assim, não é de estranhar que o trabalhador coletivo tenha desaprendido a se defender
e que, agora, esteja sempre à procura de quem o represente em tudo sem lhe causar nenhuma dor de
cabeça. Longe de ser fruto exclusivo da acomodação, esta reação nos coloca frente a frente com
pessoas acuadas pela realidade do trabalho, inseguras e que não sabem por onde começar na hora de
levantar a própria voz. E aqui, acredite, não há curso de formação que opere sozinho o milagre de
reverter com o aprendizado teórico uma situação que só pode ser desbloqueada pelo envolvimento e
pelas práticas de luta.
No âmbito das situações que não dependem diretamente da agenda sindical, sublinhamos três
que, a nosso ver, têm influência profunda no aspecto que estamos tratando:
a. Desde as eleições para governador de estado, em 1982, a urna se afirma como símbolo e lugar
da mudança. “Votar certo” torna-se sinônimo de construir um novo país a partir da escolha de
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representantes e não das lutas que haviam caracterizado o período anterior. Aos poucos, os
efeitos colaterais indesejados deste processo não demoram a dar o ar da graça.
Sempre que algo dá errado na arena parlamentar, não faltam dirigentes sindicais que apontam
o povo como problema por não saber “votar certo”. É impressionante perceber como até
mesmo sindicalistas experientes perdem a noção pela qual a formação política da classe se
constrói a partir de baixo, através de projetos e processos de luta que transformam as pessoas
em sujeitos das mudanças e não em meros eleitores de quem vai substituí-las na intenção de
resolver os problemas do país. Entre os sindicalistas que se candidataram a cargos eletivos, é
comum que representar a classe ganhe disparado do debater e construir com ela projetos que
respondam às necessidades dos de baixo. Por sinal, um passo indispensável para os
trabalhadores poderem compreender a sociedade, as relações de poder, os interesses em jogo
dentro e fora da disputa eleitoral e organizarem respostas à altura das tramas que a elite tece
no cotidiano da história. O lado engraçado deste processo é que, ao apontar o dedo contra o
povo pelo fato de se tornar presa fácil dos poderosos, o dirigente-candidato cobra exatamente
o que a sua atuação não produziu: uma organização que tenha uma identidade de classe e que,
ao combater os planos da elite, é capaz de compreender o mundo em sua volta e se preparar
para novos e mais amplos enfrentamentos. Desta forma, o verdadeiro problema não estaria na
nossa incapacidade de organizarmo-nos enquanto classe, que é caminho pelo qual os
trabalhadores e as trabalhadoras se assumem como arquitetos de uma sociedade sem
exploração, e sim nos problemas causados pelas artimanhas dos poderosos em termos de
estrutura econômica e formação do consenso social, por sinal algo próprio de qualquer
sociedade dividida em classes.
Mas isso não é tudo. O que ainda não foi suficientemente percebido é que o ato de votar não
ensina a fazer política, mas sequestra a política da vida das pessoas. De fato, cumprido o
dever legal, o cidadão eleitor não será mais consultado em relação às medidas que definem o
seu futuro e o de sua família, restando-lhe apenas o ilusório direito de cobrar o cumprimento
das promessas nas quais havia acreditado. Ao consolidar-se, este processo cria um paradoxo
que seria cômico se não fosse trágico: a participação direta em movimentos que nascem das
necessidades dos de baixo, própria da democracia, só é bem vinda pelos representantes eleitos
pelo povo quando soma com seus interesses imediatos e não quando reivindica direitos
esquecidos.
b. Nos anos 90, a competição internacional se acirra e é comum ouvir ecoar nos locais de
trabalho o convite para que os funcionários se tornem parceiros da empresa. Os primeiros
passos deste processo marcam o nascimento das Câmaras Setoriais, se aprofundam com a
abertura econômica dos anos 90 e chegam aos nossos dias com uma quantidade significativa
de dirigentes sindicais que pensam e negociam as relações de trabalho no interior da lógica
empresarial da produtividade, da competitividade e da lucratividade. Esta opção reduz o teor
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das reivindicações, esvazia a identidade de classe e as razões que levavam o trabalhador


coletivo a agir.
Assim, o lucro que antes era visto como prova material da exploração se transforma em
compromisso de todos e caminho para proporcionar uma suposta garantia no emprego.
Assumir as metas da empresa como objetivos pessoais, ainda que isso implique em abrir mão
de direitos conquistados nos acordos coletivos, passa a ser desejado como medida para elevar
uma renda espremida pelo encolhimento dos salários fixos e projetar méritos individuais. O
trabalhador coletivo chega ao paradoxo pelo qual mais importante do que derrotar os custos
humanos impostos pelo trabalho é negociar acordos de participação nos lucros e resultados
que, fiéis aos interesses da empresa, sejam mais vantajosos em termos de ganhos imediatos.
Assim, o capital não molda apenas empregados sensíveis às suas demandas, mas produz
pessoas que defendem ativamente seus objetivos no seio do trabalhador coletivo.
c. O desenvolvimento das redes sociais ampliou fortemente as possibilidades de comunicação e
troca de ideias sobre a realidade, mas, quando medimos o volume e os efeitos produzidos
percebemos claramente que nem tudo o que brilha é ouro. Em relação ao objeto das nossas
reflexões, gostaríamos de destacar três questões preocupantes. A primeira delas é que “estar
conectado” e “comunicar-se com” é mais importante do que “estar com” e “fazer com”.
A comunicação virtual vem substituindo cada vez mais a vivência da coletividade. Na hora
do almoço, por exemplo, é comum nos depararmos com colegas de trabalho que, sentados à
mesma mesa, não trocam olhares e palavras entre si, mas fixam suas atenções nos celulares
que permitem os contatos com quem está fora daquele ambiente. A inviabilização do
momento coletivo impede a construção do companheirismo e da confiança recíproca que
possibilitam relações humanas capazes de dar ao “fazer com”, ou seja, à ação coletiva, um
dos elementos de sua concretização e duração.
Na contramão desta possibilidade, as redes têm se tornado uma vitrine através da qual o
indivíduo se mantém visível não pelo que é e sim pela personagem que deseja fazer aparecer
a depender da situação e da conveniência. O que a rede projeta para os demais integrantes
raramente é o verdadeiro “eu” das pessoas, mas, quase sempre, o reflexo mutante de uma
criatura que busca colocar em evidência alguns aspectos da sua imagem.
A consequência esperada deste “ficar bem na foto, depois se verá” é que os múltiplos rostos
do sujeito criam uma cultura da simulação que impede de entender como as coisas realmente
estão. Ainda que não se trate de algo totalmente novo, este comportamento faz com que, na
rede, sobrem desabafos que soam como rugidos de leão, mas que, na hora dos fatos, viram
miados de gato assustado. Se a coerência é um eterno desafio, a metamorfose que cria
personalidades adequadas aos diferentes momentos de projeção pessoal faz da desconfiança
em relação ao outro o elemento que desgasta as possibilidades de dar vida a um sentimento de
coletividade.
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3. O indivíduo como promotor de si mesmo.


Firme na crença pela qual querer é poder, o sujeito atribui a um esforço de vontade o poder de
superar qualquer limite. Desta forma, a injustiça, a fome, a marginalização e a degradação humana,
produzidas pelos mecanismos de exploração, desaparecem do seu campo de visão e não despertam
sentimentos de indignação. Nascer pobre é visto como obra do destino, mas permanecer pobre é sinal
de falta de esforço, caráter e compromisso pessoal. Esta postura tão comum, e acriticamente aceita
pela maioria, condena as vítimas da exploração e aplaude os algozes que, graças a algum projeto
social, devolvem com a colher uma parte ínfima do que retiraram com o balde.
Quando tudo depende do sujeito, torna-se lógico e plausível procurar nele, e somente nele, as
razões que explicam o seu comportamento. Nos anos 80, uma chacina despertaria imediatamente a
pergunta sobre as causas sociais da violência como meio para resgatar o caldo de cultura na base de
sua origem. Em nossos dias, a tendência é a de centrar as explicações na natureza perversa do
matador, no seu código genético, no nível de serotonina ou, no máximo, em alguma falha na
educação familiar que impediram sua adaptação aos padrões de convívio social.
No local de trabalho, o individualismo não é um problema novo, mas nunca atingiu os
patamares atuais. Seu fortalecimento tem como base o clima social criado pelas convicções que
acabamos de esboçar e produz efeitos devastadores em termos de compreensão e ação coletiva.
Vejamos alguns exemplos:
a. À medida que tudo depende do sujeito, o resgate de elementos estruturais que moldam a
cotidiana realização das tarefas é visto como um exercício inútil e contraproducente. Para
quem está convencido de que sua vontade pode superar qualquer obstáculo e vive à espera da
Participação nos Lucros e Resultados para realizar algum projeto pessoal, conhecer como se
dá e se aperfeiçoa a exploração não passa de um aprendizado sem serventia. Por outro lado,
saber que a organização do trabalho tem o lucro como bússola e a produtividade como
caminho, em prejuízo da vida e da incolumidade dos próprios trabalhadores, é algo que
assusta, que é melhor não conhecer e que, no máximo, pode ser lembrado para enaltecer a
determinação de quem decide suar a camisa em nome dos seus objetivos. Não são poucos os
casos em que esta lógica chega a transformar o “trabalhar no pior setor” em motivo de
orgulho dos trabalhadores e não de preocupação por suas vidas. Do mesmo modo, é pavoroso
constatar que, na quase totalidade dos acidentes de trabalho o olhar de condenação dos
colegas se dirige às vítimas cujas falas também assumem a ideia de culpa e responsabilidade
individual como explicação por ter sucumbido aos riscos que ameaçam a vida de todos.
b. O “querer é poder” do indivíduo costuma ocultar as determinações da realidade material e
reduz fortemente as possibilidades da indignação marcar presença no trabalhador coletivo. A
perda da visão estrutural que serve de base aos acontecimentos impede a formação desse
sentimento que impulsiona a construção da mudança. Na maioria das vezes, sinais vagos de
uma dignidade ferida aparecem pontual e individualmente diante da falta de reconhecimento
do próprio trabalho ou quando um acidente incapacitante ceifa as possibilidades de futuro das
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vítimas. A ruptura das expectativas raramente gera reações coletivas que vão além do
lamentar o corrido e torcer para que não se repita.
c. Se o importante é chegar em primeiro lugar, se destacar, etc., o outro é visto constantemente
como um concorrente ou uma possível ameaça aos planos pessoais. Assim, o “meu” futuro
pode depender da negação do futuro dos demais, ao mesmo tempo em que se supõe que eles
façam o mesmo comigo em função dos projetos que procuram realizar. A ideia de somar
forças como parte essencial da convivência com os colegas cede o lugar a uma relação que
busca aproveitar o que favorece o indivíduo sem a obrigação moral de deixar algo em troca e
a um controle aprimorado do que os colegas pensam e fazem. Os reflexos mais evidentes se
manifestam na forte redução dos momentos de solidariedade (à medida que ajudar o outro
pode resultar em algum tipo de prejuízo pessoal), no aumento da competição e da vigilância
recíproca, no esvaziamento da comunicação entre os colegas e no consequente isolamento do
sujeito em relação aos demais.
d. Quando o bem-estar individual ocupa o centro das preocupações, o trabalhador tende a
privilegiar o que lhe é conveniente em curto prazo sem avaliar as consequências futuras.
Preocupado com o que lhe possibilita se afirmar hoje, o sujeito prioriza o envolvimento em
situações que prometem ganhos imediatos. Além de deteriorar as relações diárias, a
dedicação exclusiva aos próprios objetivos fere o aspecto econômico-corporativo à medida
que, em sua busca cega por algo melhor, o indivíduo se vê de passagem por aquele local de
trabalho e não como integrante de um grupo. O entendimento pelo qual o emprego atual não
passa de algo temporário ajuda a naturalizar a adaptação às demandas do trabalho sem reagir
ao sofrimento produzido neste processo. Afinal, passar num concurso, conseguir uma
promoção ou mudar de empresa parece questão de um ou, no máximo, dois anos.
A conclusão esperada do que dissemos é que vários aspectos do novo trabalhador coletivo
remam contra a possibilidade de ter uma causa comum. O individualismo extremado faz isso parecer
algo fora de lugar e sem sentido. Esta realidade se altera somente quando algo devastador ameaça
diretamente o presente dos empregados e as condições sobre as quais pensam o próprio futuro. Neste
caso, o fato de não ter mais nada a perder é suficiente para levá-los a se envolverem nos
enfrentamentos, mas, ainda assim, em nome de algo que, apesar de ser coletivo, é identificado como
um direito individual negado pelas circunstâncias.

4. “Ter” para “Ser”: o consumo como máquina simbólica.


Não é de hoje que as pessoas gastam recursos e energias para atrair as atenções dos demais.
Buscar uma posição de destaque não é algo novo e nem alheio ao comportamento humano, mas em
nossos dias este processo ganha as feições de uma verdadeira obsessão á medida que as pessoas se
dispõem a fazer de tudo para conseguir um cantinho qualquer no palco do espetáculo em que se
transformou a vida em sociedade. Dívidas, frustrações e obstáculos de qualquer natureza deixam de
ser dificuldades que convidam a uma vida sóbria e mais livre dos condicionamentos sociais, para se
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transformarem em passos que enaltecem a procura incessante da própria afirmação para a qual vale a
pena sacrificar recursos e o tempo de vida necessário para consegui-los.
O “ter” como possibilidade de projetar o “ser” faz com que o consumo seja organizado como
uma máquina simbólica cujas promessas de felicidade envolvem todas as camadas sociais. Assim, o
ato de comprar é, ao mesmo tempo, a janela que mostra um pouco mais de cada um e a ponte para
sair do anonimato. Em sentido oposto, “não ter” é correr o risco de não aparecer e ser esquecido pelo
grupo com o qual se convive, é sofrer a coerção do olhar do outro, é se privar da possibilidade de
renovar a própria imagem para alcançar um lugar de destaque. Por isso, o Narciso deste início de
século olha para o seu reflexo não tanto com admiração, mas para procurar defeitos, sinais de fadiga
ou decadência que podem turvar sua projeção perante os demais. Sinais que procurará apagar com
atividades físicas, dietas milagrosas, celulares incrementados, roupas, fotos de festas e viagens para
postar no Face, botox, plásticas, carros, currículos invejáveis no Linked’in, etc.
Além desses mecanismos que permeiam o cotidiano da vida em sociedade, o diálogo com o
novo trabalhador coletivo revela um aspecto que não pode ser menosprezado. Para quem perdeu a
própria subjetividade no esforço constante de se adaptar às exigências do trabalho, o consumo
expressa também a tentativa de recuperar a originalidade perdida, de restabelecer aspectos do “eu”
que ficou para trás em função do constante abrir mão do que o sujeito é, pensa e vive de acordo com
a sua escala de valores. Se a adequação ao trabalho demanda que o indivíduo deixe morrer um pouco
de si mesmo, a compra aponta uma possibilidade de reconstruir fragmentos de uma identidade que
permite dizer “esse sou eu”.
Neste contexto, o “ter para ser” não pode ser entendido apenas como mera expressão da
alienação do trabalhador ou como parte deste processo, mas deve ser visto como um comportamento
pelo qual ele fala de si, da sua história e compreensão do mundo, dos seus sonhos, expectativas e
temores. Por este caminho, o sujeito revela elementos de sua visão da vida que precisamos identificar
à medida que expressam parte do que se vê pelos olhos dele, dos seus desejos e angústias, dos
critérios que usa para interpretar o que está ao seu redor, dos valores que orientam suas ações, enfim,
do que faz sentido para ele e, por isso mesmo, pode se tornar motivo de diálogo e de construção de
laços de confiança.
Esta percepção que hoje é tão distante das preocupações dos sindicatos é amplamente
explorada pelos assessores de marketing em seu esforço de acirrar um desejo que guarde relação com
a busca da originalidade do indivíduo. A mercadoria apresentada pela propaganda precisa fabricar no
imaginário do comprador uma possibilidade de resposta ao que ele quer ser. Somente assim, o ato de
comprar é usado como atalho para se apropriar dos atributos que o produto oferece e faz com que a
aura artificial da mercadoria expresse aspectos da própria subjetividade. Voltado exclusivamente
para o lucro, este processo poderia ser traduzido com a frase “compre isso e aquilo para que haja
mais de você em você mesmo”, ou como um convite a incorporar este “algo mais” que você procura
para mostrar quem você é.
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Para os trabalhadores, porém, o resultado final é bem diferente daquele que imaginam
conseguir. À medida que nenhuma mercadoria possui o poder de satisfazer ou produzir
reconhecimento, felicidade ou originalidade de forma duradoura, o indivíduo precisa sempre correr
atrás de algo novo, o que, muitas vezes, leva ao endividamento. Nesta situação, manter o emprego a
qualquer preço deixa de ser uma opção e se transforma numa obrigação que impõe renovados
esforços de adaptação e a perda de mais aspectos da própria identidade. Cria-se, assim, um círculo
vicioso no qual a servidão voluntária, reforçada pela busca da originalidade do sujeito, leva o
trabalhador a ceder uma parte maior de si, a elevar suas dívidas e, de consequência, a sacrificar ainda
mais parte essencial da sua liberdade. Por sua vez, as pressões desses fatores conduzem a uma
ulterior rejeição das possibilidades de luta e resistência como caminhos para derrotar agressões que,
ao transformarem os empregados em engrenagens adaptadas às necessidades do trabalho, continuam
retirando deles o que realmente são.

5. A solidão no sofrimento.
São inúmeros os estudos que apontam o cotidiano do trabalho como fonte de sofrimento
físico e psíquico. Dar conta dos atritos com superiores e colegas, das tarefas, metas e anormalidades
que transformam o inesperado em corriqueiro, implica em passar por momentos de desgaste, violar
normas, assumir responsabilidades em condições adversas, vivenciar momentos de frustração, medo,
angústia e incerteza. Este processo força trabalhadores e trabalhadoras a acertar contas com sua
forma de imaginar o trabalho, com as prescrições que definem as tarefas e com a realização efetiva
do próprio trabalho.
Para facilitar o entendimento deste emaranhado de relações, repercorra conosco os momentos
que marcam presença desde as primeiras semanas no emprego e pelos quais você mesmo deve ter
passado. Com pequenas diferenças entre uma profissão e outra, antes do fatídico primeiro dia, o seu
imaginário projetava o que representaria para você o posto para o qual foi contratado. Resumindo,
podemos agrupar os principais elementos do “trabalho imaginado” nos tópicos que seguem:
a. Aquela vaga podia não ser um paraíso, mas ocupá-la era um passo à frente diante da situação
em que você se encontrava, representava a possibilidade de acesso a algo negado até aquele
momento e a porta para um futuro melhor. Entre a ânsia de começar e o amanhã imaginado,
digamos que o entusiasmo e o otimismo deixavam pouco espaço ao raciocínio frio sobre o
que a realidade iria oferecer.
b. A sua inserção e desempenho não passavam de algo estritamente individual. Apesar de o
trabalho ser necessariamente coletivo, o foco de seus pensamentos estava em aprender as
“suas” tarefas da melhor forma possível, pois delas dependeria a superação do período de
experiência. A imagem dos colegas era a de alguém que ensina e facilita o serviço com uma
acolhida familiar, um incentivo a superar as dificuldades com atitudes e ações positivas que
permitissem alcançar os “seus” objetivos.
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c. Sua representação do trabalho refletia o que você desejava ou, na linguagem mais comum, o
que “deveria ser” para tudo dar certo. Atritos e imprevistos eram vistos como normais em
função da convivência com pessoas desconhecidas, mas, no fundo, prevalecia a torcida para
nada disso ocorrer. O desejo de vir a integrar o quadro de funcionários apontava uma relação
infalível entre “querer” e “poder” aumentando a confiança em você mesmo e levando suas
expectativas a se descolarem do real.
d. A vontade de acertar e a alegria de ter sido contratado alimentavam suas esperanças e
atrelavam os anseios de reconhecimento à prioridade de se adaptar rapidamente às demandas
da chefia. Apesar das dificuldades, este processo seria vivido com entusiasmo durante um
bom tempo e, provavelmente, você mesmo não deve ter poupado comentários positivos sobre
o trabalho ao falar com amigos e conhecidos.
e. Riscos e perigos eram tidos como inevitáveis e presentes em qualquer lugar. A estas ameaças
você opunha a capacidade de “prestar atenção”, “não perder o foco”, “não vacilar” e assim
por diante. Na sua cabeça, você tiraria de letra o desafio de não se machucar graças ao seu
esforço de adaptação, à sua dedicação e aos macetes que aprenderia com o tempo.
Antes, durante e depois de pôr a mão na massa, alguém foi lhe apresentando as orientações do
“trabalho prescrito”, geralmente constituído por:
a. Normas e parâmetros que definiam o conteúdo dos procedimentos e, em muitos casos, os
gestos e operações que concretizavam a “correta” realização das tarefas.
b. As regras tinham um caráter universal e sua aplicação não dependia da realidade a ser
enfrentada ou de alguma anormalidade eventual. Reunidas em um manual, constituíam uma
espécie de código legal que não admite questionamentos pontuais e exceções ocasionais.
Deviam ser cumpridas e ponto.
c. Agir de acordo com as normas era veiculado como um passo importante para ser um bom
profissional e apresentado como caminho para suas metas pessoais. A impressão final do
aprendizado teórico podia ser resumida numa única frase: se quiser evitar problemas, ver seu
trabalho reconhecido e melhorar a sua posição procure se ater ao trabalho prescrito.
Se a vida seguisse rigorosamente o ambiente que serve de pressuposto à compilação dos
manuais, os locais de trabalho seriam paraísos onde a simples aplicação do que é definido como “o
certo” produziria automaticamente os resultados esperados. Infelizmente, não é assim. Com o passar
dos dias, a necessidade de enfrentar situações inusitadas levava você a perceber que o “trabalho real”
não estava refletido nas normas. De fato:
a. A realidade era sempre capaz de surpreender. Suas variações podiam decorrer de fatores
inesperados que demandavam um acerto constante entre teoria e prática que você deveria
realizar. Perceberia às suas custas que muitas vezes a resposta às anormalidades não estava
nos manuais e sim no saber prático acumulado ao longo do tempo.
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b. Ao burlar-se das prescrições e do “jeito certo de fazer”, o real derretia a confiança do trabalho
imaginado, colocava na berlinda até os mais experientes e testava sua capacidade de análise,
intuição, flexibilidade e construção de respostas para problemas novos.
c. Não demoraria em perceber que o serviço pensado a partir do escritório, das secretarias, dos
departamentos de engenharia, etc., era bem diferente do que era encontrado pelos que o
realizavam. Os parâmetros que definiam conteúdos e procedimentos não passavam do que é
uma receita para o cozinheiro. O problema é que, se algo desse errado, a ser reprovado e
punido não seria o autor da receita, mas quem cozinhava a partir dela, ou seja, você mesmo.
d. Às vezes, a realidade deve ter te colocado numa sinuca: se cumprisse a norma, não daria
conta das tarefas encomendadas; mas, ao descumpri-la para que as coisas pudessem fluir,
você se colocava fora da lei e seria culpado pelas consequências da sua transgressão. Em
qualquer profissão, o exemplo mais claro desta situação ocorre quando de movimentos
reivindicatórios baseados numa “operação padrão”, ou seja, no estrito cumprimento das
normas. O resultado é uma sequência caótica de situações que inviabilizam o trabalho.
Apesar desta demonstração inequívoca dos limites das prescrições, descumprir o que consta
nos manuais continua sendo aceito e silenciado até que nada dá errado, mas se torna motivo
de aberta condenação sempre que algum imprevisto turva os bons resultados em função dos
quais a chefia se dispunha a fazer vista grossa.
Nenhuma das realidades que acabamos de descrever pode ser considerada própria dos nossos
dias. Trata-se de algo que está sempre presente na realização de qualquer trabalho em qualquer
época. A diferença é que, no passado, o fracasso, a frustração, a angústia e a sensação de impotência
que nascem do acerto entre o trabalho imaginado, prescrito e real eram lidas no interior de um
coletivo que exercia uma cumplicidade positiva, atuava como sustentação e proteção do indivíduo e,
por isso mesmo, era capaz de dar sentido aos acontecimentos. Porém, à medida que as tarefas diárias
passam a ser vistas como meio de ascensão e não como base para de uma identidade coletiva, o
sujeito se isola e fecha as possibilidades de encontrar explicações e saídas junto aos demais.
Quando falamos em identidade coletiva, nos referimos a um conjunto de ideias, valores,
critérios de análise, práticas, vivências e relações construídas ao longo do tempo que evoluem graças
ao envolvimento de cada um e fornecem ao trabalhador um apanhado de percepções, atitudes, dicas,
cuidados, macetes, etc. para entender e enfrentar o cotidiano junto aos demais. Em seu interior, se
elaboram experiências, se avaliam possibilidades e limites da ação, se partilham sentidos para os
acontecimentos e cada um é chamado a definir sua posição em relação a pessoas, metas, atitudes da
chefia e ao próprio desenvolvimento do trabalho. No emaranhado de relações que se forma em volta
dela, a identidade coletiva lança as bases da solidariedade, reduz a incerteza das situações novas ou
inesperadas e possibilita momentos comuns de resistência às agressões do trabalho. Em sua ausência,
cada funcionário atua como um trapezista que salta sem rede de proteção. Ninguém duvida da sua
habilidade, mas o estresse diário de saber que pode se espatifar a qualquer momento o levará ao
esgotamento em tempos breves.
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6. As reações mais comuns na busca de alívio e respostas.


Ao sofrer sozinho, o indivíduo costuma expressar sua frustração e insegurança,
principalmente, nas atitudes que seguem:
1. Quanto mais dura a realidade e piores as perspectivas de futuro, é comum nos depararmos
com duas reações complementares. A primeira indica que, se o que está ruim pode piorar, o
melhor a fazer é não se mexer. A ausência de reação é vista como meio para reduzir a
incerteza à medida que alimenta a expectativa de o trabalhador passar despercebido, ganhar
tempo para melhorar a própria imagem perante a chefia e tornar menos angustiantes as
perspectivas para o futuro próximo. Mas o alívio imediato conseguido com o silêncio revela
sua fragilidade diante das novas doses de sofrimento físico e psíquico que o trabalho é
pródigo em fazer aparecer. Aos poucos, a escolha de não dar vazão ao descontentamento e
não enfrentar os problemas leva o sujeito a mergulhar num estado que o faz opor resistência a
qualquer proposta de mudança.
Por outro lado, a ideia de que as coisas podem piorar fortalece a capacidade de o sujeito se
tornar cego diante da realidade. Negar que o futuro está preparando surpresas desagradáveis é
o principal obstáculo com o qual se depara quem, com suas denúncias e reflexões, tenta
estimular uma reação. E aqui, o desafio deste “grilo falante” não é pequeno. Se ele quiser
produzir alguma adesão às suas intervenções, terá que traduzir em palavras uma imagem de
futuro suficientemente ruim para ser repulsiva e bastante verossímil para desencadear ações
que impeçam sua realização. Este equilíbrio só pode ser conseguido por quem conhece bem o
cotidiano do trabalho e o trabalhador coletivo ao qual dirige suas mensagens.
2. A criação de estratégias de defesa que permitem aliviar a tensão e controlar o medo.
Concretamente, falamos de práticas que não constituem nem um escudo sob cuja proteção se
prepara a luta por mudanças nem um fator de resiliência, mas sim de autoengano e de
adaptação às agressões do trabalho. Vamos explicar isso com um exemplo. Nas empresas de
processamento de dados, os digitadores não gostam de saber que podem adoecer em função
da profissão, por isso evitam leituras, comentários e debates sobre lesões por esforços
repetitivos. Longe de expressar falta de conhecimento das consequências, aceitar os alertas
que apontam o trabalho como um fator de adoecimento implicaria em conviver com o medo e
a ansiedade, algo que, no limite, poderia inviabilizar o próprio trabalho, ainda mais quando o
número de toques por minuto define quem merece o título de bom profissional.
Diante do paradoxo pelo qual ser um digitador rápido é ter mais chances de adoecer, a melhor
opção seria a de enveredar numa luta para mudar as condições de trabalho e poupar o próprio
corpo, o que implica em enfrentar as investidas das empresas. Na contramão disso, a
estratégia de defesa utilizada para silenciar o medo é uma forma de não pensar nas
consequências e de construir uma segurança que o tempo revelará tão frágil quanto um
castelo de areia. Diante dos primeiros sinais de que há algo errado, é provável que o digitador
negue o adoecimento acelerando o ritmo para mostrar a si próprio que pode aguentar um
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tranco ainda maior e não será vencido pelo sofrimento. Mas, à medida que as dores se
instalam colocando-o diante de sua nova realidade, o trauma experimentado o forçará a
repensar o trabalho com os pés no chão, mas, agora, em condições bem mais difíceis.
3. Tudo começa e acaba no desabafo. Filho da convicção de que não há alternativas, o desabafo
proporciona um caminho acessível e de baixo risco à expressão do descontentamento que se
acumula no trabalhador coletivo. Individual e momentâneo na maioria das vezes, ganha as
feições de uma sessão de descarrego para reduzir a pressão do cotidiano e pôr para fora o
sofrimento experimentado. Quem o recebe costuma ser uma pessoa na qual se pode confiar e
que, de alguma forma, partilha a ideia pela qual seria muito bom que as coisas fossem
diferentes, mas é irreal esperar que mudem.
E aqui temos um problema adicional. Em várias ocasiões, a convicção de que não há
alternativas se fortalece com as denúncias levantadas pelo sindicato. À medida que a
divulgação dos fatos não é acompanhada por uma ação capaz de envolver as pessoas no que
elas podem realmente assumir no local de trabalho (algo bem diferente do abrir um processo
na justiça), os dirigentes acabam confirmando involuntariamente a percepção da base de que
não há como mudar as coisas.
4. A busca de um culpado. Sempre que a vontade do indivíduo é vista como uma força capaz de
vencer os limites e os condicionamentos impostos pela realidade, o fracasso das tentativas de
afirmação pessoal no trabalho faz o empregado culpar alguém ou alguma medida pela
impossibilidade de fazer valer seus esforços. Identificar um culpado, porém, não visa apontar
a pessoa ou o elemento da organização do trabalho contra o qual construir a ação coletiva,
mas tão somente exonerar o acusador de qualquer responsabilidade nos acontecimentos. Ao
visualizar um responsável, é como se o sujeito dissesse: “não olhem pra mim, não me peçam
nada, a culpa é toda dele e eu não tenho nada a ver com isso”. Entre os casos corriqueiros da
busca de um culpado está o do assédio moral. Sabemos que esta situação só é possível
quando, de um lado, encontramos uma atitude submissa e passiva do assediado e, de outro,
temos um trabalhador coletivo incapaz de comunicar a ele sua solidariedade e contrariedade
em relação à perseguição sofrida. Gestos e palavras simples ajudariam muito o assediado a
perceber que não está sozinho e, talvez, até mesmo a esboçar uma reação capaz de frear o
assédio. Mas, ao apontar o chefe como culpado, pede-se que alguém tome providências sem
reconhecer a própria omissão como um elemento sem o qual nada disso estaria acontecendo.
5. O ressentimento como expressão da perda de sentido no trabalho. À medida que o desejo de
valorização é frustrado, que o esforço de adaptação do indivíduo leva a negar aspectos
importantes da própria subjetividade e que a falta de companheirismo eleva a sensação de
incerteza, enfrentar as tarefas cotidianas se torna um desafio sem sentido. Pouco a pouco, a
desilusão e o desânimo contaminam as relações com os colegas, afastam as pessoas dos
momentos de convívio, transformam o trabalhador coletivo num grupo de sujeitos que se
repelem. Vingar-se nos colegas acaba sendo uma forma de compensar o próprio sofrimento e
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insatisfação. O ressentimento leva a descontar nos demais a sensação de derrota e a frustração


que, a bem da verdade, são o resultado das próprias escolhas. Se, de um lado, esta atitude é
um pedido de socorro, de outro, sua presença afasta as pessoas e inviabiliza os laços de
confiança.
No esforço para mapear e tornar acessíveis as principais feições do novo trabalhador coletivo,
separamos cada item para facilitar a análise e não para criar departamentos estanques. A realidade
costuma mesclar de tudo um pouco em porções diferentes a depender das especificidades da
profissão e de cada local de trabalho. Diante dos elementos em jogo, é natural que nasçam perguntas
em relação ao que pode servir de fio condutor para a ação sindical ou, mais simplesmente, que
fatores não podemos perder de vista nas tentativas de colocar em movimento o que se apresenta
como um trabalhador coletivo que não conta com um coletivo de trabalho. É o que veremos a seguir.

O cotidiano do trabalho está com a palavra.

O cenário que esboçamos nas páginas anteriores parece nos deixar sem saídas. E não é para
menos. A ação sindical pensada e realizada de fora pra dentro dos locais de trabalho, reduz a
possibilidade de envolvimento da base à medida que dificilmente consegue encurtar as distâncias
entre os dirigentes liberados e o mundo em que os trabalhadores se movimentam.
Contudo, a experiência revela que não há nada perdido e que o trabalho como centro da
reflexão individual e grupal apresenta-se como caminho viável à medida que se criam as condições
para os trabalhadores expressarem o que sentem e vivem. Pensar cada elemento da jornada traz à
tona aspectos despercebidos, constrói outro olhar sobre o cotidiano, abre brechas nas estratégias de
defesa e possibilita que as pessoas se reapropriem da capacidade de intervir.
Desde já, queremos sublinhar que não se trata de o dirigente sindical reunir pessoas para ele
falar sobre questões do trabalho. Além de inútil, uma vez que a base costuma conhecer os problemas
do dia-a-dia com requinte de detalhes, o sindicato estaria dizendo que não precisa ouvir ninguém,
mas busca apenas um apoio formal à sua representação. Colocar o trabalho no centro da reflexão
exige dos sindicalistas olhos e ouvidos abertos, capacidade de estimular a expressão do que é
vivenciado para que o trabalhador coletivo traduza em palavras o que sofre no dia a dia, sem medo
de colocar o que realmente pensa.
Concretamente, encontros, conversas, reuniões e momentos informais devem ter como
primeira preocupação entender a perspectiva do trabalhador, o que se vê a partir do seu olhar sobre o
trabalho, como tenta se defender e se adaptar, em que medida percebe a exploração a que é
submetido, as marcas de sofrimento que esta deixa no seu corpo, que aspectos do trabalho o
estimulam e desafiam, quais compensam os sofrimentos, que outros negam o reconhecimento
almejado e como se defende das agressões do ambiente em que está inserido. As intervenções dos
dirigentes com perguntas e pedidos de esclarecimentos não buscam encontrar uma brecha para fazer
um discurso e, menos ainda, impor visões que não constroem pontes entre o seu mundo e o do
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cotidiano do trabalho. Suas falas devem mobilizar o pensamento do trabalhador estimulando-o para
que possa se mover livremente no âmbito do seu próprio raciocínio.
No caso de uma atividade em grupo, o início da reflexão pode ser puxado por esta pergunta: o
que você faz no seu trabalho do dia-a-dia? Em seguida, a depender da situação e do tempo
disponível, nada impede que alguns aspectos sejam aprofundados com questões complementares:
 Como você se sente ao iniciar uma jornada de trabalho?
 Quais são suas tarefas? Como são organizadas?
 O que é necessário conhecer para dar conta delas?
 Se ficássemos do seu lado, o que poderíamos ver do seu trabalho?
 O que não conseguiríamos enxergar apesar de acompanhar de perto cada momento?
 Que aspectos assustam e elevam a tensão?
 O que você faz para enfrentar o medo?
 O que te ajuda a retomar o controle após um momento em que as coisas desandaram?
 O que você considera bom e ruim no seu trabalho?
 Que regras você tem que cumprir? Há momentos em que você precisa descumprir algumas
delas para realizar o serviço?
 Como é o ritmo de trabalho? Sobra pressão e faltam condições? Onde?
 Como a chefia trata os subordinados? O que acontece quando alguém erra ou se nega a fazer
do jeito por ela indicado a fim de não violar alguma regra da empresa?
 Sempre foi assim ou as coisas foram mudando de um tempo pra cá? Por quê?
 Vale a pena trabalhar aqui apesar dos problemas que você enfrenta?
Neste contexto, o trabalho não é só objeto da análise e centro da reflexão, mas o trabalhador é
quem está no papel de analista de sua própria realidade. Ou seja, a dinâmica permite mostrar que ele
não é apenas capaz de dar conta das suas tarefas, mas também de resgatar cada elemento que compõe
o seu trabalho e de refletir sobre ele. Para isso, necessita apenas de condições que lhe permitam
traduzir em palavras o que vê e sente e, ao percorrer este caminho, de tomar consciência de cada
aspecto à medida que começa a descrevê-lo.
A possibilidade de ter uma noção mais próxima do real, através de estudos e momentos
informais anteriores, ajuda quem vai estimular o envolvimento coletivo a não ir às cegas e a afinar
sua sensibilidade em relação aos temas que precisam ser tratados ou sobre os quais as percepções
contrastantes indicam a presença de aspectos que os próprios trabalhadores desconhecem ou não
desejam revelar. Enfim, há sempre um enorme “não dito” sobre o que acontece na rotina do trabalho
ora porque ações e comportamentos são realizados de modo automático, ora porque o trabalhador
coletivo considera tão natural que seja assim que sequer chega a ver a sua importância, ora pelo
receio de que a posição a ser defendida complique as relações com os colegas e a empresa.
Outra dinâmica que ajuda a resgatar o trabalho em atividades com grupos de pessoas do
mesmo setor é a que chamamos de “instrução ao irmão gêmeo”. Quem coordena a atividade se
coloca na seguinte posição: “suponha que eu sou o seu irmão gêmeo e que, amanhã, vou substituir
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você em seu trabalho. O que devo fazer e que cuidados eu preciso tomar para que ninguém perceba a
troca?” O papel de irmão gêmeo assumido por quem coordena as atividades é o de se colocar como
quem nada conhece das tarefas comumente executadas pelos participantes e cujas perguntas a eles
dirigidas devem evidenciar o “como fazer” e “por que” precisa ser assim. Neste processo, até as
questões mais simples do trabalho que, com pequenas variações, seguem o roteiro de perguntas
acima, permitem vislumbrar o quanto de inédito, criativo, específico há em cada atividade, levar o
trabalhador coletivo a perceber os saberes dos quais nem suspeitava e abrir perspectivas de ação a
partir dos problemas que vão sendo listados.
Desta forma, matam-se vários coelhos com uma pancada só:
1. Pode-se vencer a sensação de que o vivido e sofrido no trabalho é algo que não se pode
explicar ou que é irrelevante a ponto de subestimar o trabalhador como sujeito ativo que
pensa e executa as tarefas, sem o qual nenhum trabalho chegaria a bom termo;
2. Não faltam oportunidades de visualizar a relação com o adoecimento físico e psíquico e o
processo pelo qual cada empregado foi despido da capacidade de agir para mudar o ambiente
ao seu redor;
3. È possível mostrar que as demandas formuladas em nome do lucro ferem o indivíduo na
mesma medida em que este acredita estar protegido ao atendê-las. A relação “mais trabalho =
menos vida”, vai se encarregar de mostrar que, em nome de algumas formas de segurança ou
ganhos imediatos, aplana-se o caminho para riscos e perdas bem maiores;
4. Tornam coletivas as expressões e leituras do trabalho vivenciadas pelos sujeitos. Isso permite
às pessoas se reconhecerem no que está sendo dito e perceberem os elementos comuns no que
era vivido como resultado de um vínculo estritamente pessoal com as tarefas;
5. Entender a rede de relações informais com a chefia e entre os colegas com a consequente
percepção de situações de favorecimento, injustiça ou falta de reconhecimento;
6. A importância que tem para todos os trabalhadores de poder fazer um trabalho que seja
considerado “bem feito” e os resultados em termos de reações e sofrimentos nos casos em
que isto é impossível por razões alheias à própria vontade;
7. Os efeitos nefastos de uma gestão de recursos humanos baseada em avaliações individuais de
desempenho que nunca levam em conta os percalços do trabalho real, induzem a violar as
normas como forma de melhorar os resultados, incentivam a concorrência e a desconfiança
entre os colegas, fortalecem os atritos e a deslealdade, geram uma forte sensação de
desamparo e isolam o sujeito.
Nos breves passos que esboçamos, é possível perceber que, de um lado, a convicção pela qual
“querer é poder” é questionada pela postura empresarial que vai se materializando sob os olhos de
todos à medida que o diálogo avança e que pode ser traduzida numa frase curta e grossa: “use a sua
vontade para melhor se adequar ao que lhe é exigido ou caia fora”. Ou seja, as determinações
estruturais da organização do trabalho começam a ganhar cor e forma inserindo o desejo de vencer
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do sujeito numa camisa de força tecida com graus diferenciados de sutileza, mas com o mesmo
objetivo de fazer com que ele se dobre às necessidades do trabalho.
Do mesmo modo, o resgate do cotidiano faz aparecer uma longa lista de problemas cuja
compreensão mais profunda, em geral, só é possível quando, no esforço de enfrentar um deles, o
coletivo irá se deparar com a necessidade de entender as relações de poder que marcam a rotina
dentro e fora do local de trabalho. A primeira experiência de luta representará, portanto, o primeiro
momento de aprendizagem, de calibrar vontade e condições reais, de se perceber capaz de pensar e
agir para produzir a mudança ao mesmo tempo em que se tornará o meio para costurar a identidade
possível entre o grupo.
Mais do que “dirigir” o papel do sindicalista é o de “fazer juntos”, mantendo-se sempre
pronto a fornecer, quando necessário, uma compreensão mais ampla do momento, a identificar com
o grupo formas de luta nas quais o trabalhador coletivo pode se envolver, a levar as pessoas a
realizarem pequenas tarefas que as façam se sentir capazes de fazer, transformando-as assim em
sujeitos que começam a sair da inércia produzida pelo conformismo. Não se trata de “ensinar” aos
trabalhadores os caminhos da revolta ou da revolução, mas sim de ouvir e abrir com eles trilhas que
permitam dar vida a momentos de luta e incorporar instrumentos teóricos que só começam a fazer
sentido à medida que a realidade questiona as compreensões do senso comum.
Nada disso é possível se dirigentes sindicais, assessores, militantes de tendências políticas,
etc. não estiverem convencidos de que as condições de trabalho não são um assunto “técnico” a ser
entregue a especialistas iluminados e nem “lutas menores” pelo fato de se limitarem a algo local. A
quem se dispõe a testar o percurso apontado, vão aqui algumas dicas que permitem entrar em
sintonia com os trabalhadores e construir pacientemente os passos da sua reação. Para facilitar as
coisas, vamos resumir as ideias principais em cinco blocos igualmente importantes e que não estão
organizados segundo uma ordem cronológica:

1. Conhecer o terreno onde pisamos.


A inserção no local de trabalho e os contatos diários que esta possibilita ajudam a traçar um
quadro das peculiaridades do trabalhador coletivo. A experiência indica que os melhores resultados
ocorrem quando a capacidade de observação do dirigente é orientada pelas perguntas que seguem:
a. Como reagem os colegas diante dos problemas que marcam o cotidiano do trabalho?
b. Que critérios usam para analisá-los e formular suas respostas?
c. Que reações expressam o medo de agir para mudar a situação?
d. Que aspectos do trabalho despertam contrariedade e indignação?
e. Que técnicas, posturas, discursos são usados pela hierarquia a fim de esvaziar o potencial de
conflito e moldar o coletivo de acordo com as necessidades do trabalho?
f. Como é construída a sintonia entre demandas do empregador e sonhos individuais de
reconhecimento e afirmação social?
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O cenário montado a partir das respostas ajuda a ver a vida dentro e fora do trabalho com os
olhos dos trabalhadores e a compreender suas percepções como elementos a partir dos quais é
possível estabelecer um diálogo. Além de revelar temas, momentos, situações, ideias e valores aos
quais eles são particularmente sensíveis, compreender a visão de mundo que dá sentido ao cotidiano
do trabalhador coletivo abre caminhos a quatro aspectos importantes:
1. Faz com que a direção entre em sintonia com a base. Nunca é demais lembrar que o ser
humano presta atenção ao que é importante para ele, ao que faz sentido para a sua maneira de
ver a realidade e não àquilo que se afasta ou se sobrepõe a ela, por mais justo, correto ou
sagrado que seja.
2. Permite ouvir o trabalhador coletivo e questionar as próprias posições. Aprender a ouvir não é
fácil, ainda mais quando a escuta do dirigente parte da perspectiva de quem considera estar
certo, sabe e, por isso mesmo, só tem a ensinar. O diálogo assim estabelecido pode ser surdo
frente ao que contradiz as suas posições, julga incorretas as críticas recebidas e blinda as
próprias atitudes e convicções diante de qualquer chance de mudança. Sem perceber, ao
proceder desta forma, ele se distancia do mundo do trabalhador na mesma medida em que
acredita estar aberto à sua realidade. Ouvir implica em mergulhar na realidade do outro,
entender como ele se movimenta nela e em ver o sentido que a vida no trabalho tem para ele,
sem juízos de valor, preconceitos ou clichês que neguem, na prática, o desejo de um diálogo
franco e a possibilidade de alterar as posições do dirigente.
3. Viabiliza uma relação marcada pela autenticidade e a transparência na qual os colegas deixam
de ser objetos de um discurso e começam a se sentir sujeitos de um diálogo em construção. À
medida que veem sua realidade refletida tanto nas conversas informais como nos momentos
formais, eles começam a não se omitir, a dizer o que realmente pensam, a discordar
abertamente, a expressar seus sentimentos diante dos acontecimentos. Sem o temor de serem
ridicularizados, repreendidos ou julgados por falar algo considerado inapropriado, param de
sufocar suas posições, de apresentar desculpas ou uma imagem falsa de si próprios a fim de
se livrarem dos incômodos produzidos pelo dirigente. Aos poucos, ao percebê-lo como “um
de nós” e, ao mesmo tempo, “melhor do que nós” por incorporar e ampliar a visão do
coletivo na compreensão da realidade, consolidam a confiança que abrirá as portas a novos
passos de conscientização e ação.
4. Ajudará o dirigente a projetar como suas atitudes, posturas, sentimentos, ideias, respostas e
encaminhamentos diante das situações do trabalho diário serão percebidas pelos colegas que
convivem com ele a fim de evitar desentendimentos e atritos inúteis ou frustrar os objetivos
de um trabalho de base que vinha sendo construído dia após dia.
As respostas às perguntas que formulamos acima também permitem perceber “como” e
“quanto” as pessoas entendem do cotidiano do trabalho, o sentido que ganham as palavras e as
expressões que descrevem a sua maneira de ver os acontecimentos, as intenções reais ao participar
do diálogo interpessoal e os momentos de silêncio diante das intervenções sindicais ou empresariais.
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Longe de significar apenas indiferença ou concordância, o silêncio pode expressar desconcerto,


angústia, alegria, resignação, decepção, revolta, insegurança, dificuldade de entender ou uma
sensação que ainda não foi traduzida em palavras, mas que demonstra a presença de uma reflexão e
de uma busca de sentido diante dos acontecimentos.
Conhecer o terreno onde pisamos e entrar em sintonia com o trabalhador coletivo eleva as
chances de acerto na escolha de momentos que se destinam a mostrar com o próprio exemplo que é
possível dizer “não” às exigências do trabalho, às situações de assédio e de intimidação. Obviamente,
o “não” proposto com uma atitude pessoal deve espelhar o grito de revolta que está entalado na
garganta dos colegas, ser viabilizado sem prejudicá-los e cuidando para que não seja entendido como
uma malandragem que repassa a outros um problema que não se deseja enfrentar. Quem afronta a
ordem com o seu “não” sabe que deve assumir para si as responsabilidades e as consequências, razão
pela qual a ação e seus desfechos devem ser conduzidos de forma a não despertar dúvidas a esse
respeito.
Do mesmo modo, é possível encontrar formas eficientes de questionar o sentido dado pelo
empregador aos acontecimentos do trabalho, evidenciar as contradições presentes nas estratégias de
defesa dos colegas e mostrar que vantagens imediatas podem levar a grandes derrotas à medida que
contribuem a ocultar problemas incômodos ou preparam situações perigosas. Basta pensar, por
exemplo, na subnotificação de acidentes ou na maior exposição ao risco como formas de atingir
metas pré-estabelecidas e na prática de horas extras sem marcação de ponto em troca de um adicional
maior, pago separadamente sem os devidos encargos sociais. No primeiro caso, em nome de um
ganho maior, desconsideram-se possíveis sinais precursores de acidentes de trabalho e eleva-se a
possibilidade real de culpar o trabalhador por estas ocorrências. No segundo, além de não contribuir
para a Previdência Social, o FGTS e o 13º salário, vai ser impossível registrar como acidentes de
trabalho os infortúnios que ocorrem bem depois da saída oficialmente registrada no cartão de ponto.

2. Ver o problema como problema.


Nos anos 80, era comum ouvir os trabalhadores dizerem que saúde é tudo e, com ela, corre-se
atrás do resto. Hoje, a ordem das preocupações é alterada para salário é o que interessa, o resto não
tem pressa. A consequência desta mudança de olhar está no fato de que o trabalhador coletivo não vê
nada errado no que lhe é exigido, desde que ofereça em troca alguma forma de reconhecimento ou a
perspectiva de melhorar a condição financeira. Riscos, perigos e situações adversas são percebidos
como normais, naturais, inevitáveis e sua aceitação paciente como o preço a pagar pelo salário.
Entre as expressões mais preocupantes desta realidade está a assimilação do ritmo de
trabalho. Adquirida no exercício da profissão e exigida pelas chefias, a aceleração dos tempos é
interiorizada pelos trabalhadores a tal ponto que é muito difícil levá-los a fazer o contrário até
mesmo quando são afetados por doenças profissionais cujo tratamento demanda uma diminuição do
esforço exigido pelo ritmo. Em muitos casos, ainda que a velocidade não seja imposta pelos
maquinários, nos deparamos com empregados para os quais ir mais devagar é algo que não faz
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sentido ou que o próprio corpo parece incapaz de fazer apesar da dor e da vivência traumática do
adoecimento.
Neste contexto, ensinar a ver o problema como problema implica em mostrar que não há nada
normal ou natural nos riscos que cercam o trabalhador coletivo e no estresse gerado como forma
perversa de extrair dele o máximo possível. Orientado para o lucro, o cotidiano das tarefas revela que
o adoecimento ou o acidente que vitima o colega é a manifestação individual de uma ameaça que
pende sobre todos e cujos sinais precursores marcam presença, em graus diferenciados, na vida de
cada um. Alguns passos podem ajudar nesta tarefa:
a. Procure perceber com base em que ideias e vivências os colegas constroem a interpretação
dos riscos que adotam como guia nos acontecimentos do trabalho. É bastante comum que,
diante da ausência de informações claras ou por acreditar que se trata de algo corriqueiro, as
pessoas preencham as lacunas de entendimento ou de conhecimento científico com elementos
do senso comum. Alguns exemplos ajudam a ilustrar quanto acabamos de afirmar.
Na indústria química, costumamos encontrar empregados que se orientam pela equação
“quanto mais forte o cheiro, mais forte a química, portanto, mais nocivo o produto” o que cria
sérias armadilhas à medida que alguns produtos ou gases não tem cheiro algum, razão pela
qual não são levados a sério por muitos trabalhadores, apesar de representarem um risco para
a saúde. O caso do nitrogênio pode ser considerado emblemático. Este gás sem cor e sem
cheiro é amplamente usado para eliminar ou impedir a formação de gases ou vapores
inflamáveis que, em contato com o ar, poderiam causar um incêndio ou uma explosão de
amplas proporções. No entanto, vários acidentes revelam que os trabalhadores morrem
asfixiados durante a execução de suas tarefas.
Muitas vezes, isso ocorre porque as vítimas não estavam cientes dos perigos proporcionados
por este produto que, nos treinamentos teóricos, é corretamente apresentado como um gás
“inerte”. Quem monitora as atividades sabe que “inerte” se refere ao fato pelo qual o
nitrogênio não serve de combustível e nem permite a combustão que originaria um incêndio
ou uma explosão. Mas há vários indícios de que os trabalhadores interpretam a palavra
“inerte”, como inofensivo e, portanto, não prejudicial à saúde. O fato de ninguém verificar
como as mensagens do treinamento são recebidas e compreendidas continua fazendo vítimas
apesar de qualquer técnico saber que, num ambiente com alta concentração de nitrogênio,
bastam 20 segundo para um operário desmaiar, sem qualquer sintoma de aviso ou dor, e
falecer em três ou quatro minutos.
Por outro lado, nada impede que a própria noção de nocividade do senso comum seja alterada
pelo que o sujeito ouve dizer após um evento grave. Vejamos mais um exemplo. Durante um
vazamento de bicarbonato de amônio, o gás amônia que se espalhou pelo setor chegou a tirar
a respiração dos trabalhadores que precisaram ser evacuados rapidamente do local. Apesar do
cheiro muito forte e das reações imediatas sobre o organismo, vários empregados acreditavam
que o produto inalado não representava perigo algum para a saúde, pois, haviam ouvido dizer
22

que o bicarbonato de amônio era usado também como fermento nos biscoitos, razão pela
qual, se fizesse mal, não poderia entrar na produção de alimentos. O raciocínio lógico faz
sentido, mas a realidade é que o bicarbonato de amônio é um produto instável e em condições
de temperatura acima dos 49º desprende gás amônia, que é tóxico. Resumindo, sem entender
a percepção de risco dos colegas é impossível saber o porquê de suas reações e como desfazer
o que contraria o conhecimento científico e o princípio da precaução.
b. Mapeie as “anormalidades normais”, ou seja, as situações em que a repetição rotineira do que
está errado leva a aceitar que é normal que seja assim a ponto de, tempos depois, estranhar
que alguém o aponte como problema. Os casos mais comuns dizem respeito à violação de
normas e procedimentos de segurança estimulada pela hierarquia ou à falta de materiais para
a realização das tarefas em condições seguras, algo que costuma ser corrigido na base das
gambiarras. Já encontramos chefes que, em troca de uma boa avaliação de desempenho,
organizam disputas informais entre os empregados a fim de reduzir os tempos de manutenção
em linhas elétricas energizadas acima de 14.000 volts e uma longa lista de funcionários que
se consideram verdadeiros Magaivers da profissão. O resultado destas práticas costuma ser
favorável apenas para as empresas que, em casos de ocorrências graves, culpam a vítima pela
displicência com a qual realizou o trabalho.
c. Diante de um acidente, adoecimento, evidência de alguns riscos, tente construir com os
colegas uma reflexão que ajude a desmascarar os interesses que se escondem nos laudos e nas
interpretações oficiais tendo como base perguntas simples como as que seguem: os riscos que
enfrentamos são próprios da profissão ou da forma pela qual é organizado o nosso trabalho?
Até a que ponto o que vitima os trabalhadores, mais do que fruto de uma fragilidade pessoal,
é expressão da política real de segurança da empresa? Ato inseguro, fatalidade ou uma busca
por resultados que levam a organização do trabalho a migrar em direção ao risco? Que
pressões e incentivos fazem o trabalhador abrir mão da segurança?
d. Oriente a compreensão da origem dos problemas e as consequências que o cotidiano do
trabalho projeta na saúde e na vida do trabalhador coletivo. Sem forçar a barra, é sempre
relativamente fácil trazer à tona a relação doença-trabalho-exploração e mostrar como “mais
trabalho” pode significar sim um acesso maior a bens de consumo, mas, como apontávamos
acima, é também sinônimo de “menos vida”, de perda progressiva e silenciosa de uma parte
de nós que só podemos reconquistar na luta por mudanças. Do mesmo modo, é possível
deixar transparecer que a suposta “coragem pra trabalhar” afirmada pelo indivíduo como
forma de justificar sua submissão, esconde, na verdade, o medo de enfrentar os problemas e
abre caminhos para sofrimentos ainda maiores.
A possibilidade real de se tornar interlocutor de uma leitura do trabalho vai depender da
capacidade de dialogar com a percepção coletiva de que há algo errado, de identificar e escolher os
temas aos quais os colegas são mais sensíveis e de aproveitar dos momentos em que sinais de
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descontentamento, revolta ou contrariedade por eles emitidos revelam algum receio ou resistência
em se sujeitar às demandas do trabalho.
Neste processo, é comum encontrar ilusões difíceis de serem vencidas. Sobram Highlanders
que expressam uma imunidade irreal diante do risco, na base do “Comigo não vai acontecer nada”,
“Estou nas mãos de Deus”, “Tenho o corpo fechado”, “Meu santo é forte”, etc. Filhas do pensamento
mágico, as fantasias protetoras resistem ao raciocínio lógico à medida que reduzem a angústia diante
dos problemas do trabalho e proporcionam uma sensação de proteção que anestesia a consciência do
risco. Ter o corpo fechado, estar nas mãos de Deus, etc. levam o empregado a enfrentar os perigos do
trabalho com a atitude de quem domina e não de quem é refém do medo. Mas há dois problemas que
este artifício coloca na ordem do dia: de um lado, inibe a viabilização de ações coletivas para as
mudanças que seriam necessárias e, de outro, contribui para elevar a exposição ao risco, à medida
que o indivíduo tem certeza de que nada vai lhe acontecer.

3. Construir a ideia de que a solução dos problemas depende de “nós”.


A ausência de envolvimento e tradição de luta, de um lado, o medo de eventuais retaliações
ou de perder a posição alcançada, de outro, leva o trabalhador coletivo a procurar alguém que
“resolva” por ele qualquer problema do local de trabalho. Por isso, dirigentes sindicais, advogados,
chefes, patrões e representantes do governo, no entender dos trabalhadores, têm a responsabilidade
de pacificar conflitos, resolver contradições, sanar injustiças, proporcionar condições de trabalho
mais humanas, sem nenhum tipo de pressão vinda da base. Pode parecer ingênuo, mas o desejo de
ser preservado do envolvimento na luta chega a apontar o assassino como socorrista da sua própria
vítima. Assim, o assédio poderia ser sanado pelo mesmo chefe que o pratica; a melhoria das
condições de trabalho pelo empregador que reduz ao máximo qualquer custo que encolha os
resultados almejados, etc. Por outro lado, este processo ganha um suporte adicional sempre que o
dirigente sindical se substitui ao coletivo na tarefa de pensar saídas e assume toda a responsabilidade
do processo com formas de paternalismo que, ao reafirmar a sua representatividade, inviabilizam
momentos importantes de aprendizado coletivo.
Para quem deseja pôr em movimento um determinado grupo de trabalhadores, a primeira dica
é que o próprio dirigente não atue como cestinha, mas, principalmente, como o armador de um time
de basquete. O seu papel no jogo não é o de marcar pontos e sim de pensar e ajudar a viabilizar as
jogadas para levar o time à vitória. Sendo assim, a experiência oferece algumas sugestões:
a. Substitua o “eu resolvo” ou expressões desse tipo, pelo “nós” não podemos deixar as coisas
como estão, precisamos fazer algo, etc. em todas as suas intervenções;
b. Estimule o envolvimento informal das pessoas na base do “o que você acha que deve ser
feito?” a fim de torná-las corresponsáveis na ação e, em caso de recusa, para deixar
transparecer que pega mal a criatura não dar nenhuma ideia;
c. Use problemas ou situações de descontentamento como momentos de aprendizado lembrando
sempre que, para a grande maioria, este pode ser o primeiro envolvimento enquanto sujeito
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da ação. Por isso, lembre que as tarefas a serem colocadas em andamento devem dialogar
com o que as pessoas sentem ter condições de poder fazer;
d. Trate sempre o trabalhador como adulto que deve assumir suas responsabilidades e não como
alguém cuja eterna minoridade aconselha a adoçar as notícias amargas e a não despertar
preocupações. Diante de um problema, por exemplo, mostre que podemos sempre escolher
entre fazer ou deixar como está e que cada decisão tem consequências bem precisas. Por isso,
escolher entre uma saída e outra diz respeito tanto ao futuro imediato, como às consequências
que se projetam em prazos mais longos em função da decisão que iremos tomar. Ou seja, ao
assumir a responsabilidade de fazer ou não no presente, estamos assumindo também os
respectivos desfechos desta escolha no futuro;
e. Lembre que é inútil dizer a um jovem recém-contratado que ele desconhece as lutas do
passado, graças às quais tem acesso aos direitos previstos no acordo coletivo. As pessoas não
têm culpa de não ter vivido os momentos marcantes da história da categoria e, em função
disso, de considerar como dádiva do empregador o que foi conquistado com intensas
mobilizações. O importante é que, no lugar de repreendê-lo, alguém recupere com ele o
momento daquela luta da categoria. Tudo numa conversa breve, franca, tranquila que
pretende apenas recuperar a linha que une o passado ao presente;
f. Rebata com calma as afirmações que tiram o sentido da participação e do envolvimento
coletivo. As frases mais comuns costumam ser duas: “Cadê o meu dinheiro? Eu só quero
saber do meu!” e “Pago o sindicato, a diretoria é que tem que resolver!”. No primeiro caso,
basta dizer que o “seu” dinheiro está no cofre do empregador onde, por sinal, está o de todos.
O problema é que ele não sai de lá para o bolso de um só e sim quando é para entrar no de
todos, o que envolve a sua participação. Diante da segunda frase, faça perceber que o sujeito
trata o sindicato como um convênio médico, cujos profissionais têm a obrigação de cuidar da
sua saúde. Isso é apenas parte da verdade à medida que a cura só ocorre quando ele adere ao
tratamento prescrito que, no caso do sindicato, é o envolvimento na luta.
Repare que, para colocar em prática isso tudo, não é necessário ter uma imaginação fértil e
nem mesmo muitas ideias. Mas é imprescindível dispor de boas doses de paciência e uma pitada de
intuição. Tomar consciência da realidade não é um processo fácil e traz várias preocupações. Por
isso, o alienado é feliz e resiste a quem tenta fazê-lo sair de suas posições, à medida que o não saber
é sinônimo de não se preocupar, ainda que as consequências futuras sejam devastadoras.

4. Estimule a indignação.
Diferentemente da raiva que faz o sangue ferver, mas cuja temperatura pode voltar ao normal
sem maiores consequências, a indignação é um sentimento que inquieta, exige respostas, cobra
atitudes, torna insustentável o silêncio e faz aparecer o desejo de dar um basta a algo que se
considera ofensivo, injusto ou incorreto. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão,
a sair da omissão e abrir as portas para a coragem de mudar o rumo dos acontecimentos.
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No cotidiano do trabalho, não faltam ocasiões para despertar este sentimento ao provocar uma
reflexão sobre situações que passariam despercebidas se alguém não começasse a fazer perguntas
incômodas. Algumas dicas ajudam a visualizar o que já foi utilizado com bons resultados:
a. Desmonte a linguagem oficial do empregador feita de termos vagos e abstratos que, em geral,
se destinam a esconder o tamanho da conta a ser repassada aos trabalhadores. Quantas vezes
não ouvimos falar, por exemplo, em cortar gorduras ou eliminar excedentes como forma de
adoçar o gosto amargo das demissões que visam enxugar o quadro de funcionários sem que
as tarefas sejam reduzidas na mesma proporção.
Encontramos aqui um aspecto que se opõe frontalmente à ideia do empregado como parceiro
e colaborador que costumava ser utilizada no período imediatamente anterior. Vistos agora
como gorduras ou excedentes, os trabalhadores passam a ser apontados como um peso morto
cuja diminuição é apresentada como uma medida saudável e necessária. Aqueles aos quais se
pedia uma “alta performance”, e cuja permanência no emprego era vinculada justamente à
capacidade de adaptação e desempenho, acabam de virar uma mala sem alça, um fardo inútil,
alguém que precisa ser eliminado para que o trabalho volte a ser lucrativamente saudável.
Mostrar esta contradição tem se revelado importante para despertar a indignação de quem se
sente traído por ter acreditado no discurso do empregador, para colocar sob suspeita parte
substancial das políticas de recursos humanos e dar vida a ações de resistência.
Outra situação bastante comum é dada pelos temas das Semanas Internas de Prevenção de
Acidentes ou pelos cartazes que apelam à consciência do trabalhador e ao afeto dos familiares
como forma de exigir o máximo de atenção diante dos riscos. O diálogo estabelecido por
estes meios não tem como interlocutor a razão e sim as emoções que, como primeira resposta
do indivíduo, “mexem” nos seus sentimentos, tornando-o incapaz de ver onde estão os
verdadeiros problemas.
Neste caso, tem se revelado importante contrapor ao discurso oficial o fato pelo qual o tempo
máximo de concentração não passa de 30 minutos numa jornada de oito horas; que errar é
humano e trabalhar em condições ruins eleva a chance de erro; bem como a percepção pela
qual os riscos e as pressões do trabalho real parecem não ter a menor participação na
produção da falha que desencadeia o acidente. Uma imagem que ajuda é a do ambiente de
trabalho como campo minado no qual o trabalhador se movimenta conhecendo a localização
de cada explosivo através do mapa de risco afixado nas paredes. A responsabilidade maior
parece ser a de não pisar nas espoletas ao correr entre as bombas e não a de o empregador
assegurar um ambiente que garanta a incolumidade dos empregados.
E aqui uma pergunta que faz as pessoas coçarem a cabeça ajuda mais do que várias respostas:
onde está o verdadeiro problema? Na capacidade de prestar atenção do indivíduo ou nos
riscos que, justamente por serem conhecidos, podem e devem ser eliminados a fim de não
provocar danos aos trabalhadores?
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b. Em nossos dias, os celulares são também filmadoras, máquinas fotográficas e gravadores. Em


muitas ocasiões, uma imagem vale mais do que mil palavras e um punhado de frases
gravadas no momento oportuno bastam para questionar algumas percepções do cotidiano do
trabalho. O melhor resultado desta prática não é obtido quando “discursamos” sobre o
material coletado e sim quando plantamos dúvidas que levam as pessoas a pensarem, a verem
o que desejamos transmitir, a dar suas próprias respostas à situação com a qual se deparam.
c. Procure falar ao coração as ideias que se destinam à cabeça. Quanto mais fria e racional for a
informação veiculada, mais ela tem chances de ser barrada pelas estratégias de defesa e pela
visão do senso comum. Longe de apelar para o sentimentalismo, o importante é que as
pessoas se vejam no que está sendo dito ou comentado, reconheçam nele o que não
conseguem expressar e sejam sutilmente questionadas pela mensagem que transmitimos.
Dois exemplos ajudam a visualizar o que acabamos de escrever.
Ao dar seu testemunho num grupo de trabalhadores da mesma categoria, uma digitadora com
problemas de lesão por esforço repetitivo dizia que se sentia como se estivesse “carregando o
seu braço”. Inesperadamente, esta afirmação provocou nos demais uma sensação de alívio à
medida que as pessoas haviam encontrado a forma de traduzir em palavras a carga de
angústias e sofrimentos que experimentavam.
A segunda situação foi relatada por um bancário que, há tempo, vinha sendo publicamente
pressionado em função do seu baixo desempenho na venda dos produtos do banco. Numa das
intervenções, o gerente apelou à relação entre um maior esforço e dedicação ao trabalho e a
possibilidade de, como ele próprio, poder comprar um bom carro para passear com a família.
Sorrindo e na maior simplicidade, o bancário respondeu que preferia se poupar para, ao
chegar em casa, garantir que seu filho tivesse um pai com o qual brincar. Pode ser um caso
isolado, mas o gerente ficou sem palavras, parte dos colegas que eram apontados como
exemplos de compromisso enrubesceram enquanto outros se sentiram de alma lavada.
A realidade mostra que é impossível adotarmos um padrão de intervenções. Às vezes, o que
dá certo num local de trabalho fracassa em outro. Escolher a pedagogia mais adequada ao ambiente e
às características dos colegas leva tempo e pode passar por algumas tentativas infrutíferas. Quanto
maior a inércia, a apatia e o isolamento em que as pessoas se encontram, mais difícil e desafiador
será este esforço. Paciência, olhar atento e ouvidos abertos levam a abrir caminhos promissores para
despertar uma indignação anestesiada pelos fatores que viemos descrevendo.

5. Busque reconstruir o sentimento de coletividade.


Em tempos de individualismo extremado, o que existe é o “eu”, ao passo que o “nós” precisa
ser construído. Esta constatação traz à tona a importância de desenvolver uma relação humana
baseada na amizade, na solidariedade e no companheirismo como um dos elementos que favorecem
o envolvimento numa causa coletiva.
Mais uma vez, algumas dicas podem ser úteis:
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a. Conheça as pessoas e se faça conhecer por elas. Não espere que seja o “outro” a quebrar o
gelo da relação. Entre sem falsidade nas conversas que marcam os momentos de
descontração; ouça e respeite a posição de cada um e, sempre que possível, troque mensagens
com os colegas de trabalho. Neste processo, a preocupação nunca é a de julgar as pessoas
pelo que acreditam e nem de impor suas ideias aos demais, mas de conhecer o mundo em que
se movimenta o trabalhador coletivo.
b. Ensine macetes e partilhe conhecimentos que ajudam a reduzir o sofrimento no trabalho e
criam vínculos com os colegas, sobretudo quando se trata de novatos que precisam ganhar
segurança e aprender a se proteger dos riscos.
c. Pratique a solidariedade e faça chegar seu apoio, sobretudo, às pessoas assediadas e afastadas
por acidente ou doença profissional. À medida que se perceberem diante de uma presença
amiga, terão mais condições de falar o que calariam em outras ocasiões.
d. Aprenda a calcular reajustes salariais, decifrar o holerite e ensinar direitos básicos
corriqueiros. Ao fazer isso, mais gente se aproximará para pedir informação e você terá
maiores possibilidades de ampliar o diálogo.
e. Preste conta dos seus atos no local de trabalho. A transparência é uma aliada fundamental não
só para mostrar que não se tem nada a esconder, mas, também, para desmascarar fofocas e
tentativas de desqualificação que acabam dificultando as relações com os demais.
Como já deve ter percebido, não estamos falando de ações heroicas ou de momentos
excepcionais, e sim de uma construção da relação humana que aproveita os contatos diários para
tecer laços de confiança. Por este caminho, é possível chegar a um diálogo franco com as pessoas, ou
seja, a fazer com que elas falem o que pensam, sem medo de desagradar, e não o que lhes é
conveniente para evitar problemas. Uma comunicação viciada prejudica a ação à medida que leva a
contar com alguém que, na hora dos fatos, vai dar pra trás.
Ganhar a confiança dos colegas é também uma condição imprescindível para sermos ouvidos
e respeitados. Como seres humanos, confiamos na palavra quando confiamos em quem a pronuncia,
por isso nos dispomos a ouvir e a aprender somente daqueles aos quais damos o direito de nos
ensinar.
Ao desenvolver a relação humana e o sentimento de coletividade, começaremos a perceber
melhor em quem podemos apostar para um envolvimento de longo prazo; diferenciaremos aqueles
que aparentam estar do nosso lado por conveniência e os que são incapazes de superar o
imediatismo; aprenderemos a convencer os indecisos e a dar o devido desconto às falas dos que
prometem muito, mas não passam de um fogo de palha. Do mesmo modo, começaremos a valorizar
aqueles que questionam, buscam entender, se motivam gradualmente e não por qualquer coisa, mas
que, uma vez convencidos, aceitam correr riscos com o coletivo.
Com o passar do tempo, escolher a aproximação mais adequada e eficiente a depender do tipo
de pessoas e do cargo que exercem ampliará nossa capacidade de diálogo e a percepção do que é
possível esperar de cada um.
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Concluindo...
Chegamos ao fim. Como você deve ter percebido, a reconstrução dos passos para a ação
coletiva não ofereceu uma receita. Nossa preocupação foi apenas a de reunir os ingredientes para que
você monte a sua a partir das particularidades com as quais se depara no ambiente de trabalho. Nada
impede que você, enquanto cozinheiro, comece de onde achar melhor e dê mais ênfase a
determinados aspectos do que a outros. O importante é que os elementos apresentados ajudem a
avaliar nossas fragilidades, os pontos onde somos mais fortes, as questões que vão demandar tempos
maiores e a trabalhar as contradições que permitem desbloquear a inércia com a qual o trabalhador
coletivo se mantém no papel de expectador.
Apesar de as reflexões terem se limitado a aspectos básicos, já é possível ensaiar alguns
passos no longo caminho que se destina a transformar o trabalho, hoje desfigurado pela lógica do
lucro, em possibilidade de vida para todos. Talvez, a principal contribuição da nossa leitura da
realidade tenha sido a de mostrar que os patrões parecem grandes e invencíveis à medida que
permanecemos ajoelhados diante deles. Se as nossas palavras soarem como um convite a levantar e a
não se conformar com o presente, consideraremos compensado o esforço de refletir sobre o cotidiano
do trabalho que aqui se encerra.

Emilio Gennari
Abril de 2016.

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