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Brasília
2011
1
A dependência e as drogas: disputa em torno da política de drogas na
Câmara dos Deputados e na antropologia
Banca Examinadora:
2
À Mami Cucha (in memoriam), à minha mãe, Patrícia e ao meu pai, José Antônio.
Ao Terence, o explorador-poeta.
3
Agradecimentos
À minha orientadora Carla Costa Teixeira, por sua constante pegação de pé,
orientações cruciais no meio das minhas enrolações, e, principalmente, por me ensinar
que fazer uma monografia é muito mais dedicação e suor do que inspiração blasé.
À minha família por me dar todo o afeto, apoio, crítica, amor, enfim, as
condições necessárias para viver uma vida de estudante. À minha mãe, a primeira
verdadeira proibicionista que apareceu na minha vida e me falou dos males das
drogas. Ao meu pai, o primeiro verdadeiro antiproibicionista que apareceu na minha
vida, que estimulou um interesse em saber mais sobre política e sempre se ofereceu
para realizar a correção ortográfica deste trabalho.
À minha irmã e ao meu irmão, Ale e Nano, tão queridos e tão companheiros.
Com amor incondicional, dedico este trabalho a vocês.
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MauMau (MaloMalo), Alan, Rafa Kaos, Pedro Piccolo, Luciano, Joca, Goiaba,
Mangaba, Danilo, Paraíba, Taíssa, Rafito Marshall, Cláudio, Joe Joe, Rodrigo
Paulista, Luísa, Ana Lívia.
Ao Blueberry Kumin e Lua Oriental. Sem vocês, virar noites e ficar mais de
24 horas acordado não seria possível.
Por fim, agradeço à Profa. Soraya por aceitar o convite de compor a banca
examinadora deste trabalho.
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Índice
Introdução, 07
Capítulo 1 – Independência que depende: leis, políticas, objetos e teorias do
individualismo, 09
O processo mundanizante: a legitimação da dependência, 09
Alteração e temperança: depender do Estado e a teoria da dependência, 12
Drogas sob controle: a “pérola” da ONU e a mudança jurídica do Brasil, 17
Capítulo 2 – Três Rounds de Boxe Parlamentar: a disputa caseira de Minc e
Bessa em torna da política de drogas, 22
Primeiro Round: Minc se sente em Casa depois de ouvir os critérios do bom
ordenamento, declara seu amor pelo aconchego caseiro, pelo indireto, e faz
propaganda da beleza do civil, 26
Segundo Round: Bessa luta entre tumultos, vídeos, a presença menos humilde
do direto, risadas e uma transferência mais penalizante com alguns híbridos
semelhantes, 39
Terceiro Round: Depois da vitória do reinado do indireto, Minc e Bessa
trocam golpes rápidos, mantém suas estratégias de levantar bandeiras; e
melhor tarde do que nunca: o direto retorna, outros participam, a luta se
encerra, surge o veredicto e sobra a indiferença, 54
Capítulo 3 – O complemento crítico da antropologia antiproibicionista: quando
subtrair significa adicionar, 64
Orelhas: “Em uma palavra, as drogas não existem; são invenções datadas”, 68
Apresentação: A “cultura” do Ministério da cultura, 68
Prefácio: Romper superfícies para atingir profundidades, liquidificar sólidos
para solidificar líquidos e a inimizade amistosa, 71
Introdução: O “sempre” continua engolindo o “recente”, a combinação anfíbia
de saber e poder que se separa se unindo, a transcendência do habitual para
desmistificar negativações, mais inimizades coloridas e promoções de
independência, 79
Duas politizações da antropologia: deve ser x relativismo, 88
Conclusão, 94
Bibliografia, 96
6
Introdução
7
muitos de nós tínhamos visto no Jornal da Globo. Mas encontrei também um
movimento dentro do Estado que não estava de acordo com a qualidade proibicionista
da política de drogas. Os documentos legislativos que foram analisados antes da
minha ida à Câmara tinham deixado a impressão que não havia nada além da
repressão às drogas. Portanto, a minha etnografia do depoimento de Minc é o
mapeamento da heterogeneidade na disputa em torno da política de drogas. Tento,
assim, dar conta de tudo que estava agindo no meio da disputa, seja a liberdade,
igualdade, democracia, dependência e Estado, seja a agência da mídia, saúde, direito e
das Campainhas Presidenciais barulhentas que eram acionadas para manter o “rito”
ordenado no Parlamento. O evento mostra que a política de drogas não opera apenas
como os documentos legislativos sugerem, um aparato onipresente que controla tudo
na relação de seres humanos com drogas. A política de drogas é também um palco
performado por diversos atores que se engajam nas controvérsias implícitas dentro da
própria existência de uma política pública de drogas. Nesse sentido, o Estado não é
uma entidade homogênea onde reina a unanimidade. A minha etnografia na Câmara
dos Deputados sugere pensar o Estado como uma entidade que conserva as polêmicas
que circulam. Como mostro repetidamente através das falas dos deputados no
Capítulo 2, é difícil de colocar o Parlamento numa dimensão separada como se
seguisse as suas próprias leis, longe de qualquer influência de outras entidades.
Espero que este estudo possa contribuir de três maneiras. Primeiro, espero que
a minha sugestão de articular estudos sobre individualismo, independência, alteração
e estabilidade, possa ser frutífera para futuros estudos sobre drogas. Gostaria de ver
8
outros estudos sobre drogas na antropologia que tentassem transformar entidades
agregadas às drogas em teorias antropológicas. Além do reflexo comum de fazer
denúncias à atual política de drogas, seria interessante ver trabalhos que legitimem as
drogas como um excelente objeto para a teoria antropológica. Segundo, espero que o
meu estudo da instabilidade da política de drogas na Câmara dos Deputados
sensibilize aqueles que queiram estudar o Estado para os seus aspectos imprevisíveis.
Mesmo que possamos dizer que, por exemplo, o Estado brasileiro segue uma linha
criminalizante, este tipo de qualificação é insensível às polêmicas que compõem o
Estado. E, terceiro, eu gostaria que a minha análise da politização da antropologia
antiproibicionista consiga registrar outras formas de como a ciência e a política
podem se encontrar na antropologia brasileira. Tenho a esperança de que este esforço
tenha um efeito terapêutico para tranquilizar aqueles que sentem um mal-estar no
faccionalismo entre militâncias analiticamente fracas e objetividades politicamente
fracas.
9
Capítulo 1
10
Eles eram indivíduos-em-relação-com-Deus, mas seus níveis de renúncia eram
diferentes quando comparados aos indianos e gregos. A alma individual do cristão
recebia o valor eterno na relação com Deus, mas nessa relação se fundava igualmente
a fraternidade cristã. Enquanto o renunciante indiano dependia apenas de si quando
abandonava qualquer dependência e os gregos evitavam a dependência para não se
escravizarem, os primeiros cristãos caminhavam na terra com o coração no céu. Eles
se emancipavam por uma transcendência pessoal como os indianos e gregos mas
também se reuniam aos outros cristãos emancipados numa comunidade. Assim, os
primeiros cristãos nunca deixaram de depender apesar do valor absoluto da
independência. A dependência não era negada, mas relativizada em relação à
independência. A independência e dependência viviam juntas numa relação
hierárquica com a superioridade da independência sobre a dependência. O indivíduo
era valorizado na relação independente com Deus e os indivíduos se reuniam devido à
condição divina presente em todos. Não podia existir nem judeu, nem grego, nem
macho, nem fêmea, pois eram todos indivíduos em Cristo (:51). Ninguém aos olhos
de Deus é escravo ou senhor. Todos eram filhos de Deus.
11
simetrização da dependência e independência é a evolução nas relações entre a Igreja
e o Estado até o ano 800. A segunda etapa é marca o fim processo mundanizante
representado pelas ideias de Calvino.
12
Até aqui, introduzi as categorias de dependência e independência do
individualismo de Dumont como ideias-valores com suas formas particulares de
agência. Vimos como o valor original da independência dos primeiros cristãos
começou a depender mais da dependência, um ingrediente que nunca esteve
totalmente ausente do processo mundanizante. Mesmo com atrito e oposição entre o
hierarquicamente superior e inferior, a simetria entre a separação do mundo para
acessar a Deus e a união entre extramundanos teve a participação decisiva dos
conflitos entre a Igreja e o Estado. Com a legitimação da dependência, a igualdade de
valor com a independência e a mistura simétrica de ambas ideias-valores, o Estado
manteve sua mundanidade mas também infiltrou a extramundanidade da Igreja.
Assim, ainda usando o trabalho sobre o individualismo de Dumont, pretendo discorrer
sobre a combinação de dependência e independência no Estado, as implicações disto
para o significado de política, igualdade, alteração, temperança, e para um formato de
pensar o social.
13
natureza. O animal humano é irracional, impuro, animalesco, e só através da sujeição
que é purificado e assume a racionalidade. Antes de depender o indivíduo é solitário,
pobre, sujo, animalesco, curto e impuro (:99). Dumont mostra que a posição de
Hobbes era que a vida boa não é a de um indivíduo, mas do homem
estreitamentamente dependente do Estado (:100). Portanto, Hobbes parte do ser
humano particular na sua condição pré-política irracional para assim valorizar a
dependência como forma de racionalização através da política.
14
associa aos outros indivíduos: “todos esses vícios pertencem muito menos ao homem
do que do que ao homem mal governado” (:104). Contudo, Rousseau também não
dissolve o valor da independência e defende um tipo de ‘societas’: “da vontade
individual de todos surge a vontade geral, qualitativamente diferente da vontade de
todos (…)” (idem). Neste sentido, é a dependência que precisa complementar a
independência. É também um tipo de dependência apenas associativa e sem
retroalimentação entre as unidades independentes. Portanto, Rousseau encara o
problema de conservar a independência do indivíduo na sujeição política ao soberano
com a tarefa de combinar ‘societas’ e ‘universitas’ (:109).
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Para Proudhon: “o homem mais livre é aquele que tem mais relações com seus
semelhantes” (:116). E para Saint-Simon e os saint-simonianos, a época que insistia
tão-somente no indivíduo e na razão deve dar lugar a uma nova época orgânica
(idem). Este movimento de protesto pós-Revolução tem a característica de valorizar a
dependência acima da independência, invertendo a hierarquia original dos indivíduos-
fora-do-mundo. O ‘universitas’ como reação ao ‘societas’ da Revolução é a defesa de
um holismo acima do individualismo. E, principalmente, junto aos antiindividualistas,
saint-simonianos e os românticos do século XIX, vemos também o surgimento da
sociologia como uma outra forma de sentir a necessidade de ‘universitas’. Dumont
mostra como muitos pensadores sociológicos da primeira metade do século XIX
foram levados a considerar o homem como ser social e explicar a sociedade não como
uma construção artificial formada por indivíduos (:119). “Muito mais do que uma
consequência da revolução industrial” (:120), a sociologia surge como uma reação
contrária a um formato ‘societas’ do individualismo adotado na Revolução francesa.
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16
Hobbes e Rousseau mostraram que a independência era insuficiente sem a
dependência e assim produziram o contrato social. No contrato social, vemos as
categorias importantes para o estudo sobre drogas de alteração e temperança. Aliás, o
próprio conceito de cultura também remete à transição do estado de natureza para o
estado civil. Wagner (1981: 21) fala do sentido de cultura como uma referência à
noção de refinamento humano e domesticação do indivíduo particular para o coletivo.
A noção de cultura pode ser vista como o controle do homem independente, como seu
refinamento e desenvolvimento a partir da instância de ganho de vínculos no contrato
social. Com a temperança da independência alterada, a independência se purifica
quando passa a depender. Portanto, adoto neste estudo sobre drogas as deduções feitas
aqui sobre alteração e temperança inspiradas no estudo de Dumont. O estudo de
Marras (2008) sobre a eliminação científica do placebo por ser um produto de
instabilidade também oferece uma contribuição para a noção de alteração e
temperança. Pensar nelas significa pensar na “centralidade que a noção de estável
alcança entre nós” (idem: 170). Além de Marras, sigo a sugestão de Velho (2008) de
estudar a alteração como conceito além de estudá-la como objeto. As drogas podem
estar ligadas a alteração, mas é possível estudar a alteração “sem ser necessariamente
acionado pelo que se chama de droga” (idem: 136). Junto a estes autores, penso o
estado irracional do independente no estado de natureza como uma alteração e o
contrato social como o que tempera a alteração com a dependência. Assim,
possibilita-se a extração de instrumentos teóricos para um estudo sobre drogas.
17
Revolução francesa e dos Direitos Universais do Homem. Levando isto em
consideração, Dumont permite tornar a dependência num fundamento teórico do
pensamento sociológico.1
Nesta secção farei uma análise de dois documentos da política de drogas a partir
da discussão acima sobre o individualismo. Faço esta análise não para dizer o quê os
documentos e seus conteúdos realmente são. Eles não são um mero reflexo de mais
um formato do individualismo e não pretendo substituir seus conteúdos pelo mapa
sobre independência e dependência de Dumont. O que desejo realizar aqui é uma
articulação do mapa com os dados não para dizer que os dados são, na verdade, o
mapa, mas apenas como eles poderiam ser vistos quando se adota a dependência
como dado e como teoria. Faço esta análise para pensar sobre o Estado moderno
como portador de mundanidade e extramundanidade, a política como a condição
necessária de dependência para temperar a alteração e a linha igualitária e atomista do
direito.
Antes da Lei 11.343/06, começo com a “pérola” encontrada por Vargas (2006)
no World Drug Report 1997. Como o nome sugere, o World Drug Report é uma
1
Afirmando outra sociologia original, Latour (2005) usa a sociologia de Tarde para construir a sua
noção de associação como o significado original de ‘social’. Também me inspiro nesta noção
latouriana e tardiana de associação para enriquecer a ‘dependência’ usada neste trabalho como ligação,
relação, envolvimento, penetração, coexistência, combinação, mistura, hibridação, tradução, interação,
hetero-abastecimento, união, comunhão e vínculo entre entidades. Mesmo que Latour critique a
diferença entre o social durkheimiano como um tipo de material e defenda o social tardiano de
associação e conexão, me abasteço tanto no ‘universitas’ e holismo antiindividualista de Dumont
quanto na associação de Latour e Tarde para pensar nas possibilidades teóricas de usar a dependência
como teoria sociológica.
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perspectiva global da situação das drogas. Ele é feito todo ano pelo United Nations
Office on Drugs and Crime, um departamento da Organização das Nações Unidas
(ONU). O World Drug Report contém informações de várias fontes no intuito de
ajudar a construir de políticas públicas dos Estados-membros, também oferecendo
dados para pesquisadores e para o público interessado. A postura da ONU tem sido,
tradicionalmente, proibicionista:
“(…) uma justificativa mais ampla [para o uso ilícito de drogas] pode ser
encontrada no postulado segundo o qual as propriedades aditivas das drogas
psicoativas são tais que os indivíduos que as consomem perdem o status de
seres governados pela razão – se eles não são mais “os melhores zeladores de
seu próprio bem-estar”, seu comportamento desafia a autonomia pessoal em que
o modelo do ator racional se baseia. Para parafrasear isso em termos kantianos,
o consumidor de drogas ilícitas não é um agente racional. Pode-se assim
argumentar que a proibição é do interesse do bem comum porque o
comportamento que mina a auto-regulação e o autocontrole é potencialmente
uma ameaça à sociedade liberal. (UNODC, 1997, p. 156)” (idem).
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Estado ser o Estado e a relação entre eles que sustenta a existência de ambos. Usar
drogas, depender, perder a autonomia, perder a razão, perder a “auto-regulação” e o
“autocontrole” significa dissolver as bases existenciais tanto do indivíduo quanto do
Estado.
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possibilidade de depender de drogas, precise “prestar serviços” e “participar” de uma
“medida educativa”. Assim, o tom corretivo do Brasil difere do tom alarmante da
ONU para o tratamento dos usuários de drogas, mas o Brasil mantém o tom alarmante
para o tratamento de traficantes de drogas.
3
No princípio X, vemos que a Lei 11.343/06 adota a posição de que a dependência não é um efeito
automático no uso de drogas. Isto difere da consideração feita pelos antropólogos antiproibicionistas
21
possibilidade de depender de drogas, deve “reinserir” os “dependentes de drogas” e
deve “reprimir” a “sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito”. Tais medidas
estatais são tentivas que visam “garantir a estabilidade e o bem-estar social”. Como na
“pérola” de Vargas onde a ONU recomenda proibir as drogas para não ameaçar a
temperança da independência que permite a existência do Estado, como nos primeiros
cristãos que encontram o Bem e a fonte de dignidade e integridade dentro de si
(Dumont, 1993:47), a Lei 11.343/06 visa coordenar uma política pública que coloca
as drogas sob controle para garantir o “bem-estar”, ordenar para progredir e equilibrar
para atingir o benevolente.
Capítulo 2
22
Minc e Bessa em torno da política de drogas
Carlos Minc entra cheio de cor e senta no seu canto. Pulseira Rastafari pintado
com as cores de Leão de Judá, outra toda verde sintonizada com o verde escuro da
Câmara, um terno verde musgo com camisa social roxa por dentro, uma estrela-do-
mar no coração e Florestan Fernandes atrás dele no lugar da cruz. Às vezes o Plenário
Florestan Fernandes dava Ibope. Hoje era sua vez. Câmeras alinhadas próximo à
entrada e do lado oposto da mesa do Senhor Presidente se movimentam junto com o
registro da entrada de Carlos Minc. De um ângulo, vinte e quatro quadros por segundo
de baixo de luzes refletoras brancas apontadas para cima. De outro, uma câmera de
vigilância centralizada no teto do Plenário nos observa como um olho do Big Brother
que caiu do céu. Ternos pretos, iPhones, notebooks e inspirações se sincronizam para
assistir o espetáculo da polêmica.
Será que Carlos Minc vai ser preso hoje? “Será que ele é viado? Aquela Zona
Sul do Rio é cheio de viado” diz um jornalista da Rádio Bandeirante enquanto eu
tentava entender o que estava acontecendo. Ambas secretárias Ana Maria da
Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) estavam
lá. A Ana Maria mais nova, elegante, preocupada e maquiada me viu e fez o gesto de
reconhecimento. Também preocupada, a Ana Maria mais velha andava concentrada.
Me viu mas sua preocupação não permitiu que ela fizesse gesticulações como sua
colega xará.
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método etnográfico.4 Por um lado, senti que estava contando um segredo, mostrando
as ferramentas e técnicas ocultas da minha sociedade secreta. Mas por outro, eu fazia
um esforço para ser uma pessoa sincera; eu tinha fé na autenticidade do meu
propósito. Era um estudo da Câmara dos Deputados como um foco na política de
drogas, explorando a dinâmica do e no estranho laboratório à luz das categorias
individualistas.5
Não precisei pedir muita coisa. O material que nem sabia que precisava
apareceu nas minhas mãos: os nomes e fotos de todos os Deputados da CSPCCO,
seus partidos e estados de origem e o Requerimento de Laerte Bessa. Algumas caras
felizes, outras assustadas e confusas, muitos refletindo a luz do orgulho de escolhidos
pelo povo, e um convite de Laerte Bessa para Carlos Minc. As Ana Maria me
explicaram que se ainda sentisse algum déficit material era só procurar no site da
Câmara. “Obrigado”. Tinha sido uma manhã de surpresas e obrigados.
4
Mesmo que Gadamer dê mais agência à conversação do que aos próprios atores, a conversa que tive
com as Ana Maria parecia ter vida própria enquanto ninguém conseguia controlá-la. Ver a Terceira
Parte de Gadamer (1990) Verdade e Método para sua discussão sobre hermenêutica, conversação,
diálogo e linguagem.
5
Minha referência a Câmara como um laboratório prestigia a noção de que é um lugar que constrói
uma grande quantidade de entidades, não menos reais por serem criadas ou menos sólidas por serem
fluidas. Parecido com o historicismo de Kuhn (1996) quando estuda a ciência como construção variável
para pensá-la de outra forma, o paradigma etnográfico da ontologia pragmática experimenta com a
percepção in situ do objeto para enxergar sua construção. Para mais sobre construção em laboratórios,
ver Latour e Woolgar (1997) A Vida de Laboratório.
24
Niemeyer. História, desenhos, fotos, armas, golpes de Estado, vidas e mortes se
faziam presentes na exposição histórica da Casa num dos maiores corredores do
Senado. A visita já estava acabando e não tinha passado meia hora. Era segunda-feira
e a monotonia se estendia para o espírito da visita turística.
É assegurado o livre direito de reunião, desde que com fins lícitos (...). Não se
quer, de forma alguma, cogitar proibição à liberdade de expressão, vez que
vivemos em um Estado Democrático de Direito.
25
drogas junto aos meios de comunicação de grande abrangência”.
Minc: Não vou me deixar intimidar. Eu acho que ele deveria... legislar contra
a criminalidade e a favor da informação, e alternativas para a juventude, e não
querer me reprimir na minha liberdade de expressão.
Vladimir Netto: O Ministro defende o debate sobre o assunto. Diz que o uso e
a dependência de drogas devem ser tratados como um problema de saúde
pública. Minc é a favor da legalização da maconha porque acha que seria uma
maneira mais eficiente de combater a criminalidade.
Narração (Vladimir Netto): Esse jurista [Luiz Roberto Barroso] diz que o
debate é válido e que o Ministro não cometeu crime algum.
26
Lei. Ainda insatisfeito com a vantagem de Minc dada pelos meios de comunicação de
grande abrangência – mas feliz com a ajuda da Globo em repassar o Requerimento
para Minc6 —, Bessa pediu ao Senhor Presidente da CSPCCO Deputado Alexandre
Silveira para diminuir o tempo da fala inicial de Minc de trinta minutos para dez.7
Sem saber do golpe baixo, sentado na mesa de madeira com verniz e pronto
para a luta, Minc revisa suas tática antes de sua fala inicial na Audiência enquanto as
Campainhas do Senhor Presidente Deputado Alexandre Silveira disparam. Fotógrafos
chegam próximos a mesa para tirarem um último close de Minc mas são rapidamente
expulsos pelo bedel do Plenário. As Campainhas dão início ao rito.
Ele chama sua platéia para compor uma irmandade. Afinal, está em Casa. 8 Minc
enaltece a família parlamentar tatuando ela com todos os traços da democracia. Já é
irmão dos membros da CSPCCO e nada em seus mares de intimidade. Minc não teve
que se deslocar e não teve que desviar do seu dia-a-dia. Ele agradece gentilmente por
6
A discussão sobre como a imprensa é constitutiva da vida parlamentar feita por Teixeira (2002) em
‘Das Bravatas’ me ajudou a ver seu papel fundamental para os assuntos caseiros. Tanto na matéria de
Sérgio Naya no Fantástico quanto na reportagem no Jornal da Globo sobre a convocação de Minc, a
imprensa transforma a vida parlamentar. Conferir também ‘O Preço da Honra’ (1999) de Teixeira para
outras interfaces entre imprensa e Parlamento.
7
Kátia, outra secretária da CSPCCO, me deixou entrar um pouco no making of da Audiência quando
me contou do pedido de Bessa ao Silveira de diminuir o tempo da fala inicial de Minc. Este segredo foi
um elemento dos bastidores caseiros que tentou garantir uma performance eficaz de Bessa. A discussão
de Goffman (1985) sobre bastidores, segredos, palcos, platéias e outras noções para pensar o social me
ajudou a ver o lado dramatúrgico da Audiência.
8
“Casa” foi a denominação mais comum na Audiência para se referir ao Parlamento.
27
chamá-lo de volta ao seu lar, ao lar da democracia, aquele que conheceu durante
tantos anos. É bom voltar para Casa e Minc pede para que “sintam completamente a
sua tranqüilidade”, sua energia temperada para discutir suas ações. Ele anuncia seu
currículo na tentativa de ganhar pontos de experiência de uma platéia exigente nas
cobranças familiares.9 Minc não só está em Casa mas complementa isso com um
posicionamento de irmão mais velho, um que está na posição de falar com a
autoridade de sua experiência. Se instala no ringue falando de onde treinou e
mencionando os membros de sua equipe: Secretários Nacionais Antidrogas, juízes,
promotor, delegados, presidente de sindicato, Secretário de Segurança Pública,
coronel, médico, advogados. Minc está afiliado, conecta suas ações e equipe de treino
com sua experiência, desenha o banner que representa e a marca que veste. 10 Não é
estranho, nem louco. É da Casa e torce pelo mesmo time. Pode ter vindo de lá, mas é
daqui.11
Quanto mais pontos de experiência, melhor: “nada melhor do que uma Lei da
qual se é autor para expressar sua posição sobre determinado tema”. “Uma das leis
que fiz, tá aqui, uma Lei estadual, uma Lei em vigor, foi a lei nº 4.074 de 6 de janeiro
de 2003”. Minc fala através de sua Lei estadual citando alguns artigos. Ele se esforça
para pescar mais pontos e justificar o preço de seu peixe no mercado. Como é da
Casa, é irmão, já legislou como parlamentar, seus golpes tentam legitimar suas
opiniões a partir de sua experiência caseira. E nem precisou ler a Lei corretamente
para expressá-la. Ele pára de ler a Lei, olha para cima e termina com sua posição
descriminalizante, unindo diretamente a Lei com a sua opinião. Minc faz isso de
forma suave, discreta. Sabia que era uma Lei de sua autoria e arriscou unir sua
autoridade caseira e seus pontos de experiência para reforçar a legitimidade de sua
argumentação. Não foi derrubado, não levou esporro de seu canto, não chegou a tocar
9
Pontos de experiência é um conceito emprestado de jogos de RPG. É uma unidade que quantifica a
progressão de um personagem na realização de objetivos e na superação de oponentes e obstáculos.
10
Uso à vontade noções pugilistas levemente inspiradas em Wacquant (2004) Body & Soul e nos meus
treinos pessoais no esporte. Senti que estava numa luta de boxe parlamentar durante toda a Audiência,
e com a ajuda de Goldman (2003) sobre a mistura de elementos entre contextos desconectados aplico o
trabalho sobre boxe de Wacquant num contexto parlamentar.
11
Schutz (1979) discute pertencimento como um compartilhamento de valores, regras, interesses
mapas de interação e códigos de interpretação. Neste caso, Minc se coloca na posição de pertencente a
Casa e evita que o coloquem na posição que Simmel (1983) chama de estrangeiro quando coincide
proximidade de interação e proximidade ontológica.
28
nas cordas do ringue ou lembrar do cheiro do tatame depois de um possível nocaute;
não teve falhas performáticas.12 A dissidência de Minc não foi um desvio. Ele executa
uma opinião legislativa unindo o conteúdo experiente de sua Lei com um
posicionamento entrincheirado na Guerra às Drogas.
Se Minc garante o monopólio dos federais para falar do criminal, então não
seriam eles que podem dizer por que a participação sua na Marcha deve ser tratado no
criminal (apologia ao crime) e não no civil (liberdade de expressão e propor mudança
na lei)? Se são os federais que dizem o que é e não é crime, por que organizar um
debate sobre a possível prática de crime?
12
A disputa entre Minc e Bessa é uma performance tanto no sentido teatral quanto no sentido de um
jogo. Geertz (1983) no seu artigo ‘Blurred Genres’ diz que Goffman usa mais a lógica dos jogos para
pensar o social do que a lógica dramatúrgica. Sigo a proposta de Geertz de misturar as duas
performances na minha análise etnográfica vendo a Audiência como um jogo de “ping-pong com
máscaras”.
29
Porque quem pode misturar na separação, pode. 13 Minc insiste em separar
entidades, mas se não houvesse permeabilidade entre elas ele nunca teria sugerido as
transferências e nem teria participado da Marcha. Ele não é – porque é Ministro de
Estado – mas é Deputado estadual que se dedica ao civil, que mergulha no criminal
em posse quase-exclusiva dos Deputados federais. É a favor da separação e ainda
defende a dupla mistura estadual-federal e civil-criminal. A contradição aqui não é
contraditória mas um ingrediente importante para conseguir acompanhar as entidades
colocadas em ação no Plenário Florestan Fernandes.14 Por isso, Minc usa
‘democracia’ no sentido anti-democrático quando diz:
Minc: Meus dez minutos já devem estar esgotados. O Presidente aqui, muito
democrático, não me avisou mas eu tenho que ter um auto-controle disso porque
todos tem que participar.
14
Sobre a imperfeição de sistemas simbólicos quando entram em ação, Peirano (2002) usa a ótima
citação literária de Turner em ‘A Análise Antropológica de Rituais’: “On earth the broken arcs, in
heaven the perfect round”.
15
Mesmo que Dumont (1993) não tenha usado a noção de temperança na sua discussão sobre o
30
desigualdade precisa ser alterada para voltar ao seu devido lugar simetrizante. De
qualquer forma, desigualdade e liberdade estranhamente se encontram no ato
democrático de Silveira. A democracia não precisa ser democrática para ser
democrática. Se a contradição fosse contraditória a diferença implicaria em separação.
Opostos gostam de dançar juntos mesmo sendo diferentes.
Mas a dança não fica tão bonita na “dependência de drogas” quando Minc lê o
primeiro Artigo de sua Lei estadual e termina no tom democrático do reconhecimento:
Uma alteração à dependência causada pela droga não significa uma situação
irreversível.16 É o reconhecimento da possibilidade reversível da alteração da
alteração rumo a uma liberdade mais temperada. Drogados não são mais perdidos
num labirinto sem saída, mas pessoas passando por dificuldade, pessoas precisando de
ajuda. Assim, a Casa reformada de Minc oferece acesso universal à saúde, inclusive
individualismo quando fala que o mundo não deve ser simplesmente condenado e o indivíduo não deve
usurpar a dignidade que pertence somente a Deus, e também quando fala do contrato social de Hobbes
e Rousseau, está implícito a noção de um controle. O sentimento de independência no individualismo
nunca foi perfeitamente valorizado sem o seu contrário, fazendo existir o terceiro elemento da
consistência, regularidade, controle e equilíbrio. Conferir, também, Wagner (1981) para uma
articulação de temperança com a noção de cultura.
16
Entendo alteração também como uma dedução lógica a partir do estudo sobre o individualismo em
Dumont (1993). Vargas (2006) no seu artigo ‘Uso de drogas: alter-ação como evento’ usa alteração
como modo e evento de engajamento com o mundo produzido por drogas. Mas, no meu caso, eu
estendo o campo semântico da alteração para que inclua tanto seu sinônimo mais elementar de ação e
mudança quanto o oposto (não necessariamente separado) da temperança: descontrole, irregularidade,
inconsistência. Para uma discussão genealógica sobre a alteração, conferir ‘Fármacos e outros objetos
sócio-técnicos’ de Vargas (2008) e também o Capítulo 1 desta monografia.
31
para as vítimas da indiferença. 17 Mesmo que sejam dependentes alterados, não deixam
de serem pessoas e toda pessoa tem pleno acesso à saúde. Na dança da doença com o
crime, o doente passa a ter medo do tratamento de um caso de saúde por ser um caso
de crime. Os serviços de saúde como um bem para todos não pode tratar usuários de
drogas como quase-doentes que na verdade deveriam estar presos. Médico não é
polícia: o lugar do doente é no hospital e não na prisão. 18 Dependentes são doentes e
estão numa situação que “pode levar a morte”. É uma conseqüência in potentia da
droga que deve ser evitada a favor da vida com o serviço estatal da saúde.
17
Se não faz diferença, não existe. Tanto em Simmel quanto em Tarde, de formas um tanto diferentes
(e por isso existentes), ‘existir é diferir’. No artigo ‘Conflito e estrutura do grupo’, Simmel (1983)
discute a indiferença como a negação da diferença e é a ausência de interação. Quando Vargas (2004)
discute Tarde, fala sobre sua articulação das noções de posse, diferença e existência. Ambos fazem
com que a diferença seja um atributo para fazer existir e acabam coincidindo com o tom de
reconhecimento de Minc.
18
Quando Foucault (2009) argumenta que o controle de doentes e o controle de delinqüentes tiveram
intersecções constantes na atuação do poder disciplinar, fica mais fácil de ver porque Minc mistura
saúde e crime ainda que proponha separar médico e hospital de polícia e prisão.
19
O artigo da revista Época (de Francine Lima e Sattu) intitulado ‘Comer mal é um vício ou temos
escolha?’ me ajudou a articular melhor liberdade e benevolência. O artigo inclui a gordura na mesma
categoria de outras substâncias viciantes e “perigosas”, e conclui que “num ambiente saudável, as
pessoas conseguem se livrar do vício”; “basta ter as condições certas”. Quem é livre escolhe o bem,
porque “de acordo com nosso livre-arbítrio, é possível escolher” o “bem”. Para mais sobre a relação
entre Bem e independência, ver discussão de Dumont (1993) sobre os gregos pós-platônicos.
32
morte.
Minc fala sobre a saúde como a sua solução para descongestionar o criminal. A
Lei de drogas tem que ser da saúde, inclusive para combater o tráfico. Minc toca seus
tambores descriminalizantes durante a Audiência para enfraquecer o tráfico do
criminal modificando seu tratamento legislativo para a beleza pacífica do civil. A
mistura civil-criminal é justificada pela convivência direta entre Leis e força do
tráfico. Diferente de antes, o enfraquecimento do tráfico não depende de polícia, mas
de uma mudança legislativa do criminal para o civil no tratamento das drogas. Minc é
um Ministro de Estado e um quase-ex-Deputado estadual que se dedica também ao
criminal. Separa eles, une eles; as purificações não são homogêneas quando entram
em ação. O civil pode agir com e no crime pela atuação da Lei. Ele pode enfraquecê-
lo porque não estão apenas separados, mas misturados pela atuação da Lei.
As Leis agem enquanto circulam. Elas não são passivas quando “fortalecem o
20
Para outra comparação de AIDS e drogas como epidemias, conferir Stengers (1997) ‘Drugs: ethical
choice or moral consensus’.
21
Minha atenção à dependência se deve às categorias associadas ao individualismo de Dumont (1993)
e modernidade de Latour (1994). Ambos contribuíram para que eu enxergue dependência como
mistura, penetração, contaminação, conexão, condição sine qua non, união, retroalimentação,
permeabilidade e reciprocidade entre entidades enquanto acompanhava meus atores nas suas
construções. Para mais sobre dependência, ver Capítulo 1 desta monografia.
33
traficante”, “alimentam a criminalidade” e “garantem ao traficante o monopólio da
venda de drogas”.22 A Lei caseira criminalizante que trata o problema das drogas
produz um efeito dominó suicida. Ela produz tráfico, produz corrupção e chega até o
Parlamento. A Casa não pode estar contaminada por um monstro que ela mesma
criou. Agora, o monstro não só está fora do controle, mas está dentro de Casa!
“Quanto mais forte o traficante é, mais acesso ele tem a corrupção de autoridades de
qualquer tipo, do executivo, legislativo, judiciário, corrupção em geral”, e Minc
propõe expulsar o monstro fazendo uma purificação do híbrido insustentável para que
a Casa possa voltar a como deve ser: reformar seu chão legislativo para garantir a
“base livre e organizada da sociedade”. Assim, o Estado perde partes da sociedade
quando elas se abastecem na ausência de liberdade e na desorganização fornecida pelo
tráfico, e se perde quando o tráfico conquista partes dele mesmo. A Casa perde parte
da Rua e se transforma na parte que perdeu. O Estado perde a sua prole-sociedade
pelo predador-tráfico e também se perde quando se transforma no tráfico.
Mesmo assim, Minc fala bem de sua Casa pela sua “mudança recente na Lei
de drogas”. Abraça seus irmãos outra vez, mas dessa vez dá um beliscão numa
negativação do crime e uma positivação do civil. A Lei de drogas está um pouco
menos criminalizante, mas o “usuário ainda é criminoso perante a Lei” e Minc
provoca o Senhor Presidente da CSPCCO Deputado Alexandre Silveira perguntando
se ele gostaria de ter crime dentro de sua casa: “se o seu sobrinho fuma maconha ele é
um criminoso”. Este tipo de beliscão é a defesa do reconhecimento inclusivo, fruto do
espírito igualitário de Minc que faz existir aquilo antes ignorado: drogas não estão
longe de nós, de nossas casas, elas tem o poder de criminalizar e, por isso, de nos
criminalizar.23 A mistura pessoa-droga é atualmente o reagente que pode produzir
crime. Minc sugere mudá-lo para que não possa mais resultar em crime.
Enquanto isso, tentando não ser ousado, não se separar muito do bem-comum
e não ser livre demais na sua proposta de alteração, Minc se posiciona ao lado da
22
Uma das principais reivindicações no manifesto de Latour (1994) era o reconhecimento da agência
de não-humanos. Seguindo sua redistribuição, pude perceber quanto que não só Leis, mas políticas,
Estado, drogas, Campainhas presidenciais, povo brasileiro, estatística, saúde, corrupção e tráfico
também agem dentro de Casa.
23
O tom justiceiro de Latour (1994) e o de reconhecimento de G. Velho (1994) quando fala de in-
group e out-group estão sintonizados com o espírito de Minc na hora de seu beliscão. Enquanto torna a
negativação do crime num dado auto-evidente, Minc faz justiça e reconhece a presença massiva da
maconha em todos os lugares para afinar mais ainda seus tambores descriminalizantes.
34
temperança que a Casa cultiva quando propõe uma análise das conseqüências recentes
da política de drogas. Assim, ganhou-se acesso a uma ferramenta presente no depósito
da Casa. Como um toxicólogo analisando os efeitos de remédios em ratinhos de
laboratório, a Casa possui a capacidade de enxergar uma alteração que ela estimulou
na Rua. Políticas novas estão vivas e Minc sugere com cautela que ela seja incluída no
laboratório caseiro com “um seminário analisando quais foram as consequências da
mudança recente da política de drogas”.
Minc: Nos Estados Unidos, numa certa época, se tentou resolver o problema
do álcool com a Lei Seca. Essa Lei tinha a seguinte lógica: como o álcool faz
mal, vamos proibir o álcool. Até que chegou a hora que os Parlamentares e os
governantes dos Estados Unidos resolverem revogar a Lei Seca. E por quê?
Porque viram que as pessoas continuavam tomando a mesma quantidade de
24
Diferente da análise rica de Foucault (2009) em seu artigo ‘Poder-Corpo’ e em História da
Sexualidade I (1990) mostrando a fragilidade do poder soberano do Estado quando comparado com o
poder disciplinar descentralizado no controle da vida, corpo, saúde e morte, Minc valoriza uma lógica
mais hobbesiana: um controle que emana da Casa.
35
uísque; a única diferença era que em vez de comprarem do bar da esquina,
compravam dos cúmplices do Senhor Al Capone. Então continuou o problema
do alcoolismo e fortaleceu-se uma máfia poderosíssima. Não diminuiu o
problema e criou outro: um pode que corroia, um poder paralelo, que matava,
corrompia e corroia todos os poderes de uma democracia forte.
O mesmo erro de tampar buracos cavando outros buracos foi cometido pela
Casa estadunidense quando tentaram “resolver o problema do álcool”. O número que
apareceu na balança quando o álcool foi pesado indicou que deveria ser tratado no
criminal. Ele fazia mal, mas a Casa do norte não sabia o que estava por vir. Nasceu o
império de Al Capone que prosperava no mercado ilegal de bebidas alcoólicas. A
proibição não proibiu mas deslocou um bem que estava sob o controle caseiro para o
“poder paralelo que corrompe, corrói e mata”. Não só piorou o problema mas
produziu um poder que roubava a jóia mais preciosa de todas: a democracia. Assim,
saúde e crime conviviam com intimidade na lição de história do Minc. A escala peso-
dano estava vigorosa demais para não ser retaliada com um ataque feroz da legião do
criminal. A saúde criou crime nos EUA quando conseguiu “proibir o álcool”. Para a
surpresa da Casa estadunidense, o crime produzido foi tão grande que acabou
contaminando a própria saúde quando matava e chegou derrubando as portas
autônomas da Casa. A Lei Seca tinha boas intenções quando quis “resolver o
problema do álcool”. Mas sua inocência produziu erros que acabou expulsando ela de
Casa. Assim, Minc dá o exemplo dos Estados Unidos como uma analogia para a Casa
brasileira: vamos perceber a ineficácia das nossas Leis criminalizantes que levou às
mesmas monstruosidades do caso estadunidense – aqueles monstros que conseguem
invadir Casas –, acabar com a Guerra às Drogas para acabar com os monstros e
devolver a Casa a pureza que ela merece.
Não há tanta morte com a maconha, não mais do que com drogas legais como
cigarro e álcool. Maconha é mais leve que outras drogas e tem “peso semelhante” ao
cigarro e álcool. O peso das drogas é determinado pelo “dano que faz em matéria de
saúde e dependência”, fornecido pelo Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e
pelo representante da política de drogas no Ministério da Saúde, Pedro Gabriel
Delgado. “Há controvérsias”, há diferença, há conflito, como deveria haver. Para
Minc, o posicionamento diferente entre cientistas é positivado pela bandeira
democrática da Casa. Não só não são mais problemas mas agora ocorrem
positivamente dentro da paisagem do bem-comum sem relevo da Casa. O respeito à
36
diversidade é um sentimento que cai bem no discurso oficial da Casa, mas só pode
operar quando for acionado sem o fedor primitivo da hierarquia.25 A presença da
diferença implica nivelar na mesma altura. 26 Diferente mas igual; diferente mas unido.
Se o coeficiente peso-dano da maconha é semelhante ao do cigarro e álcool, porque
estão em lados opostos da Lei? A estratégia de Minc é reconhecer o status ilegal de
uma droga que tem a leveza de drogas tão legais, presentes e consumidas quanto o
cigarro e álcool. Assim, ele simetriza o cigarro e o álcool com a maconha para
continuar no seu projeto de descongestionar o criminal. Se não faz tão mal assim pela
sua leveza, se há campanhas do civil que “tem sido eficientes”, por que o número que
apareceu na balança quando a maconha foi pesada levou ela para o criminal? Minc
une saúde e crime com a intenção de inverter a lógica tradicional: se o que faz mal
deve ser ilegal e o que não faz tão mal deve ser legal, o que acontece quando algo que
não faz tão mal é ilegal? Esta é a alfinetada descriminalizante que Minc aplica
enquanto aproveita o aconchego igualitário na Casa da Democracia e nas trincheiras
da Guerra às Drogas junto a legião do civil, da diversificação, simetrização, paz e
reconhecimento anti-vertical.
25
O ar de superação de um passado mal-assombrado, de rompimento definitivo e bem-sucedido com a
hierarquia da ditadura brasileira foi um posicionamento freqüente na Audiência. Para uma discussão
sobre o sentimento de evolução no Dia da Pátria do Brasil e o sentimento moderno de fim de um
passado ultrapassado, ver, respectivamente, DaMatta (1997) e Latour (1994).
26
Se a diversidade estivesse livre de algum controle, ela poderia incluir qualquer tipo de ator, inclusive
os que poderiam ameaçar ou usurpar a jóia caseira da democracia. Aqui, a temperança está de mãos
dadas com a valorização alterada da diversidade. A diversidade está sob controle porque não faz
sentido valorizar a “diferença entre cientistas” sem que a diferença esteja operando com uma lógica
igualitária.
27
A luta constante entre a priori e a posteriori é explorada por Latour (1994) com as noções valiosas
37
crime” passa a significar levantar bandeiras, cantar hinos, tocar tambores, propor
mudanças e irmandades, às vezes tornando alguns menos-humanos vitimizados pela
indiferença em mais-humanos, outras vezes usando a repressão como uma forma de
resolver problemas de saúde. A instabilidade do oficioso provou ser mais interessante
que a inércia do oficial no Plenário Florestan Fernandes.
As fronteiras do especial são penetráveis por aqueles que não são legisladores
e assim a legislação passa a conviver de mãos dadas com as ações de cidadãos
comuns. Minc encarna o cidadão comum e estende a Casa até a Marcha nas ruas de
Ipanema. A Marcha aproveita a brisa marítima, passa a legislar e propõe mudança da
Lei com o aconchego caseiro de igualdade, liberdade, fraternidade e diversidade. 29
“As pessoas podem concordar ou discordar”. Os quadros da diferença igualitária
decoram a Casa com a presença da Marcha. Não mais uma fraqueza, a diferença é um
valor que age com a paisagem simétrica da Casa. A tese da legalização não é um
de oficial e oficioso. Mesmo caótico na sua execução, eventos como a nossa Audiência caseira
consegue ter um grau de compatibilidade entre direto (oficial) e indireto (oficioso). Para uma discussão
sobre os vínculos variáveis entre forma e conteúdo, ver Peirano (2002).
28
Aproveito o dado etnográfico da “Casa” para também usar a expressão Rua inspirada na discussão
feita por DaMatta (1997) em Carnavais, Malandros e Heróis.
29
Os valores democráticos presentes na Revolução francesa se conferem também dentro de Casa. Para
mais sobre o valor da igualdade como fundamento do Estado moderno e dos Direitos Universais do
Homem, ver o Capítulo 1.
38
crime, mas simplesmente um posicionamento diferenciado. É uma tese diferente e não
é por isso que não deve ser permitida.
31
A conquista eterna, dada, absoluta e não-construída da Lei que separa especialistas de não-
especialistas discutida por Bourdieu (1989) ajuda a entender o argumento acionado por Minc quando
une autoridade, legitimidade e Justiça.
39
posicionamentos diferentes com a proposta de abandonar a luta entre civil e criminal
enquanto tentava lembrar do nome inteiro de Bessa. Não é a continuidade ou
descontinuidade legislativa no tratamento de drogas que vai levar necessariamente à
diminuição do consumo, diminuição de morte e um aumento de vida. Minc reconhece
o limite da atuação da Casa em controlar a Rua através do legislativo, se contenta com
a alternativa pedagógica das “campanhas massivas de informação, de
esclarecimento”, descentralizando o poder.32 Se o que se quer é saúde, então a solução
é deixar que ela própria lide com as drogas sem tanto gasto de energia diretamente
caseira. O abandono do ringue ainda está em sintonia com os tambores
descriminalizantes de Minc, mas agora ele vai mais longe. Legislar é importante,
passar as drogas para o civil é importante, mas são as campanhas pedagógicas fora da
Casa que efetivamente vão resolver o problema. Não são só as Leis que conseguem
alterar o problema das drogas, mas também o poder das comunicações abrangentes
que esclarecem sobre os riscos de usar drogas.
Segundo Round: Bessa luta entre tumultos, vídeos, a presença menos humilde do
direto, risadas e uma transferência mais penalizante com alguns híbridos
semelhantes
Bessa: Senhor Presidente, antes de passarmos ao vídeo, Senhor Presidente, eu
queria só responder para o Ministro esse questionamento que ele acabou de
fazer, a sugestão para que nós pudesse formar uma comissão para analisar o
andamento da Lei nº 11.343 de 2006 que modificou a legislação do tóxico. Eu
quero mostrar aqui para Vossa Excelência o resultado da Lei de 2006. (Levanta
o jornal e aponta para ele) Esse jornal aqui é de antes de ontem, é o Correio
Braziliense de Domingo: ‘Drogas Sem Repressão’. Aqui tem fotos de garotos,
de menores fumando maconha. Vou fazer uma rápida leitura para a gente
entender porque que a Lei nº 11.343 não deu certo.
40
Perpétua: É só para ficar claro. Iniciamos o debate? É isso?
Silveira: Ele não concedeu aparte até porque já tinha concluído o debate. Uma
colega do Senhor...
41
Vossa Excelência, da autoria louvável da Vossa Excelência que trouxe esse
tema ao debate dessa Comissão.
Silveira não vê que o rito tinha sido alterado quando entendeu a fala de Bessa
como um “aparte”. Estabelecido por ele mesmo no começo da Audiência, o aparte é
outro recurso de intervenção mas que apenas pode ser utilizado no tempo de
prorrogação do parlamentar. Bessa até tenta ressignificar seu blitzkrieg como um
legítimo aparte. Ele investe na ressignificação de sua posição e na alteração do rito
quando tenta iniciar o debate antes de seu previsto “bom ordenamento”, na
coletivização de seus golpes por serem não só dele mas do “objetivo da Comissão e
do povo brasileiro”, e na disputa direta com Perpétua quando ameaça ignorá-la. Mas
quando Silveira vê que não podia ser um aparte porque o “Ministro já encerrou” sua
fala, ele desautoriza o posicionamento anti-rito de Bessa e massacra um possível
42
blitzkrieg bem-sucedido. O bom ordenamento do rito previa que os vídeos sejam
mostrados depois da fala inicial de Minc. Como o blitzkrieg de Bessa não podia ser
um aparte e se tornou numa tentativa de dar um Golpe de Rito, Perpétua protesta e
Silveira bota Bessa no seu devido lugar. Diferente de Minc que conseguiu ser mais
igual que os outros quando extrapolou o rito “democraticamente” falando mais do que
tinha sido preestabelecido, o rito se faz presente e cria um obstáculo para a
performance de Bessa. A tranqüilidade de Minc no Round 1 desaparece no tumulto de
Bessa no Round 2.
Silveira: Nós temos dois vídeos para serem colocados. O primeiro é um vídeo
de três minutos a pedido do Deputado (se corrige) do Ministro Carlos Minc, e o
outro vídeo que foi sugerido pelo Deputado Laerte Bessa. Vamos passar aos
vídeos e começaremos os debates democraticamente, num nível a alcançarmos
um resultado positivo neste debate.
Como esta é a Casa da Democracia com uma topografia simétrica sem relevo,
a igualdade não pode permitir que os debates não estejam nestes terrenos
democráticos. Mas quem pode, pode. Quem consegue, consegue. Minc pôde e
conseguiu. Bessa pôde mas não conseguiu. O rito foi ignorado no Round de Minc mas
se fez presente no de Bessa.33 Regras e bom ordenamentos existem, mas não sempre.
Depois do tumulto e do mau ordenamento, Silveira apazigua a Casa devolvendo a ela
suas cores igualitárias mais ordenadas.
34
Fiquei pasmo durante a Audiência com a sincronia de não ter apenas já visto a matéria do Jornal da
43
Bessa: Senhor Presidente, vou continuar minha explanação a respeito daquele
questionamento do Ministro. Então, tô mostrando aqui: ‘Drogas Sem
Repressão’. Isso aqui é o resultado da Lei 11.343 de 2006 que infelizmente,
senhor Ministro, ela aumentou e muito o consumo de droga e consequentemente
o tráfico de droga. Vou ler parte da matéria, da matéria de Guilherme Goulart,
que, aliás, foi muito bem colocada porque ele foi até o local e tirou fotos dos
meninos, menores de idade, usando a droga: ‘A cena flagrada pelo Correio
virou rotina nas quadras do Plano Piloto. Manhã, tarde ou noite, pouco importa.
Estudantes de escolas e moradores das Asa Sul, da Asa Sul, da Asa Sul e da Asa
Norte encontram, nas praças e áreas verdes de residências, lugares seguros para
o consumo e a venda de entorpecentes’. E aqui vem o depoimento de uma mãe:
‘A coisa piorou demais de um mês para cá. É maconha e álcool a qualquer hora.
Tem muito menor de idade envolvido’. Esse aqui foi o depoimento da mãe.
Globo mostrado no vídeo de Minc, mas também já tinha encontrado o vídeo de Bessa na coleção
infinita do YouTube.com e já lido o artigo do Correio Braziliense que usou no seu blitzkrieg. Esta
experiência ecoa a surpresa de Peirano (2002) na sua discussão sobre o diálogo antropológico entre
teoria e etnografia, e também, com menos intensidade, a afetação de Goldman (2006) depois de ouvir
os tambores dos mortos.
35
Transportando sua platéia aos jovens consumindo maconha no Plano Piloto, Bessa se aproxima ao
Clifford (1988) em ‘On Ethnographic Authority’ quando dá autoridade para alguém que “estava lá”.
“You are there... because I was there”: a Audiência estava lá... porque Goulart estava lá. É, então, um
não-antropólogo usando uma autoridade semelhante afirmada por antropólogos.
44
culpa do que tá acontecendo aqui no Distrito Federal, porque isso vêm de um
mês para cá, quando Vossa Excelência participou dessa Marcha da Maconha.
Trazendo novos irmãos para a Casa com muitos pontos de experiência, Bessa
se abastece na matéria de Domingo do Correio para mostrar como os ingredientes da
falta de repressão e impunidade têm piorado a segurança pública. Sem repressão e
sem punição, flagrantes não ficam sob controle nas delegacias. Eles estão soltos nas
ruas e inequivocamente aumentando a criminalidade. Menos repressão significa
menos controle daqueles envolvidos com drogas e produz um aumento da
criminalidade. O reagente jovem-droga-alteração-permissividade produz crime. O
erro começa em permitir que os jovens se contaminem com “álcool em casa”,
naturalmente levando a drogas ilícitas e gerando criminalidade. Em nome do combate
ao crime na manutenção da segurança pública, é importante alterar essa “cultura
bastante permissiva” com a força da repressão. A diminuição da liberdade é
prestigiada quando se propõe menos permissão através da repressão.37 De mãos dadas
com o jornalista Guilherme Goulart, o Secretário de Segurança Pública do Distrito
Federal, Delegada Dra. Marta Vargas, o consultor George Felipe Dantas e uma mãe
anônima do Plano Piloto, Bessa se posiciona não só contra a proposta de Minc de
transferir as drogas para o civil, mas também da despenalização de usuários da atual
36
A tentativa de Bessa de montar a relação causal não foi feliz no sentido dado pelo Austin (1962). Sua
expressão não teve eficácia porque não conseguiu fazer o que pretendia. Depois, Minc aproveita as
risadas da platéia para meter o dedo na ferida: “Imaginar que uma passeata no Rio de Janeiro vai
provocar, no mês seguinte, um aumento numa cidade específica, é não ver a estatística dos últimos
anos de aumento de usuários, dependentes, traficantes e presos em relação a esse assunto.” Sobre a
inseparabilidade entre o dito e o feito, ver todos os artigos da coletânea O Dito e o Feito organizada por
Peirano (2002).
37
Mesmo que a chamada sociedade ocidental seja freqüentemente descrita como individualista, a
postura anti-libertária de Bessa não é necessariamente contrária ao individualismo. Dumont (1993)
argumenta que o individualismo ocidental está condicionado simultaneamente pela intramundanidade
relacional e pela liberdade extramundana. Assim, o menos “permissivo” de Bessa não significa
invariavelmente menos libertário porque a liberdade sempre dependeu de sua contrária. No Capítulo 1,
cito o Dumont e mostro que o todo orgânico holista, acima e superior ao indivíduo, pode estar unido ao
individualismo libertário.
45
legislação. Mas eles não estão sempre em lado opostos. Assim como Minc, Bessa usa
a mesma lógica de “nada melhor do que uma Lei da qual se é autor para expressar sua
posição sobre determinado tema” quando aciona um hino criminalizante através de
seu Projeto de Lei nº 4981:
38
Além da discussão de G. Velho (1994) quando tenta convencer terapeutas do aspecto fragmentado
da personalidade e o cluster of roles colecionados por todo indivíduo, Teixeira (2002) também nota
esta incorporação múltipla quando analisa o embate caseiro da cassação do empresário e parlamentar
Sérgio Naya.
46
Bessa: Mas, Senhor Presidente, vou entrar direto nas perguntas. Eu tinha aqui
até uns dados dos malefícios da maconha. Eu acho que o Ministro conhece
muito bem os malefícios da maconha. Eu tenho uma série de doenças
provocadas pelo uso da maconha, os efeitos físicos e psíquicos que causa à
pessoa. Não preciso ficar fazendo essa leitura aqui porque acho que todo o
mundo tem conhecimento do mal que a maconha faz. Eu vou só citar os efeitos
crônicos da maconha: com o continuar do uso, vários órgãos do corpo são
afetados. Os pulmões são um exemplo disso, levando a problemas respiratórios,
bronquites crônicas, como ocorre também com o cigarro comum. Porém, a
maconha contém alto teor de alcatrão, maior que no cigarro comum, e nele
existe uma substância chamada benzopireno, conhecido agente cancerígeno.
Além disso, existe uma doença mais grave que está atingindo o povo brasileiro
que é a depressão. Angústia e depressão que é provocada pela dependência da
droga, não só da maconha, mas também da cocaína, da merla, do crack, e por aí
afora. Claro que Vossa Excelência conhece muito bem esses malefícios, mesmo
porque a Vossa Excelência chegou a citar que sabe que a maconha realmente
faz mal.
Bessa: Não queria sair um pouco da rota, mas vou fazer uma pergunta a Vossa
47
Excelência: a maconha faz bem a saúde? Ela vicia? Quais são os benefícios que
ela traz? Quero realmente saber se Vossa Excelência entende que ela faz bem à
saúde.
“Não queria sair um pouco da rota”, não queria sair do direto, mas o indireto
mostra quão irresistível ele é. Depois de levantar a bandeira do criminal como uma
forma de tratar a saúde, Bessa fala da possibilidade de Minc “entender que a maconha
faz bem a saúde”. A auto-evidência da malevolência da maconha na saúde se torna
um argumento auto-evidente no patrocínio da legião do criminal. Bessa ignora a
provocação anterior de Minc de simetrizar a maconha com drogas legais em relação
aos seus coeficientes peso-dano e criminalizar o álcool e o tabaco. Maconha faz mal à
saúde e tem que ser reprimida com a força do criminal. Descriminalizar a maconha
significa permitir mais, e isso significa mais brasileiros doentes. Em nome da saúde:
mais repressão.
48
Meio Ambiente Carlos Minc “lá junto”! Minc não apareceu cantando sobre seu
orgulho e amor pela maconha no vídeo, mas ele estava lá junto. Se estava junto é
porque estava com a Marcha, com o coro, com o orgulho e amor no meio da
contaminação de Ipanema, unido com os moleques cantantes embriagados. Se a
Marcha fazia apologia, e Minc é inseparável da Marcha, então Minc fez “apologia do
crime”. Mesmo “sem pena”, usar maconha e incitar seu uso é crime. Minc é a
Marcha; a Marcha faz apologia; Minc faz apologia. A mistura Minc-Marcha
produzida por Bessa é discrepante o bastante para arrancar risadas no Plenário
Florestan Fernandes.40 Bessa se redime no ringue depois do blitzkrieg mal-sucedido e
a relação causal infeliz entre a participação de Minc na Marcha e o aumento do uso de
drogas no DF. A legião do criminal se fortalece junto com as risadas e Bessa é visto
com bons olhos pelos espectadores. Mesmo mostrando sua insegurança em relação ao
bom ordenamento do rito, Bessa finalmente faz um ataque feliz.
Bessa: Vossa Excelência afirmou, nós vimos aí na tela, que vários Ministros o
apóiam na descriminalização da maconha, como é o caso do Ministro da Saúde,
José Gomes Temporão, e do Ministro da Justiça, Tarso Genro. Eu tive a cautela
de ligar para ambos e perguntar-lo se eles realmente eram a favor da
descriminalização da maconha. Senhor Ministro, a resposta deles foi “não”.
Então, eu acho que a Vossa Excelência não deveria usar o nome de dois
Ministros de Governo, tá, e dizer que eles são favoráveis a uma situação quando
não são. Eles responderam e fiz questão de gravar.
O vídeo na tela continua junto com Bessa quando ele chama a platéia de novo
para ver o discurso de Minc na Marcha. Minc chamou outros Ministros de Governo
para a legião do civil durante a Marcha para reforçar a não-discrepância de suas
ações. Ele não está sozinho e não é o único Ministro de Governo com um
posicionamento favorável ao descongestionamento do criminal. Mas não para o
Bessa. Ele “teve a cautela de ligar para ambos [Ministro da Saúde, José Gomes
Temporão e Ministro da Justiça, Tarso Genro]” e gravou o “não” deles. 41 Eles não
praia de Ipanema é, como diz DaMatta, “minha (ou nossa) rua”, por ser “uma das melhores praias do
Brasil”. A praia de Ipanema possui elementos caseiros porque Bessa garante que ela é “do Brasil”.
Bessa prefere uma separação entre a falta de temperança dos “moleques embriagados” da Rua com
uma das casas públicas mais bonitas do povo brasileiro.
40
A carga negativada da Marcha como um espaço de baderna associada ao prestígio de Minc como um
Ministro de Estado criou uma discrepância hilária durante a Audiência. Sobre as contradições entre
espaços e tempos na representação de papéis, ver Goffman (1985).
41
Esta boa seqüência de golpes de Bessa se manteve feliz até ser atropelada pela acusação do
49
estão entrincheirados com o mesmo time de Minc no campo de batalha da Guerra às
Drogas e Bessa tem prova disso. Minc cometeu um erro de incluir Temporão e Gomes
na clandestinidade embriagada da Marcha. Agora mais sozinho na discrepância, Minc
perde alguns aliados e Bessa enfraquece a legião do civil.
42
A importância dada por Swaan (1988) ao collectivizing process na sua discussão sobre o controle
estatal das externalidades produzidas pela crescente interdependência entres seres humanos está
intimamente ligada à postura adotada por Bessa e outros parlamentares quando acionam estatísticas
dentro de Casa.
50
Brasília é a merla que rola. Em São Paulo, o crack tá matando as nossas
crianças.
Bessa: Então, Senhor Presidente, era essas perguntas que queria fazer, até pra
dar espaço aos demais colegas. E eu queria fazer um comentário aqui. O
Ministro responde se quiser. Não faz parte das perguntas. No dia 26 de Maio,
em blog na internet, o jornalista da Revista Veja, Reinaldo Azevedo, coloca
dentro de seu comentário a seguinte frase: ‘Mas esse é Minc. Quando jovem,
assaltava bancos para a VAR-Palmares. Depois de velho, já militante verde,
chegou a enfiar algumas batatas em escapamentos de ônibus no Rio. Vai ver,
era contra a viagem de ônibus’. Então, eu queria faze esta pergunta a Vossa
Excelência: se esse jornalista que colocou na revista está falando a verdade? Se
existiu isso, até para a defesa de Vossa Excelência. Era isso que eu queria
passar, Senhor Presidente.
43
Ao ler Dumont (1993) entendi que a temperança é inseparável da liberdade na constituição do
indivíduo e Estado moderno. Neste sentido, podemos pensar que o Bessa não discute a liberdade em si,
mas a sua intensidade. Como uma liberdade sem controle é tão ruim quanto uma falta de liberdade,
Bessa propõe uma Lei que torna a liberdade mais temperada.
51
boa fé caseira do igualitarismo participativo, “pra dar espaço aos demais colegas” no
rito. Mas antes de encerrar faz um comentário explicitamente indireto porque “não faz
parte das perguntas”, pedindo para Minc “responder se quiser”. Bessa executa um
assalto poderoso quando cita uma história de Minc fedendo à negativação do crime. A
imagem discrepante desenhada por Reinaldo Azevedo é transportada para a Audiência
com Minc “assaltando bancos” e fazendo ataques a bens públicos. “Esse é o Minc”.
“Vai ver, era contra viagem de ônibus”. Vai ver, era contra ganhar dinheiro sem
roubar dos outros. Uma vez criminoso, sempre potencialmente criminoso. Quem já
fez o mal se sujou para sempre. O passado condena Minc e torna sua apologia ao
crime um tanto mais compreensível. Bessa tira alguns pontos de experiência de Minc
colocando um currículo diferente na mesa. Mesmo que “não faz parte das perguntas”,
Bessa torna seu indireto num direto porque seu comentário serve “até para a defesa”
de Minc. Assim, Bessa conecta um passado condenante de Minc com sua participação
na Marcha, e pede, sem compromisso, um esclarecimento de sua ficha contaminada
pelo crime para ao mesmo tempo se defender da acusação de apologia.
Marroni: Mas há uma questão de ordem que quero levantar aqui, Presidente,
por favor.
Marroni: Esta convocação teve como base uma acusação do Deputado Laerte
Bessa sobre um crime, sobre uma possibilidade de crime que o Ministro teria
incorrido ao participar, fazendo apologia ao crime. Essa seria a tipificação;
apologia ao crime, seria tipificado como apologia ao crime. Eu penso que, com
os esclarecimentos que foram feitos aqui pelo Ministro, e depois as perguntas
que foram feitas pelo Deputado Laerte Bessa, desviam completamente do objeto
desta convocatória.
52
Marroni: O Senhor não tem esse direito.
Silveira: Vossa Excelência não está inscrito. Está falando pela ordem.
Bessa: Eu não vou deixar que ele fale. Ele vai ter que se inscrever. Ele não é
líder pra falar.
Bessa: Que conversa de questão de ordem! Tem que ler o estatuto melhor.
(Campainhas)
Minc: Isso.
53
Silveira: ... fora da ordem de inscrição.
Silveira “permite” que Marroni “faça uma questão de ordem”, permite que use
o recurso interruptor e entra no meio do ringue para discutir as regras com os dois
guerreiros, mas logo muda de postura. Marroni “fez a consideração e ficou claro”,
mas agora “não é pertinente questionar as perguntas do autor do Requerimento”. O
que é pertinente é decidido pelo Bessa. Enquanto Marroni insiste na irregularidade
“antirregimental” de interromper uma interrupção legítima e Bessa sugere “ler o
estatuto melhor”, Silveira invalida todas as questões de ordem e as “intervenções fora
da ordem de inscrição”. Como “autor do Requerimento”, Bessa ganha direitos
especiais quando ele é aprovado pela Comissão. Assim, Silveira transforma Bessa na
Comissão porque “ele foi o autor do Requerimento” e “esta Comissão aprovou o
Requerimento”, mas depois separa eles de novo: “o Ministro está convocado pela
Comissão e não pelo Deputado Laerte Bessa”. Bessa não é, mas é, mas não é a
44
A simetrização de uma situação assimétrica através de uma assimetria compensatória é explorada
por Goldman (2003) no artigo ‘Os Tambores do Antropólogo’.
54
Comissão. Mesmo depois de perder o primeiro tumulto e sair vitorioso do segundo,
Bessa ainda perde alguns pontos pela sua falta de “calma” frente a “tranqüilidade” de
Minc. Entre prorrogação de Round, invasões e expulsões do ringue, interrupções
regulares que se tornam irregulares, direitos permitidos e não mais permitidos,
ataques, contrataques, reinado do direto contra reinado do indireto, combinações e
destilações, as Campainhas presidenciais mostram sua raison d’être: o
desordenamento dos trabalhos, constitutivo da fragilidade caseira, é ouvido através
dos ruídos ordenantes das Campainhas. Nem no laboratório de produção de Leis a
ordem é sólida o bastante para não ser disputada.
Minc: Não entendo que cometi nenhuma apologia, porque participei de uma
manifestação autorizada pela Justiça Federal. Eu próprio não portava camisetas
ou cartazes, não defendi nem defendo o uso, não vejo benefícios no uso, não
defendo a desobediência à Lei. Defendo a mudança da Lei. Vossa Excelência
também, só que defende a mudança da lei exatamente no sentido contrário que
eu defendo. Nenhum de nós defende as drogas, mas temos teses diferentes de
como minimizar o seu uso. Seria apologia, entendo eu, a defesa do uso, a defesa
da virtude da droga ou a defesa do descumprimento da Lei. Vossa Excelência
viu claramente que em nenhum momento as minhas palavras gravadas estão
nesse sentido. Então, essa é a grande diferença que tenho em relação a Vossa
Excelência, uma diferença no campo das ideias. Portanto, uma diferença digna
deste Parlamento e desta Comissão se aprofundar.
55
“Estar na Marcha”, estar com “cartazes incentivando o uso da maconha”, estar com
“plantas e folhinha estampadas em várias camisetas” e estar com “o pessoal puxando
coro do hino da maconha” já “é, por si só, um crime de apologia”. No entanto, Bessa
altera sua estratégia original, traz um reinado diferente do indireto para a mesa e entra
no jogo de Minc quando aceita a purificação de Minc-Marcha. Mesmo com um grau
de purificação menor, Bessa separa Minc da Marcha porque ele “não tenha
participação direta”. “Indiretamente” ainda contém algum teor de direção e Bessa
permite a sobrevivência mais discreta de Minc-Marcha. A defesa que Minc aciona em
seguida determina sua participação através do que ele falou e não do que os outros
falaram ou fizeram. Ele converge com a purificação nova de Bessa mas retira toda a
impureza que tinha sobrado enquanto mantém a aliança com a “Justiça Federal”.
Depois de “eu próprio”, “não defendi”, “não defendo”, “não vejo” e “em nenhum
momento minhas palavras gravadas estão nesse sentido”, Minc faz a Marcha
desaparecer da Audiência e leva o foco de seu julgamento de realização de crime
apenas para o que ele disse. Ainda aproveitando o aconchego caseiro e encarnando de
novo o espírito igualitário, Minc se mantém na estratégia de chamar os irmãos
parlamentares para vangloriar a beleza da diferença. Minc segura as mãos de Bessa
porque ambos defendem “a mudança da Lei” e “nenhum de nós defende as drogas”.
Eles são iguais mas diferentes; tem “teses diferentes de como minimizar o seu uso”.
Agem na mesma direção mas em sentidos opostos e criam uma diferença na
igualdade, “uma diferença digna deste Parlamento e desta Comissão”.
Agora, o veredicto. O ordenamento dos trabalhos segue para quem está inscrito.
Os Deputados na platéia aproveitam para participar da luta, justificam suas
pontuações e levantam o braço do vencedor.
56
descongestionamento do criminal sugerido não só pelo Minc, mas também pelo ex-
Presidente Fernando Henrique Cardoso. E onde estava o “juiz que autorizou a
Marcha”? Minc 1 – 0 Bessa.
Queria dizer, Senhor Presidente, o Ministro Minc usou dos seus direitos,
primeiro o direito de livre manifestação que foi a luta de muitos brasileiros que
morreram na ditadura para permitir que tenhamos o direito de sair às ruas. Sua
Excelência usou esse direito, uma franquia da democracia conquistada com
muito sangue e suor.45 É muito bom desmistificar isso, porque a população
45
A “franquia da democracia conquistada com muito sangue e suor”, a superação de uma época
57
imagina que o Ministro, que, nós, Deputados, as autoridades somos semideuses,
nós somos gente. Nós temos atuações diferenciadas. E é muito melhor o
Ministro agir à luz do dia, defender claramente suas posições diante da mídia do
que ficar na clandestinidade, como fazem os traficantes que fazem tanto mal ao
Brasil. Portanto, considero um ganho da democracia o direito de o Ministro
poder se manifestar livremente. Senhor Presidente, gostaria que a Comissão
aceitasse a oferta do Ministro de fazer um debate sobre a maconha e as drogas.
Há muitos pontos de vista de que a maconha é útil para tratamento de saúde. O
Deputado Bessa leu manifestações contrárias.
Dutra depois se une a Minc e o espírito caseiro que comemora o triunfo sobre o
passado hierárquico do Brasil quando entra no terreno do direto pontuando Minc pelo
seu “direito de livre manifestação”. Esse direito libertário foi “a luta de muitos
brasileiros que morreram na ditadura para permitir que tenhamos o direito de sair às
ruas”.47 Dutra não só pontua Minc favoravelmente mas também segue sua mistura
desigual, verticalizada e pouco permissiva teve, inclusive, a participação de Minc. Dutrra diz: “O pior
de tudo é o país viver sem o Parlamento. O pior de tudo é a volta à ditadura. Obscurantismo é o
fechamento do Parlamento. E liberdade o Parlamento conquistou porque muitos foram às ruas lutar
contra a ditadura — eu me orgulho de ter sido, muito jovem, um desses; com 16 anos, estava nas
passeatas, lutando contra a ditadura militar. Por isso podemos estar hoje neste Parlamento debatendo
esses e outros assuntos.”
46
Além das diversas outras maneiras, a imprensa é protagonista da Casa também no papel de tornar a
Rua mais presente na Casa e a Casa mais presente na Rua. A “visibilidade” de Dutra significa não
apenas que a Casa tem mais possibilidade de interagir com a Rua, mas que a Rua está mais presente
que normalmente estaria.
47
Mais adiante na reunião, esta comparação da Marcha com as lutas libertárias contra a ditadura
espanta Maggessi: “Respeito muito o meu querido Domingos Dutra, mas comparar as passeatas contra
58
Casa-Rua quando incorporou o papel de cidadão na Marcha, contribuindo para
“desmistificar” a imaginação de que “autoridades” são “semideuses”. “Nós somos
gente”; quem é da Casa também é da Rua e Dutra dissolve as fronteiras. 48 Nesta linha
simetrizante, Dutra entra na legião do civil de forma mais radical que Minc quando
introduz uma possibilidade contrária às “manifestações contrárias” de Bessa: “a
maconha é útil para o tratamento de saúde”. Dutra não só invalida a balança peso-
dano usada tantas vezes para discutir que lado da lei a maconha deve estar, mas agora
apresenta a balança útil-tratamento. Minc 2 – 1 Bessa.
48
Diferente de Bourdieu (1989) em ‘Força da Lei’, a purificação entre especialistas que lidam
diretamente com a Lei e os leigos não-especialistas distantes da origem das leis não se confere na fala
de Dutra. Mesmo que pessoas propriamente jurídicas tenham monopolizado a atuação da e na Lei, isso
não quer dizer que o monopólio tenha uma homogeneidade.
59
e a “corrupção” como a Maggessi, Biscaia, ao contrário, garante o ponto para Minc
segurando a “autoridade judicial” com muito carinho. Se a Justiça autoriza então
“qualquer discussão a respeito da tipicidade da conduta” desaparece; se a Justiça
liberou, liberou geral. Assim, o “fazer” do artigo 287 é uma ação realizada pelo
indivíduo que a realizou e não pelas ações de outros com que o indivíduo estava, uma
convergência com as alegações “claríssimas” de Minc. Minc 3 – 1 Bessa.49
Mesmo que “contribui” não esteja escrito no artigo 287 do Código Penal, ela
não precisa estar para estar. Paes de Lira fala “nos termos do Código Penal” e da Lei
11.343/06 para acusar Minc de “contribui para instigar, induzir e fazer apologia”. Em
seguida, ele garante o “lastro jurídico da Audiência” e retira o lastro jurídico da
Marcha porque o juiz “violou a Lei autorizando essa Marcha”. Faltou “zelo” do juiz
no seu tratamento da Lei quando não a interpretou “exatamente como ela consta”.
49
Bessa percebe que está perdendo e reforça os níveis de discrepância: “O que o juiz autorizou não foi
aquela manifestação. O juiz autorizou uma manifestação ordeira, e não aquela zona que estava lá, que
foi passada aí na frente, aquela palhaçada que estava aí, com marcha e tudo. Aquilo ali é apologia do
crime, e eu vou provar que o próprio...” (Campainhas). Mas nem isso dá certo quando Silveira não o
deixa continuar: “É a opinião de Vossa Excelência. Vamos continuar os trabalhos.”
60
Juízes zelosos interpretaram a Lei “exatamente como ela consta” quando proibiram a
Marcha em São Paulo, João Pessoa e Curitiba. A Lei e a Justiça pareciam estar
fadadas a viver com múltiplas facetas, mas não para Paes de Lira. Ele unifica a
multiplicidade da Lei com a separação entre “ler e interpretar a Lei exatamente como
ela consta” e “violar a Lei”. Nem as Leis, nem o Código Penal são múltiplos; ou são
seguido com exatidão, ou são violados. Paes de Lira rejeita a Justiça de Minc, Biscaia,
Dutra e Perpétua, pegando ela, dando ela a cara da Justiça zelosa que criminalizou a
Marcha e converge com Bessa e Maggessi quando acusa Minc de se desviar por
“emprestar seu prestígio a uma Marcha ilegal”.50 Minc cometeu o crime de apologia
quando “contribuiu”, “emprestou”, dependeu e penetrou a ilegalidade. Minc 3 – 2
Bessa.
A Casa não pode acusar uma pessoa – seja ela Presidente ex-Presidente, seja ela
cidadão atual Ministro de Estado – de ser criminosa porque não concorda com a sua
opinião. “O Estado Democrático do Direito” preserva as “liberdades” e
“individualidades”. A jóia mais preciosa da Casa é a democracia, sua decoração sem
relevo, anti-vertical, anti-indiferente e permissiva. Marronia expressa sua tristeza
sobre a inversão absurda da Casa em esquecer daquilo que tem de mais fundamental.
Junto à negativação do “crime”, “delinqüência”, “delito” e “ilegalidade”, ele
radicaliza sua positivação da liberdade depois que a Casa esquece ela. O “direito
50
A interação de Paes de Lira, Bessa e Maggessi com Minc produz um desvio no sentido dado pelo
Becker (1997) no seu artigo ‘Marginais e desviantes’ . O desvio de Minc não é uma qualidade
intrínseca mas um resultado das disputas em torno dos objetivos de Paes de Lira, Bessa, Maggessi, e
muitos outros na Audiência que antes riram desta mistura.
61
humano fundamental é o direito à expressão, seja ela qual for”. Sem qualquer indício
de temperança, Marroni relembra as paredes caseiras tão odiadas por Bessa de
“liberou geral” e vota no Minc. Minc 4 – 2 Bessa.
Mais uma batalha encerrada na Guerra às Drogas. A luta termina com a vitória
de Minc e de tudo que está junto a ele. Agradece, mas a luta ainda é prorrogada por
Bessa:
62
outros Deputados participavam quando entravam no ringue, mas todos saíram com as
mesmas bandeiras e os mesmo hinos. O que sobrou foi a indiferença porque a
Audiência não foi apenas um momento para formar opiniões, “um debate de ideias”
ou “de pessoas” como Silveira colocou. Foi muito mais uma vitória do reinado do
indireto sobre o direto do que de qualquer guerreiro presente na Audiência. Se o
direto era o confronto oficial entre Minc e Bessa para decidir se houve crime, o
indireto eram as campanhas feitas por todos que se entrincheiraram no campo de
batalha, fortalecendo legiões e afinando tambores. Entre todas as entidades produzidas
e acionadas e mundos construídos no estranho laboratório legislativo, o tom da
indiferença alimentado pelo reinado do indireto foi o que permaneceu. Minc, Bessa,
todos davam golpes sem se defenderem. Não se preocupavam porque não havia
penetração. Ninguém se atingia porque a Audiência sobre a “possível prática de
apologia ao crime” foi discreta quando comparada ao posicionamento firme na Guerra
às Drogas. A luta empatou e a indiferença ganhou porque o “rito” não fez muita
diferença no nível do indireto e muito menos no direto.
63
dependendo mais da performance descriminalizante de Minc.
Capítulo 3
O complemento crítico da antropologia antiproibicionista:
quando subtrair significa adicionar
Todos os títulos dos capítulos em Drogas e Cultura: novas perspectivas (2008)
são acompanhados por suas versões distorcidas com um cinza fantasmagórico que
desmancha por trás do título original. Aqui está o leitmotif da coletânea: o líquido por
trás do sólido, a fragilidade por trás do sólido, a dissolução por trás do sólido. 51 Neste
capítulo exploro o estilo científico e engajado adotado pelos autores que fazem a
abertura da coletânea para enxergar uma politização da antropologia das drogas onde
sólidos são atacados por líquidos. O sólido atacado é a política proibicionista por sua
superficialidade, unilateralidade, simplicidade, limitação, fragilidade, pobreza,
insensibilidade, violência, manipulação, distorção, imprecisão, mistificação,
contradição, universalidade, naturalização, substancialismo, abafamento,
estancamento, enclausuramento, estabilidade, arbitrariedade, hegemonia e sua
desconsideração da cultura. Ele é atacado pelo líquido antiproibicionista com sua
51
Uso líquido como referência à fragilidade e instabilidade do objeto e sólido como à objetividade e
estabilidade do objeto. Como a inconsistência desequilibrada do líquido está por trás da dureza
equilibrada do sólido, a arte dos títulos dos capítulos de Drogas e Cultura é um presságio que reflete o
estilo adotado pelo antiproibicionismo na abertura da coletânea. Neste caso, o líquido tem lugar
primário e o sólido tem lugar secundário. O líquido é a infraestrura que determina a superestrutura do
sólido: o líquido na base de todo sólido. Para mais sobre as interações, uniões e separações entre
líquidos e sólidos, conferir Latour (2005). (Neste caso, é possível pensar o líquido como alteração e
sólido como temperança. Por motivos de limite de prazo de entra deste trabalho, não poderei explorar
esta correlação aqui).
64
complexidade, profundidade, simetria, relatividade, sensibilidade, multilateralidade,
diversidade, precisão, qualificação, “aspas”, arejamento, complemento crítico,
desmistificação, substâncias psicoativas, estabilidade da instabilidade, transcendência
e sua inclusão da história e cultura. Mesmo que a prioridade seja liquidificar sólidos
proibicionistas, o estilo liquidificante do antiproibicionismo é volátil o bastante para
variar, inverter e sincronizar estados físicos. Os líquidos antiproibicionistas não só
dissolvem mas se solidificam mais que os próprios sólidos proibicionistas que
dissolveram.
65
maintain”. Por isso, estudar construções de objetos como autoridades antropológicas é
uma revolta que coloca a construção em qualquer objeto e poder em qualquer saber. O
problema disso é que a principal objeção chama a atenção para o risco de desobjetivar
tudo, tornar tudo uma questão de performance, “a mere game of words”. Concordo
com Geertz no valor de explorar construções para enriquecer os objetos, mas ele ainda
toma a postura parecida com o interacionismo de Goffman (1985) onde os objetos se
tornam tão líquidos que as suas solidezes não são levadas mais a sério.52
52
Para argumentos sobre a revalorização dos objetos nos estudos que valorizam as suas construções,
ver Latour (2005) Reassembling the Social.
53
“Exposing how the thing is done is to suggest that, like the lady sawed in half, it isnt’t done at all”
(Geertz, 1988: 2).
66
Geetz é sobre a construção do impessoal através do pessoal, a ansiedade de construir
textos científicos através de experiências subjetivas e a mistura estranha entre
presença e ausência autoral. O formato dilemático dos antropólogos
antiproibicionistas sobre suas simultâneas militâncias imanentes e objetividades
transcendentes é o que pretendo explorar aqui. Eles são cientistas-cidadãos anfíbios
quando agem intramuros e extramuros em nome da objetividade engajada para
abastecer uma política pública brasileira de drogas. Com os trabalhos de Peirano
(1999) sobre a cidadania do antropólogo e Fleischer (2007) sobre a anfibiedade intra e
extramuros de antropólogos brasileiros, pude enxergar a continuidade da tradição
intervencionista da antropologia brasileira adotada na apresentação de Drogas e
Cultura. Os antropólogos antiproibicionistas são cientistas intramuros por se
dedicarem ao contexto intelectual da produção acadêmica da objetividade, e são
cidadãos extramuros por se engajarem na militância contra a política proibicionista de
drogas. Assim, escolhi as Orelhas, Apresentação, Prefácio e Introdução de Drogas e
Cultura seguindo a dica de Geertz que os dados do dilema antropológico estão no
scene-setting, task-describing, self-presenting opening pages.54 Mesmo que ele tenha
a postura exotizante que contrasta com as prioridades politizadas da antropologia
brasileira mais caseira,55 faço algumas conversões oportunistas sobre o que Geertz diz
da ansiedade autoral na produção de um saber impessoal para o caso do
antiproibicionismo. Antropólogos transitam com ansiedade entre a experiência
pessoal do trabalho de campo e a produção científica da escrita impessoal. A transição
produz oscilações e combinações dilemáticas de subjetividade e objetividade,
colocando a antropologia num time profano que pertence aos dois e a nenhum ao
mesmo tempo. Onde pertence uma escrita criativa sobre pessoas reais em lugares
reais? Trocando a subjetividade da experiência etnográfica exótica pela subjetividade
da militância caseira, direciono a mesma pergunta para os antropólogos
antiproibicionistas: onde pertence uma escrita militante que descreve políticas reais?
54
“And, since the challenge and the uneasieness are obviously felt from the jacket flap on, a good
place to look in looking at ethnographies is at beginnings—at the scene-setting, task-describing, self-
presenting opening pages” (Geertz, 1988: 11).
55
A postura de Geertz é exotizante no sentido de restringir toda a antropologia para o estilo
estadunidense de fazer o trabalho de campo there e escrever antropologia here entre congressos e
bibliotecas da vida acadêmica. Isso difere do estilo politizado e caseiro da antropologia brasileira
descrito por Peirano (1999) e Fleischer (2007) que tradicionalmente fez o here e there coincidirem. O
diagnóstico de “there are a few more completely academicized professions, (...) but not many” (Geertz,
1988: 130) não se confere com a tradição brasileira da antropologia de também agir extramuros.
67
Como se atualiza o dilema identitário da antropologia no engajamento
antiproibicionista?
Porém, este tipo de percepção não deve implicar que a antropologia feminista
tem que mudar a sua postura e reconhecer a sua agência contraditória. Do mesmo
modo, a antropologia antiproibicionista também set the record straight para
identificar o bias proibicionista sem identificar o bias usado na identificação. Essa
contradição só é contraditória quando um terceiro bias de corrigir contradições não-
reflexivas que identificam biases entra na história. Minha proposta aqui é o
engajamento com todo e qualquer objeto, sem parar no meio do caminho quando se
sente uma contradição ou deficit de reflexividade na construção.
Orelhas: “Em uma palavra, as drogas não existem; são invenções datadas”56
Apresentação: A “cultura” do Ministério da Cultura politiza a antropologia na
diversidade igualitária que adiciona sem subtrair: uma política consegue
conviver com a sua anti-política?
56
Tanto nas Orelhas de Drogas e Cultura (2008) quanto nas da outra coletânea Uso Ritual das Plantas
de Poder (2005), feitas, respectivamente, por Soares e Henman, apresentam a postura liquidificante do
antiproibicionismo. As “drogas” do proibicionismo são liquidificadas por serem “invenções datadas”,
assim como a proposta do proibicionismo “nefasta”, “infrutífera” e “inimiga do prazer, da ciência e da
iluminação” é liquidificada pela necessidade de ser “superada” e “retomar o rumo pelos mais
autênticos e dignos usuários destas plantas” (Henman, 2005).
68
O Ministério da Cultura (MinC) do governo federal do país de todos apresenta
Drogas e Cultura com os mais altos dirigentes da cultura no Brasil, Gilberto Gil e
Juca Ferreira (2008: 9-11). Falta uma coisa na nossa orientação jurídica que aborda as
“drogas”: onde está a diversidade? As singularidades dos diversos contextos culturais
foram ignoradas. As distintas apreensões culturais foram tratadas “de modo estanque
e indiferenciado”, incapacitando a perspectiva de “distinguir as implicações dos
diversos usos” de “drogas” (idem: 9). Para “dar visibilidade” a “diversidade e a
democracia que caracterizam o nosso país” (idem), Drogas e Cultura é a síntese que
“oferece uma abordagem biopsicossocial dos estudos sobre “drogas”, um movimento
engajado” “que visa fecundar um debate público mais condizente com o pluralismo”
brasileiro. Nem no International Narcotics Control Board e nem na Lei 11.343/06
temos o reconhecimento dos “usos culturais de certas substâncias psicoativas
vinculadas a rituais”. Para amadurecer as políticas públicas relacionadas às drogas, o
MinC defende a “incorporação da compreensão “antropológica” das substáncias
psicoativas, uma abordagem mais voltada para a atenção aos comportamentos e aos
bens simbólicos despertados pelos diversos usos culturais das drogas” (idem: 11).
Infelizmente, “ainda persiste uma tendência a atribuir maior legitimidade aos estudos
sobre o assunto desenvolvidos no âmbito das ciências da saúde”. As abordagens
sociais são “desvalorizadas quando enfrentam diretamenta a questão do uso de drogas
e os usos culturais”. Lidar com a complexidade do fenômeno das “drogas” significa
incorporar um tratamento multilateral para enriquecer as análises e colocar os
“aspectos socioculturais na concepção das políticas públicas direcionadas a elas”.
69
étnicas, geracionais, de gênero, ou ainda a produções estéticas”. Usar a cultura
antropológica significa “escapar de uma visão simplista sobre o assunto” adotando os
fatores de “ação determinante na constituição de padrões reguladores ou estruturantes
dos consumo de todos os tipos de “drogas”” (idem). “Estamos no terreno das culturas;
todas elas partem da enorme diversidade de práticas, representações, símbolos e artes
que habitam o Brasil”. “As “drogas” são e estão na culura. Ou melhor, nas culturas e,
portanto, não podem ser entendidas fora delas” (idem). Excluir a cultura é excluir a
substância que compõe as drogas.57 E excluir isso da política de drogas como o
proibicionismo tende a fazer torna ela menos “eficaz” e menos “adequada à
contemporaneidade”.
58
O ar “caseiro” do igualitarimo de MinC é uma referência a “Casa”, o Parlamento brasileiro. Como
falei no capítulo da Câmara dos Deputados, a “Casa” foi o termo mais comum usado pelo Carlos Minc
para se referir ao Parlamento enquanto ele acionava a des-hierarquização de sua perspectiva frente às
outras. Assim, a positivação caseira da diferença que simetriza as perspectivas é reconstruída aqui.
Mas, do mesmo jeito como aconteceu em Casa, a horizontalização do relevo com a valorização
70
explicitada não é substituir alguns elementos da política por outros melhores, mas
adicionar para diversificar a política.
Em todos os casos, é uma adição e não uma subtração. Mas até que ponto que
a multiplicidade não é uma simplicidade no lugar de outra simplicidade? O
antiproibicionismo consegue criticar e complementar sem subtrair? A convivência
pacífica entre o proibicionismo e o antiproibicionismo é possível no meio da Guerra
às Drogas?
democrática da diversidade está sob controle porque não tem como incluir todas as perspectivas. Tanto
com o MinC quanto com o Minc, a democracia se apresenta como um ideal libertário de inclusão sem
constrangimento mas que implica na exclusão de perspectivas que seriam contrárias ao igualitarismo.
Portanto, “não se trata de colocar a perspectiva das ciências humanas como a mais relevante” está
articulado com a exclusão das ciências da saúde por elas terem violado o igualitarismo e excluído as
ciências humanas. É uma simetrização da situação assimétrica com outra simetria. Para mais sobre
ideais sob controle, ver Dumont (1993) e o Capítulo 1. Para mais sobre assimetrias compensatórias, ver
Goldman (2003).
71
“certezas estabelecidas” do proibicionismo abafado podem ser arejadas com o líquido
que entra em erupção através da superfície, ventilando os legítimos com os menos
legítimos da antropologia, sociologia, ciência política e história. E não é a promoção
de uma “nova doutrina”. Não se pretende curar os problemas teóricos do abafamento
superficial promovido pelo proibicionismo. Os líquidos complementam os sólidos
criticamente com a incorporação do antiproibicionismo no proibicionismo. Para ser
mais justo e resolver seu problema de fungo, o proibicionismo deve dar o “passo
indispensável” na perfuração de suas margens convencionais e deixar entrar
perspectivas ainda ilegítimas para refinar o “terreno tão polêmico”. A proposta anfíbia
do antiproibicionismo é incluir conhecimentos das ciências humanas/sociais para
mudar aqueles que monopolizam o abastecimento da política de drogas sem estimular
uma mudança. Aqui, complementar não significa subtrair. Confrontar, criticar e
refinar são propostas de mudanças que não mudam mas apenas complementam o
acervo teórico atualmente usado na política de drogas.
72
alia pela primeira vez com o antiproibicionismo: a imprecisão biomédica se torna
mais precisa do que a sua precisão.
73
“Não fosse desastrosa em suas diversas consequências, a “guerra às drogas”
poderia ser considerada apenas uma ideia fútil. A fracassada tentativa de proibir
a fabricação, o comércio e o transporte de bebidas alcoólicas nos EUA nos anos
1920 (conhecida popularmente como a “lei seca”) deveria ser suficiente para
mostrar a íntima conexão que se estabelece entre a proibição oficial e a
violência social crescente: o negócio clandestino tornou-se fonte fabulosa de
lucro, corrupção e crime, além de aumentar grandemente os riscos para os
consumidores com a oferta de produtos adulterados e de má qualidade. (…) A
amnésia histórica que alimenta a retórica proibicionista de converter as “drogas”
em malefício absoluto deixa de considerar que muitas delas tiveram um papel
central na configuração do mundo que atualmente conhecemos. (…) Vale notar
que publicações de divulgação científica que disseminam informações
supostamente precisas e objetivas sobre os perigos das “drogas” ilícitas não
deixam de difundir também matérias que louvam a excelência alcançada pela
produção da cachaça brasileira e sua crescente aceitação no mercado
internacional” (idem: 14-15);
74
consegue unir de novo “alimentos” e “drogas”, separar mal e “drogas” e enxergar
importâncias econômicas de todos alimentos-drogas independente de um “malefício”
inventado. Portanto, um líquido (história) é solidificado (autenticidade da união
original de “alimentos” e “drogas”) para liquidificar um sólido (união de mal e
“drogas”) e evitar líquidos (publicações científicas inconsistentes que sofrem da
amnésia proibicionista). Agora, ninguém mais vai falar mal de uma coisa e bem de
outra quando são as mesmas coisas.
75
frente a “droga”. O risco da dependência não é uma propriedade “em si” da “droga”
mas uma possibilidade in potentia em relação com os outros desejos subjetivos, uma
escolha de intensidade do relacionamento que o usuário opta na sua relação com ela.
Além de ser abastecido pelo saber superficial da ciência para criar sólidos sem criá-
los, o proibicionismo distorce a própria ciência quando ela não o serve.
Pela segunda vez, o inimigo raso da biomedicina se torna um amigo. Não mais
o saber arbitrário vestido de eternidade proibicionista que essencializa a “droga” e
automatiza o efeito da dependência através de sua força hard natural, a liquidez não-
consensual biomédica coloca a dependência e desejo no mesmo saco e revela como o
proibicionismo fez seu drible. A invisibilidade profunda das ciências humanas/sociais
se torna visível quando se coloca a instabilidade biomédica referente a agência
automática da dependência no lugar do casamento estável entre proibicionismo e
biomedicina. A liquidez biomédica é solidificada para enfraquecer sólidos
proibicionistas.
76
não danificar de acordo com uma lógica quantitativa e probabilística. “Dano” perde
seu poder separatista. Assim como a dependência parou de depender das propriedades
bioquímicas da substância psicoativa, “dano” parou de depender qualitativamente da
substância psicoativa tornando “droga” igual a um “medicamento”. Esta aliança das
ciências humanas com o “terreno das substâncias e suas propriedades farmacológicas”
mostra pela terceira vez que as ciências da saúde não são apenas o que nutre o
abafamento hegemônico do proibicionismo, mas também abastece o
antiproibicionismo arejante com a escala medida-dano.
77
consenso científico sobre a definição de “droga” e automatização da dependência,
divisão de “desejo” e dependência, separação de “medicamento” e “droga” retirando
“medida” da escala medida-dano e a suposição irracional do não-uso, também temos
os ingredientes medicalizantes e criminalizantes que contribuem ao “problema das
drogas” para erguir o monólito proibicionista. “Argumentos de base farmacológica” e
jurídica se misturam bem até atingirem a consistência necessária para criar as colunas
que sustentam o proibicionismo. Contudo, têm vezes que a “medicalização” e
“criminizalização” do “problema das drogas” não enrijecem a política proibicionista.
Eles são reagentes imprevisíveis. “Nao faltam argumentos de base farmacológica que
possam sustentar propostas de proibição ou proscrição de substâncias legais”.
Seguindo a simetrização anti-separatista que dissolve as barreiras entre alimento,
medicamento e droga, “tabaco e álcool” são igualados antiproibicionistamente usando
os mesmos “argumentos de base farmacológica” que fortaleceu o proibicionismo.
Simetrizar “drogas” lícitas com “drogas” ilícitas usando a farmacologia cria o produto
absurdo de haver substâncias que fazem mal mas não são ilícitas. Segundo a lógica
criminalizante que divide bem e mal em, respectivamente, lícito e ilícito, o que não
faz mal é legal e o que faz mal é ilegal. Mas o que acontece quando uma substância
que faz mal é legal?60 Da mesma forma, como que substâncias podem ser proscritas
que “há pouco tempo eram anunciadas e consumidas de forma massiva como
medicamentos eficazes”? Ontem “medicamentos” inúteis ao proibicionismo fazendo
bem à saúde, hoje “drogas” problemáticas produzindo automaticamente sujeitos
compulsivos. O que solidificava as colunas monolíticas do proibicionismo rói com a
mistura antiproibicionista entre “argumentos de base farmacológica” e
“criminalização”. A dissolução das fronteiras jurídicas simetrizando
farmacologicamente substâncias lícitas e ilícitas desestabiliza a estabilidade
separatista do proibicionismo. No quarto exemplo da inimizade amistosa entre
ciências da saúde e as ciências antiproibicionistas, o líquido farmacológico que
liquidificou colunas monolíticas se solidifica com a própria instabilidade
60
No Capítulo 2 vimos o argumento de Minc na Câmara de que a maconha tem um peso-dano similar
às drogas legais como tabaco e álcool para questionar sua ilegalidade está sintonizado com o
argumento usado aqui. As mesma substâncias legais são exemplificadas pelos antropólogos
antiproibicionistas de por Minc para dissolver a lógica proibicionista que distribui a legalidade e
ilegalidade de uma substância. O mesmos “mal” e “dano” das ciências da saúde, acionados pelo
proibicionismo para solidificar a separação jurídica entre substâncias, são usados pelo
antiproibicionismo em Drogas e Cultura e num evento parlamentar para desmanchar a propriedade que
legitima a separação jurídica.
78
proibicionista.
79
“produção de conhecimento” se temos o grande mais “valioso”. Como o consumo
“sempre” das substâncias psicoativas é estável na instabilidade da mudança histórica e
a “questão de drogas” “recente” é instável na instabilidade da mudança histórica, a
estabilidade “sempre” dissolve a instabilidade “recente”. Assim, o sólido drogas-mal-
recente é liquidificado com o líquido da mudança histórica, e o líquido da mudança
histórica é solidificado pelas substâncias psicoativas-sempre. Usando o ingrediente da
história instável junto ao estável “consumo de substâncias psicoativas” desestabiliza a
solidez das “drogas” por ser uma invenção “recente”.
80
discussão acadêmica e cotidiana, em favor de “substâncias psicoativas”, muito
mais preciso. Embora a expressão “substância psicoativa” não seja de todo
neutra, na medida em que também engendra um ponto de vista nitidamente
biomédico, sem dúvida, carrega menos pressupostos morais, permitindo que
haja distanciamento dos sentidos, muitas vezes contraditórios, que o termo
“droga” normalmente remete (narcótico, entorpecente, tóxico, coisa ruim etc.).
Daí já se depreendia um objeto primordial do NEIP: qualificar o debate sobre o
tema, desmistificando sua abordagem” (idem: 24)
Mas a “ciência” é uma atriz versátil. Para atingir o alvo melhor do que a
mística proibicionista “carregada” de moral, a “ciência” entra no palco
antiproibicionista para ajudar a escolher o nome do NEIP com as suas “substâncias
psicoativas” “muito mais precisas”. Diferente de sua agência científica-jurídica que
produz e negativa as moléculas criando “drogas”, a “ciência” biomédica se junta ao
antiproibicionismo pela quinta vez para ajudar na tarefa de “desmistificar” a peça
proibicionista “recente” e “carregada”. Ora amigo, ora inimigo, ora patrocinador das
“substâncias psicoativas” “sempre assim”, ora produtor-proibidor contraditório de
moléculas criando “drogas” na superfície mofada, a ciência biomédica vive entre o
antiproibicionismo “sempre” “preciso” e o proibicionismo “recentemente”
“carregado”. “Droga” “normalmente” remete à pressupostos morais deixando a
“droga” carregada, ambígua e contraditória. Falar em “drogas” é menos “preciso” do
que as “substâncias psicoativas” por não chegarem tão perto do alvo da neutralidade.
Menos carregado, menos ambíguo, mais neutro, menos pressuposto, menos moral,
mais distanciado e menos contraditório, as “substâncias psicoativas”, encenadas pela
inimiga colorida ciência biomédica, “abandonam” a mistificação “cotidiana” para
“qualificar o debate”.
81
proibicionismo não apenas como o tratamento jurídico e político que se
consolidou como resposta estatal hegemônica à questão das “drogas” no mundo
contemporâneo, mas também como toda a interdição e moldagem bélica da
pesquisa e do debate público sobre o tema” (idem).
61
Quando MinC promove a diversifição da política proibicionista ou quando Minc participa da Marcha
da Maconha, isso não é um simples interesse em legitimar individuais de consumo de drogas e nem
uma tese diferente que deve ser desqualificada como um crime. Assim como se deseja sensibilizar a
política com a diversidade e legalizar as “drogas” para que seja tratado como uma questão de saúde,
Labate, Fiore e Goulart esclarecem que o questionamento da “divisão entre substâncias líticas e
ilícitas” ou a reivindicação da necessidade de se “respeitar o princípio ético da autonomia do indivíduo
82
Para saber melhor, é preciso um poder melhor. “Drogas” acabaram tendo
propriedades proibicionistas não porque são feitas da substância “problema”, mas
porque foram feitas pelo poder proibicionista que transformaram as “drogas” num
“problema”. Se elas foram feitas de algo que não são delas, então não podem ser elas.
O “problema das drogas” não tem relação com a substância que compõe a substância.
A substância proibicionista das substâncias psicoativas ilícitas não é substancial. O
“problema” em si das “drogas” não é um ‘em si’ delas, mas um ‘em si’ transferido a
elas que não pode ser um ‘em si’ delas mesmas. O “problema das drogas” é um
problema político e não um problema das drogas. Por isso, o “questionamento da
divisão entre substância psicoativas lícitas e ilícitas” é a dissolução da solidez
proibicionista que agregou “problema” a “droga” como se fosse sua “propriedade
intrínseca”. Dessa maneira, as “substâncias psicoativas” “sempre” voltam a se
solidificar. Se as “drogas” não são mais problemáticas pela revelação da transferência
artificial de uma substância política que não é delas, o separatismo proibicionista
entre lícito e ilícito se desintegra, fazendo com que as “drogas” sejam
dessubstancializadas com a substância que não têm e reintegradas com a substância
que “sempre” tiveram. Poderes imprecisos não produzem substâncias precisas.
Portanto, o “problema das drogas” construído pelo proibicionismo separatista é
desconstruído por ser uma transferência artificial de uma essência política que não
tem nada a ver com as “drogas” em si, o em si problemático da droga desconstruído é
reconstruído com as substâncias psicoativas mais “precisas”, e a própria
desconstrução é solidificada como “denominador comum” “entre os pesquisadores”
do NEIP. Para “qualificar o debate”, é melhor abastecer as “drogas” com um poder
melhor: o antiproibicionismo.
83
força sobre os corpos com a ilegalidade das substâncias psicoativas, o “princípio ético
da autonomia” é violado com o rompimento do auto-abastecimento do corpo
individual.62 Não permitir que o indivíduo tenha um pleno pertencimento de seu corpo
é eticamente problemático. Quem tem “corpo” deve fazer o que bem quiser com ele,
“incluindo aí” consumir “substâncias psicoativas”. O corpo é do indivíduo e não
pertence, não deve ser abastecido, não deve ser dividido e não deve ser influenciado
por vias heteronômicas. Dividir o indivíduo com a política proibicionista é fazer a
independência depender.
62
Foi com o trabalho de Dumont (1993) que pude perceber os elementos de independência e auto-
abastecimento da lógica individualista presente neste “princípio ético da autonomia” dos antropólogos
antiproibicionistas. Assim, pensar a valorização da autonomia do corpo do usuário de “drogas” frente a
sua dependência à política proibicionista através do ingrediente de renúncia torna a separação da
política imanente e a união transcendente apenas com si numa agência individualista no sentido
dumontiano de indivíduo. Para mais sobre este tema, ver o Capítulo 1.
84
existência muito menos frequente do que o exagero automatizante do proibicionismo.
A separação sólida do proibicionismo é dissolvida com a alteração do mesmo
ingrediente proibicionista que realiza a separação. Antes uma arma proibicionista, a
tradução antiproibicionista da dependência produz a arma simetrizante que une todas
as substâncias psicoativas independentemente do tratamento jurídico. Políticas não
devem heteronomizar a independência individual e nem automatizar um efeito de
dependência das “drogas” que independe do lado da lei em que se encontram. As duas
dependências produzidas pelo proibicionismo são enfrentadas com duas
independências antiproibicionistas de independer da dependência-automática e da
dependência a forma de controle proibicionista.
85
construção do “problema das drogas”, desrespeito a autonomia individual, má
qualificação do debate sobre “drogas” e mistificação preconceituosa, os ingredientes
do saber proibicionista são imprecisos por eles mesmos seres apenas políticos, serem
apenas poder sem saber. Portanto, a linha de desconfiança da acusação feita ao
antiproibicionismo de ser “mera militância” é invertida para seu sentido oposto. O
saber proibicionista é só poder.
“Entre os especialistas tem sido cada vez mais consensual que as políticas de
“repressão” ou demonização do uso de drogas se mostraram historicamente
ineficazes. As propostas caminham muito mais no sentido da informação e da
educação, tornando possível para a sociedade, principalmente os jovens, um
conjunto de informações mais precisas sobre drogas e seus efeitos. (…) Neste
obra sugerimos que outra possível forma de evitação do “uso problemático” de
“drogas” – problema real que aflige a muitos, podendo trazer consequências
cruéis e muitas vezes irreversíveis – é propor um olhar diverso sobre o tema,
retirando-o do lugar de fala onde habitualmente se encontra” (idem: 29).
86
Assim, fazer pesquisas qualificadas com um “compromisso” com a precisão significa
adotar a postura transcendente de “se abster ao máximo” ao mesmo tempo que se
adota a postura imanente-extramuros de “assumir posicionamentos políticos”. Esta é a
anfibiedade intra-extramuros do antiproibicionismo: a objetividade da superação
antiproibicionista da “neutralidade” é o saber distanciado que deve “influenciar o
debate” sobre “drogas”.
forma de controle proibicionista, se “abster” do “habitual” “preconcebido” e unir saber e poder para
produzir uma objetividade – mais objetiva que a pretensão à objetividade proibicionista que não
reconhece a união de saber e poder – é a terceira independência construída pelo antiproibicionismo.
64
“Drogas” alteram e podem ou não produzir dependência como muitas ações cotidianas. Esta
desautomatização da dependência com o uso do “cotidiano” é reverberado pela reversibilidade da
dependência agenciada por Minc no Capítulo 2. Para ele, usar drogas não significa viver
automaticamente na escravidão, na perda de agência, na condição de superioridade da droga frente ao
indivíduo, em não conseguir ser dono de si mesmo. A alteração é temperada na dependência
desautomatizada e reversível porque o usuário de drogas se altera sob controle. Para mais sobre
alteração e temperança, ver o Capítulo 1.
87
probabilidade .“Pode ocorrer” assim como pode não ocorrer. As “drogas” passam a
viver sem garantias quando simetrizadas ao “cotidiano”, bem diferente do
determinismo proibicionista que garante a naturalização negativa das “drogas”.
Primeiro transcendido e depois usado na simetrização dessencializante, a dupla-face
do “cotidiano” proibicionista e antiproibicionista fornece às “drogas” o líquido
probabilizante “pode ocorrer” para liquidificar sólidos proibicionistas negativizantes.
A essencialização proibicionista é liquidificada com a transcendência do “cotidiano”
“preconcebido” junto a união de consumo de “drogas” com “várias ações cotidianas”.
A cotidianização e probabilização são os líquidos antiproibicionistas que se
solidificam por cima da essencialização proibicionista.
88
independências, desmistificação de preconceitos “carregados”, cotidianização das
“drogas” e superação do “pressuposto da neutralidade”. Estas frentes mostram que a
convocação da antropologia antiproibicionista é feita para qualificar a política de
drogas com o questionamento liquidificante de sua divisão jurídica em “drogas”
lícitas e ilícitas. Propõe-se um “olhar diverso sobre o tema, retirando-o do lugar onde
habitualmente se encontra”. O proibicionismo é desconstruído pela diversidade na
antropologia quando seus elementos de composição são identificados através da
observação de “como outros povos – distante no tempo ou no espaço – instauram
formas de controle próprias e lidam com as formas de abuso”.66 A consequência disso
é a perda da solidez da atual política de drogas para que “possamos pensar em novas
políticas para o controle e regulamentação do uso de “drogas” entre nós”. Assim, a
crítica da antropologia proibicionista é a dissolução daquilo que faz o proibicionismo
existir. A crítica está clara, mas onde está o complemento?
Para finalizar este capítulo farei uma distinção entre duas possibilidades
dilemáticas-anfíbias de politização antropológica para elucidar a postura dos autores.
A primeira é aquela adotada na abertura de Drogas e Cultura pela antropologia
antiproibicionista quando separa construção e objeto e faz a fragilidade da construção
ser mais objetiva que a solidez do objeto.67 Não há um engajamento com o objeto para
66
Análogo à análise de Geertz (1988: 102-128) sobre a antropologia crítica de Ruth Benedict que
escreve sobre outras sociedades como um comentário sobre a sua própria sociedade, a politização da
antropologia antiproibicionista aciona a diferença para transcender constragimentos locais.
67
Pensando na agência antropologia antiproibicionista como uma reação à exclusão de ficção em nome
89
criticá-lo. Ele é criticado para dizer como ele deveria ser, debunking a sua suposta
objetividade. Olhar para os elementos que construíram o proibicionismo faz ele
desmanchar. A solidez que ele supostamente tem é inconsistente. Um líquido é muito
diferente de um sólido; objetos construídos não são objetos. Assim, engaja-se com a
construção não-objetiva para desobjetivar o objeto. Acessar a fragilidade da
construção do proibicionismo rearranja o proibicionismo no formato de como ele
deve ser. Ele não é algo. Ele deve ser algo. A construção de certas verdades é
desconstruída para reconstruir as não-verdades com as verdades da desconstrução:
uma liquidificação de sólidos para solidificar líquidos.
68
Quando se vê só líquido os sólidos desaparecem. Quando se vê só sólido os líquidos desparecem.
Colocar os dois juntos faz com que um reforce o outro. O sólido é real justamente porque foi
construído em meio líquido e não porque sempre foi sólido ou nunca foi líquido. Juntar construção e
realidade transforma a questão para outro lugar: o objeto foi bem ou mal construído? Ver Latour (2005:
87-120) para mais sobre como pensar os dois juntos não estabiliza algo instável ou desestabiliza algo
estável, mas faz o acesso ao making of da produção de objetos como o locus privilegiado para entender
a inseparabilidade de artificialidade e objetividade.
90
saber-poder usando um saber-poder. Não é a construção do saber-poder proibicionista
que o desestabiliza devido a objetividade do saber antiproibicionista da não separação
de saber-poder. A objetivação do saber proibicionista só com poder afirmando só
saber não é liquidificado por ser uma construção. Ele não é menos “preciso” por não
superar seu sonho de neutralidade. A segunda possibilidade de politização da
antropologia reconstrói a construção proibicionista para mapear a sua estabilidade
instável engajando-se com a sua objetividade construída. Ela é um saber-poder
antiproibicionista que dedica um espaço de representação para a construção sólida do
saber-poder proibicionista.
Não pretendo resolver isto aqui. Qualquer uma das politizações pode encontrar
a sua eficácia e apenas experimentando e prestando atenção nos resultados que se
observará qual se aproximou mais a aquilo que se deseja cumprir. Não é tudo uma
questão de performance onde o conteúdo performado perde o seu valor. A minha
questão é de mapear os conteúdos e como eles são performados. Por isso, eu adoto
elementos relativistas da segunda politização para analisar a elementos da primeira. O
91
conteúdo antiproibicionista performado é a proposta de complemento crítico do
proibicionismo que subtrai para adicionar. Não optei por subtrair a subtração
adicionante de Drogas e Cultura estereotipando ela de “mera militância em busca de
legitimidade política”. Discordo daqueles que adotam a segunda possibilidade de
politização para criticarem o tipo visto na apresentação de Drogas e Cultura alegando
um comprometimento de objetividade. Fazer ciência e política ao mesmo tempo só
compromete a objetividade quando se purifica a ciência da política depois de misturá-
las. Quando Bartolomé, citado por Fleischer (2007: 51), valoriza o engajamento com
o objeto para não enfraquecer a análise, quando Geertz (1988: 6) promove o
envolvimento com o objeto para evitar preconceitos e quando Latour (2005) valoriza
a participação nas atividades construtivas dos atores para reconhecer os processos de
estabilização e desestabilização e evitar a ‘sociologia crítica’, suas politizações
relativistas não permitem relativizar a objetividade das agências não-relativistas de
antropólogos antiproibicionistas. Eles não acusariam os antropólogos
antiproibicionistas de serem “meros militantes”, mas não reconhecem a solidez de
suas liquidificações solidificantes devido a ausência de engajamento relativista com o
objeto. Portanto, o problema da segunda politização é a acusão de fraqueza analítica e
objetividade comprometida de antropólogos politizados devido à ausência de
relativismo com o objeto. Se tudo tem quer ser relativizado como uma questão de
objetividade e de política, então até quem não relativiza tem que ser relativizado. A
estratégia de set the record straight (Clifford, 1986: 18) não é uma contradição
antropológica quando prefere dissolver do que relativizar.
92
solidificante para contribuir com outra configuração dilemática-anfíbia da politização
da antropologia, pude perceber a presença do Estado agindo na antropologia. Assim, a
disputa em torno da política de drogas não é apenas uma disputa política, mas também
uma disputa antropológica entre autoridades de seus saberes. Depois de estudar a
politização da antropologia no estudo sobre drogas, percebi que estudar drogas na
antropologia já é uma politização pela topografia minada que caracteriza o atual
momento político.
Conclusão
93
caderninho. Mesmo sendo fascinante e crucial para esta monografia, a minha intenção
inicial não era estudar a politização da antropologia antiproibicionista, mas de
etnografar o Proerd. Infelizmente, por prazos e limites de tempo, decidi não incluir o
Proerd aqui. Pretendo, assim, reutilizar o material que já coletei em produções
acadêmicas futuras.
Outro elemento que eu gostaria de ter incluído neste trabalho era um estudo
minucioso das Ligas de Temperança, o movimento que se aliou às autoridades
políticas estadunidenses no começo do século XX e contribuiu na implementação da
famosa Lei Seca. As minhas deduções da temperança e alteração como dados e
teorias a partir do estudo de Dumont (1993) poderiam ter sido enriquecidas com
outras fontes onde a temperança e alteração se encontravam, como, por exemplo, nas
Ligas de Temperança. Além das Ligas de Temperança, gostaria de ter explorado mais
o trabalho de Marras (2008). Dentro de praticamente todo o material antropológico
que li sobre drogas, Marras foi o que mais coincidiu com a minha valorização das
noções de dependência, independência, alteração e temperança para o estudo sobre
drogas. Igualmente, um estudo promissor para um estudo sobre drogas está na
comparação do conceito de dependência com a noção de escravidão. O próprio
Dumont (idem) faz esta sugestão quando compara a escravidão nos primeiros cristãos
e a escravidão nos modernos usando as suas categorias do individualismo para pensá-
los. Considerando dependência e escravidão como perda de agência numa situação
hierarquicamente inferior, a comparação entre eles poderia enriquecer a forma como
se pensa dependência e drogas.
94
caminho para a verdadeira transformação do pensamento substancial para o
pensamento relacional. Ainda temos que trabalhar para saber como que estudar as
drogas pode implicar numa mudança radical da ciência, sociedade, enfim, de nós, com
o triunfo do Relacional.
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