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1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: Governamentalidade e Segurança

João Pessoa/PB – 2014

GT 8: Arte, cultura e informação: narrativa, linguagem e subjetivação

UMA NARRATIVA ARTÍSTICA DO CRIME: O FILME ÚLTIMA PARADA 174 E A


NATURALIZAÇÃO DA DELINQUÊNCIA 1

Giscard Farias Agra 2

Resumo

No presente ensaio pretendo analisar o discurso de delinquência construído em torno do


personagem Sandro do Nascimento, protagonista do filme Última Parada 174 (Bruno Barreto,
2008). Assim, pensando com Michel Foucault, analisarei como a narrativa cinematográfica se
apropria do acontecimento real ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2000, para
transformá-lo numa narrativa determinística que, apesar da intenção de denunciar as
condições sócio-econômicas de exclusão dos grupos marginalizados na sociedade, acaba por
naturalizar e atualizar o discurso conservador e burguês do século XIX de que o crime
cometido pelo personagem principal consistia no resultado da ineficácia das instituições
docilizadoras sobre a formação do sujeito. Analisarei, portanto, os sentidos atribuídos ao
evento na sua construção como obra cinematográfica, pensando o impacto da circulação desse
tipo de discurso na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema. Discurso. Delinquência.

INTRODUÇÃO

O filme Última Parada 174, lançado no ano de 2008 e dirigido por Bruno Barreto,
narra a história de Sandro Barbosa do Nascimento, que ficou conhecido nacional e
internacionalmente no dia 12 de junho de 2000, ao tomar de assalto um ônibus municipal do
Rio de Janeiro, da linha 174, e fazer onze passageiros do coletivo reféns por cerca de quatro
horas. O sequestro, que foi acompanhado e transmitido ao vivo por várias emissoras
brasileiras e algumas estrangeiras, foi finalizado com uma ação desastrada do Batalhão de
Operações Policiais Especiais (BOPE), em que uma refém acabou baleada, vindo a falecer em
seguida, e o próprio Sandro, após detido, foi asfixiado até a morte na viatura policial que o
levava preso.

1
Trabalho preparado para apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: governamentalidade e
segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014.
2
Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
gfagra@yahoo.com.br
Apesar de baseado em fatos reais, o filme dirigido por Bruno Barreto não pode ser
visto como retrato fiel dos acontecimentos. Inicialmente, porque nenhum relato ou documento
realmente garante uma reprodução real dos eventos dos quais eles tratam, sendo apenas
representações dos mesmos: imagens produzidas acerca dos eventos, das pessoas e de suas
práticas. A representação, portanto, enquanto presentificação de uma ausência, ou seja,
enquanto maneira de vivificar o que já está morto, tornar presente o passado (CHARTIER,
1990), constrói uma certa imagem sobre o acontecido, imagem produzida a partir de uma
série de interesses que informam os elaboradores na consolidação de uma maneira de
representar, ou apresentar, o real.

No caso em pauta, essa representação do evento se dá por meio da construção de


uma apresentação cinematográfica, cujo discurso não se pretende estar limitado e restrito ao
suposto real, mas pautar-se na verossimilhança, na pretensão de produzir um discurso que seja
crível e tenha sido baseado naqueles enunciados que foram social e ideologicamente
convencionados enquanto verdadeiros.

Por outro lado, o cinema trabalha não apenas com o discurso oral, através das
falas que são passadas pelo seu roteiro, mas também com discurso imagético, com imagens
que são dispostas na tela favorecendo a construção de certas subjetividades no telespectador
que fazem parte do próprio discurso produzido pelo filme.

No presente ensaio, realizo uma breve imersão no filme Última Parada 174, a fim
de analisar a produção discursiva que este filme elabora acerca da figura do Sandro do
Nascimento. Com isto, pretendo analisar como, apesar de pretender denunciar as condições
sócio-econômicas de exclusão dos grupos marginalizados na sociedade, que conduziriam
esses grupos a condições subumanas de vida diante das quais a criminalidade seria uma
escapatória quase certa, o filme acaba por acaba por naturalizar e atualizar o discurso
conservador e burguês do século XIX de que o crime cometido pelo personagem principal
consistia no resultado da ineficácia das instituições docilizadoras sobre a formação do sujeito.
Analisarei, portanto, os sentidos atribuídos ao evento na sua construção como obra
cinematográfica, pensando o impacto da circulação desse tipo de discurso na sociedade.

1. DO ACONTECIMENTO À CRIAÇÃO DO EVENTO

A história de Sandro do Nascimento tem sido contada como estando intimamente


atrelada ao sequestro do ônibus 174 naquele fatídico dia de junho de 2000. Até aquele
momento, Sandro era um desconhecido para a grande maioria das pessoas. Poucos sabiam que
ele havia sido uma das crianças que, sete anos antes, sobrevivera à chamada chacina da
Candelária, em que policiais militares foram responsáveis pelo massacre de oito moradores de
rua, seis menores e dois maiores de idade, próximo à Igreja da Candelária. Muito menos
sabiam da morte trágica de sua mãe, treze anos antes, testemunhada por ele, em que Clarice
Rosa do Nascimento foi degolada durante um assalto ao seu comércio.

No momento em que emergiu de maneira midiática a ação criminosa de Sandro,


os holofotes viraram-se para ele. Aquele que era apenas um, dentre muitos outros, anônimos
na sociedade capitalista, no burburinho urbano das movimentadas e barulhentas ruas dos
grandes centros, veio à tona e destacou-se pelo seu crime cometido. O sequestro do ônibus
individualizou Sandro do Nascimento, e, ao fazê-lo, ligou-se umbilicalmente à sua própria
história.

A devassa sobre a vida de Sandro que ocorreu logo em seguida à sua morte
revelou eventos ligados à vida daquele rapaz brutalmente interrompida aos 21 anos de idade.
Origem humilde na favela do Rato Molhado; infância marcada pelo abandono do pai e pelo
assassinato da mãe; tornou-se morador de rua, usuário de drogas e passou a cometer pequenos
furtos; escapou da chacina da Candelária; ficara apreendido em uma instituição para menores
infratores, bem como, já maior de idade, fora preso, condenado por furto e por roubo a mão
armada. Esses eventos passaram a ser veiculados pela mídia de maneira geral como degraus
de uma escada a qual Sandro vinha subindo e que levariam necessariamente ao sequestro do
ônibus 174. A união de todos aqueles eventos deveria explicar o crime cometido, as razões
humanas que levariam um sujeito a trilhar tal marcha ascensional ao delito.

Dois anos após o evento, o documentário dirigido por José Padilha, Ônibus 174
(2002), reuniu uma série de entrevistas para compreender o ocorrido no evento do ônibus.
Foram entrevistados tanto pessoas que conheciam pessoalmente Sandro do Nascimento,
dentre familiares e amigos das ruas, quanto reféns do sequestro do ônibus e policiais militares
e membros do BOPE ligados à operação daquele fatídico dia. O documentário, cujo teor é de
denúncia às miseráveis condições sociais em que vive grande parte da população do Brasil, ao
despreparo psicológico e ao não incentivo financeiro com que os policiais militares são postos
nas ruas e ao grande silenciamento e invisibilidade com que cotidianamente tratamos essas
questões até que elas explodam em atos brutais, como no caso do ônibus. O filme de Padilha,
por sua vez, é grande reflexo desse método regressivo, como diria Marc Bloch, em busca das
causas geradoras do evento (BLOCH, 2001): a película está o tempo todo trabalhando com
idas e vindas, deslocando a sua narrativa entre o momento do sequestro do ônibus e eventos
passados que possibilitariam compreender o complexo desastroso em que aquele
acontecimento resultou. O ir e vir narrativo com o qual o filme de Padilha trabalha, portanto,
possibilita perceber como o próprio discurso do filme escolhe o momento do sequestro do
ônibus como central, como ponto de entrelaçamento em uma série de acontecimentos que se
alastrava há tempos e que eclode naquele ato criminoso.

O filme de Bruno Barreto, por outro lado, utiliza-se de outro tipo de narrativa, a
linear. Apesar de o próprio diretor ter afirmado que muito do roteiro de seu filme ter sido
produzido a partir do documentário de Padilha, várias coisas foram alteradas entre a história
do Sandro de Ônibus 174, e a história do Sandro de Última Parada 174.

Este último filme, por exemplo, não centra mais a sua narrativa no sequestro do
ônibus, que, se tomou toda a narrativa do documentário de quase duas horas de Padilha, no
filme de Barreto é retratado em breves dez minutos de película. O filme de Barreto, portanto,
centra a sua narrativa não no ônibus e, portanto, na morte de Sandro, mas privilegia a
narrativa sobre a vida deste, mostrando, de forma progressiva, como vários eventos foram se
sucedendo no biográfico do sujeito, tornando-se, assim, o seu crime mais famoso meramente
um resultado de seu próprio biográfico.

É justamente essa relação “natural” que se estabelece entre o crime e o biográfico


do sujeito que Michel Foucault chamará de construção da delinquência, ação realizada a partir
do complexo discursivo de poder que se instaura com a imersão social dos enunciados
produzidos no sistema prisional. Para o autor, o delinquente “se distingue do infrator pelo fato
de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza”.

Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a


responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta
formação transparece na investigação biográfica. [...] O delinqüente se
distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato
(autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e
consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios
complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). (FOUCAULT,
2005, p. 211)

Para Foucault, portanto, o delinquente constitui uma espécie de naturalização da


criminalidade. O delinquente não era meramente um infrator, ou seja, o sujeito consciente
que, por meio de uma ação ou omissão, realizou um certo ato criminoso. O delinquente seria
algo além: o crime cometido por este não teria o aspecto de eventualidade, mas ele seria
consequência de uma série de fatores que estariam em torno do sujeito, que caracterizariam a
sua vida, biológica ou social, e que produziriam, como resultado, o ato criminoso. Em vez de
eventual e excepcional, portanto, o crime seria o produto de uma série regular de
acontecimentos que teriam marcado a vida individual do sujeito e deixado nele o “germe da
criminalidade”.

O filme Última Parada 174, portanto, parece naturalizar Sandro como um


deliquente, no sentido em que se volta para a vida do personagem e seleciona alguns
acontecimentos diretamente atrelados à percepção de que foram eles que foram construindo,
passo a passo, degrau a degrau, o caminho que iria levar Sandro àquele fatídico dia de junho.

2. CAMINHO PARA A PERDIÇÃO: O INDÓCIL SANDRO DO NASCIMENTO

Os eventos biográficos que o filme recorta para narrar sobre Sandro do


Nascimento, entretanto, não estão também completamente descompromissados de uma
perspectiva ideológica e cultural que se impõe em nossa sociedade ainda hoje.

Os vários acontecimentos que marcaram a vida do sujeito histórico foram


dispostos em uma série progressiva, forçando-se o estabelecimento de certas ligações entre
eles a fim de proporcionar entre eles relações de causa/efeito e, desta maneira, significar da
mesma forma a relação biográfico/crime.

Os eventos de que trata o filme, portanto, atendem à percepção de que Sandro foi
paulatinamente sendo excluído ou mesmo fugindo das várias instâncias que a sociedade
dispõe para um “bom caminho”, instâncias de produção de “cidadãos corretos”, de membros
da sociedade civil. A delinquência de Sandro, desta maneira, viria justamente dessa sua
exclusão do sistema oficial, desse seu perambular pelas margens, da sua não conformação aos
institutos de adestramento e docilização.

Novamente, remeto-me a Michel Foucault ao trabalhar alguns desses institutos


disciplinares de docilização, tais como a família, a escola, o hospital, o exército e a prisão.
Aqui, enfocarei detidamente os dois primeiros.

A primeira cena do filme em que Sandro aparece é justamente quando ele, ainda
criança, é alertado que o comércio de sua mãe está sendo assaltado. Acorrendo para lá, o
garoto, após esbarrar em uma mesa e derrubar um copo, que se estilhaça quando encontra o
chão, depara-se com o corpo da mãe, no solo, banhado em sangue, já sem vida. Esta é a
primeira exclusão que Sandro tem com relação à instituição familiar, a subtração violenta da
mãe de sua vida.

Passando a morar com a sua tia, Sandro, demonstrando certos sinais do trauma
sofrido com a morte da mãe, não se acostuma no novo espaço, nem mesmo é bem recebido
pelo marido da tia. Num certo momento, quando deveria ir à escola, toma uma embarcação
em direção a Copacabana, abandonando, definitivamente, a casa da tia, a qual, nesta narrativa,
jamais voltaria a rever. Esta é a segunda exclusão da instituição familiar, o abandono da casa
dos parentes.

Tornando-se morador de rua, Sandro passa a conviver com várias outras crianças
que habitavam as localidades próximas da Igreja da Candelária. As relações estabelecidas
com essas outras crianças, com as quais aprende a viver na rua, a drogar-se, a furtar, a
sobreviver, enfim, constroem espaços de sociabilidade que Sandro perdera há muito com a
morte da mãe. A ajuda mútua e a fraternidade estabelecida com essas outras crianças
substituem o espaço familiar que o garoto não mais possuía. O que ele aí aprende, entretanto,
está à margem da legalidade. Nesta nova realidade, Sandro é submetido a pequenos crimes, à
violência, ao uso de drogas, à vida sexual etc.

O massacre de oito desses jovens na chacina da Candelária, portanto, consiste em


mais um golpe de brutal violência contra aqueles que Sandro considerava como sua família.

Há, ainda, uma última tentativa de construção de uma instituição familiar que,
entretanto, também deságua em decepção para o jovem: crendo ser Sandro o seu filho,
retirado de seus braços quando ainda bebê, a personagem Marisa abriga-o em sua casa e passa
a tratar-lhe como verdadeiro filho, a contragosto de seu marido, Jaziel, pastor de um Igreja,
que vê nele apenas um criminoso pronto a, a qualquer momento, roubar-lhe o lucro da Igreja.
A família que Sandro tenta construir, entretanto, consiste em uma mãe enganada, uma
namorada prostituta e um amigo homicida. A instituição não se sustenta sob os moldes da
disciplinarização planejada para existir e docilizar os corpos: a namorada se deita com o
amigo; a mãe o rejeita, não quer “saber de filho bandido”. A instituição familiar dá o seu
último suspiro. Sua ineficácia está atestada.

A segunda instituição disciplinar que falha, segundo a narrativa do filme, é a


instituição escolar. O filme fala abertamente muito pouco desta instituição. Parece ter se
restringido aos primeiros anos de Sandro, quando sua mãe ainda estava viva, e aos primeiros
meses de sua habitação na casa da tia. Quando foge para Copacabana, Sandro jamais retornará
para uma sala de aula. A instrução formal, portanto, pelo discurso do filme, poderia ter levado
o sujeito a adequar-se às normas que regem a sociedade e a disciplinam; a sua ausência,
entretanto, parece ter contribuído à exclusão de Sandro. Muito representativa é a imagem em
que o garoto, já na embarcação, deixa o caderno cair na Baía, desaparecendo em meio à água:
afunda, ali, a segunda instituição disciplinar que poderia ter docilizado Sandro nas normas
oficiais.

A falta de instrução formal, entretanto, continua sendo evocada em várias outras


passagens do filme, o que nos leva a perceber a relevância que a narrativa atribui à mesma.
Sandro se mostra por várias vezes avesso à própria ideia de aquisição de cultura letrada. Nos
momentos em que Soninha, sua namorada, ou “tia” Walquíria, da ONG, afirmam que ele
deveria aprender a ler e escrever, para poder registrar os seus “raps”, ele afirma que “se
escrever não inventará outros”.

Compreendo, entretanto, de forma mais profunda essa aversão à palavra escrita


pela personagem. O escrito, como sabemos, é uma forma de fixar uma informação. A
positivação dos símbolos gramaticais gera, desta maneira, necessariamente uma estabilidade.
A palavra escrita é uma palavra que perdura e, por assim dizer, que permanece, que é
localizável e, portanto, identificável. A palavra oral, por sua vez, é fluida, é móvel, é
dinâmica.

Sandro é construído pelo filme como um personagem sem bases fixas. As diversas
modificações que se sucederam em sua vida o tornaram um nômade, sem lugar estável. Suas
bases são instáveis, sua situação muda o tempo todo. Até mesmo o seu nome é passível de
constantes mudanças: durante a maior parte do filme, Sandro é chamado de “Alê”, em
decorrência de sua semelhança com Alessandro, “Alê-Monstro”, imediatamente identificada
quando o garoto se junta aos demais meninos de rua da Candelária. “Sandro”, “Alê”, “Alê da
Candelária”, “Alê-Beijo”, “Sérgio” são os vários nomes com os quais o mesmo personagem é
conhecido nos diversos espaços por onde transita.

A instabilidade nos nomes, assim, é meramente um reflexo na própria


instabilidade do sujeito, de sua recusa em fixar uma identidade estável para si. O letramento,
portanto, submeteria o sujeito a construir espaços de fixação, de estabilidade – seja de
símbolos gráficos, de palavras, de seus raps, de seu nome, de sua identidade.
É essa multiplicidade de identidades, essa pluralidade de espaços ocupados que
faz a situação de Sandro parecer ser tão preocupante. É essa mobilidade, essa recusa por fixar-
se, que o torna tão perigoso. A fixação em um ponto, assim, que possibilitaria a sua
previsibilidade e, portanto, sua governabilidade, poderia se dar com a instrução formal, com o
seu letramento, a consolidação de uma identidade, a percepção de um ser integrado. Mas sua
recusa à docilização, sua recusa em assumir uma única identidade, torna-o alguém
ingovernável.

O copo despedaçado me parece uma verdadeira metáfora desse estilhaçamento


identitário, dessa multiplicidade, dessa negação do todo integrado, mas da percepção de
fragmentos isolados, de cacos separados. A quebra de uma visão homogênea de si,
representado pelo primeiro copo quebrado, segundos antes de ver a mãe morta no chão,
implica o início do distanciamento de Sandro com relação às regras da sociedade estatal, que
exigem a construção e a consolidação de identidades fixas e estáveis, mais facilmente
governáveis.

O segundo copo quebrado, por sua vez, representa a rememoração daquele


primeiro momento, quando houve o distanciamento das regras da sociedade, quando houve a
destruição da identidade integrada num todo supostamente coeso, que seria produzida através
do adestramento nas instituições familiar e escolar das quais, até aquele momento, Sandro
ainda participava. Se o primeiro copo quebrado marca o momento inicial do estilhaçamento
de Sandro, o segundo copo o remete àquele momento, antecipando, também, uma nova
destruição, agora não mais identitária, mas física.

Desta maneira, Sandro é construído como alguém que foi privado e abandonou as
duas primeiras instituições docilizadoras que o adestrariam nas regras sociais, a família e a
escola. Em virtude dessas exclusões, a família e a escola com as quais o garoto passou a ter
contato foram as que viviam à margem da sociedade. O adestramento aí recebido, por sua vez,
introduziu-o no mundo das drogas, do sexo, do tráfico, da violência, do espetáculo.

Ainda assim, seu adestramento foi incompleto. O filme narra a trajetória de


Sandro como sendo um caminho que progressivamente o levará ao sequestro do ônibus, como
resultado de todo esse biográfico acima analisado. Entretanto, o filme, ao longo de toda a sua
narrativa, mostra como Sandro não possuía uma índole assassina. O homicídio que veio a
cometer o fez apenas em virtude da ação desastrada do BOPE.
Diferentemente de Alessandro, ou Alê Monstro, o alter ego de Sandro, que
matava sem nenhuma relutância, pois fora assim ensinado desde criança por Meleca, que
acabou sendo a figura paterna para o garoto, Sandro sempre hesitava nas oportunidades que
tinha de matar alguém. Sandro, portanto, não estava nem completamente adestrado nas
normas sociais, nem plenamente adestrado nas margens da sociedade. Não possuía o
temperamento de Alessandro, verdadeiro filho de Marisa, retirado dos braços dela ainda
criança e educado por um traficante que o ensinou a ter “ódio no coração”. Sandro é mostrado
como alguém cujos eventos que se sucederam em sua vida o levaram ao deslocamento, a
reinvenções de si, a mutações, a transformações, mas que não o tornaram assassino até o
último momento de sua vida.

Alessandro, por sua vez, completara esse trajeto há mais tempo. Sandro ficara no
meio do caminho, no meio termo, no meio nome.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do caráter de denúncia social que o filme tenta impingir, percebo


claramente como ele trabalha com uma naturalização de um discurso muito frequentemente
circulado pela mídia: que a ausência das instituições docilizadoras na vida dos sujeitos levará
os mesmos ao caminho da marginalidade.

No presente ensaio, demonstrei como o filme Última Parada 174 em muito


contribuiu para a percepção de que o sequestro se deu como resultado de uma vida de
exclusões e de pequenas violências, que foi fruto desse biográfico tão tumultuado pelo qual
passou Sandro do Nascimento. Os eventos tratados pelo filme, dispostos na sequência como
se encontram – assassinato da mãe, fuga da família, moradia nas ruas, uso de drogas, vida
sexual infantil, chacina da Candelária, restrição de liberdade, furtos, vida amorosa tumultuada
etc. – constroem uma relação causal entre esses eventos e o sequestro do ônibus 174. Este
parece vir como resultado natural daquela série. Sandro, portanto, torna-se um delinquente,
afinal, o seu crime estava intimamente ligado aos eventos ocorridos em sua vida.

Tal relação, entretanto, é uma relação meramente estética, construída, uma


disposição aleatória de eventos encaixados numa série para forjar a relação causa/efeito,
construir-se uma verdade. Nesta sequência teleológica, que tem como ponto de partida o
crime, e como objetivo revelarem-se os eventos anteriores a ele que seriam seus causadores
diretos, o sentido de causalidade é ficcionalmente produzido pelo enunciador, neste caso, pela
maneira como o filme é dirigido e a partir de quais imagens ele relata o evento. Imagens,
estas, que chegarão ao grande público por meio da distribuição do filme, levando ainda mais a
uma naturalização de certos conceitos e preconceitos construídos social e historicamente.

REFERÊNCIAS

AVELINO, Nildo et VACCARO (orgs.). Governamentalidade e segurança. São Paulo:


Intermeios, 2014 (Coleção Contrassensos).

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações [trad. Maria


Manuela Galhardo]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio. 3 ed.


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MORETTIN, Eduardo Victorio. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”.
História: Questões & Debates. n. 38. Curitiba: Editora UFPR, p. 11-42, 2003.

ÔNIBUS 174 (Bus 174). Direção: José Padilha e Felipe Lacerda. BRA: 2002. Zazen, 1 DVD
(150 min.), son., color., doc.

PEREIRA, Ione A. M. Castilho et KARAWEJCZYK, Mônica. “O filme como fonte histórica


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Disponível: http://www.historiaimagem.com.br/edicao7setembro2008/filmefontehist.pdf.

RAMALHO, Sérgio. “Após 20 anos, os culpados da Chacina da Candelária estão livres”. O


Globo. Julho/2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/apos-20-anos-os-culpados-
da-chacina-da-candelaria-estao-livres-9118606. Acesso em: 10 jun. 2014.

ÚLTIMA parada 174 (Última parada 174). Direção: Bruno Barreto. Intérpretes: Michel
Gomes, Chris Vianna, Marcello Melo Júnior. BRA, FRA: 2008. Moonshot Pictures, 1 DVD
(104 min.), son., color., drama.

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