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Jô Gondar
Revista Morpheus
A
memória é inexplicável”, escreve Virginia Woolf em Orlando.
Se não podemos nem mesmo defini-la, como esgotá-la com
explicações? Foi isso que procuramos mostrar num artigo
anterior, quando escrevemos “Quatro proposições sobre a memória
social” (GONDAR, 2005). Apresentamos então duas razões que im-
possibilitavam a formulação de um conceito de memória em moldes
clássicos, de maneira simples e unívoca. A primeira é que um conceito
costuma nos dizer o que alguma coisa é, no presente, no passado e no
futuro, a despeito de qualquer mudança. A memória, contudo, nunca
é: na variedade de seus processos de conservação e transformação, ela
não se deixa aprisionar numa forma fixa ou estável. A memória é, si-
multaneamente, acúmulo e perda, arquivo e restos, lembrança e esque-
cimento. Sua única fixidez é a reconstrução permanente, o que faz com
que as noções capazes de fornecer inteligibilidade a esse campo devam
ser plásticas e móveis.
Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, v. 9, n. 15, 2016.
20 Este ensaio é uma versão ampliada e modificada do que apresentamos
em 2005. Nossas quatro proposições sobre memória social transforma-
POR QUE MEMÓRIA SOCIAL?
ram-se em cinco: uma delas foi descartada, duas são inteiramente novas
e a última sofreu alguns acréscimos. Mantemos aqui o desejo de per-
sistir no inacabamento conceitual da memória. É justamente por não
poder defini-la e explicá-la, que insistimos em pensá-la.
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cada uma dessas disciplinas possam atravessar suas fronteiras, fazendo 21
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contemplado por nenhuma delas. Uma nova esfera de problemas sur-
ge, por exemplo, quando o cientista social, o historiador ou o muse-
ólogo fertilizam sua esfera de conhecimento com questões referentes
à subjetividade; ou quando o linguista, o filósofo ou o psicanalista se
interrogam sobre a constituição dos laços sociais ou sobre a inteligência
artificial. Nesses momentos, torna-se necessária a produção do conceito
de memória social, pois um conceito não surge do nada, e tampouco é o
ápice de uma história linear cujo progresso ou aperfeiçoamento exige a
sua definição, como se ele existisse em estado larvar desde o início dos
tempos. Um conceito é uma tentativa de responder a um feixe de pro-
blemas que se construiu, de maneira contingente, em um determinado
momento. Se as condições fossem outras, ele não emergiria.
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22 beres deve ser democrático: busca-se o diálogo, admite-se a paridade dos
participantes e procura-se dar ao debate o horizonte do consenso. Evi-
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social sob perspectivas distintas, como se a cada uma delas coubesse 23
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ser invadidos e transpostos pelo fato de não pertencerem, de fato, a
ninguém – mesmo que pertençam por direito. A memória social, como
objeto de pesquisa passível de ser conceituado, não pertence a nenhuma
disciplina tradicionalmente existente, e nenhuma delas goza do privilé-
gio de produzir o seu conceito. Esse conceito se encontra em construção
a partir dos novos problemas que resultam do atravessamento de disci-
plinas diversas. Não se trata aqui de deduzir problemas valendo-se das
teorias já vigentes, mas, inversamente, de inventar novos problemas
que, por consequência, produzirão novas teorias e conceitos. Como os
problemas não param de surgir, no campo da memória social o concei-
to está sempre por ser criado: é um conceito em movimento. Por esse
motivo, ele jamais poderá se configurar em uma definição estanque e
unívoca, já que, em razão de sua própria condição transversal, sofre um
permanente questionamento.
Até aqui tratamos da memória social em sua relação com o campo dos
saberes e dos discursos. Vamos trabalhá-la agora na esfera da prática,
pois um conceito não deve ser confundido com uma ideia geral ou abs-
trata; ele expressa um mundo possível (DELEUZE; GUATTARI, 1992),
trazendo consequências para a vida que se leva e se pretende levar. É
sobre isso que versa nossa segunda proposição: memória social é um
conceito eminentemente ético e político. Temos aqui outro ponto capaz
de trazer mais um complicador quanto à questão da diversidade de sig-
nificações que a memória comporta.
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24 diferentes, isso não quer dizer que elas sejam equivalentes. Qualquer
perspectiva que tomemos será parcial e terá implicações éticas e políticas.
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a lembrança/documento, não revelaremos nenhuma verdade escondida 25
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aposta a partir da qual nós a conservamos, escolhemos e interrogamos.
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26 de estrangeiros, à invasão de outros hábitos e costumes, Platão se vê
diante de uma tradição que perde progressivamente o seu vigor, impos-
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bitamos” (NORA, 1993, p. 14). Nora lastima a perda de uma “memória 27
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ou arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo”,
em prol da nossa, “que é só história, vestígio e trilha” (NORA, 1993,
p. 8). Numa argumentação construída a partir de oposições – memó-
ria viva e memória de prótese, lugar e meios, memória e esquecimento,
memória e história –, o historiador francês nos apresenta uma solução
indenizatória, centrando-se na ideia de que as referências ou os modos
de vida perdidos seriam os melhores ou os mais certos. Nesse sentido,
seu argumento segue uma linha platônica. No século III, Plotino já havia
escrito, condensando a doutrina da reminiscência: “A recordação é para
aqueles que esqueceram”. Os lugares de memória talvez possam ser si-
tuados da mesma maneira.
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28 Uma segunda crítica pode ser realizada a este tipo de leitura do con-
temporâneo, agora de cunho mais estritamente político. A perda la-
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mentar ou tentar escapar do esquecimento – enfim, vê-lo enquanto um 29
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da nossa cultura, dicotomia essa que neutraliza e elide a dimensão po-
lítica de toda memória. Pois esquecer é um ato que se encontra invaria-
velmente presente em qualquer construção mnemônica. Para que uma
memória se configure e se delimite, coloca-se, antes de mais nada, o pro-
blema da seleção ou da escolha: a cada vez que escolhemos transformar
determinadas ideias, percepções ou acontecimentos em lembranças, re-
legamos muitos outros ao esquecimento. Isso faz da memória o resultado
de uma relação complexa e paradoxal entre processos de lembrar e de
esquecer, que deixam de ser vistos como polaridades opostas e passam
a integrar um vínculo de coexistência paradoxal.
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30 ideia de que esta poderia ser inextinguível. Das tábuas de cera, passan-
do pelos pergaminhos até chegar à letra impressa, foi se constituindo
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A disciplina memória social se instituiu a partir da oposição entre lem- 31
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ples entre esses elementos e fez dela um ponto de partida, ao passo que
Pierre Nora sofisticou os opostos ao situá-los numa relação dialética, cuja
síntese seria o conceito de “lugares de memória” – síntese que funciona-
ria como compensação pela perda ou pelo lugar concedido ao inimigo. A
era digital, contudo, coloca em jogo uma outra relação entre lembrar e
esquecer: não mais uma oposição simples nem tampouco uma oposição
dialética, mas o borramento da linha clara que os distinguia, de forma
que os dois processos passam a se apresentar numa relação de coparti-
cipação e convivência paradoxal. Desse modo, se fazemos a pergunta – a
escrita digital seria ainda um meio de memória ou deveríamos conside-
rá-la um meio de esquecimento? –, teremos que responder: ambos. A
construção de uma memória digital, por ser continuamente sobrescrita,
implica o esquecer e o recordar, numa relação em que os dois coexistem
sem qualquer possibilidade de síntese, mas inseparáveis.
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32 pria representação, mas também para ser percebida da maneira como
quer ser percebida pelos outros” (POLLAK, 1992, p. 204). Porém, uma
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sido submetida a humilhações. Um bom exemplo reside na memória 33
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nialismo europeu, não há nela vestígios do tráfico negreiro organizado
pelos árabes, que teria transformado em eunucos milhares de cativos
do Sudão e de Gana. Uma sociedade pode se lembrar daquilo que ela
representa como injustiça do outro, mas não daquilo que ela representa
como desonra, pois nesse caso estaria comprometida a imagem que ela
constrói para si própria.
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34 em objetos de consumo de um mercado global. “Qualquer proposta de
comunidade isolada, definida em termos raciais, religiosos ou regionais,
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[...] protegidas por fronteiras fixas, está destinada a acabar como uma
espécie de gueto”, advertem Negri e Hardt (2001, p. 230). E essa distri-
buição em pequenos guetos só facilitará o seu controle pela lógica atual
do mercado, que funciona pela “administração da diversidade” .
Mas não haveria uma forma de pensar as identidades para além das fron-
teiras que as preservam? Esta é a proposta de Glissant, ao distinguir o
que ele chama de identidade raiz e identidade rizoma. “A raiz única é
aquela que mata à sua volta, enquanto que o rizoma é a raiz que vai ao
encontro de outras raízes. Apliquei essa imagem ao princípio da iden-
tidade, e o fiz também em função de uma [...] divisão de culturas en-
tre culturas atávicas e culturas compósitas” (GLISSANT, 2005, p. 71). A
questão das fronteiras e do território é fundamental para essa distinção:
as culturas ocidentais teriam veiculado no mundo a ideia de atavismo ou
de identidade raiz, reivindicando uma espécie de permanência no tem-
po, uma legitimidade a ser preservada e um território a ser mantido ou
ampliado. Entretanto, esse quadro identitário de pensamento, denomi-
nado por Glissant de pensamento de sistema, não fornece mais a com-
preensão do que ocorre hoje nos contatos e nos conflitos de cultura. Ele
defende a tese de que atualmente “o mundo se criouliza”, isto é, todas as
culturas se colocam em contato, permutam-se e se transformam de ma-
neira imprevisível, processo diferente de uma mestiçagem, pois nessa os
resultados já se encontram previstos. Estaríamos na presença de relações
erráticas que não visam mais a fundação de um território, e cujos efeitos
não podem ser antecipados. A identidade rizomática seria aquela na qual
a errância da relação – e não as fronteiras do território, seja ele grande ou
pequeno – se coloca em primeiro plano. Para Glissant, teríamos que rea-
prender a pensar com os nômades, os migrantes e os exilados, capazes de
reconstruir linguagens, costumes e formas de arte unicamente a partir
da memória. Não mais uma memória fincada na conservação do passado,
e sim uma memória de rastros e resíduos, porosa e aberta ao imprevisí-
vel. “O pensamento do rastro/resíduo é aquele que se aplica, em nossos
dias, da forma mais válida, à falsa universalidade dos pensamentos de
sistema” (GLISSANT, 2005, p. 20). Desse modo, mais do que garantir a
preservação do que se passou, a memória pode ser uma aposta no porvir.
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Quinta proposição: a memória não se reduz à representação 35
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uma sociedade representa para si mesma a articulação de seu presente
com o seu passado, configurando, em consequência, o modo pelo qual os
indivíduos sociais representam a si próprios, as suas produções e as re-
lações que estabelecem com os demais. Sob esse ponto de vista, o campo
da memória é o campo das representações coletivas. Ora, fazer avançar
o pensamento sobre a memória social implica questionar a evidência
dessa relação e das ideias que aí se encontram inter-relacionadas.
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36 que vontades ela teria se constituído? Que relações de poder fizeram
com que algumas representações, e não outras, pudessem adquirir uma
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caracteres que nós mesmos entalhamos [...]. Só a impressão, por mais 37
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que a memória proustiana é solipsista. Essa memória também é social,
memória involuntária produzida na relação com um ambiente externo
que a incita e desafia (ASSMANN, 2011a, p. 176).
Ora, é justamente o que escapa a esse glutinum mundi que interessa Fou-
cault: ele investe sobre o que se singulariza, se diferencia, o que resis-
te aos hábitos e às coerções sociais. A memória deixa de se reduzir aos
axiomas da representação e da generalidade abstrata para se articular
àquilo que nos afeta, que nos surpreende, que nos permite apostar em
um outro campo de possíveis. E se tivéssemos que, em uma palavra, re-
sumir o que na memória não se reduz à representação, diríamos: afeto,
ou melhor, forças que nos afetam, e também forças pelas quais afetamos.
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38 singulares, das práticas de si. Não existem, contudo, memórias fora de
um contexto afetivo. Se, como artifício explicativo, desdobrarmos o
processo de produção da memória em algumas etapas, deveremos con-
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Rousseau faz do afeto o núcleo duro de suas lembranças. O que ele pre-
tende compartilhar conosco, nessas Confissões, não são os fatos de sua
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história ou sua localização precisa, e sim uma relação – a relação que ele 39
mantém com o passado. Desse modo, o afeto deixa de ser apenas um fator
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secundário, capaz de somar-se a lembranças já construídas e influenciar
sua seleção, amplificando-as, reduzindo-as ou recalcando-as. Mais do que
um personagem central ou coadjuvante, o afeto constitui a própria cena
na qual as lembranças se perfilam, como nos mostra Jean Starobinski
(1991, p. 195): “O sentimento é o centro indestrutível da memória”.
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40 ondas de crença e desejo que, como tais, são irrepresentáveis (VARGAS,
2000, p. 195).
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Lida nessa clave, uma representação coletiva ou social é algo mais que
uma ideia genérica e instituída que se impõe a nós: todas as representa-
ções são inventadas e somos nós que as inventamos, valendo-nos de uma
novidade que nos afeta e de nossa aposta em caminhos possíveis. Essa
invenção se propaga, repete-se, transforma-se em hábito. E a partir des-
ses hábitos, os homens se tornam semelhantes, instituindo – finalmente
– um glutinum mundi. É preciso, contudo, não esquecer que esses hábitos e
essa semelhança têm como ponto de partida uma invenção singular, pro-
piciada por um contexto relacional e afetivo. Hábitos são criações que se
propagam e, ainda que se tornem constantemente repetidos, iniciam-se
com uma experiência marcada pela novidade e pelo inesperado.
Notas
1Sobre a transversalidade,
ver Guattari (2004).
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