Sei sulla pagina 1di 22

“REPRESENTAÇÕES” DE GÊNERO EM IMAGENS:

artigo
CONTRIBUIÇÕES METODOLÓGICAS
DE UMA SOCIOLOGIA DO CINEMA

GENDER “REPRESENTATIONS” IN IMAGES:


METHODOLOGICAL CONTRIBUTIONS
FROM A CINEMA SOCIOLOGY

Túlio Cunha Rossi*

Introdução portância política e no campo de produção


e reconhecimento de identidades. Nisso, a
Este texto condensa reflexões resultan- representação emerge não somente como
tes de profunda revisão bibliográfica so- tema de debates em diferentes vertentes
bre gêneros e suas relações possíveis com de estudos de gênero, mas assume papel
estudos sociológicos de imagens e mídias central nas tentativas de definição de ca-
audiovisuais, com destaque para o cine- tegorias políticas, sendo frequentemente
ma1. Ao aprimorar o contato com trabalhos utilizada numa ampla e difusa variedade de
existentes na área sob perspectivas femi- sentidos e contextos, às vezes sem media-
nistas e queer, identificou-se a recorrência ção clara. Por vezes, a palavra parece uti-
do termo “representações”, notando-se que, lizada como vocabulário do senso comum,
além das discussões e análises de imagens, aludindo a uma relação maniqueísta entre
as questões em torno de representações – “verdadeiro” e “falso”, no que muitos pa-
destacando-se aqui aquelas que se propõem recem se preocupar em apontar crítica e
como do feminino –, assumem grande im- exaustivamente a falsidade da representa-

* Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Professor Adjunto do Departamento de Ci-
ências Sociais da Universidade Federal Fluminense (Campos/RJ/BR). tuliorossi@gmail.com.
1. Destaca-se, de saída, que este artigo propõe tanto diálogos com estudos feministas e queer, quanto crí-
ticas que se pretendem construtivas, mas marcando, desde o início, que o texto é construído prioritaria-
mente sob perspectivas sociológicas de estudos do cinema e mídias audiovisuais.

219
ção tendenciosamente aglutinadora frente za-se o termo em estudos de gênero, para,
à “realidade por excelência”2, consideravel- em seguida, mais pontualmente, tratar de
mente difusa. seus usos em estudos de imagens, suge-
Quando a questão das representações de rindo uma abordagem alternativa pautada
gêneros é transposta para análises socioló- por relações entre imagens para, ao final,
gicas de imagens e filmes, problemas maio- tecer considerações sobre desdobramentos
res emergem, uma vez que o debate sobre de relações profundamente constituídas
representações e as relações entre imagem em sociedades modernas entre construções
e realidade, nesse tipo de estudo específico, sociais do gênero feminino apresentadas
assume ainda outras nuances e polêmicas. como “hegemônicas” e suas imagens, sus-
Aqui, a comparação simplista entre o “real” tentando o relevante potencial de contri-
e sua representação já se revelou inócua, buição de estudos de imagens e produções
especialmente a partir de estudos apro- audiovisuais para a compreensão de (re)
fundados sobre produções cinematográfi- construções sociais de crenças e valores re-
cas que suscitam aspectos peculiares dessa ferentes a gêneros na atualidade.
mídia enquanto linguagem e construção.
Desse modo, a despeito das impressões per- 1. A polissemia do termo representação
suasivas de realidade que ela possa instigar,
seus referenciais mais caros não estariam São recorrentes, em estudos de gênero,
no princípio da fidedignidade, mas nos sig- debates em torno das representações, termo
nificados nelas mobilizados (cf. SORLIN, muitas vezes utilizado de forma mais espe-
1982; MENEZES, 2003, ROSSI, 2015). cífica em estudos de imagens e em produ-
A partir desses entendimentos e das ções artísticas e midiáticas como pintura,
dificuldades que emergiram na leitura de fotografia, cinema e programas televisivos
diferentes textos abordando ou não a ques- e anúncios publicitários (ALMEIDA, 2003;
tão das imagens, associada à temática de HIGONNET, 1991; PASSERINI, 1991; LAU-
gêneros, mas mobilizando – às vezes, de RETIS, 1994, et. al.). Não raramente, o termo
forma exaustiva – o termo “representa- parece assumir significados e leituras qua-
ção”, este artigo propõe, nomeadamente no se tão diversas quanto o número de auto-
campo das imagens, instigar questões mais res que o empregam. Em muitas ocasiões,
específicas que contribuam para superar leitores e debatedores de posicionamentos
a abordagem pautada por noções difusas diversos em relação ao tema parecem usar
de representação em relação quase sem- a expressão de forma naturalizada, sem pro-
pre maniqueísta com noções de realidade. blematizar as suas implicações ou explicitar
Nesse sentido, primeiramente, problemati- a partir de qual perspectiva ela é utilizada.

2. Essa expressão refere-se à perspectiva de “realidade da vida cotidiana” entendida conforme Berger e Lu-
ckmann (1983, p. 38), sendo que se concorda com a proposta desses autores de que a noção de realidade
deve ser sempre colocada em questão e pensada “entre aspas”. Tendo essa leitura em vista, o termo reali-
dade (e seus cognatos) será utilizado ao longo do texto sempre sob tal perspectiva, qual seja: pensar a no-
ção de realidade entre aspas, não como dado geral, objetivo e absoluto, mas como um conjunto difuso de
interpretações e convenções (re)construídas de forma interacional e persistente.

220 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


Em seu trabalho Um panorama dos es- estudos de imagens – quando de perspecti-
tudos sobre mídia, sexualidades e gêneros vas sociológicas – superarem o mero aspecto
não normativos no Brasil, embora Leandro de ilustração e reiteração de alguma consta-
Colling (et. al., 2012) realize importante le- tação prévia. E isso é válido tanto para os
vantamento sobre a presença de imagens de estudos de gêneros, quanto de outros temas
“gêneros não normativos” no cinema bra- caros às ciências humanas como o trabalho,
sileiro e os modos como essa presença se a religião, a política e qualquer outro que
dá, o termo representação é utilizado dis- se proponha utilizar do cinema e das mí-
pensando conceituação, para se referir às dias audiovisuais apenas para ilustrar suas
imagens construídas no cinema, aquilo que observações sem, contudo, problematizar os
os próprios autores chamam de gêneros não modos como essas imagens são produzidas,
normativos, ressaltando o modo pejorati- quais relações de valores estabelecem e quais
vo e estereotipado com que essas imagens discursos e crenças evocam, inclusive – e,
são construídas. Não se questiona aqui tal talvez, principalmente – no que não mos-
conclusão, devidamente fundamentada pe- tram. De modo que, da mesma forma que
los autores. A questão é o artigo não pro- nos parece ingênuo utilizar o cinema para
blematizar o termo “representação” nos es- “ilustrar” a realidade, parece-nos inócuo e
tudos de mídia e usá-lo apenas de maneira dispensável utilizá-lo para afirmar que este
adjetivada para realçar o aspecto pejorativo não corresponde a uma “representação” fiel
com que personagens homossexuais tendem da mesma.
a ser construídos no cinema comercial brasi- Desse modo, sob uma perspectiva so-
leiro, sugerindo implicitamente, como entre ciológica, pouco é acrescentado sobre a
outros estudos uma relação maniqueísta en- maneira como essas produções midiáticas
tre uma representação “verdadeira” (quando participam e interferem na constituição e
auto-representação3) e uma representação reiteração de relações desiguais e hetero-
“falsa” e, necessariamente, pejorativa. Nesse normativas de gênero, limitando-se a cons-
sentido, além do uso do termo “representa- tatar a existência já observada em tantos
ção” não ser devidamente tratado nem como outros estudos sob incontáveis perspectivas
conceito e nem como categoria analítica, analíticas. Em suma, cai-se facilmente em
quando confrontado com outros estudos, uma tautologia que pouco explora os po-
ele se mostra insuficiente do ponto de vista tenciais oferecidos por estudos sociológi-
sociológico sobre imagens e seus potenciais cos de imagens e mídias audiovisuais para
efeitos na vida social. A constatação e o re- compreender – e, efetivamente, transformar
conhecimento de que “sexualidade e gêneros – as realidades sociais onde essas desigual-
não normativos” (COLLING et al., 2012) têm dades são [re]produzidas e reiteradas.
pouca visibilidade nas mídias e nos meios de O termo representação, de caráter po-
comunicação de massa é reconhecidamente lissêmico, transita em diferentes áreas de
importante, mas também primária. Cabe aos conhecimento e debate, assumindo signi-

2. Reitera-se aqui que a crítica apresentada não se propõe generalizante. São encontrados trabalhos em
que os conceitos e referências utilizados para o termo “representação” são adequadamente apresentados,
bem como uma análise crítica e reflexiva de diversos usos do termo. É o caso, por exemplo, do artigo de
Karla Bessa (2007, p. 257-283), para a revista Cadernos Pagu.

“Representações” de gênero em imagens 221


ficados variados conforme cada contexto, documentário, Menezes afirma que “um fil-
de modo que suas significações parecem me não é uma representação do real, pois a
se misturar e se confundir dentro dos mes- representação não se confunde com o pró-
mos textos e discursos. Reconhecendo tan- prio real” (MENEZES, 2003, p. 90). Ele tam-
to esse desafio quanto as contribuições de bém destaca que nas artes, em princípio, a
perspectivas dos estudos feministas para representação não era avaliada em termos
compreender diferentes noções de repre- de sua parecença com o que seria o objeto
sentação, Rabenhorst e Camargo sugerem, real, sendo que a aproximação entre repre-
de forma didática, abordar três variações sentação e realidade teria se instaurado no
que identificaram como mais recorrentes e Ocidente a partir da constituição das ciên-
que podem ser correlacionadas: cias durante o Renascentismo e da preocu-
pação de representar fidedignamente desde
(1) representação social, que remete à repre- a anatomia humana a paisagens, texturas e
sentação do próprio feminismo enquanto noções de profundidade.
movimento social e político; (2) representa- Ambas as perspectivas, embora em
ção política, que compreende as discussões chaves e contextos analíticos diferentes,
acerca da identidade entre o sujeito que re- apontam o principal problema dos debates
presenta e os interesses das pessoas represen- envolvendo a representação e que emerge
tadas, bem como o complexo modelo de re- de forma bastante relevante em trabalhos
presentação que busca tornar presente aquilo de estudos de gênero: as relações entre a
que está ausente; (3) representação estética, representação e a realidade supostamente
que abrange as discussões da representação representada. Destarte, ao problematizar a
no campo da arte (RABENHORST; CAMAR- noção de representação, este artigo consis-
GO, 2013, p. 986). te, mais do que numa revisão de conceitos e
categorias analíticas, em questionar as pró-
O presente artigo concentra-se na tercei- prias percepções de realidade mobilizadas
ra forma de representação entre as sugeridas nos usos desse termo, cujo debate se revela
pelos autores, problematizando-a a partir de significativo em diferentes áreas de estudo
leituras específicas em estudos de imagem, e interesse das ciências humanas, por vezes
cinema e publicidade. De acordo com os suscitando polêmicas e contradições. Mais
mesmos autores, a noção de representação ainda, quando se trata de uma abordagem
pressupõe uma distância entre o objeto re- sociológica de produções cinematográfi-
presentante e o objeto representado, no que cas e audiovisuais, acredita-se ser possível
consiste sua razão de ser. Uma representação elaborar análises consistentes sem recorrer
idêntica ao objeto ou efetivamente capaz de aos vícios e armadilhas do termo represen-
substituí-lo seria simplesmente sem função. tação. O termo frequentemente assume en-
Nisso, eles realçam a ideia de abordar a re- tendimentos conflituosos que colocam no
presentação em um sentido ficcional, como centro a sua relação com a realidade. Con-
seria, segundo os mesmos, utilizada pelos forme Aumont e Marie:
juristas na origem do termo (RABENHORST;
CAMARGO, 2013, p. 984). Utilizada em numerosos e variados contex-
Em outra análise, própria dos estudos de tos, a palavra [representação] designa sem-
cinema e, mais especificamente, do cinema pre uma operação pela qual se substitui al-

222 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


guma coisa (em geral ausente) por outra, que como o antagonismo de classes e sua rela-
faz as vezes dela. Este substituto pode ser de ção de dominação encoberta pela névoa da
natureza variável: uma imagem (representa- ideologia – onde operaria a representação –
ção pictórica, fotográfica, cinematográfica), constituindo ilusões que servem exclusiva-
uma performance em um palco (representa- mente à manutenção do sistema vigente de
ção teatral), etc. [...] No que concerne à re- exploração. Neste aspecto, quanto aos mo-
presentação por imagens, a questão principal delos de feminilidade apresentados na mí-
foi, no mais das vezes, a de decidir se ela pu- dia, Heloísa Buarque de Almeida discorre:
nha em jogo atitudes humanas inatas e uni-
versais, ou, ao contrário, atitudes culturais, Por um lado, durante os anos 70 principal-
adquiridas e particulares (AUMONT; MARIE, mente, discutiu-se que os modelos femini-
2009, p. 255-256). nos mostrados na mídia não corresponde-
riam às mulheres reais (ou à realidade das
Judith Butler (2013) critica noções di- mulheres no cotidiano) ou teriam o compro-
versas sobre representação no sentido de misso ideológico de modelos e papéis femi-
estas, muitas vezes, pressuporem a exis- ninos circunscritos à dominação patriarcal
tência de uma figura feminina (mulher) da sociedade. Tais concepções sobre o esta-
“natural” e “universal” anterior a qualquer tuto dos meios de comunicação na manuten-
representação, sendo suas representações ção da dominação patriarcal eram muitas ve-
construídas culturalmente, com funções es- zes influenciadas pela reflexão da Escola de
pecíficas de manutenção de uma estrutura Frankfurt sobre o poder da indústria cultural.
de dominação e controle. Conforme a au- Sob essa ótica, os trabalhos questionavam
tora aponta: a representação feminina nos programas e
anúncios publicitários, e demandavam in-
O próprio sujeito das mulheres não é mais clusive que se mostrasse mulheres “mais rea-
compreendido em termos estáveis ou perma- listas”, em suas atividades profissionais, por
nentes. É significativa a quantidade de mate- exemplo, de acordo com sua presença e atu-
rial ensaístico que não só questiona a viabi- ação na sociedade (ALMEIDA, 2006, p. 16).
lidade do “sujeito” como candidato último à
representação, ou mesmo à libertação, como Lauretis, por outro lado, deixa clara
indica que é muito pequena, afinal, a con- sua perspectiva ao afirmar como uma de
cordância quanto ao que se constitui, ou de- suas premissas básicas que “gênero é re-
veria constituir, a categoria mulheres. Os do- presentação – o que não significa que não
mínios da “representação” política e linguís- tenha implicações concretas ou reais, tanto
tica estabeleceram a priori o critério segun- sociais quanto subjetivas. Muito pelo con-
do o qual os próprios sujeitos são formados, trário” (LAURETIS, 1994, p. 208). A pre-
com o resultado de a representação só se es- missa seguinte é de que a “representação
tender ao que pode ser reconhecido como su- de gênero é sua construção” (p. 208). Essa
jeito. (BUTLER, 2013, p. 18) abordagem já se aproxima mais da crítica
suscitada por Butler, no sentido de que a
Em algumas das noções por ela critica- representação de gênero não se distanciaria
das, é perceptível a influência de leituras da realidade, mas, ao contrário, contribui-
marxistas, quando a realidade é percebida ria relevantemente para constituir e reiterar

“Representações” de gênero em imagens 223


diferenças de gênero. Como Butler, a autora p. 232). No limite, seria possível afirmar
também parece recusar a existência de um que há uma “intencionalidade” predetermi-
sexo feminino “natural” biologicamente nada da tecnologia, destinada a um cálculo
pré-estabelecido, reconhecendo o gênero minuciosamente planejado de manutenção
a partir da diferenciação cultural e histo- da ideologia? Quanto dessa “representação
ricamente constituída entre masculino/fe- ideológica”, tão sedimentada no imaginário
minino, a qual ela, amparando-se também e nas crenças estabelecidos em sociedades
em Foucault, trata como desdobramento de patriarcais e heterossexistas não transcen-
uma “complexa tecnologia política” (FOU- dem a intencionalidade, tanto de produto-
CAULT apud LAURETIS, 1994, p. 207). res quanto de atores e espectadores, cujas
Assim, Lauretis torna complexo o de- percepções naturalizadas não os tornam,
bate sobre gênero e representações e, em por vezes, involuntariamente, reprodu-
sua análise, propõe o cinema como sendo tores dessa condição? Contudo, Lauretis
uma das várias “tecnologias de gênero [...] sugere a possibilidade de não negar as re-
com o poder de controlar o campo do sig- presentações em si, que ela assume como
nificado social e assim produzir, promover elementares às construções de gênero. A
e ‘implantar’ representações de gênero” autora apontaria então a possibilidade de
(LAURETIS, 1994, p. 228). A questão aqui dar visibilidade a outras formas possíveis
se torna mais abrangente, sendo a produ- de representação, eclipsadas pelo discurso
ção cinematográfica entendida como um hegemônico:
aparato tecnológico entre outros, voltado à
produção de uma representação com fun- ...o movimento para dentro e fora do gênero
ções políticas de reificar ideologias relacio- como representação ideológica, que, confor-
nadas a gênero e com implicações práticas me proponho, caracteriza o sujeito do femi-
e concretas significativas. nismo, é um movimento de vaivém entre a
Apesar de aprofundar o debate so- representação de gênero (dentro de seu re-
bre representação e suas implicações na ferencial androcêntrico) e o que essa repre-
vida e experiência femininas, Lauretis pa- sentação exclui, ou, mais exatamente, torna
rece ainda, em alguns momentos, pautar-se irrepresentável. É um movimento entre o es-
pelo antagonismo entre realidade e repre- paço discursivo (representado) das posições
sentação ao mesmo tempo em que tenta proporcionadas pelos discursos hegemônicos
recusá-lo, atribuindo à segunda aspectos e o space-off, o outro lugar, desses discur-
ideológicos que atuariam como uma cortina sos: esses outros espaços tanto sociais quan-
que insiste em se colocar sobre a “verdadei- to discursivos, que existem, já que as práti-
ra” realidade, onde a diferenciação sexual cas feministas os (re)construíram, nas mar-
e sua manutenção serviriam à preservação gens (ou “nas entrelinhas” ou “ao revés”),
de uma estrutura social de caráter liberal dos discursos hegemônicos e nos interstícios
burguesa, dominada pelo patriarcado. A das instituições, nas contrapráticas e novas
autora é categórica ao se referir a “óbvios formas de comunidade. Esses dois tipos de
exemplos de representação ideológica do espaço não se opõem um ao outro, nem se
gênero no cinema, onde a intencionalidade seguem numa corrente de significação, mas
da tecnologia é virtualmente colocada em coexistem concorrentemente e em contradi-
primeiro plano na tela” (LAURETIS, 1994, ção (LAURETIS, 1994, p. 238).

224 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


As implicações políticas do termo repre- Rechaça-se aqui qualquer perspectiva de
sentação, mesmo para tratar de imagens e comparação entre o “real” e suas imagens,
narrativas audiovisuais se tornam evidentes. priorizando relações socialmente constituí-
Percebe-se nas discussões que antagonizam das com imagens e entre imagens que são
representação e realidade, muitas vezes a culturalmente construídas e transformadas,
busca pela constituição de um sujeito polí- permitindo ou limitando o reconhecimen-
tico, de reivindicações bem definidas, uma to dessas imagens em suas conexões mais
categoria que seria capaz de “unificar” um amplas com visões de realidade presentes
conjunto profundamente heterogêneo e di- no senso comum e continuamente (re)ajus-
fuso de reinvindicações igualmente diver- tadas. Nesse sentido, ao pensar o problema
sas, criando sua representação mais com- em termos de relações sociais entre imagens,
pleta, capaz de se posicionar coletivamente, considera-se aqui mais de um século de cul-
conscientizar-se de sua condição comum tura cinematográfica acrescida de outros
e, a partir dela, combater a representação aparatos tecnológicos – de videocassetes a
hegemônica. No entanto, o conceito de re- telefones celulares com câmeras – e como se
presentação suscita embates importantes do constituíram e se constituem formas de ver,
ponto de vista político: “As dificuldades de estar e comunicar no mundo, integrando à
representar a mulher implicam diretamente vida cotidiana essas imagens e tomando-as
na fragilização do sujeito político dos movi- referências para práticas, comportamentos e
mentos feministas, pois se a mulher não pode expressões da subjetividade.
ser representada, fica difícil identificar com
nitidez o que seriam as reivindicações ‘femi- 2. Imagens da realidade: outros olhares
nistas’” (RABENHORST; CAMARGO, 2013, possíveis
p. 996). Rabenhorst e Camargo também con-
cluem que a questão da representação nos Walter Benjamin afirmara, ainda em
estudos feministas parece necessariamente 1936 que:
passar pela questão da imagem, sendo esta,
em muitos casos, utilizada superficialmente No decorrer dos grandes períodos históricos,
como sinônimo de representação. com relação ao meio de vida das comunida-
Por essas razões, considera-se relevan- des humanas, via-se, igualmente, modificar-
te suscitar outras abordagens possíveis não se o seu modo de sentir e de perceber. A for-
acerca das representações – políticas, artís- ma orgânica que é adotada pela sensibilida-
ticas, sociais –, mas de estudos de imagens de humana — o meio na qual ela se realiza —
que se desvencilhem da polissemia das “re- não depende apenas da natureza, mas tam-
presentações” e permitam uma discussão bém da história (BENJAMIN, 1975, p. 14).
aprofundada de seu uso e relevância para
abordar sociologicamente questões de gêne- Ao se levar em conta essa perspectiva,
ros numa dupla chave, tanto como constru- em conjunto com as rápidas transforma-
ções específicas, que se utilizam de técnicas, ções por que passaram os meios de comu-
linguagens e signos específicos, como de sua nicação de massa, especialmente a partir
relação social com outras imagens, discur- da segunda metade do século XX, essas
sos, noções e percepções compartilhados e mudanças nos modos “de sentir e perce-
reconhecidos no senso comum. ber” têm decorrido não em grandes perío-

“Representações” de gênero em imagens 225


dos históricos, mas muitas vezes dentro Menezes questiona o uso da noção de re-
do interstício de uma mesma geração. As presentação na análise fílmica e propõe o
transformações tecnológicas no campo de conceito de representificação:
transmissão de imagens e informações nos
últimos anos têm levado gerações inteiras Proponho que se entenda a relação entre ci-
a reconfigurar seus olhares perante à reali- nema, real e espectador como uma repre-
dade, de modo a, frequentemente, contra- sentificação, como algo que não apenas tor-
por e questionar os próprios modos esta- na presente, mas que também nos coloca em
belecidos como “naturais”. Isso se percebe presença de, relação que busca recuperar o
nas relações diferenciadas de gerações que filme em sua relação com o espectador. O
atingiram a idade adulta antes da expan- filme, visto aqui como filme em projeção, é
são das mídias digitais e a popularização percebido como uma unidade de contrários
de aparelhos de telefonia celular e tablets, que permite a construção de sentidos. Senti-
hoje vastamente utilizados para produção, dos estes que estão na relação, e não no fil-
reprodução e transmissão de vídeos. As- me em si mesmo. O conceito de representifi-
sim como o cinema no início do século XX cação realça o caráter construtivo do filme,
contribuiu significativamente para novas pois nos coloca em presença de relações mais
formas de olhar, a partir de uma grande do que na presença de fatos e coisas. Rela-
tela em uma sala com projeções para cen- ções constituídas pela história do filme, entre
tenas de espectadores em um mesmo au- o que ele mostra e o que ele esconde. Rela-
ditório, a televisão, ao adentrar o universo ções constituídas com a história do filme, ar-
privado também constituiu mudanças. De ticulação de espaços e tempos, articulação de
outro modo, a telefonia móvel hoje permi- imagens, sons, diálogos e ruídos (MENEZES,
te outras formas de olhar e se relacionar 2003, p. 94 – grifo nosso).
com produções audiovisuais – do trans-
porte público a salas de espera, as possi- A despeito das especificidades da aná-
bilidades são incontáveis. Nesse sentido, lise proposta pelo autor para o cinema
não é absurdo deduzir que as formas de documentário em seu argumento, um ele-
sentir e perceber relacionadas a categorias mento que merece destaque é o foco nas
e normas de gênero, bem como às práticas relações constituídas tanto dentro da pró-
sexuais são modificadas e, com isso, so- pria narrativa fílmica, enquanto constru-
ciabilidades, formas de agir e se comuni- ção de sentido, quanto com “o trabalho de
car que superariam a suposta passividade nossas memórias voluntária e involuntária
atribuída ao espectador. que o filme estimula” (MENEZES, 2003, p.
A relação entre imagem e realidade 94). Pensar sociologicamente esse aspec-
problematizada por Menezes (2003) mais to relacional de um filme, especialmente
especificamente do cinema documentário, quando se trata do estímulo de memórias
discute seu caráter igualmente ficcional, dos espectadores, implica pensar em rela-
diferenciado somente por uma “leitura do- ções entre imagens, muitas vezes, mais do
cumentarizante” que pressupõe um “enun- que entre imagem e experiência. Há que se
ciador real” (ODIN apud MENEZES, 2003, considerar também, que, ao sublinhar o ca-
p. 91). Ao abordar os limites e as constru- ráter construtivo do filme, as imagens nele
ções da realidade do cinema documentário, constituídas, sejam de homens, mulheres,

226 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


heróis, vilões, períodos históricos, classes Em seus estudos sobre pintura, Gombri-
ou países não se propõem tanto a “repre- ch (2007) já apontara a importância de se
sentar” uma realidade externa preexistente, compreender as imagens a partir de rela-
mas, ao contrário, constituem uma realida- ções, tanto das formas empregadas dentro
de própria via conexões de sentido, tanto da pintura, o uso das luzes e cores quanto
diegeticamente quanto em relação aos es- em relações mais amplas com outras ima-
pectadores e sua bagagem cultural, social e gens e com convenções existentes dentro
afetiva. Nesse sentido, reforça-se aqui, para do campo artístico que, não raramente,
a análise sociológica de filmes, pensar rela- pouco se propõem à finalidade de pare-
cionalmente as imagens enquanto constru- cença ou reprodução “fidedigna” de qual-
ções de sentido, não limitadas ao espaço da quer realidade. Contudo, os adventos da
tela e nem ao tempo do filme. fotografia e, posteriormente, do cinema,
Na atual e constante presença de produ- parecem complicar essa relação. Enquanto
tos de mídias audiovisuais e digitais no coti- invenção moderna, num contexto de valo-
diano, a relação com o espectador se dá, em res já bem estabelecidos culturalmente no
grande medida, entre imagens às vezes visua- Ocidente de olhares cientificistas, pretensa-
lizadas anteriormente ou simplesmente alu- mente “neutros” e “realistas”, a fotografia,
didas. Tal relação é mais evidente no cinema enquanto registro mecânico do que se passa
hollywoodiano, repleto de autorreferências e à frente da câmera, parece embaraçar ainda
repetidas estratégias narrativas que se tornam mais essa relação entre imagem e realidade,
familiares e reconhecíveis como típicas, desde sendo assumida, frequentemente não como
os usos da trilha sonora – que se desdobra em construção, mas como documento que por-
outro produto de merchandising que extrapo- ta em si o estatuto de realidade. Tendo essa
la a projeção do filme, mas persiste enquanto relação em vista, pensando o surgimento
relação e alusão –, aos movimentos de câ- do cinematógrafo não como fonte de en-
mera, planos e cortes para cada tipo de cena tretenimento, mas como aparato mecânico
que se pretende: do encontro do grande amor de registro de luz e movimento, a questão
à resolução de um enigma ou à vitória em da realidade das imagens parece ainda mais
uma competição esportiva. Frequentemente, impregnada. Nesse sentido, ainda há uma
a repetição dessas construções em diferen- tendência comum em relação ao cinema
tes narrativas, enquanto “pontos de fixação” de se avaliar a qualidade de um filme em
(SORLIN, 1982, p. 236) constitui uma relação termos de sua suposta proximidade com a
peculiar com os espectadores que é muito realidade. Nas palavras de Marcel Martin:
pouco pautada necessariamente por suas ex-
periências num sentido mais “concreto”. Isso A imagem fílmica restitui exata e inteira-
é especialmente notável quando se trata do mente o que é oferecido à câmera e o registro
cinema hollywoodiano, que frequentemente que ela faz da realidade constitui, por defi-
se apresenta a seu público como uma espécie nição, uma percepção objetiva: o valor pro-
de linguagem “universal”, consumida e apre- batório do documento fotográfico ou filma-
ciada em diversos países, independentemente do é um princípio irrefutável, ainda que se-
da correspondência entre as suas práticas e jam possíveis truques [...]. A imagem fílmi-
possibilidades cotidianas e aquelas visualiza- ca, portanto, é antes de tudo realista, ou, me-
das nos filmes. lhor dizendo, dotada de todas as aparências

“Representações” de gênero em imagens 227


(ou quase todas) da realidade. [...] A imagem menos antagônica – com a realidade in-
fílmica suscita, portanto, no espectador, um corre invariavelmente em constatações de
sentimento de realidade bastante forte, em que “a realidade é muito diferente”, o que,
certos casos, para induzir à crença na exis- frequentemente, é utilizado em críticas a
tência objetiva do que aparece na tela. Essa pesquisas em ciências sociais que têm por
crença, essa adesão, vai das reações mais ele- objeto essas produções. Nesse sentido, ao
mentares [...] aos fenômenos bem conhecidos tratá-las como representações da realidade,
de participação (os espectadores que adver- automaticamente atribuem-lhe falsidade,
tem a heroína dos perigos que a ameaçam) e tornando-as cientificamente “sem vali-
de identificação com os personagens (MAR- dade”. Frequentemente, recusa-se o filme
TIN, 2003, p. 22). como objeto de análise, a ser “legitimado”
apenas através da pesquisa de campo e, em
No caso de filmes declaradamente ficcio- outras vezes, pelo registro de imagens pelo
nais – lembrando que, de acordo com Me- próprio pesquisador, previamente mediado
nezes (2003, p. 94), o cinema documentário por uma pretensa posição de “olhar cientí-
também seria uma forma de ficção –, parece fico” contraposto às “imagens de ficção”.
haver a crença de que as imagens não neces- Alguns entenderiam que a melhor so-
sariamente “reproduzam” alguma realidade, lução estaria nos estudos de recepção. Mas
mas, no sentido mais corrente do termo sendo a recepção profundamente subjetiva,
discutido aqui, de que representam alguma uma vez que, de acordo com o conceito de
realidade, balizadas pela noção de parecen- representificação, o filme, durante sua pro-
ça, no que muitos presumem que o objetivo jeção, comunicaria com memórias voluntá-
primordial da imagem fílmica seja se tornar rias e involuntárias do espectador – no que
indiscernível da realidade. Supondo que se se inclui, não raramente, memórias afeti-
aceite tal hipótese, o que permite ao cinema vas – como se superaria satisfatoriamente
hollywoodiano – com características que lhe o problema da heterogeneidade se a subje-
são tão peculiares quanto restritas no que tividade dos entrevistados lhes conduzisse
diz respeito à aparência de seus protago- a experiências do filme consideravelmente
nistas, ao encadeamento de suas narrativas diferentes? Esquematizar isso em forma de
e discursos –, tenha tamanha presença ao entrevista também não seria profícuo, posto
redor de um mundo de espectadores com- que a formulação das questões, na tentativa
pletamente heterogêneo? Cabe questionar de aferir impressões dos espectadores sobre
inclusive se, sequer mulheres norte-ameri- o filme determinadas pelo pesquisador lhes
canas de classe média, caucasianas, hete- obrigaria a resgatar de forma direcionada
rossexuais, em casamentos monogâmicos se sua memória para os aspectos suscitados
considerariam satisfatoriamente “represen- no questionário, com o potencial de induzir
tadas” nas personagens femininas construí- o espectador a respostas não baseadas em
das em filmes hollywoodianos e caracteri- suas impressões mais espontâneas, mas em
zadas como tais. Enxergariam elas, necessa- uma reinterpretação do filme à luz do ques-
riamente, “imagens realistas” de si mesmas? tionário, bem como de sua experiência ao
Mais pertinente: deveriam enxergar? assistir o filme. Nesse sentido, questioná-
Pensar as produções cinematográficas a rios, muito facilmente, induziriam a certos
partir de uma relação direta – e mais ou tipos de respostas que escapariam de seu

228 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


propósito original, ao estimular o especta- tes formatos e variáveis possibilidades de
dor a repensar o filme e reelaborar sua in- acesso – da sessão de cinema à reprodução
terpretação para codificá-la de acordo com de vídeos via internet – e assim permanece
o que é demandado pelo pesquisador. além da experiência individual. A relação
Reconhecendo os limites de acesso não primeira estabelecida aqui, em seus aspec-
somente à subjetividade de cada especta- tos socioculturais, é no nível do imaginário
dor, como a cada uma de suas experiências e transcende a materialidade a que muitos
singulares, a chave para a compreensão da tendem a reduzir a realidade. As imagens
relevância sociológica das mídias audiovi- do cinema, da televisão e das campanhas
suais repousaria em seu aspecto comuni- publicitárias encontram seu nexo na pos-
cativo e linguístico, ao mobilizarem signos sibilidade de relação com outras imagens
e discursos cognoscíveis para um público mais do que necessariamente com “coisas”.
diversificado. Trata-se, efetivamente de, se- Ao se considerar aqui a atual presença
guindo uma inspiração weberiana, buscar os de diferentes dispositivos de reprodução e
sentidos mobilizados e compartilhados na difusão de vídeos, bem como as relações
construção dessas imagens que não se res- construídas entre imagens, é importante
tringem à unidade da narrativa fílmica, sus- sublinhar que estas não se limitam a uma
citando outras imagens, discursos, tramas e ou outra mídia específica: telenovelas fa-
recursos técnicos de outras fontes, reutiliza- zem referências a construções cinema-
dos, relembrados, sistematicamente reitera- tográficas, vídeos publicitários por vezes
dos e reconfigurados ao longo de mais de fazem referências a desenhos animados,
um século de cultura cinematográfica. filmes exploram imagens de telejornais
Um filme, no processo de representifi- mescladas à narrativa, programas de va-
cação, efetivamente se comunicaria com riedades e auditório utilizam, conforme o
memórias voluntárias e involuntárias por quadro e as circunstâncias, músicas-tema
estabelecer uma relação que não é exclu- de determinados filmes e assim por dian-
siva com o espectador enquanto portador te. As imagens e construções fílmicas, por-
de uma história de vida particular, mas tanto, de formas diversas, combinam-se
mediada por outras imagens e referências e transformam-se enquanto aparatos de
que interpenetram sua existência tanto in- linguagem os quais, por sua vez, têm uma
dividual quanto social. Trata-se, de forma existência que, embora dependente da ação
mais específica, de uma relação constituída de indivíduos para sua manutenção, não é
entre imagens, ou seja: entre construções exclusivamente subjetiva. Nesse sentido, a
que encontram suas primeiras referências linguagem exerce um papel de objetivação:
precisamente dentro de um vasto inventá-
rio de imagens que são, na prática, indis- A expressividade humana é capaz de objeti-
sociáveis de relações e experiências coti- vações, isto é, manifesta-se em produtos da
dianas dos espectadores. Estes não apenas atividade humana que estão ao dispor tan-
não se encontram passivamente expostos a to dos produtores quanto dos outros homens,
essas imagens, como as interpretam, ressig- como elementos que são de um mundo co-
nificam e as mobilizam em suas interações. mum. Estas objetivações servem de índi-
Parte considerável desse inventário está à ces mais ou menos duradouros dos proces-
disposição dos espectadores em diferen- sos subjetivos de seus produtores, permitindo

“Representações” de gênero em imagens 229


que se estendam além da situação face a fa- ções “mais reais” ou denunciar a irrealidade
ce em que podem ser diretamente apreendi- das imagens, mantendo um binarismo que
das. [...] Estou constantemente envolvido por insiste em opor imagem e realidade. Ao lan-
objetos que “proclamam” as intenções sub- çar um olhar mais atento, notam-se duas in-
jetivas de meus semelhantes, embora pos- consistências que desmontam essa perspec-
sa às vezes ter dificuldade de saber ao cer- tiva: a primeira é a que insiste em separar
to o que um objeto particular está “procla- “imagem” e “realidade” ou “imagem” e “ex-
mando”, especialmente se foi produzido por periência”, ignorando suas interpenetrações,
homens que não conheci bem (BERGER; LU- especialmente na constituição de relações de
CKMANN, 1983, p. 54-55). sentido que, por sua vez, orientam formas
de agir, de se posicionar e se apresentar; a
Conforme Mills (2009, p. 66) apontara, segunda se refere ao fato de que, muitas ve-
“vivemos em realidades de segunda mão”, zes, não é propósito de muitas dessas ima-
onde boa parte de nosso conhecimento é gens reproduzir, retratar, ou refletir qualquer
mediada por diferentes aparatos de comu- realidade. Pensar conforme a chave dicotô-
nicação e informação que transcendem mica de representação (imagem) vs. realida-
a experiência pessoal: das fotografias em de (experiência) gera um debate inócuo de
jornais impressos a vídeos compartilha- constatações óbvias, onde a primeira nunca
dos instantaneamente na internet. É cada corresponde à última.
vez mais evidente nas sociedades contem- A questão aqui, mais do que escapar da
porâneas a construção da realidade e das dicotomia entre representação e realidade,
experiências como objetivações a partir é superá-la e colocar em relevo a importân-
de imagens, as quais proclamam mais que cia das imagens e produções audiovisuais
intenções subjetivas, enunciando aconteci- em seu aspecto de construção e difusão de
mentos, posicionamentos políticos, normas sentidos que, por sua vez, se concretizam
comportamentais e, inclusive, normas de em ações sociais, em condutas orientadas
sentimentos. pelo reconhecimento e partilha dos signifi-
O ponto marcante nas discussões sobre cados propagados também através de ima-
representações de gênero na arte, no cine- gens. Especialmente no contexto atual de
ma, na televisão e na publicidade, é que es- grande parte das sociedades urbanas mo-
sas teriam efeitos diretos na vivência coti- dernas, as mídias fundamentadas no uso de
diana dos espectadores, nas formas com que imagens têm presença abrangente, consti-
constituem identidades, posturas e compor- tuindo formas de compreender o mundo,
tamentos, bem como a forma com que inter- reconhecê-lo e aludi-lo. Alusões que se
pretam o mundo à sua volta e se posicionam baseiam, em grande medida, em imagens
em relação a ele. Tais efeitos não derivam de massivamente compartilhadas que, por sua
nenhuma espécie de influência externa, mas vez, fazem referências a outras anterior-
de fazerem parte de como os indivíduos se mente difundidas.
comunicam diariamente e fazem indicações Essas relações constituídas entre ima-
aos outros e a si mesmos, tanto dos mundos gens são, ao mesmo tempo, produtoras e
à sua volta quanto de sua subjetividade. En- produto dessa realidade da qual muitos in-
tretanto, frequentemente o debate se coloca sistem em descolar suas representações pic-
sobre a necessidade de produzir representa- tóricas. Por isso, entende-se que a repetição

230 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


do uso do termo representação é problemá- parados no recurso a imagens que é mútua
tica. Não se trata simplesmente do uso de e, frequentemente, não calculada por seus
uma palavra entre tantas outras possíveis; agentes. E nisso, desdobra-se a importante
buscar sinônimos não resolve o problema. problemática das imagens enquanto matéria
Trata-se, efetivamente, de problematizar os -prima consistente na construção da reali-
olhares, as linhas de raciocínio, as cone- dade social em sua dimensão comunicativa.
xões de sentido e concepções de realidade e
imagens que esse termo, em toda sua polis- 3. Imagens do feminino ou o intangível
semia, suscita. Mais do que trocar uma pa- objetivado
lavra por outra, trata-se de pensar em ter-
mos de uma construção, que se materializa É reconhecida a importância política de
constantemente pelo resgate, a reiteração e se colocar em questão quais construções de
a transformação dos próprios signos que a gêneros são frequentemente suscitadas, re-
fundamentam. marcadas e repetidas nas relações que se es-
Entende-se que, com a devida mediação tabelecem socialmente entre imagens. É de
– colocando o termo em questão ao invés de suma importância dar visibilidade a cons-
naturalizá-lo –, e as considerações pertinen- truções alternativas, romper a hegemonia
tes, não haveria razão para não utilizar o ter- das construções que já se tornaram natura-
mo representação. Aliás, Stuart Hall (1997, lizadas e que, frequentemente, são confun-
p. 24), apresenta contribuições importantes didas com retratos, senão da realidade do
no sentido de problematizar as noções de que um gênero supostamente “é”, mas, de
representação que ele denomina como refle- forma mais contundente, do que um gênero
xiva, intencional e construcionista apontan- “deveria ser” para que tenha sua existência
do diferentes panoramas de “representação” legitimada e reconhecida. Concorda-se nes-
em estudos culturais, apresentando tanto te ponto com Lauretis que as implicações
fragilidades quanto pontos fortes desses pa- das imagens e produções cinematográficas
noramas, como integrantes de um “conjun- enquanto “tecnologias de gênero” são con-
to complexo e ainda experimental de ideias cretas à medida que promovem e reforçam
em um projeto inacabado” (p. 63). Contudo, discursos que são recebidos, reconhecidos
muitos autores não explicitam as formula- e internalizados na formação de comporta-
ções conceituais ou metodológicas do termo, mentos e na construção de noções identi-
enquanto que, muitos de seus leitores não tárias do público, sendo ainda empregadas
familiarizados com o debate, tendem a lê-lo como indicadores da própria subjetividade.
em chaves que se aproximem do senso co- Mas essas imagens, enquanto “tecnologias
mum. Assim, constituem-se textos e leituras de gênero”, apenas reforçam o quanto é
naturalizadas de representação contraposta falho pensar em termos de uma separação
à realidade, onde, supostamente, a primei- entre imagem e realidade quando as práti-
ra “deveria” ser mais fiel à última, mas não cas, as visões e os discursos de gênero se
o é “apenas” porque determinados grupos constituem com base nas interpretações de
atuam, conspiratória e incansavelmente no conexões diversas de sentidos de imagens
sentido de ocultar essa realidade. Acaba-se, entre si.
deste modo, por desconsiderar importantes Assumir uma realidade em oposição ou
aspectos de construção cultural e social, am- à parte dessas imagens equivale a posicio-

“Representações” de gênero em imagens 231


namentos essencialistas como, por exem- cluindo todas aquelas que se referem a per-
plo, pressupor a existência biologicamente formances de gêneros e que se entrecruzam
“natural” e binária dos sexos, pré-social, em diversos cenários da vida cotidiana: de
universal e anterior à cultura na qual gê- instituições religiosas a ambientes de tra-
nero e sexualidade são constituídos e ins- balho, do espaço público à orientação da
critos. E, na busca insistente por uma re- vida afetiva e dos espaços privados. A sín-
presentação “real” da mulher no cinema, tese tem importante papel compreensivo no
na televisão ou na publicidade, o que tem cinema ao estabelecer conexões lógicas de
se revelado é apenas a diversidade irre- causa e consequência entre elementos sele-
dutível a qualquer representação unívoca. cionados, realçando algumas variáveis em
No caso do cinema, que, conforme Morin relação a outras e criando uma legibilida-
(2002), funciona em grande medida à base de que se pauta menos pela realidade do
de sínteses – que pressupõem a reunião de que pela associação lógica entre os eventos
contradições sabidamente inconciliáveis dentro do filme. Isso implica dizer que a
dentro de uma unidade condensadora – representação é sempre redutora.
esperar das imagens ou projetar nelas um Há que se ponderar também a noção
realismo abrangente seria despropositado. de “cultura de massa” enquanto algo que
Ao abordar o amor na cultura de massas, se apresentaria como geral e homogêneo,
Morin aponta esse aspecto: contribuindo para as percepções críticas dos
conteúdos difundidos por tal cultura. Equi-
Nesse amor sintético a mulher tende a apa- parar em uma “massa” – que pressupõe uni-
recer simultaneamente como amante, com- formidade – um conjunto de consumidores e
panheira, alma-irmã, mulher-criança e mu- espectadores totalmente disperso e heterogê-
lher-mãe e o homem como protetor e prote- neo, incorre, logicamente, no obscurecimen-
gido, fraco e forte. A eliminação dos temas to das diferenças. O problema gira, em gran-
familiares ou incestuosos no cinema ociden- de parte, em confiar, de forma acrítica, na
tal implica sua integração latente na relação homogeneização das imagens propagadas
entre os dois namorados. Em outras palavras, pela “cultura de massas” e, frequentemente,
é a totalidade dos laços afetivos, antigamen- confundi-las com uma homogeneização da
te repartida em múltiplas relações intrafa- realidade de forma mais ampla. Sobre a no-
miliares que tende a se concentrar no casal ção de cultura de massas, Passerini faz uma
(MORIN, 2002 p. 134). observação interessante para analisá-la em
termos de potencialidade:
A condensação e a síntese são elemen-
tos fundamentais da narrativa cinemato- Chamamos a atenção para o fato de que eles
gráfica e seu estatuto de realidade é pura- [os termos “massa” e “de massa”] têm um va-
mente convencional, por mais que ela se lor no plano das potencialidades; devemos
sustente pelo convencimento que provoca acrescentar que não se referem apenas no
enquanto sequência apreensível de eventos uso corrente, a aspectos quantitativos, mas
e articulação de imagens e sons mecanica- também a aspectos qualitativos. Queremos
mente captados. Mas as convenções que a com isso dizer que a cultura de massas não
orientam extrapolam a produção fílmica é produzida por intelectuais e que é destina-
e se comunicam com diversas outras, in- da a uma massa social, ou seja, a um aglo-

232 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


merado aparentemente não diferenciado em posta, não seria pensar a noção de gênero
classes e áreas geográficas. Ao lado das cul- como separada de sua imagem, uma vez
turas clássicas, radicadas num povo particu- que, concordando com Butler (2013), gêne-
lar, a nova forma cultural parece nascida dos ro seria uma categoria constituída perfor-
meios de comunicação de massa, sem raízes mativamente, entre gestos e discursos não
locais definidas (PASSERINI, 1991, p. 395). necessariamente coerentes entre si. Ainda
conforme a autora:
Há que se considerar essa própria “mas-
sa” – a que tal forma cultural se direcio- A performatividade não é, assim, um “ato”
naria – como algo imaginário, enquanto singular, pois ela é sempre uma reiteração de
categoria abrangente inventada, a partir da uma norma ou conjunto de normas. E na me-
qual a segmentação da produção cultural dida em que ela adquire o status de ato no
para o grande público ver-se-ia facilitada. presente, ela oculta ou dissimula as conven-
Nesse sentido, pensa-se a potencialidade ções das quais ela é uma repetição. Além dis-
aqui não em termos de características pre- so, esse ato não é primariamente teatral; de
tensamente “objetivas” (renda, idade, esco- fato, sua aparente teatralidade é produzida na
laridade, classe, sexo) de grupos de recep- medida em que sua historicidade permane-
tores, mas em termos de possibilidades de ce dissimulada (e, inversamente, sua teatra-
apreensão e reconhecimento da linguagem lidade ganha uma certa inevitabilidade, da-
e dos sentidos suscitados nos conteúdos da a impossibilidade de uma plena revelação
difundidos através das diferentes mídias de sua historicidade) (BUTLER, 2000, p. 161).
comunicadoras. Trata-se aí do potencial de
reconhecimento não somente das imagens, Essa repetição das convenções, mesmo
mas de suas cargas culturais e valorativas. em seu nível individual, reitera normas que
Estas não emergem espontaneamente das se tornam reconhecidas e compartilhadas
imagens, mas são imbuídas em sua forma- tanto pelas práticas e interações cotidianas
ção através da relação com outras imagens quanto pela incorporação dos conteúdos
e discursos, evocadas ou suprimidas em in- dessas normas, insistentemente reforçados
terações sociais. Por isso, uma imagem é, pela mídia cinematográfica e outras basea-
de certa forma, sempre dependente de ou- das em imagens.
tra, como palavras em um enunciado, cujo Assim, as imagens não são nem retrato,
sentido depende das formas como estas são reprodução, representação ou reflexo da rea-
conectadas umas às outras e das constru- lidade, mas elementos de sua própria cons-
ções de sentido que cada uma carrega em trução, participando de [trans]formações e
função de convenções linguísticas. E, inva- reiterações de “noções culturalmente inte-
riavelmente, as imagens, enquanto apara- ligíveis de identidade de gênero” (BUTLER,
to comunicativo, dependem de indivíduos 2013, p. 23), elementos estes que muitas
interagindo para que se mantenham circu- vezes são apresentados e percebidos de for-
lantes, reativando e realçando as conven- ma aglutinadora, propondo-se unificadores
ções a que estão atreladas. e assim, devidamente articulados com no-
Pensar as construções de gênero a partir ções binárias de sexo e discursos heteronor-
de imagens circulantes em meios de comu- mativos e biologizantes nela impregnados.
nicação, dentro da perspectiva aqui pro- A partir da maior visibilidade concedida a

“Representações” de gênero em imagens 233


algumas imagens do que a outras, via in- Tem-se em vista que as imagens foto-
sistente e difundida repetição, calcificam-se gráficas e cinematográficas exercem um
determinadas formas se reconhecer e produ- fascínio particular, uma vez que, por se-
zir noções de gêneros que facilmente se am- rem produzidas a partir do manuseio de
param no poder quase mágico de conven- um aparato mecânico que registra o que se
cimento da fotografia e do cinema. Ainda apresenta à sua frente de forma aparente-
assim, as atuais circunstâncias têm ampliado mente neutra, supostamente capturaria a
o contato com a diversidade também para realidade “objetivamente”, livre de julga-
imagens de gênero e temáticas relacionadas mento, posicionamento moral e/ou afetivo
à sexualidade. Conforme Louro: de quem está por trás da câmera. Essa forte
impressão de realidade, mais do que mobi-
Uma série de condições culturais, sociais, po- lizar necessariamente uma crença imediata
líticas, econômicas vem, desde algumas dé- no que é apresentado como produto da câ-
cadas possibilitando a multiplicação dos dis- mera, mobiliza parâmetros visuais de rea-
cursos sobre a sexualidade, produzindo a vi- lidade, convencionando formas de vê-la e
sibilidade das muitas formas de ser, de amar avaliá-la dentro e fora das telas. Certamen-
e de viver, embora se mantenham, de modo te, esse é um elemento cultural fundamen-
renovado, divisões, hierarquias, diferencia- tal nos posicionamentos variados e confli-
ções. O cinema participa também deste pro- tantes que se produziram sobre a relação
cesso (LOURO, 2008, p. 87). entre representação e realidade, uma vez
que as imagens cinematográficas, em sua
As imagens aqui são entendidas como gênese na modernidade, constituíram uma
elementos de linguagem, no que há ainda ligação germinal com noções de “verdade”
uma série de especificidades ao se conside- e “objetividade”.
rar seus diferentes usos, textos e contextos. Considerando esse aspecto, a trama das
Fotografias, filmes, desenhos animados, jo- imagens se torna ainda mais significativa
gos eletrônicos, medicina diagnóstica; todos no que tange às noções socialmente reite-
estes têm sua interpretação orientada por radas de gêneros. Dentro de toda uma ma-
convenções que lhes são peculiares, cons- triz de pensamento dicotômica, os valores
tituindo leituras diferenciadas da realidade, consagrados pela modernidade tais como
para as quais o olhar se configura corres- racionalidade, objetividade, trabalho e so-
pondentemente, no que o leitor resgata em ciedade foram reiterados e naturalizados
sua memória informações, outras imagens, como associados à masculinidade, enquan-
experiências e aprendizados, combinando to, ao feminino, associaram-se as emoções,
todo o aparato necessário para que ele con- a subjetividade, a natureza, os afetos e tudo
siga interpretar aquelas imagens. Nada dis- mais considerado “intangível”. Há que se
so, contudo, garante interpretações puristas considerar também que a forma como as
de um sentido univocamente “correto” ou sociedades capitalistas organizaram a vida
mais “realista”. É então o caso de buscar as familiar, as separações entre vida privada e
relações “tornadas importantes” (WEBER, social e a divisão de papéis de gênero teve
2008, p. 34) entre imagens para que se pro- efeitos fundamentais nessa concepção. Dur-
duzam determinadas interpretações e, con- kheim, enquanto homem da sua época, na
sequentemente, ações por elas orientadas. França do final do século XIX, concebera

234 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


as diferenças problemáticas entre homens modernidade deveriam, necessariamente, ser
e mulheres na vida conjugal perante o ad- domados pela razão, permitiriam, através do
vento da modernidade da seguinte forma: uso de imagens de mulheres a objetivação
de estados a princípio abstratos, frequente-
O homem está ativamente inserido [na vi- mente associados a emoções.
da social], ao passo que a mulher quase só Pensando mais especificamente em
faz assistir-lhe à distância. O resultado é ele imagens publicitárias, é notável em muitas
ser socializado em muito maior grau do que dessas peças que, interessa menos apre-
ela. Seus gostos, suas aspirações, seu humor, sentar o produto, suas qualidades e fun-
têm, em grande parte, uma origem coletiva, ções, mas aludir a determinados estados
ao passo que os de sua companheira estão emocionais, de satisfação ou de estilos de
sob influência mais imediata do organismo. vida apresentados como desejáveis. Nesse
Portanto, ele tem necessidades completa- sentido, o estudo de Goffman (1979) sobre
mente diferentes das dela (DURKHEIM, 2000, imagens publicitárias de mulheres em re-
p. 504). vistas, instiga reflexões interessantes sobre
as associações sugeridas entre as imagens
Nota-se uma configuração de relações das modelos e expressões de descontrole
institucionalizada e reforçada através do emocional, infantilidade e espontaneidade.
laço matrimonial que tenderia a relegar as Ou ainda, conforme outros autores:
mulheres ao ambiente doméstico, onde lhes
eram atribuídas, entre outras funções, a ges- Em contrapartida, a mídia, de forma ambiva-
tão da vida íntima dos afetos e de tudo que lente, legitima a caracterização do feminino
deveria ser preservado nos bastidores, à dis- em termos de sua fragilidade, sensibilidade,
tância da “sociedade” – entendida, grosso descontrole emocional e consumo, operando
modo, como o universo público da vida do em uma lógica homogênea e única de iden-
trabalho assalariado e das relações econô- tidade social de gênero (Lopes, 2004), contri-
micas. Estabeleceu-se e, por muito tempo, buindo para a perpetuação das estereotipias
reproduziu-se uma cisão que colocava do e hegemonia do homem (ROMANI; WINCK;
lado da vida privada o feminino, as emo- STREY, 2013, p. 266).
ções, o desejo, a subjetividade, o sexo e tudo
que remetia a pulsões naturais, que deve- Havendo se constituído social e histori-
riam ser “domesticadas” em nome da civi- camente uma percepção que associa dire-
lidade, enquanto, do lado da vida pública, tamente elementos da subjetividade e das
em sociedade, colocavam-se o masculino, a emoções à feminilidade, certamente, em
objetividade, a razão pragmática, o trabalho muitos casos, o uso publicitário de imagens
remunerado, a vida econômica, o autocon- de mulheres remeteria a esses elementos,
trole. Tais circunstâncias teriam desdobra- objetivando, ao menos em estágios mais
mentos importantes na utilização pública de iniciais do capitalismo, uma relação de do-
imagens de corpos femininos, especialmente minação pautada pelo poder econômico de
na publicidade e posteriormente no cinema. aquisição não tanto de determinado objeto,
As associações entre feminilidade e elemen- mas da indescritível satisfação e do prazer
tos ligados às emoções, ao prazer e à sub- a ele atrelados que ganharia na imagem
jetividade, que nos discursos fundadores da publicitária os contornos bem definidos de

“Representações” de gênero em imagens 235


um corpo feminino. De maneira perversa, nema e na publicidade materializam tudo
recorrentemente, a mulher se torna, em o que habitaria o universo intangível de
oposição à “realidade” masculina, a ima- fantasias, desejos e emoções masculinas.
gem materializada do desejo, da fragilidade, Conforme Higonnet:
do descontrole, do arrebatamento e de tudo
aquilo que, a princípio, seria nocivo ao pro- O século XX acrescentou o cinema à cultu-
jeto racionalista e pragmático da moderni- ra visual. Imensamente popular, o cinema
dade e, portanto, deveria ser controlado ou desempenhou um importantíssimo papel na
instrumentalizado. No entanto, a despeito definição dos sexos da cultura de massa. O
da observação dessas clivagens, a perspec- cinema clássico representa as mulheres co-
tiva que se deseja apontar aqui reconhece mo prazer visual, objetos de um olhar mas-
esses universos como entrelaçados, embora culino. Atrizes como Marilyn Monroe torna-
por vezes se realcem discursivamente suas ram-se ícones da sexualidade, imagens está-
diferenciações enquanto modos de demar- ticas cujo fascínio reside nas fantasias que
car fronteiras e relações hierárquicas. Con- sobre elas são projetadas (HIGONNET, 1991,
corda-se aqui com Eva Illouz que: p. 415).

[...] repertórios culturais baseados no merca- Disso decorre a problemática que torna
do moldam e impregnam as relações inter- tão atual quanto relevante investigar críti-
pessoais e afetivas, e as relações interpesso- ca e minuciosamente a construção social de
ais encontram-se no epicentro das relações imagens e imaginários do “feminino”, ope-
econômicas. Mais exatamente, os repertórios rada em grande medida, através de mídias
do mercado se entrelaçam com a linguagem audiovisuais: trata-se, ao mesmo tempo,
da psicologia e, combinados, os dois ofere- como efeito de relações de poder historica-
cem novas técnicas e sentidos para cunhar mente constituídas, de reduzir o feminino
novas formas de sociabilidade (ILLOUZ, às suas imagens conforme olhares mascu-
2007, p. 13). linos, como meio de objetivação de ele-
mentos frequentemente considerados como
Embora não de forma generalizada, mas desprovidos de materialidade, como é o
significativa, muitas das imagens que se di- caso das emoções e de sua expressividade,
fundem nos meios de comunicação – ain- tratadas historicamente como competên-
da que direcionadas a diferentes públicos cias distintamente femininas (CANCIAN,
– se constituem historicamente a partir de 1986). Do que se deriva que, suas constru-
olhares masculinos. Assim, as relações que ções em forma de imagens ao longo do sé-
se estabelecem entre imagens socialmen- culo XX, executadas majoritariamente por
te reconhecidas, fixadas na memória pela homens (diretores de cinema, fotógrafos de
repetitividade, incorporadas nas práticas revistas) tornariam visíveis, conforme seus
cotidianas e, muitas vezes, naturalizadas, olhares, aspectos selecionados, realçados
tendem a reiterar olhares masculinos, uma e ressignificados de objetos considerados
vez que acedem a um repertório vasto e re- abstratos. Contudo, com a forte impres-
conhecido de imagens produzidas sob esses são de realidade instigada pela fotografia
olhares. Nesse sentido, em muitos de seus e pelo cinema, aspectos interpretativos das
usos, imagens de corpos femininos no ci- imagens, que só se tornam reconhecíveis a

236 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


partir de relações, são facilmente tomados lidades para pensar a questão das imagens
irrefletidamente, como retratos autênticos relacionadas a gêneros. Considera-se que
da “realidade”. a análise de imagens pautada pela noção
frequentemente vaga de representação não
Considerações finais contempla satisfatoriamente as relações so-
ciais que se estabelecem, primeiramente en-
A partir das reflexões aqui suscitadas, tre imagens e os significados a elas atribuí-
deduz-se que, frequentemente, o uso de dos, a partir das quais se constroem sentidos
imagens de personagens femininas em fil- que orientam ações concretas e formas não
mes e anúncios publicitários não se propõe somente de olhar e interpretar as imagens do
necessariamente a representar sua realida- mundo, mas o mundo em si. Formas consti-
de, mas em estabelecer precisamente liga- tuídas não pelo realismo das imagens, mas
ções com imaginários não somente sobre por relações de sentido que se construíram
feminilidades, mas de forma difusa, sobre histórica e processualmente entre imagens e
afetividade, emoções, prazeres, desejos, discursos e, com isso, instituíram formas de
paixões e outros elementos às vezes enten- perceber o mundo e de se apresentar e se
didos como ininteligíveis. Nisso, é contun- constituir, ao mesmo tempo, dentro dele e
dente que esse imaginário do feminino em perante ele, perfomativamente.
questão seja marcadamente heterossexuali-
zado. Mesmo filmes e campanhas publicitá- Referências
rias que seriam direcionadas a um suposto
público feminino são moderados por olha- ALMEIDA, H. B. “Muitas mais coisas”: telenovela,
res masculinos por se constituírem a partir consumo e gênero. 2001. 328 f. Tese (Doutorado
de relações com outras imagens produzidas em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras
conforme esses olhares. e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.
Reconhece-se, portanto, a relevância so-
cial e política de se problematizar a consti- AUMONT, J. ; MARIE, M. Dicionário teórico e crí-
tuição de imagens de gêneros que se inserem tico de cinema. São Paulo: Papirus, 2009.
reiteradamente na produção e manutenção BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social
de relações desiguais. Contudo, acredita-se da realidade. Petrópolis: Vozes, 1983.
que ainda há questões metodológicas signi-
BESSA, K. Os festivais GLBT de cinema e as mu-
ficativas a serem debatidas de forma porme-
danças estético-políticas na constituição da subje-
norizada e cuidadosa, sendo que recorrentes tividade. Cadernos Pagu, n. 28, p. 257- 283, jan./
clivagens que estabelecem as imagens – na jun. 2007.
condição de representações – em oposição
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e
à realidade, eventualmente perdem de vista
subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civiliza-
as complexas relações de mútua construção
ção Brasileira, 2013.
que se estabeleceriam entre esses dois ele-
mentos pretendidos por muitos como auto ______. Corpos que pesam: sobre os limites dis-
-excludentes. Este artigo, sem dúvida, é in- cursivos do sexo. In. LOURO, G. L. (Org.). O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Belo Hori-
suficiente para resolver todas essas questões,
zonte: Autêntica, 2000, p.151-175.
sendo seu propósito, principalmente, suscitá
-las, instigá-las e promover outras possibi-

“Representações” de gênero em imagens 237


CANCIAN, F. The feminization of love. Signs, n. 4, RABENHORST, E. R.; CAMARGO, R. P. (Re)presen-
v. 11, p. 692-709, 1986. tar: contribuições das teorias feministas à noção
de representação. Estudos feministas, Florianópo-
COLLING, L. et al. Um panorama dos estudos sobre
lis 21(3), p.981-1000, set./dez. 2013.
mídia, sexualidades e gêneros não normativos no
Brasil. Revista Gênero, Niterói, v. 12, n. 2, p. 77- ROMANI, P.; WINCK, G.; STREY, M. Consumis-
108, 1º. sem. 2012. mo na pós-modernidade: uma questão de gênero?
Ciências Sociais Unisinos, v. 49, n. 3, p. 263-268,
DURKHEIM, E. O suicídio: estudo de sociologia.
set/dez 2013.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ROSSI, T. Uma sociologia do amor românti-
GOFFMAN, E. Gender Advertisement. New York:
co: Hollywood, 1990-2000. São Paulo: Alameda,
Harper & Row, 1979.
2015.
GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão. São Paulo: Mar-
SORLIN, P. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier
tins Fontes, 2007.
Montaigne, 1982.
HALL, S. Representation: cultural representations
WEBER, M. Economia e Sociedade, v. I. Brasília:
and signifying practices. London: SAGE Publica-
UNB, 2000.
tions, 1997.
______. Sobre a “objetividade” do conhecimento
HIGONNET, A. Mulheres, imagens e representa-
nas ciências sociais. Ensaios sobre a teoria das
ções. In: PERROT, M.; DUBY, G. História das mu-
ciências sociais. São Paulo: Centauro, p. 1-74,
lheres no Ocidente v. 4. Porto-PT: Afrontamento,
2008.
1991, p.325-349.
WRIGHT MILLS, C. O homem no centro: o desig-
ILLOUZ, E. O amor nos tempos do capitalismo.
ner. Sobre o artesanato intelectual e outros en-
Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
saios. Rio de Janeiro: Zahar, p. 65-80, 2009.
LAURETIS, T. Tecnologia do Gênero In: HOLLAN-
DA, H. B. (Org.). Tendências e impasses: o femi-
nismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.

LOURO, G. L. Cinema e sexualidade. Educação &


Realidade, 33(1), p. 81-98, jan./jun. 2008.

MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. São


Paulo: Brasiliense, 2003.

MENEZES, P. Representificação: as relações (im)


possíveis entre cinema documental e conhecimen-
to. RBCS, v.18, n. 51, p. 87-97, fev. 2003.

______. À meia luz: cinema e sexualidade nos


anos 70. São Paulo: Editora 34, 2001.

MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o


espírito do tempo - 1: Neurose. São Paulo Forense,
2002.

PASSERINI, L. Mulheres, consumo e cultura de mas-


sas. In: PERROT, M.; DUBY, G. História das mulhe-
res no Ocidente v. 4. Porto-PT: Afrontamento, 1991.

238 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017


RESUMO ABSTRACT
Este é um artigo de caráter teórico-metodo- This is a theoretical and methodologi-
lógico, no que se discutem os usos do termo cal paper, discussing the uses of the term
“representação” na literatura de estudos de “representation” in the literature of gen-
gêneros, problematizando de forma mais der studies, questioning more specifically
específica o uso do termo em trabalhos que the use of the term dealing with images
tratam de imagens convencionadas e reco- conventionally recognized as ‘ feminine ‘,
nhecidas como “femininas” especialmente especially in films and advertising. It is ar-
no cinema e na publicidade. Argumenta-se gued that the term “representation” in such
que o termo representação nesses estudos studies would be analytically problematic,
de imagens seria analiticamente problemá- especially when imbricated of its political
tico, especialmente quando emaranhado em and social meanings. Without ignoring the
significações políticas e sociais. Sem des- importance of critically studying the uses
considerar a importância de se estudar criti- and the construction of genres by images,
camente os usos e a construção de imagens we propose other approaches that do not
de gêneros, propõe-se abordagens alterna- reproduce the antagonism between image
tivas que não reproduzam o antagonismo - typically treated as representation - and
entre imagem – tipicamente tratada como “reality”, suggesting instead, exploring the
representação – e “realidade”, sugerindo, social relationships between images and its
ao contrário, explorar relações sociais entre consequences on the social construction of
imagens e seus desdobramentos na constru- gender differences.
ção social de diferenças de gêneros.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Gêneros. Representações. Imagens. Socio- Genders. Representations. Images. Cinema
logia do Cinema. Sociology.

Recebido em: 14/06/16


Aprovado em: 15/02/17

“Representações” de gênero em imagens 239


240 Repocs, v.14, n.28, jul/dez. 2017

Potrebbero piacerti anche