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Resumo: O objetivo deste artigo é contribuir para uma maior compreensão da realidade feminina
na agricultura familiar. Partindo das relações de trabalho na família rural em uma região de
predominância de unidades familiares - o Alto Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais -
busca dimensionar a importância da participação feminina nas atividade produtivas, e analisar a
representação do trabalho feminino para os membros da família em uma situação de forte
migração sazonal masculina. Conclui indicando que a mulher em sua jornada de trabalho faz a
junção de atividades domésticas e produtivas, e que a migração sazonal masculina apesar de
implicar em algumas reorganizações da divisão familiar do trabalho, não significam
necessariamente em uma reorganização das relações de poder entre homens e mulheres.
Introdução
A mulher desde há muito trabalha na agricultura, entretanto sua identidade é definida,
principalmente, por suas atividades na esfera doméstica e não consideradas trabalho. Essa
situação tem resultado na invisibilidade do trabalho feminino, no não reconhecimento da
trabalhadora rural, dificultando o seu acesso aos direitos previstos em lei, excluindo-as das
políticas de desenvolvimento.
Artigo de Pisa e Ribeiro (1999), analisando a ocupação feminina na agricultura de Minas
Gerais, demonstrou que a participação das mulheres no total do pessoal ocupado na agropecuária
mineira cresceu, pulando de 24,51% em 1985 para 26,16% em 1996. Os autores indicam que este
fenômeno ocorreu em todos os grupos de áreas até 1.000 hectares, sendo que os estabelecimentos
de até 50 hectares ocupavam 67,73% das mulheres que trabalham na agricultura. Se o foco de
observação mudar para os estabelecimentos de até 100 hectares, encontra-se então 79,51% do
total de mulheres que trabalham na agricultura mineira. Em 1996 representavam 11,06% no total
dos trabalhadores temporários na agricultura mineira e, foram encontradas, surpreendentemente,
até em setores considerados de preponderância masculina como a pecuária.
Combinando estes dados com outras tendências globais da agropecuária mineira - que
indicam uma maior permanência da ocupação de pessoal nos estabelecimentos explorados com
mão-de-obra familiar (Ribeiro, 1999) - observa-se que dentro deste segmento vem aumentando a
importância do trabalho feminino. Mas quais são os aspectos sociais, culturais e políticos que se
depreendem destes fenômenos? Como estes dados e números se refletem na participação das
mulheres no trabalho rural? Que tipos de conflito estariam colocados nas relações familiares?
1
Antropóloga, IFCH/UNICAMP, bolsista CNPq. E-mail: fgalizoni@yahoo.com.br . Caixa Postal 151, Lavras, MG,
CEP: 37200-000.
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Economista, professor da Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, pesquisador CNPq. E-mail:
aureoemr@ufla.br DAE/UFLA, Caixa Postal 37, Lavras, MG, CEP: 37200-000.
1
Que impacto poderia ter sobre as representações construídas sobre o que é próprio do homem e
da mulher? Foram estas questões que nortearam um estudo de caso realizado numa região de
agricultura familiar em Minas Gerais.
O objetivo deste artigo é dimensionar a importância da participação feminina nas
atividade produtivas em uma região de predominância de unidades familiares – o Alto
Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais – e analisar a representação do trabalho feminino
para os membros da família em uma situação de forte migração sazonal masculina.
É fruto de pesquisa de campo realizada nesta região no período entre janeiro e setembro
de 1999, em duas etapas. A primeira, exploratória, quando foram realizados contatos e entrevistas
com os Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios, entidades civis e associações, as
Igrejas Batista e Católica e movimentos sociais da região. Nessa etapa, foram levantados,
definidos e confirmados os locais do estudo de campo. A segunda etapa compreendeu umaa
etnografia propriamente dita. Foi realizada, buscando uma observação participante3, com estada
prolongada em três comunidades diferente, escolhidas mediante os seguintes critérios:
distribuição nas calhas do Jequitinhonha e seus principais afluentes, período histórico de
ocupação, diversidade ambiental, densidade demográfica, migrações e disponibilidade de terras.
O artigo é composto por três partes: a primeira faz uma pequena revisão bibliográfica
sobre trabalho feminino na agricultura; a segunda discorre sobre o Alto Jequitinhonha e o sistema
de lavoura das famílias agricultoras,; e a última, analisa o trabalho feminino e seus espaços na
agricultura familiar do alto Jequitinhonha,
3
Sobre método de observação participante ver Malinowski (1978)
2
roçado. O consumo é subordinado à produção. Em consequência desta hierarquia, considera-se
trabalho as atividades desenvolvidas na esfera produtiva, já as múltiplas tarefas desenvolvidas no
espaço do consumo da família não são consideradas trabalho. Heredia (1979) conclui então, que
há oposição entre roçado e casa, que define o que é considerado trabalho e não-trabalho,
delimitando os espaços e papéis masculinos e femininos; mesmo quando as mulheres
desempenham atividades produtivas no roçado, seu trabalho é avaliado como "ajuda" ao trabalho
do homem.
Garcia Jr. (1993) aponta que a tarefa de plantar desempenhada pelas mulheres no roçado,
é considerada trabalho se comparada com suas atividades domésticas, porém, se comparada com
as atividades masculinas no roçado, plantar não é considerado trabalho. Neste sentido a
qualificação do trabalho feminino é relacional, recebendo, muitas vezes, uma dupla avaliação.
O significado de “ajuda” para o trabalho feminino também foi encontrado por Paulilo
(1987) em comunidades rurais do Brejo Paraibano. Em seu estudo sobre trabalho e relação de
gênero na agricultura nesta região, revela que o trabalho é qualificado e remunerado a partir de
quem o desempenha: “leve” se forem mulheres ou crianças, “pesado” se forem homens. E esta
qualificação pouco tem a ver com as características da atividade desenvolvida, um pode ser tão
árduo e cansativo quanto o outro. Assim a diferença se expressa muito mais no campo da
representação simbólica do que no esforço desprendido e na tarefa desenvolvida.
Ribeiro (1993) pesquisando famílias agricultoras na zona da Mata mineira, também
chegou a uma conclusão parecida, de acordo com ele, os homens constróem uma parte de seu
poder no trabalho. As tarefas masculinas possuem maior continuidade, podendo ser expressa num
produto final - construir uma cerca ou roçar um pasto por exemplo - e quase sempre, possuem
equivalente monetário; já as atividades designadas como femininas são compostas de uma série
de tarefas descontínuas: fazer comida, limpar a casa, cuidar das criações pequenas, lavar roupa
etc, gastando uma grande quantidade de esforços esparramados, que têm pouco equivalente em
dinheiro.
Woortmann (1992) chama a atenção para um fato importante nos estudos sobre trabalho
feminino na agricultura, indicando que, talvez, haja mais um problema na formulação de questões
de pesquisa: o(a) pesquisador(a) reproduz um “discurso público” do grupo pesquisado que
privilegia o domínio masculino, deixando à margem o “discurso privado” onde o domínio
masculino interage com o domínio feminino estabelecendo relações de gênero e, às vezes,
complementariedade entre os gêneros 4.
Esta hierarquia simbólica na construção de gênero e na representação do trabalho
feminino e masculino no mundo do trabalho rural, se expressam também nas construções de
dados sobre este universo. Aguiar (1984) indica a dificuldade estatística de captar a participação
do trabalho feminino na agricultura. Segundo esta autora, há um vácuo de teorias que concebam o
trabalho feminino realizado no espaço doméstico como atividade produtiva. O conceito de chefe
de domicílio esconde e dilui as atividades femininas.
Os vários autores acima indicam que divisão social e sexual do trabalho está na raiz dos
processos de diferenciação de gênero nas famílias de agricultores. Assim, cabe entender as
relações de trabalho tanto no que diz respeito ao espaço interno da família - para assim
compreender o papel da mulher e o do homem - quanto compreender o significado que mulheres,
4
A autora afirma que: " O próprio discurso acadêmico, pois, relega ao silêncio o ponto de vista feminino, mesmo
quando as atividades das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo com um todo" (Woortmann,
1992: 42).
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homens e a sociedade envolvente atribuem ao que é trabalho e a relação de poder que constróem
a partir desta definição.
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A área designada neste artigo por alto Jequitinhonha, corresponde à parte do vale acima da foz do rio Araçuaí e do
rio Itacambiruçu, refere-se mais precisamente aos municípios de Turmalina, Chapada do Norte, Berilo, Minas Novas,
José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Botumirim, Cristália e Grão Mogol.
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comunidades rurais do alto Jequitinhonha é esquadrinhado, alternando mato e roça, lavoura,
criação e extração.
Para realizar a roça as famílias precisam antever e combinar quantidade de mão-de-obra
disponível, com qualidade e declividade dos terrenos que possuem, disposição do ambiente e
pauta alimentar que precisam minimamente alcançar para sua alimentação. A roça é sempre a
conclusão de uma cadeia de operações que envolvem terra, ambiente, família, trabalho,
conhecimento, técnica e muitas contas.
A lavoura é concretizada através da soma de várias jornadas de trabalho que envolvem
todo o grupo familiar: homens, mulheres, crianças e idosos. No alto Jequitinhonha a roça não é
uma atividade exclusivamente masculina, a mulher participa de quase todas suas etapas. Para
compreendermos a participação do trabalho feminino na lavoura da família é preciso
compreender os trabalhos necessários para formar as roças.
Toda lavoura familiar começa com a escolha do terreno, e para escolhê-lo leva-se em
conta a disponibilidade de terra, a cobertura vegetal, a declividade, a exposição ao sol e,
principalmente, o que se pretende plantar. Selecionado o terreno, o próximo passo é derrubar ou
roçar as árvores do local, utilizando-se, para este trabalho, machado ou foice - dependendo da
dimensão da vegetação. Cortam-se as árvores bem próximo do solo, deixando somente os tocos
do tronco. Vem daí um dos nomes pelo qual os lavradores denominam a lavoura: roça de toco.
As galharias em bandeiras de lenha são denominadas coivara, sendo este o outro nome pelo qual
a lavoura é designada: roça de coivara.
Feitas as coivaras, inicia-se a próxima etapa: colocar fogo. O fogo não é posto de maneira
indiscriminada; ao contrário, é posto com critério, de uma forma precisa para se alcançar a
decoada (o caldo resultante da mistura da água de chuva com as cinzas) propícia a fertilizar o
plantio que se vai fazer6. Após a queima da coivara inicia-se a destoca. Essa tarefa consiste em
revirar a terra com a enxada e retirar os tocos mais finos. Segundo os agricultores, essa operação
está ligada à densidade da vegetação somada ao tipo de plantio que se vai fazer.
Estando pronta a terra, aguarda-se o “bom tempo”, a época das chuvas, para se realizar o
plantio. Há uma série de associações de plantio que os lavradores realizam. São realizadas, pelo
menos, duas capinas nas roça. A primeira, após aproximadamente vinte dias do plantio; a
segunda, chamada repasse, depois de uns 30 ou 40 dias. A colheita possui vários ritmos,
relacionados ao ciclo de crescimento das diversas plantas. Colhe-se o milho, geralmente, entre os
meses de março a abril; o feijão colhe-se em janeiro ou fevereiro; a cana é colhida e beneficiada
principalmente em agosto; também nesse período - chamado da seca, entre março e outubro - é
que se colhe e se beneficia a mandioca.
Com exceção da tarefa de roçar que - segundo os lavradores - pela bruteza do serviço, é
trabalho masculino realizado pelos adultos da família. Mas se a mulher é viúva, separada, sozinha
ou se não tem filhos adultos faz ela própria o seu roçado. Todas as outras etapas são realizadas
em conjunto pelo casal e filhos, inclusive tarefas como fazer cercas. As mulheres têm grande
conhecimento das técnicas de lavoura e o trabalho na roça se coloca de forma praticamente
indistinta para homens e mulheres7.
O trabalho feminino nas etapas das lavouras estão distribuídos da seguinte forma:
6
Sobre o fogo como uma técnica ver Boserup (1987), Ribeiro (1997) e Posey, (1987)
7
O trabalho feminino no alto Jequitinhonha aparece em uma perspectiva distinta da encontrada em boa parte da
literatura sobre campesinato. Moura (1978 ), Woortmann (1995) e Garcia Jr. (1983) Seyfert (1985), encontraram
realidades diferentes.
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- derrubar ou roçar: é um serviço masculino, que a mulher faz com restrições, se é viúva,
separada, sozinha ou se não tem filhos adultos;
- queimar: colocar fogo é uma tarefa masculina, mas que a mulher também pode desempenhar. O
senhor João, lavrador do município de Minas Novas, afirma que o fogo que a mulher coloca
queima mais, é mais quente. Já as queimadas da palhada (restos da roça do ano anterior, mesmo
local que se plantou no ano anterior) a mulher pode fazer sem problema, sendo inclusive uma
tarefa dividida com os homens.
- destoca: mulher destoca, mas normalmente esta atividade é classificada como masculina.
- plantio: tarefa masculina e feminina, trabalho em conjunto.
- capina: são feitas duas capinas, e as duas são tarefas masculina e feminina realizada em
conjunto
- colheita: tarefa feminina.
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nos afazeres em casa. Eva avalia que cuidar só da lavoura é um serviço melhor, por que é um
serviço só, concentrado, com começo, meio e fim, onde se vê o resultado final materializado;
enquanto o trabalho na casa é um tanto de serviços "picado", descontínuos; são serviços miúdos,
que somados, representam uma gama de atividades imensas.
O relato de Josina, a seguir, também é esclarecedor do espaço concreto do trabalho da
mulher na jornada da família: "Quando eu estava com a idade de dez anos, o meu pai morreu,
nós ficamos. Eu era mais sofredora, porque tinha que ajudar minha mãe a trabalhar para criar
os outros menininhos que ficaram. Eu não era a mais velha, a que era mais velha do que eu
ficava dentro de casa e eu trabalhava mais minha mãe. Era tanto, que minha mãe me levava
para trabalhar junto com ela para os outros; chegava lá, se fosse bastante camarada na roça, eu
não aguentava trabalhar no meio deles, eles me punham para carregar água, e eu carregava
água; quando chegava com a vasilha de água era a continha deles beber e eu voltava de novo,
para buscar mais. Quando eu fui apanhando idade, ficando mocinha, eu sabia fazer todo serviço,
eu sabia carpir, sabia plantar, sabia qualquer serviço... Roçava, apanhava coivara assim depois
que queimava, qualquer serviço que me pusessem: tocar roda para fazer farinha, mexer com
gado... Minha vida é uma lida sem fim, eu sempre trabalhei" (Josina, lavradora, município de
Cristália).
Na região pesquisada, quando alguém, homem ou mulher, queria elogiar o ânimo de
trabalhar de alguma mulher, afirmaram "Fulana é muito boa de serviço, roça igual homem". Seu
João, lavrador do município de Minas Novas, ao se referir ao tanto que sua mulher trabalha,
afirmou: "Ai de mim se não fosse ela, sou fraco, não tenho dinheiro para pagar camarada". Há o
reconhecimento do trabalho feminino, ou seja, o trabalho da mulher na roça é aceito como
trabalho; mas como ele é avaliado pelos homens? Pela afirmação ao lado, percebe-se que como
auxiliar ao do homem, substituindo o camarada, ou em casos extremos igualando-se aos homens,
mas não como um trabalho independente. E as mulheres? Como avaliam seus esforços na
lavoura? Elas constróem uma identidade mais positiva de seu trabalho na esfera familiar, mas
muitas vezes encontraram dificuldades de afirmá-lo externamente, como por exemplo nos casos
de aposentadoria rural, quando muitas lavradoras ao encaminharem seus processos de
aposentadoria declaravam como profissão “doméstica”, e por isso não tiveram acesso ao
benefício o que demandou várias campanhas dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região
para esclarecimento e sensibilização das mulheres sobre seus direitos.
Há uma avaliação contraditória do trabalho feminino na lavoura do alto Jequitinhonha,
por um lado, é valorizado tanto na perspectiva dos homens quanto das mulheres, considerado
importante. Os homens afirmam que preferem casar na região por que mulheres de outros lugares
não se adaptariam ao ritmo de trabalho de lá. Segundo um lavrador do município de Chapada do
Norte: "As mulheres daqui fazem de tudo um pouco, não mexem só com uma coisa: mexem com
criação, fazem cerca se precisar, buscam água, areiam panela ...O homem sai para trabalhar e a
mulher sabe fazer os serviços".
É comum as mulheres da região afirmarem, na presença de seus maridos, que "no serviço
da lavoura nenhum homem me deixa para trás"; e os homens confirmam que o serviço da mulher
é muito mais fatigante: "quando pesa por homem, pra mulher é muito mais pesado", porque na
região além das atividades domésticas a mulher trabalha muito na roça, participando praticamente
de todas as etapas. Por outro lado representa uma sobrecarga de atividades para a mulher, que
tem que realizar tarefas domésticas e tarefas na lavoura; neste sentido, as mulheres unificam em
si mesma, a dicotomia casa e roça.
Assim não se percebe na região explicitamente a clássica divisão e oposição entre
trabalho masculino e feminino, no que diz respeito ao trabalho na lavoura e até mesmo com o
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gado. Inclusive atividades consideradas em outras regiões no estado de Minas Gerais,
estritamente masculinas, são realizadas por mulheres no alto Jequitinhonha: lidar com o gado,
campear, roçar o mato e fazer cerca. As mulheres têm muito conhecimento das técnicas de
lavoura, em quase todos os relatos o trabalho na roça parece indistinto entre homens e mulheres,
com exceção da destoca, no trabalho com foice e em alguns caso, no colocar fogo. Mas mesmo
nestes serviços quando precisa a mulher faz - "a minha filha também destoca", é uma afirmação
feita por vários lavradores.
O reconhecimento do trabalho feminino na lavoura, não implica em mudanças
significativas nas relações entre homens e mulheres. Isto porque simbolicamente e na prática o
trabalho masculino produz produtos e bens trocáveis e socializáveis, e o trabalho feminino por ser
fragmentado e descontínuo - e por isso mesmo mais intenso - produz menos produtos por unidade
trabalhada (Ribeiro, 1993). Assim a qualificação do trabalho feminino ou masculino não se faz
pelo tanto de esforços desprendido e sim pelo produto final. E a identidade feminina ou
masculina não é construída somente pelo tipo de trabalho realizado, muitas vezes os trabalhos são
qualificados posteriormente dependendo se for realizado por homens ou mulheres, como indicou
Paulilo (1987). Desta forma o trabalho feminino na lavoura é reconhecido e considerado
importante, mas quando confrontado com o trabalho temporário masculino realizado nas regiões
canavieiras do interior paulista é considerado mais “leve”, porque realizado em condições
melhores que este. Desta forma, há uma redefinição do trabalho feminino na unidade familiar,
mas também há uma resignificação do trabalho masculino, que enfrenta a dureza de trabalhar
fora, sem o conforto da família. Apesar da mulher trabalhar na lavoura, os agricultores afirmam
que o "sustento vem de São Paulo", ou seja, do trabalho masculino realizado em outras regiões;
neste sentido, o trabalho na lavoura se torna acessório na manutenção da família, assim como o
trabalho das mulheres; apesar das reorganizações do trabalho familiar, o trabalho masculino é
considerado preponderante. Quando, o homem não migra ou, no correr do ciclo familiar, deixou
de migrar, seu trabalho é reavaliado na composição do trabalho familiar e muitas vezes, nestas
situações o trabalho masculino e feminino são pensados com complementares, mas coordenado
pelo homem.
A avaliação do trabalho feminino pelos membros da família lavradora, no alto
Jequitinhonha, possui assim uma dubiedade muito grande. Como a mulher participada tanto das
atividades domésticas quanto das atividades produtivas na roça, sua jornada de trabalho combina
estas duas esferas, o trabalho feminino contém aspecto contraditórios porque em parte é
representado como cativo e em parte como espaço de afirmação da identidade feminina. Cativo,
porque é sempre um trabalho subordinado à família e ao marido. E família, nesse contexto,
significa um trabalhador coletivo, assim por mais que a mulher trabalhe, realiza suas atividades
num espaço simbólico e cultural marcado, onde seu papel também é demarcado. Bison (1995)
analisando mulheres migrantes do Jequitinhonha, em São Paulo, demonstra claramente a força
das relações culturais: apesar de associarem o Jequitinhonha a trabalho intenso e subordinação
irrestrita à família, essas mulheres dificilmente rompiam com seu lugar de origem, enviando
mensalmente parte significativa de seus salários, e quase sempre acalentava a vontade de
retornar.
O trabalho na lavoura, representa afirmação de uma identidade positiva para a mulher,
abrindo um leque de atuação e participação públicas para elas: ela também trabalha, e por isso
pode se apropriar de alguns direitos construídos nesta sociedade por meio do trabalho, por
exemplo, o acesso à terra. No Alto Jequitinhonha, a posse e domínio da terra são legitimados pelo
trabalho que a família realiza na terra. Como o direito sobre a terra é construído por meio do
trabalho, a mulher tem possibilidade de ter acesso à terra porque deposita trabalho sobre ela,
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realizando praticamente os mesmos serviços que os homens. Mas se a mulher no Alto
Jequitinhonha tem acesso à terra, este não é sem conflito. A mulher não é privada da terra
principalmente porque trabalha na lavoura e através do seu trabalho constrói seu direito, mas há
grande distância entre construir seu direito e efetivá-lo; e a mulher, em casos de demanda, leva
desvantagens; a não ser quando é casada ou se viúva ou solteira, possui filhos maiores que
garantam concretamente o espaço de trabalho. Neste sentido é exemplar o caso de uma mulher na
beira do Jequitinhonha, município de Botumirim, logo após ficar viúva, com os filhos pequenos,
viu uma parte de sua gleba ser cercada e vendida por um fazendeiro vizinho, ela pelejou para
impedir a venda, mas não conseguiu, diz que: "Ele [o fazendeiro] fez isto porque sou mulher,
viúva e meus filhos são pequenos".
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