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R U S S E L L P. S H E D D & D E W E Y M .

M U L H O L L A N D

UMA A N A LIS E DE

EFES IO S , FILIP EN SES

C O LO SS EN SES E

FILEM OM
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Shedd, Russell P.
Epístolas da prisão : uma análise de Efésios,
Filipenses, Colossenses e Filemom / Russell P. Shedd
& Dewey M. Mulholland. — São Paulo : Vida Nova, 2005.

Título original de Filemom: PauPs ever relevant letter


to Philemom / tradução Hans Udo Fuchs.
Bibliografia.
ISBN 978-85-275-0329-7

1. Bíblia. N.T. Colossenses - Comentários 2. Bíblia.


_ N.T. Efésios - Comentários 3. Bíblia. N.T. Filemom -
Comentários 4. Bíblia. N.T. Filipenses - Comentários
5. Bíblia. N.T. Epístolas de Paulo - Comentários
I. Mulholland, Dewey M.. II. Título. III. Título : Uma
análise de Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemom.

05-0900 CDD-227.07

índices para catálogo sistemático:


1. Epístolas de Paulo : Comentários 227.07
2. Paulo : Epístolas : Comentários 227.07
epístolas sla
Epístola de Paulo aos Efésios (reedição de Tão Grande Salvação)
Copyright © 2005 Edições Vida Nova
Epístola de Paulo aos Filipenses (reedição de Alegrai-vos no Senhor)
Copyright © 2005 Edições Vida Nova
Epístola de Paulo aos Colossenses (reedição de Andai Nele)
Copyright © 2005 Edições Vida Nova

A Epístola, Sempre Relevante, de Paulo a Filemom


Copyright © 2005 Dewey M. Mulholland
Traduzido do original Paul s EverRelevant Epistle to Philemon
Tradução de Hans Udo Fuchs

Ia. edição: 2005


Reimpressões: 2006, 2007, 2009, 2012

Publicado com a devida autorização


e com direitos reservados para
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meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,
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dados, etc.), a não ser em citações breves, com indicação de fonte.

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

ISBN 978-85-275-0329-7

C oordenação editorial
Robinson Malkomes

C apa

Julio Carvalho

C oordenação de produção
Roger Luiz Malkomes

D iagramação

Sérgio Siqueira Moura


oou

Conteúdo

Prefácio dos Editores.............................................................................................. 7

Epístola de Paulo aos Efésios----------------------------------------------- 9


Introdução................................................................................. 11
Razões para louvar a Deus (1.1-14)..................................... 13
Um modelo inspirado de intercessão (1.15-23)................. 21
Tão grande salvação (2.1-22)................................................ 30
O grande mistério da salvação (3.1-13).............................. 40
A segunda oração na epístola................................................ 46
O discipulado de Cristo - prim eira parte (4.1-16)........... 51
O discipulado de Cristo - segunda parte (4.17-5.21)...... 54
O discipulado no lar, no trabalho e
no exército de D eus (5.22-6.24)....................................... 64

Epístola de Paulo aos Filipenses..................................................................... 7 7


Introdução.................................................................................. 79
As bases da nossa segurança (1.1-8).................................... 85
Uma oração-modelo (1.9-11)................................................. 94
A filosofia de vida do cristão (1.12-26).................................105
Os cidadãos do céu em comunidade (1.27-2.4)..................118
O centro da história (2.5-11 ) ................................................. 129
Desenvolvendo a salvação (2.12-18)....................................141

5 -
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

Homens de Deus (2.19-30)...................................................... 152


Perdendo para ganhar (3.1-8)..................................................160
A ambição de Paulo (3.9-16)...................................................171
O corpo (3.17-21 ) ......................................................................179
O contentam ento (4.1-7 ) ......................................................... 188
O Deus da paz será convosco (4.8-13)................................ 197
A necessidade e o suprim ento (4.14-23)............................. 207

Epístola de Paulo aos Colossenses............................................................. 2 1 7


Introdução...................................................................................219
Autor, destinatários e saudação inicial (1.1, 2 ) .................223
A fé, o amor e o evangelho (1.3-8)........................................225
Intercessão em estilo apostólico (1.9-12)............................... 228
Jesus Cristo, Senhor de toda a criação (1.13-23)............... 232
O senhorio de Cristo no m inistério de Paulo (1.24-2.5)... 241
Em Cristo, o Senhor (2.6-15)..................................................249
Conseqüências de estar em Cristo, o Senhor (2.16-3.4)... 256
O senhorio de Cristo na vida prática (3.5-17).................... 262
O senhorio de Cristo no lar e no serviço (3.18-4.6)............ 274
Vidas sob o senhorio de Cristo (4.7-18)................................281

A Epístola, sempre relevante, de Paulo a Filemom........................ 287


Introdução...................................................................................289
A - Saudação inicial (v. 1 -3 )...................................................293
B - Filemom, sua fé e seu amor têm
animado o povo de Deus (v. 4-7 ).....................................295
C - Quem ama de verdade renuncia
aos seus direitos (v. 8-14)................................................ 299
D - Filemom, ame sem restrições: receba
seu escravo como irmão amado (v. 15-17)........... 305
C ’ - Quem ama de verdade assume
as dívidas do irmão (v. 18-19)......................................... 307
B’ - Filemom, me traga ânimo: faça até
mais do que peço (v. 20-22)............................................ 309
A’ - Saudação final (v. 23-25)................ 311
Apêndice...................................................................................... 313
B ibliografia.................................................................................319

- 6 -
Prefácio dos
Editores

É com grande desejo de prestar mais um serviço relevante à igreja


do Brasil que Edições Vida Nova apresenta Epístolas da prisão, uma
exposição das quatro epístolas cujas composições são tradicio­
nalm ente associadas ao período em que Paulo esteve preso em
Roma, no início da década de 60, a saber, Efésios, Filipenses,
Colossenses e Filemom.
A relevância dessa publicação é sublinhada, em prim eiro
lugar, pelo fato de seus autores terem um estreito vínculo com o
Brasil e com a igreja brasileira. A vivência deles em solo verde-e-
amarelo deu-lhes a capacidade de se dirigir de modo espontâneo e
corrente ao leitor de língua portuguesa. Isso se torna facilmente
verificável pelo estilo fam iliar ao brasileiro e pela criação de um
ambiente textual que fala não apenas à mente, mas também ao
coração.
Em segundo lugar, a relevância fica acentuada igualmente
pela capacidade que os autores esbanjam de colocar o texto bíblico
dentro do mundo que nos cerca hoje, com suas características singu­
e p í s t o l a s da prisão

lares, desafios e necessidades. Ao assim fazer, eles enaltecem o


celebrado e decantado valor perene do texto sagrado, que, além de
perene, também se revela peremptório, decisivo e digno de crédito.
Além de relevante, Epístolas da prisão também se apresenta
como fonte de inspiração. Paulo, o m aior e mais prolífico autor do
Novo Testamento, escreve num a época da vida em que sua m atu­
ridade de pensamento e seu coração pastoral haviam atingido os
mais altos níveis de expressão vivencial e epistolar. O fato de estar
preso no fim da carreira podería gerar um gosto de derrota e de
tristeza no grande apóstolo. Todavia, o que se vê nessas quatro
epístolas é a sublime expressão de alegria, vitória e gratidão m ani­
festadas por alguém que havia chegado ao clímax da carreira, tendo
combatido o bom combate sem perder a fé.
É nosso desejo como editores que a relevância e a inspiração
veiculadas por Epístolas da prisão sejam mais um motivo para o
fortalecimento da igreja no Brasil em sua busca de m aturidade e
de perfeição na luta pela fé evangélica que nos une e motiva.

São Paulo, fevereiro de 2005


Introdução

Efésios, epístola que me desafiou já há m uitos anos e que, depois


de m uito estudo, continua me desafiando! É a epístola que foi
reconhecida por um a autoridade como a rainha das epístolas de
Paulo. Efésios é o mais sublime de todos os livros ou epístolas na
literatura humana.
O apóstolo aos gentios encontrava-se preso em Roma, mas
tinha liberdade para ensinar. E, talvez m ais im portante ainda,
podia m editar e colocar no papel suas meditações (segundo At
28.30, 31). D urante o período de dois anos de reclusão, o apóstolo
escreveu as im portantíssim as epístolas aos colossenses, aos efésios,
a Filemom e, possivelmente, aos filipenses.
A Epístola aos Efésios foi escrita provavelmente em 61 A.D.,
trinta anos, mais ou menos, depois da sua conversão. Foi depois
de alguns anos num deserto perto de Damasco, de muitos anos de
serviço na obra m issionária, de m uitas lutas (até físicas); foi depois
de ter sido apedrejado, de ter estado m uitas vezes sem comida e
sem seus companheiros, tendo este homem passado a viver cada
vez mais na presença de Cristo. Esta epístola é como se fosse o
auge, uma descrição inspirada dessa vivência com Cristo; ao mesmo
tempo, é uma abertura para a inspiração do Espírito, para todos
nós. D entre as epístolas de Paulo, somente esta, com base na crítica

-1 1 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

textual, parece ter sido escrita para várias igrejas e não apenas
para uma. Nesse aspecto ela é semelhante ao livro de Apocalipse,
que foi dirigido a Efeso e a mais seis igrejas da Ásia.
A grande ameaça levantada pelos judaizantes, que Paulo
combatera em Gálatas, Romanos e em parte de lCoríntios, já não
era mais problema. O gnosticismo incipiente começa, com o seu
dualismo total e profundo, a ameaçar a igreja cristã. Em Colos-
senses, Paulo trata especialmente dessa doutrina alheia à verdade.
“Assim”, escreve Robinson, “ele ficou livre para dedicar-se a uma
suprema exposição, não controvertida, positiva, fundam ental, da
grande doutrina da sua vida, isto é, da hum anidade de Cristo, da
hum anidade em Cristo e do propósito de Deus para o mundo,
através da igreja”.
Interpretação

Razões para louvar a Deus ( 1 .1 -1 4 )

'Paulo, apóstolo de Cristo Jesus por vontade de


Deus, aos santos que vivem em Efeso e fiéis em Cristo
Jesus, 2graça a vós outros e paz da parte de Deus, nosso
Pai, e do Senhor Jesus Cristo. 3Bendito o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com
toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em
Cristo, 4assim como nos escolheu nele antes da fundação
do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante
ele; e em amor 5nos predestinou para ele, para a adoção
de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o bene­
plácito de sua vontade, 6para louvor da glória de sua
graça, que ele nos concedeu gratuitam ente no Amado,
7no qual temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão
dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, 8que Deus
derramou abundantem ente sobre nós em toda a sabe­
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

doria e prudência, 9desvendando-nos o mistério da sua


vontade, segundo o seu beneplácito que propusera em
C risto, 10de fazer convergir nele, na dispensação da
plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu,
como as da terra; "nele, digo, no qual fomos também
feitos herança, pred estin ad o s segundo o propósito
daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da
sua vontade, 12a fim de sermos para louvor da sua glória,
nós, os que de antemão esperamos em Cristo; 13em quem
também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade,
o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido,
fostes selados com o Santo Espírito da promessa; 14o
qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua
propriedade, em louvor da sua glória.

0 autor: Paulo, apóstolo em Cristo


Paulo era judeu, e por isso dedicava a sua vida a preservar uma
doutrina, a doutrina da unidade de Deus, de ser ele supremo sobre
todas as coisas. Essa doutrina fora ameaçada pelo surgimento de
uma “seita” cristã, que seguia o Nazareno chamado Jesus Cristo.
Paulo, sentindo-se m uito ameaçado em sua própria pessoa, como
tam bém vendo o judaísm o tão ameaçado, achou válido servir
àquela doutrina até à morte. E, com essa finalidade, dirigia-se a
Damasco a fim de destruir a seita que se espalhava tão rapidamente
pelas cidades do império romano. Mas, enquanto caminhava, uma
visão transformou-lhe a vida. E naquele instante começou a vida
do novo Paulo, a vida em C risto, um a vida com pletam ente
transform ada pela visão do senhorio de Cristo, do Cristo cru­
cificado, ressurreto e glorificado.
A Epístola aos Efésios é apenas um a continuação dessa
visão. E o apóstolo Paulo reconhecendo a missão que Cristo lhe
deu, quando, naquele im portante encontro, sua vida sofreu uma
reviravolta. E ele começou realmente uma caminhada para o céu.
A palavra apóstolo, que indica o reconhecimento da autori­
dade de Paulo, baseia-se num a palavra aramaica: shãliah. Esse
termo, segundo Rengstorf, sugere que o apóstolo é o que é comis­
sionado não apenas como missionário, que leva uma mensagem;
não apenas como em baixador, que tem sua carta selada para
entregar a um rei de outro país; mas como procurador, que substitui
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIOS

aquele que o mandou e pode tomar iniciativas. Assim, o que ele


vai falar e fazer é em Cristo. Essa expressão em Cristo, que aparece
m uitas vezes em Efésios, é uma descrição dessa autoridade que
Paulo reivindica como apóstolo de Jesus Cristo. Há uma in te­
ressante passagem do Talmude que diz: “O shãliah é equivalente
àquele que o enviou”. E é por isso que Paulo escreve palavras que,
para nós, são m uito difíceis. Em 2.20 lemos: "... edificados sobre
o fundam ento dos apóstolos e profetas”. Isto é, os apóstolos e
profetas são pessoas que receberam um a revelação autorizada. E
essa revelação é a que temos diante de nós! Creio firmemente que
se deixássemos o fundam ento de que a palavra de Paulo é igual à
palavra de Cristo — que a autoridade do apóstolo é igual à autori­
dade de Cristo — ficaríamos sem segurança alguma e facilmente
teríamos de descambar para a própria razão hum ana. Paulo, como
apóstolo, nos traz assim essa mensagem inspirada, com autoridade.
E os seus leitores são chamados santos e fiéis.

Os destinatários: os santos e fiéis em Cristo Jesus


A palavra santo não significa um a pessoa que não peca. Pelo
contrário, com base em Daniel 7 e em outras passagens do Antigo
Testamento, santo quer dizer “pessoa separada por Deus”; e no
Novo Testamento, através do Espírito de santificação, “alguém
separado para pertencer exclusivamente a D eus”.
Quando pecamos, negamos a nossa posição de povo santo.
Mas não deixamos de ser santos ao pecarmos, porque essa posição
é nossa. E Paulo envia a epístola com a pressuposição de que os
seus leitores são pessoas realmente convertidas e separadas para
o reino de Cristo.
A palavra fiéis, que também descreve os leitores (e, portanto,
deve descrever cada um de nós), sig n ifica “aqueles que se
comprometeram com Cristo, que aceitaram o convite de sair do
m undo perdido para o reino do Filho do seu am or”. Esse compro­
misso é uma decisão definitiva e clara; é uma m udança de posição,
não geográfica, mas mental, quanto a quem é Jesus Cristo e quanto
a todos os outros senhorios do mundo, inclusive o de César. Dando
esse passo, tornam-se fiéis. A palavra também carrega a idéia de
fidelidade: não apenas deram aquele passo, quando se batizaram
e se identificaram com Cristo, mas continuam se identificando
perm anentemente.

- 15
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

0 contexto e o tema de 1 .1 - 1 4
A epístola divide-se basicamente em duas partes: os três primeiros
capítulos falam principalmente de doutrina e história, aquilo que
Deus já fez e está fazendo; enquanto os capítulos 4, 5 e 6 nos desa­
fiam a fazer alguma coisa, em decorrência do que Deus faz e já fez.
Encabeçando assim a prim eira parte da epístola, nos versículos 1­
14, Paulo faz um convite a um a tom ada de posição quanto à
adoração, numa doxologia: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo”. Essa oração introduz o mais longo período que se
conhece na literatura bíblica, pois termina somente no versículo 14.
Do versículo 15 até o fim da capítulo temos uma oração
apostólica; o capítulo 2 desenvolve alguns temas implícitos nessa
oração (depois observaremos os pedidos centrais na oração do
capítulo 1 e como ela se relaciona com o capítulo 2). O capítulo 3
apresenta a vocação apostólica de Paulo e como isso se relaciona
com o tema da epístola toda, que é particularm ente doutrinária.

Bendito o Seus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo


No versículo 3 começa a mensagem da epístola com um chamado
à adoração. Toda doutrina deve ser como um fundam ento ou como
o solo, no qual a vitalidade de adoração e culto cresce constan­
temente. Não encontramos aqui um “louvado seja o Senhor”, sem
parar para pensar por que ele deve ser louvado, mas toda esse
prim eiro trecho ou parágrafo nos dá motivos para louvor. Veremos
rapidam ente como o apóstolo Paulo sente a motivação interior
para louvar o seu Deus. .
Na prim eira linha, no versículo 3, o verbo principal não
existe no original, mas é possível entender qual seja esse verbo:
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”, já que
por três vezes (versículos 6, 12 e 14) a finalidade de tudo o que
Deus está fazendo, e fará, é o louvor de sua glória. O apóstolo
Paulo está então nos chamando, antecipadamente, como que para
tom ar parte com aqueles que já estão redimidos, a exemplo de
Apocalipse 4 e 5, para expressarmos já um grande coro de louvor:
Bendito seja Deus! O que Deus tem feito para que o louvemos de
coração? A essa pergunta se responde da seguinte forma: ele nos
tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais
em Cristo. Isso não é fácil de entender, mas pensemos um instante:

- 16 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S E F É S i O S

ele está dizendo que não há bênção espiritual que não seja em
Cristo; todas as bênçãos são cristocêntricas. Haverá alguma bênção
que não emane de Cristo? No fim tornar-se-á outra coisa, mas
não uma bênção; transformar-se-á numa ameaça, ou talvez numa
maldição.
Outro aspecto é que todas as bênçãos nos são concedidas
não apenas por Cristo, mas em Cristo. Note-se esta frase: que nos tem
abençoado. Deus, à frente de todas as bênçãos, nos tem abençoado
com toda sorte de bênção espiritual em Cristo. A frase em Cristo significa
um relacionamento íntimo com ele, com a intimidade de uma vida
transformada, de uma vida resgatada, salva; uma vida em que Cristo
é realmente Senhor, aquele a quem já nos entregamos. A ele, repre­
sentante da m inha vida, eu me entrego, da mesma forma como
fazemos ao eleger um deputado ou um presidente: nós nos colo­
camos debaixo do seu controle; ele pode criar leis, pode controlar
nossa vida, porque estamos “em ele”. Portanto, a expressão em Cristo
tem a idéia de representação, uma representação total de nossa vida.
Não devemos nos esquecer também de que estar em Cristo quer
dizer estar no Espírito e ter o Espírito Santo em nós, unindo-nos a
Cristo e uns aos outros no seu corpo, a igreja.
Mas esta outra frase, nas regiões celestiais, não aparece em
outras epístolas paulinas. O que ela quer dizer? Os eruditos não
têm m uita certeza quanto ao que Paulo queria transm itir com ela.
Mas já que Cristo, no versículo 20, está sentado à direita da auto­
ridade soberana de Deus, nos lugares celestiais, parece-me que
Paulo quer cham ar a nossa atenção à realidade de que, quando
estamos em Cristo, já estamos como que retirados deste mundo, e
m uitos fatores que norm alm ente controlariam nossa atitude assu­
mem uma nova realidade: a realidade da exaltação de Cristo. O
que isso implica em nossa vida? Ainda que estejamos neste mundo,
“lugares celestiais” é outra m aneira de dizer o que Paulo fala em
2Coríntios 2.14: “Graças, porém, a Deus, que, em Cristo, sempre
nos conduz em triunfo”. Cristo já conquistou a vitória sobre as
forças que se opõem; e, ainda que essa vitória não se veja e não se
realize em nossas vidas constantem ente, a possibilidade dessa
vitória é nossa. Isso se torna mais claro quando, pela última vez,
Paulo usa a mesma frase em 6.12, dizendo que a nossa luta é
contra as forças do mal, as forças satânicas, nas regiões celestiais.
Somente quando estivermos em Cristo, que, sentado à destra do
Pai, já conquistou a vitória por nós, é que seremos vitoriosos.

17 -
EPÍSTOLAS DA PR ISÃ O

As bênçãos que motream o nosso louvor


Quais são essas bênçãos? H á pelo menos cinco!
A prim eira bênção (v. 4): nos escolheu, nele, antes da fundação
do mundo. Não entendo bem o que significa a escolha de Deus.
Mas sei que a Bíblia fala, possivelmente em termos figurados, que
Deus tem um livro, o livro da vida, onde ele escreve o nome dos
que já foram salvos, estão sendo salvos e serão salvos. Naquele
livro estão os nomes dos escolhidos. Não se tem nenhum a in ­
formação de como ele faz essa escolha. Não se explica que im pli­
cações essa escolha tem para mim, porque eu tam bém tenho a
m inha escolha plena e livre. Mas quero dizer isto: que se ele não
me tivesse escolhido, antes da fundação do mundo, é certo que eu
não estaria aqui nem seria filho de Deus. É a garantia fundam ental
de que um dia olharei a face do meu Senhor, porque ele me escolheu.
E ele deve receber toda a glória pela m inha posição em Cristo. A
graça de Deus começa, então, com a afirmação da nossa eleição.
No original, essa eleição é para si mesmo. Ele nos elegeu para seus
propósitos.
A segunda bênção (v. 5): nos p redestinou para serm os
adotados. A palavra “p re d e s tin a r” significa “d e s tin a r com
antecipação”, sugerindo um a espécie de seleção. Em face da
impossibilidade de desejarmos receber o seu convite, de sermos
santificados ou de nos tornar irrepreensíveis, por causa do amor
que tenho e que todos nós temos pelo pecado, Deus então me deu
as condições que me faltavam, colocando ao meu lado justamente
as influências que hum anam ente explicam essa m udança de
direção na vida. No meu caso, no lar em que nasci, também as
incontáveis pessoas que viveram vidas irrepreensíveis diante de
mim, apresentando um modo de ser que me chamou a atenção,
fazendo com que eu soubesse que o cristianism o é mais do que
uma ideologia, mais do que uma mera herança religiosa; é uma
vivência.
Lendo Romanos 8.29, encontramos que, na predestinação,
p a ra serm os a d o ta d o s, o in te re s s e d iv in o é que sejam os
transformados em réplicas, imagens de Jesus Cristo, ou fotografias
vivas dele! Essa adoção é nossa em Cristo. Cristo é o Filho por
natureza, nós somos filhos por adoção. O versículo 7 fala da
redenção; isso significa que D eus elim inou os sinais da nossa
escravidão às forças satânicas, ao pecado, à nossa própria carne,

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EPÍSTOLA DE P A U L O A O S E F É 3 I O S

ao egoísmo, às forças da Lei e da morte. As algemas foram rom­


pidas, e Deus nos ofereceu, em Cristo, a liberdade de filhos, de
m odo que, segundo R om anos 8.15 e G álatas 4.6, como um
reconhecimento público, o novo cristão declara “Aba, Pai” (palavra
aramaica que significa “paizinho”). É o novo reconhecimento da
relação com C risto. Essas bênçãos são bênçãos que D eus já
derram ou sobre nós e que já começaram antes da criação. São
uma transferência de posição, deste m undo para os lugares celes­
tiais, de culpabilidade para irrepreensibilidade e de escravidão
para filiação.
A terceira bênção (v. 7): é uma bênção presente; veja-se o
verbo no presente: nele temos a redenção. Redenção é uma realidade
de vida contínua em decorrência da nossa posição em Cristo.
Algum tempo atrás, um jovem universitário chegou em meu
escritório com lágrimas que lhe escorriam pela face. Eu quis saber
o que se passava e ele me falou da sua escravidão ao pecado. Ele
não sabia onde havia uma saída para ele como crente. Conversamos
e oramos. Ele saiu com novas esperanças. Um dia, não m uito
tempo depois, me telefonou com novas lágrimas. Mas só que desta
vez o seu desespero era maior do que nunca. Ele me disse: “Caí
novamente e não há solução. Percebo que realmente estou cami­
nhando para o inferno, e não há salvação para m im ”. Conversamos
mais sobre a palavra e as promessas de Cristo; mostrei-lhe o fato
da escravidão e que eliminá-la é uma coisa que Deus faz, às vezes,
aos poucos, passo a passo. Oramos de novo e dei-lhe algumas tarefas.
Depois de algumas semanas, passamos a nos encontrar e comecei a
perceber seu rosto radiante, pelo menos nesta área. Deus rompeu
as algemas da escravidão; nele temos a redenção! Se você está
sentindo a força da escravidão na sua vida, note essa bênção, que é
contínua. Nele temos o preço pago por toda a escravidão. Podemos
nos chegar arrependidos diante dele, reconhecendo a nossa fraqueza
humana, pois ele nos oferece essa bênção continuamente.
A quarta bênção (v. 8): é a segunda bênção para o presente:
segundo a riqueza da sua graça, que Deus derramoti abundantemente
sobre nós em toda a sabedoria e pmdência. Cristo abriu o seu livro de
informações. Ele nos oferece o seu plano para o futuro, o que é
maravilhoso em todos os sentidos. Assim, não há necessidade de
ficarmos desesperados diante da m aneira como o mundo parece
estar se tornando cada vez mais sujeito às forças do caos. Não,
pelo contrário, dizem os versículos 9 e 10: Deus já propôs — e ele

19 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

não pode ser contrariado neste seu propósito — que todas as coisas
um dia vão convergir em Jesus Cristo, que estará encabeçando
tudo. Tudo mesmo!
No fim da oração do prim eiro capítulo (v. 22) vemos que,
para a igreja e para nós, essa realidade já está em atuação, ao
passo que o m undo pecador, as forças satânicas, a criação, tudo
geme na esperança de justiça (Rm 8.23), a justiça final, o julga­
mento de Deus. Nós, que fazemos parte da sua igreja, o seu povo,
aguardam os que ele seja o cabeça de todas as coisas em nossa
vida. Ele já foi colocado como cabeça da sua igreja e está operando
essa convergência, este encabeçar, para que todas as coisas nele
subsistam (Cl 1.17), de forma que se possa reconhecer isso agora,
na igreja. .
A quinta bênção (v. 11): nele, os judeus (note-se o contraste
entre o nós dos versículos 11-12 e o vós do versículo 13) — Paulo
e toda a linhagem judaica — foram feitos herança de Deus, predes­
tinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas
segundo a sua vontade. Romanos 9-11 explica essa frase, mos­
trando como o judaísmo não é um aparente fracasso nos planos
de Deus. O versículo 12: a fim de sermos (nós) — Paulo, os outros
apóstolos (também judeus convertidos), a igreja de Jerusalém e
todos os judeus que serão ainda salvos (Rm 11.25-26) — para
louvor da sua glória. Sem dúvida por causa da dureza do seu
coração, costuma-se dizer que uma das coisas mais difíceis de
acontecer é um judeu se converter, se entregar a Cristo! Mas, para
a glória de Deus, a própria nação judaica vai se converter ao seu
Messias, Cristo, segundo a promessa de Deus.
Em quem também vós, isto é, pessoas como nós, gentios, que
não temos direito nenhum em Abraão, depois que ouvistes a palavra
da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido,
fostes selados com o Santo Espírito da promessa. Pedro teve a coragem
de batizar Cornélio e outros recém-convertidos de Cesaréia, mesmo
sem ter, àquela altura, a mente claramente aberta para o grande
m istério de Efésios. Mas teve a coragem de batizar esses novos
crentes gentios por causa do Espírito Santo que os selara.
Termino esta breve exposição do prim eiro parágrafo de
Efésios com estas palavras: nosso direito de nos reconhecer como
participantes da herança dada a Cristo (Jo 17.24: aqueles que Deus
deu a seu Filho) deve-se unicam ente à participação, em nossa
vida, clara e definida, do Espírito Santo. Se não há evidência dele,
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSiOS

da segurança e da garantia que ele traz para a vida, da evidência


do amor, do autocontrole, da benignidade, de todo o fruto do Espí­
rito, temos de fazer esta pergunta: será que eu, como gentio, tenho
algum direito na herança oferecida a Cristo?

Resumo: as bênçãos que temes para louvar a Deus


Concluindo, quais são essas bênçãos? (1) ele nos elegeu para si
mesmo; (2) ele nos predestinou, colocando todos os fatores em
nossos passos — desde o nosso nascimento até hoje — para que
fôssemos transform ados de escravos em filhos; (3) a bênção da
sua redenção contínua, que inclui a remissão e a retirada de toda
a nossa culpa; (4) o reconhecimento do seu propósito, de que um
dia todo o universo adm itirá a soberania de Cristo, o seu senhorio
(v. 10); e (5) o privilégio de participarm os da sua herança.

Um modelo inspirado de intercessão (1.15 -2 3 )


15Por isso tam bém eu, tendo ouvido a fé que há
entre vós no Senhor Jesus, o amor para com todos os
santos, 16não cesso de dar graças por vós, fazendo
menção de vós nas minhas orações, 17para que o Deus
de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda
espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhe­
cimento dele, 18ilum inados os olhos do vosso coração,
para saberdes qual é a esperança do seu chamamento,
qual a riqueza da glória da sua herança nos santos, l9e
qual a suprem a grandeza do seu poder para com os que
cremos, segundo a eficácia da força do seu poder; 20o
qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os
m ortos, e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares
celestiais, 21acima de todo principado, e potestade, e
poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir
não só no presente século, mas tam bém no vindouro.
22E pôs todas as coisas debaixo dos seus pés e, para ser
o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, 23a qual é
o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em
todas as coisas.

- 21 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

Por que Paulo orava?


Paulo foi um homem de oração, e não sei como ele aprendeu a
orar. Os discípulos, em Lucas 11, após terem ouvido o Senhor
orar, chegaram a ele e pediram instruções sobre como orar. Talvez
Paulo tenha sido instruído por Cristo, através do seu Espírito, no
deserto de Dam asco, onde passou vários anos; ou, então, nas
limitações do seu ministério, em Tarso, durante ainda mais de dez
anos, antes de entrar no trabalho ativo em Antioquia e de fazer
suas viagens missionárias. Deus fez uma coisa maravilhosa com
Paulo. Ele o separou para aprender dele, naquelas ocasiões que
duraram tanto tempo. Um seminário sem mestres humanos! Só
depois disso ele iniciou o seu ministério; e mais tarde Deus o sepa­
rou, de novo, para um m inistério de oração, num a prisão.
Se as perseguições, que ocorreram durante grandes períodos
da história da igreja, voltarem a ameaçar de novo o povo de Deus,
acho que haverá um efeito, que de fato será um benefício muito
grande, com os presos cristãos orando.
Por que oramos tão pouco? Por que os santos do passado
gastavam horas, que sentiam passar como m inutos, enquanto
gastamos minutos que parecem horas?
A razão me parece, sim plesm ente, a falta de amor. Se o
am or de D eus não é derram ado, segundo Rom anos 5.5, pelo
Espírito, em meu coração, não tenho suficiente motivação para
separar tempo da m inha agenda (tão cheia) para orar. Mesmo
que, com aquele sentimento de obrigação, eu m arque uma hora ou
duas, uma m anhã ou um a noite, para orar, quando me ajoelho
para assim fazer, encontro mil coisas que me desviam a atenção.
E como o grande homem de oração da Inglaterra, George Mueller,
que disse ter o problema de sua mente parecer um passarinho,
que voa em todas as direções, em todas as flores, e não se concentra
realmente na oração; concentra-se em planos, em mensagens, até
em estudos bíblicos, mas não na intercessão e na adoração.
Paulo, lá na prisão de Roma, onde teve pouca oportunidade
de sair para pregar às grandes multidões e abrir novos trabalhos,
teve tem po para se concentrar. A frase que ele usa aqui para
descrever a sua vida de oração é: não cesso de dar graças por vós,
fazendo menção de vós nas minhas orações (v. 16). “Orar sem cessar!”
— uma frase que descreve tanto a sua vida (Cl 1.9), como o seu
ensino (lTs 5.17). Em se tratando de nós, de uma maneira geral,
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIOS

quando começamos a orar, o problema é logo cessar. Ao receber


vários pedidos de intercessão, oramos, mas logo desistimos.
As igrejas da Ásia estavam longe do apóstolo, mas ele se
sentia tão constrangido pelo amor de Cristo, que sua vida estava
intim am ente ligada à vida e aos problem as dos seus netos (no
exato sentido da palavra: os que ele mesmo não ganhou, mas que
foram ganhos pelos seus discípulos, seus filhos na fé), sentindo-se
com relação a eles um verdadeiro pai, um pai espiritual. Por isso,
à semelhança da mãe ou do pai que vê os problemas e as neces­
sidades da família e ora por ela, Paulo orava por causa do amor
que sentia.
O apóstolo Paulo, autor de ICoríntios 13, aquele que sentiu
profundam ente o amor, orava não apenas por obrigação^ “porque
é m uito espiritual orar bastante”, mas porque amava.
Nos versículos 15 e 16, lemos: Por isso também eu, tendo ouvi­
do afé que há entre vós no SenhorJesus, e o amor para com todos os santos,
não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações.
Esse por isso pode se referir ao parágrafo anterior. Paulo, através da
oração, talvez de Barnabé e de outros que o amavam, e em resposta
às orações deles, foi instruído pelo E spírito a entender essas
profundas verdades que o levaram a adorar, no primeiro parágrafo
desta epístola. Talvez seja por isso, por causa dessas bênçãos que
empolgam o apóstolo e o deixam extasiado, que ele agora ora por
esses novos cristãos, que pouco as conhecem. Por isso Paulo ora;
uma oração que flui da compreensão do sentido da adoração.
M uitas vezes chegamos a nossas reuniões de oração, a nossos
momentos de meditação particular, sem adorar e sem sequer ter a
m ente envolvida com a m ente de Deus, pos nosso coração está
bem fechado quanto ao espírito de oração, isto é, o Espírito Santo,
que é quem nos promove ou nos motiva. Começamos então a tentar
orar, mas acabamos sentindo o que os discípulos sentiram em
Lucas 11. Nessas condições não estamos de fato fazendo coisa
alguma, a não ser falando para nós mesmos ou lutando com o ar,
em vez de estar em contato com Deus. Portanto, o por isso do v. 15
pode ser uma referência aos versículos anteriores.
E n tre tan to , há tam bém um a referência no restante do
versículo 15 quanto à notícia de que esses novos crentes haviam se
aliado ao povo de Deus, sendo agora colocados dentro do corpo
pelo Espírito. Paulo reconheceu isso por meio da fé que eles tinham,
que se manifestava de alguma forma, não apenas ao levantarem

- 23 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

as mãos e aceitarem Cristo, pois, sem dúvida, eles assim o fizeram,


mas pela fé que havia se m ostrado atuante. Ele ouviu falar do
testemunho desses crentes da Ásia, por intermédio de Epafras ou
Tíquico ou de qualquer outro membro da igreja de Efeso, e sentiu
então a realidade da conversão deles.
A segunda coisa que o leva a orar é saber que eles são crentes
pelo testemunho que o seu amor dá; e novamente lembramos que
é impossível separar a fé e o amor, pois esse versículo nos mostra
que eles são dois lados da mesma moeda. Quem se compromete
com Cristo, compromete-se com os seus irmãos e com o m undo
perdido. Aí está a motivação da oração: adoração e novos crentes
que precisam de edificação.
Paulo está m uito consciente de que sem oração, sem essa
colaboração com o plano de Deus através da luta de intercessão,
falta ao crente o essencial para o crescimento do corpo, a igreja.

Paulo dirige seu pedido a Deus (v. 17), o Deus de nosso Senhor
Jesus Cristo. E trata-se de uma oração bíblica; não de uma oração
dirigida ao Espírito, nem diretam ente a Jesus Cristo, mas através
de Cristo a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória
neste trecho. Lembremo-nos de que em João 14 toda a visão de
Deus que queremos ter, segundo o propósito divino neste mundo,
é a imagem de Deus formada em vidas à imagem de Cristo e sua
atuação em resposta à oração. Não entendo com profundidade o
que significa ser escolhido ou predestinado, nem como as nossas
petições, chegando à presença de Deus, m udam , transformam!
Não sou da opinião de que Deus muda de idéia só porque eu lhe
peço que mude. Não, ele já pretendia fazer o que estou pedindo,
porque a m inha oração é real quando eu penso junto com Deus os
seus pensamentos. Mas, ao mesmo tempo, D eus restringe as suas
bênçãos de vida, de crescimento, de formação da sua imagem, se
eu deixar de orar.
Num sentido m uito real, oração é colaboração com Deus (lC o
3.9). Dirigimos assim nossa petição a ele, que não é qualquer Deus,
mas o único Deus que se revela em Jesus Cristo como o Pai da
glória. Jesus Cristo (o Senhor da glória segundo Tg 2.1) é aquele
que nos revelará a glória de Deus, nos elevará a mente, se concentrará
em nossas petições, para que essa glória se manifeste na terra.

24 -
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S E F É S I O S

Especialmente o evangelho de João ressalta que Jesus Cristo é a


manifestação da glória de Deus, o Pai da glória, no sentido de que
Cristo, vindo como Filho encarnado, demonstra-nos neste mundo
o que realmente é glória. Então, neste sentido, Deus é o Pai e a fonte
de toda a glória, por meio de Jesus Cristo. E é para este Deus que se
eleva essa petição (no v. 17), que me parece ser a única petição.

Talvez não seja tão essencial que façamos muitos pedidos a Deus.
Seria como aqueles anúncios que, às vezes, por serem muitos, se
perdem.
O versículo 17 tem a seguinte petição:para que [...] vos conceda
espírito. Convém mudar um pouquinho a tradução, talvez num ponto
crítico: “que vos conceda Espírito (com inicial m aiúscula) de
sabedoria e de revelação no pleno conhecim ento dele”. Tenho
convicção de que, quando realmente recebi a Jesus Cristo, recebi o
seu Espírito regenerador. Sou salvo por ter nascido do Espírito. Eu
e todos os que são filhos de Deus somos filhos através da rege­
neração do Espírito. Mas há uma passagem, justamente em Lucas
11, em que Jesus Cristo, ao responder a esta pergunta — como
devemos orar? — ensina a oração conhecida como “Pai Nosso” ou
“Oração D om inical” (v. 2-4); depois ele continua m ostrando a
necessidade de insistir com Deus, com importunação, frente às portas
do céu, e nos dá a segurança de que seremos atendidos (v. 9-12).
Mas, quando chegamos ao v. 13, temos um a informação quase
inédita, pelo menos nos evangelhos, que devemos pedir o Espírito,
já tendo o Espírito. “Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas
dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito
Santo àqueles que lho pedirem?” Como resolvemos esta aparente
contradição: ter o Espírito e ainda recebê-lo? A solução está no
seguinte sentido: o Espírito é fonte de vida e, portanto, fonte da
nossa oração; temos de orar — segundo Judas 20 e Efésios 6.18 —
no Espírito, porque não há outra oração senão no Espírito. Podemos
e devemos, ao mesmo tempo, pedir o Espírito no sentido de sua
atuação e de sua presença real em nossa vida. Pode-se dizer o mesmo
com respeito à adoração (Jo 4.24).
Pare agora um instante para lem brar quando foi a última
vez que você orou; talvez tenha sido hoje, espero que sim. M eu
amado irmão em Cristo, você orou mesmo? Você sentiu que Deus

25
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

estava escutando a sua petição ou foi como naquele caso dos


adoradores de Baal, relatado em IReis 18, quando se pensava que
o deus deles estava viajando? Deus estava escutando? Ah, meu
irmão, se o Espírito de Deus é quem torna real a presença de Deus,
é dele que precisamos! Precisamos dele para fazer qualquer petição
e para sab ercomo orar. Fiquei impressionado com certas senhoras
diaconisas da A lem anha, as cham adas “Irm ãs de M aria”, mas
que são crentes que se dedicam à oração. Impressionei-me especial­
m ente com a afirmação que a diaconisa Basilea Schlink faz em
um dos seus livros: para elas, o principal não é pedir que Deus
faça, mas o essencial é saber o que pedir, para saber o que ele quer
responder e assim cooperar com os verdadeiros propósitos de Deus.
Orar no Espírito deve ser alguma coisa semelhante a isso.
Paulo pede que esses irmãos recebam o Espírito, Espírito
de sabedoria e de revelação. Essas duas palavras falam de orientação,
de motivação, e descrevem a nossa profunda necessidade de saber
como viver o dia de hoje. Quando chegarmos ao tribunal de Deus
para prestar contas, e o videoteipe da nossa vida for rodado, vendo
novamente como passamos o dia de hoje e ao mesmo tempo vendo,
junto daquele teipe, o que Deus queria de nós, contrastando com
o que fizemos, como será conosco? Isto deve ser aquilo que está
envolvido no que a Bíblia chama de “prestar contas”. Parece-me
que a única tristeza que nos aguarda no céu é aquilo que poderiamos
ter sido, se tivéssemos sido orientados pelo Espírito, e o que fomos,
rebelando-nos contra a vontade e o am or de Deus. Em outras
palavras, é o que Efésios 4.30 fala sobre o Espírito e sobre entristecê-
lo, como uma reação à desobediência do crente em quem ele habita.
O original grego dá-me a impressão de colocá-lo num cantinho:
“Fique lá quietinho porque eu tenho os meus problemas, a m inha
vida para viver; fique lá, porque eu realmente não preciso da sua
intervenção”. Por trás dos problem as das nossas igrejas está a
falta de oração em busca de orientação.
As duas palavras, sabedoria e revelação (v. 17), têm os
seguintes significados:

Sabedoria
No Antigo Testamento, sabedoria significa olhar para a vida com
os olhos de Deus e perceber o que ele está fazendo, para então
envolver-se nisso.
E P Í S T O L A DE PAULO A OS E F É S I O S

No livro de Provérbios, os conselhos sábios tratam de diversos


assuntos: dinheiro, como gastá-lo como Deus quer; casamento,
planejam ento da vida fam iliar e educação dos filhos de acordo
com a vontade de Deus; e também como cultuar a Deus. O Antigo
Testamento está cheio de fórmulas, indicações e mandamentos, e
todos eles são um apanhado da sabedoria de Deus.
Mas no Novo Testamento encontramos uma nova dimensão.
Veja ICoríntios 1.22-24: “Porque tanto os judeus pedem sinais, como
os gregos buscam sabedoria (isto é: sabedoria filosófica, científica,
tudo aquilo que é função da universidade fornecer); mas nós pregamos
a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios;
m as para os que foram cham ados, tanto judeus como gregos,
pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”. >
Bem, quando chegamos a ICoríntios 2.2 esta sabedoria, diz
Paulo, concentrou-se na sua pregação da seguinte forma: “Decidi
nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado”. Para
mim, o problema da igreja de Corinto e de todas as nossas igrejas é
que nossa sabedoria, muitas vezes, não é a sabedoria imersa no signi­
ficado da cruz: saber realmente amar, até ao ponto de sacrificar-se.
Lembre-se de que a cruz é a sabedoria de Deus. E possível fazer como
muitos, que voltam as costas ao fator supremo da missão, que é
pregar e viver a realidade da cruz de Cristo. Como os crentes da Ásia
podiam se deixar ser decapitados, ou queimados, como no caso de
Policarpo, a não ser que tivessem essa sabedoria neotestamentária?

Revelação
Esta outra palavra, revelação, significa uma visão de todas as coisas,
não apenas deste m undo que está desaparecendo, segundo Paulo
(ICo 7.31), mas uma visão dos valores tal como são traduzidos no
céu. Jesus Cristo, ao falar com os seus discípulos, em Mateus 6,
chama-lhes a atenção para a m aneira de valorizar seu dinheiro,
colocando-o no Banco C elestial. Isso requer a revelação das
realidades invisíveis e ninguém o faz a não ser que receba uma
revelação, isto é, veja que vale a pena investir num mundo além
deste, atentando para aquele mistério de Deus, que vê o fim e não
apenas os passos difíceis de agora. A revelação que o Espírito dá
abre-nos a visão. Faltando essa revelação, diz Provérbios, “o povo
perece”. O Brasil perecerá, a África perecerá, o mundo perecerá
sem essa visão da revelação e da sabedoria.

- 27 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

Vejamos então o Espírito que Paulo pede através de uma


atuação plena e real na vida desses novos crentes de Éfeso: que
eles sejam cheios do Espírito de sabedoria e de revelação. Em outras
palavras, motivados. Mas uma coisa acom panhará essa atuação
do Espírito (nota-se na últim a linha do versículo 17): o pleno conhe­
cimento dele. Chamo a sua atenção para João 14.9: o pleno conhe­
cimento dele está em Cristo. Ora, este E spírito de revelação e
sabedoria fará (v. 18) três coisas, mas antes ilum inará os olhos do
nosso coração. Você sabia que o seu coração tem olhos? O texto
diz que tem. No original, a ilum inação significa o m ilagre do
homem cego, isto é, tinha olhos, mas estava cego. E essa iluminação
é sempre o milagre da nova criação. Em 2Coríntios 4.4 lemos que
“o deus deste século cegou o entendim ento dos incrédulos, para
que não lhes resplandeça a luz do evangelho. [...] Porque não nos
pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós
mesmos como vossos servos. [...] Porque Deus que disse: Das
trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nossos
corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na
face de Cristo”. Nós, que queremos servir a Cristo, precisamos
deste milagre, que talvez se repita — os olhos do nosso coração
iluminados com essa revelação e sabedoria. Quando isso acontece,
três coisas sucedem.

As três cessas
A prim eira delas é o entendimento, uma compreensão da esperança
do nosso chamado, que é duplo — primeiro, para servirmos aqui;
segundo, para fazermos herança com ele lá no céu.
A segunda, que estes olhos, já milagrosamente abertos pelo
poder de Cristo e por sua iluminação, tenham capacidade de olhar
para o sol celestial, sem serem ofuscados. Eu já tentei ver o eclipse
do sol e, apesar de que não ser total, fiquei como cego por causa
da incidência dos raios solares. Mas aqui se está dizendo que com
o coração pode-se ver a verdadeira glória do Senhor. Essa glória
vem, então, residir em nós. Jesus pede essa mesma bênção em
João 17.24, que os seus discípulos vejam a sua glória. Em lCoríntios
3.18, vemos que essa glória é transformadora e realmente santifica.
A riqueza da glória (1.18): veremos a riqueza da glória de Deus, da
herança que ele tem em nós? Essa herança está ainda incompleta?
A glória de Cristo pode ser percebida quando se olha para Apoca­

- 28-
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIOS

lipse, onde se acham diante do seu trono, oriundos de todas as


línguas, tribos e nações, os que foram comprados por tão grande
preço. E como eles chegaram lá? A través de um a m otivação
despertada pela visão que tiveram da riqueza da glória de Cristo.
A terceira coisa, tão essencial e importante, que vem com a
iluminação dos olhos do coração é, note-se bem, a suprema grandeza
do seu poder para com os que cremos, segundo a eficácia da força do seu
poder; o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e
fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais (v. 19, 20). Paulo faz
uso de sinônimos e de palavras não exatamente sinônimas para se
referir à força, ao poder, à energia efetiva necessária para quebrar
uma grande barreira que todos nós temos, desde os mais velhos até
os mais novos. Quando nós, já tendo recebido uma visão da glória
de Cristo, sentimos nosso chamado, precisamos ainda de poder. Os
discípulos, ao esperar o dia de Pentecostes, esperavam o que Cristo
prometera: poder. E a petição de Paulo é por aquele poder que se
derramou sobre os crentes no dia de Pentecostes, pelo qual milhares
de pessoas vieram a refletir a glória de Cristo, submetendo-se à sua
soberania. Então a eficácia, o domínio, a palavra traduzida por
força, dunamis (At 1.8), derramou-se de tal forma que Satanás e
todos os seus demônios, os principados e potestades, os senhorios
sobrenaturais, não puderam conter; foram esmagados naquela
batalha no dia de Pentecostes.

itpiieação
M eu irmão, se alcançarmos sabedoria e tivermos a revelação, se
sentirmos profundam ente a esperança do nosso chamado, chamado
de um a vida que se realiza fazendo alguma coisa que dure por
toda a eternidade, dentro da missão de Cristo; se sentirmos e virmos
algo de sua glória; mas se não tivermos poder, seremos de imediato
derrotados.
Esta Epístola aos Efésios é uma orientação para vencermos
as forças invisíveis que nos cercam, já que essas forças, quando
quisermos fazer alguma coisa, tentarão enganar-nos e fazer-nos
tropeçar.
Mas o versículo 19 mostra-nos que o mesmo Espírito de
revelação e de sabedoria nos dará a vitória através do seu poder,
se estivermos dispostos a lutar juntam ente com ele contra o diabo
e as hostes do mal, com a mesma atitude que Cristo lutou, ou

- 29 -
EPÍSTOLAS da prisão

seja, conforme Colossenses 2.15, na cruz! Não vencemos essas


forças por meio do raciocínio; nem sim plesm ente conhecendo
melhor a Bíblia; nem dando, por obrigação, mais tempo à oração,
mas adquirindo a sabedoria de Deus, que é mais sábia que a dos
homens, essas forças são vencidas com Cristo, como diz o livro de
Apocalipse, como o Cordeiro que parecia ter sido morto! A palavra
é m uito forte em Apocalipse 5.6.
Quando estamos sentados com Cristo, compartilhamos, de
certa forma, da sua vitória; mas, mas ao mesmo tempo, estamos
crucificados com ele, aqui neste mundo.
Meu irmão, enquanto amarmos a nossa vida, o poder do
Espírito não se demonstrará com clareza total. A oração de Paulo
é que o Espírito de sabedoria e de revelação seja concedido, que
nos abra os olhos do coração para um a visão do m undo, para
um a visão de nós mesmos e, acima de tudo, para uma visão de
Cristo. Espero em Deus uma nova disposição: não amarmos tanto
a nossa vida.

Tão grande salvação (2 .1-22)


'Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos
delitos e pecados; 2nos quais andastes outrora, segundo
o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade
do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobe­
diência; 3entre os quais tam bém todos nós andam os
outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo
a vontade da carne e dos pensam entos, e éramos por
natureza filhos da ira, como também os demais. 4Mas
Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande
am or com que nos amou; 5e estando nós m ortos em
nossos delitos, nos deu vida juntam ente com Cristo; —
pela graça sois salvos; 6juntam ente com ele nos ressus­
citou e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo
Jesus; 7para m ostrar nos séculos vindouros a suprema
riqueza da sua graça, em bondade para conosco, em
Cristo Jesus. 8Porque pela graça sois salvos, m ediante a
fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; 9não de obras,
para que ninguém se glorie. 10Pois somos feitura dele,
criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus
de antem ão p rep a ro u para que andássem os nelas.

- 30 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIOS

"Portanto, lembrai-vos de que outrora vós, gentios na


carne, cham ados incircuncisão por aqueles que se
intitulam circuncisos, na carne, por mãos hum anas,
"n aq u ele tem po, estáveis sem C risto, separados da
comunidade de Israel, e estranhos às alianças da pro­
messa, não tendo esperança, e sem D eus no mundo.
"M as agora em C risto Jesus, vós, que antes estáveis
longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. "Por­
que ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo
derrubado a parede da separação que estava no meio, a
inimizade, "aboliu na sua carne a lei dos mandamentos
na forma de ordenanças, para que os dois criasse em si
mesmo um novo homem, fazendo a paz, 16e reconciliasse
ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da
cruz, destruindo por ela a inimizade. ,7E, vindo, evange-
lizou paz a vós outros que estáveis longe, e paz também
aos que estavam perto; "porque por ele, ambos temos
acesso ao Pai em um Espírito. 19Assim já não sois estran­
geiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois
família de Deus; 20edificados sobre o fundam ento dos
apóstolos e profetas, sendo ele mesmo Cristo Jesus, a
pedra angular; 21no qual todo edifício, bem ajustado,
creste para santuário dedicado ao Senhor, 22no qual
também vós juntam ente estais sendo edificados para
habitação de Deus no Espírito.

O fim do c a p ítu lo p rim e iro diz que a igreja (e nós somos


microcosmo da igreja) foi feita corpo de Cristo; e para demonstrar
a sua corporalidade, Cristo foi feito cabeça, isto é, o controlador, o
planejador (mesmo invisível) dos acontecimentos na vida.
Efésios 2 continua o pensam ento de Paulo iniciado no
prim eiro parágrafo do capítulo 1, com o louvor a D eus pelas
profundas e transform adoras bênçãos que ele tem concedido.
Efésios 2 dá continuidade ainda à oração do segundo parágrafo,
iniciada no versículo 15, quando o apostolo pede que o Espírito
venha abrir os olhos do coração dos leitores e ouvintes, para que
compreendam através da sabedoria e da revelação divina a vocação
que Deus lhes tinha dado, a riqueza da glória, da herança que nós

31 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

somos em Cristo e, finalmente, no versículo 19, a suprema grandeza


do seu poder. O capítulo 2 é uma exposição do significado daquela
frase a suprema grandeza do seu poder para conosco (1.19). Então,
com essa idéia na mente, leiamos este capítulo que se divide cla­
ram ente em duas partes: a prim eira, falando da nossa situação de
onde Deus nos resgatou (2.1-10) e a segunda parte, nossa situação
social, o novo povo de Deus, a igreja (2.11-22).
Jesus Cristo, que na sua ressurreição demonstrou o poder e o
amor que Deus nele exerceu, está agora sendo explicado em sua
relação com a humanidade toda e principalmente em relação com
os gentios pagãos, que éramos nós. E por isso que a palavra vós
aparece nesse trecho. Paulo está escrevendo para igrejas gentílicas,
em princípio. Portanto, para descrever a grandeza do poder de Deus,
que se demonstra na ressurreição de Cristo, o apóstolo escolhe várias
figuras para descrever a nossa condição, antes de sermos salvos.
O primeiro parágrafo pode ser entendido como abrangendo
a condição anterior e o privilégio presente. Este parágrafo divide-
se assim: os primeiros três versículos tratam da nossa condição de
pagãos, perdidos no mundo; e os versículos 4 e 10, do nosso pri­
vilégio presente.

k condição a n te rio r •
A prim eira palavra que Paulo usa para descrever a situação do
pagão, do incrédulo sem Cristo, é a palavra morte: mortos em delitos
e pecados. Esta palavra, para descrever o pecador, à prim eira vista
não parece ter sido bem escolhida, porque o incrédulo aparente­
mente não está morto: ele tem raciocínio, tem capacidade de en­
tender, inclusive palavras da Bíblia. Ele pode repetir nomes como
“C risto”. Ele sabe algo da história de Jesus; aparentem ente ele
não está tão morto, como parece pela palavra escolhida por Paulo.
Mas ao entendermos a razão pela qual Paulo escolheu essa palavra,
começamos a perceber que a Bíblia coloca o pecador em situação
bem diferente da que talvez nós atribuiriam os a ele. Porque a idéia
de morte (que talvez tenha surgido da condenação de Adão e Eva,
no capítulo 3 de Gênesis: “no dia em que comeres deste fruto,
m orrerás”) carrega em si profundas realidades sobre a situação
moral e espiritual do homem sem Deus. De que forma?
Prim eiram ente, a pessoa morta não pode se movimentar;
ela está totalmente inerte e perde por completo aquilo que cha­

- 32-
E P Í S T O L A OE P A U L O A O S E F É S I O S

mamos de personalidade. Há algumas poucas semanas atrás, um


amigo nosso morreu num desastre de automóvel: pai e filho, ambos.
Quando a viúva foi ver o corpo, aquele homem que havíamos
conhecido tão bem (ele fizera parte do nosso grupo de estudo bíblico)
estava totalmente incapacitado de se comunicar conosco, e nós com
ele. Tanto faz falar com um cadáver, como falar com o chão, ou com
um piano, ou com qualquer outra parte do universo não pessoal. A
prim eira idéia de m orte me parece ser esta: a incapacidade de
comunicação, de movimentação, de aproximação. A incapacidade
de reagir, de corresponder. Deus falando ao homem, e o homem não
escutando coisa algum a, não respondendo, não reagindo, mas
continuando no seu próprio caminho, como se Deus não existisse.
Em segundo lugar, o corpo ao perder a vida começa a se
decompor. A situação do homem sem Deus é uma situação de
decomposição, não no sentido apenas de mau cheiro, mas de que
a integração da sua pessoa, da sua personalidade, está se perdendo
tanto quanto a de um cadáver, que depois de alguns anos não será
nada mais que pó e alguns ossos espalhados. O homem sem Deus
está se decompondo. A sociedade hum ana se decompõe, quando
se separa de Deus.
A característica do homem é que ele está morto em delitos e
pecados. E essas duas palavras são sinônimas. O pecado pode ser
descrito como “o que cai fora do alvo, que não atinge o seu destino”.
A palavra pecado tem a idéia “daquele que erra o alvo”, como dois
homens caçadores que estão à procura do coelho, mas se matam
um ao outro, em vez de o coelho. A intenção é completamente
contrariada, totalm ente errada; isto é o pecado.
A segunda figura que Paulo usa é a de um a corrente de
escravos. Isso acontecia m uito freqüentem ente no império romano:
depois de uma guerra, para punir os povos que se rebelavam contra
Roma, faziam uma corrente e algemavam, pelos pescoços ou pelas
pernas, centenas de presos para levá-los às cidades do império
como escravos. Veja a palavra “andar” (v. 2); normalmente não se
pensa em mortos andando, mas nesta nova figura de Paulo eles
andam . Porém é um andar pressionado, um andar de presos.
Notem-se as palavras e frases que Paulo usa com respeito a este
andar: outrora, segundo o curso deste mundo. As algemas, as cadeias
escravizam; isto pode-se referir à cultura formada sem Deus.
Há pouco tempo li um livro sobre uma tribo de antropófagos
na Indonésia, o qual narra que eles têm na sua cultura, como alvo

- 33 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

p rin cip al de suas vidas, enganar os seus am igos, m atá-los e


comê-los. O curso deste m undo é a traição. Trata-se de alvos e
am bições nos quais procuram os tira r o m áxim o dos nossos
companheiros, para nos elevarmos e para nos dar conforto, pisando
nos seus corpos, se possível e se necessário. Essa é a cultura deste
m undo formado sem D eus e contrário a Deus. A palavra aiõn
descreve Satanás influindo em todas as áreas da vida e da história,
especialm ente nas suas m etas prin cip ais (segundo o curso, no
original, é aiõn, a era deste mundo).
Outra frase que descreve essa corrente de escravos é segundo
o príncipe da potestade do ar. O general conquistador, que andava na
frente desta longa fila, aqui é descrito como Satanás, o príncipe
deste mundo, que através da sua força enganadora cria na mente
hum ana o desejo de adorar todos os deuses, que afinal lhe são
submissos, em vez de um único Deus. E este andar segundo o espírito
que agora atua é essa fila. que não tem a m ínim a possibilidade de
escapar, seguindo aquele triunfante príncipe do m undo para seu
destino, o próprio inferno. Esta potestade do ar descreve a sua
invisibilidade; ele é invisível, e ao m esm o tem po, descreve a
incapacidade de fugirmos dele. Não há nenhum mosteiro, nem
igreja, não há local onde não se sinta a força do seu domínio e da
sua sedução, porque acima de tudo ele é o pai da m entira e o pai
da sedução (Jo 8.44).
A terceira descrição desta fila acha-se no versículo 3, entre os
quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa
carne. E eu imagino que, na maioria, aqueles escravos, vindo das
fronteiras, não andavam tão felizes, mas vinham chorando, tristes,
sofrendo; vinham na infinita miséria. Porém não é esse o caso do
homem pecador sem Deus. Ele é como o jovem escravizado às
drogas, ou como o dependente de álcool, que, ainda que seja
escravo, gosta desta escravatura, principalm ente quando está se
escravizando ainda mais. E com respeito à descrição do versículo
3, segundo as inclinações, sabemos que a palavra no original é simples­
mente “os desejos da própria pessoa”. Ele é um escravo satisfeito,
enquanto puder se escravizar cada vez mais, fazendo a vontade
(no original, “as vontades”) da carne e dos pensamentos.
F inalm ente, a terceira figura que Paulo em prega para
descrever a nossa condição de pecadores e “culpados”: éramos por
natureza filhos da ira. A expressão filhos da ira é um hebraísmo
para descrever que não há nenhum a possibilidade de sermos outra

34 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS E FÉ S IO S

coisa, diferente do que éramos. Uma vez filho de alguém, não se


pode m udar a filiação. Portanto, essa descrição de condenação é
completa e total. João 3.36 afirma isso quando diz que os que não
crêem no Filho já estão sob a ira de Deus. São filhos dessa ira. Por
isso, “quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se
m antém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele
permanece a ira de Deus”. •
A ira de Deus é um conceito teológico profundo. Tem sido
objeto de m uita cogitação, pesquisa e discussão, mas tracemos
a p e n a s ra p id a m e n te o sig n ific a d o d essa frase na B íb lia .
Primeiramente, a ira de Deus é a sua reação pessoal frente a qualquer
pecado, qualquer rebelião contra ele. E essa ira se demonstra da
seguinte maneira: .
Atualm ente (Rm 1.18 até o fim do capítulo) se demonstra
em três formas: “a ira de Deus se revela contra toda a iniquidade”
(v. 18a); primeiro: entregando o homem às suas próprias paixões,
perm itindo que continue no seu pecado, que se escravize cada vez
mais. Que palavras impressionantes: “por isso Deus entregou tais
hom ens à im undície, pelas concupiscências de seus próprios
corações, para desonrarem os seus corpos entre si” (v. 24).
Continuando: “por causa disso os entregou Deusa paixões infa­
mes” (v. 26); e também outra vez no versículo 28 “e, por haverem
desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou
a uma disposição mental reprovável”. Na carne, na mente, e na
adoração. A ira de Deus permite que o homem se escravize até não
haver mais esperança; mas isso ainda não é tudo. A ira de Deus
não é apenas para esta vida, mas se estende para a vida vindoura.
E essa ira futura é que cria o terror no coração humano ao defron­
tar-se com a morte; ela se descreve em Romanos 2, como uma ira
que se acumula. Cada pecado, cada idéia errada, cada rebelião contra
Deus acumula-se no coração impenitente. Uma espécie de vaso de
ira que cada dia vai se enchendo até transbordar e entrar no
julgamento eterno de Deus. Há passagens que falam sobre essa ira
vindoura. Contra essa ira, e para se salvar e escapar dela, é que o
evangelho deve ser pregado no mundo inteiro. Porque os filhos de
Deus aguardam dos céus (lTs 1.10) o seu Filho, “a quem ele res­
suscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra da ira vindoura”.
A ira de D eus é descrita de um a m aneira em ocional e
sentimental na história do filho pródigo. O filho pródigo fugindo
de casa, procurando seus próprios prazeres, e escravizando-se neles
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

— fica cada vez m ais decaído, cada vez m ais desprezado pelos
outros e por si mesmo, doente, com fome, quase nu, esperando a
morte terrível junto aos porcos, sozinho, na verdadeira miséria.
Mas longe, em casa, está o seu pai esperando. Podemos deparar
aqui com uma descrição autêntica da ira de Deus. É uma ira cheia
e transbordante de amor, mas que não pode atravessar aquela
distância até o filho amado, a não ser que o próprio filho amado
caia em si (o que a Bíblia chama de arrependim ento). A ira de
D eus sempre afasta, entrega, perm ite ao filho ir cada vez mais
longe da casa paterna, enquanto espera, busca e ansiosam ente
aguarda o filho rebelde.
A condenação do mundo, então, é tríplice: é uma condenação
de morte, de decomposição e de incapacidade de se movimentar na
direção de Deus. É uma fila de escravos, andando segundo o curso
deste mundo, debaixo do terrível e cruel mandato de Satanás, e
ainda uma condenação inevitável da separação do verdadeiro lar.

Mas S e u s... -
O homem, filho da ira, fica realm ente dom inado por essa ira,
afastado e longe de Deus. Nesta situação totalm ente desesperadora
é que aparecem duas palavras em 2.4: as palavras Mas Deus. Deve-se
sublinhar, deve-se m arcar essas palavras, porque elas são a única
esperança de todos os pecadores deste mundo! Mas Deus introduz
o am or e a m isericórdia de D eus frente ao hom em perdido.
Rapidamente, vejamos como esse amor se manifesta em compaixão
m isericordiosa, perdoadora, ativa. Ele atua de três form as; e
lembremo-nos de que essas formas descrevem o poder supremo
de Deus demonstrado na ressurreição de Cristo. Porque o mesmo
poder que se opôs às forças da m orte, no túm ulo de José de
Arimatéia, e ressuscitou Jesus dentre aqueles mortos, é a mesma
força, diz Efésios, que transform ará a situação do homem morto
em delitos e pecados, escravizado às forças satânicas e condenado
à ira eterna. Essas três formas são expressas por três palavras, ou
três frases, nos versículos 5 e 6:
Primeira: Nos deu vida juntamente com Cristo; no original,
co-vitalizados (vitalizados com Cristo). Se nós em nossa morte
nos reconhecermos como mortos, podemos nos aliar com o corpo
inerte de Jesus no túm ulo de José para sentirmos a mesma força
que levantou Jesus para novidade de vida. A nossa morte em pecado
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIOS

é cancelada pela mesma força que cancelou o poder que deteve


Jesus na pedra daquele túm ulo que abrigou o nosso Senhor
crucificado.
A segunda frase: juntamente com ele nos ressuscitou. Isto não
significa apenas aquilo que aconteceu quando Jesus chamou Lázaro
do seu túmulo, para que ele saísse, envolvido naquelas roupas, e
vivesse mais algum tempo. Não, este poder da ressurreição é uma
força que transforma, do interior para fora, todo o nosso ser. Eu
sou a mesma pessoa que era antes desta força se aplicar na m inha
vida, mas também não sou a mesma pessoa. Quando Agostinho,
depois de lutas difíceis para vencer as forças e paixões da sua
carne, estava sendo chamado por sua am ante, do outro lado da
rua, depois da sua conversão: “Vem Agostinho! Agostinho, aqui
estou”; ele disse: “Mas eu não estou aqui!” A força da ressurreição
é tão transformadora, que m udou até a própria aparência de Jesus.
Os evangelhos nos informam que os discípulos não reconheceram
Jesus. Maria, muito amiga de Jesus, pensou que ele fosse o jardi­
neiro. Os dois discípulos que iam para Emaús caminhavam como
se estivessem com os olhos fechados, não percebendo quem ele era.
Pode ser uma figura da transformação que o poder da ressurreição
opera naquele velho corpo, escravo, miserável, filho da ira.
A terceira frase, que descreve, também em forma figurada,
a nossa possibilidade de vencer tudo é nos fez assentar nos lugares
celestiais em Cristo Jesus, no seu trono. Desse trono emana toda a
força que conquista o pecado, a morte a força satânica, e a ira de
Deus. Este poder está todo aí a nosso alcance porque Cristo venceu
todas essas forças escravizadoras. Ele foi identificado com o nosso
pecado, sendo que D eus o fez pecado por nós (2Co 5.21). Ele
morreu, quando nós já estávamos mortos. Ele foi feito filho da
ira. Em Isaías 53.6, 10, 12, ele foi identificado com os transgres­
sores m as, por ter vencido, oferece-nos participação em sua
conquista. Por isso, Paulo pôde afirm ar que somos m ais que
vencedores; e Romanos 8 descreve em forma poética, em êxtase e
empolgação, a natureza da nossa conquista sobre essas forças do
mal que nos condenavam (Rm 8.37-39).


Cabe aqui uma pergunta: e essa restauração? Que acontece com o
escravo? Com o corpo inerte? Com o filho da ira? Que acontece

- 37 -
e p í s t o l a s da p ri s ã o

dentro dele? Como ele se liberta? Como ele com partilha disso?
Paulo usa a palavra que já conhecemos tão bem, que em todo o
Novo Testamento se refere a alcançar a mão de Deus, de apelar
para ele, de invocar o seu nome: a palavra fé. Porque pela fé é que
recebemos tão grande graça. Fé. John Wesley, que talvez tenha
sentido bem mais do que nós o poder do pecado em sua vida, a
força da morte no seu ser, procurou por todos os meios encontrar
a saída, mesmo depois de ser missionário na Geórgia; mas não
encontrava a resposta. “Como posso com partilhar dessa vitória?
Como posso sentir a força da ressurreição em m inha vida? Como
posso ter vida juntam ente com Cristo?” E ninguém conseguia
explicar-lhe. Ele perambulava cada vez mais desesperado, sentindo
que teria de deixar o m inistério (ele já era ordenado, servia e prega­
va, mas não sentia essa vitória). E um dia, num pequeno recinto na
rua Aldersgate, em Londres, ouviu umas palavras de introdução de
Romanos, escritas por Lutero, que diziam que a fé é a operação de
Deus em nós. E ele sentiu, naquele instante: “Fé é Deus falando em
m im , é Deus apelando para si mesmo, através de mim. E Deus
levantando a minha mão para receber aquilo que ele quer me dar”.
E naquele instante ele caiu de joelhos e empolgou toda aquela reunião
com a declaração de que, agora sim, ele entendia o que era fé!
As p a la v ras que seguem n e ste p a rá g ra fo de E fésio s
descrevem de uma forma tão impressionante essa realidade: não
por obras nossas! Não há como o cadáver se levantar, como os
escravos cortarem as correntes, nem como o filho da ira se afastar
dessa ira; mas Deus oferece a sua salvação tão grande, de graça!
Ele paga o preço integral dessa salvação para nós, inundando-nos
com seu amor; sua compaixão nos envolve. E a resposta do coração
hum ano não pode ser outra, senão: “Obrigado, Senhor!” E esse
obrigado tão simples é a fé. Atente para estas palavras: Porque pela
graça sois salvos, mediante (a atuação hum ana) a fé; e isto não vem de
vós, é dom de Deus. A palavra “isto” não se refere à fé, mas refere-se
à salvação, à m isericórdia, a tudo que está envolvido nestas
palavras: Mas Deus (v. 4).

0 privilégio presente
O que significa essa nova situação em que nos encontramos, salvos
em Cristo? O versículo 10 descreve com um a palavra o nosso novo
privilégio. É-a palavra feitura; no original: poema (de onde vem a

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E P ÍS T O L A DE PAULO AOS E FÉ S IO S

nossa palavra poema, em português), ou “obra de arte”. Deus fez


isto por causa do seu amor por nós. Mas ele tam bém tem um
plano, um projeto em que está trabalhando, de forma semelhante
a um artista que está pintando um quadro e reflete nele algo da
sua personalidade. A palavra “poema” me parece ter a idéia de
Deus tomando pecadores gentios perdidos e colocando-os na nova
criação, a sua obra de arte: criados em Cristo Jesus para as boas obras,
as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas. As boas
obras que a igreja, como feitura de Cristo, precisa produzir, são a
atuação de Cristo, através de nossos corpos, de nossas mentes, no
m undo perdido. É a atuação de alguém que dá testem unho de
Cristo como, por exemplo, a atuação do médico, não interessado
no dinheiro, mas que por verdadeiro amor a Cristo, cuida de um
pobre. As boas obras são sempre algo impulsionado e motivado
pelo amor de Cristo. E agora é hora de abrirmos nossa m ente,
como nunca antes em nossa vida, às possibilidades das boas obras,
para que sejamos, aqui no Brasil e nos outros países onde brasi­
leiros venham a servir, a mais linda descrição da obra de Deus na
sua feitura em Cristo.

A feitura de Deus
Nos versículos 11 e 12 Paulo descreve não mais a nossa situação
moral e espiritual, mas a nossa situação social e espiritual. Um
gentio sem Deus, incircunciso, sem esperança, sem possibilidade
nenhum a de fazer parte da nova hum anidade em Cristo, mostra a
condição dos pagãos sem Deus. Novam ente duas palavras, no
versículo 13, cham am a nossa atenção: Mas agora, que corres­
pondem ao Mas Deus, do, versículo 4. Só que, agora, refere-se aos
que estão em Cristo. Os que estavam longe são aproximados pelo
sangue de Cristo, e nele temos paz; os alienados agora se amam;
os que não tinham cidadania agora são cidadãos; os que eram
bastardos e ilegítimos agora se tornam verdadeiros filhos de Deus;
os que eram inimigos agora são reconciliados. E uma descrição da
feitura de Deus: as duas sociedades, a gentílica e a judaica, estavam
totalm ente rompidas pela hostilidade e com as relações em caos,
por isso odiavam uns aos outros; e quando, na experiência de
Paulo, especialm ente na igreja de Antioquia, se viam judeus e
gentios se abraçando, comendo e contando “piadas espirituais”
juntos, vivendo um a verdadeira vida familiar, na mais profunda

- 39-
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

alegria, Paulo pensa: “É isto que Deus tem em vista para toda a
e te rn id a d e ”; para que nunca m ais cor, raça, c u ltu ra, cabelo
comprido ou curto, barba ou rosto barbeado, nada, nada mais
crie barreiras entre os filhos de Deus; porque em um Espírito, o
Espírito de amor, o Espírito de alegria, o Espírito de bondade e
perdão está sendo criada uma cidadania, uma família, uma igreja,
um templo, uma unidade que descreve perfeitamente a integridade
da própria personalidade de Jesus Cristo. Porque a igreja local é a
universal, já que é microcosmo da outra, não podem ser outra
coisa senão um edifício bem ajustado, que está crescendo dina­
micamente. E este am or que temos uns pelos outros se estende,
transborda para o m undo, porque Cristo o amou prim eiro. As
boas obras se estendem para ele e crescem para um santuário
dedicado ao Senhor, que significa, para mim, um lugar de perfeita
paz, onde meu destino e as agitações da m inha vida desaparecem
completamente, e a m inha alma descansa tal como num a grande
catedral, onde há um perfeito silêncio. Estou rodeado pelos meus
irmãos e amigos e, acima de tudo, sentindo a presença da cabeça,
que é Jesus Cristo, Senhor de todas as coisas. Tal como a pirâm ide
em que o ápice determ ina a forma de tudo, assim também Cristo,
a pedra angular, dá à igreja toda a sua forma e destino. Os apóstolos
e p rofetas, esp ecialm en te os escrito res dos livros do Novo
Testamento, criaram o fundam ento da igreja através de ensina­
mentos pelo Espírito Santo.
No fim (v. 22) Deus habita no meio do seu povo — Emanuel.
E por isso que Deus nos salvou de tão grande ruína. Por isso é
perigoso negligenciar tão grande salvação. E por isso também que
a ira de Deus recai não apenas sobre o mundo, mas sobre a igreja
de Cristo que se afasta de tão grande meta. Ela deve realmente
refletir a misericórdia e o amor de Deus, na sua feitura perfeita e
no seu “poema” como obra de arte do grande Deus Criador.

0 grande mistério da salvação (3 .1-13 )


‘Por esta causa eu, Paulo, o prisioneiro de Cristo
Jesus, por amor de vós, gentios, 2se é que tendes ouvido
a respeito da dispensação da graça de D eus a mim
confiada para vós outros; 3pois segundo uma revelação
me foi dado conhecer o mistério conforme escrevi há
pouco, resumidamente, 4pelo qual, quando lerdes, podeis

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E P Í S T O L A DE P A U L O A O S E F E S I O S

compreender o meu discernimento no mistério de Cristo,


5o qual em outras gerações não foi dado a conhecer aos
filhos dos homens, como agora foi revelado aos seus
santos apóstolos e profetas, no Espírito, 6a saber, que
os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo
e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio
do evangelho, 7do qual fui constituído ministro conforme
o dom da graça de Deus, a mim concedida, segundo a
força operante do seu poder. 8A mim, o menor de todos
os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios
o evangelho das insondáveis riquezas de C risto, e
9m anifestar qual seja a dispensação do mistério, desde
os séculos oculto em Deus, que criou todas as coisas,
I0para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus
se torne conhecida agora dos principados e potestades
nos lugares celestiais, “ segundo o eterno propósito que
estabeleceu em Cristo Jesus nosso Senhor, 12pela qual
temos ousadia e acesso com confiança, m ediante a fé
nele. I3Portanto vos peço que não desfaleçais nas minhas
tribulações por vós, pois nisso está a vossa glória.

Por esta causa


Quando encontrarmos uma frase como essa que inicia o capítulo
3, Por esta causa, devemos procurar saber que causa leva Paulo a
orar, porque essa frase introduz a oração do v. 14 até o fim do
capítulo. Antes, nos versículos 1-13, Paulo abre um parêntese bem
comprido. “Esta causa”, na m ente do apóstolo, encontra-se nos
versículos 20 a 22 do capítulo anterior: os gentios estão sendo
edificados sobre o fundam ento dos apóstolos e profetas. E Paulo,
tendo sido chamado por Jesus Cristo para ser apóstolo, sente-se
justamente como aquelas pedras colocadas sobre a pedra funda­
m ental, constituindo a prim eira fileira do alicerce da casa, dando
assim a sua própria forma. É um a responsabilidade acima de
qualquer outra dada aos homens. Cristo mesmo é o único funda­
mento do evangelho e da igreja; mas em cima deste fundamento,
segundo ICoríntios 3.10-11, estão colocados os profetas e apóstolos.
São aqueles que, pela inspiração de Deus e por sua direção imediata,
deram forma à igreja: sua doutrina, sua estrutura, seus alvos (que
estamos estudando nesta epístola). Essa forma nos foi preservada

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EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

na palavra dos apóstolos nas epístolas e nos evangelhos, cano­


nizados no Novo Testamento.

Pedras que se sustentam em sofrimento


Por esta causa eu, Paulo, sou o prisioneiro de Cristo Jesus, por amor de
vós, gentios. De uma coisa devemos nos lembrar: somos chamados
para ser fundam ento de outras pessoas, que vão ser “construídas”
por cima de nós. Paulo está lá em baixo, mas nós estamos aqui
em cima; o prédio está subindo, e assim como nós dependemos de
Paulo, colocado por Deus em baixo como nosso fundam ento, há
outras pessoas que estão dependendo e irão depender de nós; as
“pedras vivas” (lPe 2.4) se assentam sobre outras pedras vivas.
N a m inha vida tenho por fundam ento principalm ente os meus
pais, o pastor Joseph McCall da Igreja da Bíblia de W heaton e
outras pessoas que logo me vêm à mente. São como pedras que
me sustentam , por assim dizer. Portanto, sustentam os outras
pessoas que estão olhando para nós e que dependem da nossa fé
tam bém. Contudo, essa situação de sustentar outras pessoas, o
privilégio do m inistério que Paulo vai agora descrever (note-se que
ele usa a palavra graça, básica e essencial, como o que lhe dá o
privilégio de sustentar outras pessoas) sempre produz sofrimento:
eu, Paulo, sou o prisioneiro de Cristo Jesus. Se alguém pensa que o
m inistério não terá sofrimento, que o chamado de Cristo é para
um a vida sem aflição, está, já de início, totalm ente enganado.
Paulo diz em Colossenses 1.24 que há um sofrimento alegre, isto
é, um sofrimento que dá prazer sem ser masoquista: Agora me
regozijo nos meus sofrimentos por vós; são crentes que estão sendo
sustentados na vida, na intercessão, no m inistério de ensino do
apóstolo Paulo, e que preenchem “o que resta das aflições de Cristo,
a favor do seu corpo, que é a igreja”. Se você for chamado para o
m inistério de servir a outros, a diaconia do evangelho (palavra que
Paulo usa no v. 7), prepare-se, desde já, pois haverá sofrimento
alegre em sua vida; um sofrimento agradável. Talvez poderiamos
compará-lo, em outro nível, ao sofrimento do capitalista que gasta
tudo quanto tem no bolso para ganhar três vezes mais no ano
seguinte. É esse sofrimento, o de investir tudo o que a pessoa tem,
esperando receber m uito mais, no sentido de realização espiritual.
E é por isso que Paulo chama este privilégio de “graça”. Graça
sempre carrega essa idéia fundam ental, no Novo Testamento, de

- 42-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS EFÉ S IO S

um favor alegre, de um a pessoa alcançando e dando para outra


pessoa.

A dispensação da graça de Deus


O versículo 2 enfatiza: Se é que tendes ouvido a respeito da dispensação.
Dispensação tem a ver com o cuidar das riquezas da casa, ter a
chave do cofre. Paulo recebera do Senhor o privilégio de distribuir
as riquezas de Deus para estes crentes da Ásia e, sem dúvida, de
outras partes. Isto é graça, ter sido honrado com as chaves de toda
a Casa do Senhor. A exemplo de Pedro, Paulo também as recebeu,
e ele chama isso de graça, graça que inunda o coração do apóstolo
com profunda alegria. Esta graça focaliza o ministério. Se olharmos
para 4.7, encontraremos repetida a mesma palavra: e a graça foi
concedida a cada um, não apenas aos apóstolos e profetas que forma­
ram a primeira fileira de pedras da Casa do Senhor, mas a todas as
pedras vivas que edificam essa Casa. Todos nós temos o privilégio
da dispensação, o privilégio de sermos transmissores da riqueza e
da glória do Senhor; e Paulo reconhece que essa graça foi, no seu
caso, uma graça pioneira. Ele está à frente da longa fila de santos
que têm edifícado a Casa do Senhor. As outras gerações anteriores,
ainda que tenham conhecido Isaías, Malaquias, Oséias, Zacarias e
outros profetas que, como Davi, compreenderam a mentalidade de
Deus, não tiveram a revelação do seu plano para o universo. A
Paulo, porém, o plano foi revelado. Em outras gerações (v. 5) não
foi dado a conhecer tão grande mistério, que permaneceu em segredo
no coração de Deus, mas que agora foi revelado ao apóstolo Paulo.
E ele, como pioneiro, com três palavras vem agora desvendar o
maravilhoso projeto que Deus tem para este mundo (v. 6).

Co-herdeiros
A prim eira declaração, que os gentios (nós, antigos pagãos em 2.1-10)
agora são co-herdeiros com Abraão, Isaque, Jacó, Gideão, José e todos
os santos do Antigo Testamento. Estamos incluídos plenamente
no povo de Deus, ao qual pertencem aqueles santos, que estão
gozando a sua herança como heróis na presença do Senhor. Somos
co-herdeiros de toda a herança da cidade celestial que Abraão e
Moisés procuravam, sendo que eles também foram chamados para
fora dos seus lares para sofrer (Hebreus 11:8-27).

- 43 -
e p í s t o l a s da p r i s ã o

Co-mcorporados
A segunda palavra que descreve esse mistério é a participação dentro
do mesmo corpo como membros. É serem “co-incorporados”, isto é,
sentirem a força vital do corpo de Cristo que os santos do passado
sentiram; mas não como agora, em que o Espírito de Deus, através
de uma célula para outra, passou a expandir e espalhar a vitalidade
de Cristo. Porém, de uma pessoa para outra foi se espalhando por
todo o império até os confins do mundo. Co-incorporados deve ser
uma palavra que Paulo criou para transm itir este relacionamento
espiritual entre todas as gerações e indivíduos, dentro do povo salvo
por Deus.

Co-participantes
E, finalmente, a terceira frase: co-participantes dapromessa em Cristo.
Significa que os gentios, que antes não tinham a Bíblia nem os
oráculos de D eus, ficaram , assim, sem Cristo, o M ediador das
promessas de Deus. Agora nos é concedida de graça a Palavra de
Deus e por meio dela, Cristo, a sua Promessa. E nós, que abrimos
as Escrituras com toda a liberdade e assentamos nossa fé nesta
Palavra, somos co-participantes de Cristo, juntam ente com todos
os benefícios por ele concedidos, agora e eternamente.

0 mistério sendo revelado


Este é o mistério de Cristo, que Paulo, como missionário pioneiro
aos gentios, teve o privilégio dado por D eus de divulgar, passando
a ser m inistro ou diácono (isto é, segundo a idéia original de
diaconia: aquele que entra na cozinha e recebe os pratos já prepa­
rados e os oferece para os famintos; é o garçom de Deus). A diaconia
descreve perfeitamente o próprio m inistério de Cristo, que também
usou essas palavras em M arcos 10.45, dizendo que Cristo não
veio “para ser servido, mas para servir”. Porém o que mais me
impressiona, em todo este trecho, é como Paulo se sentiu honrado.
Veja o v. 8, onde ele avalia a sua própria capacidade de tom ar
parte em tão grande ministério. Parafraseando: “Olhem, eu sou o
menor de todos os santos” (se ele foi o menor, onde é que eu me
encontro?), para que, através dessa m ordom ia, não som ente o
m undo, mas as forças que estão acim a do m undo, que são os

-44 -
E P Í S T O L A DE P A U LO A OS EFÉSiOS

principados e potestades nos lugares celestiais, possam, desven­


dados no ministério de Paulo, perceber as igrejas que estão surgindo.
Novos convertidos sendo libertados daquela escravatura, da morte
e da ira de Deus que está sobre o m undo, aparecendo em toda
parte como luzes nas trevas, tornam a nova criação de Deus uma
realidade. E isto deve m aravilhar os próprios inimigos de Deus, já
que antes eles não estavam entendendo o que Deus tinha em m ente
(esses principados e potestades em 6.12 são descritos como as
forças, sujeitas a Satanás, que se nos opõem).

9 sofrimento no corpo de Cristo


Esta luta entre D eus e as forças do mal se trava no cotação da
igreja. Este conflito, que se centraliza na vida de cada um de nós
hoje, até Cristo voltar, produz sofrimento. Por isso Paulo abre, no
final do v. 13, o grande parêntese de Efésios: Portanto, vos peço que
não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, pois nisso está a vossa glória.
Paulo faz parte do corpo de Cristo que se estende de Roma
até a Ásia. Os sofrimentos de Paulo são os sofrimentos daqueles
cristãos; sua prisão em Roma é a prisão deles; tudo que acontece
a Paulo está acontecendo com todo o corpo, já que uma parte não
pode sofrer sozinha Pensemos um instante em nossos irmãos que
sofrem perseguição por causa do evangelho em países onde o cris­
tianismo é proibido. Meus irmãos, mesmo que não soubéssemos
o que eles estão passando hoje em termos de sofrimento, eles estão
sofrendo por nós, e um dia é possível que sejamos chamados a
sofrer por outros crentes, antes que Cristo volte. Porque o corpo de
C risto é um a realidade nesse sentido; portanto, devemos nos
dedicar à intercessão por aqueles irmãos. A experiência dos que
visitam os crentes presos, sofrendo e sendo torturados em outros
países confirma que o que mais os anim a é saber que nós estamos
pensando neles, sentindo os seus sofrim entos e intercedendo
sempre, para que o alívio e o conforto do Espírito Santo lhes sejam
sempre concedidos.
“Por esta causa”, no v. 14, retoma agora a razão que Paulo
menciona no v. 1: Por esta causa, me ponho de joelhos. Não é necessário
orar de joelhos, mas o colocar-se de joelhos é um sinal de sub­
missão. E Paulo expressou-se dessa m aneira para m ostrar a sua
plena disposição para sofrer mais ou para ser libertado, usado pelo
Espírito na intercessão, como veremos agora nos versículos 14-21.
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

A segunda oração na epístola (3 .14 -2 1)


14Por esta causa me ponho de joelhos diante do
Pai, 15de quem toma o nome toda família, tanto no céu
como sobre a terra, 16para que, segundo a riqueza da
sua glória, vos conceda que sej ais fortalecidos com poder,
m ediante o seu Espírito no homem interior; 17e assim
habite Cristo nos vossos corações, pela fé, estando vós
arraigados e alicerçados em amor, 18a fim de poderdes
compreender, com todos os santos, qual é a largura, e o
comprimento, e a altura, e a profundidade, 19e conhecer
o amor de Cristo que excede todo o entendimento, para
que sejais tomados de toda a plenitude de Deus. 20Ora,
àquele que é poderoso para fazer infinitam ente mais do
que tudo quanto pedim os, ou pensam os, conforme o
seu poder que opera em nós, 21a ele seja a glória, na
igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para
todo o sempre. Amém.

A paternidade de Deus
Recordemos, inicialmente, por que é que Paulo ora, e veremos que
é o peso da responsabilidade. M uitas pessoas estavam sendo
edificadas sobre Paulo, e ele sentia esse peso, tal como os profetas
do Antigo Testamento sentiram o peso da Palavra do Senhor. Ele
sentia a necessidade da oração e da intercessão por estes novos
cristãos. Aí está a causa.
Paulo dirige sua oração ao Pai. Por que ao Pai, em vez de a
Deus? Talvez porque, lá na prisão, Paulo estivesse pensando em si
como, de certa forma, o pai espiritual daqueles crentes, através
dos seus discípulos que evangelizaram aquela região; ao mesmo
tempo, ele está pensando: “Eles são novos filhos do Pai, de Deus”!
E Paulo precisa dar-lhes a entender a natureza da fam ília, da
responsabilidade, dos costumes da fam ília, da sua unidade na
família de Deus. Então escreve uma frase interessante “de quem
toma o nom e...”. Isto significa que a paternidade de Deus é “arque-
típica”, não havendo nada neste mundo que não tenha a sua origem
em Deus, da seguinte forma: Quando pensamos em Deus como
pedra (SI 18.2 e 42.9), a idéia “arquetípica” original de pedra é Deus
como imutável, seguro e estável. Quando pensamos em luz, a idéia
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS E FÉ SIOS

original de luz é Deus como perfeito, em quem não há mal nem


trevas; e quando falamos em relacionamento humano, pensamos
em Deus como Pai, aquele de quem toda a vida emana, em quem
todas as características de Pai se devem desenvolver. O conceito da
imagem de Deus veio de onde? Parece-me que veio de Deus como
Pai. E Paulo explica este conceito, assim rapidamente, quando diz
que toda idéia de paternidade se manifesta, tanto no céu como na
terra, refletindo a figura original da paternidade de Deus.

Os recursos ila oração


De onde é que Deus vai responder? Veja-se a frase do v. 16: “segundo
a riqueza da sua glória”. A palavra glória, no original hebraico,
significa riqueza (“kavod”), valores incontáveis que não podem ser
esgotados. Há sempre mais! É como aqueles celeiros de José no
prim eiro ano da fome: “Há m uito mais! Leva quanto quiser!”
(porém, no fim dos sete anos seria diferente). Mas aqui, segundo a
riqueza inexaurível das riquezas de Deus, nossa oração é sempre
que Deus abra os seus celeiros de bênçãos. E qual a bênção que
Paulo pede? Novamente encontramos um pedido básico e funda­
mental. Na oração do capítulo 1 Paulo pedira o Espírito de sabedo­
ria e de revelação; em outras palavras, visão. Nesta oração, Paulo
pede poder (“dunamis”), que Deus conceda seu infinito estoque de
poder, que sejam fortalecidos com “dunamis”. Essa foi a palavra
que Jesus usou, ao prom eter poder (At 1.8), e foi uma realidade
para os crentes no dia de Pentecostes, quando o Espírito caiu sobre
eles e ficaram plenos (cheios) de “dunamis”, para poderem enfrentar
toda força do mal, de incredulidade e de conflito que possivelmente
encontrariam.

Dominados para dominar


Vamos nos delongar um pouco na palavra “fortalecidos” (v. 16).
Esta palavra está no passivo. Notemos que não nos fortalecemos
a nós mesmos, mas temos que ser fortalecidos. O sentido da palavra
no original vem do mesmo vocábulo de onde temos a palavra demo­
cracia— “kratos”e “krateus”— com a idéia de domínio. Traduzindo
talvez um pouco melhor, teríamos: “que sejamos dominados para poder
dominar”. E interessante o pedido fundam ental e básico desta ora­
ção: dominados pela força de Deus para que possamos dom inar

- 47 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

ou conquistar, no seu “dunamis”. Notemos que a fonte deste poder,


tal como em Atos 1.8, é sempre o Espírito. E onde é que este
fortalecimento ocorre? E no homem interior! Em 2Coríntios 4.16,
Paulo fala que o homem exterior, aquele que vemos com os olhos e
que pesa tantos quilos, que precisa dorm ir de noite, que precisa
com er para sobreviver, está desfalecendo, d esap arecen d o e
morrendo; mas o homem interior está se renovando cada dia. Que
palavras im pressionantes! O homem aberto à ação do Espírito
está sendo fortalecido cada vez mais. Paul Tournier escreveu um
livro que fala sobre como devemos envelhecer. Paulo dá a resposta
em poucas palavras, dizendo que a m elhor m aneira de envelhecer
é deixar o homem exterior se corromper, se desgastar, contanto
que o homem interior se torne cada vez mais jovem com o passar
dos dias, pois nele atua o Espírito de “dunamis”, de força dinâmica,
força que, como a dinam ite, rompe as barreiras, força que abre o
coração dos ouvintes. Se eu tentasse dar personalidade à dinam ite,
dificilmente pensaria que ela tem medo da rocha ou desses montes
que precisam ser explodidos. A dinam ite não tem medo porque
tem um a força m aior do que qualquer barreira que tenha de
enfrentar. O Espírito Santo, quando realm ente renova o nosso
homem interior, dando este fortalecimento, este domínio, pode
nos preparar para enfrentar qualquer situação de sofrimento e de
conflito que esteja ã nossa frente.

Os resultados que Paulo espera de sua intercessão


Que Cristo tome conte da casa
A primeira conseqüência que se deve esperar da vida fortalecida é
a realidade de Cristo tomar conta da casa (nossa vida) plenamente.
No original, a palavra “habite” significa tom ar conta de toda a
casa, tendo procuração ou autorização completa, para poder fazer
limpeza nas despensas, m udar a mobília como quiser, jogar fora o
que achar que deve ser jogado, inclusive a t v . Ele é dono da casa!
E, como dono, pode vasculhar as revistas, a biblioteca com os
livros que lá estão, tudo. A oração de Paulo trata de uma transfor­
mação de valores e de amores, semelhante ao sofrimento que já
não é desastre, mas alegria. Jesus toma conta da casa, e, longe de
ser desastroso, isso realmente traz novos valores, novas alegrias.
Alguns de nós temos sentido essa experiência das novas alegrias,

- 48
E P ÍS T O LA DE P A U L O A O S S F É S I O S

de maneira mais real na música do Senhor do que no rock-and-roll


ou outros tipos de música por aí.

Arraigados e alicerçados em amor


Em segundo lugar, vemos no v. 17: “Pela fé (é pela fé que Cristo se
torna dono da casa), estando vós arraigados e alicerçados em amor”.
Há um fruto a produzir, e a semente é o amor que Cristo espalha
em toda a casa em que ele habita (compare com G1 5.22, 23). O
fruto a ser produzido são ações de amor, se estamos arraigados
em amor. São as boas obras que surgem da feitura de Deus, na
nova criação (2.10). “Arraigado” significa ter a vitalidade da vida
que Cristo renova pelo “dunamis” do seu E spírito. A .palavra
“alicerçados” é a base que dá perm anência a este resultado, lem ­
brando a parábola de Cristo acerca das duas casas: uma construída
sobre a areia, que não durou porque não tinha alicerce; a outra
alicerçada sobre a pedra (Mt 7.24-27), sendo esta a que se aplica à
nossa situação aqui. Talvez já tenhamos sentido que temos raízes
que se aprofundaram no amor de Cristo; mas e os alicerces? Só se
vão verificar daqui a um ano, dois ou talvez vinte. Estão realmente
firmes naquele amor? São conseqüências do fortalecim ento do
poder, m ediante o Espírito?

As quatro dimensões do evangelho


A terceira conseqüência é a capacidade de com preender, na
unidade com todos os santos, as quatro dimensões do evangelho
(v. 18): a largura, o com prim ento, a altura e a profundidade.
D u ran te todos esses séculos, desde que Paulo escreveu essas
palavras, m uita gente tem tentado entender: “M as o que são
essas quatro dimensões?” Lem brem-se de que Einstein só veio
descobrir essa quarta dimensão neste século, e Paulo não revela
o que é a quarta dim ensão. É uma figura cúbica que está se
movimentando. O que é isso? Lembramo-nos de Ezequiel (1.16)
com a visão das rodas dentro de rodas, não é?
Quero apenas dar uma sugestão, mas nada de concreto!
Lembremo-nos que a cidade santa, o Novo Israel, pode ser um
cubo com três dimensões; mas a quarta dimensão pode ser o tempo,
incluindo a dimensão de movimento descendo do céu (Ap 21).
Aqui encontramos isto também.

- 49-
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

Vejamos, prim eiram ente, a sua largura. Qual é a largura do


evangelho? Em Apocalipse 5.9 e 7.9, afirma-se que na largura da
salvação se incluirão membros de toda tribo, língua, povo e nação.
O evangelho é tão largo que não se pode excluir nenhum a entidade
ou comunidade hum ana.
A segunda palavra refere-se ao seu comprimento. No tempo,
começando no Éden, logo após a queda do homem, até o fim,
quando o reino (lC o 15.24) for entregue ao Pai, durante todo esse
espaço de tempo (o comprimento), Deus está operando para atingir
0 seu propósito. Desde Abel até o último cristão a se converter no
instante em que Cristo voltar, este é o comprimento. N unca houve
nem haverá, até Cristo voltar, um intervalo na operação poderosa
e salvadora do evangelho!
A terceira dimensão é a sua altura, que vem do mais alto
céu e desce até ao mais baixo inferno. Já temos pensado bastante
sobre isso. Filipenses 2.9-11 focaliza este tema — todo joelho se
dobrará diante de Cristo como Senhor — nos céus, na terra e
debaixo da terra; o evangelho — propósito de Deus — influenciará
todo o universo, toda existência.
E, fin a lm e n te , a sua profundidade: chegará aos piores
pecadores, já bem descritos em 2.1-3. Não há pecador nem rebelde
que não possa ser incluído em tão grande salvação. Essas são as
quatro dimensões do evangelho.
Mas olhe! A oração de Paulo é para que possamos compreender
essas dimensões. Toda a nova geração precisa compreender isso!
Lutero, Calvino, os huguenotes da França as compreenderam; será
que nós, no século XX, compreendemos isso? Como sofreram aqueles
santos, que batalharam contra as forças terríveis do mal, tendo
sido alguns deles até martirizados! Será que temos a coragem de
sair para a linha de frente nesta batalha, como aqueles santos, e
nos desgastar para a glória eterna do Senhor?

1 conseqtiência do conhecimento do amor de Cristo


Talvez alguém diga: “Ah! mas eu conheço o amor de Cristo porque
já fui salvo, já aceitei Cristo”. Mas notemos que o amor de Cristo,
como resposta à oração de Paulo, ultrapassa todo o entendimento:
conhecer o que não pode ser conhecido, diz o original, conhecer o
que ultrapassa o conhecimento! Isso quer dizer que com a mente
usamos palavras que descrevem o amor de Cristo, mas não pode­

- 50-
E P ÍS T O L A DE P A U L O A O S E F É S i O S

mos conhecê-lo na experiência; é profundo demais; mas esse é


tam bém, ao mesmo tem po, o alvo ou meta dessa oração. Todo
homem que se dispuser a sair em serviço, cheio da graça de servir,
terá que sentir esse amor. Não apenas o amor que nos salva, mas
também o que nos envia: “... para que sejais tomados de toda a
plenitude de D eus” (v. 19). A idéia da plenitude já apareceu em
1.23: “a igreja [...] o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo
enche em todas as coisas”. Parece-me que a idéia de encher, em
Efésios e Colossenses, diz respeito ao controle de Deus, em todos
os sentidos: no sentido do amor, quando se trata da sua instrução e
sabedoria, e também em termos de propósito, ou seja, aquilo que
ele quer fazer neste mundo. E essa plenitude, que é o alvo da oração
de Paulo, é Deus realmente enchendo todos os cristãos da.Ásia, do
Brasil e do m undo inteiro, para que o controle dele sobre sua igreja
seja tão completo e claro como a sua força mobilizadora, sem
nenhuma possibilidade de o mundo ficar enganado. Vejam que Deus
é quem está operando e agindo. O livro Ivan (de Myrna Grant,
publicado no Brasil pela Editora Betânia) descreve, de maneira
impressionante, a vida de um jovem soldado russo que, através
deste poder de Deus na sua vida — poder que era real e profundo
— desafiou um batalhão a deixar o ateísmo e reconhecer a realidade
do Deus vivo, tendo no fim entregado a vida, como mártir, com
aquele sofrimento alegre que mencionamos anteriormente.
No fim da oração temos a doxologia da adoração: “Pensam”,
disse Paulo, “pensam que estou pedindo muito? Deus é Poderoso
para fazer m uito mais do que acabamos de pedir. Tanto que não
podemos nem imaginar, com m entes tão lim itadas como são as
nossas. Conforme o seu poder que está operando eficientemente
em nós, a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus,para todas as
gerações!” Até esta geração de hoje. Não sei quantas já se passaram
desde Paulo, mas ele orou por nós e por todas as gerações que
ainda virão!

0 discipulado de Cristo — primeira parte (4 .1-16 )


‘Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que
andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados,
2com toda hum ildade e mansidão, com longanimidade,
suportando-vos uns aos outros em amor, 3esforçando-vos
diligentemente por preservar a unidade do Espírito no

51
EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

vínculo da paz: 4Há somente um corpo e um Espírito,


como também fostes chamados num a só esperança da
vossa vocação; 5há um só Senhor, um a só fé, um só
batismo; 6um só D eus e Pai de todos, o qual é sobre
todos, age por meio de todos e está em todos. 7E a graça
foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do
dom de Cristo. 8Por isso diz: Quando ele subiu às al­
turas, levou cativo o cativeiro, e concedeu dons aos
homens. 9Ora, que quer dizer subiu, senão que também
havia descido até as regiões inferiores da terra? 10Aquele
que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos
os céus, para encher todas as coisas. “E ele mesmo conce­
deu uns para apóstolos, outros para profetas, outros
para evangelistas, e outros para pastores e mestres, 12com
vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho
do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo,
13até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno
conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade,
à medida da estatura da plenitude de Cristo, 14para que
não mais sejamos como meninos, agitados de um lado
para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina,
pela artim an h a dos hom ens, pela astúcia com que
induzem ao erro. 15Mas, seguindo a verdade em amor,
cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, 16de
quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo
auxilio de toda junta, segundo a justa cooperação de
cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edifi­
cação de si mesmo em amor.

Mossa parte no corpo de Cristo


O apóstolo faz agora uma importante transição. Os primeiros três
capítulos dão-nos uma visão do todo, começando antes da criação,
quando Deus planejou nossa incorporação no novo homem, e como
ele nos resgatou do império das trevas e está produzindo a sua obra
de arte. E essa obra unifica e derruba todas as barreiras culturais,
raciais e até religiosas, como vemos no caso do judeu e do gentio.
No capítulo 3, Paulo é o prim eiro a divulgar esse tão grande
mistério, que tem suas repercussões até entre os poderes do mal,
distantes do trono de Deus (3.10). E vimos as duas grandes ora­

52 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S EFÉSIQS

ções, pedindo a Deus uma visão para todos os crentes e também


revestimento de poder, para que compreendam sua posição em
tão grande obra divina.
C hegando agora ao cap ítu lo 4, a m udança me parece
fundamental, pois Paulo nos chama a, individualm ente, reconhe­
cermos nossa parte neste novo homem, ou corpo de Cristo. Nos
primeiros versículos, precisamos de uma nova atitude que se carac­
teriza por m ansidão, hum ildade, longanim idade (a virtude de
suportar aqueles que não nos parecem ser tão bons como nós) e,
depois, o reconhecimento de quem realmente pertence a este corpo.
Aí temos sete fundamentos, nos versículos 4-6. Deus é o Pai dessa
família.
No versículo 7, ele pede que reconheçamos a forma da graça
quando se individualiza, aplicando-se não mais à nossa salvação
(todos somos salvos da mesma m aneira, pela fé em C risto —
capítulo 2), mas em sua forma m últipla, usando e capacitando
todos os membros da igreja a exercer sua função dentro do corpo.
Este conceito se desenvolve até o versículo 16, quando se introduz
o tema principal do capítulo. Vamos destacar duas coisas neste
trecho introdutório.
Sabemos que Cristo, através de sua morte, ressurreição e
glorificação, eliminou as correntes do cativeiro satânico; isto é, a
hum anidade cativa a Satanás passou então a ser o espólio de
Cristo. Assim nós, que fomos transferidos, segundo Colossenses
1.13, do im pério das trevas e de sua escravatura, tomamo-nos
escravos de Jesus Cristo e da sua justiça, segundo Romanos 6.
Essa escravatura deve atuar no m undo e na igreja com essa indivi-
dualização em forma de apóstolos, profetas, evangelistas, pastores,
m estres e ou tras form as, tais como as que encontram os em
ICoríntios 12 e em 1Pedro 4.10-11. Esta passagem sobre os dons
mostra essa m ultiplicidade, sendo-nos possível recebê-los sob as
ordens de nosso Senhor e na condição de escravos dele. Veremos
agora como a obra de Cristo, que ele nos dá para fazer; se divide
em dois aspectos.
O prim eiro deles encontra-se no versículo 15: “... seguindo
a verdade em amor, cresçamos em tudo”. Os capítulos 1-3 dão a
impressão de que já somos tudo; mas os capítulos seguintes mos­
tram que ainda temos muito que aprender; temos que amadurecer
no discipulado de Cristo e crescer em tudo para sermos aquilo que
já somos. Os alemães têm uma frase que diz: “werde was du bist”,

53 -
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

ou seja, “torna-te aquilo que tu já és”. Nós já somos membros na


plenitude, pois fazemos parte da feitura de Cristo; mas de certo
modo somos isso de modo embrionário ou como crianças. Nossa
posição já está aí, com toda sua possibilidade e potencial, mas
temos que cam inhar para a m aturidade (v. 15).
O outro aspecto (v. 16) enfatiza não apenas o nosso cresci­
mento individual para tomar parte no corpo, mas também a neces­
sidade de termos, dentro de nós e fluindo do nosso interior, uma
comunhão com Cristo, que reúne os nossos irmãos e serve para
encher todas as coisas. O capítulo 1 terminou com a revelação de
que Cristo enche todas as coisas; e nós, que já fazemos parte do seu
corpo, temos dentro de nós a nutrição vital de Cristo. Ele está
produzindo este alimento ou vitalidade que passa de uma célula
para outra. Veja estas palavras: todo o corpo, bem ajustado (unido) e
consolidado (indicando que os membros estão intercedendo uns pelos
outros, ensinando uns aos outros), pelo auxilio (a palavra “auxílio”
não é uma boa tradução, pois é possível deduzir do original que se
trata de um suprim ento que se produz dentro do corpo, porque
Cristo vive no corpo; tudo vem dele, mas funciona dentro das células
do corpo de Cristo) de toda junta (a palavra junta no original significa
contato, onde uma pessoa toca a outra e, no meio das duas, três ou
no meio de uma multidão, Deus produz o crescimento interno e
externo do seu corpo) segundo ajusta cooperação de cada parte, efetua o
seu próprio aumento para a edificação de si mestno em amor.
Lembremo-nos então, ao estudarmos a segunda parte (4.17­
5.21), desses dois conceitos: primeiro, cada um de nós crescendo
individualm ente para ser aquilo que Deus nos chamou para ser:
evangelista, pastor, mestre, tendo o dom do serviço, ou.qualquer
que seja o dom, contanto que se cresça para essa posição. Lem bre­
mo-nos também de que o crescimento da igreja se faz através do
suprim ento da vitalidade das células dentro do corpo.
Para que isso aconteça, precisamos do discipuíado de Cristo.
É o que veremos a seguir.

0 discipuíado de Cristo — segunda parte (4 .1 7 -5 .2 1 )


l7Isto, portanto, digo, e no Senhor testifico, que
não mais andeis como também andam os gentios, na
vaidade dos seus próprios pensamentos, 18obscurecidos
de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da

- 54 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS E FÉ S IO S

ignorância em que vivem, pela dureza dos seus corações,


19os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram
à dissolução para, com avidez, cometerem toda sorte de
impureza. 20Mas não foi assim que aprendestes a Cristo,
21se é que de fato o tendes ouvido, e nele fostes instruídos,
segundo é a verdade em Jesus, 22no sentido de que,
quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem
que se corrompe segundo as concupiscências do engano,
23e vos renoveis no espírito do vosso entendim ento, 24e
vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em
justiça e retidão procedentes da verdade. 25Por isso,
deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu
próxim o, p o rq u e somos m em bros u n s dos outr*os.
26Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa
ira, 27nem deis lugar ao diabo.28Aquele que furtava, não
furte mais; antes trabalhe, fazendo com as próprias mãos
o que é bom, para que tenha com que acudir ao neces­
sitado. 29Não saia da vossa boca nenhum a palavra torpe,
e, sim, unicamente a que for boa para edificação, con­
forme a necessidade, e assim transm ita graça aos que
ouvem. 30E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual
fostes selados para o dia da redenção. 31Longe de vós
toda a amargura, e cólera, e ira, e gritaria, e blasfêmias, e
bem assim toda a malícia. 32Antes sede uns para com os
outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos
outros, como também Deus em Cristo vos perdoou.
5 'Sede, pois, im itadores de D eus, como filhos
amados; 2e andai em amor, como tam bém C risto vos
amou, e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e
sacrifício a Deus em aroma suave. 3Mas a im pudicícia e
toda sorte de impurezas, ou cobiça, nem sequer se nomeie
entre vós, como convém a santos; 4nem conversação
torpe, nem palavras vãs, chocarrices, coisas essas incon­
venientes, antes, pelo contrário, ações de graças. 5Sabei,
pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento,
que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus.
6Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por estas
coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.
7Portanto não sejais participantes com eles. 8Pois outrora

- 55
EPÍSTOLAS da prisão

éreis trevas, porém agora sois luz no Senhor; andai como


filhos da luz 9(porque o fruto da luz consiste em toda a
bondade, e justiça, e verdade), i0provando sempre o que
é agradável ao Senhor. ” E não sejais cúmplices nas obras
infrutíferas das trevas, antes, porém, reprovai-as. I2Porque
o que eles fazem em oculto, o só referir é vergonha. 13Mas
todas as coisas, quando reprovadas pela luz, se tornam
manifestas; porque tudo que se manifesta é luz. "Pelo
que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre
os mortos, e Cristo te iluminará. 15Portanto, vede pru­
dentemente como andais, não como néscios, e, sim, como
sábios, 16remindo o tempo, porque os dias são maus. 17Por
esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai
com preender qual a vontade do Senhor. 18E não vos
em briagueis com vinho, no qual há dissolução, mas
enchei-vos do Espírito, 19falando entre vós com salmos,
entoando e louvando de coração ao Senhor, com hinos e
cânticos espirituais, 20dando sempre graças por tudo a
nosso Deus e Pai, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo,
21sujeitando-vos uns aos outros no temor de Cristo.

8 discipulado pressupõe um andar


Na Antiguidade, homens como Sócrates e Zenão, homens como
Jesus Cristo — o Deus encarnado — ou Paulo, transm itiram a
sua maneira de encarar o mundo, a sua m aneira de ver quem eles
eram e para que se vive; enfim, transm itiram os seus conceitos a
respeito de tudo, através do discipulado. Mas esse discipulado
não era como a escola que freqüentamos hoje em dia, em que o
aluno se assenta numa cadeira e escuta as idéias do professor. Os
discípulos deram m uita atenção aos ensinamentos do Mestre, mas
ser discípulo de Cristo significava m uito mais: dorm ir com ele na
mesma tenda ou debaixo das mesmas estrelas; comer a mesma
comida; distribuir a pouca verba que havia entre todos; andar no
mesmo barco; pregar juntos e com partilhar as mesmas idéias. Em
outras palavras, o discipulado de Cristo ou de Sócrates, ou de
qualquer outro im portante filósofo ou líder religioso do passado
envolvia a comunicação vivencial das atitudes, da m aneira de
encarar o mundo, incutindo tudo na mente dos discípulos, compe­
lindo-os à ação. Paulo tem isso em mente quando usa a palavra

- 56 -
EPÍSTOLA DE P A U L O AOS EFÉSIOS

andar. Esta é a palavra-chave de todo o trecho. Já em 4.1 vimos


que devemos andar de modo digno da nossa vocação. Qual é a
nossa vocação? É seguir a Cristo como discípulos, passando toda
a nossa vida crescendo para ele e com ele. Inclui todas as coisas
relacionadas com a nossa vida, não apenas a com preensão de
teologia e de doutrina mas, particularm ente, a prática. É por isso
que este trecho foi escrito. É um texto, acima de tudo, que trata do
discipulado como um a transform ação da mente. Vejamos por
exemplo a exortação do v. 23: e vos renoveis no espírito do vosso
entendimento.
Agora, qual é a grande necessidade do povo de D eus em
nosso país? Não é que a igreja de Cristo seja justamente esse enxerto
da mente de Cristo, para modificar a personalidade brasileira, a
personalidade de cada um de nós? Para que isto aconteça, temos
que “andar” e não nos “assentar”. Lembremo-nos de que em 2.6
Cristo nos deu o privilégio de sentarmos com ele e olharmos para
o mundo, da distância do terceiro céu. Daí podemos ver todas as
coisas de uma distância tão grande que não é possível enxergar o
que está acontecendo lá em particular. Estamos felizes na presen­
ça do Senhor, transfigurados, criando o nosso tabernáculo no cume
do monte Hermom, na presença de Cristo. Mas o discipulado é lá
embaixo, nas estradas e nas ruas empoeiradas da Palestina ou no
asfalto de São Paulo.
Esta é a mensagem deste trecho, e se não conseguirmos
analisar nem uma fração das im portantes idéias que aqui se encon­
tram, não esqueçamos que o discipulado, que nos capacita a ser células
vitais que dão vida a outras, que nos capacita a crescer em tudo para
Cristo, precisa de um andar.
Este andar apresenta prim eiram ente seu lado negativo
(v. 17): não andeis [...] na vaidade dos vossos pensamentos. A m ente
que não recebe um a nova atitude que vem de Cristo será sempre
uma mente oca. A palavra em grego significa “inútil”, “vazia”. É
uma mente que não se preocupa com nada de valor presente nem
futuro; tem ambições que são como o nevoeiro de São Paulo, que
aparece pela manhã e lá pelas 9h30 ou 10 horas se vai por completo.
A mente que Cristo discípula é a mente que trata de valores perm a­
nentes. Portanto, o discipulado trata daquele cristão que está
recebendo, constantem ente, através do canal da palavra e do
Espírito, a luz da m ente de Cristo. Note-se que o v. 18 nos exorta
a não termos um discipulado obscurecido de entendimento, nem

- D/ ~
EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

um discipulado alheio à vida de Deus, ou fechado ao que ele esteja


fazendo através do seu Espírito. Não deve ser um discipulado que
endurece o coração. Lembremo-nos dos discípulos que, quando as
mães quiseram trazer seus filhos para Jesus, endureceram o coração;
também quando Bartimeu quis chegar-se a Jesus e receber o seu
to que, que dá luz p ara toda a vida, os d iscíp u lo s falaram :
“C ala-te!” . O d iscip u lad o de C risto sem pre nos to rna m ais
sensíveis, mais elásticos (no sentido certo da palavra), em vez de
rígidos diante das profundas necessidades do nosso mundo.

0 discipulado de Cristo é um constante o u v !-! q

Os m omentos particulares de oração e leitura da Bíblia visam


abrir os ouvidos do coração à mente de Cristo: “O que tu queres
que eu pense? Como tu queres que eu alcance as metas ou dirija as
m inhas ambições? Como tu queres que eu fale com as pessoas
com quem me encontrarei hoje? De que maneira o meu sorriso (o
crente está sempre sorrindo, mesmo ao chorar com os que choram)
comunicará o amor de Cristo às pessoas tristes que andam com
corações endurecidos, na vaidade, no obscurecim ento dos seus
entendimentos? Ouçamos primeiro a Cristo!

instruídos segundo a verdade


A segunda palavra que Paulo usa para descrever este aprendizado,
este discipulado de Cristo, é a palavra instruídos, segundo é a verdade
em, Jesus (v. 21). Esta frase “verdade em Jesus” tem suas raízes na
promessa de Cristo aos discípulos, em João 16.13, quando falou
do Espírito Santo que iria guiá-los. Ele tornou-se o M estre que
vamos seguir, agora que Jesus foi glorificado; o Espírito nos comu­
nica toda a verdade de Jesus nos seus ensinos, na forma como
Jesus viveu, na sua instrução no Sermão da M ontanha e através
dos apóstolos e do Antigo Testamento. Instruídos em Cristo! O
discípulo nunca chega a ser alguém que diz: “Olhe, já passei três
ou quatro anos na escola bíblica, ou no seminário; agora não sou
mais discípulo; já conheço a instrução de Jesus; a m inha mente já
está cheia dela e as minhas atitudes já se formaram; daqui para a
frente eu posso discipular...” Não! O discipulado de C risto é
contínuo, perm anente, com o revestim ento do novo hom em (v.
24), cooperando para uma renovação constante!

- 58 -
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S E F É S I O S

A ceboia
Quanto a esse discipulado negativo que o parágrafo 17-24 fala
(pôr à parte o velho homem), penso em mim mesmo como uma
grande cebola (não sei se alguém já pensou assim). A cebola, como
todos sabem, tem um a casca seca por fora; tira-se essa casca para
poder comê-la, mas é interessante que, tirando aquela prim eira
casca, é possível tirar outra, e ainda outra, que se vai tirando, tirando,
e nunca acaba, a não ser quando acaba a cebola. E este o conceito
da renovação contínua que põe à parte o velho homem, as velhas
práticas, as velhas atitudes. Seja o que for que esteja aprendendo
hoje, terei de reaprender amanhã ou, pelo menos, conscientizar-me
amanhã em termos de vaidade, endurecimento e insensibilidade,
de dissolução (aquilo que destrói em vez de edificar), de ambições e
de avareza (em vez de generosidade). Enfim, somos cebolas mesmo!
E eu gostaria de saber, enquanto vou sendo descascado, onde estou.
Sem dúvida já entregamos a nossa vida para a operação de Cristo
por meio do Espírito; ele já tirou a prim eira casca. Já sou salvo,
graças a Deus, e o perfume de Cristo já começou a exalar de mim.
Vamos explicar melhor, não é bem como o cheiro da cebola, mas,
como afirma 5.2, é “um bom aroma”. Cristo quer fazer muito mais,
transform ando cada um desses níveis da nossa personalidade,
incutindo nela sua mentalidade.
O parágrafo seguinte (4.25-5.21) aborda particularm ente
problem as do m undo antigo, mas que são tam bém do nosso
mundo. Fala em termos de contrastes. Vejamos rapidam ente seis
contrastes que Paulo menciona.

(1) Fale cada um a verdade


O primeiro contraste é: pondo de lado a m entira, fale cada um a
verdade, seja honesto com o seu próximo. Não tenhamos hesitação
em confessar que aquilo que queremos que o m undo pense a nosso
respeito não é bem a verdade. Confessemos, cada um, os pecados
dos quais Cristo está nos convencendo pelo Espírito; confessemos
uns aos outros, para que possamos pô-los de lado. Devemos colocar
em nossa mente o v. 25 como a chave fundam ental para o cres­
cimento na santidade. Quem está sempre se cobrindo cada vez
mais com máscaras de santidade, uma santidade exterior, em vez
de interior, cada vez menos está sendo discipulado em Cristo! Se

- 59
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

eu me fecho na mentira hipócrita, sou como o fariseu que orava no


templo: “Dou graças a Deus porque não sou como os outros homens.
Se assim pensarmos, destruiremos nosso irmão, porque, ou vamos
convencê-lo de que somos realmente santos, e ele nunca vai chegar
a ser tão puro e santo como nós; ou ele descobrirá que é tudo mentira
e chegará à conclusão de que “esse negócio de ser cristão é uma
grande mentira, m entir até convencermos a nós mesmos”. Somos
membros uns dos outros, essa é a verdade essencial para edificar
nosso irmão; e essa verdade está principalm ente na honestidade
quanto àquilo que está passando em nossa vida.

A segunda palavra de contraste é a palavra de irritação limitada,


restrita àquilo que Deus desaprova, contra a justiça e o amor de
D eus em nosso m undo. Não havendo irritação com isto, não
havendo ressentimento contra o mal e contra a injustiça, constan­
temente estaríamos descambando e correndo para o nosso gueto
cristão. Mas Cristo nunca fez isso; ele foi diretam ente para o
templo, para se irritar com a injustiça da exploração dos sacer­
dotes que vendiamsacrifícios por duas ou três vezes mais que o
preço normal, porque não era lícito sacrificar nenhum outro animal,
senão o que recebesse a vistoria oficial do sacerdócio. Essa injustiça
provocou em Jesus Cristo a ira, mas limitada. Quem fica sempre
irritado, um dia ou outro sentir-se-á obrigado a se aliar àqueles
que querem m udar o m undo pela violência. Deve ser por isso que
Deus nos ordena, como discípulos de Cristo, fazer com que à noite,
ao pôr do sol, acalmem os nossa alm a na presença de D eus e
reconheçamos que não podemos m udar este m undo, sem a sua
cooperação. Sozinhos, nada podemos fazer. Quem não lim ita a
sua ira, abre o seu coração para o diabo (v. 27).

(3) lie forte mais


O terceiro contraste é a ilegalidade do roubo contrastado com a
legalidade da generosidade. Quem rouba? Quem sonega? Quem
tem dois livros-caixa? Quem? Quantas são as maneiras de roubar!
Em vez disso, vamos trabalhar. Vamos trabalhar como um certo
irmão, lá na Irlanda, que, quando terminava o seu dia de trabalho,
oferecia-o a Deus, dizendo: “Olha, Senhor, foi o melhor que pude
EPÍSTOLA DE P A U L O AOS EFÉSIOS

fazer hoje! Recebe-o em nome de Cristo!” Esse trabalho (é im pres­


sionante!) rende, produz. E precisamos produzir. Há sempre mais
pessoas neste mundo. A população se expande assombrosamente.
Cada vez mais no nosso mundo, e particularm ente no Brasil, haverá
oportunidades de com partilharm os os bens que Deus nos deu.
Filipenses 4.18 chama isso “um sacrifício que agrada a D eus”, o
com partilhar dos bens resultantes do nosso trabalho, em contras­
te com o ladrão que tira para vantagem pessoal.

(4) Nenhuma palavra torpe


O quarto contraste é uma boca purificada pelo Espírito de Deus.
Lembremo-nos de que Jesus, em M arcos 7, fala que o que nos
contamina não é o que entra pela nossa boca, como pensavam os
judeus que tanto se preocupavam em não comer nada im undo,
mas sim o que sai do coração através da língua. A palavra “torpe”
significa “peixe podre”, isto é, o que tem mau cheiro e choca os
que nos ouvem, levando-os a se afastar de nós (e, portanto, do
nosso Senhor Jesus Cristo!). Em contraste com isso, existem as
palavras que sempre edificam, palavras que colocam pedras vivas
naquele templo, como vimos em 2.20-22. Quando este contraste
não ocorre, havendo uma mistura entre verdade e m entira, entre
irritação limitada e ilimitada, quando o diabo tem lugar em nossa
vida, quando o cristão é meio ladrão e meio honesto, quando quase
sempre está pregando ou falando de Cristo, mas de vez em quando
expressa-se com um peixe podre, quando isto acontece, o Espírito
Santo se entristece. Por quê? Lembremo-nos de que o discipulado
de Cristo éseguir o Espírito, éescutar o que ele tem a nos dizer, pois
são as palavras de Cristo. E se estamos confundindo as palavras do
E spírito com as palavras que vêm da nossa natureza adâm ica
contaminada pelo pecado, essa confusão cria um ambiente pesado
para o Espírito, um ambiente poluído dentro de nós. E todos nós
sabemos como nos sentimos, quando esse ambiente se desenvolve
no nosso íntimo. Sentimo-nos pesados em nossa consciência.

(5) Sacrifício a Deus em aroma suave


Em 5.3, temos o contraste entre a pureza sexual, a conversa torpe
do v. 4 e o verdadeiro amor (v. 2: “andai em am or”). Isso inclui o
amor na vida sexual também, que vamos estudar um pouco mais
e p í s t o l a s da p r i s ã o

no próximo capítulo. Esses contrastes são bem notáveis na vida


do homem que está seguindo a Cristo, que nele está sendo disci-
pulado, que está im itando a Deus (5.1), que mostra as caracte­
rísticas do Pai celestial se formando no seu filho amado, que ama
a Deus e é amado por ele, homem cuja vida se torna cada vez mais
sacrificial (v. 2), andando em amor (também Cristo nos amou e se
entregou por nós, como oferta e sacrifício). O andar em amor é
começar a dar mais do que receber. É uma vida como a do apóstolo
Paulo, que também oferece a Deus o seu sacrifício de amor, que
são as pessoas com quem ele viveu durante trinta anos de ministério.
Em Romanos 15.16, ele d iz:"... para que eu seja ministro de Cristo
Jesus entre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho
de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável (ou agradável a
Deus), uma vez santificada pelo Espírito Santo”. Uma vida de
discipulado em amor tem que ter o seu fruto na vida de outras
pessoas, fruto que possamos oferecer como prim ícias que agradam
com aroma suave o nosso Senhor. É claro que a nossa vida não
pode ser entregue como Cristo entregou a sua vida em substituição
pelos nossos pecados. Mas ela pode ser entregue aos que nos
rodeiam, aos nossos colegas da universidade ou do trabalho, aos
membros da nossa igreja. Pode ser entregue na forma de trans­
formação, de osmose, isto é, pela vitalidade que Cristo está colo­
cando em nós, passando e criando vida de uma célula para outra.
Neste sentido é que Paulo chama os novos convertidos entre os
gentios de seus “filhos” na fé.

Outra característica ainda deste discipulado em Cristo é o que 5.8


chama de andar na luz. Andar como filhos da luz, ser luz. Luz,
segundo este trecho nos mostra, é o cristão que não dorme (v. 14).
Há sempre o perigo de o crente dizer alguma coisa ou transform ar
alguma coisa; mas, se ele dormir, não há grande perigo de m udar
nada ou, pior, se for um crente morno, como os da igreja de Laodi-
céia, então não há perigo algum, pois está completamente tomado
pela cultura e pelo pensamento de sua época, de forma que nin­
guém mais faz caso dele. Mas o v. 14 diz o contrário: “Desperta, ó
tu que dorm es”! Faz a diferença que a luz faz entre as trevas;
levanta-te dentre os mortos; torna-te um verdadeiro Lázaro, no
meio de toda essa multidão triste e miserável, e traz alegria para o
E P Í S T O L A DE PAULO A OS EFÉSiOS

Senhor! Torna-te não a expressão “ilum inado por Cristo”, mas o


“ilum inador de Cristo”! Sê uma espécie de lâm pada ambulante
neste mundo!

Enchei-vos d® Espírito
Podemos dividir os versículos 15-21 da seguinte forma: 15-18 mos­
tram uma caminhada e que o Espírito pode nos encher; os versículos
19-21 descrevem a conseqüência desse enchimento. Primeiramente,
a frase vede prudentemente como andais. A palavra prudentemente
significa cautelosamente.
Refere-se possivelmente à Palavra de Deus, aos conselhos
de Cristo, às ordens dele na sua Palavra. É andar passo-a. passo
em Cristo. Se sairmos para a esquerda ou para a direita, poderemos
nos perder em nosso caminho. Andemos bem na vereda, ou seja,
andemos com cuidado. Cuidado com o que os outros estão dizendo
e como estão percebendo o nosso andar em Cristo. Este andar
prudente é, antes de mais nada, um andar sábio. É um andar que
realm ente está com o pensam ento concentrado em C risto. A
segunda coisa que caracteriza este andar é um a nova postura
quanto ao tempo (kairós).
Já que a noite está chegando e não temos a eternidade para
trabalhar, lutar contra o mal e espalhar a luz de Cristo, estamos
“resgatando” o tempo. Essa idéia de resgatar o tempo, porque os
dias são maus, é o conceito desta era. Esta era pertence a Satanás,
e o cristão tem a capacidade de usar o seu tempo (tal como pode
usar o seu dinheiro, suas capacidades, seu conhecim ento, sua
mente) para retirar o tempo das mãos de Satanás. É resgatar do
poder satânico aquilo que ele já escravizou no mundo. A carac­
terística do nosso século é gastar mais e mais o tempo sem proveito
divino. Satanás nos tenta apertar para não pensarm os sobre os
valores reais, pela falta de tempo. Nós não podemos rom per o
tempo para a glória de Cristo? O Senhor deseja que resgatemos as
horas para ele.
Não vos tomeis insensatos (v. 17). Não vos torneis insensatos mo­
ralmente. Paulo enfrentava o que nós enfrentamos hoje: novas idéias
sobre a moralidade, certas práticas que supostamente não são tão
más assim para um mundo liberal. Mas isto é insensatez e destrói o
discipulado de Cristo. Transmite corrosão ou mesmo veneno da célula
viva para outra célula que está dependendo de nós.

- 63 -
E P Í S T O L A S OA P R I S Ã O

E não vos embriagueis com vinho (v. 18), isto é, não devemos
procurar, através de fontes alheias e externas, uma alegria para a
alma que só o Espirito pode proporcionar. Procuremos, sim, a ação
do Espírito para produzir comunicação, adoração e a verdadeira
gratidão; finalmente, para criar verdadeira comunhão na sujeição
uns aos outros.

0 discipulado no lar, no trabalho e no


exército de Deus (5.22-6.24)
22As m ulheres, sejam subm issas a seus próprios
maridos, como ao Senhor, “ porque o marido é o cabeça
da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja,
sendo este mesmo salvador do corpo. “ Como, porém, a
igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres
sejam em tudo submissas a seus maridos. “ M aridos,
amai vossas m ulheres, como tam bém Cristo amou a
igreja, e a si mesmo se entregou por ela, “ para que a
santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem
de água pela palavra, “ para a apresentar a si mesmo
igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa seme­
lhante, porém santa e sem defeito. 28Assim também os
m aridos devem am ar as suas m ulheres como a seus
próprios corpos. Quem ama a sua esposa, a si mesmo
se ama. 29Porque ninguém jamais odiou a sua própria
carne, antes a alim enta e dela cuida, como tam bém
Cristo o faz com a igreja.; 30porque somos membros do
seu corpo. 3lEis por que deixará o homem a seu pai e a
sua mãe, e se unirá à sua mulher, e se tornarão os dois
uma só carne. 32Grande é este mistério, mas eu me refiro
a Cristo e à igreja. “ Não obstante, vós, cada um de per
si, também ame a sua própria esposa como a si mesmo,
e a esposa respeite a seu marido.
6 ‘Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois
isto é justo. 2Honra a teu pai e a tua mãe (que é o pri­
meiro m andam ento com promessa), 3para que te vá bem,
e sejas de longa vida sobre a terra. 4E vós, pais, não
provoqueis vossos filhos à ira, mas criais na disciplina
e na adm oestação do Senhor. 5Q uanto a vós outros,
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS EFÉS IOS

servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne com


temor e tremor, na sinceridade do vosso coração como a
C risto, 6não servindo à vista, como para agradar a
homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração
a vontade de Deus. 7Servindo de boa vontade, como ao
Senhor, e não como a homens, 8certos de que cada um,
se fizer algum a coisa boa, receberá issò outra- vez do
Senhor, quer seja servo, quer livre. 9E vós, senhores, de
igual modo procedei para com eles, deixando as ameaças,
sabendo que o Senhor, tanto deles como vosso, está nos
céus, e que para com ele não há acepção de pessoas.
"Q uanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força
do seu poder. "Revesti-vos de toda a arm adura de Deus,
para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo;
"porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e,
sim , contra os p rincipados e potestades, contra os
dominadores deste m undo tenebroso, contra as forças
espirituais do mal, nas regiões celestes. "Portanto, tomai
toda a arm adura de Deus, para que possais resistir no
dia mau, e, depois de terdes vencido tudo, permanecer
inabaláveis. 14Estai, pois, firmes, cingindo-vos com a
verdade, e vestindo-vos da couraça da justiça. "Calçai
os pés com a preparação do evangelho da paz; 16embra-
çando sempre o escudo da fé, com o qual podereis apagar
todos os dardos inflamados do maligno. 17Tomai também
o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a
palavra de Deus; "com (no original: “através de”) toda
oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito, e
para isto vigiando com toda perseverança e súplica por
todos os santos, 19e também por mim; para que me seja
dada, no ab rir da m inha boca, a palavra, para com
intrepidez fazer conhecido o mistério do evangelho, 20pelo
qual sou embaixador em cadeias, para que em Cristo eu
seja ousado para falar, como me cumpre fazê-lo. 21E para
que saibais tam bém a m eu respeito, e o que faço, de
tudo vos informará Tíquico, o irmão amado, e fiel m i­
nistro do Senhor. 22Foi para isso que eu vo-lo enviei,
para que saibais a nosso respeito e ele console os vossos
corações. 23Paz seja com os irmãos, e amor com fé, da
parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. 24A graça

-65
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

seja com todos os que am am sinceram ente a nosso


Senhor Jesus Cristo.

Introdução
Lembremo-nos rapidam ente do que Deus nos tem dito em Efésios.
O pensam ento-chave é que D eus planejou que todas as coisas
sejam encabeçadas e somadas em C risto (l.lO ).Para essa fina­
lidade, ele nos escolheu, nos predestinou, nos remiu, nos perdoou,
nos desvendou a sua revelação, nos deu o seu Espírito e nos con­
cedeu o privilégio de orar. O capítulo 2 sublinha que fomos redi­
midos de um a força tão escura, tão baixa, e colocados sobre a
pedra que é Cristo, alicerçando-nos para a edificação de um templo
novo, unido. Esse templo tem todas as características que Deus
deseja do seu lar, porque ele habitará no meio do seu povo (2.22).
O capítulo 3 mostra-nos que, com o propósito de criar este novo
homem, este templo de Deus na terra, ele escolheu homens como
Paulo, o pioneiro, e está nos escolhendo também. O capítulo 4
aborda nossa vocação na igreja e exorta-nos a nos esforçarmos
para m anter a unidade da igreja. Do v. 7 em diante, Paulo nos diz
como Deus está nos equipando e nos preparando para servir dentro
da sua igreja. Depois de toda essa transformação m ental que vimos
no trecho de 4.17-5.21, agora nesta últim a parte do estudo vamos
pensar ainda sobre três ou quatro outras áreas em que este propósito
de Deus precisa ser vivido e encarnado.
Intitulo esta seção, que começa em 5.22 e vai até 6.4, “O
Discipulado de Cristo no L ar”; a seção começando com 6.5, “O
D iscipulado de C risto no Trabalho”; e, finalm ente, a epístola
term in a colocando a nossa vocação nas fileiras da lu ta , nas
fronteiras da batalha contra o mal, contra o próprio poder de
Satanás; e para isso precisaremos de toda a arm adura de Deus.
O apóstolo começa, em 5.15, a exortar os leitores a andarem
cuidadosamente, com sabedoria, remindo o tempo, compreendendo
a vontade de Deus para a vida. Quando isso acontece, o Espírito
começa a ter abertura no coração e se expande no espaço íntimo
que domina. D aí decorre este clímax quanto à nossa vocação, a
necessidade de darmos cada vez mais espaço para que o Espírito
nos encha em todos os aspectos, áreas e responsabilidades de nossa
vida: na mente, na ação, no trabalho, nas viagens, nas palavras;
enfim, em tudo o que chamamos de vida. Já vimos que isso influi
E PÍS T OLA DE PAULO AOS EFÉ SIOS

em quatro áreas: prim eiram ente, na capacidade de comunicação


bíblica com os salvos. Vimos, em seguida, que isso também nos
dá comunicação com Deus, um a alegria real no Senhor, o que
transforma o nosso culto. Em vez daquela acomodação triste que
se caracteriza pelo desejo m aior de dorm ir do que de adorar,
passa-se a realmente exultar no Senhor. Cria também um espírito
de gratidão, uma adoração em toda circunstância e em todo lugar,
já que o tem plo do Senhor não se restringe nem poderia ser
confinado às quatro paredes da igreja. O templo se manifesta onde
o cristão está dando graças, adorando e se comunicando. Mas
essa últim a conseqüência do Espírito Santo em nós (5.21) tem
implicações que surgem até o fim da epístola. Refiro-me à simples
palavra sujeitando-vos, que aponta para subm issão ou apoio.
Envolve-nos na vida do outro, como aquele que im pulsiona e
sustenta o colega. A idéia de submissão contém essa idéia de apoiar,
de impulsionar, de dar ânimo; devemos compreender como isso é
básico e fundam ental na atitude do cristão quanto à sua vocação.

As mulheres
M ulheres, apoiem seus maridos; tornem-se realmente pessoas que
estão prontas a consumir todas as energias, o tempo e os interesses
para apoiar o marido. Como submissão significa colocar-se debaixo
da missão de outra pessoa, há uma importância prioritária dada
àquele com quem se casa. Se for um casamento no Senhor (e não
é perm itido outro tipo de casamento ao crente), deve-se conhecer,
antes de se comprometer, essa obediência que não tem nada a ver
com a escravatura. E semelhante ao conceito que Cristo desenvolve
em João 15.15, quando disse: “Já não vos cham o servos [ou
escravos], mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto
ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer”. Essa é uma descrição
muito bela da esposa submissa, que consagra a sua vida a apoiar
o marido dentro da missão dele. A razão disso é que o marido é o
cabeça, isto é, aquele que se expõe em sua missão e tem que
enfrentar as resistências do mundo. Então a esposa, no lar, ajuda-o
em tudo para que ele possa vencer. Que ele possa descansar bas­
tante em casa; caso contrário, não vai se dar m uito bem lá no
mundo. Que ele possa se alim entar bem, tendo-a como a cozinheira
que todo dia prepara “aquele” banquete (não esbanjando também,
porque talvez gastar demais contrarie a missão do marido). Mas,

- 67 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

pelo m enos, que ela faça o m elhor possível com aquilo que o
orçamento propicia. Por que se deve fazer isso? Este trecho diz que
nós, como membros de um lar cristão e, ao mesmo tempo, m em ­
bros da igreja de Cristo, precisam os aceitar o modelo ideal da
igreja, para o aplicarmos no lar, que também é um microcosmo da
igreja. Entendo que o meu lar (minha esposa Patrícia e meus cinco
filhos) é a igreja de Cristo na rua onde moro. Sendo a igreja de
Cristo, eu represento Cristo para a m inha esposa e meus filhos,
como o cabeça desse lar. Ali está o meu sacerdócio; a esposa e os
filhos são os m em bros da igreja que se subm etem e obedecem
com a finalidade de tornar o marido o pai e o herói daquela comu­
nidade, como assim fazemos com relação a Cristo. Todos os mi­
nutos e até horas de adoração e de louvor que temos oferecido são
para cada vez mais incutir, em nosso coração, que Cristo é o nosso
herói. Nós estamos plenam ente satisfeitos com ele. Não temos
nenhum a crítica a levantar contra ele, pois estamos completamente
engajados na sua missão! O lar se constrói para ser um lar de
alegria e harm onia como uma pequenina igreja, um microcosmo
da igreja de Cristo! E por isso que Paulo dá m uita atenção à respon­
sabilidade do marido.

Os maridos
O m arido precisa am ar a esposa. Se a m ulher tem que apoiar,
preparando todas as coisas do lar para que o m arido seja um
sucesso, então o marido tem que dar tudo o que está incluído na
palavra amor para ela e para a família. Assim a esposa é para o
marido a pessoa m ais importante-no mundo. Não se pode comparar
outra pessoa, no m undo, com a esposa. A palavra am ar é a palavra
agape ou agapao; não é a palavra eros nem storge, nem qualquer
outra palavra que possa ser traduzida por “amor”. É que este amor
que o marido deve ter para com a sua mulher, para ser um amor
exemplar, modelado em Cristo, é um amor que m uitas vezes contra­
ria as emoções do m arido. M uitas vezes não quero dar a mim
mesmo, como Cristo se deu a si mesmo na cruz, por m inha esposa
ou pelos filhos. Possivelmente não tenho de fato o desejo de san­
tificá-la para mim, isto é, de amá-la de modo que ela não possa
ter alegria em nada mais que não seja neste pleno amor que eu lhe
esteja dando. Vê-se que o dever de amar vem a ser uma responsa­
bilidade das mais difíceis de cum prir e das mais altas em padrão.

- 68 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS E FÉ SIOS

Porque o amor santifica, tanto no lar como na igreja. À medida que


os membros da igreja entendem o amor de Cristo, começam a se
desprender deste m undo e das coisas que idolatricamente os atraem.
Quando o marido aprende realmente a amar (e eu não sei quando
vou aprender!), começa a santificar a m ulher para si. Assim nós, os
maridos, pela expressão do amor agape, purificamos as intenções
delas, começamos a tirar essas rivalidades que tão naturalm ente
surgem entre duas personalidades, am bas egoístas, que pelo
casamento se tornaram uma só carne, tal como era a intenção de
Deus. Este é o grande mistério. O mistério do amor que purifica a
esposa com a comunicação pela palavra. Esta purificação inclui o
perdão. R e a lm e n te , p arece que a ú n ica área na vida onde
enfrentamos a necessidade de perdoar setenta vezes sete é no lar.
Temos, então, continuam ente que perdoar. A esposa tem
tam bém a mesma responsabilidade para tornar o seu m arido o
herói; assim purifica o marido com o perdão.
No v. 27 lemos: “... para a apresentar a si mesmo Igreja
gloriosa”. A palavra gloriosa descreve a beleza da esposa. Esta
descrição, aqui aplicada à igreja, é bastante clara. É como em
Apocalipse 21, onde encontramos a igreja ataviada, descendo do
céu com toda a beleza que a perfeição de Cristo (o marido) merece.
Ela não tem m ácula, não tem ruga; não tem nada que seja do
desagrado daquele m arido perfeito que é Cristo. Assim acontece
no lar. Se a m inha esposa tem alguma qualidade negativa, meu
amor precisa curá-la e transform á-la, tirando o que seja rotina
como a ruga da velhice ou da acomodação; precisa consertar as
trincas (ou desentendimentos) que aparecem no lar. Enfim, quem
tem isto como alvo, diz Paulo, realmente ama a si mesmo, porque
tem as conseqüências de um amor agape no lar, amor que vai bem
além do eros (amor egoísta), ou do storge (amor que decorre de não
haver outra pessoa que cuide da gente senão ela; e “ela está tão
acostumada”; ou ainda o tipo de am or que um cachorro devota a
seu dono). Não! Quando o amor se torna sacrificial, ao ponto do
auto-sacrifício ou da desistência daquilo que eu quero, começa a
surgir um a harm onia celestial no lar! Se tivéssemos mais tem po, e
mais capacidade, talvez pudéssemos detalhar estes modelos. Mas
pensemos, para já avançarmos neste trecho, que o modelo de Cristo
frente à igreja é o modelo do amor que Cristo demonstrou dando
sua pessoa na cruz. Este amor é o que nós devemos seguir e im itar
no lar. Ao mesmo tempo, o lar harmonioso, perfeitamente ajustado,

- 69
E P ÍS T O LA S DA P B IS À O

tem que ser um modelo para a igreja também. No fim deste trecho
(v. 31), o apóstolo Paulo cita uma passagem do Antigo Testamento
(Gn 2.24), onde Deus estipula que o homem deixe seu pai e sua
mãe e se una à sua mulher, e ambos assim passem a ser uma só
carne. Por que Deus mandou essa separação? Por que não fez com
que o novo lar fosse sempre uma extensão direta do lar onde se foi
criado? Em outras palavras, que nos casássemos com os nossos
irmãos ou irmãs (parece um tanto esquisito, mas seria natural).
Nós já estaríamos acostumados com ele (ou ela); saberiamos de
suas m anias, de seus egoísmos, já que fomos forçados a viver
juntos. Vejo isso constantem ente com os meus filhos: são forçados
a viver naquele lar, quer queiram, quer não. Mas chega o dia em
que Deus, querendo m ostrar este modelo de Cristo para com a
igreja, coloca no coração do rapaz, ou da moça, o propósito de
deixar o seu lar e de, voluntariam ente, am ar outra pessoa. A
diferença entre o amor que temos para com os nossos pais e nossos
irmãos, este um amor natural, e o amor para com outra pessoa
está no fato de ser voluntário. E se puderm os entender que este
amor voluntário une pessoas com m uito mais vínculo e menos
egoísmo, com m uito mais alegria do que o amor natural, começa­
remos a entender o desejo de Deus para sua igreja e o o seu ideal
para o lar. Para concluir este parágrafo, a m ulher tem uma responsa­
bilidade tão simples, tão fácil de aprender. E sim plesm ente se
submeter, simplesmente respeitar (v. 33). São duas coisinhas só!
E é mais fácil ainda para o marido se lem brar do seu dever: ele
tem só uma coisa a fazer: é amar, am ar e amar!

Os filhos
Por que em tantos casos (espero que não seja a maioria) filhos de
crentes se afastam de Deus e, conseqüentemente, estão longe dos
seus pais? Por que será tão difícil discipular um filho, quando é
relativam ente fácil discipular os filhos dos outros? Talvez seja
porque não dam os su ficiente atenção aos q u atro p rim eiro s
versículos deste capítulo 6. Vejamos rapidam ente o que deve
acontecer no lar quanto aos filhos:
Primeiramente, os filhos não têm nenhuma escolha quanto à
obediência e a honra que devem a seus pais: Filhos, obedecei a vossos
pais (6.1). Tenho visto no meu lar que os filhos não fazem isso
autom aticam ente. Não é pelo sim ples am or aos pais que eles
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS EFÉ S IO S

obedecem. Eles respeitam seus pais porque os temem, palavra essa


que se encontra em Levítico 19.2-3: “Santos sereis, porque eu, o
Senhor vosso Deus, sou santo. Cada um respeitará (temerá) a sua
mãe e a seu pai [...] Eu sou o Senhor vosso Deus”. Os pais precisam
estreitar a ligação entre a paternidade m undana e a paternidade
divina. Se somos totalmente tolerantes diante do mal, que já está
no coração deles e vai se desenvolvendo à medida que crescem, eles
não poderão entender a justiça de Deus, nem a sua condenação e
ira contra o pecado. Isso ocorrerá se com os pais tudo estiver sempre
muito bem, tanto faz se na obediência ou na desobediência (talvez
apenas com o incômodo de um instante, mas depois a coisa passa).
São pais que não reagem com uma disciplina adequada. Notemos a
razão por que os filhos têm que obedecer: isto é justo (6.1). Faz parte
da maneira que Deus quer que este m undo ande. Quanto às leis do
governo, vemos a mesma coisa. A maior responsabilidade que tenho,
como pai, é ensinar meu filho a se submeter à missão do lar, tal
como a esposa se submete à de seu marido. Como se põe em prática
essa instrução? Isso, por si só, seria assunto para abordar num livro
inteiro. Vamos nos lim ita r a considerar pelo m enos algum as
indicações no v. 4. Notemos que o filho não obedecerá se não for
forçado a obedecer. Há necessidade, portanto, de os pais subjugarem
essa rebelião natural e adâmica no coração. Já percebi, em todos os
nossos filhos, uma vontade própria na criança com menos de um
ano. Esta vontade se choca com a vontade do pai ou da mãe, mas
precisa ser colocada em submissão. Criai-os na disciplina (v. 4). A
palavra paideia, em grego, significa a instrução que produz uma
reação automática no filho, de modo que, quando o pai chama, ele
vem. Quando diz: “sente-se aí quietinho”, ele se senta quietinho.
Eu sei que talvez isso não concorde muito bem com a psicologia,
mas é esse justam ente o problema que está surgindo em todo o
m undo. Não m uitos dias atrás soube do que aconteceu a dois
rapazes, já chegados à maturidade, que nunca foram disciplinados
no lar. Eles pegaram um carro novinho e atravessaram sem parar, a
cem quilômetros por hora, várias ruas em que eram obrigados a
parar em cada esquina. Um amigo nosso, com seus filhos, vinha
atravessando uma daquelas esquinas quando o carro dos rapazes
chocou-se com o dele. Im ediatam ente, o pai e um dos filhos
morreram; o outro filho ficou em estado de coma; os dois rapazes
do outro carro foram hospitalizados em estado de coma também. E
a tristeza que surge neste m undo pela simples falta de disciplina.

- 71 -
E P ÍS T O L A S DA PR ISÃ O

Não culpo tanto aqueles rapazes, mas culpo os pais que


não os criaram com tem or à autoridade. Se amamos o Brasil,
disciplinemos nossos filhos. Não há m aior responsabilidade para
com a futura geração do que criá-los na disciplina e na correção
do Senhor. A palavra admoestação do Senhor (v. 4) significa que os
filhos devem também começar, desde pequeninos, a distinguir entre
o que é certo e o errado. Devem ser instruídos no certo e no errado,
segundo o que Deus fala na sua santa Palavra. Esta sim é a admoes­
tação do Senhor! Quando os pais produzem essa postura nos filhos,
como são grandes os benefícios! Tudo vai bem para o rapaz que
chega à idade adulta já disciplinado (v. 3), aplicando-se então a
promessa de Deus de longa vida sobre a terra. Essa longa vida
não quer dizer simplesmente um a longa vida individual ou parti­
cular; antes, refere-se ao abrigo proporcionado pela terra prometida
aos israelitas durante muito tempo; se eles deixassem de disciplinar
e ensinar os filhos, então o cativeiro logo viria. A preservação da
nação e a alegria dos seus cidadãos depende de esse pequeno trecho
ser cumprido: Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, pois isto é justo.
No Senhor significa dentro dos moldes do certo e do errado que ele
prescreve. É claro que há pais que não foram disciplinados nem
admoestados no Senhor e que vão m andar seus filhos fazerem
coisas erradas. Neste caso temos um Senhor, um Pai superior, que
nos dá os padrões de vida necessários.

Os empregados, ou escravos, e seus senhores


O trecho que vai de 6.5-9 é m uito claro. O empregado tem uma
responsabilidade: servir o seu senhor, seu empregador, quem quer
que ele seja, bom ou mau, com tem or e trem or na sinceridade de
coração, como se estivesse servindo a Cristo. Que não apenas se
alegre o coração daquele que trabalha, sentindo-se realizado, mas
que faça o melhor que pode, fazendo o seu trabalho de coração,
isto é, com amor. Essa postura também cria no seu superior, ou
chefe, a sensação de que o trabalho dele poderá ser também melhor.
O empregado, servindo a seu superior como a Cristo, acabará por
incutir na mente do seu empregador o desejo de servi-lo também.
Portanto, cria-se um ambiente de harmonia e de quase vitalidade
espiritual, sem m encionar a possibilidade de ganhar o patrão para
Cristo. Tal serviço não é o serviço feito com os olhos no relógio:
não servindo à vista, não trabalhando apenas para agradar aos

- 72-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS E FÉ SIOS

homens, mas como quem trabalha com coisas que ninguém mais
supervisionará, como no caso de produtos que saem da seção para
serem vendidos; o funcionário sabe que os aparelhos estão perfeita-
mente montados, e sente-se bem com sua consciência, porque de
boa vontade serviu o seu Senhor.
Quanto aos empregadores a palavra é esta: E vós, senhores,
de igual modo (v. 9). A expressão de igual modo significa que temos
de servir àqueles que estão servindo a nós e à nossa indústria ou
projeto. Temos que fazer isto porque o Senhor nos julgará. De
fato, talvez neste mundo estejamos num a alta posição, com respon­
sabilidades de liderança e de chefia. Mas no outro m undo não
será assim. Notemos que no m undo vindouro todos estarão nivela­
dos. No outro mundo, aquele homem mais simples, analfabeto,
que não sabe fazer quase nada, mas que está trabalhando para
mim, será igual a mim, porque diante do Senhor não há acepção
de pessoas. E devemos cuidar daquele irmão com essa lembrança
de que um dia talvez ele venha a se lem brar (se de fato houver lá
recordação) de como o tratei. Que eu não tenha vergonha de me
encontrar com ele naquele outro mundo!

0 exército de Deus
O últim o parágrafo nos convoca para a guerra. Somos todos
chamados a nos fortalecer na força do poder de Deus. Esta última
palavra não é apenas para mulheres e maridos, chefes e servos,
filhos e pais, mas é para todos: Quanto ao mais, sede fortalecidos no
Senhor e na força do seu poder (v. 10). Novamente sentimos a neces­
sidade de o E spírito Santo vir e encher a nossa vida para que
possamos realmente transform ar este m undo para Cristo. Porque,
como percebemos logo no v. 12, este m undo é dominado por forças
destrutivas do mal, que criam miséria, injustiça, enchendo-o de
toda espécie de maldade e crueldade (como certam ente já foi no
caso de Hitler, de Stalin e de tantos outros.). Essas forças, pouco
a pouco, passaram a controlar cada vez mais a mente desses homens
e as suas decisões, de modo que eles se tornaram verdadeiros
anticristos. Essa é a m aneira bíblica de se referir à m ente que
aceita o mal e que cada vez mais vai sendo dom inada por essas
forças que operam de modo satânico nos filhos da desobediência.
Não somos imunes a essas forças do mal, às suas tentações;
o próprio Senhor Jesus Cristo, ao enfrentar a cruz, no Getsêmani,

- 73 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

sen tiu a pro x im id ad e dessas forças (Jo 12.31-35). Veja-se a


necessidade que os discípulos tinham de vigiar e orar, para não
cair no controle e no domínio dessas forças. Elas estão constante­
m ente nos rodeando como leão, procurando qualquer abertura,
qualquer fraqueza, qualquer ponto de orgulho, onde nos sintamos
fortes em nós mesmos, para nos derrubar e, conosco, outras pessoas
que dependem de nós espiritualm ente. M as, tam bém , não há
avanço na obra do Senhor, se não estivermos fortalecidos e armados
para entrar nesta luta. Ela inevitavelmente tem de ser defensiva e
ofensiva. O apóstolo Paulo menciona dois tipos de armadura: as
armas, poderosas em Deus, de defesa e de ataque. Agora, nesta
lista, encontramos aparentem ente cinco arm as de defesa.
Em prim eiro lugar, o cinturão da verdade, o conhecimento e
a convicção da verdade de Deus, o saber que essa palavra não
pode falhar; podem passar os céus e a terra, mas a palavra do
Senhor permanece para sempre. Esse cinturão dá sustentação ao
resto da arm adura; todo o restante se apóia nele. Se estamos em
dúvida quanto à verdade revelada, não teremos m uitas condições
de defesa nem de ataque.
Em segundo lugar, precisamos da couraça da justiça. Jesus
C risto disse: “B em -aventurado o que tem sede de ju stiç a ” .
Conforme vimos no capítulo anterior, a transformação constante,
à medida que a cebola vai sendo descascada, é a m aneira de nos
vestirmos continuamente da justiça. Oh! Deus! Mostra-me! Permite
que me arrependa dos pecados para os quais me chamas a atenção
(ljo 1.9)!
A terceira arma é os pés calçados com a preparação do evan­
gelho. Essa preparação é a prontidão para falar de Cristo a qualquer
pessoa, fazendo a defesa da fé que temos (lPe 3.15).
A quarta arma: embraçando sempre o escudo da fé. Fé é com­
prom isso com o Senhor; é lealdade que cresce à m edida que
progredimos no conhecimento dele.
A quinta arma é o capacete da salvação, o que aponta para a
cura da mente, sobre o que já falamos bastante em 4.17-23.
Mas a sexta arma é ofensiva, a espada que o Espírito usa (é
isso que significa a espada do Espírito). A espada é a Palavra do
Senhor, a mensagem do evangelho, quando ela vem sendo aplicada
pelo Espírito de Deus. Quando isso acontece, verifica-se que a
transformação de Cristo se manifesta. Devemos ficar especialmente
abertos à verdade que conclui este trecho (v. 18-20). Uma vez que

- 74
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS E FÉ SIOS

a nossa luta não é contra carne e sangue, mas sim contra as forças
demoníacas invisíveis, temos de ficar dependentes da oração. A
única m aneira pela qual podemos nos vestir de toda a armadura
de D eus é orando, com a súplica específica, orando em toda a
oportunidade, no Espírito, e para isso vigiando (alertas, acordados,
ressuscitados dentre os mortos), e com toda a perseverança e súplica
por todos os santos. Paulo, que tanto poder na oração demonstrava,
não teve a ousadia de insinuar que não precisava das orações dos
seus irmãos. O v. 19 mostra que a força da palavra e a coragem
que Paulo necessitava para o b ter sucesso na evangelização
dependiam da oração. Também Paulo estava orando pelos crentes
da Ásia, para que a paz, o am or e a fé fossem fortalecidos por
Deus, o qual oferece a sua graça a todos os que o amam (6'.23, 24).
Concluindo, desde a doxologia dos lugares celestiais até a
vida cotidiana, encontramos a centralidade de Cristo que cria a
unidade na igreja e se manifesta em amor e crescimento. Vivamos
no amor dele enquanto o servimos, amando a todos os que ele ama.

- 75
Introdução

Os estudiosos, eruditos, peritos da m atéria, são um a classe desa­


fiante porque entendem de tudo que se pode saber sobre sua área
de estudo. Apesar da perícia, entretanto, existem assuntos nos quais
reinam dúvidas em lugar de dogmatismo. Há ocasiões em que os
especialistas cam inham na corda bam ba entre duas posições,
simplesmente porque não há provas suficientes para se decidirem
pela certa. Por este motivo, ainda ficam indecisos quanto ao lugar
onde Paulo estava quando escreveu sua epístola aos filipenses. O
ponto de vista tradicional é que se encontrava em Roma, assim como
quando compôs as epístolas aos colossenses, aos efésios e a Filemon.
Mais recentemente, porém, eruditos britânicos e alemães, como
George Duncan e Michaelis, descobriram certos sinais indicando
que possivelmente Paulo não estava na capital do império.
Um dos motivos que tradicionalm ente têm levado os intér­
pretes a pensar que Paulo se achava em Roma é sua menção à guarda
pretoriana em Filipenses 1.13. Ali ele fala “de toda a guarda preto-
riana e de todos os demais”. No fim do capítulo 4, refere-se aos “da
casa de César”. Mas descobertas arqueológicas recentes indicam
que isso não é uma prova decisiva, já que havia guardas pretorianas
além de Roma. Esta guarda era uma tropa de elite de cerca de nove
mil guardas imperiais: os soldados mais dignos de confiança de
H P Í S T O L . A S DA P R I S Ã O

todos os que o im perador possuía. Eram cuidadosamente treinados


e selecionados para defender o im perador contra qualquer golpe
de estado. Além de serem uma força de segurança, também cuida­
vam dos prisioneiros que eram cidadãos romanos, e que tinham
apelado para César com a finalidade de conseguir justiça, tal como
Paulo havia feito. Visto que a maioria da guarda pretoriana servia
em Roma, era natural pensar que Paulo estivesse na capital quando
escreveu Filipenses.
Mas há algumas objeçôes à teoria de essa epístola ter sido
escrita em Roma. A dificuldade mais séria é que, num período relati­
vamente curto, quatro ou cinco viagens devem ter sido realizadas
entre o escritor e os leitores. Alguém informou aos filipenses que
Paulo estava na prisão. A oferta que Epafrodito trouxe (leremos a
respeito no capítulo 2) exigiu outra viagem. A notícia de que Epa­
frodito tinha ficado doente, e o conhecimento que Paulo tivera de
que os filipenses lamentavam profundam ente a doença de Epafro­
dito, exigiram ainda que outras duas viagens (ver 2.19-30). São
muitas idas e voltas entre as cidades de Roma e Filipos, consumindo
talvez 7 ou 8 semanas cada uma.
Se Paulo não estava em Roma, então a m elhor alternativa
para o lugar de composição seria a cidade de Éfeso, onde o apóstolo
exerceu m inistério entre os anos 54 e 56 A.D.. Essa tese ganha força
quando examinamos outras epístolas de Paulo compostas na mesma
época, ou seja, 1 e 2Coríntios e Romanos: o modo de falar do autor
em Filipenses fica mais próximo ao linguajar dessas três epístolas
do que de Efésios, Colossenses e Filemon. Observemos também
que algumas das referências, por exemplo, aquelas feitas aos “maus
obreiros”, “falsa circuncisão” e cães (3.2), fazem lembrar as epístolas
aos coríntios. Outro problema determ inante da situação em Filipos
é o da falta de união (e recorde-se que esta foi a principal razão de
Paulo ter escrito 1Coríntios). E bem provável que Filipos e Corinto
fossem objetos de preocupação de Paulo durante os dois anos e
meio em que ele trabalhou em Éfeso (para conhecer a situação,
leia At 20.18-35).
O problema que se levanta contra essa tese de que a epístola
aos filipenses foi escrita em Éfeso é que não temos conhecimento,
pela leitura de Atos, de que Paulo tenha sido preso aliem alguma
ocasião. Em 2Coríntios 11.23 há uma breve referência ao fato de
ele ter estado na prisão mais de um a vez, e isso oferece uma base
para a possibilidade de sua liberdade ter-lhe sido retirada em Éfeso.

- 80-
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

Há outros motivos, entretanto, que me levam a pensar que


Filipenses fica melhor no quadro da vida e do m inistério de Paulo
em Éfeso, do que em Roma seis ou sete anos mais tarde. Em ICorín-
tios 15, o capítulo da ressurreição, um a parte do argumento de
Paulo em favor da ressurreição é que ela explica porque o apóstolo
devia passar por todo o sofrimento que vinha provando. Vejamos
ICoríntios 15.30-31: “E porque nós também nos expomos a perigos
a toda hora? Dia após dia morro!”. Isto indica que ele estava sendo
ameaçado continuamente. No v. 32, Paulo diz: “lutei em Éfeso com
feras”. Sabemos que Paulo não podería ter lutado literalm ente com
animais selvagens. Não se perm itia que um cidadão romano fosse
lançado na arena. Paulo se referia a inimigos tão ferozes que se
assemelhavam a leões soltos na arena, e que a qualquer momento
poderíam matá-lo.
O primeiro capítulo de Filipenses apresenta Paulo enfrentando
esse tipo de situação. Além do mais, Paulo escreveu 2Coríntios menos
de seis meses depois de haver escapado de Éfeso, de onde escrevera
ICoríntios. Na Macedônia, a poucos dias de viagem de Éfeso, ele se
encontrou com Tito, que lhe trazia boas notícias de Corinto.
Escrevendo aos coríntios, na segunda epístola, Paulo diz: “Irmãos,
queremos que saibam das dificuldades que tivemos na Ásia (Éfeso).
O sofrimento que suportamos foi tão grande e tão duro que já não
tínhamos esperança de escapar de lá com vida. Nós nos sentíamos
como condenados à morte. Mas isto aconteceu para nos ensinar a
confiar não em nós mesmos, e sim em Deus, que ressuscita os mortos.
Ele nos salvou e nos salvará desses terríveis perigos de morte” (2Co
1.8-10 — Novo Testamento na Linguagem de Hoje).
Filipenses também revela que Paulo achava que tanto podería
ser morto como libertado da prisão (2.23). Contudo, ele está m uito
confiante de que, por causa das orações dos cristãos filipenses, será
solto. É possível que Paulo esteja se referindo à mesma ameaça em
2Coríntios 1 e Filipenses 1. Se for assim, então devemos concluir
que está escrevendo de Éfeso aos filipenses.
Filipos era uma colônia romana e então os membros da igreja
eram cidadãos romanos. Por não haver m uitas colônias romanas,
os naturais de Filipos eram cidadãos altamente privilegiados dé
Roma. A cidade foi conquistada prim eiram ente por Filipe da
Macedônia, pai de Alexandre, o Grande, em 360 a.C., recebendo o
seu nome. Foi ali em Filipos que Otávio, o mesmo que seria mais
tarde o grande imperador Augusto (que estabeleceu a Pax Romana),

-81 -
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

venceu a batalha de Actíum . N um a planície perto da cidade,


Augusto derrotou seus rivais, Antônio e Cleópatra, no ano de 42
a.C.. Por causa daquela vitória muito im portante para a conquista
da coroa, Augusto deu aos seus valorosos soldados tanto terras como
posição, elevando a cidade à condição de colônia romana. Isso
explica por que havia tão poucos judeus em Filipos. Se houvesse
judeus no exército de Augusto, seriam tão poucos que não havería
número suficiente para fundar uma sinagoga.
Quando Paulo iniciou uma igreja em Filipos, fez seus pri­
meiros contatos num “lugar de oração”, perto de um ribeirão. Há
uns anos atrás, tive o privilégio de visitar Filipos (que agora é uma
ruína) e fiquei emocionado ao conhecer o lugar onde Paulo e Lídia
se encontraram, junto com outros judeus, para adorar ao Senhor.
Os filipenses eram cidadãos de Roma, e por isso Paulo empregou
duas vezes no original o termo “cidadão” (1.27; 3.20), palavra que
não aparece em nenhum lugar em suas epístolas. Na prim eira pas­
sagem escreveu: “que sua maneira de vida (literalmente, sua cida­
dania) seja digna do evangelho de Cristo” (1.27), assim como a
conduta dos cidadãos de Filipos devia ser digna de verdadeiros
romanos. Em todos os sentidos, os cidadãos daquela colônia eram
iguais aos cidadãos da própria Roma. Gozavam dos mesm os
privilégios, bem como da autoridade e proteção que a cidade de
Roma estendia aos cidadãos da urbe. N aturalm ente, sentiam
bastante orgulho desse status. Analogicamente, Paulo apelava aos
leitores como “cidadãos do céu”, no capítulo 3:
“Nossa cidadania está nos céus”, de onde aguardamos, não o
im perador que vem visitar nossa cidade, mas “o Salvador, o Senhor
Jesus Cristo”, que nos transformará em sua semelhança.
Consideremos, por um momento, o quadro de origem desses
cidadãos dos céus. A igreja se compunha de uma variedade inco-
mum de pessoas. Organizadores de igrejas não recomendam que
se inicie um trabalho com pessoas como as que formavam a congre­
gação embriônica de Filipos. Primeiramente, aquela igreja começou
com uma mulher. As igrejas que eu já ajudei a iniciar dependeram
de homens, mas a igreja em Filipos foi fundada em aproxim a­
damente 50 A.D., com Lídia, uma m ulher de negócios. Mais tarde,
havería duas mulheres brigando naquela mesma igreja (4.2, 3). É
claro que há quem diga que a raiz de tal desentendim ento está no
modo como se iniciou a igreja. Lídia de Tiatira, na Ásia, era comer­
ciante, (At 16.14). Vendia um corante verm elho, caro, que era

-82
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILIPENSES

produzido em T iatira, onde um a das sete igrejas da Ásia foi


organizada (Ap 2.18-29). Depois que ela se converteu naquela
reunião de oração junto ao riacho que passava na periferia da cida­
de, convidou a Paulo e seus companheiros, Silas e Timóteo, para
virem à sua casa a fim de terem onde se hospedar, e para continuar
seu ministério.
O outro membro fundador foi uma jovem escrava, que tinha
sido possuída por demônios. Paulo expeliu dela os demônios,
suscitando a ira dos donos, que dela se utilizavam para tirar lucros
financeiros através de feitiçaria e profecias sobre o futuro (leia At
16.16-23). Suponho que ela se tenha tornado cristã, membro ativo
da igreja.
Paulo e Silas foram açoitados e jogados na cadeia por terem
feito este ato de misericórdia. Naquela mesma noite, por causa de
um terremoto divinamente marcado para aquela hora, o carcereiro
se assustou o suficiente para pedir aos missionários que lhe mos­
trassem a maneira de ser salvo, em vez de suicidar-se (At 16.27-34).
Assim ele se converteu, juntamente com sua família. Portanto, um
carcereiro, uma escrava, e uma comerciante foram escolhidos por
Deus para formarem o núcleo da igreja em Filipos.
Não temos notícia de quem mais entrou para o rol. Sabemos
que houve um certo Clemente, e um homem cujo nome pode ter
sido Sízigue (“companheiro de jugo” 4.2,3), bem como as senhoras
que não falavam, mas que tinham ajudado a Paulo. Seus nomes
eram Evódia e Síntique. Esse grupo nada promissor de crentes
formou a pequena igreja. Mas não podemos esquecer que esta foi
um a das igrejas prediletas de Paulo. O apóstolo não tin h a a
preocupação de ver se eram as pessoas im portantes da cidade que
se convertiam, como foi em Tessalônica (At 17.14), ou se Deus
chamava a Si aqueles que menos se esperava ver na igreja. “Deus
escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas e aquelas que
não são, para reduzir a nada as que são” (ICo 1.28). Deus se alegra
em formar sua igreja de todas as camadas da sociedade, unindo os
membros ao corpo.
Ora, por que será que esta igreja era uma das preferidas de
Paulo? Um ponto positivo foi o modo em que Deus a iniciou. Achó
que qualquer pessoa que passasse por um lugar onde começasse
apanhando e depois visse a mão poderosa de Deus quebrando o
prédio com um terremoto, e as portas se abrindo de vez, seria levado
a concluir que Deus tem uma preocupação m uito especial por

83-
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

aquela cidade e seus habitantes. A seqüência dos eventos, e a


maneira em que o mal cooperou para o bem, devem ter dado a
Paulo a certeza de que esta igreja iria ser uma expressão significante
da graça de Deus.
Outra razão pela qual Paulo tinha um a consideração toda
especial por esta igreja foi o amor dos crentes de Filipos para com
ele. Até então, era a única igreja que se preocupou com o apóstolo
a ponto de m andar auxilio financeiro. Paulo dependia dos donativos,
além daquilo que podia ganhar com o trabalho. Ao ler o cap. 4,
vemos que havia ocasiões em que Paulo estava pobre de recursos
materiais, quando não tinha mais que uma moeda no bolso (se é
que tinha). O apóstolo ficava comovido ao ver que esta igreja lhe
queria bem o suficiente para associar-se m aterialm ente na sua
tribulação. Sentia-se m uito agradecido. Teriam mandado mais, se
houvesse outras oportunidades. Isto sugere que a igreja realmente
amava a Paulo. Naqueles dias, não era fácil enviar dinheiro, visto
que era preciso m andar alguém junto e havia sempre a possibilidade
de essa pessoa sofrer a mesma sorte do homem que caiu nas mãos
de salteadores, como na parábola do Bom Samaritano. Epafrodito
era um homem especial. Ele não se im portou em arrriscar a vida
para sair de casa a fim de ser portador aos filipenses, e assim suprir
a necessidade de Paulo (2.25). Esta epístola aos filipenses foi escrita,
em parte, a fim de expressar a gratidão profunda que Paulo sentia
para com a igreja que tanto se preocupava com seu ministério.

- 84-

As bases da nossa segurança (1 .1 -8 )


1 ‘Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos
os santos em Cristo Jesus, inclusive bispos e diáconos,
que vivem em Filipos: 2Graça e paz a vós outros da parte
de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo. «Dou graças
ao m eu Deus por tudo que recordo de vós, 4fazendo sem­
pre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as
m inhas orações, 5pela vossa cooperação no evangelho,
desde o prim eiro dia até agora. 6Estou plenam ente certo
de que aquele que começou boa obra em vós há de com­
pletá-la até ao dia de Cristo Jesus. 7Aliás, é justo que eu
assim pense de todos vós, porque vos trago no coração,
seja nas m inhas algemas, seja na defesa e confirmação
do evangelho, pois todos sois participantes da graça
comigo. «Pois m inha testem unha é Deus, da saudade que
tenho de todos vós, na terna misericórdia de Cristo Jesus.

- 85-
E P ÍS T O L A S OA P R IS Ã O

Creio que o leitor logo vai perceber que os quatro capítulos


que formam a Epístola de Filipenses me são muito caros, contando-se
entre aquelas porções bíblicas pelas quais tenho maior predileção.
Nunca estive na prisão, nunca fui acorrentado, e por isso não sei
como reagiría se tivesse que enfrentar essa situação. Mas Paulo conse­
guiu escrever cinco de suas epístolas quando estava preso, uma delas
sendo à igreja de Filipos, na Macedônia, norte da Grécia.
Vamos com eçar o nosso estudo exam inando só os oito
prim eiros versículos desta porção tão conhecida da Palavra de
Deus.

Agora, vejamos de perto o que Paulo tinha a dizer para esta igreja.
É bem diferente do que imaginamos. Em vez de dizer: “São Paulo
e São Timóteo, aos servos do Senhor em Filipos, com os bispos e
diáconos”, ele escreve o oposto. Nosso texto diz: “escravo Paulo e
escravo Timóteo, escravos de Jesus Cristo, aos santos de Cristo Jesus
que moram em Filipos”. Parece estar invertido, não é mesmo?
Dr. H arry Ironside, o famoso pastor da igreja de Moody em
Chicago, contou de uma viagem de trem de três dias que havia
feito em certa ocasião, do litoral do Pacífico até Chicago. Havia
duas freiras católicas no seu vagão, e ele, então, quis divertir-se um
pouco às suas custas. Depois de ter travado conhecimento com elas,
perguntou-lhes: “Já viram um santo?”. Elas responderam que nunca
tinham visto, pensavam que seria maravilhoso ver um santo de ver­
dade. “Eu gostaria que vocês conhecessem um santo”, ele disse.
Ficaram entusiasmadas! Onde, como poderíam conhecer esse santo?
Estaria viajando num caixão de ouro, ou seria visto descendo do
céu? (Segundo o pensamento popular católico-romano, os santos
têm que morrer primeiro.) Dr. Ironside disse: “Eu sou Santo H arry”.
Conheceram Santo Harry, mas isso pouco as impressionou.
Não sei se foi exatamente bíblico, chamar-se de santo. É ver­
dade que a igreja de Filipos era composta de santos, mas não sei se
havia ali alguém que fosse mesmo um santo. Existe uma diferença.
No Novo Testamento, Paulo nunca é chamado de São Paulo. E a
Bíblia sempre usa “santos” no plural quando se refere a pessoas. A
razão disso, acredito, é que o plural “santos”, “pessoas santas”,
comunica o conceito do corpo de Cristo, a igreja santa (universal
ou local) de Jesus Cristo: todos que estão na igreja, ou “em Cristo”,
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S F1LIPENSES

com partilham desua santidade e tornam -se, portanto, pessoas


santas. E isso que significa a palavra “santo”.
Por outro lado, nenhum a pessoa desse m undo é indivi­
dualm ente um santo, no sentido de ser santo e perfeito, tal como
Deus o é. Nós temos o m andam ento para sermos santos (lPe 1.16),
m as nenhum ser hum ano é realm ente santo. Nós somos todos
pecadores regenerados. E a ordem que recebemos é de mantermos
a santidade como meta do nosso viver e mover-nos nesta direção
(Hb 12.14). Jesus mandou “sede vós perfeitos como perfeito é o
vosso Pai celeste” (Mt 5.48). Por este motivo, creio que Paulo não
se sentisse bem com o título “São Paulo”. Não há dúvida de que ele
fazia parte da igreja de Jesus Cristo, a igreja “dos santos do Altís­
simo” (Dn 7.18 e seg.). O termo do Velho Testamento. Em-Êx 19.6,
o povo de Israel, ao qual Deus tinha escolhido, também foi chamado
de nação santa, apesar dos seus m uitos fracassos em praticar a
santidade. O título se refere antes ao relacionamento da aliança
pela qual Deus ligou Israel a si.
Aqui em Filipenses, os santos são assim chamados por causa
de seu relacionamento com Deus, e porque estão “em” Jesus Cristo.
Em contraste com isto, Paulo e Timóteo são apenas escravos, um
termo bastante apropriado para descrever um cristão. Um cristão
é um escravo. Ora, o que faz um cristão ser um escravo?
Antigamente, havia quatro maneiras pelas quais uma pessoa
podia tornar-se escrava: (1) Podia-se ser escravo por nascer na
família de escravos. Se os pais eram escravos, a pessoa autom ati­
camente era escrava, e nada se podia fazer para evitar que isso
acontecesse. (2) Podia-se ser escravo por conquistas. Quando o
exército romano conquistava novas terras, o povo derrotado automa­
ticamente se tornava escravo. Aqueles que não eram mortos ficavam
sendo propriedades do estado romano e dos seus cidadãos. Foi assim
que o império romano obteve mais de 50% de sua população com­
posta de escravos durante o primeiro século quando Paulo estava
escrevendo. (3) Podia-se ser escravo por compra em leilões de escravos
como os que se tornaram conhecidos nos seriados da TV. Um escravo
que era comprado e depois liberto era um escravo “redimido”. (4)
Podia-se ser escravo por livre escolha. Se um senhor concordasse,
um homem que tinha esperança de receber alimento, proteção e
bons tratos, entregava-se voluntariamente a ele para ser seu escravo.
Como Paulo e Timóteo tornaram-se escravos de Jesus Cristo?
Eles foram comprados. IC oríntios 6.20 esclarece que todos os

- 87 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

cristãos foram comprados por preço. Se você realmente conhece a


Deus, então você é escravo dele — não porque você quis sê-lo, nem
porque nasceu na escravidão, ou foi tomado na batalha, mas sim
porque você foi redimido por seu sangue precioso (Ef 1.7). Sim,
você foi comprado do seu antigo dono, que era “o pecado”. Outrora,
diz Romanos 6.17, você foi escravo do.pecado. Mas agora que foi
comprado por Jesus Cristo mediante um preço elevadíssimo, glori-
fique a Deus em seu corpo. Seja um escravo genuíno de Cristo
Jesus, porque ele o comprou, comprou-nos todos. Não comprou
apenas a sua mente, ou sua alma, só para levá-lo ao céu num a data
futura incerta. Comprou-o e fez de você seu escravo aqui na terra,
para que cada um de nós possa servi-lo na plena extensão da vida
terrena e do potencial que tem.
Como os filipenses se tornaram santos? Se um escravo cristão
entra nesta condição por ser comprado pelo preço da morte de
Cristo na cruz, os santos se tornam santos sendo colocados “em
Cristo Jesus”. O conceito é um pouco difícil de se compreender.
Não entendemos como uma pessoa pode estar “em” uma pessoa
como Cristo Jesus. Será que você fica “em Cristo” assim como nós
estamos imersos ou dentro da atmosfera da Terra? Visto que todos
respiramos o ar, nós estamos dentro da atmosfera e o ar está em
nós. Um estudante da Bíblia procurou comunicar a idéia espiritual
de estar em Cristo, e ele em nós, dessa maneira. Estar em Cristo,
para ele, era algo impessoal? Não creio que tenha sido esta a idéia
de Paulo, de modo nenhum. Qual seria então .o significado dessa
expressão que aparece mais de cem vezes nas epístolas paulinas?
Talvez devamos captar esta realidade de estar “em Cristo”,
dentro dos moldes do pensamento hebreu. Estar em uma pessoa,
segundo a mente hebraica, é estar tão intim am ente ligado a ela
que tudo que se refere a ela, e tudo que se refere a você, submete-se
ao pleno controle dela. Visto que todos estão em Adão (ICo 15.22),
a natureza adâmica caracteriza o homem totalm ente dominado por
ela. Essa existência “em Adão” explica a corrupção do homem tanto
no sentido moral, como no sentido físico (ICo 15.22, 45). E inútil
você tentar sair disso, a não ser que se converta e conheça a Jesus
Cristo como seu Senhor e Salvador. Mas quando você se transfere
de Adão, deixando a personalidade, a natureza e o controle dele
para trás, e se coloca em Jesus Cristo, então é ele que vai afetar sua
nova vida. O sinal e símbolo dessa transferência é o batismo. Quando
você confia em Jesus Cristo como seu Salvador, e o recebe como

- 8 8 -
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F1L1PENSES

seu Senhor, você então já está comprado, torna-se membro desua


família, do seu corpo, e se entrega livrem ente ao seu controle.
Portanto, se você está completamente rendido a Jesus Cristo, então
está “em Cristo”.
Observemos que estes cristãos estão “em ” Cristo Jesus e
vivem “em” Filipos. O primeiro “em” indica um posicionamento;
o segundo, um lugar geográfico. São diferentes. É estar “em” Jesus
Cristo que os torna santos. Você não é santo, como já vimos, quando
é melhor do que os outros. Você deve mesmo ser melhor do que os
outros, e ter personalidade santa, admirável, se o Senhor perfeito
está exercendo um controle efetivo sobre sua vida. Mas você não
passa a ser santo por se tornar uma pessoa melhor. Só será santo
entrando para o corpo do Santo Filho de Deus, pela fé .pessoal,
mediante a qual ele o regenera. Torna-se santo porque é santificado,
consagrado, separado pelo Espírito Santo em união com Cristo (ICo
12.12,13). Sendo assim, os santos de Filipos, e os escravos de Deus
em R om a ou É feso, estão se c o m u n ic an d o atrav és de sua
participação no mesmo Senhor ressurreto.
Os bispos e diáconos são mencionados especificamente por
Paulo, como receptores desta epístola. “Bispos” significa sim ­
plesmente supervisores. No prim eiro século eles eram supervisores
da igreja assim como hoje há supervisores num a fábrica, para
verificar se tudo está em bom andamento. Só que esses “bispos”
(episkopoi) eram supervisores de pessoas. A palavra “diáconos”, por
sua vez, significa servos, trabalhadores. Os bispos eram líderes que
desempenhavam o m inistério pastoral do ensino, organização e
disciplina eclesiástica. Os diáconos serviam à igreja como assistentes
dos pastores-bispos, e como evangelistas (cf. At 20.17, 28).
A igreja no período neotestam entário não era uma igreja a
não ser que já tivesse os líderes nomeados. Igreja é mais do que um
estudo bíblico, onde todos discutem uma determ inada passagem
das Escrituras. Esse grupo de estudo não é igreja, assim como
amigos que se reúnem num dia marcado para divertir-se e conversar
não constituem um a família. Um grupo de estudo informal não
possui a liderança divinamente instituída nem a responsabilidade,
como também lhe faltam as ordenanças do batismo e da ceia do
Senhor. Contudo, os títulos que os líderes da igreja devem ter, bem
como o número deles em cada comunidade, não ficam claramente
estipulados no Novo Testamento. Na verdade, os termos “bispo”,
“pastor” e “presbítero” são usados alternadam ente nos textos. Dão

89-
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

ênfase aos diversos aspectos do ministério, qualquer que seja o título


recebido por esses líderes eclesiásticos.

 segurança de Paute
Vejamos o que esta passagem diz sobre a segurança. Que certeza
você tem hoje de que irá para o céu quando Jesus Cristo voltar, ou
quando você m orrer (se isso acontecer antes da segunda vinda)?
Paulo nos apresenta as bases de uma perfeita confiança a respeito
de nosso destino eterno. Existem cinco razões a garantir que, se você
se converteu e conhece a Jesus Cristo, você irá para o céu:
1. Graça. Em prim eiro lugar, está a graça. O v. 2 diz “Graça e
paz a vocês da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo”.
Se você não recebeu a graça de Deus, e se você não tem a paz dele
em seu coração, é simplesmente impossível ter a segurança de que
Paulo fala. Graça e paz vêm primeiro, não só como saudação, mas
como alicerce.
2. Obra de Deus. Vejamos o v. 6: “Estou plenamente certo de
que aquele que começou boa obra em você há de completá-la até ao
dia de Cristo Jesus”. Esta é a segunda garantia de que você é salvo: a
obra de Deus. Se o Senhor começou boa obra em você, então agora
ele está trabalhando e completando-a eficientemente (ver 2.13).
C. S. Lewis, no seu livro Surpreendido pela Alegria, descreve
vivamente sua conversão. Em certa noite de 1929, ele era o conver­
tido mais relutante, mais infeliz e abatido de toda Inglaterra. Sua
situação era pior que a do filho pródigo, pois este cam inhou
espontaneamente de volta para o lar, ao contrário de Lewis que entrou
em casa depois de m uita resistência, dando socos e pontapés no pai.
E então mais tarde, Lewis escreve para um amigo da América que
ainda não era cristão: “Suponho que o Espírito Santo o tenha
apanhado e que você já esteja preso na sua rede. Não adianta relutar
mais. Deus começou um trabalho em você”. Sim, e em você, leitor,
Deus já começou uma obra? Você reconhece o poder com o qual ele
o está chamando, não só para a comunhão, não só tornando agradável
a participação nos cultos da igreja, mas principalmente atraindo-o
para si? Ele deseja realizar aquela obra da graça no seu coração. Se
Deus já começou a operar em você, cuidado, pois é muito difícil
escapar de seus braços insistentes e amorosos (cf. Elb 12.4-11).
3. Amor fraternal. Elá um a terceira base para a grande
esperança que Paulo tem referente à igreja: o fato de ele se encontrar

- 90-
EPÍSTOLA DE PA UL O A OS FILIPENSES

num relacionamento especial com a igreja filipense. O apóstolo


expressou em oração a gratidão que sentia por esse amor mútuo:
“Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vocês” (v. 3).
Paulo possuía uma mente aberta ao Espírito Santo. Em vez
de estar à televisão e aos jornais de cada dia, ou à revista Veja, ou
ainda a todo o trabalho que ele estava fazendo, sua mente estava
continuamente recebendo alertas do Espírito Santo. Ele era capaz
de reconhecer imediatamente qualquer coisa que viesse à sua mente
por iniciativa do Espírito. E uma das coisas que Deus trazia à sua
mente na prisão era a igreja de Filipos. Então Paulo concluía que
aqueles crentes deviam ser filhos de Deus, porque senão nunca
teria se lembrado deles com tanto ímpeto ou freqüência. Continua­
mente, Paulo confessa “eu penso em vocês e oro por vocês”, (v. 4).
Seus pedidos eram oferecidos a Deus com alegria, porque a igreja
naquela cidade lhe fazia feliz, era sua “coroa de regozijo” (4.1 em
uma tradução).
4. Cooperação. Paulo não só ora por seus filhos no evangelho,
como também agradece a Deus a cooperação deles neste evangelho
(v. 5). A palavra “cooperação” representa a koinonia do grego, que
significa comunhão ou participação. O apóstolo se refere aqui ao
auxilio financeiro que a igreja lhe enviou pelas mão de Epafrodito
(2.25). Este com partilhar de coisas m ateriais com Paulo, mostrava
que os filipenses estavam cooperando na propagação do evangelho,
que faziam isso “desde o prim eiro dia até agora”.
Sabemos que é preciso ser salvo pelo evangelho. Entretanto,
se você assumiu algum compromisso com o evangelho sem ainda
ter sido salvo, isto é, você acreditou, mas não se entregou inteira­
m ente a Jesus Cristo, sua atitude vai denunciar isso. Algumas
pessoas crêem no evangelho somente em conseqüência de terem
nascido em lares cristãos, mas não têm um compromisso do coração
com o evangelho, porque nunca nasceram realmente do Espírito
Santo de Deus. O principal problema de tal pessoa, provavelmente,
será a dificuldade de viver o evangelho em sua vida! Como ela está
na igreja, espera-se que faça o que os filipenses estavam fazendo,
que era contribuir (ver também 2Co 8.1-5). Mas ela’ detesta dar
dinheiro. O pior detalhe da igreja com o qual ela precisa conviver,
é a pressão que sente sobre si para que dê sacrificialmente, com
um coração cheio de amor.
Mas esse não era o caso dos filipenses. Sua cooperação no
evangelho não era apenas uma koinonia de fé, e oração pela missão

-9
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

de Paulo; era uma cooperação prática, na qual tinham prazer em


dar. É difícil uma prova maior da operação do Espírito de Deus no
coração, do que o desejo de contribuir para suprir as necessidades
daqueles a quem Deus ama. É somente o poder sobrenatural de
Deus que pode ajudá-lo a compreender que é mais abençoado dar
do que receber (At 20.35). Este, portanto, é o quarto sinal da obra
redentora do Espírito nas vidas dos filipenses.
5.Intercessão dopastor emfavor dos crentes. No versículo 7, Paulo
aponta mais uma razão da segurança que ele tem nos crentes a quem
está escrevendo: “Aliás, é justo que eu assim- pense de todos vós,
porque vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa
e confirmação do evangelho, pois todos sois participantes da graça
comigo”. Não só o Espírito os traz sempre à memória (v. 3), não só
eles começaram a dar ofertas provando que são realmente convertidos,
mas também eles têm no coração de Paulo um lugar especial que só
os verdadeiros irmãos e irmãs em Jesus Cristo podem ter. O apóstolo
acrescenta: “Não só vocês se uniram a mim na m inha prisão e na
defesa e confirmação do evangelho, como também Deus é m inha
testemunha da saudade que tenho de vocês todos”. Esta última frase
nos faz lem brar o carinho que as mães têm pelos seus bebês. Se
separarmos uma mãe de sua criancinha, ela sentirá muitas “sauda­
des”. A palavra descreve os sentimentos de Paulo para com esta igreja.
É difícil para um pastor nu trir por sua igreja um sentimento
tão profundo a ponto de poder assegurar que todos os membros
são salvos, são santos de verdade e não apenas de aparência. Mas é
possível ver alguns indícios: a alegria com que participam nos cultos
da igreja, a cooperação no evangelho através de suas ofertas. Vê-se
a prova do esforço unido em oração, e o resultado é o pastor lem­
brar-se de todos continuamente.
Olhe para seu próprio coração. Deus já começou sua boa
obra em você? Você nota que ele já o está lapidando, polindo e
trabalhando todos os dias? Se está, então pode tom ar para si o que
Paulo disse: “Estou plenam ente certo de que Deus, que começou
boa obra em mim, há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus”. O
maior desejo de Deus é ter santos no céu que sejam semelhantes ao
seu próprio Filho.
Romanos 8.29 nos garante que haverá milhões de cópias de
Jesus Cristo, m oldadas segundo sua imagem e sem elhança. O
Senhor está trabalhando na vida dos crentes, cada um deles com
personalidades, pontos de vista, experiências, raízes sócio-culturais

- 92-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

e racionais diferentes, a fim de transformar maravilhosamente todos


os seus filhos, de modo que sejam semelhantes a Jesus Cristo. Assim
será a população do céu: formada por cidadãos que Deus começou
a moldar nas experiências que resultaram em conversão, e continua
a modelar constantemente ao longo da vida cristã, para que tomem
o formato da perfeição de Jesus.

Conclusão
Pense em um homem como John Newton, que viveu há anos atrás,
no século 18. Começou a vida num lar cristão onde viveu por uns
seis anos. Ficou órfão e então foi criado por uma família não-crente,
em que o evangelho e o cristianismo eram ridicularizados. Como
nessa casa ele era perseguido, fugiu para o mar, porque o pai tinha
sido m arinheiro na M arinha Britânica por algum tempo. Alguma
coisa não deu certo, e ele fugiu novamente, escolhendo a África
como um bom lugar para esconder-se. Tornou-se sócio de um portu­
guês, traficante de escravos.
A esta altura ele estava longe, bem longe de Deus. A péssima
vida que levava colocou-o em algumas situações horríveis. Chegou
até ao ponto de ser obrigado pela esposa do traficante a comer no
chão. Foi até mesmo forçado a ser um escravo, mas fugiu para o
litoral, onde deu sinais a um navio que passava, e que o acolheu
por compaixão. Quando estava a bordo, o capitão descobriu que
ele entendia de navegação e puseram-no como imediato do navio.
Para m ostrar como Newton era irresponsável, devo acres­
centar que ele roubou o estoque de rum , distribuiu-o a todos os
com panheiros e, na bebedeira, caiu no mar. Um m arinheiro o
apanhou com o arpão e o puxou para o convés. Daquela arpoada
ele ficou com uma cicatriz do tam anho de um punho, mas ainda
não sentiu Deus operando em sua vida. Porém, naquela mesma
viagem, quando se aproximavam da costa da Escócia, uma tempesta­
de violenta apanhou o navio. Ele teve que m anejar as bombas junto
com os m arinheiros, para evitar o naufrágio. Trabalhando nas
bombas, foi dominado pelo medo da morte. Foi nessa crise que
começou a recordar os versículos que havia memorizado antes dos
seis anos de idade. Ao repetir essas Escrituras, Deus lhe falou ao
coração, e ele se converteu de form a m aravilhosa. Não só se
converteu, como também tornou-se um pregador poderoso e com­
positor de hinos. Foi ele quem escreveu o hino tão apreciado,

- 93-
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

“Amazing Grace” (“Maravilhosa Graça”). Quando o fez, ele já sabia


que, durante toda sua vida, e através de todas as circunstâncias
pelas quais tinha passado, Deus o tivera em sua mão. E maravilhoso
o Senhor converter um homem como Newton. E com a mesma
alegria Deus vai salvá-lo se você assim lhe pedir.

Uma oração-modelo (1 .9 -1 1 )
9E tam bém faço esta oração: que o vosso amor
aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a
percepção, 10para aprovardes as coisas excelentes e serdes
sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, ucheios do
fruto de justiça, o qual é m ediante Jesus Cristo, para a
glória e louvor de Deus.

Introdução
Poucas pessoas tiveram o privilégio que eu tive, de crescer num lar
cuja prim eira lembrança é a de mamãe ajoelhada junto à cama.
Nunca vou esquecer o seu vulto ajoelhado, embora eu não tivesse
mais de quatro anos de idade quando a cena me impressionou pela
primeira vez. D urante várias ocasiões, em silêncio, intercedendo
por nós, os filhos, e pèla igreja da Bolívia, m inha mãe criava em
volta de si uma atmosfera sagrada. Não havia a luz de uma auréola,
nenhuma halo, mas nós crianças sempre passávamos quietinhos
quando mamãe orava. Foi uma experiência que se repetiu todos os
dias, um privilégio que teve realmente um papel im portante na
formação de meus primeiros ideais com respeito à oração. Embora
ela intercedesse m uito silenciosamente, sabíamos o que ela estava
pedindo. Nós crianças estávamos no topo da lista. Sabíamos quais
os principais assuntos das suas orações porque a nossa fam ília
sempre se reunia para orar antes do café da manhã. As orações de
meus pais eram muito longas para um garotinho: eu já acordava
com fome, e o culto dom éstico atrasava o café. Dr. D onald
Barnhouse (pastor da Filadélfia, m undialm ente conhecido, já
falecido) costumava dizer: “Sem Bíblia não há café!” Nossos pais
se mantiveram firmes naquele moto, que incluía também a oração.
Paulo também aprovava essa espécie de piedade cristã. Orava
incessantemente. Exortou os leitores de sua epístola em Tessalônica
a que orassem sem cessar (lTs 5.17). Mas Paulo não estava tão

- 94-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

sintonizado com o céu a ponto de supor que os cristãos que liam


suas epístolas soubessem autom aticam ente o que pedir a Deus.
Embora já tivesse escrito que estava “sempre fazendo súplicas por
eles... em todas as minhas orações” (v. 4), o apóstolo ocupa algumas
preciosas linhas desta “epístola de agradecimento” para contar aos
filipenses como é que orava, a fim de ensinar-lhes (e a nós) como
se deve orar. E não se esquece de encorajá-los, dando-lhes uma
lista dos resultados da oração fervorosa que pede a Deus um
abundante e crescente amor.
O Professor Stewart, da U niversidade de Edinburgo, na
Escócia, agora aposentado, dizia sempre que as orações das epístolas
de Paulo, particularm ente as de Filipenses, Efésios e Colossenses,
foram o ponto alto de sua correspondência. Portanto, veja hoje,
que petição os filipenses deviam fazer. Dedique alguns instantes
para oferecer esta oração com toda a sinceridade. Você vai descobrir
um novo nível de benção impregnando sua vida, visto que o próprio
Senhor Jesus garante que se você pedir alguma coisa em seu nome,
segundo a sua vontade, ele o ouvirá (Jo 14.13,14; ljo 5.14).
Observe que neste parágrafo a oração de Paulo é a conti­
nuação de sua ação de graças. Assim, ele aponta um fato importante
sobre a oração, sem ensiná-lo declaradamente.
A prim eira verdade encontra-se no v. 6: “Estou plenamente
certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la
até ao dia de Cristo Jesus”. Desta certeza apostólica seria possível
concluir que você não precisa fazer nada além de render-se passi­
vamente, porque Deus faz toda a parte ativa. Você poderia relaxar,
dormir, descansar, em vez de orar. E nem precisaria voltar à igreja
à noite. Você poderia ir para o Guarujá ou Copacabana, apreciar a
praia e as ondas, porque Deus que começou a boa obra em você,
prometeu completá-la. Não havería necessidade de você se preo­
cupar com a comunhão e o culto da igreja, nem com a leitura da
Bíblia e a oração pelas crianças, vizinhos ou mundo, nem tampouco
com o seu testemunho. M uito facilmente e com grande prazer pode­
riamos concluir: “já que Deus promete que vai estar operando, e
ele é mais poderoso do que quaisquer de nossas orações fracas e
cheias de dúvidas; é só deixar que ele faça tudo!” Isso, porém, é
bem diferente daquilo que Paulo pensou ou ensinou. À medida
que você lê a oração dele, percebe claramente que o próprio Paulo
está envolvido e profundam ente em penhado num a cooperação
espiritual com Deus. De fato, Paulo afirma que Deus nos.manda

- 95-
E P ÍS T O LA S DA P R I S Á O

participar ativamente em sua obra: “Desenvolvam a sua salvação


com temor e trem or” (2.12).
A oração pode ser considerada um trabalho, até mesmo uma
luta (Cl 1.29; 2.1). Deus está fazendo a sua obra, mas a oração
envolve aquele que intercede na operação de Deus (cf. ICo 3.9).
Mas, e se eu não pedir a Deus que intervenha? Ele vai parar de
operar? Paulo não responde tão claramente a esta questão complexa
como Tiago o faz (Tg 4.2), Visto que Deus não ordena, clara e insis­
tentemente, que oremos, não é necessário fazer especulações sobre
a razão pela qual ele exige que seus filhos orem. Isto explica porque
Paulo podia exigir de si o máximo esforço em prosseguir para o
alvo e prêmio de sua soberana vocação, ou alto chamado, por um
lado, ao mesmo tempo em que mostra tolerância para com aqueles
que têm atitude diferente, preferindo esperar que Deus lhe revele
quais são as suas exigências (3.13-15).
Vejamos agora o incentivo que levava Paulo a interceder pelos
filipenses, no v. 8. Ele ansiava de tal m aneira (epipothõ)ver a igreja
e confraternizar com eles, que descreve seu afeto como localizado
nos “intestinos” (splagchnoi) de Cristo Jesus. Foi a m aneira grega
prim itiva de expressar como estava emocionado no seu desejo de
visitar os filipenses, seus amados filhos na fé, De fato, um pastor
que ama profundam ente cada membro da sua igreja, achará que
orar por eles não é tarefa difícil, pelo contrário, é um prazer.

Um pedido pelo amor crescente


Agora examinemos esta oração. Pelo que Paulo ora? Primeiro, ele
roga que Deus conceda aos filipenses um amor que aumente mais
e mais (v. 9). Amor para com Deus e o próximo nunca chega a um
ponto em que o cristão pode descansar e dizer: “Bem, agora eu
amo tão fervorosamente como sou mandado amar! Esse amor agape
que Deus exige de mim já é completamente m eu”. Paulo pode ter
sentido que os filipenses eram as pessoas mais queridas que ele
conhecia. Ele os amava tanto que o seu amor por eles parecia o
amor de uma mãe por seus filhos (v. 8): “Tenho por vocês um afeto
e saudades tão fortes que me emociono por dentro, nas próprias
vísceras!” Mas isso não significa que Paulo tinha alcançado o amór
perfeito, ou que seu amor não podia crescer mais ainda. Ele não
estava tão influenciado pelo seu amor para com a igreja de Filipos
a ponto de concluir que eles não pudessem amar mais intensamente

- 96-
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S F1LIPENSES

do que quando m andaram o dinheiro tão oportuno para o apóstolo


aprisionado.
Você também é pessoa amorosa, mesmo que não seja possível
m edir seu amor por nenhum sistema. O amor não pode ser medido
de m aneira matemática concreta. Por ser dinâmico e relacionai, o
amor cresce à medida que é testado. Os pais que mais amam seus
filhos são aqueles que mais sofreram por causa dos filhos. Talvez um
filho de uma certa família possua algum problema mais grave, de
ordem física ou mental: pois é por aquela criança que o pai e a mãe
estão mais dispostos a se sacrificar, a fim de lhe proporcionar alguma
coisa. Os pais que têm um filho com síndrome de Down amam-no
além do normal, indizivelmente. Seu amor foi muito provado e, em
conseqüência, transborda por aquela criança. Paulo está orando por
um amor assim, transbordante, que excede os limites normais da
experiência, um amor mais característico de Deus do que do homem
egocêntrico. Tal amor é um dom do Espírito de Deus que habita no
crente (Rm 5.5, cf. G1 5.22) e, conseqüentemente, deve surgir em
nossos corações como resposta à oração (cf. Lc 11.13).
Essa súplica por um amor que cresça e transborde sem limites
é o único pedido específico desta oração (v. 9-11). Todas as outras
coisas mencionadas na passagem são conseqüências. Será que você
está orando por alguém, ou — o que pode ser mais significativo —
alguém estaria orando por você, rogando a D eus que seu amor
continue a crescer e transbordar sempre? Talvez Paulo peça a Deus
esse amor agape, crescente e dinâmico, porque sabe que um amor
que não transborda, inevitavelmente se volta para dentro e se torna
egoísta. Lim itar nosso amor àqueles que vão nos retribuir a dívida
é o oposto do amor generoso e sacrificial pelo qual Paulo orou.
Este é como leite derramado, irrecuperável, dado sacrificialmente,
sem preocupação de recompensa. Até o fim da sua vida, ou até que
Cristo volte, esse amor como o de Cristo deve transbordar mais e
m ais. Na form a m ais sim ples, essa oração pede a D eus um
crescim ento diário na habilidade e no anseio de am ar de cada
cristão, até o dia da form atura, quando todos passamos desta vida à
outra através da morte ou da transformação miraculosa efetuada
pela volta de Cristo (cf. 3.21).
O v. 10 (parte final) focaliza nossa atenção nesse fim, porque
o amor crescente terá o propósito de tornar os filipenses puros e
imaculados, prontos para o Dia de Cristo. Quando Jesus Cristo
voltar, ele irá examinar os crentes quanto à perfeição atingida em

- 97 -
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

matéria de amor crescente e transbordante pata com os irmãos e


para com Deus. É crucial reconhecer se seu amor cresce dia a dia.
Ou será que ele tem dim inuído, como o primeiro amor da igreja de
Éfeso (Ap 2.4)?
Esse amor não é sentimental, não é Verbal, mas é prático,
encontra expressões concretas através de ações. C ertam ente,
desejamos que essa espécie de amor transborde em nós, mas quem
sabe não temos confiança de que é possível receber um amor tão
extraordinário assim, simplesmente pedindo a Deus. Paulo nos dá
algumas dicas importantes sobre como ganhar esse amor abundante
em resposta à oração. Se alguém está orando por você desta maneira
(talvez seja esposa, marido, pai, um filho ou um membro interessado
da igreja), de tal forma que a oração dele Se une à sua, espere ver
mudanças na intensidade de seu amor. Como se uma poça parada e
mal cheirosa se transformasse em uma corrente de águas cristalinas,
o amor narcisista pode ser transformado em amor semelhante ao de
Deus, que o motivou a dar seu Filho para nos salvar (Jo 3.16).

Os dois elementos do amar


Paulo prossegue no v. 9, dizendo que duas características são impor­
tantes nesse amor transbordante. Se om itim os esses elementos
básicos, o amor não cresce m uito e não transborda. Esses dois
elementos são descritos pelas palavras “conhecimento” e “percepção”.
O primeiro termo representa a palavra grega epignõsis, que se
encontra no Novo Testamento umas vinte vezes. Normalmente usado
para designar o conhecimento de Deus e da verdade, ou conhe­
cimento da Bíblia e de Jesus Cristo, refere-se à esfera espiritual.
Ora, não me sinto bem quando divido o conhecimento hu­
mano em duas categorias, mas a esta altura pode ser proveitoso
fazer isso. Possuímos dois tipos de conhecimento.
O primeiro é o conhecimento hum ano, secular, orientado ao
nosso viver desta terra. Quando uma pessoa realmente sabe bas­
tante, pode ser formada em faculdade, ou até mesmo se tornar
professor, com nível de mestrado ou doutorado. No contexto da
vida, mostra quanto sabe pelo seu sucesso. Sabe equilibrar as coisas,
como planejar, como tratar as pessoas de modo que estas o tratem
bem. Conhece a lei, e sabe como evitar as penalidades impostas
àqueles que deixam de cumpri-la (ver Lc 16.1-11). Ela é reputada
como uma pessoa bem ajustada e entendida. Para fins dessa expla­

9 8 -
EP ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL1PENSES

nação, classificaremos essa categoria de escolhas capazes como


gnõsis, “conhecimento”.
Mas é diferente o sentido do termo “conhecimento” (epignõsis)
usado no Novo Testamento. Esta palavra se refere à realidade
espiritual. Tal conhecer ultrapassa o saber do dia-a-dia, atingindo a
esfera espiritual, o que é comparável à ultrapassagem da barreira
do som. As atitudes e os valores da vida que chamamos de “secular”
são transformados pelo relacionamento com Deus e seu povo através
do Espírito. Não que o Espírito seja realmente dissociado do psiquê
ou da alma hum ana em qualquer sentido claro, definido. Quando
o crente ultrapassa a barreira, indo ao conhecimento dos valores
espirituais, isso o faz perceber a realidade de uma forma que o
homem secular não vê. Paulo aqui dá ênfase à idéia de-que, sem
esta espécie de conhecimento, o amor sacrificial não cresce — nem
o amor por Deus, nem o amor pelo homem. O amor agapê deve ter
raízes no conhecimento adquirido diretamente através da revelação
e percepção do Espírito Santo.
Em Efésiosl.17, Paulo ora pelos cristãos de Éfeso na Ásia: que
“Deus... o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de
revelação no pleno conhecimento (epignõsei) dele. “Este uso que Paulo
faz da mesma palavra esclarece que é o Espírito Santo que nos capacita
a ultrapassar a barreira do conhecimento do mundo secular, e nos
faz penetrar tal ciência. Nela alcançamos e experim entam os a
presença de Deus. O E spírito Santo não trabalha à parte das
Escrituras. Deus emprega a Bíblia para guiá-lo, quem sabe enquanto
você ouve a explicação do seu sentido, ou enquanto a lê na hora
devocional de manhã. E assim, o solo que proporciona as condições
para o amor crescer e transbordar tem sua origem na oração, uma
Palavra de Deus, e produz a comunhão com Deus, que por sua vez
encaminha o amor transbordante para com Deus e sua igreja.
Uma segunda palavra que Paulo liga ao “entendim ento” do
v. 9 é a palavra “percepção”. Transmite o sentido do original aisthõsis.
Uma pessoa que tem percepção tem o dom que m uitas vezes é
atribuído às mulheres com o nome de “intuição”: O homem pode
trabalhar intensamente durante horas inteiras, lidando com os prós
e contras de uma decisão im portante. Talvez escreva todos os
números, a lista de vantagens e desvantagens, tentando arrazoar e
chegar à melhor solução de um problema. M uitas vezes, consulta
os colegas executivos para que o ajudem a ponderar as conseqüên-
cias favoráveis e desfavoráveis de sua opção. Depois vai para casa,
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

pergunta à esposa qual a opinião dela, e fica admirado ao descobrir


que seu conselho está de acordo com a conclusão estudada dele.
A intuição adianta o processo, sendo resultado da percepção.
Por maior que seja a lógica ou a sua racionalidade, não dá ao homem
a verdade espiritual. Esta precisa resultar de uma revelação por
parte de Deus e de um a percepção por parte do homem. A teoria
ou a teologia se transforma em realidade e estilo de vida cristão. A
palavra de Paulo, “percepção” ou “discernim ento”, trata especifi­
camente de um juízo tanto moral como espiritual. As Escrituras
não fazem distinção entre as esferas moral, ética e espiritual, no
que diz respeito à prática. Sendo assim, portanto, viver com “per­
cepção” e conhecimento significa agradar a Deus.
Podemos ilustrar esse termo na vida pública terrena de Jesus.
M uitas e muitas vezes, ele foi pressionado em situações onde tinha
que fazer escolhas. Suas decisões eram importantes porque milhares
de pessoas ouviam suas instruções. Não podia, pois, ensinar uma
coisa na teoria e fazer outra diferente na prática. Seu modo de esco­
lher, repetidas vezes, ofendia as pessoas religiosas mais respeitadas,
o que não o tornava popular. O que ele percebia e declarava com
franqueza contrariava a opinião da maioria da época. Ele favorecia
os humildes, os fracos, os pobres e necessitados, em vez dos fariseus
orgulhosos que eram admirados (cf. Jo 5.44). No caso dos judeus,
que conheciam m inuciosam ente a B íblia, m as não tin h am o
Espírito, exaltavam os valores do mundo. Jesus, cheio do Espírito
Santo, quando ouviu o cego Bartimeu clamando por misericórdia,
ordenou que lhe trouxessem o homem im ediatam ente, apesar dos
discípulos quererem silenciá-lo com a justificativa de que Jesus
estava ocupado demais (Mc 10.46-52). Foi esse o tipo de intuição
ou sistema de valores que determ inou as decisões de nosso Senhor.
Bartimeu era mais im portante do que a m ultidão, os discípulos, os
dignatários religiosos, ou um a programação prévia.
Necessitamos desesperadamente de possuir esta percepção.
É um discernimento tantas vezes ausente, que explica porque nossa
vida espiritual é fria, e nosso amor parado. Onde existem águas
estagnadas e tem peraturas mornas, é quase certo haver mosquitos.
Essas pestes não podem reproduzir-se em águas correntes. Quando
o amor é parado, os relacionamentos ficam estragados. Em lugar
do amor transbordante pelo qual Paulo ora, criam-se ressentimentos
irritantes, concebidos no ciúme, para atrapalhar o povo de Deus
como se fossem pernilongos zunindo perto dos nossos ouvidos. Com

100 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL1P E N S E S

o conhecimento experimental de Deus e o discernimento estim u­


lado pelo Espírito Santo, cresce o amor, e dim inui o egoísmo.
O a u to r de H ebreus tam bém em prega um substantivo
relacionado com o termo “percepção” (aisthêsis) quando repreende
os cristãos estagnados, que não quiseram crescer na fé além da
prim eira infância. Veja o aparecim ento divinam ente inspirado
dessas palavras: “Vocês já deviam ser mestres, capazes de ensinar a
Palavra de Deus, contudo têm de novo necessidade de alguém que
lhes ensine o ABC da fé cristã. Porque todo indivíduo que ainda se
alimenta de leite, não está cheio da Palavra da justiça, pois é criança.
Mas o alimento sólido é para os adultos, para os que têm as suas
faculdades exercitadas pela prática (Hb 5.12-14). A palavra “facul­
dades” (aisthênia) vem da mesma raiz grega que o termo “percep­
ção” em 1.9. Visto que aos cristãos hebreus faltava “percepção”,
não tinham a capacidade de discernir entre o bem e o mal, ou distin­
guir o melhor do bom. As pessoas maduras precisam tomar decisões,
à luz da vontade de Deus revelada e das conseqüências eternas.
Somente a percepção espiritual produz decisões corretas. Como é
triste constatar com tanta freqüência que cristãos estão se tornando
estagnados, sem m aturidade necessária para o discernim ento dos
valores espirituais.

 conseqüência do amor crescente -


Quando o amor de Deus cresce em nós com vitalidade, no solo do
conhecim ento e da percepção, o que vai produzir? Paulo dá a
resposta no v. 10. Produz “aprovação”. Essa palavra interessante
também foi empregada por Paulo na segunda epístola a Timóteo.
P erm ita-m e fazer um a paráfrase: “Q uero que você seja um
trabalhador “aprovado” (gr. dokimon), quando chegar no dia de sua
formatura, abrir seu diploma conferido por Deus, e ler os elogios.
Espero que você se forme com prêmios, em lugar de descobrir que
foi reprovado no dia de Jesus Cristo” (cf. 2Tm 2.15).
Como serão emocionantes para uns e chocantes para outros,
as surpresas do juízo final! M uitas pessoas esperam a aprovação da
form atura, porém vão descobrir tarde demais, para sua tristeza,
que o prêmio esperado não lhes foi conferido (cf. 3.14, 2Tm 4.8).
Mas podemos ter a certeza da aprovação de Deus se somos sinceros
e inculpáveis até o D ia de Cristo”, porque então será evidente em
nós a boa obra de Deus (v. 6).

- 101 -
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

A expressão “para que vocês aprovem as coisas excelentes”


(v. 10) mostra que essa capacidade espiritual tem sua origem nas
realidades do v. 9. “Aprovar” (dokimazõ) significa testar e aprovar
ser autêntica alguma coisa. Mesmo em nossos dias, uma nota de
papel-moeda precisa ser aprovada para ser aceita. A alta qualidade
da imitação engana os “leigos”, mas é rejeitada pelos profissionais
(veja 2.22 e a observação que Paulo faz a respeito de Timóteo).
O Senhor Jesus em pregou a palavra aqui traduzida por
“excelente” (diapherõ), que se refere às coisas que precisam ser “apro­
vadas”, quando procurou ensinar os discípulos a confiar em Deus,
em M ateus 6.26. Os lírios do campo são de m uito m ais valor
(“excelência”) do que o capim , todos nós concordamos. M as a
comparação não é esta. “Vocês valem m uito mais do que os lírios!”
Deus cuida dos lírios do campo; mas você vale m uitas vezes mais
do que os lírios do campo, então os homens são de maior valor que
todas as flores silvestres, os cristãos amorosos irão distinguir o que
realmente tem significado duradouro daquilo que tem boa apa­
rência na realidade, mas imprescindivelmente destinados à fornalha
(cf. 2Co4.18).
A capacidade e o desejo de fazer esta espécie de escolhas
entre valores e prioridades advém de um conhecimento e pers­
picácia dados por Deus, mas prenuncia também o Dia de Cristo. É
claro que nada nos fará ficar envergonhados, se cuidam os em
escolher o caminho excelente (ICo 13.31b). Este versículo (10)
afirma a importância de aprender a distinguir o melhor do me­
díocre, “para sermos sinceros e inculpáveis” quando Cristo voltar
e estivermos todos diante do seu tribunal (2Co 5.10).
A palavra “sincero” tem seu significado numa prática comum
do mundo antigo. Os potes de barro eram as vasilhas domésticas
habituais, usadas na cozinha como na sala de jantar. Uma das
indústrias mais movimentadas era a de fazer potes e pratos, porque
eles se quebravam com muita freqüência. Eram fabricados de barro
queimado que, depois de muito cozido e moldado na roda do oleiro,
ia para o forno. Ficavam duros e quebradiços. Quando menino, eu
olhava os oleiros fazendo potes de barro. De vez em quando, esses
potes se rachavam ou ficavam com um buraco. Em vez de jogar
fora o vaso inútil, alguns oleiros sem escrúpulos passavam um pouco
de cera sobre o buraco. Quando alguém o comprava, não percebia
a rachadura a não ser que duvidasse da qualidade do artigo. Nesse
caso, bastava virá-lo para o lado do sol. A cera, sendo apenas opaca,

102 -
EP ÍS T O LA DE P A U L O A O S FIL1P E NS E S

dava passagem à luz. Portanto, a palavra grega significa “testado


pelo sol”, enquanto que a palavra “sincera” do nosso idioma vem
do latim e quer dizer “sem cera”.
Devemos sempre fazer a pergunta para nós mesmos, e para
nossos filhos, vizinhos e amigos: somos testados pelo sol? Observe
que esse amor transbordante confirma nossa segurança de sermos
um cristão aprovado, testado pelo sol, no Dia do Juízo Final.
O v. 6 expressa a certeza de Paulo de que Deus há de com­
pletar a obra da salvação que ele principiou. Agora a oração do
apóstolo proclama que a confiança de ser aprovado vem da prova
do amor crescente, radicado no conhecimento e percepção. A “since­
ridade”, Paulo (que gostava de usar dois termos paralelos) acrescenta
“inculpáveis”. É a palavra que ele usou quando se defendia perante
os acusadores judeus, incluindo o Governador Félix de Cesaréia:
“Tenho vivido sem ofensa durante toda a vida. M inha consciência
está lim pa” (cf. At 24.16). Ora, pode ser perigoso afirmar isso se a
consciência é meramente sua. M uitas de nossas consciências não
nos estão acusando, o que só serve para provar que não estão muito
sensíveis ou bem instruídas. Podemos ser m uito bons em auto­
defesa, justificando qualquer falha ou pecado de qualquer acusação
interna do coração. É mais im portante estar sem acusação na.vida
e na conduta, para que nenhum acusador tenha quaisquer provas
contra você, mesmo depois de examinar a fundo a sua vida.
Como exemplo, vejamos um contador. Ele tem um serviço
interessante, porque o computo de impostos revela m uito sobre a
consciência secreta de seus clientes. Eles sabem quanto deviam
pagar de impostos, mas resolvem que não, porque não há forma de
um acusador provar a violação da lei. sua consciência não os preo­
cupa, visto que eles racionalizam que o governo desperdiça vastas
quantias de dinheiro. Mas o problema é como eles vão se sentir
quando uma auditoria for feita por alguém que possui todas as
provas para condená-lo.
Paulo aguarda o dia do exame para o qual ninguém pode lhe
trazer nenhum a preocupação, mesmo sendo examinados os regis­
tros oficiais e todos os documentos secretos. Para receber um ve-
redito de isenção de culpa naquele dia, precisam os agora de
consciência pura e sinceridade completa. As duas qualidades —
“testado pelo sol” e “inacusável” (inculpável) no D ia de Jesus Cristo
— resultam de se ter percepção e conhecimento, aliados ao amor
transbordante.

103 -
E P ÍS T O LA S DA P R I S Ã O

Finalmente, vejamos o versículo 11. Está aqui o tema desta mensa­


gem, e a sua conclusão. “Cheios do fruto de justiça, que vem através
de Jesus Cristo, para a glória e louvor de D eus”. Estamos acostu­
mados com o fruto (singular, não plural) do Espírito, que é o amor.
O amor possui todos os atributos de “alegria, paz, paciência,
bondade, misericórdia, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (G1
5.22, 23), como se fossem expressões variadas desse amor. O fruto
de justiça certamente será o mesmo. Assim como o fruto de Gálatas
5 é produzido pelo Espírito que habita no interior, o fruto da justiça
é produzido pela vida de Jesus atuante em nós. A oração que pede
muito amor, firmado em conhecimento e percepção, irá produzir a
capacidade de se distinguir o que há de melhor, a fim de sermos
puros e inculpáveis no Dia do Juízo Final. Mas esta vida, que se
torna cheia do fruto da justiça, vem por Cristo Jesus.
Lourenço da Arábia certa vez levou alguns de seus amigos
árabes a Paris. Queria mostrar-lhes a cidade e impressioná-los. Foi
há tempos, antes que os xeques árabes possuíssem rios de dinheiro
pelas vendas de petróleo. N ão conheciam bem as atrações e
comodidades modernas, por isso ele queria dar-lhes este prazer. A
Torre Eifell, os lindos edifícios e pontes, o Arco do Triunfo, nada
disso os deixou atônitos. M uitas vezes, desejamos ver os turistas
interessados, mas nossos visitantes só querem voltar para o hotel, e.
era isso o que acontecia com aqueles amigos. Isso porque o que os
deixou realmente admirados foi a água corrente. Para ter água era
só abrir a torneira. Ali no seu hotel é que estava a maior maravilha
do mundo. Os árabes abriam e fechavam a torneira extasiados diante
do milagre da água a jorrar da parede. Um dia antes de voltarem
para a Arábia, Lourenço ouviu uns sons estranhos no banheiro.
Investigando, encontrou os amigos ali com um a chave inglesa,
tentando desenroscar aquela torneira. Quando indagou o que fa­
ziam, responderam: “Já vimos m uita coisa maravilhosa em Paris,
mas nada que se compare com essa torneira. É só abrir, sai água.
Queríam os levar essa invenção tão im portante para a Arábia”.
Lourenço teve de convencê-los de um a verdade m uito importante.
Levar uma torneira para a Arábia e enterrá-la em uma parede não
produziría água nenhuma. Não percebiam que havia um cano e
todo um sistema hidráulico para suprir a água desejada. Se os seus
amigos têm o amor que transborda em fruto de justiça, baseado

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E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

em sua ligação vital com Jesus Cristo, e as outras realidades alistadas


por Paulo em sua oração, isso deve animá-lo a procurar que Deus
faça o mesmo por você. Mas se você tenta produzir o fruto da justiça
por seus próprios esforços, terá tão pouco êxito quanto os amigos
de Lourenço ao tentar produzir a água, sem cano e sem fonte.

Conclusão
Paulo quer fazer-nos entender que, no final, Deus será louvado e
glorificado pela resposta a essa oração. Seja qual for o resultado
produzido por Cristo em nós em termos de vida justa, inevita­
velmente, Deus será honrado e exaltado. Bondade produzida hum a­
namente glorifica o homem (cf. Jo 5.44)., mas logo que descobrimos
que dentro de nós “nenhum bem habita”, somos forçados a diri­
gir-nos ao nosso Senhor em busca dessa justiça miraculosa que
reflete o louvor e glória de Deus (v. 1lb). Duvido que muitas orações
tenham esta m eta. É freqüente orarm os im plorando alívio de
aflições e dores, ou o suprim ento daquilo que supomos necessitar
e desejar. Quando somos conscientizados para orar como Paulo
orou, podem os a g u ard ar a conseqüência, m aravilhosam ente
apresentada nesta curta passagem de Filipenses, além de experi­
m entar a verdade de que Deus tem prazer em dar-nos as coisas que
desejamos, mas não pedimos (Mt 6.33).

A filosofia de vida do cristão (1.12 -2 6 )


12Quero ainda, irm ãos, cientificar-vos de que as
coisas que me aconteceram têm antes contribuído para
o progresso do evangelho; 13de m aneira que as minhas
cadeias, em Cristo, se tornaram conhecidas de toda a
guarda pretoriana e de todos os demais; I4e a maioria dos
irm ãos, estim ulados no Senhor por m inhas algemas,
ousam falar com mais desassombro a palavra de Deus.
l5Alguns efetivamente proclamam a Cristo por inveja e
porfia; outros, porém, o fazem de boa vontade; 16estes,
por amor, sabendo que estou incum bido da defesa do
evangelho; 17aqueles, contudo, pregam a Cristo, por
discórdia, insinceramente, julgando suscitar tribulação
às minhas cadeias. I8Todavia, que importa? Uma vez que
Cristo, de qualquer modo, está sendo pregado, quer por

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E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo,


sim, sempre me regozijarei. 19Porque estou certo de que
isto mesmo, pela vossa súplica e pela provisão do Espírito
de Jesus Cristo, me redundará em libertação, 20segundo a
minha ardente expectativa e esperança de que em nada
serei envergonhado; antes, com tôda a ousadia, como
sempre, também agora, será Cristo engrandecido no meu
corpo, quer pela vida, quer pela morte. 21Porquanto, para
mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. 22Entretanto, se o
viver na carne traz fruto para o meu trabalho, já não sei o
que hei de escolher. 230 r a , de um e outro lado estou
constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo,
o que é incomparavelmente melhor. 24Mas, por vossa causa,
é mais necessário permanecer na carne. 25E, convencido
disto, estou certo de que ficarei, e permanecerei com todos
vós, para o vosso progresso e gozo da fé. 26A fim de que
aumente, quanto a mim, o motivo de vos gloriardes em
Cristo Jesus, pela minha presença de novo convosco.

Introdução
Uma biografia, para valer a pena, tem de contar mais do que os
simples fatos da vida de uma pessoa. Lendo Filipenses, capítulo 1,
versículos 12 a 26, é preciso compreender que há mais do que meros
fatos naquilo que o apóstolo conta. Nestes versículos vemos, prim ei­
ram ente, atitudes, um modo de ver, uma m aneira de avaliar as
circunstâncias e as pessoas.
Confiamos no Pai, autor dessas palavras preciosas, para que
ele faça brilhar em nossos corações a glória de uma vida que lhe foi
totalmente dedicada, a fim de podermos im itar este seu servo, Paulo,
compreendendo como tornar nossas as suas atitudes e o seu modo
de pensar. Que Deus desafie a nossa vontade enquanto estudamos
a Palavra e abrimos os corações ao m inistério do Espírito.
Os versículos 1 a 11, que j á examinamos, revelam como Paulo
agradecia e orava a Deus pelos cristãos de Filipos. Os versículos
12-26, no entanto, são seu testemunho pessoal. Aqui, vemos Paulo
erguendo os olhos para o m undo ao redor, para seu passado, seu
presente e seu futuro. Ele os examina de um certo ponto de vista.
A avaliação correta da vida e até mesmo da pessoa que somos
não depende do que nos aconteceu durante a vida, nem de onde

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E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

tem os m orado. D e p e n d e b a sic a m e n te da a titu d e com que


encaramos a nossa vida — nosso passado, presente e futuro. Creio
que foi Elton Trueblood quem disse: “Estou plenamente convencido
de que a hum anidade não mudou nem um til. O que tem mudado,
naturalm ente, são as circunstâncias que lhe cercam a vida. Mas o
homem é o mesmo. Reage de modo igual; pensa de modo igual;
dadas as mesmas oportunidades, deseja de modo igual; há de cobiçar
as mesmas coisas, como sempre fez”.
Acredito que seja uma observação perspicaz e verdadeira.
Paulo não só nos conta aqui quais eram as circunstâncias em que
se achava, mas também nos mostra como uma pessoa age e reage,
uma vez que colocou Cristo no centro absoluto de sua vida. E.
Stanley Jones denominou-o de “hipótese central de sua Vida”. Se
você faz com que Cristo seja o eixo giratório, o vértice de tudo — a
pessoa para quem todos os aspectos de sua vida são voltados, o alvo
a quem todos os m inutos de sua vida consciente apontam, então as
conseqüências, inevitavelmente, aparecerão em sua vida e atitudes,
como aconteceu com Paulo. Com ecem os por um exame das
perspectivas múltiplas com que Paulo enxergava suas circunstâncias
e adversários.

Paulo avaliava os seus sofrimentos positivamente


Prim eiramente, vejamos com Paulo o seu passado. Nos versículos
12 e 13 encontramos o apóstolo dizendo: “Quero que percebam
que o sofrimento pelo que passei, o meu sofrimento pessoal, não é
nada que deva nos entristecer ou desanim ar”. A prisão e as aflições
que sofreu não o fizeram sentir que devia reclam ar bem alto e
esperar que os outros tivessem pena dele pelos maus-tratos que
recebera. Sabemos como podemos nos sentir quando alguém nos
trata com injustiça. Acho que Paulo poderia m uito bem ter-se
considerado a pessoa mais injustiçada de todo o mundo. Era um
homem que não tinha feito nenhum mal, que dedicara sua vida
somente para servir os outros. Entretanto, estava confinado sob
acusação falsa. Por inveja e ódio diabólicos, planos foram
arquitetados para se livrarem dele; de fato, mais de quarenta homens
chegaram a jurar que se não o pudessem matar, cometeríam o
suicídio com greve de fome (At 23.12-21). Tal foi a intensidade do
ódio dirigido contra a sua pessoa. Estivera preso por dois anos em
Cesaréia (aceitando que Filipenses foi escrito de Roma), pelo

- 107-
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

simples motivo de que ninguém aparecera com dinheiro suficiente


para subornar o governador a fim de que o soltasse.
O tratam ento injusto do passado continuava no presente.
Paulo ainda estava preso em Roma porque tinha apelado para César.
Mais dois anos se passariam antes que fosse solto, durante os quais
Paulo pagaria o aluguel da casa que lhe servia de prisão, acorrentado
dia e noite a um guarda pretoriano. Contudo, com o tempo ficou
provado que todas essas coisas que lhe aconteceram no passado,
mesmo os naufrágios, visavam o bem. Vamos para 2Coríntios 11
por um momento, onde se pode ver uma série de experiências às
quais Paulo tinha sobrevivido nos versículos 23 a 28. D iz ele: “Falo
como louco (como fora de mim) — m uito mais trabalhamos, m uito
mais aprisionam entos, com incontáveis açoites (Paulo diz: “Já
esquecí quantas vezes fui açoitado, todas as cicatrizes praticam ente
se uniram ”), m uitas vezes em perigos de morte. Cinco vezes recebi
das mãos dos judeus os “quarenta açoites menos um ” (sempre
menos um, para que a pessoa não morresse, pois nenhum judeu
queria ser julgado diante de Deus pela morte da pessoa fustigada).
Três vezes apanhei de vara (referindo-se ao modo como os romanos
açoitavam); uma vez fui apedrejado. Três vezes sofri naufrágio; uma
noite e um dia fiquei à deriva no mar; em viagens m uitas vezes, em
perigos de rios, em perigos de ladrões e salteadores (tudo, diz Paulo,
contribuiu para o bem)”.
Para esclarecer: se você tem o ponto de vista de Paulo sobre o
que lhe acontece na vida, você já avançou bastante na estrada da
m aturidade cristã ou santificação. A santidade não é aquele ideal
religioso elevado, pelo qual a pessoa se torna um religioso solitário
fanático ou um erem ita que passa o tempo todo num cubículo,
com as mãos cruzadas e as costas cada vez mais curvadas num arco
santificado. Isso pode ter muito pouco a ver com a santidade que
pode ser descrita como um ponto de vista, uma m aneira cristã (de
Cristo) de avaliar o que está acontecendo com você.
Nas palavras de Romanos 8.28, Paulo escreveu o conhecido
“Biotônico Fontoura” do crente, como podemos denominá-lo. O
crente tem a Palavra inviolável e eterna de Deus para assegurar-lhe
que, se realmente ama a Deus e foi chamado para com partilhar de
seu divino propósito, só o bem poderá resultar de todas as circuns­
tâncias exteriores que afetam a sua vida. É semelhante ao que Isaías
diz: “Mas agora, ó Senhor, tu és nosso Pai, nós somos o barro, e tu
o nosso oleiro; e todos nós obra das tuas mãos” (Is 64.8). A medida

- 108
E P ÍS T O L A DE P A U L O A O S F IL IP E N S E S

que Paulo observava seu mundo e experimentava tudo que lhe acon­
tecia, reconheceu o maravilhoso trabalho do oleiro que formava e
moldava a massa flexível e receptiva do seu coração. Ele se regozijava
então nos seus sofrimentos (Cl 1.24), reagindo sempre com atitude
de aceitação positiva e nunca com amargura ou auto-piedade com
relação àquilo que Deus estava fazendo em sua vida.
Olhemos agora, mais uma vez, para o versículo 12: “As coisas
que me acontecem têm antes contribuído para o progresso do
evangelho”. Paulo não disse que gostou de suas circunstâncias. Não
estava dizendo: “Eu estou completamente louco e por isso gosto
desses acontecimentos dolorosos, ruins, pois m inha mente não está
funcionando bem ”. Porém, o que Paulo afirmou foi o seguinte: “Eu
avalio as coisas más que têm acontecido em m inha vida em termos
de como elas contribuem para o bem superior, o que realmente faz
valer a pena e torna o investimento compensador. Esse bem é o
progresso do evangelho”.
No original, a palavra traduzida por “progresso” é um termo
militar que retrata trabalhadores com machetes e machados abrindo
caminho através da mata, a fim de preparar a passagem para o
exército. Era de máxima importância abrir caminho para o exército
avançar. Paulo estaria dizendo assim: “Já estive ali na frente,
sofrendo os ferimentos bem como a oposição do inimigo, mas louvo
a Deus porque o nosso exército está avançando — o evangelho tem
progredido porque o caminho foi aberto. Esta palavra que ele usa
novamente um pouco adiante, fornece uma chave para compreen­
dermos o entusiasmo de Paulo. No versículo 25, o “progresso” que
Paulo espera ver na igreja filipense se refere ao crescimento deles
na fé e na m aturidade espiritual. Aqui ele fala no “progresso do
evangelho” no sentido de o evangelho “se tornar conhecido em toda
a guarda pretoriana” (v. 13).
Antes que a arqueologia nos informasse m elhor sobre esta
palavra, pensávamos que o pretório se referisse somente ao palácio
do im perador em Rom a ou do governador na capital de um a
província (At 23.35; M t 27.27). Através de algum as inscrições
descobrimos agora que o pretório também pode referir-se à guarda,
que era especialm ente os “olhos e ouvidos” do im perador nas
principais cidades em todo o m undo romano. É possível mesmo
que Filipenses tivesse sido escrito em Éfeso porque devem ter havido
componentes da guarda pretoriana para zelar pelos interesses do
imperador ali. Em Roma, a guarda pretoriana se compunha de cerca

- 109 -
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

de nove mil homens, escolhidos dentre a elite das tropas de todo o


império. Não só tinham de ter o porte físico correto — altos, de
ombros largos, fortes — também tinham que ter a lealdade de cora­
ção e ser homens dignos de confiança, mesmo sob pressão. Rece­
biam salário duplo, para assegurar que trabalhassem satisfeitos.
Eram responsáveis pela guarda dos prisioneiros do imperador, in­
cluindo Paulo nesta ocasião.
Imagine um guarda pretoriano sendo algemado com Paulo.
Tinha que dorm ir ao lado desse homem para garantir que ele não
escapasse. É possível que Paulo nem sempre dormisse bem. Imagine
o guarda ter que escutar a Paulo na escuridão silenciosa da noite. E
Paulo falava sobre Jesus, outro Senhor, outro kúrios, em lugar do
imperador. Mas esse soldado pretoriano estava lá justamente para
proteger a posição ím par e a autoridade suprema daquele único
imperador através de todo o m undo civilizado. Contudo ali estava
Paulo falando em outro Senhor (kúrios, no grego) cujo nome era
Jesus Cristo. Aqueles guardas m ilitares devem ter saído de perto
dele m eneando a cabeça. Devem ter considerado Paulo um
obcecado, visto que ele falava sobre este Senhor dia e noite. Certa­
mente, pensavam em quem seria esse Jesus, o que lhe aconteceu,
por que Paulo tinha tanta certeza da sua ressurreição. Naturalmente
teriam aguçado os ouvidos quando Paulo contava do julgamento e
crucificação dele sob Pilatos, um governador romano. Talvez, a
princípio, nada disso lhes fizesse sentido, mas no outro dia teriam
um pouco mais clara desta vez, e assim, um por um, ouviam as
boas novas do evangelho. É possível que não haja lugar mais
propício para proclamar o evangelho do que uma prisão, o público
cativo não podia escapar nem forçár o evangelista a silenciar-se.
Pobres guardas pretorianos! Se não quisessem receber a Cristo como
seu Senhor, deviam então pedir demissão da força. Sem dúvida,
alguns deles se renderam ao kúrios de Paulo.
Além disso, veja o final de Filipenses, onde o texto diz: “Todos
os santos vos saúdam, especialmente os da casa de César” (4.22). Paulo
estava se referindo ao lugar onde estava preso, onde tinha tido o
privilégio de proclamar o evangelho e ver o seu progresso entre
aqueles que estavam algemados com ele, aqui descritos como sendo
da casa do imperador.
Notem os que as algemas a que Paulo se refere são suas
“cadeias, em Cristo, que se tornaram conhecidas de toda a guarda preto-
riana e de todos os demais” — as cadeias são em Cristo e sua prisão é
E P ÍS T O L A DE P A U L O A O S F I L I P E N S E S

por Cristo, e esta é uma segunda conseqüência dos sofrimentos de


Paulo que ele considera positivamente. Não só os guardas preto-
rianos aprendiam sobre Jesus e sobre o evangelho, como também,
ele acrescenta, “todos os demais”: as outras pessoas também ficavam
sabendo disso. O povo em geral não estava separado dos guardas.
Os escravos e a população da cidade estavam logo discutindo sobre
Paulo e suas “boas novas”.
A terceira conseqüência afetava os cristãos de Roma ou Éfeso,
que começavam a falar sobre o Senhor mais ousada e livremente
(v. 14). Além dos guardas que tinham de ouvir a Paulo, além da
difusão das novas pelos guardas e todas as pessoas da casa de César,
os cristãos também começavam a dar testemunho do amor e da
graça salvadora de Deus. Você deve saber, por certo, que a maioria
dos cristãos não testemunha, pelo menos a maior parte do tempo.
Um membro “norm al” de uma igreja não percebe que na sua vida
diária deve ser um missionário, considerando a causa missionária
como sua própria missão. Algumas poucas pessoas são assim, mas
não existem muitas. Era o que acontecia na cidade onde Paulo estava
preso. Nesse aspecto, não havia nada de realmente fora do comum
que diferenciasse a igreja de Roma ou Éfeso das nossas igrejas hoje.
M uitos cristãos escolhem um m étodo de dar testem unho que
podemos cham ar “método silencioso”. Não dizem nada. Vivem sua
vida cristã tão calma e prazeirosamente quanto possível. E as pessoas
que vivem acima deles, as que moram em baixo ou ao lado deles no
seu prédio de apartam entos nem suspeitam que aqueles cristãos
possam ser estrangeiros, cidadãos de outro país chamado céu (cf.
1.27; 3.20). Como poderíam saber? Entretanto, quando Paulo estava
na prisão por amor ao evangelho, correu a notícia de que esse
homem era diferente; ele não conseguia deixar de anunciar a boa
nova sobre o Salvador.
Em ICoríntios 9, Paulo revela uma parte do segredo sobre a
obrigação que pesava sobre ele e o impulsionava. Ele estava sob
uma maldição, um tipo estranho de maldição, é lógico, porque não
dá para sabermos quem a pronunciava. É possível que fosse Paulo
amaldiçoando a si mesmo. Ele dizia: “Ai de mim se não pregar o
evangelho” (v. 16); quer dizer, que um “ai” (maldição) o alcançaria
no caso de ele deixar de falar sobre Jesus Cristo a todos com quem
estivesse em contato íntimo. Quando aqueles cristãos do primeiro
século viam alguém sofrer pelo evangelho, a consciência de cada
um começava a apertá-lo tanto, a ponto de não conseguir ficar calado

111 -
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

acerca de Cristo. Não se limitavam a falar a respeito dele, mas como


Paulo faz questão de frisar no v. 14, comunicavam a Palavra de
D eus ousadamente e com desassombro. Antes de Paulo ser preso,
haviam sido derrotados pelo medo de serem presos por promover a
causa de outro Rei. Mas a experiência de Paulo na prisão não lhes
parecia assim tão má. Ele não parecia nada infeliz ou deprimido.
Uma das principais razões para temermos a prisão é, naturalm ente,
o medo de ficarmos tristes e detestarmos m uito o lugar. Paulo,
porém, parecia prosperar naquela situação. Avaliava as circuns­
tâncias de um modo tão diferente, que os cristãos estavam chegando
a conclusão: “É, não deve ser tão ruim como eu pensava”. Então se
inflamavam com o fogo ardente do amor pelo Senhor. Em toda
parte, na cidade de Roma ou Éfeso, podia-se encontrar cristãos
que estavam testem unhando sobre o senhorio, a soberania de Jesus
Cristo, ousadamente e com desassombro.
Se alguém fosse avaliar os eventos propriam ente ditos que
cercavam o apóstolo, não com preendería a situação. Mas como
Paulo tinha uma atitude que podemos chamar de positiva, otimista,
missionária, isso estimulou o surgimento desse tipo de cristianismo,
primeiro na casa de César e mais tarde através de toda a cidade.

Paulo reagiu diante da oposição


dos cristãos positivamente
Dessa consideração das circunstâncias passadas e presentes de
Paulo, com a interpretação que ele lhes dava, voltamo-nos a uma
apreciação da atitude de Paulo para com uma igreja dividida. As
vezes, não obstante nosso desejo e esforço de evitá-lo, uma igreja
pode dividir-se. Lendo os versículos 15 a 18 podemos observar que
havia uma comunidade cristã dividida na cidade onde Paulo estava
preso. Ele escreve: “Alguns efetivamente proclamam a Cristo por
inveja e porfia”.
Será possível existir isso? Ali alguns cristãos não estavam
pregando a Cristo porque o amavam, mas por rivalidade, por inveja
de Paulo e daqueles que eram a seu favor. Em outras palavras, sua
idéia era que pregar o evangelho fazia parte de um jogo político.
Provavelmente, irritavam -se com a fama e o êxito de Paulo no
progresso do evangelho, e por isso escolhiam ser da oposição e
considerar a Paulo como rival. Se eram legalistas, certam ente
criticavam o seu evangelho de salvação pela graça. Podem os

- 112 -
EP ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL iP E N S E S

reconstruir seus pensamentos da seguinte forma: “Paulo diz que


você deve receber a Jesus Cristo sem obras e sem a necessidade de
observar a lei, pois a cerimônia e o ritual nada significam para ele.
Veja o que vai acontecer ao cristianismo se as pessoas o seguirem.
Cairá por terra por falta de substância, regras e rituais definidos”.
Essas pessoas não viam nenhum problema em seguir a Cristo. Es­
tes sim, tinham acertado porque falaram favoravelmente da lei,
como podemos ver em M ateus, mas Paulo parecia ter-se tornado
um antinomiano.
Podemos então entender porque os adversários estavam
transtornados com a m aneira em que Paulo avançava, mesmo
estando na prisão. Podemos comparar a situação de Paulo com a de
uma pessoa que está contra o governo, e é colocada na ca'deia por
isso, mas enquanto ela está lá o seu partido cresce. Assim os críticos,
os inimigos de Paulo, decidiram fazer uma campanha contra ele.
Ficamos admirados ao ver que o melhor modo que acharam para
dim inuir a Paulo ou vencê-lo, foi pregar o evangelho, tentar conver­
ter mais pessoas do que Paulo convertia.
O desejo de realizar um a cam panha dessa natureza veio
da inveja e rivalidade ou porfia. Há várias palavras aqui para
descrever sua motivação: “por discórdia”, “insinceramente” (v. 17),
“porpretexto” (v. 18). Todos os motivos que tinham para pregar
o evangelho estavam errados, contudo estavam pregando Cristo
(v. 18).
E a reação de Paulo, qual devia ser? Muitos pregadores de
hoje aconselhariam assim: “Paulo, se eu fosse você, acabaria com
essa raça. Colocaria uma propaganda de página inteira na Folha de
Roma e contaria a todo mundo seus defeitos; faria propaganda de
todos os seus pontos negativos; fulano e sicrano são herêges, não
acreditam no evangelho verdadeiro, pregam a Cristo por motivos
falsos”. Mas Paulo não seguiu esse caminho de modo algum. Por
que Paulo não os condenou como carnais? Por que não começou a
pregar contra irmãos tão sem amor, tão críticos, causadores de
dissensões? Por que não apelou à autoridade suprem a de sua
apostolicidade? Afinal de contas, ele era o “papa” daquela cidade,
pelo menos na ocasião, porque era o único apóstolo presente alí,
ainda que seu trono fosse provavelmente uma velha esteira no chão
da prisão. Por que não os excomungava a todos de uma vez?
Entretanto não encontramos esse tipo de espírito em Paulo, por
causa de sua atitude missionária positiva e encantadora.

- 113-
e p í s t o l a s da p r i s ã o

Vamos parar e exam inar por um m inuto uma das expressões


mais admiráveis de Filipenses. Paulo, em uma passagem singular,
mostra sua atitude despreocupada. Uma frase curta revela seu ponto
de vista: “Todavia, que importa?” (v. 18). “Que importa o que acham
de mim contanto que Jesus Cristo esteja sendo pregado? Eu sou
feliz como um pássaro. Ficaria contente em ter todo m undo como
rival, se isso incentivasse mais pessoas a proclamarem a boa nova
de Jesus Cristo. Pensam que estão contra mim, mas na verdade
estão a m eu favor. Pensam que vão salgar m inhas feridas, mas
quando a questão é pregar o evangelho, eu não tenho feridas”. Uma
atitude assim só pode ser dem onstrada por um cristão maduro.
Quando você não se im porta com o que as pessoas pensam ou dizem
sobre você, quando a oposição e os insultos delas não o incomodam
de m aneira nenhum a, você chegou então a um ponto que o Dr.
H an s B ürk cham a de “in te g raç ã o ” num nível tal que suas
preocupações principais se focalizam em tudo menos em si próprio.
Paulo estava imitando o exemplo de Jesus que demonstrava
um a integração perfeita ao ser falsamente acusado, insultado e
finalmente condenado (cf. lPe 1.18-24). Quando as pessoas eram
invejosas, críticas, insinceras, buscando “suscitar tribulação” às suas
cadeias (v. 17), isso se tornava uma oportunidade para o apóstolo
mostrar sua “Moderação”{AS) a todos. Paulo sabia alegrar-se volun­
tária e espontaneamente nas circunstâncias presentes {“me regozijo”
v. 18b) e ter certeza de que qualquer dificuldade futura não haveria
de afetar sua alegria em Cristo (“sim, sempre me regozijarei” v. 18).
E só podia mesmo regozijar-se com o fato de que o nome de Jesus
estava sendo proclamado e o evangelho apresentado.

Paulo encarara 0 futuro positivamente


Vamos observar agora o modo como Paulo encarava o futuro. Tinha
muita confiança em relação ao futuro, embora não soubesse se Deus
0 perm itiría sobreviver à crise presente. No passado, m uitas vezes
fora colocado diante da morte, e em cada uma dessas ocasiões Deus
0 havia resguardado. Mas, neste trecho de Filipenses, ele abriu o
coração aos leitores, revelando seu pensamento m aduro sobre a
m orte em si. A expressão chave de sua avaliação do fu tu ro
encontra-se no v. 21: “Porquanto, para mim o viver é Cristo, e o morrer
é lucro”. Devemos voltar ao cap. 3 onde Paulo apresentou o mesmo
ponto de vista novamente, num testemunho bastante pessoal que

- 114-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F1LIPENSES

se encontra no v. 8: “Perdi todas as coisas e as considero como refugo,


para ganhar a Cristo”. Quando Paulo olhou seu futuro tão incerto,
ele desconhecia o número de dias ou meses de sua prisão, não sabia
que sentença lhe dariam quando seu caso fosse julgado, mas sabia
uma coisa: conhecia a Cristo. E porque conhecia a Cristo, para ele
faria m uito pouca diferença o ser solto ou decapitado, pois qualquer
dos dois caminhos iria m anter sua “hipótese central”, que era a
com unhão continua com seu amado Senhor. C ontinuaria uma
pessoa bem realizada e alegre, acontecesse o que acontecesse, pois
é assim que se deve enfrentar o futuro. Quando a pessoa tem sua
confiança total no Deus onipotente, nada de ruim pode sobrevir,
porque os eventos e as circunstâncias são controlados por ele. Só
haviam duas opções, e qualquer delas que Deus escolhesse para
Paulo tinha que ser a melhor.
Vamos fazer agora um a paráfrase do versículo 19. “Rego­
zijo-me — estou feliz da vida mesmo nessa prisão. Primeiramente
sei que suas orações vão trazer-me um suprim ento do Espírito de
Jesus Cristo”. E uma frase difícil, esta última. Não sabemos se Paulo
queria dizer: “Serei mais cheio do Espírito”, ou se ele afirma: “O
Espírito Santo vai me dar tudo de que necessito para enfrentar
qualquer provação que terei de enfrentar, a fim de que eu atravesse
sem perder nem um pouco da m inha alegria no Senhor”. Além do
mais, esse “suprimento do Espírito” que viria em resposta às orações
dos filipenses redundaria em sua “libertação” ou salvação. Paulo
não tem certeza se será libertado, livrado da morte, mas ele tem
certeza de sua salvação (v. 6). Se ele for solto, será salvação no nível
humano. Se for para a glória, será salvação na dimensão celestial.
A expressão “Minha ardente expectativa” (v. 20) descreve uma
pessoa que aguarda com a mesma emoção e antecipação de uma
criancinha que sabe que vai participar da m elhor experiência
imaginável, quem sabe um piquenique ou uma visita ao zoológico.
Paulo reconhece que o Espírito está operando seu salvamento,
acompanhado pela expectativa e esperança do apóstolo de que em
nada será “envergonhado”. Não que Paulo se envergonharia de
Cristo, mas contemplava a possibilidade de perder sua coragem na
hora crucial. Poderia dizer algo ou agir de alguma maneira que
levasse as pessoas a crer que Jesus Cristo não era real. Se ele estivesse
no banco dos réus durante seu julgamento e o promotor público
lhe pedisse seu depoimento, poderia, por algum motivo, calar-se
ou deixar de dar testemunho claro e destemido em favor de seu

- 115 ••
e p í s t o l a s da p r i s ã o

Senhor. Afinal de contas, Pedro negou seu Mestre, não só uma vez,
mas três vezes. Que vergonha terrível deve ter oprim ido o apóstolo
veterano quando confessou seu ato covarde a Paulo. Por isso, Paulo
pede as orações fervorosas de seus amigos de Filipos, para que não
fique envergonhado quando chegar o momento de tom ar posição
por Cristo, a fim de que o faça da m aneira mais perfeita possível. E
assim continua seu pensamento: “Em nada serei envergonhado; antes,
com toda a ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido
no meu corpo, quer pela vida quer pela morte” (v. 20).
O importante é que aqui se ensina como devemos encarar o
corpo, aquela nossa parte que valorizamos tanto. Sem dúvida alguma,
ele é muito importante. A maior parte do tempo, trabalhamos e
lutamos pelo corpo, para que ele esteja vestido, alimentado, bem
agasalhado debaixo de um teto, aquecido, subimos e descemos as
ruas da cidade como também pagamos bem para transportá-lo aos
lugares mais lindos e confortáveis do mundo. Não se pode negar que
o corpo seja importante. Mas Paulo tinha apreendido na prisão outra
coisa sobre o corpo, que influenciava seu ponto de vista. Ele
descobrira que o mais importante com relação a seu corpo não era
nenhuma das coisas que nos preocupam a maior parte do tempo. A
grande preocupação dele é que seu corpo seja um sacríficio sem
mácula, perfeito, para Jesus Cristo. Se o seu sangue fosse derramado
no altar de m ártir e suà cabeça rolasse no pó, não seria nenhuma
tragédia. Antes, sua morte havería de glorificar a Deus de modo mara­
vilhoso. Através da morte e através de meu corpo sacrificado, afirma
Paulo, Cristo será exaltado. Ora, esta é realmente a coisa mais im­
portante do mundo, que todo corpo seja um sacríficio na morte ou
na vida (Rm 12.1). .
Mas, e se Deus o deixar viver? Nesse caso, esse corpo terá
que viajar um pouco mais. O apóstolo tinha m uita vontade de ver
de novo os filipenses. Se Deus o levasse nessa direção, uma série de
bênçãos viríam a acontecer. Em prim eiro lugar, Paulo aguarda um
trabalho frutífero (v. 22), que nesse caso seria o crescimento espi­
ritual e numérico da igreja em Filipos. Paulo precisa de seu corpo
lá na Macedônia para que isso se realize. Em segundo lugar, ele
diz: “Poderei dar-lhes mais assistência” (v. 24). E em terceiro lugar,
ele tem esperança de estimulá-los no progresso na fé e increm entar
sua alegria em Cristo. A igreja filipense amava muito a Paulo, então
esperava ansiosamente que ele viesse visitá-la e lhe pregasse outra
vez as maravilhosas verdades de Jesus Cristo.

110
E P ÍS T O L A DE P A U L O A O S F IL IP E N S E S

Mas, e se ele morrer? Será lucro para o apóstolo. Cristo será


ganho completamente (cf. 3.7,8). Paulo reconhecia que após a morte
estaria com Cristo. João nos dá a certeza de que seremos como ele
(ljo 3.2). Por fim, Paulo diz que é bem melhor estar na companhia
de Cristo.

Conclusão
Nesse pequeno resumo autobiográfico, temos o retrato de um homem
que tem um ponto de vista cristão integrado sobre a vida e a morte.
Já foi dito, e é verdade, que quem não tem o ponto de vista certo
sobre a morte, não terá também o conceito correto sobre a vida.
E. Stanley Jones nos deixou um exemplo de uma atitude
correta para com a vida e a morte, quando viajava num avião que
sobrevoava o aeroporto de Saint Louis nos Estados Unidos. O
aeroporto estava fechado, e o avião dava voltas por duas horas. Temos
aqui o que o veterano missionário escreveu quando pensou que estava
vivendo os últimos instantes de sua vida: “Estou em paz espiritual­
mente, sem tensões, porque creio que a hipótese central de minha
vida está correta. A vida é só uma longa verificação dessa hipótese
central. Esse fato me dá um senso de estabilidade. Estou aqui em
cima, neste avião. Há duas horas o avião dá voltas acima destas nu­
vens. Se não aterrisarmos com segurança, gostaria de deixar meu
último testamento para meus amigos e companheiros seguidores de
Cristo. Ei-lo: Existe paz, a perfeita paz, independente de m inha
fidelidade ao Soberano. Não tenho pesares ou remorsos sobre o curso
geral de m inha vida. A vida com Cristo é a maneira de viver. Nesta
hora, há segurança, há Deus por fundamento, debaixo de todas as
incertezas da existência humana. Portanto, descanso em Deus. Que
ele dê o melhor para todos vocês. Vivendo ou morrendo, eu sou dele,
só dele. Glória. Assinado: E. Stanley Jones”.
Gostaria que você examinasse a hipótese central de sua vida.
Qual é mesmo o centro de sua vida? É Cristo? São os bens mate­
riais? É alguma posição com que você tem sonhado, talvez a de
chefe de alguma companhia? São notas altas que você está ansioso
por alcançar? M eu caro amigo e irm ão em C risto, só há uma
hipótese central capaz de se provar verdadeira ao longo de toda sua
vida e que o guie com segurança até o fim: é Jesus Cristo como seu
Senhor e Salvador. Se você ainda não o conhece, espero que sua
oração agora seja: “Senhor, salva-me. Dou-lhe m inha vida”.

- 117 -
EP ÍS T O LA S DA P R I S Ã O

Os cidadãos do céu em comunidade (1 .2 7-2 .4 )


27Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho
de Cristo, para que, ou indo ver-vos, ou estando ausente,
ouça, no tocante a vós outros que estais firmes em um só
espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evan­
gélica; 28e que em nada estais intim idados pelos adver­
sários. Pois o que é para eles prova evidente de perdição,
é, para vós outros, de salvação, e isto da parte de Deus.
29Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo, e não somente de crerdes nele, 30pois tendes o
mesmo combate que vistes em mim e ainda agora ouvis
que é o meu.
2 'Se há, pois, alguma exortação em Cristo, alguma
consolação de amor, alguma comunhão do Espírito, se
há entranhados afetos e m isericórdias, 2com pletai a
m inha alegria de modo que penseis a m esm a coisa,
tenhais o mesmo amor, sejais unidos de alma, tendo o
mesmo sentimento. 3Nada façais por partidarism o, ou
vangloria, mas por hum ildade, considerando cada um
os outros superiores a si mesmo. 4Não tenha cada um em
vista o que é propriam ente seu, senão também cada qual
o que é dos outrós.

Até este ponto (1.27) em Filipenses, Paulo não tinha feito nenhum a
exortação (embora seja fácil notar que há nos versículos anteriores
numerosas exortações implícitas). Mas neste ponto, no v. 27, Paulo
parte para o corpo da epístola: começa a divulgar o verdadeiro
motivo de a estar escrevendo. O novo parágrafo começa com o
imperativo, “Vivei”, como se Paulo quisesse pedir a maior atenção
possível para o que está para dizer. “Acima de tudo” são palavras
que também chamam atenção para uma prioridade. Nos parágrafos
anteriores ele falava sobre si mesmo: Filipenses, em primeiro lugar,
é uma epístola autobiográfica. Mas agora ele deseja que seus amados
leitores dêem atenção especial ao que vai dizer. E quanto a nós,
será que estamos prontos para nos concentrarmos e esperarmos no
Senhor, a fim de receber dele uma mensagem particular através
desta porção im portante de sua Palavra?

118
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

Cidadãos de Roma e do céu


De início, o apóstolo faz referência à cidadania romana, o que todos
os fílipenses conheciam m uito bem. A frase “viver de modo digno”
traduz o original “viver como cidadão digno”. Paulo também estava
consciente de sua posição priv ileg iad a de cidadão rom ano.
Voltemo-nos para Atosl6.20 e 21. Vemos que o povo de Filipos ficou
revoltado com Paulo e Silas por eles perturbarem a paz, sem ao
menos pedir uma autorização. Visto ser Filipos colônia romana e
todos os seus habitantes cidadãos romanos por nascimento, espera­
vam que os estrangeiros como Paulo e Silas tratassem o povo com
todo o respeito devido aos que se consideravam conquistadores do
mundo. Então, para sentirmos o sabor da prim eira exortação de
Paulo, devemos traduzir a frase como: “Que sejais manifestações”,
ou que “sejais um modelo de cidadãos celestiais”. Parte daí nosso
título para este capítulo. Seus leitores, além de serem romanos,
eram cidadãos do céu habitando um lugar bastante terrestre
chamado Filipos, na Macedônia (que hoje é o norte da Grécia).
O que significa serm os participantes dessa com unidade
celestial, para nós que ainda não habitamos no céu? Se você é nas­
cido de novo, se você é uma nova criação, e se tem seu nome escrito
no Livro da Vida do Cordeiro, você realm ente pertence a uma
família celestial. É assim que a pessoa se torna cidadão do céu na
terra. Portanto, este parágrafo fala sobre estrangeiros num país que
não é seu próprio, entrando em conflito com os valores e cultura
estranhos aos seus.
Como é que se vive a vida celeste na esfera terrestre? Que
tipo de relacionamento comunitário deve-se m anter com o povo
celestial aqui, já que você não é o único cidadão do céu que vive na
terra? Qual será sua atitude para com os ataques m entirosos
daqueles que chegam a odiar os estrangeiros e que ficariam felizes
em vê-los voltar à sua pátria no céu? Pense na China onde os
estrangeiros antigamente eram considerados presa, e podiam ser
mortos livremente, onde ouviam por todo o lado o apelido “diabos
estrangeiros”. (Quando eu era criança, na Bolívia, nós os evan­
gélicos, freqüentemente éramos chamados de “diabos”.) Além do
mais, Paulo tinha algo muito específico a dizer sobre a obrigação
que temos de viver esta vida celestial como comunidade de Cristãos;
para dizei a verdade, ele tem mais a dizer sobre isso de que sobre
outras questões. Vejamos estes pontos pela ordem.

- 119-
E P ÍS T O L A S DA P R I S Ã O

Começando, o versículo 27 subentende esta advertência: Que


sua cidadania seja digna do país, terra da qual vocês vêm e do rei
ao qual servem. “Somos embaixadores de Cristo”, Paulo avisa aos
coríntios (2Co 5.20): Ora, se vocês são embaixadores e se são comu­
nidade composta de forasteiros e peregrinos que pertencem a outra
terra (cf. lPe 1.1,17), como devem viver? Paulo diz: “Ou indo ver
vocês, ou estando ausente, insisto em que fiquem firmes em um só
espírito”. Essa é sua prim eira exortação nesta epístola. Apela para
que os filipenses tom em posição e coloquem os pés no chão
firmemente em “um espírito”. Nesta tradução da Bíblia, a palavra
“espírito” está com letra minúscula. Entretanto, como o grego usa
maiúsculas para todas as letras, isto tanto pode se referir ao espírito
humano, como ao Espírito Santo. Parece bem provável que Paulo
se referisse ao Espírito Santo, a fonte de toda a unidade cristã. Em
Efésios, ele diz: “Vocês devem esforçar-se diligentem ente, com
entusiasmo, para preservarem a unidade do Espírito no vínculo da
paz” (Ef 4.3). Os cristãos se unem não porque falam um a mesma
língua, nem porque têm a mesma aparência, nem porque são possui­
dores da mesma cultura e comem o mesmo tipo de alimento. Pelo
contrário, a única coisa, até onde pude descobrir na Bíblia, que
realmente une os cristãos como comunidade m undial ou local é o
Espírito Santo. Visto que fomos batizados pelo Espírito Santo para
comunhão geral, um único corpo (ICo 12.13), agora temos a obri­
gação de m anter esta unidade e nos colocarmos juntos diante do
mundo. É impossível im aginar qual seria o tam anho e o calor da
igreja durante os últim os dois m il anos. É fácil supor que em
nenhuma parte do m undo haveria outra coisa a não ser uma comu­
nidade de cristãos onde poderiamos nos aceitar e apoiar m utua­
mente, onde quer que fôssemos. Contudo, porque nós os cristãos
não nos m antivem os unidos no Espírito e porque perm itim os
divisões por questões inúmeras e razões variadas, mesmo quando
afirmamos pertencer a um só Senhor de todos, vivemos indignos
de nossa cidadania celestial comum. Em vez de conservarmos a
unidade do Espírito, temos promovido a fragmentação e o divi-
sionismo por não concordarmos conjuntamente.

Lutando juntos peta fé


Filipos era um a cidade famosa também por ter recebido o nome de
Filipe, pai de Alexandre, o Grande. Filipe da Macedônia conquistou

- 120 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

a Grécia depois que aprendeu um princípio fundamental de batalha,


transm itido a Alexandre. Descobriu que conservando os soldados
de uma falange bem unidos, treinando-os a se moverem como um
só instrum ento de luta, pode-se vencer o inimigo. Primeiro Filipe,
e também depois Alexandre, a quem o pai convenceu, treinavam
as tropas a ficarem bem juntas e a lutarem com menos homens que
os adversários. Alexandre chegou a enfrentar três homens com um,
muitas vezes, e sempre seus exércitos venciam. Ganhou um império
vinte vezes maior que a Grécia, de onde partiu para as conquistas.
Não se perm itia nenhuma divisão na hora de se enfrentar o inimigo.
Com seus escudos enormes, os soldados avançavam ombro a ombro,
cortando caminho mesmo através do exército persa. Depois, os
homens de Alexandre se abriam em leque para acabar com o inimigo
dividido.
Paulo m andou esta epístola à igreja de Filipos porque a
desunião tinha prejudicado sua defesa conjunta contra o inimigo
comum. Não sabemos exatamente de onde surgiu a falta de união
que preocupa a Paulo. Mas sabemos que Paulo reconheceu a comu­
nhão quebrada e admoestou os filipenses, dizendo que para se
vencer esta batalha contra o m undo e contra o inimigo, é preciso
que todos os membros estejam “lutando juntos pela fé evangélica” (v.
27). “L utar” aqui representa a palavra grega que significa dispensar
todos os esforços na causa, como faz um atleta. Não visualiza uma
pessoa jogando sozinha, nem um a competição entre indivíduos,
como o arremesso de disco ou a disputa de um a corrida individual;
pelo contrário, Paulo visualiza um time, uma equipe, onde cada
jogador ou soldado tem um desempenho, contribuindo para um
esforço solidário, com a única meta de ver o time ou o exército
ganhar para Cristo. Assim, a união dos crentes na luta pela fé no
evangelho há de defender a igreja e promovê-la.
Toda igreja tem muito que aprender sobre como “lutar juntos
pela fé evangélica”. Deus deseja que tomemos consciência de que
se os cristãos vão mesmo ganhar o m undo para Cristo, não vão
fazê-lo por um esforço individual: é necessário um esforço solidário,
de equipe. A batalha que vencerá a Satanás e libertará os escravos
mantidos sob o seu poder há de ocorrer quando tivermos nos unido
em oração, e formado um a sociedade sacrificial com mensagem
penetrante que traga convicção e converta os hom ens a Cristo
eficientemente. Tanto as nações como as empresas sabem quão
pouco se pode fazer através de indivíduos dispersos. Mas quando

121 -
EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

organizam centenas ou milhares de pessoas num único propósito,


elas de repente se tornam uma força inestimável.

Mão intimidados
Por que o povo de Deus tem causado tão pouco impacto em nosso
mundo? Um motivo im portante é sua desunião e individualismo.
Que esta prim eira exortação de Paulo aos filipenses nos ensine isso,
convencendo os corações para pormos em prática essa decisão de
nos mantermos unidos no evangelho.
Em segundo lugar, negativamente, Paulo aponta o perigo que
os cristãos enfrentam , no versículo 28. Os cristãos perseguidos
correm o risco de se assustarem ou saírem em debanda quando o
inimigo lhes apresenta qualquer ameaça. Essa expressão faz-nos
imaginar um quadro cheio de cavalos excitáveis, que facilmente
entram em pânico. Há muitos anos atrás, antes dos dias em que as
rodas facilitavam a locomoção, como fazem hoje, m eu pai era
missionário na Bolívia e era dono de um cavalo chamado Príncipe,
que o levava às vilas remotas nas altas montanhas dos Andes. Aquele
cavalo era um perigo para qualquer pessoa, exceto meu pai. Só ele
podia aproximar-se do Príncipe, pegá-lo pela rédea e montá-lo
calmamente o dia todo. Conosco, o Príncipe pulava para frente ou
para trás e dava coices, rápido como relâmpago. Não que o Príncipe
tivesse raiva de nós, só tinha medo excessivo. O encorajam ento
que Paulo dá é para que não tenham os medo de coisa alguma.
Qualquer que seja a ameaça com que o inimigo consiga assaltar,
não tem a, C risto é m ais forte. N unca se in tim id e dian te do
adversário, pois Cristo ganhará a batalha por você.
Os filipenses deviam tam bém lembrar-se que a oposição ao
evangelho, a oposição perseguidora, evidencia claramente o destino
final daqueles que m ostraram os crentes (v. 28). Os que tanto
desejam fazer sofrer os cristãos são assinalados pela marca da des­
truição, enquanto que os crentes, quando perseguidos, revelam que
são recipientes da salvação, e que isso vem de D eus. Sofrer
perseguição por causa de Jesus Cristo, sem voltar-lhe as costas,
confirma sua fé nele e é um sinal seguro de que você está no seu
caminho para o céu. Norm alm ente os cristãos que são perseguidos
têm certeza de sua salvação.
Paulo chega ao ponto de declarar que sofrer por Cristo se
constitui num privilégio (v. 29). Aqui a palavra chave é graça, signi­

- 122-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS FIL1PENSES

ficando o favor de Deus. Você sabe que se já sofreu oposição por


causa de sua entrega a Jesus Cristo, então Deus já derramou a sua
graça sobre você? Fazendo comparação com a moral humana, temos
as palavras que Ernest Emingway escreveu: “Quanto à moral, eu sei
que a única coisa moral é aquela que me permite sentir bem depois
que a faço”. Todos concordamos que isso nada tem a ver com o
cristianismo. Ao contrário, se você defende a verdade e o direito por
causa de sua fé em Jesus Cristo, pela graça de Deus é que você tem o
privilégio de fazê-lo. Deus não lhe dá apenas a graça de receber a
salvação, dá-lhe também a graça de sofrer por ele. E mais tarde, no
capítulo 3, Paulo encontra no sofrimento a graça que traz benefício
a toda nossa constituição espiritual e moral (3.10). Então, nós que
temos sofrido muito pouco pela causa de Cristo, caminhando pela
estrada mais fácil possível, deixamos de experimentar algo de grande
importância no cristianismo. E Paulo diz que é pela graça de Deus
que lhe é permitido sofrer por amor a Cristo.
Portanto, foi assim que Paulo descreveu a m aneira pela qual
devem viver os cidadãos celestes. Devem ser unidos. Devem ter
seus pés bem firmados nesta unidade. Devem ser de um só pensa­
mento enquanto lutam juntos contra seus adversários. E precisam
ser conscientes de que Deus tem sido gracioso para com eles de
duas maneiras: uma, em dar-lhes a promessa do céu; a outra, em
dar-lhes adversários para que batalhem contra eles. Você consegue
im aginar estar treinando futebol ou basquete com um ótimo trei­
nador, mas sem nunca ter adversários para jogar um a partida a
sério? Não é o que deve acontecer com o cristianismo. Para Paulo,
pelo menos os filipenses são cidadãos celestes que formam um time
para lutar pela vitória por Jesus Cristo. E toda a glória lhe é devida.

Elementos fundamentais na unidade cristã


Agora vamos ao segundo capítulo. Inicialmente, o apóstolo apre­
senta quatro atitudes essenciais ou fundam entais necessárias para
se chegar à vitória por Cristo (veja v. 1). A igreja, unida como um
exército m obilizado sobre esses quatro fundam entos, estará
preparada para lutar em prol da boa causa de Cristo e pode esperar
derrotar os inimigos. O prim eiro fundam ento é “a exortação em
Cristo”, introduzida por “Se há, pois”. O melhor modo de traduzir
esta frase não é com a palavra “se” mas com “visto que”. “Visto que
há a exortação, o encorajamento de Cristo” com que podemos contar,

123 -
EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

a igreja não deve se desanim ar na batalha contra o mal. A palavra


grega para encorajamento (paraclêsis) inclui o sentido de exortação,
apelo e estím ulo à ação. Jesus deu ao E spírito Santo o nome
“Paracletos”, referindo-se a este m inistério de encorajar a igreja
(cf. Jo 14.16,26; 15.26; 16.7). O segundo fundam ento se refere à
consolação do amor de Deus, “Visto que há consolação de amor”. E
então Paulo acrescenta, “Visto que há comunhão do Espírito” uma
koinonia ou participação no Espírito, e finalmente, “Visto que há
entranhados afetos e misericórdias”, uma afeição emocional profunda
e uma simpatia, então podemos realizar o que Paulo está pedindo.
Agora vejamos esses fatores essenciais de união para ver como
nos afetam pessoalmente. Primeiro de tudo paraclêsis pode referir-se
à pessoa que fica junto de você para observar suas ações e fortalecer
sua decisão. Como professor que observa o principiante que escreve
as respostas na prova, ele avalia o cristão durante o seu progresso.
Podemos im aginar que o professor diga: “E, não está bem certo.
Você está chegando lá. Tente de novo. Não desanime”. Nosso Senhor
tanto nos encoraja como nos corrige. Enquanto observa como você
está tomando as decisões e lidando com crises, ele também o está
ajudando a m elhorar durante todo o percurso.
Jesus Cristo assegurou aos discípulos, “Eis que estou convosco
todos os dias até a consumação do século” (Mt 28.20) para que ele
pudesse atuar como o “paracleto” da igreja, assim como faz o Espírito
Santo, animando-nos em Cristo. Ora, nossa vida cristã m uitas vezes
é desencorajadora. Alguns de vocês pode ter mais de cem razões
diferentes para estarem desalentados em sua vida de cristão. Talvez,
um dos motivos seja a impressão de terem feito pouco progresso
ultimam ente no seu cam inhar com Cristo. Quem sabe você tenha
alcançado um certo nível há dez anos atrás, ali se acomodou, e não
consegue despertar o desejo de passar adiante, mais para o alto.
Não está trabalhando mais para a causa de Cristo. Não sente maior
alegria em sua presença, nem faz oração com mais confiança nele
do que antigamente, portanto sente que o alvo de crescer na seme­
lhança de Cristo está tão longe hoje como há anos atrás. O que se
deve procurar quando se está parado num só nível, desta forma? A
resposta pode ser descoberta no encorajamento de Cristo. Volte-se
para o Salvador, diga-lhe tudo que sente, na avaliação mais honesta
possível; confesse o pecado do comodismo, arrependa-se e peça ao
Senhor: “Agora, ó Senhor, anima-me! Alenta-me pelo teu Espírito,
dá-me o encorajam ento por quaisquer meios que sabes serem

- 124 -
E PÍST O LA DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

melhores para mim ”. Se você acha que sua vida cristã está parada
em um só nível, dedique algum tempo para receber novamente o
encorajamento de Jesus Cristo.
A segunda frase se refere à “consolação de amor”: Creio que
esta pode ser uma parte de uma passagem trinitariana, embora se
omita a palavra “D eus”. A palavra “consolação” tem aqui o valor
de estímulo, de um empurrãozinho por trás. O sentido está bem
ligado ao “encorajamento” que retrata chegar ao lado de alguém e
tomar a mão da pessoa. O amor faz isso: dá ao cristão que sofre de
letargia, um impulso para a frente.
Se Paulo estava pensando na trindade, deixou de usar a
palavra “D eus”, mas pode bem ser que estivesse focalizando o
encorajamento de Cristo, o amor de Deus, e a participação no
Espírito. A trindade aparece em várias passagens do Novo Testa­
mento em ordens diversas. Portanto, acredito que é o amor de Deus
que deve ser o nosso incentivo.
Foi esse mesmo amor divino que motivou a humilhação de
Cristo, como veremos nos v. 5-8 a seguir. Foi o amor de Deus por
nós que, tão intenso, fez com que ele desse seu Filho para m orrer
por nós a fim de que não perecéssemos, mas nos deleitássemos
eternamente na glória de sua presença. Por causa do amor de Deus,
somos levados a cultuá-lo, honrá-lo e servi-lo incessantemente. Tão
grande assim é o incentivo do amor de D eus concretizado no
Calvário, que também nos impulsiona à frente, para sermos re­
cebidos em seus braços acolhedores. Foi amor dessa natureza que
acolheu o filho pródigo quando o pai o abraçou e o beijou, dizendo:
“Você estava perdido mas agora foi achado. Que alegria tê-lo de
volta”. É um incentivo dessa natureza que foi criado pelo amor de
Deus. Que seu infinito amor por você possa motivá-lo a chegar-se
aos seus braços abertos, se você ainda não voltou para o lar do Pai.
A frase seguinte é a “comunhão do Espírito”. Participar da
comunhão significa sair do individualismo para criar uma vida em
comum. Esse mutualismo é produto da vida do Espírito em nós. É
claro que o Espírito já entrou em com unhão conosco quando
escolheu morar em nós. Porém, somos convidados a dar um passo
à frente ativamente, para viver continuamente com ele, buscando
uma comunhão mais íntim a com o Espírito. Lembre-se também
que o Espírito oferece aos homens espirituais o privilégio de ver
coisas que o mundo não pode ver, ouvir coisas que ninguém antes
ouviu (ICo 2.9). Realidades espirituais assim são impossíveis de se

- 125 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

comunicar ao coração que não é regenerado. As pessoas que estão


sendo chamadas à comunhão com o Espírito, participam, ao mesmo
tempo, de um m undo celeste e de um m undo terrestre. E quase
como se você pudesse chegar em sua casa, e afastando-se de todo o
caos e maldade do mundo, alegrar-se na comunhão com Deus como
nosso Pai. É essa participação no Espírito que torna real nossa união
espiritual com Deus. O Espírito Santo nos fornece uma ponte entre
o céu e a terra, para que possamos viver como cidadãos celestiais
(1.27) neste mundo, em comunhão com o Espírito.
E finalmente, Paulo se refere ao elemento essencial de ligação,
algo que nos é muito natural chamado de “entranhados afetos e mise­
ricórdias”. Creio que ele está pensando no amor caloroso que os
filipenses tinham por ele, e no seu próprio afeto pela amada igreja
da Macadônia. Esses cristãos, por causa de seu afeto, com toda
certeza sentiam grande compaixão e se preocupavam por Paulo na
prisão. E este, reciprocamente, tinha grande amor por eles. Depois
de ter apresentado esses quatro fundam entos da unidade cristã,
Paulo começa a exortar a igreja quanto a essa unidade: “Completai a
minha alegria de modo que penseis a mesma coisa”. O apóstolo se preo­
cupava muito com que os filipenses tivessem um só pensamento,
uma mente unida. Nem a diversidade de instrução, em culturas
diferentes vêm ao caso. A palavra é igual à do versículo 5, que descreve
a mente de Cristo. Uma tradução pouco adequada para o grego
phroneõ seria o termo “atitude”. Um amor em comum e uma apre­
ciação das mesmas coisas une pessoas diferentes, com origens,
experiências e culturas distintas. Até mesmo um a família póde
apresentar diversidade profunda na personalidade e nos interesses,
mas se cada um dos membros realmente ama aos outros, eles têm
uma só mente. Existe um só pensamento porque sua atitude é sempre
favorável a cada pessoa da família. Cada membro apóia e defende os
outros mutuamente. Assim, portanto, Paulo anima os filipenses a
desenvolverem e demonstrarem tal atitude, uns para com os outros.
O apoio e encorajamento mútuo é de suma importância para que os
cristãos tenham ambiente em que cresçam no Senhor.
Embora alguns de vocês estejam freqüentando uma igreja
há muito tempo, talvez não tenham sentido o apoio mútuo e a preo­
cupação de uns pelos outros que todo cristão precisa sentir. É uma
falha séria de nossa parte. Paulo utiliza outra palavra nesta passagem
que descreve o relacionamento que se formou entre Jônatas e Davi.
Suas almas “se ligaram”, segundo 1Samuel 18.1. Isso deve significar
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

que se alguém feria a alma de Jônatas estava machucando também a


alma de Davi. Ou se Davi era abençoado ou encorajado, o mesmo
ocorria com a alma de Jônatas. Paulo usa uma palavra que ele pode
ter criado, um neologismo — “almar-se juntos” — com referência à
espécie de unidade na qual as personalidades se unem em uma só.
Quando isso acontece, há alegria no céu, bem como na prisão de
Paulo. Ele já estava se regozijando no Senhor, mas ter notícia da
unidade espiritual dos filipenses haveria de completar sua alegria
(v. 2, grego “plerosate”, significando “cum prir”, “encher até à borda”).
Em seguida, Paulo estimula os leitores a completarem sua
alegria demonstrando-lhe o “mesmo sentimento” ou “mesmo amor” (v.
2). Você pode perguntar o que vem a ser esse “mesmo amor”. Deve
ser, naturalmente, o mesmo amor que Deus tem. Deus derramou
seu amor em nossos corações através de sua dádiva do Espírito Santo
(Rm 5.5), de maneira que possamos amar pessoas que normalmente
não se importariam conosco em absoluto. Aparentemente nada têm
a contribuir para nós, mas o amor de Deus torna possível os cristãos
reconhecerem nele um irmão de valor infinito. É assim que se
demonstra o mesmo amor que Deus revela. Paulo tinha essa espécie
de amor divino para com os filipenses.
Em terceiro lugar, o apóstolo exorta a igreja a ser ligada em
unidade de alma (gr. sumpsuchoi, “almas juntas”). E em quarto lugar,
ele insiste que aqueles cristãos pensem como um só, para que sejam
unidos no pensamento, no coração e no Espírito (v. 2b).

Conseguindo unidade na igreja


A questão que precisamos examinar agora é: como será que
uma igreja consegue essa unidade? Reconhecemos que não a temos.
Os filipenses não a tinham , por isso Paulo expressou este desejo
profundo por eles. Quero sugerir que, de acordo com o versículo 3,
todos precisam os agir de uma certa m aneira. Todas as ações
precisam ser altruísticas, feitas com a intenção de beneficiar a todos.
Nada deve ser feito por egoísmo. Nosso principal adversário não é
o diabo mas nosso velho ego, interessado em si mesmo. Que vontade
temos de sair por cima, salientar-nos, aparecer! Alegramo-nos com
a unidade, contanto que eu seja um pouco “mais igual” do que os
outros. Alguns de vocês já devem ter lido Revolução dos Bichos de
George Orwell. O problema principal que os animais não podiam
resolver foi o desejo dos porcos de serem “mais iguais” que os

- 127-
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

demais. Ou então, pense em como você se sente quando é despre­


zado um pouco, quando você é rebaixado por algum comentário
feito por alguém. Nossa reação reflete aquele velho ego que mais
uma vez está procurando prim eira posição. Isto representa a fonte
de todas as divisões e os problemas que temos ao tentarm os viver
juntos em união.
Se podemos eliminar o egoísmo e as rivalidades, bem como a
vangloria (o segundo vocábulo do v. 3), absorvendo a mente de Cristo,
então poderemos com toda a humildade considerar os outros me­
lhores que nós mesmos. Observemos esta frase tão cuidadosamente
composta. Se você está conseguindo viver de acordo com esta exor­
tação em particular, você está bem perto do que podemos chamar de
cerne da santidade, e já se achegou ao coração de Deus. Saber ser
humilde é um desafio bastante grande em si. No Novo Testamento,
pela primeira vez na história, ser humilde, no sentido de considerar
os outros melhores do que você mesmo, é valorizado como virtude.
Antes disso, hum ilhar-se significava rebaixar-se, uma qualidade
desprezada. O orgulho e amor próprio eram virtudes. E ainda hoje,
será que não é o amor próprio que transparece na maioria das pessoas
que se dedicam à política? Isso não explicaria quase toda a propa­
ganda? Não é ele que fundam enta qualquer progresso feito no
mundo? Pois não é fácil aceitar uma opinião contrária e dizer: “Você
é melhor. Tome você o melhor lugar e eu fico com a segunda posição”.
“Humilhai-vos na presença de Deus” (Tg4.10) significa uma hum il­
dade ativa, decisiva. Não significa que você deva pensar em si com
complexo de inferioridade. Antes, Paulo se refere a uma maneira de
agir, ou de tratar o próximo. Em lPe 5.6, Deus promete que aqueles
que se humilham debaixo da soberana mão de Deus, descobrirão
que Deus os exaltará no seu tempo certo (Lc 14.11). Pois você desco­
brirá que o poder de Deus está fluindo através de sua vida produzindo
estas mesmas características que hão de aumentar a alegria no céu, e
também na terra.
Enquanto que o versículo 3 dá ênfase a uma hum ildade deci­
siva e ativa, o versículo 4 aplica o altruísmo a uma preocupação
positiva pelas necessidades e aspirações de um irmão. Não devemos
procurar o que é vantajoso para nós pessoalmente, mas tentar sem­
pre olhar qualquer questão relacionando-a ao outro, pensando no
que seria vantajoso para ele, e então agir de acordo. Essa hum ildade
e altruísmo produzem na igreja condições para que se possa desen­
volver o mesmo pensamento, o mesmo amor, estar de pleno acordo

■- 128 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

e de mente unida. São as quatro características essenciais para uma


igreja ser um povo santo de Deus num ambiente mundano.

Conclusão
Eis a palavra do Senhor para nós hoje. E agora, como vamos pô-la
em prática? O que vamos resolver? Em Cristo e sua- salvação ele
nos ofereceu a perfeita unidade do céu. Se um de nós receber o
chamado para ir ao lar da glória, há de experimentar a mais perfeita
comunhão pessoal, na mais excelente comunidade possível. Será
muito m elhor do que qualquer um de nós pode imaginar. Como
não haverá pecado nem egoísmo, não haverá competição, ou rivali­
dades políticas. Não haverá desacordo, todos terão a mesma mente
e o mesmo amor. Deus nos diz nesta passagem: “Olhem, quero que
vivam essa vida celeste aqui na terra o tempo todo. Vivam-na em
casa, com a esposa, e ela com o cabeça da casa. Dêem sempre qual­
quer vantagem à outra pessoa. Estejam realmente preocupados com
a outra pessoa em prim eiro lugar. Em vez de ser o número um, dê
este lugar ao outro”.
Que prazer há em encontrar a palavra exata na ocasião exata!
E esta ocasião exata, veja bem, é aquela em que, habitualm ente,
buscamos a vantagem de nosso irmão ou irmã mesmo quando signi­
fica nossa própria desvantagem. O que importa? Por fim, a vantagem
eterna é a glória de Deus e sua missão de ser embaixador da vida
celeste aqui na terra. Você pode discordar desse tipo de vida
abnegada. Os filósofos e pensadores gregos discordaram. Você só
vai concordar com esta vida quando conhecer Jesus Cristo interna­
m ente. Se você o conhece pessoalm ente, se ele entrou em seu
coração e no seu viver, então creio que concorda comigo em que
essas palavras são mesmo celestiais, e vale a pena viver e lutar para
a glória de Deus.

0 centro da história ( 2 .5 - 1 1 )
5Tende em vós o mesmo sentim ento que houve
também em Cristo Jesus, 6pois ele, subsistindo em forma
de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus;
7antes a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de
servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhe­
cido em figura hum ana, 8a si mesmo se hum ilhou, tor­
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

nando-se obediente até à morte, e morte de cruz. 9Pelo


que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o
nome que está acima de todo nome, 10para que ao nome
de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e de­
baixo da terra, ne toda língua confesse que Jesus Cristo
é Senhor, para glória de Deus Pai.

Introdução
Os primeiros quatro versículos do segundo capítulo de Filipenses
foram escritos para incentivar a igreja a viver sua fé cristã sob o
impacto total do ministério da Trindade: o encorajamento de Cristo,
a participação do Espírito, e o amor de Deus. Paulo conclui esse
trecho, dedicado à unidade da igreja filipense, apresentando o
exemplo comovente de Jesus, nosso Senhor, durante seu ministério,
seguido de sua gloriosa exaltação.
Já faz alguns séculos que os pensadores vêm procurando a
chave para a explicação de toda a história. Para alguns homens
como Camus ou Jean Paul Sartre, é óbvio que a história não tem
sentido nenhum. As peças teatrais de Samuel Beckett expressam
esse ponto de vista — que tudo que ocorre, acontece inteiram ente
por acaso. E visto que não há sentido na história, não há nenhum
enredo. E como o enredo de um dicionário. Já ouviu contar da
pessoa que parou de ler o dicionário, porque não dava para pegar o
fio da história? Era apenas um a porção de palavras, definições,
idéias desconexas, isoladas. Jean Paul Sartre e os existencialistas
modernos que o acompanham, negam o controle soberano de Deus
sobre a história e m antém um a visão sem elhante dos eventos
históricos. Não se descobre neles nen h u m propósito interno
relacionador nem um plano mestre, nem sequer algo comparável à
ordem alfabética que se impõe ao dicionário. Essa visão desespera-
dora da história contrasta-se com o ponto de vista dos gregos da
antigüidade, tais como Heródoto e outros historiadores que viveram
antes de Cristo. Observavam o cenário que passava, os eventos que
pareciam significativos, e imaginavam ver um traçado, uma confi­
guração. Não tinham a capacidade de explicar por que aquela
configuração se faz presente na história, mas viam que m isterio­
samente ela correlaciona e integra certos eventos em um todo. Para
os gregos, a história era como uma roda que gira. E aquelas nações
afortunadas que estivessem do lado de cima por um tempo, veriam

- 130
E PÍST O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

suas posições invertidas no futuro. A roda da sorte inevitavelmente


retornaria à posição inicial. Seriam assim os choques da história.
Por exemplo, o grande império persa oprim iu a Grécia no século 5
a.C., mas foi subjugado depois por Alexandre, o Grande, que atra­
vessou o Helesponto para dar à roda da história outro impulso de
180°, colocando a Grécia em cima. Esperava-se que mais tarde a
Grécia experimentaria decadência, e o domínio passaria para outra
potência, como Roma. Os historiadores e os filósofos da história
têm tentado explicar o processo histórico m ediante a teoria dos
giros da roda da história, em ciclos.
Nem os escritores bíblicos, nem os cristãos acreditam nisso.
Não concordam com os filósofos existencialistas modernos angustiados
que crêem que não há sentido na história, nem pensam como os
filósofos gregos que crêem que a história seja circular. Antes, a história
tem para eles um significado, por causa da revelação e da profecia de
Deus, um sentido que é como um fio que se estende desde o começo
(criação do homem) até a conclusão predita no livro de Apocalipse. A
história pode ser comparada a uma viagem que se faz, ou um conto
que se conta. Uma estória tem um começo: “era uma vez”, e tem um
final: “viveram felizes para sempre”. Mas o sentido deve ser encontrado
em algum lugar no enredo. Da mesma maneira, o sentido de uma
viagem se encontra na sua finalidade e destino. Só viagens de férias,
sem destino, podem se tornar sem sentido.

0 sentido central da história


A passagem que acabamos de ler, na opinião de alguns estudiosos,
foi originalmente um hino cristão escrito na língua aramaica (a
língua m aterna de Jesus). Quando trad u zid a de volta para o
aramaico, parece poesia. É fácil de separá-la em estrofes.
Essa pequena divisão de Filipenses capítulo dois, versículos
seis a onze, apresenta-nos o enredo, a tram a central da história. É o
ponto explanatório do drama da história. Podemos observar que a
chava da própria tram a é a palavra “cruz”. Assim como a cruz tem
bem no seu centro; um ponto onde se cruzam as traves transversal
e vertical, assim também no centro do drama da história, exata­
mente no centro, está a cruz de Jesus Cristo.
Do alto da cruz, no Gólgota, Jesus proclamou: “Está con­
sumado,” está acabado (Jo 19.30). Foi atingido o clímax, e daquele
ponto em diante, todos os eventos iriam contribuir para o desfecho

- 131
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

positivo que Deus propôs desde o princípio para a história que


está se aproxim ando do fim. O ato final está sendo encerrado.
Espera-se a conclusão com um a explosão de luz e brilho que há de
irromper sobre um m undo descrente e desesperador.
Ora, o mistério da história hum ana, da qual todos partici­
pamos, explica-se por dois fatores opostos, dos quais estamos todos
cientes. Cada um de nós participa destes dois fatores opostos.
Primeiro, o fator chave do qual todos estamos tão apercebidos: o
egoísmo. Em cem por cento dos divórcios, se fôssemos ouvir a
narração da causa por que Joãozinho e M aria não podem mais viver
juntos, descobririamos que tanto um como o outro não passam de
criaturas egoístas. Se você quiser entender porque o m undo tem
sido arruinado por guerra, assolação, banditismo, pirataria, roubo,
ferimento, luta, injustiça, crítica e ciúme, vai descobrir que a causa
fundamental se explica por esse único fator, pois a característica do
homem decaído é o egocentrismo. Os historiadores escrevem sobre
as guerras da história, porém geralm ente não contam por que
Alexandre, o Grande queria conquistar um império, a ponto de
mobilizar seu exército e treiná-lo até que fosse o melhor do mundo.
Não é comum os escritores explicarem porque suas tropas se
dispuseram a arriscar a vida, suportando dificuldades para conquistar
a Pérsia; ou porque os romanos fizeram tantas guerras civis, lutando
com denodo e sacrifícios incríveis, até finalmente dominarem grande
parte do mundo civilizado da época. Toda a bacia do Mediterrâneo
tornou-se um m ar romano. Por que será, também, que Hitler uniu a
Alemanha sob ditadura? Havemos de descobrir que a resposta está
nestes elementos universais, o egoísmo e o orgulho.
Mas existe no m undo um fator oposto, que deseja o amor, a
paz, a alegria, a generosidade, a bondade, e todo o fruto do Espírito
(G1 5.22,23). As pessoas que não têm nenhum compromisso com o
cristianismo também estão envolvidos no sustento de orfanatos,
em contribuição para asilos e mil outras causas filantrópicas dignas.
Recebi uma carta, há pouco tempo, escrita por Dr. J. Andrew
Kirk, em Londres. Ele analisava a teologia e a economia, uma tarefa
considerável. Dizia: “Não gosto da economia capitalista, princi­
palmente do tipo clássico. Por que? Por ser egoísta. Mas não gosto
da m arxista, porque também é egoísta”. Onde estará o sistema
econômico que realmente há de controlar o egoísmo e desejar a
prosperidade de todo em preendim ento benéfico com o homem
vivendo em paz e com a generosidade hum ana fluindo como o rio

132-
EPÍSTOLA DE P A U L O AOS F I L IP E N S E S

Amazonas, inundando as terras? A única m aneira para que isto


aconteça é o recebimento, pelo homem, de mente nova ou atitude
nova. Há várias traduções que tomam esta palavra “sentimento”
(gr. phronêma), no versículo 5, como “obter uma nova atitude”. A
falta dessa nova atitude é que nos faz orgulhosos e egoístas. 1J uma
disposição mental, um egocentrismo, onde tudo se interpreta, se
entende e se explica em termos de “eu e meu”. F. B. Meyer chamou-o
de “doença” de proporções epidêmicas, por ser tão predominante,
não somente fora, mas também dentro da igreja. Deu a essa doença
o nome de “Me-ísmo”. E claro que o problema não é recente. Conta­
minou os filipenses também. Duvido que qualquer pesquisa médica
tenha encontrado, ou encontrará uma cura para este mal. Você,
com toda a experiência de vida como esposo ou esposa, ou como
educador de seus filhos, já encontrou um antídoto para o “me-ísmo”
ou uma forma de obter essa disposição mental, a mente do próprio
Jesus Cristo? A verdade é que todos reconhecemos que esse é o tipo
de m ente que precisamos, porém poucos entre nós, ou mesmo
ninguém, conseguimos adquirir. “Tenham em vocês (ou entre vocês)
a atitude de Cristo Jesus.” (O grego não faz distinção entre as pala­
vras “em” e “entre”.) Esta disposição de mente controla seu modo
de tratar e de pensar sobre a outra pessoa. Por isso a Escritura ordena
que adquiramos o ponto de vista de Jesus.
Para que aprendam os o sentido desta expressão, Paulo
prossegue nos dizendo o que é essa atitude mental, e ilustra como
isso produz efeito nas ações. Se adquirirmos a atitude de Cristo, ou
a sua m aneira de pensar, caminharemos na direção do que a Bíblia
cham a de “santificação”. Exam inem os o que Paulo escreveu.
Prim eiram ente, fala de uma verdade básica com respeito à pessoa
de Jesus. E im portante, porque a realidade sobre a sua pessoa torna
claro os seus direitos. Ninguém pode ser egoísta se não tiver di­
reitos. A lei do direito hum ano individual, adotada pela Cons­
tituição Americana e por outras após a Revolução Francesa, tem
suas raízes históricas no início da democracia britânica com a “Carta
M agna” inglesa; e, antes disso, nas cidades-estados da democracia
grega onde os antigos filósofos ensinavam que todos os cidadãos
possuíam certos direitos inalienáveis. Porém ninguém jamais teve
os tipos de direitos que Jesus tinha. “Pois ele, subsistindo em forma
de D eus”, significa que participou da natureza de Deus, compar­
tilhou da Deidade plena da Divindade. Ele tinha todos os direitos
imagináveis. E impossível pensar em um só direito divino que Jesus

133 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

não possuísse. É óbvio que ele tinha o direito de ser obedecido.


Possuía o direito de ser respeitado, glorificado e honrado. Tinha
direito à riqueza do universo, pois a criou, como Agente do Pai (Jo
1.3; Cl 1.16; Hb 1.2). Não precisamos aum entar a lista, pois tinha
todos os direitos por causa de sua divindade. Consideremos a frase
do versículo 6, “forma de Deus”. “Form a” é palavra grega, que signi­
fica a realidade contrastada com o desenho ou a figura externa visí­
vel. Não se pode descrever uma pessoa apenas por uma fotografia,
e dizer que lá está tal pessoa. Não. A pessoa está no interior, mas
revela-se externamente. Se quer conhecer alguém, não basta olhar
a pessoa. Antes, considere como é sua personalidade, como se
expressa, e conclua então como ele é na verdade. Jesus Cristo é a
própria expressão de Deus vivida na expressão hum ana ou encar­
nada. Como se afirma em Hebreus, Jesus é a perfeita manifestação
do ser de Deus (1.3).
O apóstolo João fala de Jesus como aquele que “fez a exegese”
de Deus (Jo 1.18). Exegese é uma palavra grega que significa “trazer
para fora’. Então a realidade, ou o ser de D eus, m anifestou-se
hum ana e corporalmente em Jesus Cristo. Ele, sendo Deus, e nesta
forma, incluindo todos seus atributos, todo seu amor, toda sua graça,
todo seu poder, toda sua onipotência, viveu na terra como Jesus.
Entretanto, a questão que estamos examinando é: como era sua
mente? Teria sido uma mente adâmica, se Jesus de Nazaré fosse
apenas humano. Paulo, ou quem quer que tenha escrito este antigo
hino (se for mesmo um hino) deve ter pensado em Adão, de quem
herdamos nossa natureza hum ana egoísta. Adão também foi criado
à imagem e semelhança, ou mesmo, na forma de Deus.
As palavras “imagem” e “forma” são semelhantes em sentido.
Adão foi criado com muitas das características de Deus; tinha uma
mente inteligente e criativa, tinha o desejo e a capacidade de gover­
nar as pessoas e as coisas. Deus mandou que governasse e dominasse
este mundo. Devia possuir a terra e usá-la, fazendo com que servisse
aos seus interesses e necessidades para a glória de Deus. Adão devia
louvar e agradecer a D eus por isso, em bora realm ente fosse
mordomo ou adm inistrador de Deus. E somente um a coisa, de todo
este universo, foi proibida aos nossos primeiros pais. Deus não disse
que não poderíam tocar a árvore do conhecimento do bem e do
mal. Talvez pudessem até cultivá-la. Mas Adão e Eva foram tentados
pelo Diabo. O tentador prometeu que se tornariam “como Deus”
(Geri. 3.5). Adão e Eva, quem sabe, pensaram assim: “Fomos feitos

- 1 3 4 -
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

como Deus, não fomos? Fomos criados à sua imagem e semelhança,


mas não somos realmente como ele. Existe uma árvore da qual não
temos o direito de comer. D eus está lim itando nossos direitos
humanos, os está sufocando”. E m orderam a fruta para que pudes­
sem ser iguais a Deus, e exercer todos os seus direitos. O homem
tem feito a mesma coisa desde aquele tempo. A prim eira meta que
o homem estabeleceu foi igualdade com Deus, supondo que não a
tivesse, e que Deus não lhe dava suficiente atenção em tudo aquilo
que necessitava ou podería apreciar.
Jesus Cristo, porém, não considerou sua igualdade com Deus
como alguma coisa da qual não podería abrir mão. De boa vontade,
desistiu de sua semelhança com Deus, aparente, externa, e assumiu
a forma de um escravo. Assim, o texto diz: “A si mesmo se-esvaziou ”.
A m ente de Cristo significa mais do que o modo de pensar de uma
pessoa; é o controle da sua vontade. O Filho de Deus decidiu:
“Deixarei de ser como Deus, visivelmente honrado e servido por
miríades de anjos. Assumirei a forma de vida hum ana, nascido como
bebê, vivendo na terra”. Ele sabia exatamente como seria, pois era
onisciente. Seu “esvaziar” transformou sua existência da forma de
Deus em simples condição de escravo na terra. Este é o único caso
de total autonegação e sacrifício completo em toda a história. É o
modelo perfeito daquilo que Deus pede a todo homem quando exige
autonegação para que se torne discípulo de Jesus Cristo (Mc 8.34).
O pronome “si” é m uito im portante aqui, porque esvaziar-se
significa que você não terá mais o m aldito egocentrismo em si.
Entregando-se, você deixa de se am ar de m aneira pecaminosa e
egoísta, e abre a porta para receber a m ente de Cristo. Vemos que
em Lucas 9.23-25 e em outros trechos das Escrituras somos adver­
tidos contra o amor próprio, para nos salvarmos a nós mesmos. Foi
exatamente isso que Jesus demonstrou pelo seu exemplo. Por amor
a nós, ele Se esvaziou, não para Se salvar, mas para que nós fôsse­
mos salvos. Por Paulo ter empregado o termo “escravo” (doulos),
alguns estudiosos acham que ele pensava no “Servo Sofredor” de
Isaías (ver Is. 53.12). A palavra “esvaziou” (derramou) encontra-se
lá (não há a mesma palavra na Septuaginta, a tradução grega do
AT). O “Servo” mencionado em Isaías 53.12 deveria derram ar a
sua alma. E, no Novo Testamento, notamos que as palavras “alma”
e “si” são às vezes equivalentes (conf. Lc 9.23-25 nas traduções
onde se lê “perder a sua alma”). Aqui encontramos uma sugestão
de como obter a mente de Cristo. É quando perm itim os à alma, à

- 135 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

sua própria vida representada pelo nosso egoísmo, ser esvaziada


até a morte, até o fim. Paulo chamou alguns cristãos de Corinto de
“homens almados” (traduzido por “naturais”, “carnais”, ICo 2.14,
3.1,3). Você não deseja derram ar sua alma para dar lugar a nova
vida do Espírito de Deus? Jesus derramou sua alma completamente
até a morte Jesus convidou as multidões interessadas e curiosas a
lhe seguirem e se tornarem seus discípulos. O que isto compreendia?
Ele explicou que seria negar-se, ou derram ar sua alma (Lc 14.26:
“aborrecer a sua própria vida”), tomar a sua cruz, e estar disposto a
morrer por ele (conf. Mt 16.24-26). O discipulado significa aprender
de Cristo, segui-lo, fazer o que ele fazia, escutar, obedecer às suas
palavras (conf. 1 Pedro 2.21). Em conseqüência, você obterá a
atitude de Cristo.
Já vimos que Cristo se “esvaziou” quando veio a esta terra
na forma de escravo. Qual é a forma, ou a realidade interior de um
escravo? Obviamente, não significa apenas sua m aneira de agir,
mas diz respeito especialmente ao coração e à alma do escravo.
Quem tem coração de escravo não pode nunca sentir-se insultado
ou magoado quando seus direitos são retirados. Sua alma de escravo
não guarda direito algum, visto que ele já pertence inteiram ente a
outra pessoa. Assim, Jesus tinha a “forma” de servo, a consciência
em si de ser um escravo submisso. Recordemos que Jesus foi ator­
mentado pelos soldados romanos no Lithostrotum (que os turistas
atualmente podem ver em Jerusalém) onde os soldados jogavam
seus jogos com ossos. Em nossa Bíblia é chamado de Pavimento (Jo
19.13), uma descoberta realmente interessante dos arqueólogos.
E nquanto os soldados espancavam Jesus, insistiam para que
apontasse quem lhe batia (embora estivesse vendado), já que na
opinião popular, ele era um mágico. Jesus, com todo seu poder
divino, poderia ter respondido com força suficiente para deter o
desrespeito. Também não lhe seria problema cegar os perseguidores,
como fez Elizeu (2 Reis 6.18-23). Mas, como estamos vendo, tendo
o coração de escravo, ele não podia fazer isso. Sua atitude mental
fê-lo escolher sofrer tais insultos imerecidos. Aceitou prazeiro-
samente esse tratam ento, e até mesmo pediu ao seu Pai, depois de
pregado na cruz, que aqueles soldados e todos conspiradores da
sua morte pudessem ser perdoados.
Essa é a única atitude mental que pode fazer com que uma
igreja funcione, como o Novo Testamento indica que deve funcionar.
Uma igreja deve ter essa disposição m ental, como Templo do

- 136 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS F I L I P E N S E S

Espírito Santo; porém o m undo não pode tê-la. O sistema econô­


mico, as leis, as constituições que garantem os direitos humanos,
tudo isso é respeitado quando a corrupção hum ana não se alastra.
Quando alguém se aproveita de outro, este, se puder, chama um
advogado e o leva à justiça. Assim o mundo pensa. “Faço-o pagar
por isto” é a reação típica de quem saiu lesado. No cenário inter­
nacional, se um país estrangeiro ataca, o país atacado revida. A
atitude da m ente de Cristo não parece ser m uito vantajosa sob
nenhum ponto de vista prático. Contudo, o que Jesus Cristo pensou
e fez é a exata explicação central da história. Pois, quando Cristo
voltar e o pecado for vencido, esse será o princípio pelo qual o
mundo será governado. Deus quer que a igreja, o local geográfico
visível do reino de Cristo, viva agora, sob seu Domínio, a experiência
da abnegação perfeita e completa.
Prossigamos na passagem bíblica. Aprendemos que, Cristo
não somente derram ou sua alma, e deliberadam ente assumiu a
forma de servo, expressando a realidade interior do seu espírito de
servo com ações positivas, hum anas e abnegadas. Decidiu lavar os
pés dos discípulos, e não reagiu vingativamente quando seus direitos
lhe foram tirados. O versículo 7 afirma que ele “tomou-se em seme­
lhança de homens”. A palavra “semelhança” (gr. homoiõmati) é dife­
rente de “forma”. E a palavra usada por Paulo em Romanos 6 para
explicar a realidade do batismo. Quando você foi batizado, o foi na
“semelhança” de sua morte. Jesus, o Filho Encarnado, tomou a
semelhança de homem. O que significa isto? Há a semelhança de
uma pessoa numa fotografia. A foto não é a pessoa, mas ao olhá-la,
você a recorda. Felizmente, a faculdade onde eu lecionava preparou
uma lista de nomes com os retratos juntos, de m aneira que eu podia
procurar meus alunos ligando nomes aos rostos. A fotografia não é
a pessoa, mas é sua semelhança, suficientemente grande para identi­
ficar o estudante. C.S. Lewis discute essa realidade no seu livro
Peso de glória, no qual diz que a semelhança é real, porque inclui
algumas das características da própria pessoa. Não apenas como o
retrato que lembra meu aluno desconhecido, mas porque a luz e a
substância realmente fazem parte da fotografia e da pessoa real em
carne e osso. Você não pode trocar um pelo outro, porém existe
uma realidade em comum da qual participam a pessoa e a foto. Na
hum anidade de Jesus, há uma realidade em comum entre ele e
nós. Embora ele fosse homem perfeito, era distinto de nós. Era
homem, no sentido singular de Deus-homem. Essa referência à

- 137-
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

“semelhança de hom em ” provavelmente vem de Daniel 7. A visão


de Daniel revelou um pequeno chifre, uma figura no Antigo Testa­
mento de Antíoco Epifânio, o terrível perseguidor dos judeus de
170 a.C. Daniel viu tronos estabelecidos, e o Ancião de Dias tomou
seu lugar, e sua veste era branca como a neve, e os cabelos da cabeça
eram como a pura lã (Dn 7.9). Daniel continua descrevendo uma
pessoa que se aproxima, “um como o Filho do Hom em ”. Agora
podemos identificar essa semelhança de homem, no céu, antes da
Encarnação, como sendo Jesus Cristo, o Filho na presença do Pai
eterno. E pode ser essa a referência daquilo que Paulo diz em
Filipenses. Voltando a Daniel 7, lemos sobre o Filho do Homem,
que descerá à terra e sofrerá sob a terrível besta (manifestação de
Satanás). Será esmagado por ela, porém, depois, há de triunfar sobre
ela, e com partilhar sua vitória com os santos do Altíssimo (7.18-22).
Cristo não somente derram ou sua alma, como o últim o Adão, e
cum priu as profecias do “Servo Sofredor”. Também cum priu a mis­
são do Filho do Homem. De boa vontade, deixou-se vencer pela
besta terrível e infernal, na sua obediência à morte. É este o passo
seguinte que Paulo menciona em Filipenses 2.8, a sua humilhação
e obediência. Vimos a im portância crucial da hum ildade no pa­
rágrafo anterior (2.2-4). Aqui podemos observar que se trata do
âmago da mente de Cristo. Sem considerar seus próprios direitos e
dignidade, ele pôde dar atenção plena à vontade de seu Pai, e suas
terríveis exigências por ser o único a levar nosso pecado.
Lembre-se do Getsêmani, onde ele quis esquivar-se do peso
da vontade do Pai. E interessante considerar a frase, “Tornou-se
obediente até a m orte”. Em outras palavras, percorreu todo o cami­
nho até a morte. Todos nós que nos dizemos seguidores de Cristo,
somos obedientes até certo ponto. Todos nossos filhos são obedientes
até certo ponto, e ninguém pode dizer que obedece até a morte. Tal
obediência exigiria o cum prim ento de um a simples ordem: “Vá, e
seja crucificado”. O filho, então, realmente iria e seria pregado numa
cruz! Mas saiba que foi isso que Jesus fez. Prezava tanto ao Pai que
chegou até a morte. E que morte! A mais cruel, vergonhosa, a mais
torturada e desumana, a morte de cruz. Sua obediência corresponde,
por outro lado, à desobediência de Adão. Deus, então lhe deu o
direito incontestável de governar e ser Rei sobre tudo que o homem
deveria dominar. E seu governo foi projetado para nos incluir. Nós
somos súditos de seu reino, onde seu governo deve ser manifestado
visivelmente. Essa m anifestação deve ser feita num m undo de

- 138 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

contradições, onde Satanás é príncipe (Ef 2.2,3), caracterizado pelo


egoísmo, contudo, ainda com o ideal da generosidade, bondade e
altruísmo, reminiscências da criação original. Os santos, ou cristãos,
são os únicos que tem a possibilidade de viver, na prática, o exercício
do senhorio de Deus neste mundo.

A exaltação de Jesus Cristo


A palavra “portanto” ou “pelo que” de Filipenses 2.9 dá a idéia de
conseqüência, i.e., a exaltação de Jesus Cristo ao receber um nome
acima de todo outro nome. Ele é agora a “pessoa acima” de todo o
universo. Deus decretou que todos devem curvar-se perante ele, e
honrar seu nome, que tem m aior dignidade do que qualquer título.
Esse nome é Senhor, ou kúrios. A versão grega do AT que Paulo e a
igreja prim itiva tinham usava “Senhor” (kúrios) na tradução do
nome que não se podia mencionar, o nome pessoal de Deus.
Veja Isaías 45.23: “Tenho jurado que ao meu nome todo joelho se
dobrará”, é o sentido. Isso é citado neste texto de Filipenses, refe­
rindo-se a Jesus Cristo, nosso Senhor (v. 10). “Dobrar-se ao nome
de Jesus” é, naturalm ente, concordar com os passos descendentes
e hum ilhantes que ele tomou, para que ele seja exaltado, Senhor
sobre tudo. Compromete a quem se curvar para segui-lo com relação
às atitudes na vida terrena. Ser Cristo o meu Senhor não significa
simplesmente fazer o que ele m anda, e evitar qualquer pecado. Não
é esse tipo de senhorio. Pelo contrário, realmente exige, como seu
paralelo aqui na terra, um a atitude, uma disposição mental equiva­
lente à de Cristo. Tal atitude deve, então, influenciar em tudo a
vida do cristão.
O cristão, ajoelhado perante Jesus Cristo, é a manifestação
exterior da nova natureza, plena do Espírito. O cristão, por defi­
nição, deve ser pessoa caracterizada pela m ente de Cristo. Paulo
escreveu esta parte im portantíssim a de sua epístola aos filipenses
porque passavam por uma época de difíceis relacionamentos. Um
pouco de egoísmo aqui, um tanto de orgulho ali e já estavam nu­
blando a figura de Cristo no seio da igreja. Embora todos confessas­
sem que Jesus Cristo era Senhor, para a glória de Deus, os cristãos,
na prática, estavam negando essa confissão.
Isso sugere a questão da glória de Deus. A exaltação de Jesus
Cristo, recebendo o mais sublime de todos os nomes, o ajoelhar de
toda criatura (que só será cumprido quando ele voltar), e a confissão

- 1 3 9 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

de seu senhorio, estão todos juntos para trazer m aior glória a Deus,
o Pai. O propósito da vida cristã se centraliza na glória de Deus. O
evento mais glorificante que já aconteceu, foi a morte de Jesus Cristo
no Calvário. E justamente por isso se torna o ponto central de toda
a história. Deus fez com que se tornasse a chave que explica a trama
central de tudo que está acontecendo na história. Através de toda a
eternidade será impossível esquecer a cruz. O reino m ilenar há de
refletir a luz que jorra da cruz (conf. Ap 5.6,9). A glória de Deus, o
Pai, demonstrada com brilho radiante em seu Filho, em quem muito
se agrada, reflete da cruz. Assim também têm glória refletida da
cruz aqueles que se curvam perante Jesus, e que confessam o seu
nome. Eles têm o privilégio de renunciar a seus próprios direitos,
derramando suas almas e subjugando seu próprio egoísmo com
escolhas conscientes. Só assim podem “carregar cada dia a sua cruz”
(Lc 9.23). Jesus o fez por causa de sua atitude de amor sacrificial
para com seu Pai e para com a hum anidade.
Esta passagem afirma, também, que os demônios (“debaixo
da terra”) irão dobrar os seus joelhos diante do Senhor. Não só os
cristão irão se curvar, não só os anjos que servem a Deus no céu. O
versículo 10 se refere a criaturas inteligentes na terra, i.e., os
homens. Então, o versículo fala de seres abaixo da terra, referindo-se
aos poderes demoníacos, no seu ódio rangente e amargurado contra
Jesus. Será que também confessarão a Jesus como Senhor? Certa­
mente, não irão confessar sua bondade e grandeza de bom grado,
como também não o farão as pessoas da terra que não O conhecem
pessoalmente, e não O receberam como Senhor e Salvador de suas
vidas. Os inimigos pecaminosos de Deus não reconhecerão a Jesus
como Senhor porque o desejam, mas assim mesmo o farão. Lem-
bra-se quando Jesus chegou perto de um hom em possuído por
demônios? Reconheceram-no im ediatamente como Senhor (conf.
Mc 5.7). Não puderam calar nem que o quisessem. É por isso que
esse trecho da Bíblia esclarece que há uma decisão a ser feita antes
que venha o juízo. C ertam ente, quando Cristo voltar, ninguém
deixará de dar a honra devida ao Senhor. Você pode tornar-se
co-herdeiro com Jesus dobrando os joelhos e confessando com o
coração que ele é Senhor (Rm 8.15-17). Se você quiser alegrar-se
com ele, precisa tornar-se como ele, ter a sua mente. Realmente
queremos ser seguidores de Cristo? E impossível ser um seguidor
de longe. O egoísmo e o orgulho nos m antêm longe dele, sem a
atitude de mente que ele deseja formar em nós. Você está disposto

140 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

a entregar-se cedendo a todos seus direitos? Para sermos honestos,


a maioria de nós diria, certamente, que não! Eu não fiz isso nem
podería fazer. Você está absolutamente certo, mas o que é necessário
é desejar fazê-lo, agindo depois sobre esse desejo. Leve a Cristo seu
egoísmo. No batismo, o novo cristão está como que dizendo: Eu
quero morrer para mim mesmo, com Cristo. Entrego-lhe tudo, para
que o Senhor possa colocar em mim seu novo modo de pensar.
Se a tradução correta do versículo 5 for “entre vós” (e não
“em vós”) precisamos entender que a igreja está em vista. Para os
observadores angelicais, e para um mundo incrédulo, tão antagônico
a esse conceito de autonegação, a mente de Cristo, no meio do povo
de Deus, deve m ostrar que somos realmente cristãos, dirigidos pela
mente de Cristo, unidos em um corpo no qual todos os membros
servem altruisticamente a todo organismo.

Desenvolvendo a salvação (2 .12 -18 )


12Assim, pois, amados meus, como sempre obede­
cestes, não só na m inha presença, porém m uito mais
agora na m inha ausência, desenvolvei a vossa salvação
com temor e tremor; l3porque Deus é quem efetua em
vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa
vontade. 14Fazei tudo sem murmurações nem contendas;
15para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos
de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida
e corrupta, na qual resplandeceis como luzeiros no
mundo; 16preservando a palavra da vida, para que, no
dia de Cristo, eu me glorie de que não corrí em vão, nem
me esforcei inutilm ente. 17Entretanto, mesmo que seja
eu oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da
vossa fé, alegro-me e com todos vós me congratulo.
18Assim, vós também, pela mesma razão, alegrai-vos e
congratulai-vos comigo.

Como professor de seminário, muitas vezes sou procurado


para responder a perguntas sobre a Bíblia. Um estudante perplexo,
recentemente, quis saber o seguinte: O que Paulo pensava quando
disse aos filipenses que desenvolvessem a sua própria salvação? A
questão é que, ou vamos bater nosso barco da teologia sem leme
nas areias de Caribde, ou contra a rocha de Cila, usando os termos

- 141
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

da estória de Homero. Há um pequeno estreito que leva àquela


perigosa passagem lendária. E hoje seria aconselhável meditarmos
sobre o paradoxo do nosso esforço hum ano, em combinação com a
obra onipotente de Deus em nós. N aturalm ente, a lógica diz que,
se Deus está operando em nós, como afirma o versículo 13, podemos
descansar e gozar da segurança bendita da salvação oferecida e
realizada totalm ente por Deus. Acredito que Professor Moule, há
cerca de cem anos atrás, foi quem escreveu: “Não poderiamos, agora,
entregar-nos inteiram ente à reflexão?” Ele quis ilustrar o que se
sente após um trabalho árduo, quando nos recostamos na velha
poltrona, diminuím os a intensidade das luzes e cochilamos. Porque
afinal, estamos no caminho para o céu. Estamos seguros nos braços
eternos. Por que não fazer um relaxamento, um devaneio, se Deus
está operando em nós? Ele fará tudo que precisa ser feito. M edita­
ríamos, portanto, com toda a calma, sobre a poesia divina da nossa
salvação!
O conhecido autor alemão, D ietrich Bonhoeffer, im pres­
sionou-se profundam ente com esta atitude não bíblica. No livro O
Preço do Discipulado ele usa palavras para cham ar nossa atenção
logo no início: “A graça barata é o inimigo m ortal da igreja”. A
lógica atrás deste repouso de enlevo espiritual, onde são desneces­
sários tanto o esforço como o trabalho, significa uma ameaça peri­
gosa para a igreja. Hóje, encontramos bem poucos que buscam uma
graça valiosa e preciosa (a graça barata significa graça vendida na
feira de objetos usados, entre vizinhos, onde os preços são bem
pequenos para que se venda logo a mercadoria). Os sacramentos, o
perdão dos pecados, as consolações da religião, são jogadas fora
com preços de saldo. A graça é representada como caixa de tesouro
inesgotável da igreja, da qual Deus distribui de mãos generosas,
sem questionar ou fixar quaisquer limites. A graça é sem preço, a
graça é sem custos; a essência da graça, saibamos, é que a conta foi
paga adiantadam ente. E como já está paga, e pode-se receber tudo
gratuitamente, visto que o preço era infinito, e as possibilidades de
usá-la e gastá-la são infinitas, o que seria graça, se não fosse barata?
Muito barata! A graça por preço irrisório significa a graça como
doutrina, como princípio, sistema. Significa o perdão dos pecados
proclamado como verdade genérica e um consentimento intelectual
à idéia é aceito como sendo suficiente para assegurar a remissão
dos pecados. Então acredita-se que a igreja que defende a doutrina
correta da graça, por isto mesmo, tenha parte desta graça. Visto

- 142 -
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

que nós, evangélicos, pregamos o fato de que Deus já fez tudo, e


que nada podemos fazer para merecer a salvação, estamos propensos
a bater naquela rocha de Cila, onde a graça é oferecida sem nos
custar nada.
A passagem de Filipenses 2 não apóia esse ponto de vista da
“graça barata”. Afirma que, por Deus estar operando em você, você
deve então efetuar a sua salvação. Deve estar envolvido, em ­
penhando responsavelmente todos os esforços no desenvolvimento,
no cultivo, na elaboração da salvação que já recebeu.
Do outro lado encontra-se a doutrina oposta, declarando que
os homens podem produzir a justiça que agrada a Deus. E o pensa­
mento logo surge na mente dos evangélicos dedicados: Não temos
sido direitos? Não demos uma grande oferta ao Senhor? E não
estamos servindo a Deus de m aneira louvável? Sendo Deus justo,
não podemos contar com ele para recompensar nosso sacrifício com
um pouco de sua honra e glória e com sua salvação? E natural que
os homens decaídos ofereçam a Deus um pouco de esforço próprio
para obter a salvação. E esse é o lado do Caribde, tão perigoso ao
viajante que espera alcançar o céu tal qual a apatia da graça barata
e fácil. Porém existe uma estreita passagem entre estas alternativas
perigosas, que neste trecho fica esclarecida. Repare bem que não
nos cabe efetuarmos a nossa salvação, pois Efésios 2.5-9 torna bem
claro que nossas obras não são aceitáveis a Deus se feitas com o fim
de merecer o perdão de Deus. Se dizemos que estamos salvos, deve­
mos desenvolver e viver a nossa salvação.

0 desenvolvimento da salvação requer obediência


Consideremos algumas das m aneiras pelas quais esta passagem diz
que devemos desenvolver uma salvação obediente. Tudo começa
com a expressão “Assim, pois”. Este “assim, pois”, ou no original
grego, “de m aneira que,” refere-se à obediência de Cristo em 2.5-8.
Jesus Cristo, sendo ele próprio iguala Deus, não viu nisto um privi­
légio ao qual devesse se agarrar (como Adão tentou fazer). Antes,
tomou sobre si o feitio de homem. Humilhou-se, tornou-se obe­
diente até a cruz. Ora, o contexto imediato sugere que uma obe­
diência igual à dele é a exigida para a pessoa “desenvolver a sua
salvação”. Graça facilitada não entra no quadro. Não é suficiente
assinar um cartão de evangelização dizendo que você aceita a Cristo,
nem repetir uma oração preparada. Não é isso que significa a

143 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

salvação no Novo Testamento. A salvação é mais como um contrato


com o qual você concorda, no qual Deus lhe concede as bênçãos da
salvação de graça. Ele concedeu ao crente todos os benefícios da
cruz. Mas enquanto você recebe com uma mão a sua salvação, você
tem de colocar sua mão na dele, e prometer, sem reservas, fazer o
que ele lhe pedir. Não há nenhum outro tipo de salvação nas Escritu­
ras. Jesus Cristo não é apenas o Salvador do crente, é também o seu
Senhor.

Desenvolva a salvação cem temor


As características desse desenvolvimento da salvação são dignas de
nota. Prim eiram ente, a salvação deve mesmo ser desenvolvida com
temor e tremor. Quando o apóstolo Paulo foi para Corinto, de início,
não dependeu de palavras bonitas, ou do impacto de seu porte.
Proclamou a sabedoria simples de Deus, que tem sua expressão
suprema na cruz, em Jesus Cristo crucificado, e na salvação gratuita
de Deus por meio da m orte de Cristo. Paulo estava desenvolvendo
sua salvação na cidada pagã e corrupta de Corinto. Ele os fez lem­
brar, em ICo 2.2-4, que esteve entre eles com as pernas trêmulas,
não de frio, mas pelo sim ples m edo de falhar diante de um a
responsabilidade tão grande. E Paulo dizia: “Ai de m im ” se não
pregar esta espécie de evangelho salvador, que deve ser desenvolvido
sempre com temor e tremor. 2Coríntios 7.1 diz que a santidade à
qual Deus dá o selo de aprovação na vida do cristão é a santidade
desenvolvida no temor do Senhor. Provérbios 28.14 apóia esta verda­
de: “Feliz o homem constante no tem or de Deus”. Não há lugar
para a apatia do sacramentalista que acha que, uma vez batizado,
nada mais precisa fazer senão aguardar o céu enquanto faz o que
bem entende.
Visto que temos essas promessas, um a salvação que nos é
prom etida, purifiquem o-nos de qualquer m ancha de corpo e
espírito, e tornemos à santidade perfeita no temor do Senhor. O
indivíduo que tem nome de cristão, mas é convencido, auto-con-
fiante, sem atitude de respeito e reverência, tendo fé na graça barata,
e nas obras inúteis feitas com vistas à recompensa, poderá ser uma
das pessoas que se desapontarão quando bater à porta do céu,
implorando que o deixem entrar, o Senhor o afastará tristemente:
“Nunca o conheci. Aparte-se de mim, você que pratica a iniqui­
dade”. (Mt 7.28).

- 144 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F1L1PENSES

O segundo ponto que se deve notar é que a salvação desenvol­


vida é uma obra responsável. Não é uma salvação que seus pais, ou
o pastor de sua igreja, podem fazer por você. Por mais que eu queira
fazer isso por você, não posso. O texto diz: “Desenvolva a sua própria
salvação”. Cada pessoa que confiou em Deus para a salvação, precisa
viver Cristo em sua própria vida. O Senhor precisa estar operando
em você, e revelando sua santidade em você individualm ente. O
grego é muito mais incisivo do que o português. O original diz que
se deve desenvolvê-la de tal modo que não haja erosão ao chegarem
as tempestades da vida e soprarem os ventos sobre a “casa” de sua
salvação. Esta salvação é desenvolvida com o aprofundamento das
raízes, com a colocação de alicerces de pedra, tão fortes que nenhum
terremoto possa sacudir ou remover. Esta salvação demonstra sua
natureza definitiva, pois é realizada de um a vez por todas. A mesma
palavra encontra-se em Efésios 6.13: “depois de você ter vencido
tudo,” você mantém-se firme no dia mau. Não é só definitiva e
permanente, como também é algo do qual se presta contas. Consi­
dere a necessidade de uma consciência sensível. A verdadeira salva­
ção dá aos salvos a preocupação primordial: “Será que Deus se agrada
da maneira que estou vivendo a sua salvação? Visto que ele me deu
seu Filho, e fê-lo ressurgir para compartilhar da sua glória, tendo-o
à sua mão direita, torna-se sumamente importante que ele possa se
agradar do modo em que eu vivo a glória da salvação efetuada por
mim na cruz!” Estaria ele triste comigo? Por este motivo digo que
desta salvação precisamos prestar contas. O apóstolo Paulo escreveu
aos coríntios esta verdade: “Importa que todos nós compareçamos
perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o
bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2Co 5.10).
Mas o cristianismo comum, do dia-a-dia, dá impressão con­
trária. Quer seja no mundo comercial, ou na escalada acadêmica
do estudante em busca de form atura, nada existe que não exija
uma responsabilidade de prestação de contas. E inevitável que
alguém verifique se a pessoa fez o que era para fazer. Nosso mundo
não é isento de exames e notas, de folha de balanço no fim do mês
ou do ano. Contudo, no mundo espiritual muitos têm a impressão
de que qualquer coisa é aceitável. Pois eu gostaria de adverti-lo quê
não é isso que as Escrituras ensinam. Dão-nos certeza de que, num
dia próximo qualquer, todos nós havemos de apresentar diante de
Deus aquilo que desenvolvemos. Todos nossos atos, palavras e
pensamentos estarão claramente dispostos diante do Senhor, e ele

- 14S-
e p í s t o l a s da p ri s ã o

avaliará tudo. A nota dada à nossa salvação desenvolvida será de


aprovação ou reprovação. E isto, para mim, explica por que Paulo
prossegue nos exortando com estas palavras: “porque Deus é quem
efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa
vontade”. Podemos estar bem certos que, se Deus não estimulasse
as nossas vontades, nossas ações seriam egoístas. Somente disto é
capaz a nossa natureza decaída e hum ana, ser egoísta e agir em seu
próprio favor. Mas, à medida que Deus opera em nós, através de
seu Santo Espírito, nossas vontades são dirigidas diferentemente,
não em direção à nossa ambição pessoal, mas na direção de seu
bom propósito (compare Rm 8.28). Deus mesmo, habitando o filho
regenerado, adm itindo viver nele, faz com que ele obedeça, e deseje
agradar o seu Mestre. E muito comum nos fazermos de surdos à
operação de Deus em nós, por meio de sua Palavra, que é seu agente,
aplicada pelo Espírito Santo. Podemos ver nos versículos seguintes
que os cristãos podem m urm urar e discutir. Em vez de serem
“inculpáveis e puròs”, podem ser culpáveis e impuros, mesmo sendo
“filhos de D eus” (v. 14). A obra de Deus em nós não é tão deter­
m inante e fatalista que nossas reações às suas operações amorosas
não tenham significado.

Um trabalho obediente
A salvação que recebemos, então, precisa ser desenvolvida. Assim
se tornará uma salvação obediente. Voltemos ao versículo 12, onde
Paulo diz: “Vocês sempre obedeceram na m inha presença”. Todos
nós estamos familiarizados com o poder invisível que tem o olhar
de um professor vigiando... ou do chefe que observa como tudo
está sendo feito, para verificar se tudo está em ordem. Quando o
professor ou o chefe saem, então você se relaxa, pode até sair para
tomar um cafezinho mais demorado. A obediência, Paulo diz aos
filipenses, não só é crucial quando estou presente, mas m uito mais
quando estou ausente. Algumas das paíabolas de Jesus batem na
mesma tecla. Pouco antes do m estre partir, ele dá aos escravos
talentos com os quais devem trabalhar e investir (Mt 25.14,15).
Antes do mestre viajar, nada acontece, mas logo que sai, começa o
movimento. Assim é na vida cristã. A prova é feita principalm ente
na hora em que você está sozinho, nás horas silenciosas, quando
ninguém lhe pressiona, nem o elogia, ou diz o que deve fazer. E
seria fácil concluir que não é preciso prestar contas, visto que o

- 146
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

Senhor não lhe está dando nota, nem abono, como prêmio por
qualquer progresso extraordinário.

A motivação para o trabalho


Por último, nosso texto menciona a motivação para desenvolvermos
a nossa salvação. Porque se não houvesse motivação, poderiamos
nos desanim ar facilmente. Paulo explica que a razão pela qual você
deve desenvolver a salvação é que Deus está operando em você. Ele
não só está trabalhando em você por meio de um processo ex opera
operato, expressão latina m uito usada pela igreja rom ana para
descrever o poder místico divino, que se diz liberar pelos sacra­
mentos. Acredita-se que são eficazes sem que a pessoa o'saiba, sem
que se perceba o seu poder espiritual. Porém o versículo 13 con­
traria essa posição. Paulo afirma que Deus opera em você “o querer
e o realizar conforme o seu propósito”.
Será que sentiu a dificuldade em se levantar de manhã na
sua casa? Especialmente quando faz frio, e as cobertas estão bem
quentinhas? Alguém enfrenta o frio? Sem demora, o aroma do café
invade o quarto, mas assim mesmo há pessoas que dormem melhor
com o aroma gostoso do café. Causa desânimo. Mas há o fato de
que se tem de responder pelo atraso na escola ou trabalho. Então,
esta frase de sempre, vem quebrar o silêncio: “Filho, é hora de levan­
tar”. “Filha, acorda, está na hora.” Talvez o filho até reconheça que
não tem nenhum a força de vontade, então, o que se deve fazer? Um
bom chefe de família tem um “mudador de vontades” entre suas
ferramentas mais úteis. E chega o momento de usá-lo. Talvez basta o
pai dizer com firmeza: “Filho, levante-se já!” E acontece. A vontade
letárgica muda, sim. O Senhor eterno também é um Deus modi-
ficador das vontades. Que benção para nós! Freqüentemente essa
mudança da vontade é positiva, na forma de um convite. Vejamos o
Salmo 23, onde a vontade da ovelha é pacificamente orientada para
outra direção, pelo convite do Pastor, que a chama para deliciar-se,
na sua presença, com as águas tranqüilas e o pasto verde saboroso.
Ouça-o dizer: Eu lhe darei toda a alegria e satisfação que você tem
desejado. Eu lhe farei um caminho de rosas, pelo qual você pode
caminhar comigo, e protegê-lo-ei com meu cajado e minha vara.
Em outras ocasiões, como vemos em Hebreus 12, ele fala de
uma mudança da vontade diferente, através da disciplina e da dor.
E ele irá mesmo alterar a sua vontade, se está desenvolvendo a

- 147
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

salvação em você. Esta é a motivação divina que leva os filhos de


Deus a se moverem sempre e a crescerem espiritualm ente. Existem
m uitas circunstâncias que afetam as nossas vidas, que gostaríamos
m uito de m odificar; e existem m uitas outras coisas que não
desejaríamos m udar nunca. Todas estas circunstâncias e condições
são sinais de sua operação em nós, para moldar-nos de acordo com
o seu prazer e plano.
A maioria de nós conhece bem a diferença que há no brilhante,
ou em outra pedra preciosa, antes e depois de lapidado ou polido. O
processo é longo e doloroso, principalm ente porque as pedras
preciosas são m uito duras. Se não fossem, nada valeríam. Teria sido
por isso que Deus escolheu a você e a mim, teimosos como somos,
querendo fazer nossa própria vontade, a fim de nos lapidar e nos
polir até que reflitamos a sua beleza divina e a Sua glória (2Co 3.18)?
Quanto mais cheios de vontade própria, mais devemos esperar que a
obra de Deus em nós demore para se efetivar. Quão terrível é o erro
de rebelar-nos contra ele antes de sermos suficientemente polidos
para brilhar por ele, ou tornarmo-nos jóias para sua coroa!

0 resultado da obra de Deus em nós


Os versículos 14 a 18 apresentam alguns resultados da salvação
desenvolvida. O versículo 14 acrescenta que, à medida que Deus
transform a a nossa vontade, e desenvolvemos nossa salvação,
devemos evitar de m urm urar e questionar. A palavra “m urm urar”
descreve uma reação externa. Queremos que os outros ao nosso
redor saibam o quanto estamos sofrendo. A murmuração se expressa
de maneiras interessantes. Pode-se falar na operação que se teve,
ou nas doenças que se tem. Por exemplo, o hipocondríaco é ve­
terano em chorar por simpatizantes, reclamando das suas doenças
e dores. Mas a reclamação e os m urm úrios são contra Deus. Paulo
diz aos filipenses que é im portante evitar isso. As provações pelas
quais passam os não devem ser co m p a rtilh a d a s p ara causar
compaixão. A outra palavra, “contendas”, refere-se à rebelião
intelectual interior que temos, questionando circunstâncias, posi­
cionando-nos contra as pessoas, mas na realidade colocando-nos
contra Deus. Tentamos provar que Deus está errado e nós certos.
Tentamos nos convencer e também a Deus que mude o que está
fazendo com o fim de moldar a nossa vida. Deus sabe melhor do
que nós qual a disciplina e correção que necessitamos. D uvidar de

- 148-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F1LIPENSES

suas decisões sábias é realmente uma rebeldia. São as duas palavras


que descrevem a atitude dos israelitas no deserto. Eles estavam
m urm urando e contendendo contra o que Deus fazia. Incapazes
de crer nas suas promessas ou de aceitar seu modo de agir com
eles, murmuravam. As mesmas duas palavras descrevem a reação
dos fariseus quando Jesus aceitava os pobres e pecadores na sua
companhia (Lc 15.2). Troquemos pela m urm uração e contenda
m uita gratidão e louvor, para sermos “irrepreensíveis e sinceros,
filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e
corrupta” (v. 15). Portanto, descobrimos aqui uma verdade im por­
tante: o cristão que desenvolve sua salvação sem murmurações e
contendas, obediente e responsavelmente, motivado por Deus ope­
rando nele, há de produzir um testemunho genuíno de Deus neste
mundo. Este testemunho é tanto interior como exterior. Obser­
vemos estas palavras novamente; “irrepreensíveis” trata de como
viver a vida cristã no mundo. Quando os incrédulos não podem,
com justiça, acusar uma pessoa de pecados e faltas, ela é “irre­
preensível”. Naturalmente, o homem não está sem pecado, mas o
m undo não enxerga falha nenhuma nele.
Certa vez, quando um grupo nosso ia de carro para uma reu­
nião de ex-alunos de faculdade, ficamos envolvidos em um acidente.
Foi o pior em que já estive, embora pudesse ter sido mais sério ainda,
se houvesse ferimentos graves. A reação de uma das pessoas foi querer
saber o “porquê”. Por que aconteceu? Raramente o Senhor nos dá a
resposta de um “porquê”. A reação que ele procura em nós é sermos
inculpáveis. Nosso comportamento será de aceitação, cuja explicação
lógica dará testemunho à verdade de dizermos que Deus habita em
nós, pelo seu Espírito, ativamente desenvolvendo sua salvação
libertadora. As crises da vida são apenas o campo de batalha onde
Deus nos está moldando à semelhança de Cristo.
Digamos, como ilustração, que um repórter publique no
jornal uma notícia a meu respeito nitidam ente falsa. Ele e a história
são completamente repreensíveis. Como me livro dessa culpa? Posso
ir até o repórter para contar-lhe toda a verdade. Mas ele só publicará
o caso verídico m ediante um pagamento. Isto é sem elhante ao
problema que alguns cristãos enfrentam. O crente pode ser acusado
falsamente porque manifesta uma motivação que o incrédulo não
tem, no comércio, no trabalho, ou em qualquer aspecto de sua vida.
Mas quando as acusações são colocadas à prova para ver se são
verdadeiras, descobre-se que o cristão é irrepreensível, apesar das

- 149
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

m entiras e falsos rum ores que têm a finalidade de difam ar ou


demiti-lo.
Consideremos em seguida a palavra “inocente” (sincero) ou
“símplice”, a mesma que Jesus usou para comparar seus seguidores
às aves. Disse aos seus missionários que deveríam ser “prudentes
como as serpentes, porém símplices como pombas”. Não há motivo
para se tem er um a pomba, porque este pássaro não é perigoso, o
cristão também não é venenoso. Ele deve ser sábio, prudente, porque
recebeu a sabedoria de Deus (ICo 1.30) e aprendeu com Cristo (Ef
4.20-21). Porém não deve ter malícia ao promover o evangelho ou a
si mesmo. As segundas intenções não valem para pressionar as
pessoas para que aceitem a salvação que Deus lhes oferece. Para o
cristão “símplice”, o fim não justifica os meios ilegais ou indignos
por ele proclamados (2Co 4.5).
Paulo emprega a terceira e últim a palavra para descrever a
m aneira pela qual o cristão precisa viver. Nós devemos ser “incul-
páveis” no meio de “um a geração pervertida e corrupta”. A palavra
“inculpável” é a m esm a usada com um ènte com respeito aos
sacrifícios, quando se explicava que um anim al precisava ser “sem
defeito” (Êx 12.5; Lv 22.21; E f 5.27). É com isso que Paulo se preo­
cupa a esta altura, falando da luz brilhante dos cristãos no m undo
em trevas. Paulo talvez estivesse lembrando dos luzeiros criados
divinamente, que transformam a treva total da meia-noite na beleza
de um céu salpicado de estrelas, com a lua cheia reluzente. E esta a
comparação que Paulo faz aqui. Mas, O que faz lima luz brilhar? E
unicamente quando ela se queima, quando ela se sacrifica. Portanto,
o desenvolvimento de nossa salvação significa ilum inar o escuro,
com um brilho que custa caro.
Resplandecendo no mundo, os filipenses irão “preservar” a
palavra da vida (v. 16). A palavra grega original (epechontes) tem
tanto o sentido de “m anter alto” como o de “m anter firme”. “M anter
firme” sugere segurança, para que não se desfizessem da Palavra.
O outro sentido, de “m anter alto”, é o de erguer como se faz com
um a placa ou cartaz de propaganda, para atrair atenção de perto e
de longe. O que eles, e nós, precisamos m anter firme e alto é a
mensagem que dá vida aos ouvintes que nela crêem. No Novo Testa­
mento, a “Palavra., é o evangelho, a boa nova do oferecimento
gratuito da salvação, através da fé em Cristo Jesus. Então, se os
filipenses não deixam cair nem escondem a luz, Paulo poderá ale-
grar-se, poderá até mesmo orgulhar-se de que sua carreira apostólica

- 150-
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

não foi completada em vão. Ele não terá desperdiçado todo aquele
esforço e energia nas viagens e na pregação missionária (v. 16b).
Quando uma igreja, ou mesmo um cristão individualmente, morre
ou abandona a fé, todo o esforço e sacrifício gasto em seu favor resulta
em nada. E essa conclusão infeliz torna-se um motivo de vergonha,
em vez de ser de alegria e orgulho, como o que Paulo aguarda ansio­
samente para o “Dia de Cristo” (v. 16). Este será o dia em que nosso
maravilhoso Senhor e Rei há de voltar, todo o trabalho feito para ele
terá sua avaliação, e tudo que foi digno, terá a recompensa.
Paulo prossegue, no v. 17, considerando a possibilidade de
sua vida inculpável ser sacrificada com derramam ento de sangue
sobre o altar da fé dos filipenses. Seria motivo de alegria. Nos sacri­
fícios pagãos, depois que o adorador preparava o altar e matava o
animal sacrificial, ele o punha sobre o altar, e preparava-se para
acender o fogo. As vezes o adorador derramava por cima uma libação
de vinho para consagrá-lo. Por isso aqui Paulo diz aos filipenses
que a fé que eles demonstram é o sacrifício. Paulo tinha vivido por
eles, e, em conseqüência, estava consagrando a fé e o serviço deles
ao Senhor. Mas a vida de Paulo, que a qualquer hora podería ser
derramada em m artírio, serviría como libação para a fé e a obra
dos filipenses. Se Paulo não tivesse servido a Deus em lugares como
Filipos, Tessalonica, Corinto, e em todo o império romano oriental,
não estaria correndo o risco de seu sangue ser derramado sobre o
altar da fé das igrejas. Portanto, agora, se nossas vidas não são luzes
brilhantes, mas estão ocultas debaixo de qualquer coisa, como um
vasilhame de medida (“alqueire” em M t 5.15) haverá pouco ou
nenhum perigo de perseguição. Ninguém teria pensado em prender
Paulo, e ameaçá-lo de morte, se sua luz não tivesse aparecido com
tanto brilho no meio da sociedade pervertida e corrupta de sua
época. Deus espera que nossa vida cristã seja obediente, assim como
foi obediente a vida de Cristo, e, portanto, de m aneira igualmente
dispendiosa. Seu precioso sangue foi derramado sobre o sacrifício
da cruz. E nós somos convidados a participar de seus sofrimentos,
enquanto desenvolvemos essa salvação (Cl 1.24).. E colocado dian­
te de nós o mesmo problema da vontade que Jesus Cristo enfrentou
no Getsêmane, quando disse: “Pai, passa de mim este cálice!” Mas
Deus não o retirou. Nós temos o problema idêntico com o mundo.
Podemos reagir ao mundo na mesma medida, culpando, criticando,
m urm urando e contendendo. Só que, fazendo isto, seríamos cristãos
desobedientes e repreensíveis.
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

Podemos observar, portanto, que esta passagem sugere que


há dois tipos de crentes. Há os cristãos nominais, que aceitaram a
graça barata do evangelho. Afirmam que Cristo morreu por eles,
que ele pagou tudo, não deixando m ais nada para fazerem .
Escolhem viver a vida cristã descansada, apática, sem energias.
Desejam ser da classe de cristãos espectadores, sentados nas arqui­
bancadas, e não discípulos dedicados, empenhados, que seguem a
Cristo até o Calvário. D iante da televisão, o telespectador não se
envolve ativamente; não há nenhum custo além da mera observação
e apreciação das cenas que se sucedem. Esta passagem sugere que
o único cristão genuíno é aquele que (como Jesus, por aquilo que
sofreu, pois agora ele é o seu Senhor exaltado) desenvolve sua
salvação com temor e tremor. E aquele que perm ite a Deus m udar
a sua vontade, com alegria. Observe como Paulo convida os
filipenses a compartilharem de sua alegria sacrificial: “Assim, vocês
também, pela mesma razão, alegrem-se e congratulem-se comigo”,
(v. 18).
Deixe seu coração se abrir para contem plar a cruz de Jesus,
e a graça de alto preço do seu sacrifício, o preço de nossa salvação.
Estou certo que verá também o quanto você tem procurado escapar
das implicações difíceis e custosas da cruz dele. Então, como Paulo,
considere sua vida um a libaçâo preparada para ser derram ada
alegremente em benéfício da fam ília, dos vizinhos e amigos, à
medida que você desenvolve a sua salvação.

Homens de Deus (2.19-30)


19Espero, porém , no Senhor Jesus, mandar.-vos
Timóteo, o mais breve possível, a fim de que eu me sinta
animado também, tendo conhecimento da vossa situação.
20Porque a ninguém tenho de igual sentim ento, que
sinceramente cuide dos vossos interesses; 21pois todos eles
buscam o que é seu próprio, não o que é de Cristo Jesus.
22E conheceis o seu caráter provado, pois serviu ao evan­
gelho, junto comigo, como filho ao pai. 23Este, com efeito,
é quem espero enviar, tão logo tenha eu visto a m inha
situação. 24E estou persuadido no Senhor de que também
eu mesmo brevemente irei. 25Julguei, todavia, necessário
m andar até vós a Epafrodito, por um lado meu irmão,
cooperador e companheiro de lutas; e, por outro, vosso

- 152 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S F I L 1 P E N S E S

mensageiro e vosso auxiliar nas m inhas necessidades;


26visto que ele tinha saudade de todos vós e estava angus­
tiado porque ouvistes que adoeceu. 27Com efeito, adoe­
ceu m ortalm ente; Deus, porém, se compadeceu dele, e
não somente dele, mas também de mim, para que eu
não tivesse tristeza sobre tristeza. 28Por isso, tanto mais
me apresso em mandá-lo, para que, vendo-o novamente,
vos alegreis, e eu tenha menos tristeza. 29Recebei-o, pois,
no Senhor, com toda a alegria, e honrai sempre a ho­
mens como esse; 30visto que, por causa da obra de Cristo,
chegou ele às portas da morte, e se dispôs a dar a própria
vida, para s u p rir a vossa carência de socorro p ara
comigo.

Introdução
Paulo, Timóteo (lT m 6.11) e Epafrodito eram homens de Deus.
Mas como tornar-se homem ou m ulher de Deus?
No Antigo Testamento esta frase representava um profeta
(cf. 1Sm 2.27, lR s 12.22; 17.18,20.28 etc. e lT m 6.11), isto é, alguém
que falava da parte de Deus. Para ser um embaixador do Rei do
universo, o profeta devia se assemelhar ao seu Senhor em atitudes
e interesses. O nde há hom ens de D eus, deve ser notável a
aproximação da atmosfera divina, um perfume celestial (cf. 2Co
2.15) fácil de detectar e que atrai os que “cheiram ” o “aroma de
vida”.

Não estamos longe da verdade ao afirmarmos que um dos temas


principais de Filipenses é o “homem de Deus”. No primeiro pará­
grafo desta epístola, deparamos com a comunhão outorgada por
Deus por meio dos irmãos. A cintilante oração paulina (1.9-11),
por causa da profunda saudade que sentiu (v. 8), pedia que o amor
dos seus filhos na fé “aumente mais e mais em pleno conhecimento
e toda a percepção” (v. 9). Paulo sempre fazia súplicas por eles (1.4)
o que nos dá motivo para pensar que o segredo da formação do
homem de Deus deve ser a oração. Se Paulo lembrava dos filipen­
ses em todas as suas orações, quanto mais de Timóteo, Não seria
fácil conviver com o apóstolo sem orar por ele (Ef 6.19,20). Não se

- 153-
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

pode negar que homens de Deus são os que são os alvos da oração
de homens de Deus. Se o Espírito de Deus é derramado em resposta
à oração (Lc 11.13), seu amor também transforma o caráter de todos
em que ele habita (Rm 5.5, E f 5.18, G1 5.22).
Igualm ente im portante é a convivência com hom ens de
Deus. O desafio de comer, dormir, conversar e observar a vida de
um servo consagrado ao Senhor, deve influenciar profundam ente
quem tiver esse privilégio. A própria igreja deve fornecer aos novos
crentes, especialm ente aos jovens, um modelo de santidade nos
seus líderes (cf. Hb. 13.7), fornecendo um desafio constante para
que sejam transform ados paulatinam ente em hom ens de D eus
(cf. C l 1.28).
Paulo expressa no v. 16 deste segundo capítulo, que sabia
exatamente para onde corria. Tinha um destino, para não correr em
vão ou inutilmente, enquanto preservava ou segurava firmemente a
palavra da vida. No cap. 3, declara, “prossigo para o alvo” avançando
para as coisas que diante de mim estão (v. 14,13). Sabemos que ele
cogitava a possibilidade de ser “oferecido como libação sobre o sacri­
fício da fé” dos filipenses. Tudo isso mostra a determinação de Paulo
por um lado e o desafio das circunstâncias nas quais Deus o colocara,
por outro lado. Homens de Deus são produzidos tam bém pelos
desafios e se recusam a se desanimar. Creio que quem tem direito a
este elogio de ser homem de Deus deve ser alguém que não vive para
sí, mas para os outros (cf. 2Co 5.14,15). sua vida é derramada para
beneficiar aos outros. Como canal ou aquaduto, a vida do homem de
Deus conduz a graça divina para o coração humano. Muitas vidas
assemelham-se mais a uma torneira fechada do que a um canal entre
Deus e a hum anidade sedenta. Sem auto-jactância, Paulo podia
afirmar que, não importando de que maneira sua vida terminasse,
não teria corrido em vão.
Em mensagens anteriores tivemos oportunidade de observar
que a prisão de Paulo, mesmo sendo ele inocente, não foi capaz de
criar ressentimento no apóstolo. Nem os irmãos que, pelo ódio e
ciúme, tentavam suscitar tribulação às cadeias do missionário, fo­
ram capazes de criar mágoa ou aborrecimento ao coração daquele
Homem de Deus (1.15, 18). Como se explica fenômeno tão raro?
As circunstâncias difíceis não criaram barreiras para a sua corrida,
mas apenas pontes para cada vez refletir mais a encarnação da vida
de Cristo na de Paulo (cf. G1 2.20).

- 154 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

Timóteo
Além de Paulo, descobrimos neste trecho a breve descrição de um
segundo hom em de D eus. Paulo esperava m an d ar T im óteo
brevem ente para os filipenses. Assim, teria um a avaliação de
confiança ao receber notícias de volta na sua prisão. Também
Timóteo deveria levar notícias aos filipenses sobre o resultado do
seu processo, a ser brevemente definido (v. 24).
Timóteo significa em grego “quem honra a Deus” ou “alguém
honrado por D eus”. Quem passeia por um cemitério observa os
nomes dos esquecidos, indivíduos do passado longínquo. Nunca
os conhecemos, nem ouvimos falar deles; não sabemos de nada
significante que fizeram. Suas vidas não são detalhadas em biografia
alguma. A história os deixou de lado. Desapareceram como a água
na superfície da areia. Teria sido assim com Timóteo, não fosse os
desafios determ inantes da sua vida. Primeiro foi sua avó Lóide,
uma m ulher de fé (2Tm 1.5). Certamente ela amou as Escrituras
como a profetiza Ana (Lc 2.36-38), e a mãe de Samuel, também
chamada Ana (ISm 1.2-2.11). Se Timóteo conhecia “desde a infân­
cia... as Sagradas Letras” (2Tm 3.15), concluímos que Lóide e sua
filha Eunice, mãe de Timóteo, o ensinaram. Bendito é o privilégio
de aprender, desde o colo dos pais, o convívio com as verdades
depositadas nas páginas da Bíblia.
O apóstolo declara que não havia ninguém (disponível) com
o sentimento (gr. isopsuchon, lit. “alma igual”) que Timóteo tinha.
Provavelmente só este jovem de alma semelhante ao do apóstolo.
O conhecimento da Lei de Deus e o convívio no lar, com mulheres
consagradas e depois com o seu pai na fé, juntos, fizeram de Timóteo
um jovem de Deus destacado. Facilmente imaginamos as conversas,
ao transcorrer as centenas de quilômetros nas viagens paulinas pela
Ásia M enor e Grécia, em que as passagens bíblicas conhecidas há
anos se transform aram em verdade viva para Timóteo. Quem, a
não ser os próprios discípulos de Jesus, teria tido tão equilibrado e
profundo curso teológico como este jovem companheiro? Por isso,
Paulo o chamou de “amado filho” (2Tm 1.2) e “amado filho fiel”
(ICo 4.17). Aos filipenses revela que “serviu ao evangelho, junto
comigo, como filho ao pai” (2.22). Provavelmente o pai de Timóteo
não era convertido (ou possivelmente tinha morrido) criando assim
uma inevitável separação entre parentes que devem ser os mais
íntimos. Paulo tomou o lugar do pai, trazendo todo o impacto bené­

- 155
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

fico da sua influência piedosa. Na prim eira epístola a Timóteo,


Paulo o chama de “verdadeiro filho na fé” (1.2), frisando a qualidade
da relação entre “pai” e “filho”. Timóteo, facilmente influenciado,
se entregou à tutela do mestre. Tornou-se discípulo admirador, filho
co-participante da vida do veterano, tanto que ganhou a sua confian­
ça total. M uitas são as influências que os mais velhos, experimen­
tados cristãos têm tido sobre nós. Mas qual deles se responsabilizou
por tornar-nos um “filho genuíno (gnêsios no grego) ou verdadeiro
na fé”?
Sendo Tim óteo um filho genuíno, podia com partilhar o
m inistério pastoral do apóstolo preso. Sinceramente (gnêsios “ge­
nuinam ente”, “verdadeiram ente”) cuidaria dos interesses dos
irmãos em Filipos (v. 20 b), tendo sido enviado para lá por Paulo.
Por esta razão, Tim óteo era incom parável, não havendo outro
companheiro disponível “de igual sentim ento” (v. 20 a).
Timóteo viu a Paulo pela prim eira vez, pregando em Listra,
depois opondo-se ao culto pagão, oferecido a Paulo e Barnabé, após
a cura do côxo (At 14.8-18). Em seguida, foi apedrejado, arrastado
para fora da cidade e dado por m orto (At 16.19), mas depois
levantando-se, deve ter produzido em Timóteo uma fascinação pelo
judeu missionário. Quando Paulo passou por Derbe e Listra na
segunda viagem missionária, os irmãos de Listra e Icônio (distância
de 31 km), “davam bom testem unho dele” (At 16.2). Paulo o con­
vidou para o acompanhar, tomando assim o lugar de M arcos que
abandonara a equipe m issionária no meio da prim eira viagem
(At 13.13; 15.38).
A segunda razão pela qual Paulo enviara a Trimóteo (além
do cuidado pastoral) é precisamente pelo desinteresse que ele tinha
pelo que era dele. Concentrou sua atenção inteiram ente no que era
de Cristo (2.21). Marcos virou as costas diante do desafio m is­
sionário de Panfilia e o planalto da Ásia, justamente porque não
buscava o que era de Jesus, mas o que era seu. Por isso, Paulo des­
creve a Timóteo como incomparável (v. 20). Não deu prioridade ao
que lhe traria vantagens, mas buscou acima de tudo o que seria
vantajoso ao seu Senhor. Entendemos agora porque os irmãos de
Icônio e Listra deram tão boa recomendação a respeito de Timóteo
(At 16.2). Não foi ao campo com a garantia de sustento mensal da
igreja ou junta missionária da associação de igrejas da região. Não
creio que comeram churrasco todos os dias. Sem dúvida, a caracte­
rística mais destacada da vida com Paulo e Silas foi o sacrifício, o

- 156 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILIPENSES

perigo, a perseguição e a fome (cf. 2Co 6.4, 5; 11.22-27). Não creio


que Timóteo se sentiu m altratado por isso. Uma vez que “o que era
de Cristo Jesus” importava mais do que qualquer outra coisa não
há nem sugestão de queixumes.
Em terceiro lugar, Paulo lembra aos filipenses do caráter de
Timóteo. Ele era homem de Deus porque tinha qualidade “provada”
(gr. dokimên, “testado” e “aprovado”, v. 22). Não é muito difícil de
encontrar num a hora de emoção e desafio, quem se apresente como
voluntário para servir a causa do evangelho em terras difíceis,
destituídas de segurança e conforto. Mas depois de servir fielmente,
junto com Paulo, Timóteo ganhou a reputação de um veterano
provado.
A palavra grega dokimên comunicava confiança. Quem duvi­
dava se um a moeda era realmente feita de prata, a deixava cair
num piso de mármore. Pelo ruído que emitia, podia-se ter a verteza
se era ou não composta de chumbo ou prata. Era dokimên, aprovada
ou rejeitada. Timóteo alcançou aprovação pela m aneira que serviu
ao evangelho (douleuõ, ser ou atuar como escravo”). Serviu ao evan­
gelho como um escravo leal serve a um mestre amado. Entendeu
perfeitamente que espalhar as boas novas da salvação era a preo­
cupação prioritária de Jesus Cristo (e de Paulo). Timóteo abafou
seus interesses legítimos (casamento, constituição do lar, seguir
sua carreira) para tornar-se “escravo” voluntário de Jesus.
Com o passar dos anos de serviço, sob a observação e disci-
pulado cuidadosos de Paulo, ganhou a nota dez do mestre que
reconheceu seu “caráter aprovado”. Tempos depois, o apóstolo
escreveu a Timóteo, “procura apresentar-te a Deus, aprovado...”
(2Tm 2.15). Descobrimos que aprovação de Deus não é posição
estática mas uma busca constante. Ainda que Timóteo fosse apro­
vado (2.22), precisava buscar sempre essa condição.
Serviu ao evangelho como filho junto ao pai. H um ildemente
rebaixou-se, para perm itir que o apóstolo tomasse a liderança. Não
encontramos neste símile nenhuma indicação de oposição (como
entre patrão e empregado), mas de cooperação leal e subordinação,
voluntária e alegre. Aliás não encontramos nas epístolas nenhum a
sugestão para sustentar a idéia de que o apóstolo mandava nas vidas
dos companheiros. Se houve uma exceção, foi de Timóteo que se
prontificou a servir ao apóstolo, para assim servir a Cristo. Não
penso que Timóteo era líder destacado. Não penso que o apóstolo o
indicaria para abrir um campo novo onde o evangelho nunca tinha

- 157-
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

sido anunciado. M as para servir às necessidades de Paulo e da


igreja de Filipos, era o único indicado entre os com panheiros do
apóstolo. Qual seria a opinião que Paulo teria formado a nosso
respeito? Ele enviaria qualquer um de nós? Teria percebido a nossa
capacidade de cuidar sinceram ente dos interesses dos filipenses
ou dos nossos acima do que é de Cristo? Ganharíamos a reputação
de “aprovados” da parte de Paulo pela m aneira que temos servido
hum ildem ente à causa?

Epafrodito
Em terceiro lugar quero dar uma visão de Epafrodito. Este homem
de Deus não é mencionado em outra parte da Bíblia. Não podemos
opinar se era jovem ou mais velho, se se converteu nos primeiros
dias da igreja em Filipos, evangelizada por Paulo, ou se recen­
temente se entregara ao Senhor Jesus Cristo. Mesmo sabendo tão
pouco, Paulo focaliza alguns fatos im portantes a respeito deste
extraordinário homem.
Primeiro notamos que Paulo o chama de “o irm ão”. Baseado
no fato que Paulo distingüe “os irmãos” de “todos os santos” (4.21,
22), alguns estudiosos chegaram à conclusão de que “irm ão” servia
de título como hoje usamos “obreiros”. Talvez os “irmãos” recebe­
ram ajuda financeira òu alimentos para poder dar tempo ao trabalho
de evangelizar (cf. 2Ts 3.8-10; Cl 4.6), ou viajar como Epafrodito
fizera.
Sendo, o significado de “irmão” incerto, passeamos para o
termo “cooperador” (gr. sunergon, “quem trabalha junto com ou­
trem ”, v. 25). Através da história a igreja demonstrou a forte tendên­
cia de formar uma hierarquia, os líderes importantes sobem a escada
de honra e autoridade. Creio que Paulo teria julgado esta inclinação
contrária à vontade de Cristo (cf. Lc 22.24-27). Epafrodito não foi
considerado superior, nem inferior a Paulo; mas simplesmente um
trabalhador ao lado de Paulo. Valioso é reconhecer na igreja que
todos trabalham em equipe. Somos sunergoi com Cristo, a cabeça,
Senhor de todos os que cooperam na sua obra. Como formigas que
sem obrigação nem domínio externo (cf. “nicolaítas”, no grego quer
dizer dominadores do povo”, Ap. 2.6) trabalham espontaneamente
em todas as áreas necessitadas: ensino, contribuição, evangelização,
cuidado com os necessitados, trabalho missionário distante etc. De
acordo com o dom recebido, devemos colaborar.

' - 158 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

A terceira palavra no original, usada para caracterizar a


Epafrodito se traduz com a frase “com panheiro de lu tas” (gr.
sustratiõtês, “soldado companheiro de batalha”, “companheiro de
arm as”), Vocábulo bem raro, não temos muitas condições para adi­
vinhar por que Paulo o designou desta maneira. No v. 30, somos
informados de que Epafrodito “chegou... às portas da m orte” e “se
dispôs a dar a própria vida” (gr.paraboleusamenos, “arriscar a vida”,
“apostar a vida”). Creio que se oferecer para transportar a oferta
da igreja de Filipos até Paulo, o que era muitíssimo arriscado, possi­
velmente explicaria o uso deste termo por Paulo. A história do Bom
Samaritano que Jesus contou ao advogado (Lc 10.30-37) indica até
que ponto chegava o perigo para quem viajava longas distâncias
sozinho (cf. 2Co 11.26, “em perigos de salteadores”).
Além dessa ameaça universal, E pafrodito en fren to u a
enfermidade, “adoeceu mortalm ente” (v. 27). No prim eiro século,
o perigo de germes e micróbios, de febres provocadas pelas águas
poluídas, alimentos perigosos, antes das descobertas científicas que
nos capacitam tomar as medidas de precaução, eram freqüentes.
Viajar significava inevitavelmente enfrentar o perigo de doenças
como tifo, cólera, malária e muitas outras doenças, sem qualquer
tratam ento eficaz. Paulo reconhece a disposição de Epafrodito em
“apostar sua vida” da mesma maneira que ele costumava fazer. Por
isso, mereceu o título de “companheiro de batalha”, pois o incentivo
foi servir a Cristo, beneficiando o apóstolo.
Epafrodito foi também o apóstolo ou “mensageiro” (gr. apos-
tolos) da igreja de Filipos (v. 25). Recebeu a comissão de “enviado
oficial” ou “procurador” dos filipenses junto a Paulo. Um apóstolo
para os judeus, “era igual àquele que o enviou”2. Portanto Epafrodito
tornou-se o substituto para a igreja junto a Paulo. Nessa posição
serviu tam bém de “auxiliar nas m inhas necessidades” (v. 25).
“Auxiliar” representa a palavra leitourgon no original. Significa em
serviço ou culto que beneficia o povo. Na Septuaginta ganhou quase
exclusivamente o significado de serviço de sacerdote em prol da
nação.
E difícil saber se em outras passagens Paulo queria comunicar
um sentido mais religioso (ex.: Rm 15.27; 2Co 9.12), ou talvez
menos. Se, como veremos no cap. quatro, a oferta dos filipenses foi
um “sacrifício aceitável e aprazível a D eus” (4.18 b), por que não
d ed u ziriam o s que aqui E p afro d ito serve como “ sa ce rd o te ”
comissionado pela igreja, oferecendo a D eus os donativos dos

- 159 -
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

irmãos filipenses e suprindo a falta do apóstolo de Cristo (2.30)?


Esta é mais uma passagem que emprega linguagem relacionada ao
culto, e ao serviço sagrado dos membros (cf. Hb. 8.2), especialmente
no ato de suprir um a necessidade no corpo de Cristo. O termo
“serviço” (leitourgia) já foi usado por Paulo para indicar o ministério
sacerdotal que o seu m artírio efetuaria (v. 17). Portanto, ambos,
Paulo e os filipenses, por intermédio de Epafrodito, exerciam minis­
tério sacerdotal.
Epafrodito era um homem sensível. Ao saber que a notícia
de sua grave doença tinha chegado à igreja de Filipos, ficou angus­
tiado (v. 26). Paulo, igualmente ansioso por causa da aflição dos
filipenses que só receberam a notícia da enfermidade, e não que
Deus o havia levantado (v. 27), depressa mandou Epafrodito de
volta. N aturalm ente, levou esta preciosíssima epístola de Paulo aos
filipenses na viagem. Assim, Paulo descansaria (“eu tenho menos
tristeza v. 28”), no conhecimento de que a igreja não continuaria
na angústia em relação a Epafrodito. Timóteo também irá (v. 19)
logo que Paulo puder lhes inform ar a seu próprio respeito. Paulo,
Timóteo e Epafrodito merecem uma recepção alegre e honrosa (cf.
v. 22,29). Paulo também irá logo que puder (v. 24), tendo confiança
que o Senhor o libertará da prisão e “sentença de m orte” (2Co 1.9)
que pairava sobre sua cabeça.
Na apresentação dos três homens de Deus, Paulo, Timóteo e
Epafrodito, descobrimos os traços daqueles que m erecem essa
designação. Homens que se desvinculara dos seus próprios valores
para, incansavelmente, buscar os de Cristo e da sua igreja. Estavam
envolvidos no serviço sacerdotal dos irmãos e desta maneira cultua­
vam a Deus. Oremos a Deus insistentemente para nos tornar homens
de Deus, levantando-nos no meio da sua igreja, para a sua glória.

Perdendo para ganhar (3 .1-8 )


3 'Q uanto ao mais, irmãos meus, alegrai-vos no
Senhor. A mim não me desgosta, e é segurança para vós
outros, que eu escreva as mesmas coisas. 2Acautelai-vos
dos cães! acautelai-vos dos maus obreiros! acautelai-vos
da falsa circuncisão! 3Porque nós é que somos a circun­
cisão, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos glo­
riamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne. 4Bem
que eu poderia confiar também na carne. Se qualquer
E P Í S T O L A DE PA UL O A OS FILIPENSES

outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais:


5Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da
tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei,
fariseu, 6quanto ao zelo, perseguidor da igreja, quanto à
justiça que há na lei, irrepreensível. 7Mas o que para mim
era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. 8Sim,
deveras considero tu d o como p erda, por causa da
sublim idade do conhecim ento de C risto Jesus, m eu
Senhor: por amor do qual, perdi todas as coisas e as consi­
dero como refugo para ganhar a Cristo.

introdução
Uma das coisas estranhas sobre um homem como Paulo é que no
mesmo instante em que está insistindo em que os leitores tenham
alegria, está também furioso.
E não vê nenhum a contradição entre essas duas fortes emo­
ções contrastantes. E intensa sua hostilidade para com os judai-
zantes perseguidores, que o estão seguindo e se infiltrando nas
igrejas que ele fundou (3.2). Mas Paulo diz aos filipenses que devem
alegrar-se (3.1). Há dezesseis referências à palavra “alegria” ou
“regozijo” nesta epístola cu rta, o que indica a significância
espiritual que a alegria tem para Paulo.
Mas, como estar alegre e furioso ao mesmo tempo? Como se
pode experim entar esta “alegria no Senhor” e a hostilidade junta­
mente? E por falar nisso, é possível cometer um erro sério quando
se confunde “alegria” com “felicidade”. Feliz e afortunado são
termos paralelos. Afortunado vem da palavra latina “fortuna” que
tem a ver com situações externas mas que afetam a você pessoal­
mente. Poderiamos chamá-la de emoção circunstancial. Se suas
circunstâncias são favoráveis, então sua reação para com elas é
positiva e você fica feliz. Mas alegria é outra coisa bem diferente
porque tem a ver com as profundezas de seu ser. Compare tal esta­
bilidade com o mar. A poucos quilômetros de profundidade no
oceano, a m ilhares de metros abaixo da superfície, você descobre
que nenhum efeito é causado por qualquer circunstância que ocorra
na superfície. Nas profundezas a tem peratura permanece constante.
Nenhum a tempestade ou bater de ondas perturba o fundo do mar.
Como nas camadas inferiores dos oceanos, é a alegria inspirada
por Deus. Existem coisas surpreendentes na Bíblia, por exemplo,

161 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

na última fala de Jesus com seus discípulos, o Senhor ofereceu-lhes


“Eu lhes dou meu gozo”, mesmo quando estava caminhando para
o Getsêmano. Hebreus menciona isto quando registra que nosso
Senhor chamou-o “da alegria que lhe estava proposta” (12.2).
Suportou a cruz, e até mesmo quando suportava a dor, isso não lhe
afetava quanto à alegria. Só o cristianismo pode oferecer-lhe, meu
amado leitor, um a “alegria” tão incondicional. N enhum a outra
religião pode falar em alegria como pode o cristianismo. É um dom,
um a dádiva do Espírito Santo. Tem a ver com aquilo que Filipenses
3.3 chama de “adorar a D eus verdadeiram ente”. Se você realmente
adora a Deus “por meio do Espírito” (creio que é uma tradução
mais exata do que “no Espírito”), seu coração pode transbordar de
alegria mesmo num campo de concentração. Nas circunstâncias
mais miseráveis e penosas, ainda que você esteja experimentando
uma tristeza profunda pela perda de um ente querido, você ainda
pode se extasiar com a alegria do Senhor, alegria que lhe vem pela
presença do Espírito. A alegria tem direito de estar na lista dos
frutos do Espírito (G1 2.20).

A hostilidade de Paulo
E enquanto Paulo experimenta esta alegria e encoraja os cristãos
em Filipos a “regozijarem-se no Senhor” ele acrescenta: “Acau-
telai-vos dos cães”. A palavra “cães”, usada para descrever estes
obreiros maus, é uma forma particularm ente judaica de falar. Não
que Paulo sentisse aversão especial pelos animais de estimação que
temos. É que um cão era considerado animal impuro, visto que
não podia ser sacrificado nem comido. Em conseqüência disso,
“cães” tornava-se uma palavra útil para descrever os gentios, aqueles
que não eram incluídos no pacto de D eus. Os gentios eram
“pecadores” (G1 2.15), e excluídos da presença de Deus por causa
de sua imundície cerimonial e religiosa. Portanto, quando Paulo
fala nos adversários farisaicos da salvação gratuita pela graça de
Deus, ele diz: “estas pessoas que se consideram povo verdadeiro de
Deus são realmente “Cães”, são alienados, são gente de fora. Fica
mais claro ainda no versículo 2 quando Paulo os chama de “maus
obreiros”. A razão é que proclamam um evangelho diverso, que
realm ente destrói a fé dos gentios que creram . Faz deles, não
candidatos para os céus, mas iludidos, sem alento, a caminho do
inferno. É um a situação que deixa Paulo extremamente infeliz, mas

- 162-
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILIPENSES

não sem alegria. Fica furioso, mas não perde o regozijo. Prossegue
descrevendo os falsos mestres como “cortadores”, como diz uma
tradução, “m utiladores”. “Eles se m utilam ” significa que estão
praticando a circuncisão. Não que Paulo se opusesse à circuncisão;
ele próprio circuncidou a Timóteo (Atos 16.3). O que condenava
era dar a este ritual judaico um valor que não podia ter mais,
especialmente no caso dos gentios convertidos. Toda vez que uma
cerimônia religiosa adquire um significado à parte, sem ser o de
engrandecer o valor de Cristo Jesus, há um deslize da natureza
daquele em que incorreram os heréticos judaizantes, que semeavam
mentiras nas igrejas fundadas por Paulo. Na verdade, Filipenses
3.2 precisa ser lido em combinação com toda a epístola aos gálatas.
Basta lem brar o que o apóstolo diz em Gálatas 1.9: “Se alguém lhes
prega evangelho que vá além daquele que receberam apresentando
outra forma de ser salvo, que seja anátema”. Esse alguém era mestre
perigoso, era mesmo um cão devorador. Era pessoa para ser evitada,
excluída da comunhão dos santos.

A verdadeira adoraçã®
Então, Paulo continua com uma afirmação inesperada, no versículo
3: “Nós somos a circuncisão verdadeira”. Há várias passagens na
Bíblia que falam da circuncisão ser “verdadeira”. Aqui há o con­
traste subentendido. Se há um a circuncisão verdadeira, deve haver
uma falsa. A circuncisão era o sinal característico do homem judeu,
significando que ele estava incluído nas promessas da aliança de
Deus feitas a Abraão e aos seus descendentes. O pacto fez com que
Israel fosse o povo eleito de Deus. Dois versículos adiante (3.5)
Paulo faz uma lista de seus bens religiosos, e põe a circuncisão
como o prim eiro que perdeu a fim de ganhar a Cristo. Pela circun­
cisão Paulo estava incluído, segundo acreditavam os judeus, no povo
da aliança de Deus. O sinal externo desse concerto era a circuncisão.
Paulo diz que os representantes da religião judaica não são a
verdadeira circuncisão, mas que são “cães”. Como descrentes na
graça, são de fora e são im puros. Os cristãos se tornaram os
verdadeiros israelitas. Paulo inclui os gentios incorporados em
Cristo pela fé. A igreja de Jesus Cristo se tem tornado o único
herdeiro legítimo das promessas salvadoras de Deus dadas a Abraão.
A circuncisão à qual Paulo se refere em Romanos 2.29, chamada “a
circuncisão do coração”, é a única circuncisão verdadeira. Não é

- 163 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

um rito carnal, mas um coração mudado. E você, leitor, você se


inclui com Paulo e os filipenses nesta circuncisão verdadeira? Já
foi circuncidado de tal m aneira que o arrependim ento e a fé
transformaram seu coração? Sem uma circuncisão desta natureza
não há vida! É esta circuncisão que incorpora em Cristo os pecadores
perdidos. Por isso Paulo a chama de “circuncisão de Cristo” (Cl
2.11). Nele, tanto homens como m ulheres foram cincuncidados,
não por mãos, mas no despojamento do corpo da carne na circun­
cisão de Cristo. A crucificação de Jesus Cristo é a circuncisão que
Deus colocou à disposição de todos nós. Confiando nele como nosso
Senhor, somos incluídos no povo verdadeiro de Deus, tornando-
nos verdadeiros filhos de Abraão e filhos de Sara (veja Rm 4). Em
resumo, somos o verdadeiro Israel de Deus.
Por causa de Abraão, o pai dos homens de fé de todo o mundo,
as únicas pessoas que terão a salvação serão “israelitas” neste sentido
espiritual. Serão o verdadeiro povo judeu, aqueles cujos corações
foram mudados de acordo com a promessa da Nova Aliança (veja
Ezequiel 36.23-32). O Senhor prometeu que faria um a coisa nova
pelo seu povo, que faria deles um povo novo, em contraste com
aquela nação profana que se afastava dele e servia a ídolos. “Para
que as nações saibam que eu sou o Senhor, vindicarei a m inha santi­
dade através de vocês” (Ez. 36.23). Como Deus demonstrará sua
santidade perante o mundo? Prim eiro, m udando, transform ando
os corações dos homens, fazendo assim com que sejam seu povo
verdadeiro. “Dar-lhes-ei coração novo, e porei dentro de vocês
espírito novo” (Ez. 36.26). O Novo Testamento proclama o cum pri­
mento desta promessa maravilhosa da nova aliança. Mas, no Antigo
Testamento também, não há somente esta passagem que se refere
ao Novo Pacto. Está expresso no Antigo Testamento, tanto como
no Novo, onde é proclamado como já realizado. A promessa, então,
é que Deus im plantará seu Espírito transform ando pessoas de
corações endurecidos, e daquelas pessoas que, antes dependiam
inteiram ente de si, fará servidores de Deus. Porém esta nova vida
da aliança só se encontra em Cristo. Toda vez que celebramos a
ceia do Senhor, somos lembrados da “nova aliança no seu sangue”.
O sangue de Jesus Cristo crucificado, proporcionou-nos esta vida
nova que seu Espírito nos concede. Recebendo o Espírito de Cristo
somos feitos um povo verdadeiro de Deus. Filipenses 3.3, portanto,
relaciona a verdadeira circuncisão, que aponta para o povo verda­
deiro de Deus, com a adoração verdadeira. Pois a igreja é a reunião

- 164-
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILIPENSES

daqueles “que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em


Cristo Jesus, e não confiamos na carne”.
A adoração dos judeus em Jerusalém era conforme a carne, e
não “por intermédio do Espírito”. O culto, o serviço que ofereciam a
Deus (é o que significa a palavra latremontes que Paulo emprega,
compare Romanos 12.1) não era aceitável, porque os judeus não
dependeram da mediação do Messias crucificado. Faltava-lhes o
Espírito da promessa da Nova Aliança (Jo 3.5). Jesus explicou à
m ulher de Sicar que somente os que adoram em Espírito e verdade
são procurados por Deus. Todo culto carnal, por mais sacrificial e
sincero, é rejeitado. Agora, podemos entender porque Paulo diz:
“G loriam o-nos em C risto Jesus, e não confiam os na carn e”.
Gloriar-nos em Cristo quer dizer reconhecer que somos afortunados,
abençoados. O “alegrar-sè em Cristo”, recomendado por ele, só pode
referir-se à confiança e contentamento que enche o coração do cristão
nascido de novo (comp. G1 6.13-14 onde Paulo limita o “gloriar-se”
exclusivam ente à Cruz. Observe seu uso freqüente da palavra
kauchemai (“gloriar-se”) em 2Coríntios também),

A conta espiritual examinada


A oposição que Paulo enfrentava nos prim eiros anos do seu m inis­
tério era em grande parte a dos m estres judeus que se gabavam
de ter credenciais pessoais im portantes como autoridades reli­
giosas. O apóstolo não hesitou em comparar-se aos maiores dentre
eles, enquanto negava, ao mesmo tem po, que valesse alguma coisa
seu prestígio religioso judaico. O que ele diz é o seguinte: “Se a
questão é ter razões para confiar em si próprio, eu tenho m ais do
que todos” (v. 4).
Paulo apresenta seus bens, embora sejam religiosos e não
financeiros. Faz como um contador: “Peguem seu livro-caixa e
vejamos a coluna dos créditos e a dos débitos. Vejam m inha lista.
Quero registrar que a despeito dos mandamentos da lei que os judai-
zantes lhes estão impondo, a despeito de seus currículos impres­
sionantes, eu tenho o maior saldo em vantagens religiosas do que
qualquer missionário judeu do m undo inteiro”.
Vejamos a lista de Paulo: é de causar admiração. Em primeiro
lugar, quanto à circuncisão (a exigência primária), “Eu estou seguro,
tenho segurança total” (v. 5). M uitos rabinos judeus afirmavam
que nenhuma pessoa que tivesse sido circuncidada podia ser lançada

- 165 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

no inferno. Paulo estava marcado no corpo com o sinal certo, como


membro do povo da aliança de Deus. De maneira que as promessas
que Deus deu a Abraão também eram suas! Não só circunciso, como
também descendente de Isaque e Jacó, o que lhe dava o segundo
crédito da lista. Com isso ele diz que pertence racialmente ao povo
escolhido de Deus. Paulo não vinha de fora como os prosélitos gen­
tios. Não só foi circuncidado no oitavo dia, como também era de
sangue puro, racialm ente, descendendo diretam ente de Abraão
através de Isaque e Israel. Podia levantar os olhos e ver o oceano de
pessoas que não podiam reivindicar este privilégio. Os árabes traçam
sua linhagem por intermédio de Ismael mas não através de Isaque,
sendo portanto excluídos da aliança de Abraão. Não é o meu caso,
diz Paulo. Em terceiro lugar, Paulo era benjamita. A tribo de Ben­
jamim tinha uma história bastante gloriosa na nação. O primeiro rei
de Israel, Saul, foi benjamita. E você se lembra da divisão do reino
depois do pesado governo de Salomão? Houve uma revolta assoladora
das dez tribos do norte contra Reoboão, filho de Salomão, porque
não quis dim inuir os encargos impostos pela linha dura do governo.
Somente uma tribo não se separou de Judá e da linhagem de Davi;
foi a tribo de Benjamim. Conseqüentemente, Benjamim permaneceu
firme no círculo verdadeiro, privilegiado, do povo de Deus. Em lugar
de adorar a ídolos e construir altares aos deuses Baal e Asera como
fizeram as tribos do norte, Judá e Benjamim mantiveram pelo menos
a aparência do culto verdadeiro a Deus. Paulo podia orgulhar-se de
pertencer à tribo que escolheu seguira Davi e seus filhos, è adorar a
Deus no seu templo em Jerusalém.
Consideremos o quarto crédito da lista de haveres de Paulo.
Ele afirmava ser “Hebreu dos hebreus”. Um hebreu nascido de
pais hebreus possuía mais um recurso religioso de valor. Na época
de Alexandre, o Grande, e muito mais ainda no tempo de Antíoco
Epifânio (logo antes da revolta dos Macabeus, no segundo século
antes de Cristo), o povo judeu tinha sido forçado a aprender a língua
grega e adotar a cultura grega. Alguns judeus permaneciam fiéis à
herança e cultura judaicas. Era m uitas vezes extraordinariam ente
alto o custo da perseguição e da repressão econômica. Entre os
judeus, aqueles que mantiveram sua cultura, língua e culto hebraico
eram considerados os mais verdadeiros de todos e quaisquer judeus
existentes no mundo. E quase certo que foi por esta razão que os
pais de Paulo o levaram a Jerusalém quando pequenino, para sorver
a atmosfera judaica e crescer no âmago da cultura israelita em

- 166 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILIPENSES

Jerusalém, capital do m undo judaico. Como Paulo foi criado em


Jerusalém, ele falava a língua divinamente endossada, que era o
hebraico, lia a palavra de Deus nas palavras originais que os profetas
inspirados falaram e escreveram . P ortanto, estas foram suas
vantagens independentes da vontade, da escolha: Paulo não escolheu
ser circuncidado, não escolheu ser benjam ita, como nenhum de
nós pode escolher a cor ou raça de que provém. Foram benefícios
que ele atribuía à graça selecionadora de Deus, como todo judeu
fazia. Como Paulo devia ter-se gloriado na eleição divina de Abraão
e de sua semente! Podia dizer como o fariseu que orava: “Que bom
o Senhor ter-me feito judeu, e não gentio... Estou contente por me
ter feito homem e não m ulher”. Lucas 18 conta do fariseu que subiu
ao Templo para orar. “Deus, agradeço-lhe porque não sou como outros
homens...” Paulo tinha haveres no livro-razão religioso, embora não
lhes atribuísse nenhum valor depois de sua conversão. A graça
gratuita é que faz a grande diferença. Paulo, entretanto, não parou aí
com a lista de seus bens. Ele prossegue, citando os itens ganhos por
escolha e esforço próprio. Escolheu ser fariseu, isto é, membro do
partido mais rigoroso e mais admirado entre os vários partidos
religiosos judaicos. Não era uma fraternidade muito numerosa. Algu­
mas autoridades acham que não houve mais de seis mil fariseus
vivendo na mesma época. Eram muito exigentes, como numa loja
m açônica ou outra organização na qual os iniciados assumem
responsabilidades e votos perante Deus. O objetivo da renúncia era
agradar a Deus. Consistia em jejuar, dar dez por cento de tudo que
se recebia, valesse alguma coisa ou não, e ser meticuloso na obser­
vância do sábado. Li a respeito de um fariseu que passou oito horas
por dia durante dois anos estudando a lei do sábado: o que se podia
e não podia fazer para agradar a Deus e cum prir seus mínimos m an­
dam entos. Paulo diz: “Escolhi fazer parte da fraternidade dos
fariseus”. E ainda: “Fui além. Tornei-me extremamente zeloso para
proteger a pureza da verdade de Deus”. Foi isto que motivou Paulo a
perseguir a igreja de Jesus Cristo. Não acredito que Paulo tenha
odiado as pessoas por natureza, mas ele detestava as pessoas que não
enxergavam a verdade como ele a via. Estava mais que disposto a ver
os heréticos cristãos sofrerem, chorarem, até m orrerem se fosse
necessário; foi por esta razão que encontramos Paulo encabeçando o
apedrejamento de Estêvão (Atos 8.1).
Zelo, eis a característica de Paulo, mais zelo do que qualquer
um dos seus adversários tinha. Além de tudo, Paulo afirma, “quanto

167 -
e p í s t o l a s da p r i s ã o

à justiça, a m inha era composta de todas as minúcias da Lei”. Re-


feria-se ao fato que durante todos os m omentos em que ficava
acordado, estava obcecado em seguir as regras de Deus. Desde a hora
em que foi iniciado nas responsabilidades adultas judaicas, aos doze
anos, tornando-se “filho da Lei”, tentou cum prir todas as exigências.
Paulo então podia dizer: “Se alguém quiser verificar meu currículo,
há de ver que fui inculpável quanto aos requisitos da lei”.
Foi esta a auto-avaliação de Paulo. Somando as sete vanta­
gens, qual é o total? Para um judeu, sabemos que tudo era conside­
rável. Ele tinha o céu na mão, e o que havia de melhor nas honras e
posições deste m undo ao mesmo tempo. Do ponto de vista daqueles
falsos mestres, Paulo estava com tudo. Mas ele, tendo completado
a lista, passou à outra coluna do livro-razão.
Uma m udança de valores, profunda e radical, ocorrera
quando Paulo se encontrou com Jesus Cristo e submeteu-se a ele
como Senhor de sua vida. Vejamos o versículo 7, e faço novamente
uma paráfrase: “Somei todos os num erários do meu passado reli­
gioso, e foram milhões que eu tinha ganho (sabem como isto pode
subir à cabeça, pois os m ultim ilionários podem ficar orgulhosos
do que ganharam)... Espere um pouco. Acabo de perceber que
aquelas vantagens todas eram como zeros sem o dígito “um ” na
frente. Portanto todas elas não trazem absolutamente nada”. Paulo
tinha chegado a essa conclusão para descobrir e apropriar o valor
de Cristo. Olhemos de novo o versículo 7, para ver como foi que o
apóstolo reavaliou seu ativo corrente: “O que para mim era lucro
(pois eu tinha tudo) considerei (hêgêmai está no tempo perfeito) e
continuo a considerar perda; são antigos valores que na nova
estimativa perderam o efeito por causa de Cristo, por amor a ele. A
palavra grega traduzida como “perda” é usada duas vezes em Atos
27, onde Paulo estava viajando naquele enorme navio veleiro no
M ar M editerrâneo em direção a Roma. Paulo levantou-se e disse
ao capitão do navio e ao centurião em comando: “Se este navio
prosseguir viagem , haverá dano e m uita perda” (Atos 27.10).
Imaginem como devem ter olhado para ele e pensado: “O que você
sabe de navegação; é óbvio que você é um pregador, não um ma­
rinheiro”. Portanto não deram atenção ao prisioneiro Paulo. Poucos
dias depois, quando uma tem pestade perigosa os alcançou e já
haviam lançado ao m ar tudo que era removível, Paulo disse: “Vocês
sabem que se me tivessem atendido, vocês teriam evitado todo este
dano e perda” (aquela mesma palavra). Perda é ficar sem um a coisa

- 168-
EPÍSTOLA DE PA UL O A O S F IL IP E N S E S

perm anentemente, como se um relógio caísse de sua mão ou um


anel de seu dedo ao você se debruçar sobre o parapeito de um navio
no meio do Oceano Atlântico. Você tem certeza que isso é perda
irrecuperável. A perda é definitiva e irreversível. Por isso o apóstolo
dá tanta ênfase: “Aquele dia, na estrada de Damasco, eu perdi tudo
isso, e está perdido até hoje”. Foi uma perda tão completa que não
havia como recuperá-la, de nenhuma forma, absolutamente. Então
o versículo sete diz: “Considerei tudo perda, por causa de Cristo”.
Fica claro, portanto, que ou nós perdermos todos os valores reli­
giosos para ganhar a Cristo, ou nos apegamos a eles e perdemos a
Cristo. A mensagem inconfundível é que você não pode m anter a
justiça que criou por si, do legalismo judaico, e abraçar a Cristo ao
m esm o tem po. No versículo 8, Paulo dá ainda m ais ênfase:
“Realmente, continuo a considerar (a mesma palavra do versículo
7, significando “avaliar”, “somar”) tudo como perda por causa da
sublim idade (valor inestim ável) de conhecer a Jesus C risto”.
Perdera todos os valores religiosos judaicos, perdera sua posição
privilegiada, sua importância na sociedade, seu nome. Além das
perdas passadas, existem as presentes. Paulo está continuando a
perder. Fala sobre algo diferente no versículo 8. Está pensando nos
confortos que a vida oferece, na vantagem pessoal de um a boa
aposentadoria em paz para deleitar-se o resto de seus dias. Paulo
não era tão sobrehumano que não fosse atraído pela idéia de ser
dispensado da batalha para a folga da aposentadoria.
Paulo está reconhecendo que para ele não será concedida a
dispensa de serviço! “Eu não tenho nada que valha a pena nesta
vida esperando por mim. Ainda estou perdendo tudo. Cada vez
que me levanto para pregar, meus ouvintes se enlouquecem; alguns
querem me apedrejar, me matar. Outros riem de mim achando que
sou demente. Esta perda contínua é pela excelência, pela subli­
midade extraordinária de conhecer a Cristo”. E diz ainda: “Estou
ganhando recursos líquidos no lugar daquilo que perdi e estou até
agora perdendo”. Qual o lucro que ele estava ganhando? Só há um
benefício subrepujante, de valor incom parável, que Paulo está
ganhando, segundo esta passagem. É Cristo. Veja o final do versículo
8. “Eu os considero (estes valores religiosos, tais como os que os
judaizantes estavam promovendo) como refugo ou lixo, para que
eu possa ganhar a Cristo”. Não nos esqueçamos que Paulo já tinha
ganho a Cristo, ganhou-o na estrada de Damasco. Mas ele diz “Eu
ainda o estou ganhando”. Fiquei como completo perdedor (no meio

- 169-
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

do versículo 8) e conto tudo como refugo a fim de poder ganhar a


Cristo.

Conclusão
Cada um de nós nos envolvemos na mesma questão de Paulo. Temos
uma vontade ingênua de equilibrar as contas das duas colunas, de
tal forma que nenhum lado perca. Será que cada um de nós também
não deseja poder ganhar algo que venha da carne; alguma vantagem,
algum reconhecim ento, alguma posse na qual possa estar mais
seguro? Paulo nos diz que até o ponto e na proporção em que nos
firmamos nestes recursos, já perdemos a Jesus Cristo (conf. G15.2).
Por outro lado, se você já perdeu tudo, toda a esperança auto-pro-
duzida da aprovação de Deus, toda sua justiça própria, tudo que
você faz em questões espirituais, então Cristo pode ser de valor
eterno para você. A palavra “carne” significa simplesmente o que
você pode fazer sozinho, independente do auxilio de Deus incluindo
todo o bem que já fez e que não foi considerado perda. Se você está
dependendo da “carne”, então você não chegou a conhecer Cristo
de maneira nenhuma! Ninguém faz de Deus o seu devedor.
Conhecera Cristo realm ente significa um cancelam ento
definitivo, riscar completamente aquela prim eira coluna de recur­
sos, cheia das provas de nossas boas obras. Na outra coluna está
somente Cristo. “Só ali pode ser visto o valor supremo de ter Jesus
como Senhor e Salvador. Conhecer o Filho de Deus está muito,
muito acima de todo o valor ganho com esforço próprio que antes
pensava possuir”.
O valor real em troca de supostos recursos é para você tam ­
bém, se conhece a Cristo como Paulo o conhecia. Se você o conhece
pela fé, se o conhece como aquele de quem tudo se origina, se o vê
como quem lhe deu a vida, e tem todo direito ao seu amor e lealdade,
então você o “ganhou”. Se você se apega a ele, chegando-se a Cristo
naquele relacionamento de concentração total, então o verá como
Aquele de quem procedem todas as coisas para você, e saberá que
tudo existe para ele. Em termos bíblicos, isto é expresso em uma
pequena frase que se refere a Deus: “Porque dele e por meio dele e
para ele são todas as coisas” (Rom. 11.36). Se é assim que você
considera a Jesus Cristo, você perdeu tudo para ganhar a pérola de
grande preço. As escolhas significativas e a volta da estrada foram
ordenadas por ele, não por você. A m aneira de você pensar e usar

- 170-
E PÍST O LA DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

seu tempo e recursos materiais, tudo contribui para m ostrar como


você se relaciona com Jesus Cristo. Digamos assim: “Se você o
escolhe, então tudo mais deve perder o valor, tornar-se mesmo como
lixo ou “refugo”, para usar a palavra de Paulo no versículo 8. Precisa
ser como todo aquele trigo que foi jogado ao mar, do navioprisão
em que Paulo viajou, ameaçado e agitado por aquelas ondas gigan­
tescas (At 27.17 em diante). Não nos admira o fato de Paulo estar
tão alegre e disposto! É lógico que recomenda aos leitores que se
alegrassem no Senhor, porque um ganho incom parável tin h a
substituído todas as perdas do passado e do presente.
Examine sua vida hoje. Onde você está em relação a perder
tudo a fim de ganhar a Cristo?

A ambição de Paulo (3.9-16)


9e ser achado nele, não tendo justiça própria, que
procede de lei, senão a que é m ediante a fé em Cristo, a
justiça que procede de Deus, baseada na fé; 10para o
conhecer e o poder da sua ressurreição e a comunhão
dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua
morte; "para de algum modo alcançar a ressurreição
dentre os mortos. 12Não que eu o tenha já recebido, ou
tenha já obtido a perfeição; mas prossigo para conquistar
aquilo para o que também fui conquistado por Cristo
Jesus. "Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcan­
çado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que
para trás ficam e avançando para as que diante de mim
estão, "prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana
vocação de Deus em Cristo Jesus. "Todos, pois, que somos
perfeitos, tenhamos este sentimento; e, se porventura
pensais doutro modo, também isto Deus vos esclarecerá.
"Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos.

A autobiografia que Paulo começou a escrever no v. 4 continua


até o v. 16. Só uma vírgula separa os v. 8 e 9. A divisão em duas
m ensagens foi feita unicam ente por conveniência e não pelo
conteúdo do texto. Nos v. 4-7 o apóstolo fala do seu passado, in­
cluindo a mudança transcendental pela sua conversão (v. 7). O v. 8
apresenta como ele encara o presente, trocando tudo pela “subli­
midade do conhecimento de Cristo”. Na últim a passagem deste
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

versículo e no restante da passagem, parece que Paulo contemplava


um futuro que incluía seu relacionamento com Cristo, após a exis­
tência presente ser trocada pela nova vida através da ressurreição
(v. 11,14). Ele desenvolve neste trecho sua mais profunda ambição.
Concentra todas as suas energias no prosseguimento para alcançar
aquela meta que, por si, explica a extraordinária dedicação do
famoso missionário aos gentios. Qualquer indivíduo que pretende
ser um homem de Deus, não poderá deixar de aproveitar a van­
tagem de adotar esta mesma ambição.

A meta de ser achado em Cristo


O motivo que o apóstolo tem para lançar fora do barco de sua vida
religiosa, todos os valores anteriorm ente buscados com tanto afã,
se encontra no v. 9: “ser achado nele, não tendo justiça própria...
senão a que é m ediante a fé em Cristo, a justiça que procede de
Deus...”. Este versículo apresenta o cerne da doutrina paulina da
salvação em Cristo. Se pela fé renunciamos toda justiça própria e
recebemos aquela oferecida por Deus mediante a fé nele, garantimos
o mais precioso de todos os valores. A união com Cristo pela fé,
que nos enxerta nele (também chamada de “união m ística”), pela
operação do Espírito Santo (cf. ICo 12.13 e G12.20), nos garante a
participação na própria justiça impecável de Cristo. Essa justiça
Deus oferece de graça à todos que confiam no seu Filho. A justi­
ficação (o ato divino que legalmente nos absolve dos nossos pecados
e nos declara justos) não depende de nada bom ou justo que
possamos oferecer em troca. Deuz fez tudo para que não tivéssemos
em nós motivos de glória (Ef 2.8, 9) e para que só exaltássemos a
Jesus Cristo. Assim, Paulo deixa claro que a justificação pela fé e a
união com Cristo são realidades equivalentes. Ambas explicam o
porque dos pecadores salvos gozarem da justiça que eles não podem
produzir. Não é por retidão ou piedade por eles alcançadas, mas
por dádiva completamente gratuita. O nono versículo, portanto,
explica a realidade válida para todos os que, como Paulo, consideram
todas as coisas como refugo (v. 8). A fé que se destaca, repetida
duas vezes no v. 9, tem então um aspecto negativo (perder tudo que
possa fornecer motivo de auto-confiança ou orgulho e igualmente
um positivo. Pela fé nos identificamos com Cristo, confiamos nele
e nos entregamos a ele. Somos unidos com ele e nele permanecemos
Qo 15.3-11). Portanto, ele é nossa “justiça”, escreveu Paulo aos

- 172 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FI L1 PENSES

coríntios (ICo 1.30). Seria um erro fatal, no entanto, concluir que


a fé proporciona um descanso excluindo o esforço, numa sonolência
absoluta. A justiça inputada por Deus deve ser praticada pela
dinâmica que surge da vida de Cristo em nós. Todo o zelo que Saulo
de Tarso empreendia no esforço para cum prir a lei e merecer a
aprovação divina passou a busca do reino de Cristo (cf. M t 6.33).
Desligado da frenética corrida para a justiça própria, Paulo enco-
rajou-se para a exploração do relacionamento com Cristo. O amor
por ele (cf. v. 8) substituiu o amor próprio.

0 alvo de experim entar a vida real de Jesus


Este zelo, impulsionado pelo amor, explica o pensamento do v. 10.
Novamente ele repete a meta da sua vida em Cristo. — 1) Desejava
ardentemente “conhecer” a Cristo. Já revelara que conhecer a Cristo
Jesus é excelente, uma “sublim idade” Qiuperechon no grego — v.
8). Creio que cabería uma ilustração aqui.
Um vagabundo que cambaleava ao lado de um rio, caiu nas
águas profundas. Não sabia nadar, mesmo se estivesse sóbrio.
Passava à beira daquele rio um senhor que ouviu os gritos de socorro.
Sem hesitação, o homem distinto pulou nas águas arriscando sua
própria vida para salvar o bêbado. Novamente em terra firme, o
desgraçado tentou, mesmo com m uita dificuldade, externar sua
gratidão. “Obrigado, obrigado”, falou sem m uita convicção. O
homem que o salvara tirou do bolso do paletó gotejante, um cartão
de visita. “Se algum dia precisar de mim, vá à m inha' casa e pro-
cure-me”, disse o estranho desprendidam ente. Naquela noite, o
vagabundo dorm iu todo m olhado, como sem pre, na sarjeta.
Amanheceu com frio e fam into, mas não dispunha de dinheiro
algum. Mal se lembrava da experiência do dia anterior; porém a
fome intensificou sua perspicácia e se lembrou: “o cartão!” Logo
encontrou a casa. O que mais o surpreendeu é que era a maior casa
e a mais opulenta da cidade toda. Apertou a campainha. Suas roupas
rasgadas e im undas o constrangiam, mas o porteiro logo o conduziu
à belíssima sala de estar onde aguardaria a chegada do amigo desco­
nhecido. Quando pouco depois chegou o fidalgo, aquele mesmo
senhor que apenas horas antes o socorrera das águas ameaçadoras,
trazia um sorriso que comunicava um “bem-vindo” genuíno. Assen­
taram-se e conversaram. “Deve estar com fome! Gostaria de tomar
o café comigo?” disse o simpático anfitrião. Queria, e como queria!

- 173 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

O café reforçado, corno nunca havia saboreado em toda sua vida,


matou sua fome. Subitam ente o nobre dono da casa indagou se
gostaria de tomar um banho. “Quero sim...”. Havia também um
terno no guarda-roupas e lâminas de barbear no banheiro. “A casa
é sua; não há pressa”, reforçou o benévolo senhor.
“Fique aqui comigo. O quarto de hóspedes está à sua dis­
posição!”. O bêbado tomou seu banho, descansou na cama macia,
vestiu-se no terno novo, tentando sempre responder à indagação:
“Por que este fidalgo está me tratando assim ?”. Em nenhum
momento satisfez a sua curiosidade. Foi sinceram ente convidado
a ficar naquele palácio por quanto tem po quisesse, bondade que
não podería deixar de aceitar, um a vez que nada tinha na vida.
Mais estranho ainda era o fato que o amigo tão distinto e bondoso,
nada tin h a a fazer de m ais urgente do que conversar com o
vagabundo, agora em vias de transform ação radical. Os dias se
passaram. Chegaram a ser amigos, e dos mais íntim os. O antigo
bêbado, já reform ado, buscava servir o nobre com toda sua
capacidade. Contava como o tem po mais precioso da sua vida o
da comunhão com seu amigo. Conversavam sobre tudo que os
interessava.
O estranho chegou a ser “conhecido” já no fim do prim eiro
dia, mas depois de meses e anos de comunhão, o ex-alcoólatra
miserável podia dizer: “estou conhecendo o amigo que me salvou!”.
Este relacionamento representa o sentimento de Paulo. Do
auto esforço para fazer o que era certo (tal como o viciado que tudo
faz para livrar-se do álcool ou (das drogas), passou a conhecer o
seu libertador, e conhecendo-o foi tornando-se gradativamente mais
seu im itador (1 Co 11.1).
2) O apóstolo desejava também conhecer o poder da sua ressur­
reição (v. 10). Tal como a força nuclear tem transformado o m undo
e a política internacional até às raízes, assim o poder de Deus
dem onstrado na ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos,
modificou a realidade do nosso mundo. Foi esse o poder exercido
quando nós fomos ressuscitados da morte em “delitos e pecados,
pelo qual Deus féz-nos assentar com Cristo nos lugares celestiais”
(cf. Ef 1.19-2.1 e 6). O poder da ressurreição transformou a derrota
da cruz em vitória sobre todas as forças malignas (cf. 1.21, 22), e
entronizou Jesus Cristo como Messias e Senhor (kúrios) à destra de
Deus (SI 110.1; At 2.36; Rm 1.4). Creio que Paulo, que achava a
língua grega pobre demais para descrever esse poder (nota-se em

174
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S FILIPENSES

sua oração, para que os efésios pudessem conhecer “a suprema


grandeza do seu poder (dunamis) para com os que cremos, segundo
a eficácia (energeian) da força (kratos) do seu poder (ischuos)” exercida
na ressurreição cap. 1.19), esperava no Senhor, cada dia, receber
manifestações dessa atuação na ressurreição de mortos espirituais
pela sua anunciação das boas novas.
Pela m aneira como Paulo une as duas m etas no v. 10, a
prim eira, conhecer a Cristo, e a segunda, o poder da ressurreição,
podemos deduzir que, ter comunhão íntim a com Cristo traz o efeito
de experim entar esse poder da nova criação (2Co 5.17). Buscar
zelosamente a comunhão com Cristo pela oração, pela meditação
na sua Palavra e pela adoração espiritual (v. 3), incute no cristão o
poder que emana do Salvador ressurreto e exaltado.
3) Em terceiro lugar, Paulo ansiava pela comunhão nos
sofrimentos de Cristo (v. 10). “Com unhão” (koinõnia) deve ser enten­
dida no seu sentido básico de “participação”. Os sofrimentos de
Jesus, quando viveu no mundo, incluiram toda forma de rejeição
dos homens. Nosso Senhor suportou o que o autor aos Hebreus
denominou de “tam anha oposição dos pecadores” (12.3).
Esses sofrimentos de Cristo ocorreram em conseqüência
direta da sua humilhação e obediência (2.8). O servo Paulo (1:1)
não esperava nem desejava melhor sorte neste m undo que a do seu
Senhor (cf. Jo 13.16). Portanto, desejava participar dessas aflições
por causa de Cristo e para a glória dele.
O que Cristo sofreu por nós na terra foi, infinitamente, mais
do que o necessário para cobrir nossos pecados (ljo 2.2). As perse­
guições e dores dos discípulos nada contribuem para a expiação do
pecado humano. A redenção, ou preço do nosso resgate, só o Filho
perfeito pode oferecer ao Pai (Rm 3.24, 25; ICo 6.20; E f 1.17; Cl
1.14). Mas o preço sacrificial para divulgar essa notícia redentora é
o que “resta das aflições de Cristo” (Cl 1.24). Paulo está disposto a
sentir esses sofrimentos na carne, até mesmo a própria morte. Esse
desejo de se apresentar diante de Cristo, tendo trilhado a ‘via de
glória” (é como os m ártires chegaram a entendê-la!) não era mór­
bida. Isso já percebemos no exame dos versículos 1.29-26. Paulo
simplesmente via no m artírio o mais extraordinário testemunho
da fé, a mesma fé pela qual conhecera o Senhor. Não haveria mais
concreta demonstração da sua fé em Cristo, nem do seu amor por
ele, do que receber de Deus a graça de se conformar com Cristo no
sacrifício da vida (cf. 2.17). D aí o poder da ressurreição, atuando

175
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

nesta vida na carne, manifestar-se no levantamento de Paulo dentre


os fisicamente mortos (v. 11). Parece que Paulo tinha alguma dúvida
a respeito da sua ressurreição corporal, porque disse, “para de
alguma m aneira alcançar a ressurreição...”. A frase “de alguma
m aneira” representa o grego “ei-põs”, que introduz a possibilidade
que é o objeto da esperança ou desejo. Não creio que seja o destino,
mas o modò de chegar, pelo m artírio, pela morte natural ou mesmo
pela transmutação na vinda de Jesus Cristo (lTs 4.15; ICo 15.51),
que Paulo não prevê claramente. O dia da ressurreição será o mesmo
do nosso aperfeiçoamento (v. 21). Naquela grandiosa hora de vitória,
receberemos tudo o que Deus planejou para os seus amados. Ainda
que Paulo acreditasse na ressurreição com Cristo após a morte com
ele (Cl 2.12; 20.31), ele não ensinou que o crente recém-batizado
obtém a perfeição (3.12). No intervalo entre a regeneração e a trans­
formação escatológica completa, temos a carreira cristã para ocupar
todo nosso esforço.

0 que incentivou Paulo


O veterano missionário fala, no v. 12, da motivação central da sua
ambição. “Prossigo (gr. diõkõ: “perseguir”, “concentrar os esforços”)
para conquistar aquilo para o que também fui conquistado por
Cristo Jesus”. Desde o dia em que viu e ouviu a chamada do mestre
na estrada em Damasco, soube que era “um instrum ento escolhido
para levar o nome de Cristo perante os gentios e os reis, bem como
perante os filhos de Israel” (At 9.15). Foi cativado num a conquista
estarrecedora de C risto. C onseqüentem ente quis tam bém , de
maneira incansável, conquistar os territórios ainda rebeldes ao seu
Rei. Juntavam-se na visão de Paulo, o aperfeiçoamento pessoal
através do conhecimento de Jesus (v. 8,10), e seu ministério evange-
lizador. Seu Senhor o conquistara para ambas as tarefas. Cristo
também fez o mesmo com cada um de nós. A finalidade de nossa
eleição é proclamada claramente: sermos apresentados perfeitos
em Cristo (Cl 1.28; cf. E f 1.4). Mas, assim como o guerreiro Paulo,
somos soldados do Rei Jesus (2Tm 2.3,4) na luta para a conquista
das “terras” dominadas pelas trevas satânicas. Em Romanos, Paulo
esclarece aos seus leitores qual era sua visão do seu ministério. Era
“m inistério do Senhor Jesus no sagrado encargo de anunciar o
evangelho de Deus, de modo que a oferta deles (os gentios) seja
aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo... esforçando-me

- 176 -
E P Í S T O L A DE PAULO A O S F i L i P E N S E S

deste modo para pregar o evangelho não onde Cristo já fora anun­
ciado...” (15.16, 20).
Tudo isto deixa bem claro por que o apóstolo não corria sem
meta. Declarou ele: “...luto, não como desferindo golpes no ar”
(ICo 9.26). É certo, porém, que muitos componentes do “exército
da salvação”, ainda não foram conscientizados com respeito à luta.
Não perseguem a perfeição nem anseiam a conquista do alvo para
o qual Deus os chamou. Estão contentes com a salvação gratuita,
mas a ambição de conhecer a Cristo e participar nos seus sofri­
mentos e exercer seu poder não se manifesta!
Qual seria a explicação para essa anomalia? Creio que pode­
mos descobrir um motivo, que se subentende das entrelinhas dos
versículos 13-15.
Paulo não se colocava entre os que julgavam que já haviam
alcançado o alvo divinamente escolhido para cada um. Parece que
em Filipos, como também em outras igrejas gregas, surgira a teologia
perfeccionista. Raízes deste erro se descobriam no gnosticismo elitista
de um lado e no judaísmo do outro (ver a frase relevante do v. 6,
“quanto à justiça que há na lei, irrepreensível”, tratando da vida no
farisaísmo de Saulo/Paulo). O gnóstico, iniciado nas especulações
acerca do distante Deus bom e imaterial, e também acerca do mundo
mau, por ser material, possuía duas tendências: uma ascética e a
outra libertina (veja os v. 18,19). Pelo conhecimento (gnõsis), o adepto
poderia subir a suposta escada da perfeição, desligando-se do “imper­
feito”. Semelhantemente, o fariseu orava no templo agradecendo a
Deus por sua perfeição (Lc 18.11,12).
Pela sua conversão radical, Paulo se distanciou totalmente
desse tipo de auto-conceito. A perfeição de Jesus Cristo fez contraste
com este tipo, como a escuridão da meia-noite o faz com o brilho do
sol ao meio-dia. A profunda revelação da depravação íntima, à luz
da santidade divina, convenceu o apóstolo que ele era não o mais
perfeito dos santos, mas o “principal dos pecadores”’ (lT m 1.15).
Por isso se esquecera “das coisas que para trás ficam” (3.13). Tudo
que conseguira, por sacrifício e abnegação, não pesava na balança.
Eram como trapo imundo uma vez que agora estava revestido com a
justiça imaculada que Deus lhe proporcionara (v. 7-9). Aliviado da
necessidade de se convencer de que merecia um galardão da parte
de Deus, Paulo então pode se dedicar, sem tréguas, à conquista do
alvo. O termo “avançando” (gr. epekteinomenos, “estendendo-se”,
“esticando-se ao máximo”), mostra a obsessão do homem de Deus

- 1 7 7 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

na perseguição (gr. diõkõs, “prossigo’ v. 14, também v. 12) do alvo (já


visto nos v. 9,10). O alvo (skopos, “um objeto no qual se fixa os olhos”,
“a meta numa corrida”) corresponde ao prêmio descrito simples­
mente como a “chamada de Deus em Cristo Jesus”. A figura da cor­
rida serve para destacar que Paulo enxergava nitidamente o alvo, e
esperava logo receber o prêmio. Refere-se ao encontro com seu amado
Senhor o qual já descrevera como “incomparavelmente m elhor”
(1.23) do que viver neste mundo de sofrimento e decepção.
Parece-me que descobrimos aqui porque os cristãos mornos
não passam de espectadores, ao invés de corredores na corrida da
salvação. Não descartam todos os bens alcançados por esforço
próprio. Sentem-se bem na “perfeição” atingida. Não almejam o
conhecim ento de C risto, seu suprem o valor, nem se sentem
impulsionados a “perseguir” o alvo da santidade, pela comunhão
dos sofrimentos de Cristo. Não contem plam a vida como uma
corrida com um prêmio a ser ganho no fim. Pelo contrário, a única
luta que travam é para m elhorar esta vida, buscando mais conforto,
prazer e reconhecimento dos homens (cf. Jo 12.42,43). Crêem que
sua ressurreição está garantida, mais certa que a de Paulo (v. 11).
Todas as energias que têm, dissipam adorando o “deus ventre” e
tentando resolver as preocupações seculares (cf. v. 19; Lc 8.14, onde
os tais são os crentes sufocados pelos espinhos de “cuidados,
riquezas e deleites da vida”). É notável que Paulo, que negou no v.
12 o fato de ter alcançado a perfeição no sentido moral e corporal
da ressurreição, se inclua entre os perfeitos, no v. 15. Obviamente o
sentido é distinto. N esta últim a passagem significa “m aduro”,
“adulto”, contrastando com a “criancice” e a im aturidade (cf. ICo
2.6 e Cl 1.28 onde o mesmo termo é usado).
Os adultos espirituais, segundo este versículo 15, devem
manifestar a mesma atitude (phronêma, cf. 2.2,5; 4.8). A criança na
fé então, seria m ais auto d ep en d en te, defensiva, ao invés de
arrependida e ansiosa para conhecer a Cristo cada vez melhor. Em
Filipos não houve sentim ento de rebeldia contra Paulo, o que
dispensou a necessidade de ele apoiar a sua autoridade apostólica,
co n trariam en te ao que aconteceu em C o rin to (cf. IC o 9.1).
Qualquer divergência de pensamento que por acaso pudesse surgir
em Filipos, não perturbava Paulo. Conquanto a atitude fosse de
submissão ao Senhor, podería haver diferença sem divisão, e Deus
lhes esclarecería (v. 15b). Paulo finaliza este parágrafo com seu “mais
uma coisa” (gr. plên, palavra usada para introduzir uma declaração

- 178 -
E P Í S T O L A DE PA UL O AOS F I L I P E N S E S

que destaca o ponto principal que o autor disse no parágrafo todo).


“Continuemos no mesmo caminho em que estamos em vez de vol­
tarmos e tomarmos um rumo novo” (v. 16).

Conclusão
Ao m editar nesta declaração autobiográfica, não é fácil escapar à
acusação íntim a de que somos espectadores. Nossas ambições estão
mais voltadas para vantagens mundanas do que para prêmios celes­
tiais. Mas Deus é capaz de refocalizar nossa visão e renovar nossa
ambição pelo alvo.

0 corpo (3 .1 7-2 1 )
l7Irmãos, sede imitadores meus e observai os que
andam segundo o modelo que tendes em nós. lsPois
muitos andam entre nós, dos quais repetidas vezes eu
vos dizia e agora vos digo até chorando, que são inimigos
da cruz de Cristo: 190 destino deles é a perdição, o deus
deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia; visto
que só se preocupam com as coisas terrenas. 20Pois a nossa
pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Sal­
vador, o Senhor Jesus Cristo, 2Io qual transform ará o
nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da
sua glória, segundo a eficácia do poder que ele tem de
até subordinar a si todas as coisas.

Introdução
Facilmente confundo os fatos, mas se a m inha memória não falha,
li há tempos que a preocupação prioritária do norte-americano é a
saúde. Creio que seria nossa preocupação também aqui. Quando
perguntamos, “Como está?” normalmente indagamos “Como está
fisicamente?”. “Como está o seu corpo?” Está doente ou saudável?”
“Está com dor de cabeça ou se sente capaz de voar?”, se tivesse
asas, claro. Para nós, então, o corpo é o que mais importa. Talvez os
cristãos afirmariam, “Não, não é meu corpo, mas a m inha alma,
meu espírito que destaca-se com proeminência”.
Não seria difícil mostrar que a Bíblia concede um significado
imenso ao corpo. Não tanto a “meu corpo”, sendo que biblicamente

- 179 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

se destaca mais a verdade que “somos corpo”, do que, “tenho corpo”.


Observemos, portanto, algum as verdades da Bíblia sobre esta
realidade física.

0 significado do sorpe na Bíblia


Paulo dá ao corpo uma posição central na sua teologia. É do corpo
do pecado condenado a destruição que precisamos ser salvos (Rm
6.6). “Desventurado homem que sou! quem me livrará do corpo
desta morte?” é o grito desesperado de quem vê o pecado utilizando
o corpo como uma prisão, um verdadeiro meio de tentação e tortura.
Desse corpo de pecado Paulo almeja libertação. É o grito de deses­
pero, como ouvi ao falar com uma moça que me disse ter muitas
vezes tentato se suicidar. Queria destruir o seu corpo físico. Pude
sentir o profundo desprezo que ela tinha para com seu corpo. Não
tinha mais razão para viver no corpo. A única razão pela qual não
decidiu acabar com sua vida é que não sabia como será a vida fora
ou além do corpo.
Mas Paulo afirma que pelo corpo também somos salvos. Jesus
Cristo uniu-se a hum anidade por meio da encarnação num corpo.
Entre as mais im portantes de todas as verdades, afirmamos que
Deus se tornou homem (Jo 1.14). “Sacrifício e oferta não quiseste,
antes corpo me formaste”, é a inspirada confissão atribuída pelo
autor de Hebreus (10.5) a Jesus Cristo, citando a versão grega de
Salmos 40. Porque recebeu um corpo, Cristo pode sacrificá-lo numa
oferta aceitável pelo pecado. Por causa do corpo de Jesus, nascido
da virgem M aria, podemos esperar um corpo transformado quando
Cristo voltar (3.21). Em conseqüência da morte na cruz e a ressur­
reição de Jesus, ambos eventos condicionados pelo corpo, nós que
cremos nele, temos a firme esperança de ganhar um novo corpo,
semelhante ao dele. Paulo o descreve como “igual ao corpo de sua
glória” (v. 21). Por sermos incorporados pelo Espírito ao seu corpo
(ICo 12.13), que é a igreja, temos a certeza de com partilhar a nova
realidade eterna que caracteriza o Jesus assunto: um corpo que não
pode morrer, “eterno, nos céus” (2Co 5.1).
Em ICoríntios 15, o corpo ressurreto de Cristo é denominado
“as primícias” (v. 23) da colheita toda. A conseqüência inevitável
da ressurreição do Senhor no prim eiro domingo de páscoa, será a
transformação de todos os que lhe pertencem “na sua vinda” (ICo
15.23), porque todos são incorporados nele.

- 1 8 0 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S FILiPENSES

Na ceia, Jesus nos oferece o seu corpo “que é dado por vós”
(ICo 11.24). Porque será que não nos oferece o seu Espírito assim?
Deve ser porque através da união com seu corpo, nos é oferecido
seu Espírito. A vida está no corpo, não nos membros separados,
assim como os ramos de uma videira gozam da vida unicamente
pela perm anência no tronco Qo 15.1-9). Evidentemente, trata-se
de conceitos hebreus, não gregos. Nós pensamos de maneira grega,
Paulo de maneira hebraica. É o corpo que manifesta a vida de Cristo
(ICo 10.16,17). Por isso, é sumamente im portante que os membros
do corpo se reúnam dando localização e objetividade a persona­
lidade do Senhor que vive no corpo, a igreja. Devemos constan­
tem ente reconhecer nossa dependência uns dos outros e a vida
comum que sustenta o corpo. L.S. Thornton intitulou seu livro, A
Vida Comum no Corpo, o que transm ite a verdade central. Nossa
vida em Cristo não é em prim eira instância, uma vida unida indivi­
dualm ente a Cristo, mas um a vida com partilhada com nossos
irmãos em Cristo (Rm 12.5).
Por esta razão, Paulo diz aos coríntios, “o corpo não é para
impureza, mas para o Senhor” (ICo 6.13). Nossos corpos são com­
prados, destinados por meio da transformação da ressurreição a
transm itir a perfeição do corpo de Cristo, porque nossos “corpos
são membros de Cristo”(ICo 6.15).
O crente que comete fornicação ou adultério toma um
membro de Cristo (o corpo) e o faz membro de m eretriz (ICo 6.15,
16). Assim, pelo corpo nos unimos a Cristo, ou nós nos separamos
dele. Se pelo corpo hum ano reconhecemos as máculas e a beleza
da pessoa, a Bíblia indica que semelhantemente o corpo manifesta
por um lado a formosura de Jesus e os defeitos humanos. Com
razão o apóstolo aponta para o corpo como “corpo de hum ilhação”
(3.21), repleto de limitações e deficiências. Mas também é concre­
tização da personalidade, membro do corpo de Cristo, garantia da
nossa existência eterna que aguardamos (v. 21).

I concepção grega do corpo


A m aneira de os antigos gregos olharem para o corpo foi muito
distinta. O corpo se assemelhava a um escravo. Como servo vivo, é
óbvio, mas distinto da personalidade. Manda-se o escravo agir, e
ele obedece. Surgiu uma frase entre os gregos da antigüidade: sõma
sêma, “corpo caixão”. Como noz na casca, a alma existia dentro do

- 181 -
EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

corpo. O verdadeiro eu e você, segundo os gregos, eram distintos


do corpo. Evidentemente, se acatarmos tal ponto de vista, o que se
faz com o corpo não tem importância alguma para o ser verdadeiro.
Se meu corpo é escravo, faço o que quero com ele, sem tem er cul­
pa. A eutanásia não seria pecado, porque destruiria o que não tem
mais utilidade. Se o corpo não passa de caixão ou casca, por que
não m altratá-lo comendo erradam ente, tomando drogas, ou de
qualquer outra forma? O suicídio seria uma opção perfeitamente
viável para quem se cansou de viver, no caso de alguém que não
encara seriamente a m aneira bíblica de pensar.
O pensamento gnóstico foi uma das maiores ameaças à igreja
primitiva. Com um forte dualismo radicado na filosofia grega, a
matéria era considerada má, e o espírito, bom. Alguns eram da
opinião de que uma vez iniciado na realidade espiritual, o que se
fazia com o corpo não importava. Havia gnósticos libertinos que
praticavam a prostituição (Ap 2.14,21), incluindo toda e qualquer
perversão (cf. Jd. 4,7-16). A essa ala de hereges Paulo se dirige em
3.18-19, uma vez que o deus deles era o ventre e “a glória deles
estava na sua infâmia”.
A outra ala gnóstica, representada no quadro pintado por
Paulo em Colossenses 2 e ITimóteo 4.1-4, cria no asceticismo. Por
meio da observação de ritos e evitando os tabus prescritos, seria
possível subir a escada de “espiritualização”, deixando para trás a
matéria má.
O cristianism o atraiu estes filósofos religiosos que desco­
nheciam qualquer Deus pessoal, e procuravam soluções para a
ansiedade do homem que precisa ser salvo, achando que pode a si
mesmo redimir.

0 conceito do corpo entre os lielreus


Mas qual era, afinal, o conceito hebreu do corpo? Tanto no Antigo
como no Novo Testamento, o corpo se identifica estreitamente com
você. Portanto, é lógico dar seu último cruzeiro para m anter o corpo
vivo se não houver a ressurreição. Se a vida neste corpo humano, é a
única vida, porque não mantê-la fazendo uso de todo o nosso esforço?
Estranham ente, os hebreus careciam de qualquer vocábulo
para transm itir o conceito de “corpo”. No hebraico original do
Antigo Testam ento, seja onde for, não descobrim os a palavra
“corpo”. O que encontramos são os membros, partes do corpo, que

- 182
E P ÍS T O L A d e PAULO AOS F I L IP E N S E S

representam o corpo ou funções da personalidade. Creio que a razão


pela qual o hebreu não idealizou a palavra “corpo” era porque o
homem não era visto com um corpo individualizado. Pelo contrário,
o que era significativo no Antigo Testamento, era o conceito do
homem como ser vivente (Gn 2.7). Ele foi conceituado como carne,
animada pelo fôlego de Deus, inteiram ente dependente e respon­
sável junto a ele. Por isso, o salmista disse:

Se ocultas o teu rosto, eles se perturbam ,


Se lhes cortas a respiração, morrem
e voltam ao seu pó.
Envias o teu Espírito, eles são criados,
e assim renovas a face da terra (SI 104.29, 30).

Deus é quem dá o fôlego de vida à carne hum ana para que a


pessoa se concretize no corpo.
Por esta razão, o corpo apresenta um quadro ou janela aberta
da vida que o indivíduo está vivendo. Marcas suscitadas pela ansie­
dade se manifestam no corpo. O temor estampa no rosto suas marcas
visíveis. Paz e a tranqüilidade criam sua fisionomia característica.
Segundo seus sentimentos, o corpo reflete o orgulho e superio­
ridade, ou vergonha e inferioridade. O sorriso do indivíduo alegre
e confiante expressa o que se passa no seu coração, mas um olhar
triste ou m edroso igualm ente reflete quem form ou essa sua
característica de personalidade. Os hábitos de longos anos fazem
do corpo uma carta aberta para todos lerem (cf. 2Co 3.3).

Epicureus e estoicos
Também pelo fato de a vida ser corporal, devemos refletir uns ins­
tantes sobre a morte. Os epicureus gregos (cf. At 17.18) conceberam
a morte como os psicólogos modernos que seguem o pensamento
de B.F. Skinner da U niversidade de H arvard. A morte é sim ­
plesmente a desintegração das moléculas que, juntas, mantém a
vida corporal. Assim como cortar um nervo, cessa a transmissão de
um sentido porque o impulso elétrico não pode passar, a vida cessa
quando não há mais impulsos elétricos no cérebro. Para o epicureu
que aprendeu com Demócrito ou Lucrécio, ou o homem moderno
que lim ita o significado da vida a processos mecânicos e biológicos,
a influência mecânica atinge diretam ente seu modus vivendi. “Se os
mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, que amanhã m orre­

- 183 -
EPÍSTOLAS DA PR I SÃ O

remos” (ICo 15.32) revela a filosofia decorrente da concepção de


morte a qual nos apegamos. Não há outro estágio de vida, apenas
aniquilação, um nada infinito, como pensava Jean Paul Sartre,
existencialista francês moderno.
Para os estóicos (cf. At 17.18), m orrer era o clímax da vida.
Como Sócrates, os estóicos almejavam m orrer com coragem, bela e
tranqüilamente. Assim, o espírito do morimbundo se une com a
mente espalhada em todo o universo. Era um modo de pensar que
aproximava-se do panteísmo. Assim Platão achava que pela morte
o homem era novamente unido ao ideal, o deus universal do mundo
de idéias. A personalidade individual desaparece como a gota de
água no mar. Também se assemelhava a doutrina budista do nirvana,
em que se esperava perder a consciência no eterno inconsciente.

PauEo apeSa aes filipenses para que o imitem


Que contraste notável encontram os em Filipenses 3. Em
primeiro lugar o apóstolo reage ao ponto de vista gnóstico: “Irmãos,
sede imitadores meus” (v. 17). Imitação requer o corpo; sem ações
visíveis, ou palavras faladas, torna-se impossível im itar o modelo.
Todos transmitim os modelos de ação aos nossos filhos, maneiras
de falar, agir ou tratar os outros, por intermédio do corpo. Mas
Paulo refere-se a sua vida em Cristo que fornecia um quadro atuante
que devia ser imitado pelos filipenses e por nós.
No meio do povo de Deus, havia e ainda há, “muitos... que
são inimigos da cruz de Cristo” (v. 18). Paulo julgou necessário
advertir os cristãos reais, repetidas vezes, acerca deste modelo oposto
ao que Jesus nos deixou na sua paixão. Paulo enfatizou sua mágoa
com lágrimas, “chorando”. Preciosíssimos candidatos para partilhar
a glória de Jesus Cristo (cf. Jo 17.22), foram desviados para atitudes
e ações inimigas do significado real da cruz. Enquanto a morte de
Cristo foi a ponte providenciada por Deus para efetuar o perdão e
negação do pecado, este pensamento satânico (cf. M t 16.23), glo­
riava-se na exaltação do pecado. Nestes versículos, Paulo não
condena os perseguidores, mas membros da comunidade que reivin­
dicam ter uma compreensão m ais profunda da graça. Se com­
portavam como os coríntios que se jactavam de um a liberdade tão
ampla que apoiaram integralmente a imoralidade do membro da
igreja que se atreveu a “possuir a m ulher de seu próprio pai” (ICo
5.1s). Afinal das contas, o “pecado” não passou de ato corporal!

- 184-
E P ÍS TO LA DE P A U L O AOS F1L1PENSES

Mas uma vez percebida a finalidade da cruz de Cristo, não seria


possível evitar a conclusão que o pecado inclui atos praticados pelo
corpo e pensamentos também. Paulo reconhecia que toda iniqüi-
dade nega a finalidade da morte agonizante de Cristo no calvário.
Por isso ele disse, “Longe de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso
Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu
para o mundo” (G1 6.14).
Jesus convidou os seus seguidores a tomar a cruz e segui-lo
(Mt 16.24). A cruz foi um eficaz instrum ento romano de morte
cruel. Nela o corpo era preso, torturado e finalmente morto. “Estou
crucificado com Cristo”, confessou o apóstolo em Gálatas 2.20. Em
conseqüência, levava “sempre no corpo o morrer de Jesus para que tam­
bém a sua vida se manifeste em nosso corpo” (2Co 4.10). Como o corpo
do Filho de Deus foi traspassado e esmagado na cruz, Paulo deduziu
que todos que gozam do privilégio de participar no corpo de Cristo
(a sua igreja) devem também com partilhara mesma finalidade da
encarnação, isto é, extirpar o pecado do nosso corpo individual e
lutar para a santificação no corpo de Cristo (cf. ICo 5.6-8). É pelo
corpo que revelamos a realidade invisível do “homem interior” (cf.
2Co 4.16). Assim também o sacrifício perfeito de Jesus na cruz revelou
a realidade da sua vontade submissa ao Pai, que o aceitou como
expiação por nós (Hb 10.10). Mas os hereges judaizantes gnósticos
(cf. v. 2) eram inim igos da cruz. Um cristianism o m ental ou
“espiritual” bastava. Se ser cristão implicava em perseguição física,
fome, vida de pureza moral, e perda de conforto corporal ou status
na sociedade, p orque não m o d ific a r a d o u trin a ? Tal foi a
transformação da verdade revelada que levaram seu destino do céu
para o inferno (v. 19, “perdição”). Seu “deus” foi destituído do alto
céu para se localizar nos apetites, tanto para alimentos suculentos
como para o sexo. A glória divina manifestada na encarnação, paixão,
ressurreição e exaltação de Cristo foi transformada na “infâmia” (gr.
aischune, “vergonha”, “práticas denunciadas pela própria sociedade
como inconvenientes e contrárias à moralidade” (cf. Ef 5.11,12). A
degradação de tal modo os dominou que não elevavam seus olhos
acima do mundo e os prazeres imediatos que ele oferece (v. 19b).
Não deixemos de fixar firmemente a ironia destas linhas do
texto sagrado. A busca da “boa vida” e a “liberdade” em Cristo,
afirmando o dualismo que abafava o corpo e exaltava uma espiri­
tualidade espúria, resultou na vida dominada pelos instintos mais
baixos. Talvez seja a razão pela qual o Novo Testamento apresenta

- 185 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

a “perdição”, que é destino deles, como um inferno físico. Não


encontramos um quadro de tormentos mentais, mas o “ranger de
dentes”, chamas e sede tão intensa que uma gota de água ofere­
cería um alívio tremendo (cf. Lc 16.24). “Adoraram” seus corpos,
colocaram a satisfação e prazer do físico em primeiro lugar, em vez
de dar prioridade ao reino de Deus (Mt 6.33).
Deus convida os seus filhos a oferecerem seus corpos como
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (Rm 12.1). Ao contrário dos
que edificam um altar para o “deus ventre”, eles sacrificam o corpo
ao Criador como veículo de serviço e glorificação. Desse modo, o
corpo se manifesta como verdadeiro palácio ou templo do Rei divino.

Vejamos como Paulo avaliava o corpo nos versículos 20 e 21. Pri­


meiro, reconhecemos que somos cidadãos de um outro país. Filipos
era colonia romana. A população, na m aioria, era composta de
cidadãos de Roma ainda que vivendo na Macedônia (hoje Grécia),
tendo os privilégios e responsabilidades dos romanos nativos. Os
cristãos também são cidadãos do céu, sua verdadeira pátria e des­
tino. Nossa vida no corpo mostra alguns inconvenientes. Mesmo
quem é portador do passaporte celestial, tem que aguardar paciente­
mente (gr. apekdechometha) a vinda do nosso Salvador (v. 20) para
receber a libertação da “humilhação” que nossos corpos nos impõem.
Nesta vida pré-transform ada (v. 21) os nossos corpos nos
hum ilham constantemente. Mesmo entregues totalm ente a Deus,
isso não corresponde à realidade. Não seria agradável dar 24 horas
de serviço incansável a Deus? Não podemos. Não nos agradaria
oferecer todo nosso dinheiro para a obra de Deus (como a viúva de
Mc 12.41-44)? Não podemos, pois é necessário gastar com alimento,
aluguel, vestimenta e, às vezes com o médico. Nosso corpo se cansa
rapidamente; tem fome e sede pouco tempo depois de alimentado.
Não importa quanto nos preocupamos em tratá-lo bem, doenças
das mais variadas sortes o invadem e o derrubam. Passando os anos,
o corpo se enfraquece, aum entando ainda mais a nossa “hum i­
lhação”. O corpo reivindica conforto, segurança, sustento, beleza e
satisfação. Mas preocupar-se apenas com tais reivindicações apaga
a evidência de nossa cidadania celestial. Paulo escreve: “Esmurro o
meu corpo, e o reduzo a escravidão, para que tendo pregado a outros não
venha eu mesmo a ser desqualificado”(\ Co 9.27). Por isso quando Paulo

186 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A OS F I L I P E N S E S

ensinava e exortava a igreja de Trôade durante toda a noite (At


20.7-12), não duvido que tenha se cansado mais do que Êutico que
se deixou vencer pelo sono (v. 9). Paulo aprendera com Jesus (cf.
Lc 6.12,22.39-46 e paralelos). Há ocasiões em que o corpo deve ser
subjugado para dedicar um serviço agradável a Deus.
Após mil outros golpes no próprio corpo, Paulo chegou a
Roma, condenado a prisão. Confinado a uma pequena cova abaixo
do nível da terra, se pudermos confiar na tradição incerta, sofreu
frio (cf. 2Tm 4.13), ausência de seus livros e solidão (2Tm 4.13,
16). O corpo reclamava, mas Paulo sacrificara seu corpo na espe­
rança da sua transformação “para ser igual ao corpo da sua glória”
(3.21). Provavelmente, Paulo foi decapitado. As moléculas e os
átomos que compuseram seu corpo há m uitos séculos se separaram
do corpo que se decompôs. Mas a lei que domina toda a existência
orgânica neste m undo não vencerá a promessa nem o poder de
Deus. Ele tem poder, declara Paulo, para subordinar todas as coisas
a si segundo sua eficácia (v. 21), e demonstrada historicamente na
ressurreição de Jesus (cf. E f 1.19, 20).
Na reintegração da nossa personalidade com o corpo trans­
formado igual ao corpo de Jesus Cristo, não teremos que lutar contra
o corpo, nem sentirem os mais a sua hum ilhação. N unca mais
sentiremos cansaço ou fome. Cantaremos louvores sem enfado;
serviremos sem desejarmos férias. Tudo, e particularm ente nossos
corpos, estarão subordinados na mais perfeita submissão a Deus.
Então, poderemos servi-lo sem qualquer impedimento.

Conclusão
Paulo começou este parágrafo exortando os filipenses a imitá-lo, o
que significa que devem valorizar seus corpos como ele o fez. Nós
tratam os o corpo como se fosse pessoal, i.e., o m ais precioso
sacrifício que podemos oferecer ao nosso amado Senhor. Especial­
m ente devemos nos lem brar que quem entregou seu corpo ao
Senhor, apenas está reconhecendo a verdade fundam ental que ele
não só nos criou, mas também nos comprou pelo sacrifício do seu
próprio corpo (ICo 6.19, 20). O corpo não pertence mais a nós.
Até que ponto nosso corpo reflete nossa cidadania celestial?
Temos, como Paulo, subordinado e escravizado nosso “homem
exterior” ou o estamos idolatrando? Somos inimigos da cruz de
C risto ou carregam os diariam ente nossa cruz e o “m orrer de

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EPÍSTOLAS DA P R IS Ã O

Cristo”? Se aceitamos realmente a Jesus Cristo como nosso Senhor,


im plicitam ente oferecemos nossa vida no corpo para que ele o
habite e o utilize. Que Deus nos mostre como im itar a Paulo que,
por sua vez, im itou a Jesus, dando-nos o incentivo do seu Espírito,
essencial a qualquer autodomínio.

0 contentamento ( 4 .1 - 7 )

4'P ortanto, meus irmãos, amados e mui saudosos,


minha alegria e coroa, sim, amados, permanecei, deste
modo, firmes no Senhor. 2Rogo a Evódia, e rogo a Síntique
pensem concordemente, no Senhor. 3A ti, fiel compa­
nheiro de jugo, também peço que as auxilies, pois juntas
se esforçaram comigo no evangelho, também com Cle­
mente e com os demais cooperadores meus, cujos nomes
se encontram no livro da vida. 4Alegrai-vos sempre no
Senhor; outra vez digo, alegrai-vos. 5Seja a vossa mode­
ração conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor.
6Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém,
sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pe­
la oração e pela súplica, com ações de graça. 7E a paz de
Deus, que excede todo o entendim ento, guardará os
vossos corações e as vossas mentes em Cristo Jesus.

Introdução
Aprendi a dirigir com um primo que dava voltas num caminhão
que apanhava leite ao longo dos caminhos poeirentos da Carolina
do Norte, nos Estados Unidos. João dirigia um caminhão que levava
as latas de vinte ou trinta litros de leite das chácaras e sítios para a
usina onde se condensava e se enlatava o leite. O rótulo das latas de
leite comunicava aos consum idores que o leite viera de vacas
contentes. Eu sei pessoalmente que nem todas as vacas que forne­
ceram esse leite para a companhia “Carnation” estavam sempre
contentes. Tirando leite em certa ocasião, a vaca deu um coice no
balde que me molhou com todo aquele líquido branco. Então, eu
fiquei descontente!
O prim eiro parágrafo de Filipenses 4 tem muito a dizer sobre
contentamento. Leiamos o texto dos prim eiros sete versículos.

- 188 -
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S F i L I P E N S E S

Alguém, com uma boa dose de sabedoria, acertou, na verdade,


ao declarar que contentam ento estraga o mundo. Para esse crítico,
contentam ento significava simplesmente acomodação e compla­
cência. Quem é complacente não se perturba com as favelas que
rodeiam as grandes metrópoles. Não se incomoda com os milhões
de m al-nutridos, m orando em choupanas de velhos pedaços de
madeira e lata, onde a chuva e o frio penetram sem impedimentos.
O complacente não se importa com milhares de operários não regis­
trados, nem com muitos que tentam sustentar a família com o salá­
rio m ínim o ou menos, e não têm emprego seguro. Não se preocupa
com m ilhares de crianças que não freqüentam a escola, ou pior
ainda, são abandonadas por pais irresponsáveis. Complacência
abafa a corrupção, apoiando a decadência moral do povo. Confor-
ma-se, contudo, para não ter que se preocupar com o mal que corrói
o mundo.
Não é complacência que desejo comunicar com o vocábulo
“contentamento”. Quero, pelo contrário, lembrar-lhes de uma raiz
da palavra: contentamento, vindo de “contém” e “contido”. Trata-se
da vida cheia de satisfação, porque contém todos os elementos que
devem “encher” a vida. É o oposto da vida de sonhos, tempo e mentes
vazias, sem alvos alcançados por causa da indolência e ociosidade.
Contentamento é fruto de energia bem usada, decisões acertadas,
porque sob a direção de Deus se investiu o necessário para conseguir
os objetivos que ele colocou no coração. Foi Paulo que, aproxi­
mando-se do fim da vida, escreveu para Timóteo: “De fato, grande
fonte de lucro é a piedade com o contentamento” (lTm 6.6).

0 contentamento de Paulo
Um dos termos básicos de Filipenses é a palavra “alegria”. Quatorze
vezes em forma nominal ou verbal o apóstolo menciona a alegria
que invade a vida cristã real. Da sua injusta prisão ele expressa seu
contentam ento em primeiro lugar pela sua família em Cristo que
ele chama de “irmãos”. Mesmo estando preso, e ainda mais, enfren­
tando a possibilidade de morte violenta, o velho apóstolo pensa
nos seus “filhos amados” duas vezes neste primeiro versículo. Em­
prega o mesmo vocábulo grego que Deus Pai usou ao declarar que
Jesus era seu filho amado (Lc 3.22).
Amor pelos irm ãos que compuseram a igreja de Filipos
encheu o coração daquele que investiu suor e sangue para ganhá-los.

- 189-
EP ÍS TO LA S DA PR1SA0

N aturalm ente, Paulo sentia contentam ento. O terceiro term o


“saudosos” traduz uma palavra cheia de emoção e profundo desejo,
que aparece apenas quatro vezes no Novo Testamento (duas em
Filipenses, veja também 1.8). Em lPedro 2.2 comunica o ardente
desejo que um nenen tem para o leite, e que o recém-convertido
deve ter para a Palavra de Deus. Saudade caracteriza o impulso
forte natural que leva os pais para estarem juntos com seus filhos
ou o marido e a m ulher para eliminarem a distância que os separa.
Querer estar juntos surge da imensa apreciação e amor como se vê
no caso do jovem que fugiu de casa revoltado. Passados anos de
separação, repletos de variadas atividades repugnantes aos ideais
paternos sem ter-se comunicado com os pais, chegou ao desespero.
Idealizou um plano em função do fato que a estrada de ferro passava
nos fundos da casa de seus pais. M andou um bilhete aos pais suge­
rindo que pendurassem uma tira de pano branco visível do trem
onde passaria. Esse sinal indicaria o seu desejo de que o pródigo
voltasse para casa. No dia marcado, o jovem, desesperado e ansioso,
viajava rumo a sua cidade temendo a ausência de qualquer sinal de
convite para voltar a seu antigo lar. Grande foi a sua emoção ao
contemplar, não uma tira de pano branco, mas vinte ou trinta tiras
amarradas em ramos, arbustros e galhos! O jovem naquele instante
percebeu a profundidade da saudade imerecida que os pais guar­
davam para com o filho rebelde.
A igreja era a “alegria” de Paulo. Esta quarta maneira de
descrever o contentamento com essa comunidade, dispensa maiores
comentários. Forneceram para o sofrido pastor-evangelista a alegria
de satisfação. Como um tesouro preciosíssimo, os filipenses amados
provocaram uma fonte de gozo a jorrar no coração de Paulo. Não
só durante esta vida apenas, mas para todo o sempre. O conten­
tamento com o fruto do seu trabalho na prim eira igreja implantada
por Paulo no solo europeu (cf. At 16), o acompanharia.
O quinto termo descritivo, “coroa”, acrescenta a idéia de festa
e celebração. O stephanos (“grinalda”, “coroa”) não era feito de ouro
e pedras preciosas, porque não sinalizava autoridade de rei ou
imperador. Pelo contrário, comunicava heroísmo, por exemplo, um
atleta que ganhasse uma competição (cf. ICo 9.24,25). Assim era a
honra outorgada a um casal na festa de casamento. Uma coroa com­
posta de folhas e flores, posta na cabeça, marcava quem recebia o
reconhecimento dos hóspedes. Paulo lem bra, portanto, aos fili­
penses que eles tornaram sua prisão em salão de festa e ocasião de

IS Cl •
E P ÍS TO LA DE PAULO AOS FILIPENSES

celebração constante. Forneciam-lhe o sentimento de um herói


coroado. E quem é para nós tal motivo de celebração? Quem agora,
ou futuram ente na eternidade será para nós o sinal do prêmio
ganho? O missionário David Brainard norrendo aos vinte e nove
anos de idade, após rigoroso desgaste na evangelização dos índios
norte-americanos, disse: “Não teria gasto m inha vida de outro modo
por causa alguma no m undo”. Aí está a expressão de contentamento
na hora mais im portante da vida.

Aos que tão importante contribuição ofereceram para seu contenta­


mento, o apóstolo pede firmeza no Senhor. Esta palavra que no
original quer dizer “ficar em pé”, o contrário de “abalado” ou
“derrotado”, se destaca no último capítulo de Efésios (6.11-14). Toda
igreja é alvo dos ataques inimigos, forças satânicas e tentações carnais.
Por causa da sua vulnerabilidade, Paulo manda que os filipenses se
mantenham firmes para manter a satisfação do “Pai da igreja”.
Logo que Paulo pensou na firmeza fundamental, veio-lhe a
mente uma das brechas que favorecem o abalo da igreja, que é a
falta de entendimento, Evódia e Síntique, valiosas cooperadoras
do apóstolo no início e depois com Clem ente e outros, haviam
ajudado no avanço do evangelho. Mas, um desentendimento rachou
a comunhão, e não houve suficiente espiritualidade para con­
sertá-la. E de grande vantagem, numa hora dessas, ter um “fiel
companheiro de jugo” (possivelmente seu nome era Suzugo), capaz
de aux iliar as m ulheres na reconciliação de suas diferenças.
Literalm ente elas devem pensara mesma coisa (frase já encontrada
em 2.2, onde Paulo exortou a igreja toda a pensar concordemente.
Sobressai nestes versículos a importância de cooperadores. Paulo
não valorizou o trabalho solitário. Timóteo e Epafrodito irão para
Filipos para representar o apóstolo (2.20,22,28). Novamente vemos
a im p o rtân cia de Evódia e S íntique, do “ fiel com panheiro”
(pastor?), de Clem ente e os demais colaboradores (gr. sunergoi,
“trabalhadores juntos”). Paulo não orgulhou-se em trabalhar isola­
damente mas em equipe. Ficou contente em com partilhar seu ga­
lardão. Seus nomes também estão inscritos no rol celestial dos
salvos, chamado o livro da vida (v. 3). Não creio que Paulo ficou
contente com seu próprio trabalho, mas com o sucesso da sua
equipe. Foram homens e mulheres que levantavam e sustentavam
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

as mãos do líder como Arão e H ur fizeram com Moisés (Ex 17.12).


Quando Jesus enviou seus auxiliares, os 12 discípulos e em seguida
os 70 missionários, voltaram jubilosos por causa do poder pelo qual
foram capazes de lutar contra o inimigo. Jesus, porém, lhes adver­
tiu, “alegrai-vos não porque os espíritos se vos submetem, e sim,
porque os vossos nomes estão arrolados nos céus” (Lc 10.20). Nosso
contentamento, portanto, não deve se afixar nos sucessos desta vida,
mas no relacionamento infindável com nosso Senhor.

Contentamento nas circunstâncias


Nada fica mais claro do que a necessidade de os filhos de Deus
terem seu contentam ento “no Senhor” e não nas circunstâncias
variáveis do dia-a-dia. Em Cristo, Senhor de todos os aconteci­
mentos que atingem nossas vidas, temos a possibilidade de m anter
a esperança tranqüilam ente. Fora da soberana vontade do Senhor,
onde se descobriríam bases para satisfação quando as crises e
problemas nos apertassem?
Quando a injustiça nos atinge, os insultos falsos nos degra­
dam, mudam o contentamento em queixumes e insatisfação. Quando
a situação nós decepciona até o ponto de querer agredir alguém,
como se alegrar no Senhor? Perm itir surgir em nós aquele espírito
de amargura mortífera, nos destrói e facilmente se espalha pela
igreja. Paulo admoesta, “Alegrai-vos sempre no Senhor” (v. 4). Repete
a exortação feita anteriorm ente em 3.1. Só o Senhor pode trans­
formar nossa atitude de depressão e amargura em contentamento
e alegria.
Li a im pressionante descrição de Alexander Solhenitzen
sobre “Um Dia na Vida de Ivan”, preso num campo de concentração
russo. Esta pobre vítima da injustiça do sistema ateu comunista,
term inou seu dia contente. M uitos toques de boa sorte o atingiram
naquele dia. Não o levaram para o isolamento. Não haviam despe­
dido a m ulher que havia preparado seu arroz. Recebera uma tigela
extra de “casha”, portanto não sentia a fome tão aguda como sempre.
Seu trabalho desse dia foi erigir um muro. Sentiu prazer nisso.
Também tinha encontrado um pedacinho do seu serrote que escon­
deu, esperançoso de um dia possivelmente usá-lo para preparar
meio de fuga. Não adoecera, o que era comum acontecer a maioria
dos presos. Foi um dia sem nuvem negra, portanto adormeceu
contente. Vale a pena contem plar a vida de quem sofre e aprendeu

- 192 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

o segredo do contentam ento e lem brar das inúm eras alegrias com
que Deus galardoa nossas vidas.
Assim, faremos a nossa alma bendizer ao Senhor e não se
esquecer de nem um só de seus benefícios (SI 103.2).

Alegria no Senhor
A. W. Tozer observou com perspicácia que “quem tem Deus e mais
tudo o que há no mundo, não está mais bem colocado na vida do que
o homem que tem só Deus”. Foi semelhante verdade profunda que
Paulo desejava expressar com sua exortação repetida, “regozijai-vos
no Senhor, sempre”. Isaías predisse, 700 anos antes de Cristo, que os
remidos tirariam com alegria “águas das fontes da salvação” (12.3).
Apesar desta e outras prom essas encorajadoras, m uito crentes
revelam profunda insatisfação. As circunstâncias que Deus destinou
para sua disciplina, produziram ressentimentos e amargura. As fontes
da salvação não jorram águas alegres, louvor e gratidão, mas azedas
reclamações. Enquanto uns aprendem (como Paulo aprendera, v. 11)
a viver contentes e a extravazar um doce e suculento suco, outros se
assemelham a vinagre! Porque não aprender que Jesus Cristo é a
fonte de alegria do crente? Poderemos buscar nele, a qualquer
momento, o m edicam ento que substituirá nossa depressão com
alegria. Davi disse: “Como suspira a corça pelas correntes das águas,
assim por ti, ó Deus, suspira a minha alma” (SI 42.1, cf. v. 5,11). O mais
famoso filósofo dinamarquês do século passado, Soren Kierkegaard,
procurou durante sua vida o segredo de paz e contentamento. Era
religioso, mas no luteranismo do seu dia-a-dia, a hipocrisia reinava.
Encontrou muito pouco relacionamento pessoal com o Senhor vivo,
ressurreto, nas igrejas. Religião formal, nominal e morta abundava.
Kierkegaard escreveu o seu livro poderoso, entitulado Temor e Tre­
mor, no qual imaginava Abraão preparando-se e viajando até o Monte
Moriá. Mesmo nessa crise mais dura da vida, descobrimos Abraão,
por causa da sua fé dominante, quase alegre. Assim foi também com
nosso Salvador que nas horas precedendo sua traição e crucificação,
ofereceu a seus discípulos sua alegria e paz (Jo 14.26, 27; 15.11).
Kierkegaard externou um profundo cinismo com respeito à igreja
européia. Tinha anseio insaciável por uma fé que não ficasse prostrada
pelo confronto com a dureza da vida. Paulo mais do que exorta,
manda, em nome do Senhor, que os seus leitores (e nós) nos re­
gozijemos sempre no Senhor.

- 1 9 3 -
E PÍST O LA S DA P RISÃO

Moderação evidente
Além da constante alegria que o crente deve m ostrar, tam bém
necessita de moderação que o m undo observará (4.5). A palavra
grega epieikês comunica uma atitude de consideração e grandeza
de coração, capaz de perdoar e desprezar os próprios direitos justos.
Contrasta-se com a brutalidade, excesso de rigor na aplicação da
lei em detrim ento do réu. No AT este vocábulo expressa a graciosa
gentileza do governo de D eus (cf. ISm 12.22; SI 86.5). No N T
aponta para a personalidade m ansa de Jesus que convidou os
fracos, necessitados e cansados a gozarem do seu alivio (Mt
11.28-30). A m ansidão e benignidade de Jesus C risto (2Co 10.1),
formam um a base para a exortação de Paulo aos coríntios que tão
obviamente careciam dessa qualidade. Mas a igreja de Cristo deve
ter renom e pela benignidade e gentileza que a caracterizam .
D em onstrar serenidade é um a das qualidades m ais aparentes no
contentam ento. O cristão que reivindica para si o direito de julgar
o próximo (cf. Tg 4.11, 12), condenando sem brandura ou m an­
sidão, toma o lugar do amoroso juiz, Jesus, apontado para julgar
os homens. Fica patente que, à m edida que a igreja perde sua
benignidade “diante dos hom ens”, perde tam bém sua qualidade
de povo convidativo e contente.

0 Senhor voltará em breve


Enfim, lembra-nos Paulo neste mesmo versículo que o Senhor está
perto. Quer dizer que Cristo logo julgará com perfeita eqüidade os
iníquos do mundo. Ele em breve voltará. Não é necessário tentar
nos vingar dos que nos trataram com injustiça. Assim o povo de
Deus novamente m ostrará seu contentamento. A segunda vinda
de Cristo marcará finalmente a implantação do governo perfeito e
justo. Não é de nossa competência im por à sociedade uma justiça
hum ana, mas anunciar a solução presente e vindoura porque “perto
está o Senhor”.

A paz do Senhor
Um dos m andamentos menos observados pelos filhos de Deus é o
de não perm itir que a ansiedade sobre coisa alguma penetre no
coração (v. 6). Talvez você seja semelhante a uma panela de pressão

194
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

que à medida que as circunstâncias se tornam mais e mais quentes,


a pressão aumenta. Lembro de ter visto uma vez no teto de uma
cozinha, o efeito da excessiva pressão de vapor numa panela que
acabou explodindo. Descontentamento se externa com reclamação
e queixumes. Mas, reprimido no coração, poderá levar a uma explosão
com conseqüências incalculáveis. E como é difícil perdoar quem
perdeu o controle, particularm ente aquele que se dizia “crente”.
Semelhante ao erro permanente ou ao pecado que nunca tem perdão
é aquela ansiedade que não se neutralizou na “paz de Deus” (v. 7),
aumentando até explodir em palavras ou atos violentos (Tg 3.8-12).
Meus amados leitores, já conseguiram experim entar a “paz
de D eus que excede todo o entendim ento”? Como o óleo que
“excede” porque absorve a alta tem peratura do motor, e ao mesmo
tempo lubrifica todos os pontos de pressão e atrito, assim acontece
com a paz divina. Ela emana da segurança absoluta, de que todas
as circunstâncias que surgem na vida, especialmente as que estão
fora de nosso controle, são as melhores para mim. Deus, nosso Pai
onipotente, onisciente e amoroso, escolheu cada detalhe da vida
passada e futura para nosso bem.
A promessa da paz que excede e que guardará nossos corações
e mentes em Cristo Jesus (v. 7), evidentemente, não foi oferecida a
todos os cristãos! Doutra m aneira não havería crentes preocupados
com o presente e temerosos do futuro. Como se explica a falta de
paz em tantos corações? Deus inspirou seu apóstolo a escrever as
palavras infalíveis deste versículo. Mas na experiência do dia-a-dia,
as mentes e coração dos irmãos são mais pertubados que as ondas
do m ar num furacão (cf. Jo 14.17; 2Co 2.13). Não é de adm irar que
o m undano incrédulo, na maioria dos casos, procura o psiquiatra
para ajudá-lo a conquistar sua ansiedade, e não a igreja de Cristo.
Se esta paz que excede o entendim ento estivesse à venda, muitos se
prontificariam a pagar milhões para adquiri-la. Mas se os seguidores
de Cristo não tem a solução, como se espera que os descrentes
acreditem nesta promessa?
Não creio que Paulo sugere que a paz celestial dominará o
coração de todo crente como as águas cobrem o mar. Se a divulgação
desta paz fosse automática, não havería no texto o mandamento
aos crentes, “Não andeis ansiosos de coisa alguma” (v. 6). Mas a segunda
parte desse versículo manda que “em tudo porém, sejam conhecidas
diante de Dem as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações
de graça”. O antídoto à ansiedade e descontentamento não encon­

- 195-
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

tra-se em outra ação senão na oração de fé. A palavra “porém ” {alia


no grego) expressa nitidam ente o contraste. Pensamentos que tra­
zem ao coração revoltantes e horríveis possibilidades devem ser
vencidos pela comunhão com Deus na oração, juntam ente com
petições específicas e marcadas com “ações de graça”. Quando ofere­
cemos o verdadeiro sacrifício de gratidão a Deus (cf. H b 13.15,16),
admitimos que ele tem o direito de nos atender segundo lhe parecer
bem. Reconhecemos abertam ente que Deus faz com que todas as
vicissitudes da vida cooperem para o bem daqueles que o amam
(Rm 8.28). Lancemos nele toda nossa ansiedade. Descansaremos
no cuidado que ele tem por nós (lPe 5.7).
Se observarmos, de fato, as condições tão claramente expostas
por Paulo, a paz de D eus “guardará” nossos corações e mentes. O
termo, guardará (no grego phrourevõ) literalm ente sugere uma
proteção interna. Em 2Coríntios 11.32, o rei Aretas tentou evitar a
fuga de Paulo, com um destacamento de soldados dentro da cidade
de Dam asco. A palavra significa proteção interna potente ou
invulnerável aos ataques externos. Com a oração eficaz colocamos
sentinelas às entradas da mente e do coração para im pedir a penetra­
ção de p e n sam e n to s o riu n d o s do ten ta d o r. S atan ás deseja
ardentemente expulsar a paz de Deus do íntim o do cristão, sabendo
que desse modo estará pondo em dúvida a própria fé dos salvos.

Conclusão
O direito do crente é o contentamento. A insatisfação representa o
sintoma de algo errado, precisando ser corrigido. Neste parágrafo
tao sugestivo, Paulo apontou para sua satisfação com a comunidade
dos filipenses e seus auxiliadores que labutavam no m inistério
pastoral. Ficou descontente, sem dúvida, com o desentendim ento
que tornou as cooperadoras Evódia e Síntique inimigas, mas contava
com um fiel companheiro junto a Clemente e outros obreiros para
resolver a questão.
Os fatores elementares do contentamento, frisados por Paulo,
são: 1) alegria no Senhor, não nas circunstâncias sujeitas a tão
bruscas mudanças. 2) um espírito tolerante e misericordioso que
se afasta da obrigação de cobrar todos os direitos, ou vingar-se de
todas as injustiças. 3) Paulo apresenta a ansiedade como pecado, o
oposto da oração e gratidão. Por meio da petição e confiança no
Senhor, podemos usufruir da sua paz interna, não im portando as

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E PÍS T OLA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

circunstâncias ameaçadoras. Busquem os incansavelm ente esta


“grande fonte de lucro [que é] apiedade com contentamento” (lT m 6.6).

0 Deus da paz será convosco (4.8-13)


8Finalm ente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo
o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro,
tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma
virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe
o vosso pensamento. 90 que também aprendestes, e rece­
bestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus
da paz será convosco. 10Alegrei-me sobrem aneira no
Senhor porque, agora, uma vez mais, renovastes a meu
favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes,
mas vos faltava oportunidade. "Digo isto, não por causa
da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e
qualquer situação. 12Tanto sei estar hum ilhado, como
também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias
já tenho experiência, tanto de fartura,.com o de fome;
assim de abundância, como de escassez; 13tudo posso
naquele que me fortalece.

Introdução
Poucos anos atrás, dorm indo num a dependência de um acam­
pamento no Piauí, acordei bem antes do sol despontar. Ouví o ruído
fam iliar de asas batendo dentro do quarto sem teto. Só depois de
algumas horas verifiquei que não se tratava de um passarinho como
pensava, mas morcegos. Agilmente entravam e saíam a procura de
insetos invisíveis na escuridão. Os morcegos equipados com um
tipo de radar sonoro não encontravam dificuldade alguma em
descobrir aberturas por onde entrar e sair. Lembrei-me da obser­
vação verdadeira. Não podemos evitar que os “morcegos” sobrevoem
nossas cabeças, mas não somos forçados a lhes perm itir fazer ninhos
em nossos cabelos!
Pensamentos são companheiros constantes enquanto vivemos
acordados. O apóstolo aprisionado deve ter contemplado o apare­
cimento de inúmeros pensamentos.
No v. 6 acima, Paulo exortou os filipenses a não andarem
ansiosos de coisa alguma. A ansiedade reflete pensamento sobre

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E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

possíveis acontecimentos desastrosos do futuro que amedrontam o


indivíduo que perm ite tais “morcegos” penetrarem em sua mente...
Vimos que a m aneira mais efetiva para combater pensamentos
negativos tais como o medo do futuro, é pela oração.

Pensamentos vigiados
No versículo 8 Paulo reapresenta o lado positivo em relação à mente.
Um filho do Rei dos Reis, deve prestar homenagem ao Deus que
lhe concede paz que não pode ser explicada hum anam ente (v. 7),
concentrando sua atividade m ental em “tudo que é verdadeiro, tudo
o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é
amável, tudo o que é de boa fam a”.
Creio que Deus quer que tornemos um hábito esta triagem
do nosso pensamento. Aprendemos com a assistência do Espírito,
que foi outorgado para santificar nossa mente, a vigiar as aberturas
por onde entram “morcegos”. Tanto ‘virtude” como “louvor” ofere­
cem uma meta para focalizar a ocupação da mente (v. 8b).

Tudo o que é verdadeiro


A prim eira ocupação da m ente que devemos m anter é entitulada a
“verdade”. Só devem passar pelas veredas do cérebro pensamentos
que não sejam hipócritas e falsos. F req ü en tem en te, nós nos
encontramos em ambientes onde fofocas e rumores são espalhados.
Criam-se suspeitas e dúvidas acerca de irmãos que raras vezes estão
perto para se defender. Um pastor por m im admirado teve a feliz
prática de perseguir os fatos logo que surgisse qualquer comentário
sobre um membro da igreja. O confronto imediato com os fatos,
não raro, fechou a boca do fofoqueiro. Falsos pensam entos são
gerados onde a verdade não é virtude valiosa.
Acredito que o termo “verdadeiro” não define simplesmente
fatos verídicos, mas focaliza o que denominamos “genuíno”. Jesus
reivindicou ser “a verdade” (Jo 14.6), não no sentido de uma enciclo­
pédia cheia de fatos e m ínimos erros, mas por ser uma pessoa que
é a fonte da realidade. Ele se apresentou como o oposto de toda
ilusão, falsidade, maldade disfarçada e m udança (Hb 13.8). Ele
encarna o eterno “Amém” (verdade imútável, 2Co 1.20; Ap 3.14).
Pecado, na sua raiz, não passa de m entira, um a depravação da natu­
reza santa de Deus. Conseqüentemente, conhecer a verdade (quer

- 198 -
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

dizer, entregar-se a Cristo) liberta do pecado (Jo 8.32). Jesus Cristo


nos oferece em si mesmo a eterna fidelidade (sentido básico de
“amém”) de Deus. Pensar no verdadeiro seria m anter na mente
apenas o que é coerente com a natureza, vontade e lei do Criador.

Tudo o que é respeitável


Pensar no que é respeitável comunica a idéia de lim itar a entrada
ao laboratório da m ente ao que é nobre (semna no original).
Conceitos paralelos como “venerável”, “sério”, “digno de reconhe­
cimento elevado”, igualmente emanam deste vocábulo. Este termo
se destaca nas epístolas pastorais. O pastor deve criar os seus filhos
“com todo o respeito” (lT m 3.4). Os diáconos devem ser “respeitáveis”
(como tam bém as mulheres, lT m 3.8, 11). Os velhos das igrejas
devem apresentar esta qualidade que comunica seriedade moral,
na intenção interior e com portam ento externo. Piedade íque se
manifesta na vida ordeira está em vista.
Pensar naquilo que se qualifica pela nobreza e dignidade
proíbe os “morcegos” de penetrarem na cabeça, que na melhor das
hipóteses, são frívolos e caóticos (cf. M t 12.26). Quando os pensa­
mentos se exteriorizam através de palavras e frases, longe de baixa­
rem o nível de pensamentos sobre os amigos, elevam-nos. Creio
que a responsabilidade de m anter um alto padrão de pensamento
depende dos amigos que escolhemos e do que lemos e vemos na
TV Ouvir conversas, ler livros ou artigos e acompanhar programas
prepara dos para c a p tu rar nossos pensam entos, seguram ente
escravizarão nossos cérebros àquilo que apreciamos.
Por isso, necessitam os de um guarda “respeitável” para
proibir a entrada de tudo que tem a forte tendência de dim inuir a
nobreza do nosso pensar.

Tudo o que é justo


A justiça deve cercar os pensamentos do cristão genuíno como os
muros de um a cidade medieval. Paulo escolheu este termo para
englobar o mais amplo conceito do que é certo, visto do ponto de
vista divino. Deus sendo absolutamente justo na sua pessoa, revela
na sua lei a justiça que ele exige das criaturas formadas segundo a
sua imagem (cf. Rm 7.12). Desse padrão divino os homens deduzem
o que representa o certo ou errado. A lei pode ser justa, mas se o

199 -
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

nosso pensamento não se apegar com profundo amor aos m anda­


mentos do Senhor, seremos controlados pela força do mal que nos
conduz contra nossa própria vontade (Rm 7.19-21).
A retidão no pensam ento certam ente renunciaria às im a­
ginações da carne em que outrora (antes da conversão) andávamos
(Ef 2.3). Moisé escreve em Gênesis 6 por que Deus foi obrigado a
julgar a hum anidade pelo dilú^zo. “Viu o Senhor que a maldade do
homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau
todo desígnio do seu coração” (v. 5). Jesus tam bém enfatizou que
ritos de purificação religiosos não adiantam enquanto não se
efetua um a transform ação radical na fonte dos seus “maus desíg­
nios” (Mc 7..21).
Pela ação do Espírito, a mente cristã pode ser capturada para
servir a Cristo. Paulo, escrevendo aos coríntios, admite que ainda
que ninguém tenha direito de instruir o Senhor, “Nós, porém, temos
a mente de Cristo” (ICo 2.16). Trata-se de homens espirituais (tam­
bém maduros, 3.1; 2.6), que, pela renovação da mente, rejeitaram a
mente moldada segundo “este século” para “experim entar a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2). Sujeitando-se ao
poder do Espírito, podemos levar cativo todo pensamento à obe­
diência de Cristo” (2Co 10.5b).
“Tudo o que é justo”, portanto, não visa simplesmente ocu­
para mente com as nobres idéias dos líderes hum anos que detêm
os prêmios Nobel de literatura, ou paz. Ordena que nos preocu­
pemos com a purificação da massa cinzenta (Mc 7.21,22) que gera
nossos pensamentos egocêntricos e que a substituamos pelo pen­
samento de Cristo.

Tudo o que é puro


Pureza ressalta, tanto em grego como em português, o significado
de “limpeza”, de ser não-contaminado ou poluído. Mente pura deve
ser mente casta, como a “virgem pura” que Paulo idealizava para a
igreja ao comparar os coríntios a uma moça aproximando-se das
núpcias (2Co 11.2). Divide-se o emprego deste vocábulo no Novo
Testamento entre pureza sexual e a observação santa do culto a
Deus com o coração leal e singelo. Contemplando a vinda de Cristo,
o cristão reconhece que será semelhante a ele e “purifica a si mesmo”...
assim como ele épuro” (ljo 3.3). A lavagem dos pés dos discípulos
depois da últim a ceia foi praticada por Jesus para simbolizar o

- 200-
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

arrependim ento repetido com intuito de ser purificado e m anter a


comunhão com o Mestre (Jo 13.5-11; 15.3).
Entre os “morcegos” que mais perturbam a mente do cristão,
se destaca a impureza sexual. Encabeçam as listas dos pecados nas
Epístolas que os seguidores de Cristo devem mortificar, “prostituição,
impureza, paixão lasciva, desejo maligno e avareza” (Cl 3.5; E f 4.19;
5.3; lTs 4.5, 6). Nossa cultura ocidental estimula o pensam ento
impuro por todos os meios que dispõe: propaganda, revistas, qua­
dros, programas sensuais na TV, filmes eróticos, livros e conversas
sugestivas.
Aos tessalonicenses, Paulo lembra que o pensamento impuro
caracteriza “os gentios que não conhecem a D eus” (lTs 4.5).
Representa uma ofensa contra Deus que ele não deixará de punir
(v. 6). Jesus também advertiu contra o acúmulo de pensamento
impuro no coração. Para Deus a intenção equivale ao ato de adul­
tério (Mt 5.28). A seriedade do pecado mental também descobrimos
nos versículos que seguem. “Se o teu olho... tefaz tropeçar, arranca-o...
Se a tua mão... te fa z tropeçar, corta-a...” (v. 29, 30). O perigo que
Jesus aponta é o de ser lançado no próprio inferno.
Nunca esquecerei as lágrimas que correram da face de um
pastor colega, ao testem unhar a derrota que tinha sofrido nos pen­
samentos impuros. Parece que a confissão tão dolorosa é comparável
a arrancar um olho e lançá-lo para longe. Fortalece a última petição
da oração que Jesus ensinou: “Não nos deixes cair em tentação, mas
livra-nos do mal” (Mt 6.13).
Pensar em tudo o que é puro seria possível pelo preparo de
um a peneira para evitar que nossos olhos e ouvidos contemplem o
maculado e o degradante. “A impudicícia e toda sorte de impurezas, ou
cobiça, nem sequer se nomeie entre vós, como convém a santos” (Ef 5.3).
Conceitos puros, pensamentos edificantes, estimulados pela
palavra aplicada pelo Espírito Santo, são os únicos que devem ter
acesso ao nosso cérebro. Como seres libertos da corrupção que há
no m undo (ICo 6.11), temos a incumbência de escolher as fontes
de nosso pensam ento para m elhor com bater as tentações que
assediam a mente.

Tudo o que é amável


O vocábulo original (prospbilê “o que conduz à amizade”) só se
encontra no Novo Testamento. Pensar naquilo que promove o amor

-201 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

parece ser, à prim eira vista, não apenas uma recomendação boa,
mas fácil de entender. O ser hum ano, por natureza, quer ser
apreciado e amado. Amizade representa o que mais valorizamos
na vida. Porque encontramos então uma ordem divina para pensar
de modo amável?
A resposta a tal pergunta, parece estar num fato fácil para
verificarmos. Não é difícil acum ular pensamentos positivos acerca
das pessoas de nosso círculo que nos apoiam, que nos valorizam e
nos fazem sentir bem. Mas dos rivais e concorrentes é bem difícil
não pensar criticamente. Suspeitas e invejas caracterizam o oposto
de pensarem tudo o que é amável.
Pelo grande número de palavras que Paulo usa para descrever
as obras da carne que separam os irmãos, devemos concluir que a
mente está mais disposta a pensar belicamente do que amavelmente.
Considere esta lista: “Inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias,
dissenções, facções e invejas” (G15.20,21). Todas são qualidades más.
In felizm ente, aparecem no relacionam ento e n tre irm ãos na
comunidade da graça e exteriorizam assim o que se passa nas mentes.
Estes “morcegos” devem ser expulsos o quanto antes sendo substi­
tuídos pelo fruto do Espírito (G1 5.22, 23). Jesus declarou no mais
famoso sermão de todos os tempos, “Não julgueis para que não sejais
julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereisjulgados” (Mt 7.1,2).
Pensamentos longânimos, que suportam os irmãos em amor
(Ef 4.2) são úteis para tecer laços de amizade. Perdão oferecido na
mente e em seguida por palavras, sinaliza o perdão divino que todos
os crentes reivindicam (Ef 4.32; M t 6.14). Porque não concentrar
um amor deliberado no irmão menos amável da igreja? Porque não
levantar uma onde de comentários positivos e verídicos a respeito
do irmão que mais desprezo suporta? Pensar em tudo que conduz
para amizade granjeia um grande galardão.

Tudo o que é de boa fama


O sentido do vocábulo que significa “boa reputação” ou “fama”
(■euphêma, no grego) não é difícil de captar. Pensamentos devem
gravitar na direção de tudo que merece louvor e comentários de
apreciação. A propaganda aum entou assustadoram ente com o
advento dos meios de comunicação em massa. Todo produto que o
consumidor deve adquirir para criar lucros para o produtor, tem a
boa fama do propagandista. Com certeza, o apóstolo rejeitaria

- 202 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

valorização deliberada só para aum entar as vendas. A ordem divina


é para que deixemos penetrar em nossa meditação cerebral o que
merece bons comentários e que tem valor real intrínseco. O erro
dos gnósticos libertinos que se gloriavam na “infâmia” (3.19) foi
justamente de não cogitar os valores eternos. “Só se preocupam com
as coisas terrenas” (v. 19b).
Os pensamentos filtrados pela peneira do Espírito, levam a
mente a cogitar o que tem boa fama e que vem “dele e por meio dele
epara ele” (Rm 11.36). A criação vem de Deus, podemos valorizá-la
conquanto não esqueçamos a natureza temporária da presente época
ou século contaminado pelo pecado e aguardemos esperançosos o
novo m undo vindouro, (cf. 3.20).
Para completar a lista das qualificações do pensamento do cristão,
Paulo acrescenta mais duas restrições. Primeiro, deve haver louvor
surgindo da atividade cerebral. Como água fervendo cria vapor
naturalmente, nossos pensamentos devem produzir louvor da nossa parte
e dos que compartilham nosso modo de encarar a realidade (SI 34; 2,3).
Segundo, deve-se lim itar o pensam ento pela virtude que
reside nele Virtude (aretê vocábulo predileto na ética helenista)
significava para os gregos, toda atividade excelente, valiosa, benéfica
para a sociedade (cf 2Pe 1.5) O famosos comentarista J. B. Lightfoot
achou que Paulo apontava para qualquer valor que ainda por acaso
residisse no conceito pagão de virtude. O amor que une uma família
seria um valor que não deve ser renunciado simplesmente porque
é reconhecido como virtude na ética dos mundanos.
Concluímos que o cristão não deve deixar a mente acumular
pensam entos inconvenientes ou “morcegos” descontrolados. O
Espírito Santo veio nos habitar (Jo 14.17) para produzir o fruto de
dom ínio próprio (G1 5.23) que começa no coração, filtrando os
pensamentos.

0 cristão deve ser um modelo


Páulo não termina a sua exortação no mundo privativo da mente. Todo
cristão cria um círculo de influência a seu redor. Devemos aspirar que
os que recebem nossa influência não provoquem vergonha.
O apóstolo ordena a igreja de Filipos a praticar, isto é, fazer
reviver a vida de Paulo em cada membro. Dependia deles pôr em
prática o que Paulo ensinou (emathete, “Aprendeste como discí­
pulos”, cf. M t 28.19). Os cristãos filipenses também receberam de

- 2 03 -
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

Paulo o que deviam realizar. Deve referir-se a transm issão da


tradição (comp. parelabete aqui com ICo 11.23; 15.3 que tem o
mesmo vocábulo). A tradição cristã com origem nas palavras e vi­
da do Senhor Jesus, não deve ser menosprezada mas praticada e
transm itida para a nova geração.
Ouvir a Paulo ensinar e exortar com respeito à vida cristã
deve ter sido m uito emocionante. Com lágrimas, intenso amor e
preocupação, o apóstolo encorajava os seus ouvintes (veja At 14.22,
20.9, 31). Roga aos filipenses que não se esqueçam de fazer o que
ouviram da sua boca. Freqüentem ente, ouvimos a mensagem no
culto, mas logo que deixamos o santuário conversamos sobre tudo,
menos como pretendemos concretizar o que Deus acaba de nos
falar pela Palavra. Este hábito insensibiliza o coração.
Não só os ouvidos, mas também os olhos, são conclamados a
dar assistência aos irmãos na imitação e obediência prestada a Paulo.
“O que viestes em mim, isso praticai” (v. 10). Aprendemos melhor
quando vemos como o herói modela a vida. D. James Kennedy,
autor do livro Revolução na Evangelização, exortava os membros de
sua pequena igreja a evangelizar. Deu um curso intenso sobre como
ganhar homens para Cristo. Porém, somente quando ele mesmo
saiu várias.vezes com um presb ítero para d em o n strar como
conversar com incrédulos, é que começou a revolução da evan­
gelização na sua igreja (hoje com m ilhares de membros).
Assim, o discipulado, a tradição (preservada nos evangelhos),
o ensino e a demonstração devida, devem se unir ao pensamento
filtrado (v. 8), para criar um a igreja em que Deus espalha sua paz.
Shalom (paz em hebraico) comunica um conceito de bem-estar,
harm onia e vitalidade. A promessa que Paulo estende aos irmãos é
no sentido do Deus da paz estar com eles. Cristo prom eteu estar
com seus discípulos (e certam ente com seus sucessores) até o fim
do século (Mt 20.28). Nesta promessa descobrimos a autoridade da
igreja para vencer todo inimigo e conquistar todo problema que o
povo de Deus é obrigado a enfrentar (cf. SI 27.1; 91.1-16).

0 contentamento que o crente deve expressar


Nos versículos 10-13, Paulo exterioriza seu profundo contentamento
com a oferta que os filipenses m andaram pelas mãos de Epafrodito
(2.25-30). “Alegrei-me sobremaneira no Senhor” revela que sua
satisfação não se baseava na oferta em si, mas no Deus que mais

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E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

uma vez renovou sua bondade por interm édio dos filipenses (4.10).
“Renovastes” representa o vocábulo, anathallõ, literalm ente uma
planta que brota com folhas e flores de novo. A preocupação dos
filipenses por causa da prisão de Paulo, finalmente causou ação no
levantam ento e envio do donativo. Acredita-se que eles teriam
mandado o donativo antes, mas não descobriram meios propícios.
Mas o apóstolo não deseja que a igreja se sinta culpada porque
não conseguiu enviar antes sua oferta. “Digo isto, não por causa da
pobreza” (lit. husterêsis, quer dizer, falta). A fé de Paulo não perm itiu
que guardasse uma palavra como “falta” no seu vocabulário. Paulo
confessa que aprendera a (emathon, “ser instruído como discípulo)
viver contente em toda situação (v. 11). Quem ensinou ao apóstolo
tão im portante lição? Não seria o próprio Senhor Jesus que recusou
fazer de pedras pães, ainda que passando cruciante fome depois de
40 dias de jejum (Mt 4.3, 4)? Foi ele quem combateu a preocu­
pação desnecessária dos discípulos com o pão (Mc 8.16-21) e
reivindicava um a com ida não m a te ria l desconhecida pelos
discípulos (Jo 4.32-34).
Paulo empregou um term o apreciado pelos estóicos para
com unicar seu contentam ento: autarkês, lit. “auto-suficiente”,
indicando independência de circunstâncias externas, usado também
para quem se auto-sustenta. Revela uma força interior arraigada
na fé num Deus todo-poderoso que faz com que “todas as coisas
cooperem para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28).
A vitória interna de Paulo sobre a ansiedade não foi obtida
pela força de pensamento positivo, ao modo de Norm an Vincent
Peale ou R. Schuller, mas por meio de um aprendizado que segue
naturalm ente à crucificação com Cristo (G1 2.20). Por isso ele
escreve: “...sei estar humilhado” (v. 12). Saber, vem pela experiência,
observação e interpretação do m undo exterior no fundo do coração
em que a fé cria convicção absoluta. “De tudo (gr.panti, singular) e
em todas as circunstâncias (pasin, plural) tenho experiência (memuêmai,
lit. “tenho sido iniciado num a religião m istério”). Faz uso desta
palavra para dizer quão profunda foi a experiência de ser inserido
na plena confiança de depender de Deus em tudo, inclusive o
afastamento da preocupação natural hum ana com o pão cotidiano.
“Hum ilhado”, neste contexto, não se- refere a reação psicológica
que cria ou revela a vergonha, mas uma diminuição de recursos
m ateriais. Fome ou m iséria sim plesm ente não preocupavam a
Paulo. Estava profundam ente contente.

- 205 -
E P ÍS T O L A S DA PRISÃO

M ais um ponto nos chama a atenção. A parentem ente, o


apóstolo achou mais necessário ser instruído como reagir frente a
abundância do que frente a miséria. Duas vezes escreve no original,
perissevein, “ser honrado”; “abundância” (v. 12). Esta palavra trata de
transbordar, receber mais do que necessário. Para a maioria de nós,
não parece ser desafio algum ter mais do que precisamos. Torna-se
claro que Paulo percebeu tanto em fartura como em escassez uma
prova, ou mesmo uma tentação. O aumento de bens materiais, o
salário crescendo, ou uma herança recebida, desafia o cristão a
procurar saber o que Deus pretende com “bênçãos” assim. Temos
certeza que toda abundância vem para testar nosso amor a Deus e
ao nosso irmão. A “benção” não vem para nos fartar mas para
“acudir ao necessitado” (Ef 4.28). Deus nos dá para investir em
amigos que virão um dia nos dar as boas vindas “nos tabemáculos
eternos” (Lc 16.9, 6.38). Paulo testem unha acerca do que fez com o
que transbordava (At 20.34). Escreveu para os coríntios que a
abundância deles deve su p rir a falta dos crentes judeus em
Jerusalém (2Co 9.14).
Paulo encerra sua majestosa declaração com as palavras
freqüentemente citadas, “Tudoposso naquele que me fortalece” (v. 13).
Aqui deparamos com o segredo do contentam ento incessante, da
paz e dos pensamentos controlados pelo bem. Consideremos esta
afirm ação m ais de p erto . Tudo (panta, “to d as as coisas ou
circunstâncias”) posso (ischuõ, tenho força”, posso aguentar) naquele
que me está fortalecendo (endunamounti, “capacita”, “fortalece”, que
vem da raiz, dunamis, “poder”, “milagre”, cf. At 1.8). Paulo não
sugere que o segredo de suportar a dura vida como preso, a tortura
da forme ou a ansiedade de prever o m artírio (cf. 1.20) esteja na
sua própria disciplina ou autocontrole. Pelo contrário a explicação
se encontra unicam ente na constante (tempo presente) dinâmica
da com unhão fortalecedora com Jesus C risto pela atuação do
Espírito Santo. Para fazer outra colocação, o contentam ento do
missionário perseguido é uma dádiva gratuita, graças à realidade
do poder miraculoso de Deus.

Conclusão
Esta passagem começou apelando para o pensamento controlado
por Deus. Prosseguiu com um convite para praticar os ensinamentos
transmitidos por palavras e pela vida de Paulo, assegurando-nos a

- 206-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

presença de Deus que dissemina a paz. Termina nos v. 10-13 reve­


lando a transbordante alegria, sentida por Paulo ao constatar
novamente que D eus supria todas as necessidades, m ateriais e
pessoais. Quantos de nós poderiamos testem unhar tão bela comu­
nhão com Aquele que nos amou e entregou-se a si mesmo por nós?

A necessidade e o suprimento (4.14-23 )


14Todavia, fizestes bem, associando-vos na m inha
tribulação. I5E sabeis tam bém vós, ó filipenses, que no
in íc io do evangelho, q u an d o p a rti da M acedônia,
nenhum a igreja se associou comigo, no tocante a dar e
receber, senão unicam ente vós outros; 16porque até para
Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas,
o bastante para as m inhas necessidades. 17Não que eu
procure o donativo, mas o que realmente me interessa é
o fruto que aum ente o vosso crédito. 18Recebi tudo, e
tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito
me passou às mãos o que me veio de vossa parte, como
aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus.
19E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de
suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.
20Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos
séculos. Amém. 21Saudai a cada um dos santos em Cristo
Jesus. Os irmãos que se acham comigo vos saúdam. 22To-
dos os santos vos saúdam, especialmente os da casa de
César. 23A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso
espírito.

Introdução
Enquanto meditava na mensagem destes versículos, ocorreu-me
um novo pensamento, ainda que velho, sem dúvida, para alguns.
Surgiu-me a idéia de que Deus desenhou este m undo para funcionar
no princípio de necessidade e suprim ento. Esta ecologia global
explica satisfatoriamente tudo que doutra forma seria apenas mis­
tério. Por exemplo, imagine uma semente sem terra onde fosse capaz
de germinar, se desenvolver e criar plantas que produzem outras
sementes. Semente sem solo seria um ponto de interrogação — não
imaginaríamos porque veio a existir. Mesmo que acreditássemos

- 207 -
E PÍST O LA S DA P RISÃO

numa inteligência e poder suficientes para fazer uma semente, não


estaríamos em condições para descobrir sua razão de ser.
As plantas necessitam de luz para crescer. Não achariam
estranho plantas que não se desenvolvem porque não há luz? Num
m undo distinto do nosso, como a lua, não existe água nem mar.
Impossível é cogitar uma criação como a nossa sem chuvas, rios,
mares e atmosfera. A ecologia da criação de Deus está de tal modo
gravada em nossa consciência que necessita de suprimento.
Que achariam de corpos sem vida? Lembro-me de uma vez
no porão de uma catedral de D ublim , na Irlanda, apertei a mão de
um senhor que participou de um a cruzada há mais de oitocentos
anos passados. Claro que este veterano não estava vivo, mas seu
corpo secou como a m úm ia de um faraó. Não havia mal cheiro
provocado pela decomposição, nem atraía a concorrência como um
velório de um amigo recentem ente morto. Como seria ter corpos
assim, sem vidas em nossas casas, escolas ou igrejas? Assim nossa
civilização manifesta sua inteligência.
Para nossas estradas produzimos carros, ou vice-versa. Carros
sem ruas ou estradas sem carros nos pareceríam uma loucura. Os
cientistas tentam descobrir a utilidade daquelas linhas de quilô­
metros de comprimento, perto de Nasca ao longo da costa peruana.
Parecem cam inhos mas não ligam centros de população; um
suprimento para que?
Como seria ter carros sem gasolina ou lâmpadas sem eletri­
cidade, bancos sem dinheiro ou cheques, um povo com m uito
dinheiro mas nada para comprar, ou fábricas sem produtos para
produzir. Vivemos em contato constante com a ecologia de neces­
sidade e suprimento. Conta-se que Um senhor sonhou que ganhou
cem milhões na loteria. Ficou tão alegre que pulou da cama, can­
tando e assoviando. Entrou no chuveiro, mas abrindo o registro
não havia água. Apertou o interruptor para acender a luz — não
havia eletricidade. Saiu para comprar seu jornal mas não encontrou
ninguém na banca. A padaria estava vazia, nenhum ônibus circu­
lava. Parou na casa de um amigo para indagar sobre o que acontecia.
“Não ouviste?”, informou o seu vizinho, “todo m undo ganhou cem
milhões e ninguém mais trabalha”. A boa sorte era a ligação íntim a
entre a necessidade e o suprimento.
Se a ecologia fundam ental da criação e da civilização se
caracteriza por suprim ento e necessidade, deve, igualmente, ser
natural para a igreja. Deus criou a igreja para suprir a necessidade

- 208 -
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

que ele também colocou em nossos corações. Igreja sem membros


seria mistério ou um contrasenso. Mas existem irmãos na igreja que
não pararam para pensar seriamente quais seriam as necessidades
para as quais a igreja foi formada, pelo Espírito de Deus, para
supri-las. Paulo não deixou de reconhecer este princípio e nem a
igreja de Filipos. Os membros dessa igreja estavam conscientes dá
natureza da participação na comunhão do corpo de Cristo. Cada
indivíduo tem necessidades que o corpo pode suprir, mas o próprio
corpo é composto desses membros que suprem as necessidades da
comunidade. Destarte, o corpo ilustra melhor do que qualquer outra
metáfora esta ecologia de suprimento e necessidade.
Quando uma parte do nosso corpo físico deixa de funcionar
bem, temos certeza de que não está recebendo o que precisa. Por
exem plo, suponham os que tenho câncer ou tuberculose nos
pulmões. Pelos pulmões o sangue toma o oxigênio necessário para
distribuí-los às células do corpo todo. Mas se os pulmões suprem
pouco oxigênio para o corpo, eles mesmos sentem a falta do oxigênio
necessário para funcionar bem. Felizmente, Deus colocou no corpo
hum ano os meios necessários para suprir as carências de todas as
partes. Apenas no caso de doença, o corpo sofre a falta no sistema
ecológico, mas tam bém , mesmo assim, depende da assistência
médica do próprio curativo que quase sempre restabelece o homem
enfraquecido. D outro modo, morreriamos com a prim eira doença
que, eventualmente, nos atingisse.
Notamos que o v. 14 mostra a necessidade de Paulo e o supri­
mento da igreja de Filipos, “Fizestes bem, associando-vos na minha
tribulação”. Faltaram recursos para viver na prisão, já que os presos
dependiam de parentes ou amigos para alimentos, roupas e tudo
mais. Por amor, os filipenses compartilharam com Paulo os bens e
fundos que podiam sacrificar, uma vez que ele nao tinha condições
para suprir sua própria falta. Dessa maneira, os filipenses mostraram
que a doutrina do corpo de Cristo era mais do que uma figura. Era
realidade concreta. Tal associação (gr. sugkoinonesantes, “partilhar
junto”, “participar em comum”) apresentava o quadro sobre o qual
Jesus afirmou que iria persuadir o mundo da autenticidade de seus
discípulos (Jo 13.35). O sinal da genuína conversão dos filipenses foi
sua prontidão em suprir a necessidade de Paulo. Na igreja de
Jerusalém, diz Lucas, “nenhum necessitado havia entre eles” (At 4.34).
Por outro lado, não devemos esquecer que não há outra opção,
segundo ljoão 3.17: “Aquele que possuir recursos deste mundo e vir seu

- 209 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

irmão padecer necessidade efechar-lhe o coração, como pode permanecer


nele o amor de Deus?” Para que a igreja seja o corpo de Cristo, as
.necessidades devem ser supridas para evitar a hipocrisia. E falsidade
reivindicarmos o direito de nos chamarmos a igreja de Cristo se
não colocamos em prática a ecologia do amor de Deus.
Em escala mais ampla, as igrejas da M acedônia demons­
traram a graça de Deus que lhes foi concedida. Mesmo em grande
tribulação (aperto e necessidade) e profunda pobreza, “superabundou
em grande riqueza da sua generosidade” (2Co 8.1,2). Pediram a Paulo
o privilégio “departiciparem da assistência aos santos” (2Co 8.4). Parti­
lharam seus bens tão escassos não porque Paulo os persuadiu ou os
pressionou, mas porque a “graça de Deus”, equivalente ao “amor
derramado em nossos corações” (Rm 5.5) lhes constrangeu (2Co 5.14).
E não era a prim eira vez que os filipenses mandavam supri­
mento para o apóstolo. Logo após a sua partida da M acedônia, eles
enviaram a Paulo em Tessalônica, duas ofertas, suficientes para
satisfazer suas necessidades (4.15, 16). Outras congregações não
sentiram qualquer obrigação em sustentar esse obreiro (v. 15) que
tanto receio tinha de revelar suas próprias necessidades (cf. ICo
9.12,15). Paulo ficara convencido que seu Deus supriría cada uma
das suas necessidades (v. 19). Não se preocupava com suas necessi­
dades uma vez que Deus o arregim entara para seu exército. Ele,
certamente, como bom general, não deixaria de suprir o essencial
para que esse guerreiro pudesse lutar na guerra santa despreocu-
padamente (cf. ICo 9.7; 2Tm 2.4).
Mas, para m uito crentes, e até obreiros, hà um a distinção
notável entre “necessidade” e o “essencial”. Tentei uma vez definir
o que seria um a necessidade. Não aproveitei a definição do dicio­
nário, mas concluí que um a necessidade representa uma falta que
ao ser suprida, redunda num bem maior. Pode-se im aginar que a
lua necessita de habitantes lunares. Mas ninguém estaria pronto a
viajar até a lua para m orar antes de ter certeza que resultaria no
bem dele e do mundo.
Certa vez, o famoso pastor Harry Ironside da igreja de Moody,
em Chicago, foi convidado para pregarem Fresno, na Califórnia.
Era jovem ainda e a igreja de Fresno não pensou nas suas necessi­
dades. Tinha o pastor apenas o dinheiro suficiente para pagar uma
noite no hotel. Pensou “se a igreja de Fresno não me pagar o sufi­
ciente não poderei saldar a m inha conta”. Decidiu sair para o parque
para dormir. Reclamou bastante a Deus pela falta de recursos e o

2 1 0 -
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

aparente desinteresse da igreja. Enquanto queixava-se da falta de


tudo, veio-lhe a m ente a frase: “M eu Deus... há de suprir... cada
uma de vossas necessidades” (4.19). Começou a refletir sobre quais
seriam suas necessidades. Descobriu que o essencial era recarregar
as suas baterias espirituais. Foi aquela uma noite de confissão e
avivamento para seu espírito amargurado. Uma vez: resolvido o
essencial no íntimo, as reuniões correram m uito melhor. O povo
teve compaixão dele, convidando-o para suas casas e cuidando dele
tão bem que voltou para casa pesando um quilo a mais. No fim
dessa semana tão m arcante recebeu uma carta do seu pai que disse
“Tenho me impressionado com Filipenses 4.19. Meu Deus há de
suprir cada uma de suas necessidades. De fato, ele assim fará. Uma
dessas podería ser a necessidade de passar fome”. Quando experi­
mentamos somente a fartura, esquecemos das necessidades que
nosso generoso Deus está constantemente suprindo.
Paulo tendo aprendido a viver com fartura, como também com
fome (v. 12), não passou seus dias na prisão esperando ou pedindo
donativos (v. 17). Na generosidade sacrificial dos filipenses, ele
percebeu “o fruto” do evangelho, que aumentava o crédito deles no
“banco celestial”. Mais significativo era a espontaneidade da igreja
impulsionada a compartilhar seus recursos com ele, do que o donativo
que Paulo recebera. Ele recebeu tudo, teve abundância, ficou suprido,
desde que Epafrodito lhe passou “às mãos o que me veio da vossa
parte”(v. 18). Além disso, os contribuintes agradaram a Deus.
Para isso Deus idealizou a igreja. Quem supre a necessidade
do seu irmão faz bem (v. 14), não apenas porque atende ao necessitado,
mas também porque a generosidade representa crédito eterno na
conta de quem dá com alegria (2Co 9.7). O doador não deve se
preocupar com qualquer reconhecimento humano (Mt 6.1-4).
A nossa preocupação está em nunca passarmos necessidade.
Desejamos como o tolo na história de Jesus, acumular o suficiente
para ter “em depósito muitos bens para muitos anos”. Assim, que­
remos descansar, comer e beber e regalar-nos” (Lc 12.19). A este
modo de pensar e agir, Deus chama de loucura. “Esta noite tepedirão
a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? Assim é o que
entesoura para si e não é rico para com Deus” (Lc 12.20,21).
Na igreja devemos ser lembrados constantem ente de que
quem entesoura para si mesmo é um tolo e quem reparte com os
necessitados é um sábio. E a intenção divina que a necessidade dos
outros seja suprida pela nossa generosidade, para que assim sejamos

211
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

ricos p ara com D eus. P or esta razão, Jesus afirm ou: “M ais
bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).
Quem supre a necessidade de um irmão, com partilha sua
vida com ele. É o verdadeiro significado do vocábulo grego que
Paulo usou em 1.7 e novamente neste último parágrafo de Filipenses
(4.14 sugkoinõneõ). Assim as células do corpo se gastam, oferecendo
suas vidas para a vida do corpo inteiro. Não podemos especular
quanto à quantia que os filipenses m andaram a Paulo. Ele escreve,
“Recebi tudo (isto é, pagamento completo) e tenho em abundância;
estou suprido” (v. 18). Se recebeu o suficiente para pagar o aluguel
da casa em Roma (At 28.30) e comprar uns mantimentos, era “abun­
dância”. Sobrava para os companheiros (cf. At 20.34), visto que as
necessidades do apóstolo eram m uito reduzidas. E tolice guardar
para mim o que meu irmão precisa, sob pretexto de que eu não
tenho acum ulado o suficiente para cobrir m inhas necessidades.
Feliz o crente que sabe que todas as suas necessidades estão su­
pridas, não porque acum ulou terras, propriedades e tem cem
milhões na poupança, mas porque faz parte de um a comunidade
que, por amor a Deus, cuida dos seus membros crentes e confia no
Senhor que tudo supre para suas ovelhas (SI 23.1).

0 significado do donativo
Já vimos no v. 17 que o donativo que a igreja m andou a Paulo foi
comparado a fruto que aumentava o crédito dos filipenses. O fruto
de uma árvore aum enta quando plantamos sua semente em terreno
preparado. Anos depois de crescer a árvore, finalmente aparece o
fruto abundante, m ultiplicando m uitas vezes o valor da semente
plantada. Terá semelhante aumento no crédito celeste, o donativo
investido no bem-estar de Paulo.
A oferta, em segundo lugar, recebe a descrição de “aroma
suave” no v. 18 (gr. osmên euõdias, “fragrância de um cheiro bom”,
correspondendo a frase comum no Antigo Testamento para o bom
aroma que subia de um holocausto, Gn 8.21, Lv 1.9, 13 etc.), Em
conseqüência da morte substitutiva de Jesus por nós na cruz, não
há sacrifícios de animais que podemos oferecer a Deus que sejam
aceitáveis. Porém, há sacrifícios que Deus não só aceita, mas que
também o agradam. Primeiro devemos oferecer nossos corpos em
sacrifício a Deus, corpos vivos, santos ê agradáveis a ele (Rm 12.1).
Segundo, devemos oferecer a Deus “sempre, sacrifício de louvor, que
é o fruto de lábios que confessam seu nome” (Hb 13.15). Corpos entre­

- 212-
E P ÍS T O LA DE PAULO AOS F IL IP E N S E S

gues para servir a ele e lábios empregados na exaltação do seu nome


são sacrifícios legítimos dos filhos de Deus.
Terceiro, encontramos aqui em Filipenses 4, o sacrifício de
dinheiro ou posses para suprir a necessidade de um cidadão. Esta
oferta é declarada “aceitável e aprazível a Deus” (v. 18). Compar­
tilh a r bens com necessitados é ao m esm o tem po um a oferta
apresentada a Deus. Havendo a motivação de amor e gratidão (não
reconhecim ento hum ano, M t 6.1-4), da parte do ofertante, seu
sacrifício será aceitável e aprazível a Deus. Enquanto Jesus habitou
fisicamente entre os homens era possível ofertar-lhe dinheiro (Lc
8.3) e “bálsamo de nardopuro” Qo 12.3). Esses sacrifícios eram acei­
táveis ao Senhor. Mas logo que ele foi exaltado, concretizou-se a
situação que ele predissera: “Porque ospobres sempre os tendes convosco,
mas a mim nem sempre me tendes” Qo 12.8). Na ausência física de Cristo,
temos o privilégio de trazer nossas ofertas ao altar 4, para serem
redistribuídas aos necessitados. Ofertas de bens, impulsionadas pela
graça de Deus (2Co 8.1) e compaixão pelos irmãos necessitados,
tributam graças a Deus (2Co 9.11) e acrescentam “glória ao próprio
Senhor” (2Co 8.19). Somente em sentido muito humano e restrito,
poderiamos afirmar que Deus necessita de nossas ações de graça e
glória que a ele sacrificamos. Mas se reconhecemos que tudo que lhe
dá prazer (gr. euareston, “bem aceitável”, “prazeiroso”, 4.18)
corresponde a seu desejo, será mais fácil compartilhar os bens que
ele mesmo nos ofertou! Paulo, portanto, aponta para: 1) o galardão
que os filipenses receberão no futuro (“o fruto que aumentou o vosso
crédito, v. 17), 2) o prazer que o sacrifício suscita a Deus e 3) o
benefício recebido pelo carente suprido com a oferta (v. 14-16).
Quanto à vida do servo de Deus, é descrita também como
“bom perfume” (gr. euodia, o termo técnico associado ao sacrifício
aceitável a Deus, 2Co 2.15) de Cristo. O simples viver, testem unhar
e espalhar “operfume do seu conhecimento” é uma oferta contínua no
altar de Deus. Assim a igreja de Filipos, permanecendo em Cristo,
resplandece no m undo como um céu escuro salpicado por luzeiros
e “preserva a palavra da vida” (2.15, 16). Assim estaria oferecendo
um sacrifício de serviço de fé sobre o qual a possível morte de Paulo
seria uma libação (2.17), sugerindo um ato consagratório antes de
queimar-se a oferta.
Uma vez que Cristo nos “amou e se entregou a si mesmo por
nós, como oferta de sacrifício a Deus em aroma suave” (Ef 5.2),
dependemos inteiram ente dele para receber nosso perdão e justiça.

- 213 -
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

Somente a oferta desse sacrifício único serve para expiar nosso


pecado e remover nossa culpa. O que nos resta para sacrificar? O
Novo Testamento deixa m uito claro que, motivados pela gratidão,
devemos oferecer nossos corpos, nosso louvor, nossos bens e nossa
vida. Disso Deus se agradará (Hb 13.16).

A reação de Deus é uma promessa de suprimento


Os sacrifícios que os cristãos tributam a Deus são indicadores da
filiação divina qüe reivindicam. Mas Deus também corresponde
às ofertas de seus filhos com o suprim ento para cada um a de nossas
necessidades. Paulo não hesita em cham ar o Senhor de “meu Deus”.
Ele, sendo Pai de Paulo e dos filipenses, tem um compromisso com
os seus. A frase segundo a sua riqueza em glória abre nossa visão para
a infinita grandeza de sua despensa ou banco. Dele é o m undo e
tudo que nele se contém (SI 24.1; 50.12) “São meus” disse o Senhor,
“todos os animais do bosque, e as alimárias aos milhares sobre as
montanhas” (SI 50.10). Quando Paulo pensava no sentido da palavra
“glória” no hebraico (significa “peso”), não deixava de contemplar
a riqueza, majestade, importância e uma fonte inesgotável de todos
os valores. Não meramente das riquezas, mas segundo as riquezas em
glória, Deus suprirá a carência dos filipenses.
Certa vez, um amigo meu foi pedir fundos para iniciar uma
obra im portante. Apelou para um irm ão riquíssim o na Suíça.
Depois de pegar o talão de cheques e orar, o banqueiro e dono de
prédios e estabelecimentos comerciais preencheu um cheque de
dois mil francos e o entregou a m eu amigo decepcionado. Tinha
partilhado sua imensa riqueza mas não “segundo as suas riquezas”
como Deus promete fazer. Devemos também notar que -a palavra
“suprir” (gr. plerõsei, “encher”, “fazer transbordar”) é a mesma que
Paulo usou no v. 18, “abundância”. Pela fé, Paulo promete que Deus
suprirá abundantem ente todas as necessidades dos filipenses. Eles
terão que receber pela fé o que Deus lhes outorgar, tendo como
mais do que suficiente para suas necessidades e não seus desejos.
Por que os crentes tem tanto receio de compartilhar sacri-
ficialmente suas posses com os carentes? Creio que foi C.S. Lewis que
apontou para o obstáculo principal. Não é uma vida de mais luxo que
desejamos mas o fim do temor frente à insegurança do futuro. Se
formos generosos como os filipenses, nosso futuro estará garantido,
não em bens materiais, fundo de garantia ou apólices de seguro de
vida, mas em Deus que promete suprir todas as nossas necessidades.

- 214-
E P ÍS T O L A DE PAULO AOS F I L IP E N S E S

Epílogo
A fé que confia em Deus como Pai para um futuro desconhecido,
também quer que toda glória lhe seja tributada (v. 20). Os santos
em Cristo Jesus devem receber a saudação individual e carinhosa
do apóstolo preso. N enhum santo (crente) deve ser esquecido. Os
com panheiros de Paulo tam bém m andam saudações com as de
Paulo. “Os santos”, provavelmente, se distingüem dos “irmãos” que
fazem parte da equipe de Paulo, porque são componentes da igreja
(em Roma ou talvez em Éfeso). Os santos da “casa de César” se
referem aos cristãos que moravam e trabalhavam no palácio do
governo onde Paulo estava encarcerado. Tinham oportunidades
freqüentes para encontrar, ouvir e orar com ele.
Paulo term ina esta epístola tão bela com a petição a Deus
para que a graça do Senhor Jesus Cristo seja com o espírito dos
filipenses, isto é, com a igreja como uma entidade ou organismo
vivo. Amém.
RUSSELL P. SHEDD
Introdução

Era por volta do ano 60 A. D. Em Roma, num a casa alugada,


encontrava-se aquele que talvez tenha sido o preso mais famoso
de toda a história: Paulo, da cidade de Tarso. Com ele achava-se
alguém que saboreava as palavras do apóstolo com evidente
satisfação, arriscando-se, de quando em quando, a alguns palpites:
Timóteo. Fora seu companheiro de longas e cansativas viagens e
de ardentes perseguições. Ali estava, também preso, o companheiro
Aristarco, além do evangelista Marcos e de Onésimo, o escravo
foragido da casa de Filemom, de Colossos. Em Roma, nesta ocasião,
encontrava-se também Lucas, o médico amigo e companheiro de
Paulo, autor do terceiro evangelho.
Paulo recebera, há pouco, a visita de Epafras, o evangelista
que havia fundado três igrejas no Vale do Lico, no interior da
província romana chamada Ásia: Colossos, Laodicéia e Hierápolis.
Epafras expusera a Paulo a situação decorrente do surgimento de
certas correntes teológicas que ameaçavam a saúde espiritual desse
novo centro de divulgação do cristianismo. Com Paulo achava-se
ainda Tíquico, que fazia as funções de “secretário”, escrevendo o
que o apóstolo dizia. E o que foi escrito é justamente o que mais
tarde veio a ser conhecido como a Epístola aos Colossenses, livro
inspirado que veio a integrar o cânon do Novo Testamento.

219 -
e p í s t o l a s da p ri s ã o

Antecedentes
Uma curiosidade é que Paulo, mesmo estando sempre a orar pelos
colossenses, nunca chegara a visitar essa igreja, até então. Assim,
não nos é difícil im aginar o cuidado com que ele ouviu o relato de
Epafras, procurando informar-se de todas aquelas idéias que os
mestres heterodoxos estavam divulgando naquela pequena cidade.
Para nós, hoje, não é tão fácil entender o que realmente perturbava
a fé cristã daqueles que se tinham convertido durante o m inistério
de Paulo em Éfeso, na sua terceira viagem missionária (52-55 A.D.),
quando “todos os que m oravam na Ásia ouviram a palavra do
Senhor, tanto judeus como gregos”. O instituto bíblico de Éfeso,
fundado e dirigido por Paulo nas dependências da escola de Tirano
(At 19.9), desempenhou um im portante papel na preparação de
obreiros, tais como Epafras e Arquipo. Estes, evidentemente, eram
os líderes da igreja de Colossos (Cl 4.17) na ocasião em que Paulo
escreveu esta epístola. Mas eles não se sentiam capazes de vencer
de uma vez, naquele confronto com as novas correntes teológicas,
que traziam um a heresia sincretista. M eu amigo e antigo professor,
James Stewart, da cidade de Edimburgo, certa vez observou que
toda a controvérsia do Novo Testam ento pode ser reduzida à
batalha da liberdade evangélica contra o legalismo dos judaizantes,
de um lado; e, do outro, à luta da verdade salvadora contra o gnos-
ticismo. Paulo entendeu plenamente a deficiência doutrinária dos
gnósticos que menosprezavam a Cristo mas supervalorizavam os
anjos; que davam pouca atenção à m oralidade e à ética, porém
muita à especulação teosófica; que dim inuíram o papel da história
mas exaltavam o misticismo.
No combate levantado na Epístola aos Colossenses, perce­
bemos que a heresia era uma mistura ou apanhado de elementos
judaicos e gnósticos. “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida
e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábado, porque tudo isso
tem sido sombra das coisas que haviam de vir” (Cl 2.16, 17). Esta
frase faz-nos lem brar do judaísmo. “Culto aos anjos”, “visões”,
“rudimentos do m undo” e proibições de tocar, manusear e provar
(Cl 2.18-21) indicam uma forte inclinação para o gnosticismo.
Logo após a invasão da cultura grega no Oriente Médio, em
conseqüência da vitória de Alexandre sobre os persas, no quarto
século antes de Cristo, a filosofia grega fez-se sentir tal como a
cultura ocidental perm eia o m undo de nossos dias. O prim eiro
século caraterizou-se por um profundo anseio pela salvação. Onde

-2 2 0
EPÍSTOLA DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

encontraria o hom em aquela segurança religiosa em face dos


poderes destrutivos que incessantemente ameaçavam a sua vida?
Era uma época de experiência e fomentação de movimentos anta­
gônicos. Promessas cativantes emanavam das religiões orientais,
cheias de mistérios, fundadas num certo tipo de magia que induzia
uma profunda experiência religiosa, descrita como “união com o
deus” da religião, fosse Isis ou Cibele, Osíris ou Dionísio. Assim,
uma religião se confundia com outra. A busca de uma segurança,
pretendida através da aceitação de várias formas de adoração,
convidava os pensadores a sugerir umPan-Theos, um deus que inclui­
ría todo e qualquer deus, uma idéia não muito distante dos filósofos
religiosos estóicos. Na iniciação de Lúcio no mistério de ísis, vê-se
que Diana, Vênus, Astarte e Minerva eram todos nomes distintos
de uma única deusa. O estoicismo queria aliar a filosofia do ocidente
à religião do oriente, como o espiritismo e o catolicismo se unem na
fé popular brasileira. Possidônio nos fornece um exemplo interes­
sante: era cientista, importante platonista, mas também um místico
e astrólogo e acreditava firmemente na união com um deus.

0 problema fundamental
Depois de terem ouvido e crido no evangelho salvador, como foi
que os colossenses se sentiram atraídos por conceitos tão inferiores?
Convém observar que o desafio surgiu da luta hum ana contra o
poder do mal e do azar. Como se podería adm itir a realidade de um
Deus criador, todo-poderoso, onisciente e bom, que permitisse o
sofrimento no seu universo? Os gnósticos propuseram a solução da
separação, quase infinita em distância, do Deus bom, de um lado;
e do mundo material, de outro. O homem, pelo conhecimento (gnosis,
isto é, conhecimento esotérico) e acertada adoração, podería influen­
ciar os poderes angelicais e demoníacos que dominavam o espaço
entre Deus e o mundo. Com m uito sacrifício se propunha uma
caminhada intelectual especulativa do nível material para o espi­
ritual. Os gnósticos hão achavam necessário negar o poder de Cristo
para salvar os homens do pecado, mas criam que o sofrimento e a
morte de Jesus mostravam inconfundivelmente que ele mesmo fora
vítima do azar, condenado a sofrer um caprichoso fatalismo do
mundo material. Assim vieram a apoiar uma teologia que, por um
lado, era ascética, de privação do material para se elevar e escapar;
e que, de outro, defendia a posição antinomista, que consistia em
comer, beber e entregar-se às orgias sexuais, já que o ser humano

-2 2 1 -
E P ÍS T O LA S DA PRISÃO

estava desesperadamente envolvido no mundo material (veja Ap


2.14 e a doutrina de Balaão).

A reação de Paulo
Diante deste quadro, que lhe fora pintado por Epafras, Paulo não
fica inerte. O apóstolo desem bainha a sua espada contra toda
essa sutileza filosófica e escreve a epístola aos colossenses. Como
veremos, ele emprega quatro métodos em sua luta:
(1) Advertência: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar
com sua filosofia e vãs sutilezas. . .” (2.8). Não pode haver um
casamento entre a verdade evangélica e as m entiras inventadas
por mentes não ilum inadas pelo Espírito de Deus.
(2) Usa os termos-chaves dos hereges contra as suas próprias
doutrinas. Exemplos temos em palavras tais como, “plenitude”
(gr.plerõma, que aparece dez vezes em Colossenses), “conhecimento
pleno” (gr. epignõsis) e mistério (gr. mystõríon).
(3) Dá à história o seu devido lugar, como percebemos nos
pretéritos repetidos, ao destacar o que realmente aconteceu nos
eventos da morte, ressurreição e entronização de Jesus Cristo.
(4) Exalta Cristo, o Filho de Deus, que se tornou carne por
nós, homens. Afirma que ele agora preenche m uito mais do que os
gnósticos esperavam dos poderes angelicais; e enfatiza que Cristo,
o Senhor, está sobre todos esses poderes. Assim Jesus Cristo, o
verdadeiro m ediador, dá acesso ao D eus único. E nquanto o
gnosticismo colocou a m atéria em oposição a Deus, a encarnação
traz o D eus transcendente para dentro da nossa hum anidade. Não
é a m atéria, em oposição a Deus, o antagonismo fundam ental;
mas ela é o meio pelo qual Deus se revela no corpo de Cristo. Não
é a m atéria o obstáculo ao progresso, mas o veículo pelo qual
Deus nos salva por meio da cruz e do túm ulo vazio.
Em síntese, Paulo nos m ostra, em Colossenses, que é no
senhorio de Jesus Cristo que jaz toda a esperança da humanidade.
O primeiro credo da igreja, Cristo é o Senhor, é o tema desta epístola
aos Colossenses. Paulo destaca o fato de que o cristão não somente
aceitou a Cristo como Senhor, num momento de sua vida, mas
deve viver nesta mesma condição, ou seja, sob o senhorio de Cristo:
“Ora, como recebestes a Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele... ” (2.6).
Vejamos a seguir como este tem a é desenvolvido nesta
belíssima obra de arte, escrita há quase dois milênios, mas ainda
atualíssima na sua abordagem da verdade libertadora do evangelho.

- 2 2 2 -
Análise e
Interpretação

Autor, destinatários e saudação inicial ( 1 .1 ,2 )


'Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de
Deus, e o irmão Timóteo, 2aos santos e féis irmãos em
Cristo que se encontram em Colossos, graça e paz a vós
outros da parte de Deus nosso Pai.

0 autor
O autor se apresenta como apóstolo: no sentido técnico da palavra,
um mensageiro, um agente autorizado, com os direitos de um
procurador. Ele é, pois, um mensageiro de Jesus Cristo, pela vontade
de Deus. Falsos apóstolos, condenados por Paulo em 2Coríntios
11.3 e por Cristo em Apocalipse 2.2, são homens que agem por
conta própria, sem essa autorização plena que recebe no apostolado
uma testem unha da ressurreição, especificamente comissionada
por Cristo (cf. ICo 9.1; 15.8ss). Pelo que se deduz de Efésios 2.20,
Paulo parece endossar a afirm ação do Talm ude judaico: “Um

- 223
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

homem enviado é equivalente àquele que o enviou” (Beracote 5.5).


A igreja foi fundada sobre os apóstolos e os profetas, já que são
eles que garantem os fatos históricos sobre os quais está alicerçada
a nossa fé.
Disso decorrem três pontos m uito significativos:
Primeiro: Que a igreja só é igreja de Cristo enquantofor apostólica,
isto é, enquanto seguir as normas doutrinárias e as práticas que
lhe legaram os apóstolos.
Segundo: Que a inspiração do Novo Testamento é igualmente
apostólica. Cremos em Cristo assim como ele foi crido e interpretado
pelos apóstolos e profetas. N ada pode exigir tão fortem ente de
nós o cumprimento da vontade de Cristo quanto a nossa obrigação
de cum prir os ensinamentos dos escritores do Novo Testamento.
Terceiro: Que a comissão apostólica não pode ser transmitida a
outrem. N ão há, p o rta n to , base algum a para a crença cató-
lico-romana de que há um a sucessão de homens que podem exercer
a autoridade infalível dos prim eiros apóstolos.

Os destinatários
Os destinatários são descritos como santos e fiéis, designação carac­
terística do Novo Testamento.
O termo santo tem profundas raízes no m undo hebreu do
Antigo Testamento. Literalm ente, refere-se a algo ou alguém dife­
rente. Da raiz, que quer dizer saudável, passou a significar separado,
para indicar possessão e uso exclusivos de Deus. Os santos recebem
essa qualificação pelo preço da redenção, que os comprou (1 Co
6.20), e pela presença do Espírito Santo, que os santifica.
A palavra fiéis refere-se aos que crêem; não há, no grego,
qualquer distinção entre quem crê e quem é fiel. A ênfase diz respeito
à entrega confiante a Cristo, que passa, então, a controlar todos
os aspectos dessa vida que descansa nele. A fidelidade evidencia
uma fé realmente salvadora (Cl 1.23; Hb 3.14).
Irmãos são os membros da mesma família, da qual Deus é o
Pai. No judaísm o, podia-se cham ar de irmão tanto a um com­
patriota quanto a alguém que tivesse aderido à religião judaica.
Não esqueçamos que, como filhos adotivos de Deus, tornamo-nos
igualmente irmãos de Jesus Cristo e cada cristão, um do outro.
Mas nem sempre temos dado o justo valor aos nossos irmãos de
outras raças ou denominações; não temos reconhecido devidamente

- 224 -
que pertencemos a uma mesma família. Paulo diz que os irmãos
estão em Cristo; ou, em outras palavras, só num a relação vital
com Cristo é que existe alguma veracidade no privilégio de ser
santo ou um fiel membro da família de Deus.

Asaudação
Paulo saúda os irm ãos com os term os graça e paz. O prim eiro
lembra a saudação comum no grego, que traduzimos por “Ave!”.
Graça é todo favor que Deus nos concede incessantemente. Paz
traduz um a palavra grega que reflete o conceito hebraico de
“shalom”, indicador de prosperidade e bem-estar outorgados por
Deus apenas àqueles que o amam.

A fé, o amor e o evangelho (1.3 -8)


3Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor
Jesus C risto , quando oram os por vós, 4desde que
ouvimos da vossa fé em Cristo Jesus, e do amor que
tendes para com todos os santos; 5por causa da espe­
rança que vos está preservada nos céus, da qual antes
ouvistes pela palavra da verdade do evangelho, 6que
chegou até vós; como tam bém em todo o m undo está
produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós,
desde o dia em que ouvistes e entendestes a graça de
Deus na verdade; 7segundo fostes instruídos por Epa-
fras, nosso amado conservo, e, quanto a vós outros, fiel
m inistro de Cristo, 8o qual também nos relatou do vosso
amor no Espírito.

Fé e amor
Apesar de nunca ter tido o privilégio de conhecê-los pessoalmente,
Paulo amava os novos convertidos que com punham a pequena
comunidade cristã de Colossos. Esse amor, ele o expressava dando
constantem ente graças por eles ao Pai de Jesus Cristo, e fazendo
petições em favor daqueles que criam no Senhor (Cf. 1.12; 2.6;
3.15, 17).
O que motivou o apóstolo à oração foi a notícia da fé em
Cisto, sinal do poder que operava nos colossenses a convicção da

- 225 -
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

verdade do evangelho, levando-os a se comprom eterem inteira­


mente com o senhorio de Cristo. Uma fé que se restringe a apenas
crença ou assentimento não pode reivindicar o direito de ser cha­
mada “fé”, no sentido bíblico. A fé sem compromisso ou obediência
não passa de uma ilusão.
A conseqüência inevitável de uma fé comprometida é o flores­
cimento do amorfraternal para com todos os santos (v. 4; veja também lPe
1.22). Dentro do único corpo de Cristo é impossível não haver auxilio
mútuo, mesmo quando os irmãos estão geograficamente separados
(como era o caso de Paulo, distante dos colossenses a mais de 1.500
quilômetros). A única explicação para esse amor é a operação do
Espírito Santo, como o evidencia a frase “amor no Espírito” (v. 8).
A fé e o amor dos colossenses fundamentavam-se na espe­
rança (v. 5) despertada nos corações daqueles que eventualmente
viriam a crer em Cristo. Essa esperança os fez voltarem os olhos
dos seus corações para o céu, onde estava o Senhor ressurreto, bem
como para a herança de vida que abrangería todos os benefícios e
alegrias incontaminados do Paraíso. Convém atentarm os para o
fato de que a esperança precede a fé e esta, o amor. Não nos devemos
basear nisto para evangelizarmos os não-cristãos desiludindo-os
em relação a este m undo e incentivando-os a almejarem um m undo
perfeito “onde habita justiça”? (cf. Rm 8.24).
Esse trio de virtudes — fé, amor e esperança — que os colos­
senses compartilhavam, confirmou, para Paulo, a operação da graça
do Espírito Santo na vida deles. Mas se indagássemos sobre a dinâ­
mica dessa intervenção de D eus, que transform a pecadores em
santos, o apóstolo apontaria para o evangelho. A boa nova refere-se
àquilo que Deus fez historicamente em Cristo; o evangelho, de igual
forma, pode ser denominado “palavra da verdade”. Essa mensagem
original, anteriormente ouvida pelos colossenses por intermédio de
Epafras, tinha que ser contrastada com uma nova versão de “boas
novas”, distorcida por astutas especulações humanas. Por isso Paulo
os faz lembrar que a mensagem pura eles a ouviram antes (2.6; note
a palavra “recebestes”, no passado).

0 evangelho
Consideremos como o evangelho é descrito aqui: em prim eiro lugar,
é uma mensagem que consiste na verdade. Logos, o termo escolhido por
Paulo, e que em português se traduz por palavra, diz respeito à

- 226 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS COLOSSENSES

lógica, razão e mensagem persuasiva por não ser contraditória. É


também o título atribuído por João a Jesus no seu evangelho (Jo
1.1, 14). Assim, o evangelho resume-se essencialmente na verdade
que nos revela quem é Jesus Cristo e o que ele fez por nós em sua
vida, morte, ressurreição e exaltação.
Segundo, percebe-se que esta mensagem de Deus é universal
em seu escopo: “. . . chegou até vós, como também em todo o mundo
e stá. . (v. 6). Tanto o gnosticismo como o judaísmo se restringiram,
necessariamente, a uns poucos indivíduos que estavam em condições
de se encaixar no sistema. O evangelho, por sua vez, oferece a todos,
indistintam ente, a sua maravilhosa salvação.
Terceiro, o evangelho tem a qualidade fundamental de vida. Por
isso ele frutifica — e esta palavra frisa o seu poder penetrante (Hb
4.12) e transformador. O texto ainda adiciona que esse evangelho
está crescendo, tanto entre os colossenses como em toda e qualquer
parte do mundo. A ênfase é dada à dinâmica extensiva do evangelho,
estendendo-se em direção a todos, sem acepção de raça, língua, cultura
ou geografia. Como disse Crisóstomo: “O crescimento externo acom­
panha os passos da sua energia interna”. Essa energia espiritual existe
em virtude do senhorio de Cristo, ativo em sua igreja onde quer-que
esta se encontre, na Ásia de então ou no Brasil de hoje.
Quarto, Paulo dá-nos a conhecer que o evangelho é nada
menos que a graça de Deus em verdade (v. 6b). Evidentemente, a
graça se coloca em oposição às obras ou ordenanças (2.14) prom ul­
gadas pelos falsos m estres. Estes exigiam do hom em m érito
suficiente para obrigar Deus a salvá-los. Mas a graça declara justo
o pecador, mesmo sem m érito algum, através da expiação dos
seus pecados pelo sangue rem idor de Cristo (v. 14).
Quinto, notamos que o evangelho não funciona afastado do
coração humano. Paulo emprega três termos para m ostrar a absoluta
necessidade de que a mensagem penetre os ouvidos (ouvistes, v.
6b) e o entendim ento conhecestes, de “epignote”, que fala de um
conhecimento com convicção), vindo então o discipulado (apren­
destes, verbo cuja raiz é a mesma que a de ser discipulado). Sem o
envolvimento da mente e da vontade do homem, o evangelho não
tem condições de crescer e frutificar. À comunicação de tão valiosa
mensagem, portanto, deve ser dada m uita atenção.
Finalm ente, o evangelho precisa de um portador, alguém que o
comunique. Entre os colossenses, era ‘Epafras, “um dos vossos”
(4.12), quem exercia esse dom de evangelista (Ef 4.11). As quali­

- 227 -
e p í s t o l a s da p ri s ã o

dades deste obreiro, semeador do evangelho, não devem passar


despercebidas: sendo um “escravo junto com Paulo” (do grego sun-
doulos), entende-se que a sua motivação e energias foram colocadas
à plena disposição do seu Senhor Jesus Cristo. Também é referido
como amado, o que indica a amizade que o unia a Paulo e seus
companheiros. Epafras, diz Colossenses 4.12, era um servo fiel
(diakonos); isto destaca a lealdade e fidelidade com que prestava a
sua “diaconia” ou serviço, representando a igreja de Colossos junto
a Paulo, “esforçando-se sobremaneira, continuam ente, por vós nas
orações” (4.12). A frase “fostes instruídos” (1.7) revela a qualidade
de pastor-mestre que discipulou os cristãos, conforme o sugere o
original dessa expressão. Epafras também compartilhava a prisão
com Paulo, segundo entendemos a partir de Filemom 23.
O quadro inteiro nos dá a impressão de um jovem pastor,
cheio de amor por Deus, por seus irmãos e pelos perdidos do Vale
do Lico, já que foi ele, provavelmente, quem fundou não só a
igreja de Colossos como também as de Laodicéia e Hierápolis (cida­
des localizadas no vale e bem próximas umas das outras). Oxalá
fôssemos insistentes diante de Deus, pedindo-lhe levantar, nas
igrejas brasileiras, muitos servos como Epafras!
Em resumo, Paulo agradece incessantemente pelos irmãos
colossenses, pela m anifestação da fé, amor e esperança que os
caracterizavam. O evangelho é o meio usado por Deus para pro­
duzir o fruto, que se expandia e tinha sucesso em todo lugar. Mas
Deus não dispensa homens como Epafras, plenam ente dispostos
a pregar, discipular e até mesmo sofrer por amor a Cristo.

Intercessão em estilo apostólico (1.9 -12 )


9Por esta razão, tam bém nós, desde o dia em que o
ouvimos, não cessamos de orar por vós, e de pedir que
transbordeis de pleno conhecim ento da sua vontade,
em toda a sabedoria e entendim ento espiritual; 10a fim
de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro
agrado, frutificando em toda boa obra, e crescendo no
pleno conhecimento de Deus; 11sendo fortalecidos com
todo o poder, segundo a força da sua glória em toda a
perseverança e longanim idade; com alegria, 12dando
graças ao Pai que vos fez idôneos à parte que vos cabe
da herança dos santos na luz.

228
EPÍS TOL A DE PAULO AOS COL OSSENSES

0 pleno conhecimento da vontade de Deus


Com a chegada de Epafras e o relatório que este lhe apresentou,
Paulo foi levado a orar nos termos aqui descritos. Assim, a oração
cresce num solo de gratidão (“Por esta razão. . . ”) e traça o desen­
volvim ento que se deve esperar na vida cristã, começando na
infância espiritual e indo até a plena m aturidade em Cristo.
Ao analisarmos o pedido de Paulo, assim expresso: .. que
transbordeis de pleno conhecimento da vontade de Deus” (v. 9), con­
cluímos que esta é a necessidade básica para todo crescimento
espiritual. Sem conhecer a vontade de Deus para nós (estando ela
revelada na sua Palavra), como poderemos atingir a “sabedoria e
entendim ento espiritual” que nos possibilitarão viver de maneira
digna do nosso Senhor?
O termo transbordeis traduz a mesma palavra no pretérito
(aoristo) que aparece no presente em Efésios 5.1S. Quando todo o
espaço das nossas mentes for preenchido até transbordar com o
conhecimento da vontade do Senhor, já não teremos muito interesse
em satisfazer egoisticamente a nossa vontade. A voz passiva, no
original, indica que não é outro senão o Espírito de Deus que grava
a lei de Deus no coração do crente, conforme prometido séculos
antes em Ezequiel 11.19,20 e 36.25-27. Tudo parte deste princípio,
dando Deus aos seus filhos um a gloriosa apreciação da sua vontade
divina, bem como a motivação para fazê-la. É bem mais do que
um farisaísm o árido, que procura cum prir Iegalisticam ente as
ordens de Deus. Não! Não! Seria uma reação da pessoa inteira
(vontade, ambição e intelecto) diante de Deus, que se revelou em
Cristo encarnado, vivendo este em plena submissão ao Pai.

Sabedoria e entendimento
Os termos sabedoria e entendimento espiritual indicam as qualificações
da vontade de Deus, ou os critérios pelos quais distinguimos essa
vontade das atraentes e convincentes “vontades” contrárias àquilo
que Deus quer.
Sabedoria fala de revelação divina, ao contrário de soluções
intelectuais e humanas. Na literatura sapiencial (Provérbios, Jó, Ecle-
siastes) refere-se ao relacionamento humano e à responsabilidade.
Entendimento espiritual (isto é, concedida pelo Espírito) diz-nos
da aplicação pormenorizada da revelação que Deus nos deu na

- 229-
E P ÍS T O LA S DA P R IS Ã O

sua Palavra e na vida de Cristo (1 Co 1.30). Convém lem brar a


importância que tem, para o cristão verdadeiro, o possuir a mente
de Cristo (Fp 2.5ss).

As consequências de conhecer a vontade de Deus


O propósito de que o cristão transborde (v. 10) de pleno conheci­
mento da vontade de Deus é que ele ande de maneira digna do
Senhor. Modo digno traduz uma palavra relacionada com a balança.
Imaginemos as atitudes, palavras e ações de Deus colocadas num
dos pratos de uma balança e as nossas empilhadas no outro prato.
Se a nossa vida, como cristãos, deixar de corresponder à vida do
Senhor, estaremos andando indignamente. Vemos aí a importância
de que a nossa intercessão m útua focalize a necessidade de, sob a
ação do Espírito Santo, transbordarmos do conhecimento da von­
tade de Deus.
Daí, o apóstolo aponta cinco conseqüências de uma conduta
cristã digna do Senhor:
1) Agradando a Deus. Deve ficar bem claro para o cristão que
“viver para o seu inteiro agrado” é, em síntese, o único propósito
para o qual vivemos. Tornou-se bastante conhecida a prim eira
pergunta do Catecismo de Westminster: “Qual é a razão principal
pela qual o homem existe?” Resposta: “Para glorificara Deus e
deleitar-se nele para sempre”.
2) Frutificando em toda boa obra é a segunda conseqüência.
Não se trata de ação ou obra alguma que o homem possa efetuar
para conseguir mérito aos olhos de Deus, mas, sim, atos tão cheios
de amor que quem os observa não pode explicá-los sem recorrer à
operação de Deus na vida do cristão. Por isso Jesus recomendou
que fizéssemos boas obras que redundassem em glória para Deus
por parte dos homens (Mt 5.16).
3) Crescendo no pleno conhecimento de Deus: isto só ocorre
quando o cristão vive santa e piam ente pelo poder de Deus. No v.
9, Paulo recomenda aos seus leitores que transbordem do pleno
conhecimento da vontade divina. E, logo a seguir, notamos que
aproximar-se de Deus de forma mais íntim a e pessoal produz o
mesmo resultado que o de obedecer à vontade dele na vida prática.
4) Sendo fortalecidos com todo o poder de Deus. Esse poder
(dunamis) é comparável (pelo significado da palavra “segundo”) à
força dom inadora que tem a glória de Deus, cada vez que se ma­

- 230 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

nifesta. Imaginemos o terror dos guardas do túmulo de Jesus quando


a pedra foi removida e Cristo ressurgiu, radiante, superando o poder
da m orte e a precaução dos romanos! Quando Isaías entrou no
templo, a glória de Deus encheu a casa e o profeta caiu em si,
arrependido e disposto a servir ao Senhor onde e como este orde­
nasse. O termo fora (kratos) significa imponência de alguém como
um im perador que, pela m ajestade da sua presença e reconhe­
cimento do seu poder, provoca uma total submissão à sua vontade.
Esse crescimento no pleno conhecimento de Deus ocorre
em virtude de algumas atitudes, aqui indicadas por duas palavras:
. . em toda a perseverança e longanimidade” (v. 11). A prim eira
(hupomonê) é freqüentemente traduzida por “paciência”, no sentido
oposto ao de covardia ou disposição de tentar escapar de uma
situação difícil. A segunda palavra (mákrothumia) corresponde
àquela paciência que contrasta com a ira ou hostilidade; expressa
bem a atividade passiva de quem aceita de bom grado uma aflição
ou injustiça, sem ficar revoltado. Bem disse Tertuliano, antigo pai
da igreja: “A fé é a paciência com a lâm pada acesa”.
A terceira atitude característica encontra-se na referência a
“alegria”. Não é difícil perceber que tudo que Paulo almeja para os
colossenses era experim entado por ele mesmo. N a sua epístola
aos filipenses, o term o “alegria” aparece, de um a forma ou de
outra, num total de dezesseis vezes, indicando a forma como Deus
lhe respondia as orações na prisão.
5) A oração é concluída com adoração (v. 12): “Dando graç
ao Pai que vos fez idôneos” para herdar tudo que ele tem para os
seus filhos. A gratidão e o louvor são a conseqüência natural de
uma conduta digna do Senhor. Estando idôneos ou capacitados,
a nossa m ente se abre para toda a obra redentora de Cristo,
m ediante a qual Deus nos deu as condições para herdarm os o
céu. Aqueles que estavam, anteriorm ente, alienados e sem Cristo,
os que eram “estranhos às alianças da promessa, não tendo espe­
rança e sem Deus no m undo” (Ef 2.12), agora passaram a ter
direito à escritura do paraíso, lavrada por Jesus C risto, favo­
recendo-lhes em tudo.
Em síntese, Paulo fundam enta a sua oração pelos cristãos
de Colossos demonstrando a realidade e o poder do evangelho.
Roga a Deus que eles conheçam plenamente a sua vontade, a fim
de poderem viver segundo o inteiro agrado do Senhor. Eis o modelo
apostólico de intercessão!

- 231 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

Jesus Cristo, Senhor de toda a criação (1.13 -2 3 )


13Ele nos libertou do im pério das trevas e nos
transportou para o reino do Filho do seu amor, 14no qual
temos a redenção, a remissão dos pecados. 15Ele é a ima­
gem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação;
16pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e
sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos,
sejam soberanias, quer principados, quer potestades.
Tudo foi criado por meio dele e para ele. 17Ele é antes de
todas as coisas. Nele tudo subsiste. 18Ele é a cabeça do
corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre
os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, 19porque
aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude, 20e
que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por
meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas,
quer sobre a terra, quer nos céus. 21E a vós outros também
que outrora éreis estranhos e inimigos no entendimento
pelas vossas obras malignas, 22agora, porém, vos recon­
ciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para
apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreen­
síveis, 23se é que permaneceis na fé, alicerçados e firmes,
não vos deixando afastar da esperança do evangelho que
ouvistes, e que foi pregado a toda criatura debaixo do
céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro.

0 resgate que Deus efetuou no passado


Deus m ontou uma “operação resgate” para libertar os pecadores
do poder das trevas. Foi nessa investida contra o reino satânico,
levada a efeito por Jesus Cristo, que a luz brilhou naquele império,
sendo construída a ponte que daria acesso dali até o reino do Filho.
“Ele nos libertou” (v. 13): isto indica que os santos já não estão
mais sujeitos à escravidão do pecado nem à obediência à vontade
de Satanás.
Uma vez que ele “nos transportou” (o tem po aoristo, no
grego, mostra uma ação completada) para o reino do amado Filho
de Deus, gozamos dos benefícios interpretados por alguns no
contexto do milênio. O reino de Cristo (“do Filho”) é termo raro
no Novo Testam ento, em contraste com a expressão “reino de

- 232 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS COLO SS ENSE S

D eus”. Em IC oríntios 15.24-28, Paulo m ostra que a presente


exaltação de Cristo ao trono do Pai caracteriza-se pelo domínio
das forças inimigas que se opõem ao seu reinado. E Apocalipse
11.15 afirma que o dom ínio deste m undo já foi transferido ao
Senhor (Deus Pai) e ao seu Cristo (o Messias), que reinará pelos
séculos dos séculos. Esta perspectiva é denominada pelos teólogos
escatologia realizada. As coisas que se realizarão plenam ente no
futuro (na segunda vinda e no milênio) já são um a realidade pre­
sente. O reino futuro já se manifestou na prim eira vinda de Cristo
(veja M t 12.28 e Lc 11.20), mas só o veremos na totalidade na
Parousia (com parar ICo 15.50). Alguns interpretam a presente
realidade como o reino de Cristo (ICo 6.9ss; 15.50; G1 5.21; 2Tm
4.1,18) e o futuro reino como o reino de Deus. O mais im portante
é saber que o verdadeiro cristão já é cidadão do reino de Jesus
Cristo, vivendo já como súdito de tão glorioso Rei, cujo domínio
se manifesta na santidade e no amor dos “filhos do reino”.

A redenção presente
Enquanto o v. 13 coloca no passado o resgate e o transporte de um
reino para o outro, o versículo seguinte declara a verdade da
salvação presente. Em Cristo temos a redenção por intermédio de
um redentor (no hebraico, “goel”: um parente ou interm ediário que
tinha possibilidades e direitos para readquirir o que tinha sido
vendido ou escravizado, como se vê em Rute 2.20 e 4.1-12). Outro
exemplo de destaque na Bíblia encontra-se no Êxodo, quando Deus
redim iu da escravidão o seu povo Israel. Redenção envolve o paga­
mento do preço, ou algo oferecido em troca do valor da pessoa ou
objeto a ser redimido. Efésios 1.7 revela a imensidão do preço que
nos resgatou: nada menos que o sangue do próprio Rei da glória,
vítima de violenta morte! Desta forma, os direitos com que o império
das trevas segurava os seus súditos foram substituídos pelos
direitos plenos que nos impõe o cativeiro gracioso de Cristo (Ef
4.8ss; 2Co 2.14ss; ICo 6.19, 20).

0 perdão dos pecados


Além do resgate, do transporte para o reino de Cristo, e da rede­
nção, realizados no passado e no presente, temos ainda o perdão
dos pecados e o privilégio de gozar a paz advinda do total paga­

- 2 33 -
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

mento da dívida (idéia comunicada pelo grego afesin), dando-nos


acesso à plena comunhão com Deus e uns com os outros. Já não
mais existe barreira entre o pecador imundo e o seu Deus três vezes
santo. O que aconteceu com Lady Macbeth, na peça de Shakespeare,
não ocorre com o cristão verdadeiro: a mancha do pecado não lhe fica
nas mãos. Ainda que ele peque, o sangue remidor de Jesus Cristo
combate eficazmente o poder contagioso e febril da maldade. E
nem mesmo Satanás resiste ao sangue do Cordeiro (Ap 12.10, 11).

0 senhorio de Cristo na criação


Nos versículos 15 a 17, Paulo deixa de lado a obra redentora para
considerar a grandeza da pessoa de Jesus Cristo:
Ele é a imagem do Deus invisível. Nosso Senhor reflete perfei-
tamente, tal como um espelho, a exata natureza de Deus; no seu
corpo encarnado podemos contem plar as m arcas deixadas pelo
molde divino. Dessa forma o próprio Deus, embora oculto aos
olhos pecaminosos, se fez visível através do seu Filho, que o revelou
(Jo 1.18; Rb 1.3). Quem quer saber como é Deus, considere atenta­
mente a pessoa de Jesus Cristo: seu amor e sua indignação, sua
misericórdia e sua denúncia dos hipócritas, sua hum ildade e majes­
tade, sua atitude de servo e seu senhorio.
Ele é o primogênito de toda a criação. Esta afirmação ressalta
a verdade da prim azia de Jesus Cristo como o “prim eiro gerado”,
o herdeiro de tudo. Como Senhor e também autêntico representante
e substituto do Pai, a ele cabem todos os direitos, tanto na área
civil quanto na religiosa. Na antigiiidade, o primogênito também
exercia soberania na casa (cf. Gn 25.31; 27.29, 37; 49.3). Assim,
constatamos que o nosso soberano Senhor é o herdeiro de tudo
quanto já foi criado; e, como tal, possui direitos irrevogáveis para
possuir e exercer absoluta autoridade sobre a criação, quer sejam
os céus, quer a terra ou tudo que neles há (cf. SI 24.1).
A prim ogenitura indica também o privilégio de ser eleito ou
escolhido para ocupar a mais alta posição de honra. Neste sentido,
Israel foi constituído primogênito de Deus (Êx 4.22,23), que assim
declarou o seu amor para com o povo escolhido. Da mesma forma,
o Pai se manifestou na ocasião do batismo de Cristo (Lc 3.22). Os
privilégios decorrentes de se receber o título de prim ogenitura são
encontrados no Salmo 89.27, onde o divino descendente de Davi é
assim descrito: “Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito, o mais elevado

- 234-
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

entre os reis da terra” (cf. Ap 1.5). Não obstante os argumentos


dos arianos do século IV, que afirmaram ser Jesus parte da criação,
é m uito claro que ele foi co-agente e já era antes de tudo o que
Deus fez (v. 16, 17).
Em Romanos 8.29 há mais um sentido no qual o prim o­
gênito, Cristo, está relacionado com a igreja, constituída por muitos
filhos de D eus, irm ãos transform ados na im agem do próprio
prim ogênito. O apóstolo concentra sua atenção num horizonte
distante, a partir do versículo 19 do referido capítulo de Romanos.
Toda a criação geme, na ansiedade de presenciar a restauração de
todas as coisas, no glorioso dia em que o Senhor da criação tomará
posse do novo céu e da nova terra. Nesse mesmo dia, os filhos de
Deus receberão corpos reconstituídos, como o de Cristo, declarado
as prim ícias da ressurreição (ICo 15.23).
Por que o Senhor foi exaltado à primogenitura? Três verdades
fundam entam o pensamento de Paulo com respeito à relação entre
a criação e Jesus Cristo. A palavra “pois” (do grego hoti) mostra
que a posição atribuída ao Senhor é conseqüência do que Paulo
apresenta logo em seguida:
1) Nele, todas as coisas foram criadas. Portanto, ele é a fonte
originadora de tudo que existe no céu e na terra; tudo que o olho
hum ano é capaz de perceber, bem como o invisível ou que está
fora do alcance dos sentidos humanos, tudo se originou no plano
e no poder do Senhor. Tronos e senhorios, tanto de anjos quanto
de homens, príncipes e autoridades do m undo sobrenatural, to­
dos em anaram do seu poder criador. “Cristo, ele próprio, enche o
universo da maior profundeza até a m aior altura com Deus e faz
da alma hum ana o seu santo dos santos.”
Tais implicações não devem ter passado desapercebidas aos
colossenses, que consideravam tão atraentes as reivindicações dos
mestres gnósticos acerca dos poderes invisíveis dos ares. Paulo
simplesmente derruba qualquer busca de meios e caminhos para
influenciar os “soberanos” invisíveis do universo, apresentando a
inabalável verdade: “Cristo é senhor, herdeiro e primogênito sobre
tudo e sobre qualquer inteligência desencarnada”. Buscá-lo é a
única forma de vencer todas as forças opositoras na vida!
2) Tudo foi criado por meio dele. Cristo é o agente do poder
criador de Deus. Se é que tudo que existe passou pelas mãos dele,
então podemos ter absoluta confiança no seu controle providencial.
Para ele não há surpresas e nunca podería encarar como tal os

-2 3 5
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

nossos incidentes e “por acasos”, já que nada do que existe nem


qualquer ocorrência pode ser separado da sua divina vontade (ve­
ja Jo 1.3 e Hb 2.8).
3) Tudo foi criado para ele. Cristo, aqui, é-nos apresentad
como o alvo da criação. Todas as coisas feitas e moldadas pelas
sua mãos, todas as funções da variedade infinita do nosso universo
— tudo tem como única finalidade render ao Senhor todo o louvor
possível! Desde os bilhões de sóis que compõem as galáxias espa­
lhadas pelos céus, até os micróbios unicelulares, tudo rende e ainda
prestará dívidas de louvor, num a sinfonia que proclama eterna­
m ente que o Senhor é digno de receber toda a honra, glória e
adoração (SI 19.1-4; 5.11-14).

A primazia de Cristo
Após declarar a razão por que Cristo merece ser o primogênito de
toda a criação, no v. 17 Paulo passa a apresentar duas verdades
que apoiam a absoluta prim azia de Jesus.
Em primeiro lugar, “Ele é antes de todas as coisas”. Quando
Jesus surpreendeu os judeus, ao declarar que já existia antes de
Abraão (Jo 8.58), lançou a base para o que Paulo diz aos colossenses
aqui. Além disso, Jesus empregava a frase “Eu sou” (no grego, ego
eimi), colocando-se a si mesmo acima do tempo, no sentido em que
os homens o vivem; ele era sem início e sem fim, “o mesmo ontem,
hoje e para sempre” (Hb 7.3; 13.7). No pensamento antigo, quem
vem antes merece o primeiro lugar. Confrontamo-nos, assim, com
a prioridade de Jesus, evidenciada no fato de que, já que todas as
coisas lhe são posteriores, logo ele é superior a tudo que existe.
Considere-se, em segundo lugar, o fato de Cristo integrar
todo o universo. “Nele tudo subsiste” significa que ele é o centro de
coerência ou coesão. Sendo ele o segredo da unidade, que interliga
e dá simetria a todas as leis da física ou da química, da biologia
como também da astronomia, os sistemas de leis que regem todo
o universo são manifestações para dar lugar aos novos céus e à
nova terra. Talvez assim possamos entender melhor a declaração
do v. 20, que aponta a cruz como o veículo de reconciliação de
“todas as coisas”. Os rabinos judaicos acreditavam firm em ente
que a prim eira criação tinha sido o modelo ou o tipo da nova
criação. A redenção não se efetivou num vácuo, mas no centro da
história e do universo. Deus encara com tanta seriedade a ordem

236 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS COLOSSENSES

própria do m undo por ele estabelecido, que sacrificou seu próprio


Filho a fim de salvar o m undo sem desprezar essa ordem. A nova
criação vem a ser, portanto, o “não” de Deus aos problemas deste
mundo, como também o seu “sim” para o propósito original.
Na época de Paulo (e em parte também na nossa), o homem
não se preocupava tanto com seus problemas pessoais, seu pecado
ou retidão, mas, sim, com os problem as do mundo: a falta de
significado na vida, a ameaça do azar, a tirania desoladora das
forças que controlavam os eventos terrestres e as estrelas que supos­
tam ente determinavam toda m udança na sorte dos homens. Mas
Paulo teve um encontro com Cristo e, ao conhecê-lo, descobriu a
solução para todo esse quebra-cabeça. A resposta estava enqua­
drada na soberania de Cristo: não um a verdade teórica ou apenas
religiosa mas, sim, para o dia-a-dia. Assim, ao enfrentar o sofri­
mento, perseguição ou qualquer problem a, o apóstolo passou a
encará-los como manifestações da graça de Cristo, que atuava em
tudo (veja 2Co 12.7-10).

0 senhorio de Jesus Cristo sobre a nova criação


Em relação à igreja, encontram-se nos v. 18 e 19 quatro afirmações
de amplo significado:
1) A cabeça do corpo. Além de ser o titular do governo sobr
a criação, Jesus Cristo foi exaltado à posição de cabeça do corpo,
figura escolhida por Paulo para salientar a relação orgânica exis­
tente entre Cristo e a igreja universal. Assim como Eva foi criada
do corpo de Adão, tam bém a igreja surgiu pela encarnação do
único Filho de Deus, o qual, na sua morte e ressurreição, se ofereceu
para criá-la (Jo 2.19-21). Ao se dizer que o Senhor é “a cabeça”,
está im plícita a sua inseparabilidade do corpo, ao mesmo tempo
que se exclui a sua identidade total com esse corpo. Os benefícios
da redenção fluem da cabeça para o corpo, mas este não tem o
direito de reivindicar soberania sobre o mundo, nem de exercer
um espírito triunfalista. Cristo, e não a igreja (e muito menos a
sua hierarquia), é o Senhor. Cada vez que a igreja tem usurpado a
posição soberana de Cristo sobre o mundo, foram notados sinais,
não do seu caráter celestial, mas carnais e até infernais.
2) O princípio da nova criação. Cristo estabeleceu o esboço
da igreja, assim como os alicerces dão, em princípio, a idéia
projetada de como será o prédio a ser sobre eles educado. Em

- 2 37 -
E PÍST O LA S DA PRISÃO

Hebreus 12.2, Cristo aparece como o “autor e consumador da nossa


fé”. Daí percebemos que ele é a cabeça por ser o iniciador da nova
raça dos salvos.
3) O primogênito de entre os mortos. Focalizando a ressurreição
(veja também Ap 1.5), esta frase declara que o Senhor tem o direito
de governar a sua igreja por ser o herdeiro, o prim eiro e o principal
dentre m uitos irmãos. M ais ainda, este versículo ensina que o
fato de que “dos mortos a vida por ele começou” (O Novo Testa­
mento, versão de Phillips) implica em ser ele realmente o Senhor
de tudo na igreja. Quando os santos, que compõem seu corpo,
evidentem ente lhe desobedecem, estão negando abertam ente a
finalidade da ressurreição. Deus Pai o constituiu para exercer pleno
domínio sobre os seus “irmãos mais novos”. No grego, Paulo usou
a palavra “auton” (ele mesmo) dentro da cláusula: “para em todas
as coisas (ele mesmo) ter a prim azia”. Isto objetiva enfatizar que
somente Jesus Cristo tem o direito de dirigir, e não o pastor ou a
congregação; não o bispo nem mesmo o Papa, mas Cristo, sozinho.
Todos estes devem se subordinar à cabeça, para servirem uni­
camente a ele. É evidente que nem o m undo, nem os demônios ou
os anjos rebeldes reconhecem ainda a prim azia de Cristo, mas a
sua igreja deve testem unhar incessantemente essa realidade.
4) Nele reside toda a plenitude. Outra razão pela qual Cristo deve
ter a primazia sobre tildo na igreja surge na frase: “porque aprouve a
Dem que nele residisse toda a plenitude” (v. 19). O termo plenitude (plõrõma)
denominava, para os gnósticos, todas as emanações que ocupavam o
espaço entre o deus espiritual e o mundo material. Provavelmente, é
neste sentido que Paulo deseja que seus leitores concebam a Cristo,
como aquele que preenchería totalmente qualquer necessidade que
eles tivessem de alcançar o Deus verdadeiro. Podería indicar também
todos os atributos divinos de Cristo (2.9). Assim, podemos confiar
que Cristo supre tudo que a igreja necessita para cumprir sua missão
ou para enfrentar os poderes do mal.

Cristo, o reconciliador de tudo


Tendo apresentado a pessoa de Jesus Cristo, Paulo volta a discutir
o seu direito de prim azia em decorrência da sua obra (v. 20-22):
“Havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele
reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra,
quer nos céus”.

- 238 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

A obra efetuada por Cristo proporciona a visão dos benefícios


que acompanharão os salvos no dia do encontro.

A paz entre pecadores e Deus


Convém lembrar a rica herança que tem a palavra “paz” nas suas
raízes hebraicas: o shalom de Deus. Não somente refere-se ao cance­
lamento de inimizade, como também à prosperidade que Deus concede
aos seu amigos (Abraão, Davi e tc .). Esta relação de amizade foi
ganha na morte de Cristo na cruz. Seu sangue homologou a nova
aliança de paz, um tratado gracioso originado inteiramente nos pro­
pósitos e planos de Deus. E Paulo novamente nos adverte que o preço
que pagou essa paz foi o sangue sacrifícial vertido na cruz.

A reconciliação
Reconciliação reflete duas palavras hebraicas que expressam a
remoção da inim izade, criando, por um lado, um a atm osfera
agradável e, por outro, acalmando atitudes hostis. Objetivamente,
no sacrifício expiatório e substitutivo de Cristo Deus removeu a
inim izade criada pelo pecado hum ano, apaziguando essa rebelião.
Ao notar a condição em que estavam os colossenses quando
foram alcançados pelo evangelho, Paulo aponta para a situação
dos gentios, tão necessitados de reconciliação. Eram estranhos,
isto é, pertenciam literalmente a outro rei ou dono, que os hostilizara
com Deus. Eram alienados, cidadãos de outra potência que os
mobilizara numa rebelião contra a autoridade de Deus. A expressão
no entendimento (v. 21) indica que essa alienação e hostilidade contra
Deus eram o resultado de um a persuasão de Satanás, que levara
suas m entes e imaginação a concluírem que as obras malignas
estavam certas. Ideologias como o marxismo, ou mesmo a conversa
informal de um a turm a de jovens num a grande cidade, são exem­
plos de como a mente hum ana concorda com a maldade e racio­
naliza qualquer ação repreensível praticada no corpo.
Ao outrora do passado (v. 21) segue-se o hoje presente (v.
22), caracterizado pela reconciliação dentro do corpo de Jesus, por ele
oferecido voluntariam ente na cruz. O corpo da sua carne ferida
pelos cravos mortíferos possibilitou uma nova harmonia com Deus.
E são as testemunhas vivas dessa harm onia que compõem o novo
povo de Deus, a igreja.

- 239 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

A segunda parte do versículo 22 resume o tríplice propósito


de Deus ao oferecer o “Filho do seu amor”. Ele quer apresentar a si
mesmo, num dia futuro, os membros do corpo de Cristo, que deve­
rão ter as seguintes características:
Santos. Esses pecadores, que antes serviam prazerosamente
a Satanás, são agora santos, inteiram ente consagrados e separados
para Deus. Ele os santificou pela reconciliação e amizade plenas,
tal qual o filho pródigo foi santificado pela restaurada harmonia
com seu pai (Lc 15.11-32).
Inculpáveis. No grego, usava-se a palavra “amomos” para des­
crever animais limpos, imaculados e, conseqüentemente, aceitáveis
para o sacrifício a Deus. Esta mesma palavra é usada por Pedro
para comunicar a qualidade do “cordeiro (Cristo) sem defeito”, abso­
lutamente aceitável como sacrifício para a nossa remissão (lPe 1.19).
Irrepreensíveis. Isto é, sem possibilidade de ser alvo de uma
acusação efetiva. Não haverá cheiro de escândalo nem crítica válida
que o inimigo das almas possa lançar contra os convidados para
as bodas do Cordeiro. Os salvos estarão absolutam ente imunes
ao castigo que os seus pecados merecem. Toda repreensão cairá
sobre o Filho perfeito (Is 53.6).

As condições providenciadas por Deus


No versículo 23 vemos essas im portantes condições, que definem
os que realmente podem ser enquadrados no rol dos reconciliados:
Firmes na fé. “Se é que permaneceis na fé” parece ser uma
condição para gozarmos todos benefícios oferecidos, em princípio,
na morte reconciliadora do Senhor Jesus. E preciso preservar na fé
até o fim (cf. M t 24.13). Esta perseverança na comunhão de Cristo
é a única base válida para a segurança da salvação (Jo 15.2-6). O
cristão que se afasta daquele que é o único capaz de salvar não
deve pensar que a fé efêmera do passado lhe garantirá autom ati­
camente o futuro.
Alicerçados na rocha. Alicerçados mostra que, sem que a nossa
confiança esteja fundam entada na rocha, não há base para presu­
mirmos que de fato temos a segurança na salvação. O homem que
construiu a sua casa sobre a areia necessitava deste fundam ento
imprescindível (Mt 7.24-27; Lc 6.48, 49). Cristo é o único fun­
damento (IC o 3.11) e a rocha eterna. Quem nele confia não será
envergonhado.

- 240-
EP ÍS TO LA DE PAULO AOS COLOSSENSES

Firmes. Juntam ente com a palavra “inabaláveis” (ICo 15.58),


firmes mostra a constância e a imutável firmeza que são condições
para se esperar essa apresentação gloriosa, já vista no v. 22.
Não vos deixando afastar da esperança do evangelho. Aqui o
apóstolo emprega a figura dos estragos decorrentes de um terremoto,
capaz de remover um edifício do seu fundamento, destruindo-o.
D urante o reinado do imperador Tibério (14-37 A.D.), doze cidades
da Ásia M enor foram arrasadas. No ano 60, segundo Tácito
(segundo Eusébio, em 64 ou 65), um fortíssimo terremoto abalou
a Laodicéia, atingindo também Colossos, cidade vizinha. Se é que
isto acabava de acontecer, entende-se que efeito causaria nos
cristãos colossenses a advertência de Paulo quanto a não se deixa­
rem levar por ensinamentos falsos que viessem a destruir a sua
esperança no evangelho.
Esperançosos no evangelho. Segue-se a condição de esperarem
no evangelho que já ouviram (v. 23b). O evangelho não significa
boas novas apenas para alguns, mas para toda a hum anidade,
que tem plenos direitos a ouvi-lo. Toda barreira de raça, cor, geogra­
fia, idade, língua ou tribo foi tirada, em princípio, quando Jesus
afirmou que o evangelho seria pregado por todo o mundo, antes
do fim (Mt 24.14). Por isso ele deu aos seus discípulos a missão
de levar o evangelho a todas as nações (Mt 28.20) e prometeu o
poder incontido do E spírito para dar sucesso a esse em preen­
dimento m undial de testem unhar dele (At 1.8). Ao declarar que
“foi pregado a toda criatura debaixo do céu”, Paulo queria dizer
que o evangelho já se espalhara aos grandes centros do império,
tornando-se acessível a todos.
Desse evangelho é que Paulo foi apontado ministro (do grego
diakonos, term o ainda m uito geral, na sua acepção neotesta-
m entária). Sobre esse m inistério, ele discorrerá nos versículos
seguintes.

0 senhorio de Cristo no ministério de Paulo (1.2 4 -2 .5 )


24Agora me regozijo nos meus sofrimentos por vós;
e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha
carne, a favor do seu corpo, que é a igreja; 25da qual me
tornei ministro de acordo com a dispensação da parte
de Deus, que me foi confiada a vosso favor, para dar
pleno cumprimento à palavra de Deus: 26o mistério que

“ <*.*•!• S
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

estivera oculto dos séculos e das gerações; agora, todavia,


se m anifestou aos seus santos; 27aos quais D eus quis
dar a conhecer qual seja a riqueza da glória deste mistério
entre os gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da
glória; 28o qual nós anunciam os, advertindo a todo
homem e ensinando a todo homem em toda a sabedo­
ria, afim de que apresentemos todo homem perfeito em
Cristo; 29para isso é que eu também me afadigo, esfor­
çando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que
opera eficientemente em mim.
2 ]G ostaria, pois, que saibais quão grande luta
venho m antendo por vós, pelos laodicenses e por quantos
não me viram face a. face; 2para que os seus corações
sejam confortados, vinculados juntam ente em amor, e
tenham toda riqueza da forte convicção do entendimento,
para compreenderem plenam ente o mistério de Deus,
Cristo, 3em quem todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento estão ocultos. 4Assim digo para que nin­
guém vos engane com raciocínios falazes. 5Pois, embora
ausente quanto ao corpo, contudo em espirito estou
convosco, alegrando-me, e verificando a vossa boa ordem
e a firmeza da vossa fé em Cristo.

Passando das considerações quanto à posição do Senhor


Jesus Cristo sobre o universo e a igreja, o apóstolo discorre, agora,
sobre a sua própria parte na evangelização m undial, p articu ­
larmente dos gentios.

Um ministério de alegre sofrimento


“Agora me regozijo”, diz Paulo. Antes, ele aproveitava sua liberdade
viajando e propagando o evangelho de cidade em cidade. Agora,
porém, preso e impossibilitado de se deslocar, ele se alegra num
“serviço inativo” mas sofredor. E certas afirm ações suas nos
desafiam a pensar: como atuaríamos, se estivéssemos na situação
de Paulo?
Primeiro, Paulo estava sofrendo no lugar dos colossenses. Não
era um sofrimento expiatório, mas algo que penetrava no território
do inimigo com o conhecimento da verdade. Enquanto os colos-

- 242 -
EPÍSTOLA DE P A U L O A O S C O L O S S E N S E S

senses viviam na tranqüilidade estável, Paulo confrontava a per­


seguição que todo cristão merece. Sofrimento é, portanto, a forma
que o amor tem de assum ir quando entra na luta contra o mal
para conquistá-lo.
Em seguida, diz o apóstolo que esses sofrimentos preenchem o
que resta das aflições de Cristo. Não podem, é claro, ser os sofrimentos
de Cristo na cruz para expiar os pecados do m undo (Jo 1.29); são
aflições especiais, relacionadas com o testemunho cristão. Existe
um sofrimento que vem como conseqüência do pecado; mas há
outro tipo que vence o mal no próximo: são as chamadas “aflições
de Cristo”, sendo que, ao sofrer o corpo, a cabeça também sente.
(Em Atos 9.4, vemos que a perseguição de Saulo à igreja atingia
também a Cristo.) O sacrifício de Jesus na cruz foi oferecido na
sua carne. Da mesma forma, “o que resta das aflições de Cristo”
atinge a carne de Paulo e a dos cristãos perseguidos através dos
séculos; trata-se daqueles que de bom grado se ofereceram sobre o
altar (Fp 2.17; Ap 6.11).
Podemos imaginar três tipos de sofrimento suportados por
Paulo. Primeiro, eram as aflições provocadas por inimigos de Cristo:
perseguição na prisão, cadeias, restrições, má alimentação, des­
conforto de toda espécie. Segundo, ele menciona o sofrimento do
cansaço: ‘Tara isso é que eu me afadigo, esforçando-me o mais
possível...” (v. 29). O apóstolo experimentou, tanto no corpo quanto
na mente, a fadiga de longas viagens a pé e de noites inteiras a
pregar e ensinar. Mais do que tudo, este servo de Deus sabia o que
era sofrer na luta de oração; “esforçando-me” (do grego agonizontes)
e a “grande luta que venho m antendo” (2.1) são expressões que
bem descrevem esta m aneira de sofrer. Todas estas formas de so­
frimento tinham um valor eterno como “investimentos no banco
celestial”, por produzirem transformações nas vidas dos cristãos
pastoreados pelo apóstolo.
Se ainda houver na igreja líderes dispostos a sofrer na carne,
no cansaço mental e, acima de tudo, na luta espiritual em oração,
pode-se esperar um grande avanço na conquista do território
inimigo. Muito ao contrário dos mestres gnósticos, para quem era
ideal o escapar do sofrimento, o apóstolo de Cristo declara suá
alegria por sofrer em benefício dos crentes de Colossos, apressando
a segunda vinda de Cristo, dia em que findará o sofrimento de
todos os santos (veja 2Pe 3.12, 13).

- 243 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

Um ministério de serviço (diakonia)


Paulo, a exemplo do seu Senhor, considerava-se um servo (cf. Mc
10.45). Foi Deus quem o comissionou, de acordo com o seu plano,
com a responsabilidade de mordomia da casa divina.
O termo dispensação (grego, oikonomia) indica um a pessoa
encarregada de adm inistrar os bens do seu senhor (cf. Lc 16.1-8).
O serviço incluía a responsabilidade de cuidar da melhor forma
possível dos valores e posses do dono, a fim de poder prestar contas
alegremente. Mas também era responsável por suprir as necessi­
dades dos outros empregados ou escravos (note Lc 12.42-48). As
exigências impostas ao servo despenseiro, segundo ICoríntios 4.2
e Lucas 12.42, são fidelidade e prudência. O mordomo infiel utiliza
o que não lhe pertence para alcançar os interesses próprios. O
servo im prudente faz m au uso dos valores de modo que os negócios
do seu senhor não granjeiam lucros, mas perdas. Paulo sentia
profundam ente a responsabilidade da dispensação que Deus lhe
dera em favor dos colossenses (v. 25). “D ar pleno cum prim ento”
quer dizer desempenhar toda a missão que lhe foi confiada (Ef 3.8),
incluindo a pregação do evangelho, acompanhando, em seguida,
os novos decididos na fé até a m aturidade espiritual (v. 28).
O caráter especial da dispensação concedida a Paulo foi o
de anunciar o m istério que outrora fora oculto durante séculos e
gerações do Antigo Testam ento e no período interbíblico. Nas
religiões de m istério, o segredo ou “m istério” era o rito de inicia­
ção pelo qual o novato ingressava num a união com o deus pa­
tro c in a d o r da relig ião . M as aqui deve ficar bem claro que
“m istério” refere-se a um segredo revelado por D eus aos seus
santos (v. 26).
Não foi, porém , um a revelação sem im portância, como
um anúncio de jornal datado de um ano atrás, mas um a ver­
dade de tão grande significado que D eus quis que a riqueza da
glória deste m istério fosse conhecida e divulgada entre todos
os gentios.
A substância desse m istério tão valioso e irrad iad o da
glória do céu é C risto, o M essias judaico, e igualm ente o Senhor
dos c re n te s g e n tio s. N eles tam b é m C risto h a b ita , g a ra n ­
tindo-lhes, assim , a esperança de com partilharem da glória de
D eus (v. 27).
E PÍ ST OLA DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

Um ministério pastoral
O método usado por Paulo para desenvolver a sua tarefa de “adm i­
nistrador do m istério” girava em torno de três atividades pastorais.
1) Em princípio, era-lhe necessário, bem como à sua equipe,
anunciar o senhorio de Cristo, o Salvador. Em 2Coríntios 4.5, ele
aborda o perigo sutil e constante de se anunciar a si mesmo ao
invés de Jesus Cristo como Senhor, ou seja, reivindicar para si
próprio algum direito ou privilégio especial. O anúncio enfatiza
especialmente a disponibilidade de Cristo para salvar qualquer
pessoa que queira ser redimida.
2) Não se cumpre a responsabilidade de despenseiro apenas
divulgando a verdade do evangelho. M uitas pessoas são apáticas,
necessitando, portanto, de advertência; e este é um termo negativo
que aponta para o grande perigo que corre aquele que não atende
ao convite do evangelho. Quase sempre que a palavra advertência
(nouthetêo, nouthesia) é usada no Novo Testamento, ela se refere a
crentes. Isto indica que precisam ser readvertidos para os riscos
na vida cristã. (Veja At 20.31, ICo 4.14, lTs 5.12 e também aqui,
onde se destaca o trabalho pastoral de admoestar e advertir; em
Rm 15.14, Cl 3.16, lTs 5.14 e 2Ts 3.15, é um serviço que deve ser
prestado pelos membros da igreja.)
3) Anunciar as Boas Novas e advertir os ouvintes, e isto sob
a bênção de Deus, produz conversões. Paulo nunca achou que o
fato de ganhar almas o desobrigava de integrá-las no corpo vivo
de Cristo. Daí a sua declaração quanto a se responsabilizar pelo
ensino de todos com “toda a sabedoria” de Deus; trata-se da cuida­
dosa catequese dos cristãos gentios, discipulando-os na doutrina
e na prática cristã (cf. At 20.20, 27, 32). Jesus, logo antes da sua
ascensão, ordenou aos onze que fizessem discípulos de todas as
nações, batizando-os e ensinando-lhes tudo que ele mesmo lhes
havia ensinado a guardar, tudo que lhes ordenara (Mt 28.19, 20).
O objetivo final do bom despenseiro de Deus não deixa de ser a
apresentação de “todo homem perfeito em C risto”. Perfeito (em
grego, teleios) significa maduro, adulto, e não quem jamais pecou
(veja F p 3.12-15). Um cristão adulto, em contraste com o im aturo
(ICo 3.1,2; Hb 5.12-14), pode servir ao Senhor, conduzindo outros
à m aturidade. A criança na fé fica na dependência da ajuda e
sustento do cristão mais maduro, sendo incapacitada de continuar
sem esse apoio. Neste curto v. 28, Paulo fala em “todo homem”
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

três vezes, querendo m ostrar com isso o quanto lhe desgostara a


atitude dos gnósticos de Colossos, não reconhecendo a univer­
salidade do evangelho. Eles queriam “aperfeiçoar” somente alguns,
uma elite; mas o evangelho, por natureza, tem que ser para todos.
Todos merecem ouvir.

Um ministério de trabalho
O apóstolo não apenas sofre (v. 24) e desempenha sua mordomia
(v. 25-28); ele trabalha. “Também me afadigo, esforçando-m e
(agonizo) o mais possível, segundo a sua eficácia (energeia) que
opera e fic ie n te m e n te (energoum enên... en dunam ei)”. Se
compararmos este versículo com Filipenses 2.12,13, verificaremos
que o esforço hum ano pode abrir caminho para a manifestação do
poder divino. A Paulo não importava desgastar o seu corpo e ficar
bem cansado (“me afadigo” traduz bem o grega “kopioõ” com o
sentido de trabalhar tanto até se cansar m uito). O seu esforço,
porém, não se realizava na “carne”, mas no Espírito. Provavelmente
ele estava falando da oração, já que na prisão não lhe era possível
gastar m uita energia física em favor dos colossenses.
Só Paulo, no Novo Testamento, emprega nove vezes o vocá­
bulo aqui traduzido por “eficácia” (veja E f 1.19; 3.7; 4.16; Fp 3.21).
A nossa palavra “energia” vem do grego, mas o original enfatiza a
eficiência da energia usada. M uitas vezes sentimos cansaço no
trabalho de Deus sem ver um resultado correspondente. Por quê?
Não se explicaria este fenômeno pelo esforço carnal em vez da
oração do justo, que “muito pode, por sua eficácia” (Tg 5.16)? O
elemento chave é a fé, sem a qual não é possível agradar .a Deus, e
muito menos efetivar o seu serviço espiritual.
Paulo prossegue, em 2.1, expondo a im portância da oração
na sua estratégia de b atalh a. N ão queria que os cristãos de
Colossos e Laodicéia pensassem que ele, por não conhecê-los
pessoalmente, deixava de lutar por eles de um a forma absorvente,
concentrando todo o seu ser nessa “agonia” (gr. agõna. Compare
com Fp 1.30 e lT m 6.12). À semelhança do conflito de Jesus no
G etsêm ani, o apóstolo se em penhou na batalha pela salvação
das almas que Cristo com prara com o seu precioso sangue. Essa
luta de joelhos, na prisão de Roma, vencia as forças satânicas
que avançavam contra os m al p rotegidos cristão s da Ásia.
Combate idêntico ele já travara outrora em favor dos gálatas e

- 246 -
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S C O L O S S E N S E S

coríntios, que tam bém enfrentaram o perigo de serem enganados


por um falso evangelho.
O que Paulo pedia em favor dos colossenses?
1) Encorajamento para os seus corações (v. 2). “Confortados”
traduz a palavra grega parakaleõ, que tem o sentido de exortar,
encorajar, animar. Corações desanimados geram um pessimismo
na igreja. A depressão espiritual não deixa de ser o campo mais
propício para o inimigo semear o “joio” doutrinário, para não dizer
o da falta de amor e a desunião. O pedido de que Deus os encoraje
condiz com a prom essa do Pai (Jo 14.16ss, 26;15.26;16.7,13):o
Espírito Santo, o Consolador (paraklêtos). Este, sim, atuando em
resposta às orações, conforta os corações dos santos.
2) Vinculados pelo amor (v. 2). Além de encorajamento para
os seus corações, Paulo pedia que os crentes fossem estreitamente
ligados pelos vínculos do amor. Esta mesma palavra, vinculados, é
empregada em 2.9 para descrever a maneira como funcionam juntas
e ligamentos do nosso corpo, ilustrando assim as relações dinâ­
micas e edificantes em toda a igreja. Quando o povo de Deus se
une em amor, pode resultar em encorajamento e firmeza contra o
erro e, sobretudo, orientação para a plena riqueza da convicção
trazida pelo entendimento (v. 2). O erro doutrinário tem livre acesso
à m ente que não tem certeza (gr. pleroforia) daquilo em que crê,
justam ente por não o entender. Tudo resulta num a compreensão
de quem é realmente o Senhor Jesus Cristo. Ele é o conteúdo do
segredo de Deus. E a hum anidade tateia em busca de solução
definitiva da conquista do pecado e do sofrimento, até encontrá-la
em Cristo (cf. At 17.27), pois é nele e na sua obra redentora que se
encontra a salvação.
Em Cristo encontra-se a mina inesgotável de todos os valores
da verdadeira sabedoria (sofia) e conhecimento (epignõsin). Mas
esta sabedoria não está na superfície, nem este conhecimento é
como as águas do m ar para o marinheiro: ambos estão ocultos em
Cristo. E preciso buscar, cavar nessa mina, cujos brilhantes só se
desenterram com oração, leitura da Palavra, meditação e espera
no Espírito Santo. Em 1Coríntios 1 a 4, Paulo desenvolve o tema
da sabedoria, ressaltando esta verdade: a espiritualidade real só
se encontra em Cristo, e este crucificado.
Esses tesouros, sabedoria e conhecimento, como já vimos nos
versículos 9 e 10 (cap. 1), levam-nos a uma verdadeira penetração
no mistério de Deus, isto é, uma integração dentro do propósito

- 247 -
E P ÍS T O LA S DA P B IS Á O

divino, revelado na vinda de Jesus Cristo ao m undo. Devemos


saber que o objetivo de Deus Pai ao dar o seu Filho ao m undo foi
produzir muitos filhos semelhantes ao seu Unigênito (Rm 8.29).
Quem buscar em Cristo, na singularidade da sua pessoa e vida, e
também no seu ensino, a sabedoria de Deus, encontrá-la-á. Este
seria o galardão prometido a quem se restringir a procurar de fato
o ponto de vista divino em sua única fonte, o tão grande Salvador!
O objetivo desta ênfase de Paulo era advertir os seus leitores
quanto ao perigo do engano (no original: para, “ao lado de”; logizõ,
“ raciocinar”) através de palavras cativantes ou “argum entos
atraentes” (v. 4). Palavras habilm ente utilizadas podem persuadir,
assim como um filme de cinem a pode iludir. Se não tivermos
critérios bíblicos, como discerniremos a verdade no meio de tantas
palavras persuasivas? (Veja At 20.30.)

Em bora fisicam ente separado dos colossenses, Paulo declarou


sua presença espiritual com eles (v. 5):ou pelo seu próprio espírito
(imaginando), ou pelo Espírito Santo (revelando), ele presenciava
o que acontecia na Ásia d istan te. Isto lhe dava ânim o, pois
observava, com m uita alegria, duas características da igreja (ele
as descreve usando uma term inologia m ilitar). Prim eiro, sua boa
ordem (gr. taxin, “fileiras ordeiras de um exército”) e, segundo,
sua firmeza (stereõma, “linha de frente firm e”, “falange pronta
para receber o impacto do inimigo, sem recuar”) na fé, posta no
Senhor.
Assim, neste trecho o apóstolo Paulo nos dá o privilégio
de divisar um panoram a geral do seu m inistério. M ostra a nós,
seus leitores, as vantagens do sofrimento, os valores do esforço e
a centralidade da oração. Tudo isso para proteger um a igreja
pequena contra os ataques de um inimigo sobrem aneira esperto
e poderoso. Mais uma vez conserva-se no centro a imagem de
Jesus Cristo. Foi ele quem inspirou seu servo a se gastar no amor
que o incentivou a desem penhar tão desinteressadam ente o seu
serviço.
E nós? Seguimos nos seus passos m arcantes ou consi­
deramos o preço alto demais? Só a clara visão de Cristo nos moverá
a tal nível de sacrifício pelos outros!
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S C O L O S S E N S E S

Em Cristo, o Senhor (2.6-15)


6Ora, como recebestes a C risto Jesus, o Senhor,
assim andai nele, 7nele radicados e edifcados, e confir­
mados na fé, tal como fostes instruídos, crescendo em
ações de graça. 8C uidado que ninguém vos venha a
enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a
tra d içã o dos hom ens, conform e os ru d im e n to s do
m undo, e não segundo Cristo; 9porquanto nele habita
corporalmente toda a plenitude da Divindade. '“Também
nele estais a aperfeiçoados. Ele é o cabeça de todo prin­
cipado e potestade. Nele também fostes circuncidados,
não por intermédio de mãos, mas no despojamento do
corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo; 12tendo
sido sepultados juntam ente com ele no batismo, no qual
igualmente fostes ressuscitados m ediante a fé no poder
de Deus que o ressuscitou dentre os mortos. 13E a vós
outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões,
e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida junta­
m ente com ele, perdoando todos os nossos delitos;
14tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós
e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial,
rem oveu-o inteiram ente, encravando-o na cruz; 15e,
despojando os principados e as potestades, publicamen­
te os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz.

Até o final de 2.5, não encontramos qualquer exortação, imperativo


ou m andam ento explícito. Mas no v. 6 o apóstolo Paulo muda a
m aneira de falar. Aqui aparece uma ordem, simples e clara. “Andai
nele”, ordena o apóstolo, “tal como recebestes Jesus Cristo, o
Senhor”! Ou, em outras palavras: “Portanto, visto que Jesus foi
entregue a vós como Cristo e Senhor, continuai vivendo conforme
esse fato de ele ser o vosso Senhor”. (O verbo entregue, em grego
“paralembanõ”; sugere esta tradução.) “Recebestes” ou “foi entre­
gue” era o termo comumente usado para indicar o recebimento de
uma tradição. Logo no v. 8 Paulo adverte contra o perigo de abraçar
“a tradição dos homens”. Ou vivemos segundo a lei da liberdade
que o Senhor grava no coração, ou em breve estaremos moldando

- 249 -
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

a nossa co n d u ta pelas especulações h u m an ista s da c u ltu ra


semi-religiosa contemporânea.
A vereda, então, é Cristo Jesus, continuamente convidado a
se assenhorear de todos os nossos atos, planos, pensamentos e am­
bições (cf. Rm 12.2). Esta figura do caminho nos lembra a afirmação
de Jesus: “Eu sou o caminho” Qo 14.6). No livro de Atos, os discí­
pulos são o “povo do caminho” (22.4), símbolo desta verdade: todo
verdadeiro cristão é um peregrino (Mt 8.20) e estrangeiro (Hb 11.13)
que caminha na direção de sua pátria celeste.

Mele radicadas, edificados e confirmados


Três palavras ligadas às figuras da árvore e do edifício apresentam
outras verdades m uito significativas (v. 7):
Nele radicados está no pretérito perfeito, indicando uma
experiência no passado que não m udará. A árvore, um a vez
enraizada, só fica mais firme à medida que o tempo passa e ela
cresce. Paulo deixa bem claro que, à semelhança da árvore, os
cristãos foram plantados em Cristo, de uma vez para sempre. Sendo
um verbo passivo, dá para entender que foi Deus quem plantou a
igreja, e não uma decisão m eramente humana.
Nele edificados sugere um prédio em construção. O comen­
tarista Lightfoot traduz assim: “Sendo edificados nele hora após
hora”. As pedras vivas, lavradas por Deus, estão sendo colocadas
no Templo vivo da ressurreição (Jo 2.20ss). Não foi, porém, um
simples ato, mas é um processo contínuo. Maravilhoso é pensar
que as influências e experiências que Deus manda para nós, individual
e coletivamente, têm o único propósito de nos edificar. E este edifício
o Senhor está construindo para sua habitação (Ef 2.22).
Nele confirmados novam ente é verbo passivo no tem po
presente. Fala de um processo pelo qual se garante um a verdade,
tornando-a im utável (veja H b 2.2; 3.14). O andar em Cristo, a
firmeza das raízes crescendo no evangelho, o processo de edificação,
tudo deve confirmar a convicção do crente na fé. Por isso não é de
se adm irar que Paulo, muitos anos depois de experim entar um
encontro transform ador na estrada de Damasco, pudesse escrever
aos filipenses: “Estou plenam ente certo de que aquele que começou
boa obra em vós há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus”.
As três descrições da vida cristã nos termos “radicados”,
“edificados” e “confirmados” ocorrem onde há instrução verdadeira

- 2 50 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

e cuidadosa na doutrina dos apóstolos (At 2.42). Junto com a


instrução deve haver crescente louvor e ações de graças, que indicam
a importância da adoração verdadeira para a santificação da vida
em Cristo.

0 perigo do ensino falso


Mesmo havendo tão excelentes motivos para que os colossenses
crescessem na fé, Paulo sabia que também havia perigos que amea­
çavam o fundam ento do edifício, bem como idéias falazes que
bem poderíam cortar as raízes da árvore da fé cristã. Daí a nova
ordem do apóstolo: “Cuidado que ninguém vos venha enredar com
sua filosofia e vãs sutilezas” (v. 8). Enredar (no grego, sulagogõ:
“seqüestrar”, “raptar”) adverte os leitores para o perigo de serem
persuadidos a m udarem as convicções de m ente por m eio da
filosofia. Mas não se tratava de filosofia que buscasse a verdade
pela análise cuidadosa, sempre consciente de suas lim itações;
muito pelo contrário, a heresia constava de idéias insensatas, de
um intelectualism o capaz de p en etrar onde nenhum a m ente
hum ana podería ir sem a iluminação de Deus.
D aí Paulo revelou a fonte de tais especulações: não passavam
de “tradições hum anas”, isto é, falatórios consagrados pela trans­
missão. Às vezes o passar de palavras da boca para o ouvido, ou
da cabeça para o papel e tinta, impressiona ouvintes ou leitores
como sendo válido. Confiamos na capacidade da mente hum ana
de discernir a verdade e descartar o erro. Mas nada fica mais longe
da realidade! Jesus condenou redondamente a facilidade com que
os homens transformam a revelação em especulação e os m anda­
mentos de Deus em tradição humana.
Ao conteúdo dessa tradição o apóstolo chama de “ru d i­
mentos” (gr. stoicheia). Esta palavra significava, no primeiro século,
os elementos básicos de toda existência, ou o “ABC” de qualquer
assunto, no sentido de passos prelim inares e básicos (veja H b
6.1). Mas também significava poderes espirituais ou corpos celestes
que supostam ente governavam (no pensam ento astrológico) as
circunstâncias da vida hum ana. De fato, não im porta m uito o
que seriam aqueles “elementos”, uma vez que reconhecemos a sua
oposição total à realidade de Cristo (v. 8). Ele tanto é o único
fundam ento como o destino de toda realidade. “Alfa e Omega” é a
feliz designação dada por João no Apocalipse (1.8).

- 251
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

Cristo, a única fonte


Não se pode esperar qualquer auxilio de nenhum a destas fontes,
diz o apóstolo. A razão é m uito simples. Em Cristo reside per­
m anentem ente toda a plenitude da Divindade em corpo. Como,
então, procuraria o cristão manifestações de poder, proteção ou
qualidades sobrenaturais de outra fonte que não fosse Cristo? Uma
interpretação sugere que a plenitude seria uma referência às ema­
nações interm ediárias que, na opinião dos gnósticos, preenchiam
o espaço entre o deus espiritual e m undo m aterial. Paulo, então,
declara que C risto não seria qualquer um destes, mas a soma
total dos seus supostos poderes, englobados sob a sua soberania.
O utra interpretação vê nesta passagem a verdade inegável de
que todos os a trib u to s divinos h abitam (objetivam ente) em
Cristo.
O term o “divindade” foi usado em Rom anos 1.20 para
indicar a mão de Deus revelada na criação do universo. Aqui,
estaríamos vendo a Cristo como a revelação da face de Deus.
A palavra “corporalm ente” pode significar “encarnado”;
portanto, acontecido concreta e historicamente na pessoa de Jesus
de Nazaré. Também esta palavra (sõmatikõs) pode ter a idéia de
“totalm ente”, ou “unidam ente”, e não poderes ou espíritos distri­
buídos e espalhados, como pensaram os gnósticos. Paulo relembra
os colossenses de que já passaram pela experiência da “circuncisão
espiritual” (v. 11). Assim é que eles foram galardoados com a per­
feição de Cristo (v. 10). À indagação de como se apropriaram desta
plenitude de Deus, Paulo responde: pelo novo nascim ento, cujo
sinal foi o batismo, um ato que tinha profundas raízes no Antigo
Testamento e na paixão e ressurreição de Cristo.
Não por intermédio de mãos humanas nos mostra que o valor
da cerimônia inicial da vida cristã não depende de ação hum ana
Qo 1.13). Também não coincide, de forma algum a, com o rito
judaico da circuncisão física, que marcava a vinculação da criança
com a aliança feita por D eus com Abraão, quase vinte séculos
antes. Mas é o “despojamento do corpo da carne”, isto é, a negação
definitiva, no ato do batismo, da vida m arcada pelo egoísmo e
pela sensualidade. Em Rom anos 6.6, uma passagem paralela,
Paulo aponta para o batismo como o homem velho (as práticas e
atitudes anteriores à conversão) sendo crucificado com Cristo, “para
que o corpo do pecado seja destruído”.

- 252 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

A circuncisão de Cristo se refere especificam ente à m orte de


Jesus na cruz, morte esta com partilhada por todo cristão enxertado
em Cristo pelo novo nascim ento, e testem unhada pelo seu ba­
tism o. Os cristãos não só com partilharam da crucificação de
C risto, mas tam bém do sepultam ento com ele no seu túm ulo.
Trata-se de um enterro espiritual acentuado pelo batismo, sim bo­
lizando o fim da vida velha no m undo e a ressurreição espiritual
como m em bro do corpo de Cristo. E stas realidades som ente
podem ser apropriadas pela “fé no poder de D eus” (v. 12), que
literalm ente levantou Jesus C risto dentre os m ortos. C rer na
ressurreição é essencial para que se receba o dom da salvação
(Rm 10.9;1 Co 15.14, 17).
Este modo de falar tem muito em comum com o pensamento
dos judeus em relação ao Êxodo. Na Páscoa, a família judia revivia
a realidade dos eventos que deram à luz a nação israelita. Através
da celebração, na qual o judeu comia o cordeiro e os pães asmos,
ouvia e respondia às perguntas de seus filhos, entendia-se que os
participantes realisticamente compartilhavam do acontecimento
original. N esse contexto de pensam entos, o apóstolo fala da
repetição, através do batismo, do evento salvador original, quando
Cristo morreu e reviveu por nós.
Além de focalizar a morte de Cristo com partilhada por todos
os seus “irmãos menores”, Paulo chama atenção, no v. 13, para o
estado m ortal que precede a nova vida ressurreta dos regenerados.
O estado de morte é prim eiram ente descrito como um produto
das transgressões. O pecado, rebelião contra Deus, merece ser con­
denado pelo Deus da criação. No jardim do Éden nossos primeiros
pais sofreram a implacável ira de Deus contra a sua desobediência.
No mesmo dia, Adão e Eva m orreram, no sentido de comunhão
vital com Deus. A transgressão da lei de Deus é sempre punida
pela separação dele, que é a única fonte de vida. Assim devemos
considerar o sentido de morte pelas transgressões.
Em segundo lugar encontramos a frase “pela incircuncisão
da vossa carne”. Quer dizer, alienados e separados da aliança que
Deus fez com Israel (Ef 2.12). Foi Deus quem tomou a iniciativa
de fazer essa aliança de graça e favor junto ao seu povo. Os colos-
senses, porém, não eram judeus, mas gentios; portanto, não podiam
reivindicar qualquer vantagem dessa natureza.
D iante de tão impossível situação de marginalização espi­
ritual, Cristo veio e “deu vida juntam ente com ele” (v. 13), vida
E P Í S T O L A S DA PR I SÃ O

que Paulo exporá mais claramente no capítulo 3, nos versículos 1


a 4. Assim, a vida ressurreta de Cristo substitui a morte que antes
nos caracterizava.
Todos os pecados foram perdoados por esta ação divina pro­
videnciada no Filho. Diz Sócrates, o famoso filósofo grego: “Pode
ser que a deidade possa perdoar pecados, mas não vejo como!” O
renomado Dr. Bob Pierce, acometido pela terrível leucemia, passou
dezessete dias no hospital aguardando a morte, que Deus miracu-
losamente afastou por um longo tempo. Comentando sobre aquele
período, poucos meses atrás, em nossa igreja, ele disse: “A única
coisa realm ente im portante é que todos os meus pecados estão
debaixo do sangue!” Cada dia a realidade do perdão deve tornar-se
mais gloriosa e suscitar contínuo louvor.
Paulo explica, no v. 14, o meio pelo qual Deus nos outorgou
este perdão: foi cancelado (exaleipsas, quer dizer, “a p a g ar”,
“remover”, “queimar ou inutilizar uma acusação ou dívida escrita”)
o escrito de dívida que seria a base de punição. A figura de um
tribunal está na mente de Paulo. O réu está no banco. A escrita,
repleta de acusações, está sendo preparada e lida. Mas o juiz, que
é Deus, inocenta o culpado, tendo satisfeito na m orte de Jesus,
seu Filho amado, todas as exigências da lei (cf. M t 18.23-35).
O apóstolo denomina essas exigências de “escrita de dívida”
(cheirographon, uma promessa de pagar uma quantia x, assinada
pessoalmente), que consistia nas ordenanças de Deus encontradas
na Bíblia. As leis e obrigações do Antigo Testamento, que os homens
sozinhos seriam incapazes de cumprir, e mesmo os m andamentos
do Novo Testamento, nunca deixariam de condenar impreterivel-
mente todo pecador ao inferno. Por isso encontramos a palavra
“ordenanças” (dogmasin, “ordens de tribunal ou juiz “, “decretos”;
cf. v. 20, dogmatizesthe: “sois sujeitos a ordenanças”). Mas este
vocábulo acrescenta a idéia de “tradição hum ana”.
Paulo pede aos seus leitores que considerem tão maravilhosa
verdade. Cristo tomou sobre si mesmo as acusações todas. Em
obediência absoluta a todas as ordens de D eus, ele cum priu
completamente as obrigações, removendo-as inteiram ente (v. 14).
Ficaram cravadas na cruz do Calvário as mãos e os pés do nosso
Senhor, estendidos e traspassados pelos cravos, mostrando assim
sua total submissão a toda a vontade de Deus. Fragmentos rasga­
dos jazem espalhados no seu túmulo. Assim, nossa sujeição não
pode ser mais a essas ordenanças religiosas, mas a Cristo, o Senhor.

■ - 254 -
EP ÍS TO LA DE PAULO AOS COLOSS ENSE S

A “Lei”, no sentido legalista, não é mais constitucional no reino


do Filho do seu amor. Como Paulo escreveu aos coríntios: “Não
estais sem lei para com Deus, mas debaixo da lei (ennomos) de
Cristo...” (9.21).
O v. 15 destaca a maravilhosa vitória de Jesus Cristo sobre
os poderes satânicos: despojou (apekdusamenos, “desarm ou-os”,
“derrotou-os”, “tirou todas as suas arm as”, “neutralizando-os”)
os principados e potestades, ao vencer todas as tentações satânicas,
vivendo uma vida absolutamente sem pecado. Mais ainda, Cristo
os venceu pela morte conquistada na ressurreição. Os poderes do
mal tentaram destruir a Jesus, publicamente, pela rejeição do povo,
que gritava: “Crucifica-o!” e pelo poder político dos líderes israe­
litas, junto com a concordância de Roma (At 2.23). Justam ente
na hora da maior vitória das trevas sobre o Senhor da Glória, ele
rompeu os grilhões da morte, demonstrando sua vitória sobre o
poder do pecado na sua expiação na cruz e sobre a morte pela
ressurreição. A palavra grega aqui traduzida por “triunfando”
(também em 2Co 2.14) pode indicar o cortejo triunfal do general
romano que, após a conquista de território novo, traz os cativos
amarrados, junto com o seu exército vitorioso.
Resumindo, entenderem os o argum ento deste capítulo se
lembrarmos que os colossenses estavam sendo atraídos por uma
“salvação” mística, intelectual, especulativa e pela busca de contato
benéfico com poderes espirituais. Procuravam um a “perfeição”,
não moral ou espiritual, mas teosófica. Paulo combateu toda essa
palha, reconfirmando as principais verdades históricas e teológicas
do evangelho:
1) Cristo incorpora toda a realidade divina: v. 9.
2) Ele é superior a todo poder real ou inventado: v. 10, 15.
3) A perfeição se alcança unicam ente em união vital com
ele: v. 10.
4) Por interm édio da fé e do enxerto em Cristo, simbolizado
no batismo, todos os benefícios da morte e ressurreição dele são
com partilhados.
5) Não estando mais morto e alienado de Deus pelo pecado,
o cristão vive totalm ente liberto da culpa e em tranqüilidade diante
de qualquer obrigação religiosa, por interm édio da vitória de Jesus
na morte e ressurreição.

- 255 -
e p í s t o l a s d a p ri são

Conseqüências de estar em Cristo, o Senhor (2 .16 -3 .4 )


16Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e
bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados, ^por­
que tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam
de vir; porém o corpo é de Cristo. '"Ninguém se faça
árbitro contra vós outros, pretextando hum ildade e culto
dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado sem motivo
algum na sua m ente carnal, 19e não retendo a cabeça,
da qual todo o corpo, suprido e bem vinculado por suas
juntas e ligamentos, cresce o crescimento que procede
de Deus. 20Se morrestes com Cristo para os rudim entos
do m undo, por que, como se vivésseis no m undo, vos
sujeitais a ordenanças: 21Não manuseies isto, não proves
aquilo, não toques aquiloutro, 22segundo os preceitos e
doutrinas dos homens? pois que todas estas coisas, com
ouso, se destroem. 23Tais coisas, com efeitos, têm apa­
rência de sabedoria, como culto de si mesmo, e falsa
hum ildade, e rigor ascético; todavia, não têm valor
algum contra a sensualidade.
3 'Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com
Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive,
assentado à direita de Deus. 2Pensai nas coisas lá do alto,
tio nas que são aqui da terra; 3porque morrestes, e a vossa
vida está oculta ju n tam en te com C risto, em D eus.
4Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então
vós também sereis manifestados com ele, em glória.

0 cristão não vive debaixo da lei cerimonial


Se a vitória foi inteiram ente conquistada por Cristo, quem, além
dele, teria o direito de colocar os colossenses debaixo de qualquer
espécie de jugo religioso? Os mestres falsos vinham ensinando
que algumas comidas e bebidas contaminavam quem as consumia,
impedindo-o de entrar em contato com poderes sobrenaturais.
Assim foi no período do Antigo Testamento, quando os israelitas
foram advertidos contra alimentos “imundos” que os separariam
da santidade de Deus.
As festas sagradas e os dias religiosos, como o sábado, tinham
igualm ente um elem ento de união ou de separação entre os

- 256-
EPÍSTOLA DE PAULO AOS CGLO SS ENSE S

adoradores e o seu Deus. Mas não é mais assim na nova época


inaugurada pela exaltação do Senhor Jesus. Todas as exigências da
velha aliança relativas aos alimentos e dias sagrados não passavam
de sombras das novas condições na era da igreja (cf. Hb 10.1).
“Sombras” quer dizer “tipos” e “sinais” que, a partir do Antigo Testa­
mento, apontavam para a realidade que todo cristão usufrui no
corpo de Cristo. Gálatas 3.23-25 nos informa sobre a- utilidade da
lei, que serviu ao povo de Deus como aio ou tutor para conduzir
todos os que lhe estavam sujeitos. A graça representa filiação comple­
ta, contrastada com a situação de dependência dos filhos menores.
Como devemos compreender a frase: “Porém o corpo é de
Cristo” (v. 17b)?
A prim eira sugestão sustenta a posição de que o corpo é a
igreja. Então o que decorre disso, evidentemente, é que a igreja
não deve ficar presa às cerimônias típicas do período de antecipação
no Antigo Testamento, mas viver na plena liberdade da sua relação
vital com o seu Senhor.
A segunda idéia vê na palavra “corpo” (grego, sõmà) o conceito
de “substância” ou “realidade”. O original podería ser entendido
dessa forma. Neste caso, a sombra nunca deveria substituir a
realidade; pelo contrário, sempre teria que exultar nos privilégios
da adoração verdadeira desejada por Deus (Jo 4.23, 24).
A terceira posição limita o significado de “corpo” à encarnação
de Cristo e às conseqüências da profecia de Salmos 40.7. Aí a promessa
do recebimento de um corpo preparado por Deus e oferecido em
holocausto que acaba com qualquer outro sacrifício se coloca em
contraste com a imperfeição de todo e qualquer rito judaico.
Enfim , Cristo nos liberta de toda e qualquer observância
levítica. Paulo adm ite o privilégio que tem o cristão de optar
particularm ente (como muitos judeus em Jerusalém , de fato, o
faziam) por continuar as práticas tradicionais e culturais. Mas
não é possível dar a tais atos de piedade um caráter compulsório.
Os cristãos não têm motivo para tem er quem quer que os
ameace de perder a corrida ou de não receber o prêmio (v. 18). O
termo “árbitro” traduz uma palavra extremam ente rara: provavel­
mente quer dizer “agir na capacidade de um juiz ou árbitro que,
num jogo, desqualifica o atleta ou lhe nega o prêm io”. Claramente,
tais “juizes” eram mestres gnósticos que não davam ao Senhor
Jesus Cristo o lugar supremo (“não retendo a cabeça”, v. 19), mas
se reservavam uma superioridade própria. Com essa finalidade
E P Í S T O L A S DA P R IS Ã O

eles se m ostravam m uito hum ildes (não em espírito, mas no


corpo), por meio de jejum e de uma disciplina rigorosa do corpo.
Em 3.12 a mesma palavra é usada para descrever uma virtude
recomendável. A hum ildade deve ser uma atitude do coração mais
do que uma prática legalista externa.
Também esses líderes da falsa religião adoravam anjos, atri­
buindo-lhes a posição de m ediadores, assim como m uitos hoje
querem cultuar a Deus por intermédio dos “santos” ou de Maria.
As visões que eles tinham tido (talvez induzidas por meio dos
ritos de jejum) os enchiam de vaidade. Enfatuado sem motivo revela
uma atitude de jactância no reivindicado conhecimento da verdade,
mas que, na realidade, não passava de invenções de mentes domi­
nadas pela carne e não pelo Espírito (cf. Ap 2.24). Idéias intei­
ramente humanas, sem utilidade alguma, freqüentemente fascinam
quem as ouve. A sutileza do pai do engano nunca deixou de exercer
atração sobre as mentes hum anas desde a Queda, porque oferece
a esperança da salvação própria.
Mas em todos estes acréscimos ao evangelho, observa-se a
falta de reter a cabeça (v. 19). No grego, “retendo” representa kratõn
(usado também em Mc 7.3, 4, 8; At 2.24) e significa literalm ente
que os falsos mestres não estavam mantendo firm em ente a Cristo
como a cabeça. Esta figura exalta o nosso Senhor à posição suprema
em relação ao corpo, a sua igreja. Da cabeça a igreja recebe todo o
suprim ento completo de sua vida (cf. E f 4.12). Essa vitalidade
passa para o corpo por interm édio das juntas e ligamentos, que
devem ser os m inistros e servos de Deus que edificam seus irmãos
na doutrina e na sabedoria prática recebidas do Senhor. As duas
palavras, “suprido” e “vinculado” (também em 2.2), comunicam,
por um lado, a idéia de equipar ou treinar e, por outro, a de unir e
produzir lealdade ao Senhor (veja E f 4.16, passagem paralela).
Em conseqüência de se m anter fixa em Cristo (retendo a
cabeça), a igreja se desenvolve com o crescimento que unicamente
Deus pode dar. Paulo, em ICoríntios 3.6, declara que o milagre do
crescim ento só se explica pela atuação sobrenatural de D eus
(também At 2.47). Mas também existe um crescimento canceroso
que vem do apelo à carne, e este é totalm ente oposto ao desenvol­
vimento proporcionado por Deus. Fica evidente, assim, o objetivo
final do exercício do ministério mútuo dentro da unidade do Espírito
no corpo: é o crescimento para a perfeição de Cristo em amor (esta
conclusão se confirma em E f 4.15).

- 258-
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S C O L O S S E N S E S

0 cristão não está sujeito às ordenanças humanas


Nos versículos 16-19 Paulo se opõe à piedade dos colossenses,
porque esta nega o senhorio de Cristo. Aqui, ele apela aos irmãos
para largarem essas práticas inúteis, pois não correspondem à
nova vida ressurreta assinalada pelo batismo. “Se morrestes com
C risto” — e todo verdadeiro cristão teve essa experiência (veja
2.10-12) — então isto significa que ele foi completamente cortado
da sujeição aos elem entos ou poderes espirituais (cf. 2.8) que
anteriormente controlavam sua vida.
Não há motivo algum para o filho de Deus ser escravizado
por regrinhas de cunho humano (gr. dogmatizesthe, “continuar a ser
dom inado por ordenanças”, v. 14). N este contexto Paulo está
indicando práticas ascéticas que proibiam manusear ou tocar uma
série de coisas, para evitar contaminação cerimonial. Junto com
esses tabus, havia regras contrárias a provar comidas e bebidas
declaradas imundas (v. 21). Mas Deus nunca se manifestou con­
trário às práticas condenadas por estes preceitos e ensinos pura­
mente humanos (22). Como influiríam estas coisas, supostamente
intocáveis e proibidas, sobre a vida eterna (ressurreta) do cristão, já
que são apenas transitórias? Jesus pronunciou esta mesma dou­
trina quando lutou contra as tradições humanas (veja Mt 15.9; Mc
7.18,19). Novamente vemos o contraste entre o eterno, relacionado
com Cristo, e o transitório, relacionado com o mundo (2Co 4.18).
Tais coisas (v. 23) são aquelas ordenanças de negação. Elas
têm, no pensamento hum ano, certa reputação de sabedoria, porque
envolvem a disciplina voluntária e gozam de uma aparência de
piedade e controle rigoroso sobre o corpo. Mas são totalm ente
inúteis na guerra contra a indulgência da carne, isto é, o egoísmo
e os desejos contrários à vontade revelada de Deus. Mesmo no
nosso século persistem pontos de vista paralelos. Pessoas fazem
romarias até Fátim a, em Portugal, ou até Aparecida, no Brasil,
andando de joelhos nus e ensangüentados, sofrendo agonias, na
esperança de que a severidade no trato do corpo venha a agradar a
D eus ou à “santa”; mas isto em nada transform a o coração do
sofredor. O apóstolo mostra um pessimismo profundo diante de
qualquer esforço humano. Não só a salvação é gratuita, não sus­
ceptível a qualquer merecimento em conseqüência de obras boas,
mas a santificação também depende da revelação da vontade de
Deus e a operação do Espírito para transform ar vidas à imagem

259-
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

de Jesus Cristo. Esta ênfase tão forte na morte e ressurreição com


Cristo sustentam o fato de que a verdadeira vida cristã é uma
vida totalm ente dependente de Deus.

Âs consequências da ressurreição com Cristo


Este trecho nos apresenta o lado positivo, contrastando com os
anteriores, especialmente em 2.20-23. A referência à morte de Cristo
deve seguir-se a consideração das conseqüências de se ter ressus­
citado com ele (3.1). As “ordenanças” de Deus, nestes versículos,
são evidentemente opostas às invenções legalistas de homens.
Esta passagem é a única, em Colossenses, que explicita­
m ente faz referência à segunda vinda do Senhor. É notável a
combinação das duas “escatologias”, a realizada afirmando que o
cristão já passou pelo julgamento (morte) e possui a vida da nova
era eterna. A qualidade dessa vida deve ser manifesta na conduta.
Mesmo não sendo m uito impressionante, m uitos m undanos não
admitiríam o milagre operado pela morte e ressurreição na con­
versão do crente; mas quando Cristo voltar, então a verdadeira
natureza do cristão “supernaturalizado” se tornará evidente para
todos. Isto se chama escatologia futurista.
Se fostes (v. 1) não sugere dúvida alguma quanto a essa ocor­
rência. “Sendo que fostes ressuscitados juntam ente com Cristo”,
seria uma redação um pouco mais acertada. Esta verdade radicada
no evento central de toda a história, acontecido com Jesus no
domingo da Páscoa e experim entado pelos crentes no batismo
pela fé, implica na busca dos valores celestiais.
Buscar as coisas de cima. As coisas temporais, como já vimos
em 2.16-23, não merecem a nossa atenção. Por isso, em primeiro
lugar, somos mandados por Deus a fixar nossa ambição na busca
de tudo que esteja relacionado com Cristo na sua exaltação. Deste
modo Paulo reitera a exortação de Jesus no Sermão da M on­
tanha: “Buscai em prim eiro lugar o reino de D eus e a sua jus­
tiça...” (Mt 6.33). Logo veremos, aqui tam bém , a ênfase sobre a
justiça. Cristo agora reina, sentado no trono à direita do Pai. Os
interesses e a justiça do seu reino devem ser prioritários para todos
que compartilham do seu Espírito. Paulo nos lembra que Cristo
vive “lá no alto” (Efésios 1.3,20; 2.6; 3.10 e 6.12 usa a palavra
sinônima epouraniois, “lugares celestiais”), porque quer distinguir
o que é eterno do que é tem porário e passageiro.

- 260-
E P ÍS TO LA DE PAULO AOS COLOSS ENSE S

Pensar nas coisas do alto. Em segundo lugar, devemos pensar


nas coisas lá do alto (v. 2). A palavra grega (phroneite, “pensar”, “ter
um a atitu d e defin id a”) é a m esm a em pregada por Paulo em
Filipenses 2.5 para cham ar atenção para o tipo de inclinação de
mente que o cristão precisa ter. Sua mente não liga para as coisas
m undanas, não fica presa nem obcecada pelos valores materiais.
Pelo contrário, tendo sua cidadania no céu (Fp 3.19, 20), ele con­
templa ansiosamente sua herança prometida (Hb 11.13).
Depois desta dupla exortação aos colossenses, nos v. 1 e 2,
o apóstolo dá as razões pelas quais um peregrino deve ter suas
ambições conscientemente vinculadas ao céu:
(1) Deve ser a conseqiiência natural da morte com Cristo. A
morte inevitavelmente desliga o defunto dos interesses deste mundo.
Tal como o “rico louco” de Lucas 12.16-21 mergulhou na busca da
“dolce vita” apenas até morrer, assim também, na morte com Cristo,
deve haver uma mudança de 180 graus na ambição do convertido.
(2) A vida dos cristãos foi oculta, juntamente com Cristo, em
Deus (v. 3). Assim como o cadáver é oculto na terra, fora da vista
dos antigos associados e colegas, o cristão, sepultado com Cristo,
fica oculto em Deus. Aí está sua proteção (SI 91.1-10), bem como
o seu sustento. Não esqueçamos que já encontram os a palavra
oculto usada para a localização de “todas as riquezas de sabedoria
e conhecimento” em Cristo (2.3). Provavelmente devemos entender,
com esta frase difícil, que Deus sustentará a nova vida dada aos
seus filhos por interm édio de Jesus Cristo. Não há razão alguma
para procurar outras fontes nem meios para o suprim ento da vida
cristã, como encorajavam os hereges gnósticos. Ainda que a frase
em Deus seja bastante rara nas epístolas de Paulo, a frase em Cristo
se encontra mui freqüentemente; mas o significado deve ser quase
o mesmo (cf. Jo 14.23).
(3) A vida dos santos é a vida de Cristo outorgada pelo
Espírito que habita o seu corpo (1 Co 12.13). Esta vida, que vivemos
pela fé (G1 2.20), não atrai m uito a atenção dos pagãos, que se
impressionariam m uito mais com milagres estupendos e demons­
trações dramáticas. A vida de Cristo na sua igreja é, na maioria
dos casos, sóbria, tranqüila, moderada (Fp 4.5). O fruto do Espírito
deve ser esperado mais do que as maravilhas espetaculares da sua
operação.
Mas tudo isto não quer dizer que Jesus nunca se manifestará
visível e poderosamente. Bem ao contrário, o dia de sua vinda em

261 -
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

poder e glória transformará esta vida secreta no m aior espetáculo


de todos os tempos! A Segunda Vinda, então, m arcará o dia da
revelação da verdadeira natureza dos filhos de Deus. Aparecerão
com Cristo (lTs 4.14) revestido de sua glória, dando, assim, a
últim a confirmação da verdade de que quem tem Cristo como
Salvador e Senhor possui tanto quanto aquele que tem a Jesus e
também o m undo todo.

0 senhorio de Cristo na vida prática (3 .5 -17)


5Fazei, pois, m o rrer a vossa natu reza terrena:
prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno,
e a avareza, que é idolatria; 6por estas coisas é que vem
a ira de Deus (sobre os filhos da desobediência). 7Ora,
nessas mesmas coisas andastes vós tam bém , noutro
tem po, quando vivíeis nelas. 8Agora, porém , despo-
jai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, m al­
dade, maledicência, linguagem obscena do vosso falar.
9Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes
do velho homem com os seus feitos, 10e vos revestistes
do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento,
segundo a imagem daquele que o criou; "onde não pode
haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão,
bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo e em
todos. 12Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos
e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade,
de hum ildade, de mansidão, de longanimidade. 13Supor-
tai-vos uns aos outros, perdoai-vos m utuam ente, caso
alguém tenha motivo de queixa contra outrem. Assim
como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós;
14acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo
da perfeição. 15Seja a paz de Cristo o árbitro em vossos
corações, à qual, também, fostes chamados em um só
corpo: e sede agradecidos. 16Habite ricamente em vós a
palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos m utua­
mente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos
e hinos e cânticos espirituais, com gratidão, em vossos
corações 17E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em
ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele
graças a Deus Pai.

- 262 -
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S C O L O S S E N S E S

Tendo Cristo como Senhor, deiemos


mortificar a nossa natureza terrena
“Fazei, pois, m orrer a vossa natureza terrena” (v. 5). A palavra
“pois” indica que a m ortificação na prática é m otivada pelas
verdades espirituais que acabamos de ver nos versículos anteriores.
Pela últim a vez na sua epístola Paulo emprega este conceito de
“m orte”. Torna-se fascinante rever os diversos sentidos dados por
ele ao termo “m orte” ou “m orrer”.
(1) Há uma referência nítida à morte natural (1.22). A morte
literal foi experimentada por Cristo na cruz.
(2) Já vimos a “morte em transgressão e no pecado” (2.13;
E f 2.1). Esta morte espiritual caracteriza todos os que pecaram e
estão destituídos da glória e vida de Deus (cf. ICo 15.22).
(3) Um aspecto da morte na teologia de Paulo seria a morte
de Cristo vista do ponto de vista de uma “personalidade incor­
porada”. Isto significa que, quando ele expirou, todos os salvos,
quer do passado, presente ou futuro, estavam incluídos nele como
seu representante realístico (veja 2.11 e G1 2.20).
(4) Enquanto a morte com Cristo ocorreu na cruz, no ano
30 A.D., há uma morte simbólica experim entada concretamente
no batismo do novo convertido, como observamos em 2.12 (veja
Rm 6.3-6).
(5) Finalmente encontramos neste texto uma morte obrigatória
na vida prática. Todas as outras “mortes” foram operadas, não por
nós, mas sobre nós. O imperativo de 3.5, fazei morrer, mostra-nos
claram ente a responsabilidade de m ortificar a nossa “natureza
terrena”. Não foi bem “natureza terrena” que Paulo escreveu. Lite­
ralmente, ele diz que os colossenses devem “m atar seus membros
que estão sobre a terra”. Escrevendo para os Coríntios (ICo 15:31),
o apóstolo declarou que m orria diariam ente, refletindo assim os
perigos que ele sempre enfrentava. Aqui é bem diferente. Os mem­
bros sobre a terra são os instrumentos através dos quais o pecado
opera. Jesus recomendou aos seus discípulos a mesma coisa, quando
disse: “Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de
ti...” (Mt 5.29, 30). Todo desejo pecaminoso, juntam ente com a
prática do pecado, exige dos “membros” ou instrumentos do corpo
hum ano algo para a sua realização. Como devemos “matar” estes
membros, isto é, tirar a vitalidade pecaminosa dessas inclinações?
Acho que Paulo nos respondería que cumpriremos esta obrigação

- 263-
E P ÍS T O L A S DA PRISÃO

somente na m edida em que oferecermos os membros do nosso


corpo a D eus para vivermos de uma forma santa e digna dele
(esta é a exortação de Rm 6.12-23). Paralelamente à mortificação,
Paulo colocou o “despojamento” (v. 8), sendo ambas idéias nega­
tivas, mas necessárias para se transform ar na imagem do “novo
homem” (v. 11). Em princípio, lembremos que não podemos estran­
gular nossos maus desejos. “Mas se pelo Espírito mortifícardes os
feitos do corpo, certam ente vivereis” (Rm 8.13). A operação do
Espírito é, portanto, essencial à mortificação.
Também podemos afirm ar que não mataremos estes desejos
machucando-nos ou provocando sofrimentos no nosso corpo. A
todos que queriam realmente viver para Deus, Jesus aconselhou
negarem-se a si mesmos, tomarem a sua cruz e o seguirem (Mc
8.34). Esta idéia de negar a si mesmo e carregar a própria cruz, con­
tudo, estava longe da posição dos pseudo-religiosos e supersticiosos
ascéticos de Colossos. Somente na íntim a companhia de Cristo
há esperança de se ter a vontade transformada. Com ele é possível
considerar-se morto para o pecado (Rm 6.11). Despindo-se do
pecado é possível revestir-se de Cristo (Rm 13.14).

Sendo Cristo o Senhor da nossa vida, temos


de deixar as práticas impuras da carne
O apóstolo cita as seguintes práticas carnais:
1) Prostituição. A prostituição refere-se a toda relação sexual
fora do casamento. A palavra pomeia vem do verbo pemumi, que
quer dizer “vender”. Fica evidente que, para Deus, este pecado de
vender ou comprar um ato do mais profundo amor é um dos peca­
dos mais graves que se pode cometer. A prostituição nega o amor
que une no nível mais profundo as personalidades do marido e da
esposa. Jesus avisou aos seus ouvintes que esta transgressão é
cometida não apenas no ato de relação sexual ilícita, mas que, em
prim eira instância, realiza-se na mente e no coração (Mt 5.28).
A prostituição era um pecado quase universal na época em
que Paulo escreveu Colossenses. Dem óstenes, orador dos mais
famosos da Grécia, disse: “Nós reservamos am antes para nosso
prazer; concubinas para as necessidades corporais do dia-a-dia;
mas temos esposas para produzir crianças legitimamente e para
ter quem seja fidedigna para guardar os nossos lares”. Na cidade
de Corinto havia cerca de mil prostitutos (tanto mulheres quanto

- 284 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS C OLO SS ENSE S

hom ens) servindo no tem plo de A frodite. A prostituição e a


idolatria andavam de mãos dadas.
2) Impureza. A impureza, em seu sentido físico, descrevia a
sujeira ou a putrefação de uma chaga infetada; moralmente signifi­
cava qualquer coisa revoltante e miserável, particularm ente per­
versão sexual. No Antigo Testam ento usava-se para denotar a
impureza cerimonial daqueles que não podiam entrar na presença
de Deus por causa da contaminação. A im pureza era sempre consi­
derada vergonhosa (Os 2.10) e, mais ainda, destrutiva, tanto a
indivíduos como a uma nação (Mq 2.10). O cristão, nascido do
Espírito de santidade, nunca poderá sentir-se indiferente diante
deste desafio a fugir de toda impureza, como Paulo exortou a Timó­
teo (2Tm 2.22). Particularm ente o jovem cristão deve estar alertado
para fugir da impureza da mente, pois o Senhor disse que os puros
de coração são bem-aventurados (Mt 5.8).
3) Paixão lasciva. Da palavra pathos, que quer dizer “sofri­
mento”, herdamos a expressão “paixão de Cristo”. Mas em lTessa-
lonicenses 4.5 e Romanos 1.26 torna-se muito claro que é outro o
significado aqui. Seria aquela paixão que, sem a verdadeira paciência
do amor, fica dominada pelo fogo do sexo. Davi se apaixonou por
Bate-Seba, esposa de Urias, e a conseqüência foi adultério e homi­
cídio, tudo porque não dominou, pelo poder do Espírito, esse ardor
ilícito. Logo em seguida, em 2Samuel 13, conta-se a sórdida história
de Amom, Filho de Davi, que se enamorou de Tamar. As conse-
qüências dessa paixão ím pia arruinaram não apenas a vida da
inocente Tamar como a de Absalão, irmão dela, provocando até
uma guerra civil.
4) Desejo maligno. O “desejo’ (epithumia) pode ser santo, como
no caso de Jesus, que ansiou profundam ente comer a páscoa junto
com seus discípulos (Lc 22.15 tem a mesma palavra na forma de
verbo). Mas, delimitado pela palavra “maligno”, não deixa de ser
o pecado da concupiscência ou lascívia, como vemos em lTessalo-
nicenses 4.5, onde obviamente se refere ao sexo. Provavelmente
foi isto que despertou a consciência de pecado de Paulo (veja Rm
7.7, 8, onde ele usa a mesma palavra). Sem corações controlados
pelo Espírito Santo não há esperança alguma de vencer a tentação
do desejo maligno. Louvado seja Deus, que nos deu o seu Espírito
para nos santificar (lTs 4.7, 8)!
5) Avareza. Avareza comunica a idéia de tirar uma vantagem
egoísta, muitas vezes iludindo e prejudicando a vítima. Por isso a

- 265 -
e p í s t o l a s da p ri s ã o

mesma palavra no grego foi traduzida por “defraudar” em lTessalo-


nicenses 4.6, referindo-se a relações sexuais (cf. também Ef 4.19,
onde está ligada com “impureza”). Todo contato que suscita proposi-
tadamente o desejo sexual promete um amor permanente e sacriflcial.
Quando esta promessa é esquecida resulta em defraudação de um
irmão ou irmã. Deus não abranda sua ira santa contra este pecado
tão indigno e comum na igreja de Jesus Cristo. Podemos esperar
que Satanás pratique esta “chantagem” (veja 2Co 2.11, que tem a
mesma palavra em forma de verbo), mas não os filhos de Deus!
6) Idolatria. Deve ser m uito im portante o fato de Paul
definir a “avareza” como “idolatria”. Esta palavra, originária de
latreia, “serviço ou culto religioso em favor de ídolos” (imagens
dos falsos deuses), descreve a principal abominação praticada pe­
lo povo de Deus e pelos pagãos durante quase todo o decurso da
história bíblica. A ira de Deus tem que se m anifestar com toda a
força contra o culto àquilo que é criado, em lugar do Criador (Rm
1.19-23). No m undo de Paulo a idolatria encorajava a prática de
toda espécie de perversão sexual. Por isso, aqui, como também em
Gálatas 5:19, a idolatria encerra a lista dos pecados sexuais.
Em Sabedoria de Salomão 14.12 o autor judeu afirma: “A
idéia de fazer ídolos foi o início da fornicação e a invenção de
imagens, o começo da corrupção da vida”. Que formas de idolatria
m oderna encorajam a im pureza? Televisão, novelas, revistas,
filmes? Não devemos pensar que o m undo m oderno viva sem
ídolos. A m aneira de cultuar e a forma dos ídolos podem diferir;
mas valorizar a criação acima do Criador nunca deixou de ser a
abominação predileta da hum anidade caída.

A ira de Deus
Deus reage em ira contra todas as transgressões. A palavra thumos,
“ira”, significa uma violenta, fervente e rápida reação emocional de
oposição e vingança contra o pecado. Romanos 1.18-32 revela que a
ira divina cai sobre os “filhos da desobediência”, em forma e tempo
presente, entregando os iníquos aos seus pecados. Futuramente, essa
ira será terrivelmente manifestada no juízo final (Rm 2.5; 2Ts 1.6-9).
Enquanto estes pecados da antiga vida dos colossenses os separavam
da comunhão com Deus (v. 7), provocando a sua justa ira contra
eles, na lista que segue no v. 8 deparamos com práticas pecaminosas
que separam o homem do seu próximo. Todas estas obras da carne

- 266 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS COLQSS ENSE S

devem ser igualmente cortadas da vida do cristão, decisivamente


por meio da submissão a Cristo como Senhor (lPe 3.15).

Atitudes e maneiras de falar que ámem ser afastadas


Paulo muda a figura que vimos no v. 5, de m atar os membros do
corpo para acabar com os pecados na área do sexo, passando a
encorajar seus leitores a se “despojarem” igualmente de tudo isto:
“ira, indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do
vosso falar”. Será que reconhecemos a necessidade de santidade
no falar (cf. Tg. 3.1-12)?
Despojar-se ou despir-se é linguagem relacionada com o
batismo. A prática antiga de despir-se da roupa velha e suja para
em seguida vestir-se de roupa nova e branca simbolizava o fim das
práticas da velha vida, seguindo-se práticas santas e puras. Um
costume oriental da antigüidade pode oferecer-nos o pano de fundo
para esta figura. Quando um alto oficial do governo era deposto,
era obrigado a despojar-se das vestimentas relativas à sua posição
(ver 2.15 e 3.9, onde há uma palavra sinônima, “despistes”). Vejamos
agora quais os pecados específicos que Paulo destacou:

Ira e indignação. A prim eira vista, ambas são atitudes; mas


neste contexto devem ser entendidas como m aneiras de falar. A
prim eira palavra, ira, com unica um a condição confirm ada e
constante. Usamo-la há pouco para descrever a atitude de Deus em
oposição à maldade dos homens, no v. 6. Indignação (thumos) se
relaciona com a palavra “ferver” (no grego), significando, portanto,
irritação violenta e breve como o fogo na palha. Em Efésios 4.26 o
cristão é advertido contra dar abertura ao pecado, e a não perm itir
que o sol se ponha sobre a sua ira. Fica bem claro que o homem de
Deus não tem licença da parte do Senhor para manifestar indignação
fria nem irritação impaciente, pois estas quase sempre excluem o
amor que edifica. A ira de Deus é a revelação de sua condenação do
pecado e tem a finalidade de encorajar o pecador a se arrepender.
Assim, tanto tem um lado negativo quanto outro, positivo.
Maldade. A maldade (kakian) abrange o território entre “criar
problemas” e uma atitude culpável de iniqüidade. Sendo um termo
bastante geral, toca em qualquer comunicação que venha prejudicar
ou destruir a reputação do próximo. As críticas aos nossos irmãos
devem ser de tal modo dominadas pelo amor que sempre expressem

- 267 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

o desejo de encorajar, e nunca a intenção de destruir m alicio­


samente. Cuidado com as fofocas e os comentários desnecessários
que, ao invés de encorajar e abençoar, amaldiçoam e desestimulam!
Maledicência. A maledicência (blasphêmian) está na mesma
linha de pensamentos. Paulo teria em mente palavras proferidas
com a intenção de abusar, caluniar e destruir o valor de uma pes­
soa nas mentes dos ouvintes. Pode também estar se referindo aos
casos de blasfêmia sob as pressões da perseguição ou do medo.
Foi assim que Pedro blasfemou o nome de Cristo na noite em que
o Senhor foi traído.
Linguagem obscena. Alinguagem obscena, sendo im pura e capaz
de suscitar pensamentos impuros, deve ser de uma vez para sempre
afastada da boca de todo cristão. Como Jesus advertiu no Sermão
da M ontanha que o adultério pode ser cometido no coração (Mt
5.28), também os santos logo reconhecerão a inconveniência de
comunicar idéias que levem outros a pecar. Obscena quer dizer
vergonhosa; portanto, o cristão que assim fala está nas trevas da
vergonha, mesmo reivindicando ser filho da luz (Ef 5.12, 13).
Mentira. Não mintais é um a exortação que nunca se torna
desnecessária, pois mesmo os santos são tentados a falsificar uma
com unicação que tra ria algum a vantagem egoísta, m as um a
desvantagem em detrim ento de outrem. Mentir significa, no fundo,
aliar-se com Satanás, 0 “pai da m entira” (Jo 8.44), para defraudar
o próximo. As palavras de Apocalipse 21.8, 27 e 22.15 m ostram
singelam ente como D eus se opõe à d esonestidade. Por isso
devemos deliberadamente tirar os trapos velhos deste terrível mal
e nos revestir de cristalina honestidade, como os ares das grandes
cidades são purificados da poluição após uma chuva de verão!

0 novo homem de que nos revestimos


A pureza na vida e a linguagem dominada pelo Espírito Santo são
caraterísticas do “novo hom em ” de que todo cristão verdadeiro se
revestiu. Falar de vestir-se do homem novo (em contraposição a se
despojar do “velho homem”) não é muito comum entre cristãos
do século XX. Mas Paulo achou estas frases ótimas para comunicar
a m udança radical ocorrida na verdadeira conversão. Para ele, o
“velho hom em ”, pertencente a Satanás, caraterizado pelos hábitos
iníquos, morreu no sepultamento batismal e na ressurreição para
a novidade de vida pelo Espírito Santo (Rm 6.4-6; T t 3.4, 5).
E P Í S T O L A DE P A U L O A O S C o L0 S S E N S E S

Em seguida, notamos a finalidade deste revestimento na


frase: “que se refaz para o pleno conhecimento...” (v. 10). A reno­
vação no presente (gr. anakainoumenon) refere-se à operação graciosa
do Espírito Santo através da Palavra. Quando permitimos que ele
nos “guie a toda a verdade” (Jo 16.13), os vícios, hábitos e atitudes
vão sendo substituídos pelos do Senhor Jesus Cristo, que viveu
seus anos na terra refletindo perfeitamente o caráter de Deus, que
originalmertte criou Adão (o homem) à sua imagem (Gn 1.26,27).
Paulo reconhecia a Cristo como o “segundo Adão” (Rm 5.12-19;
ICo 15.22, 45), sendo este a perfeita imagem de Deus. Pecadores
restaurados em Cristo atingem o conhecimento pleno que os falsos
m estres de Colossos pretendiam alcançar (mesmo não o tendo
conseguido) por meio de suas práticas ascéticas e especulações
teosóficas e espíritas. É provável que haja alguma alusão à busca
do conhecimento do bem e do mal por meio da fruta que Adão e
Eva provaram. Evidentemente o conhecimento se refere à relação de
fé e amor que os fiéis gozam com Deus.
Assim como em Adão toda raça hum ana que surgiría depois
já existia, em prin cíp io , no “segundo A dão” não pode haver
distinções significativas entre judeus e gentios (gregos), entre
circuncidados e não circuncidados, entre bárbaros e citas (o mais
baixo dentre os bárbaros) ou entre escravos e homens livres. Estas
divisões raciais, religiosas e sociais foram anuladas, em princípio,
quando Cristo morreu igualmente por todos e os integrou ao seu
próprio corpo. Todos aqueles que formam o “novo homem” são
irmãos, membros do mesmo corpo, unidos na mesma igreja de Deus.
Cristo é tudo e em todos (v. 11b) declara o fato, tão facilmente esque­
cido, de que o importante é o Senhor, no final das contas; outras
distinções quaisquer não devem afetar em nada a nossa percepção
desta realidade, nem nossa prática de tudo que dela decorre.
Paulo afirmou, no v. 10, que os cristãos já se revestiram do
novo homem ao serem enxertados em Cristo. Nos versículos 12 a
17 os mesmos cristãos são adm oestados a se revestirem do caráter
do seu precursor, Cristo. (Lembrem os este mesmo tipo de apa­
rente contradição no uso do conceito de m orte em 2.20, com­
parado com 3.5.)
Os três term os distintivos — eleitos, santos e amados —
descrevem como Deus considera seus filhos ao contemplá-los em
Cristo. Eleitos indica a seleção, dentre toda a hum anidade, feita
por Deus antes da fundação do m undo (Dt 14.2; E f 1.4). Não há
E P Í S T O L A S DA P RISÃO

qualquer razão revelada pela qual ele teria escolhido alguns para
gozar os eternos benefícios de sua graça; e m uito menos a eleição
teria sua explicação em alguma qualidade inerente ao pecador.
Porém o objetivo dessa maravilhosa seleção foi partilhar a santi­
dade de Deus com pecadores.
Santos é mais um termo tirado do Antigo Testamento para
descrever o povo de D eus. Israel devia cu m p rir a m issão de
manifestar a santidade de Deus no m undo (Êx 19.6), mas falhou,
lançando sobre o Novo Israel esta incumbência (cf. D n 7.13- 21).
Amados tem raízes profundas no amor declarado por Deus para
com seu povo (Is 5:1; Os 2.25). No Novo Testamento aplica-se este
termo exclusivamente para descrever o objeto do amor de Deus,
primeiramente declarado a respeito do Filho (Mt 3.17; 12.18; Lc 9.35;
cf. Is 42.1) e depois aos que lhe pertencem. Sendo Cristo o eixo, por
intermédio dos raios inclui o aro, pois ele é tudo em todos (v. 11).

Qualidades que devem substituir as características carnais


Tendo chegado à firme convicção da maravilhosa posição por Deus
concedida aos santos, o apóstolo convida os seus leitores a se
vestirem de oito virtudes efetivamente manifestadas por Jesus na
sua vida terrestre.
1) Ternos afetos de misericórdia, isto é, o cristão deve ter um
coração compassivo. No original, “splangna oiktirmou” quer dizer
entranhas compassivas, indicando a importância de se cultivar, com
o auxílio do Senhor, os sentimentos de simpatia. A violência, que
atrai tanta atenção na literatura, televisão, revistas e uma grande
parte dos meios de entretenim ento, tende a criar sentim entos
opostos, im unidade e indiferença emocional frente à m iséria e
sofrimento terríveis de que há tantas vítimas no mundo.
2) A segunda peça de vestuário que Deus nos manda usar é a
generosidade ou bondade. A palavra “chrêstotêta”muitas vezes descreve,
na Bíblia, a maneira como Deus trata os homens que, por serem
pecadores, não merecem tão bondoso tratam ento (Mt 5.46; Rm
11.22). Gálatas 5.22 apresenta esta qualidade divina em quinto lugar
na lista das evidências vitais do Espírito Santo operando na vida
do crente. Temos, assim, um a resposta à pergunta: como posso
me revestir de uma virtude que reconheço estar ausente e até mes­
mo ser contrária à m inha natureza? A resposta: som ente de­
pendendo, pela fé, do Espírito de Deus.

- 270 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

3) Em terceiro lugar encontramos a humildade, essa quali­


dade paradoxal que era desprezada pelo m undo grego mas tão
elogiada por Jesus. Não foi apenas a si mesmo que ele atribuiu
esta qualidade (Mt 11.29), mas enfatizou ser a hum ildade essencial
como característica de todos os que entram no Reino dos Céus
(Mt 5.3; 18.3; Tg 4.6). Cristo, o modelo da hum ildade, brilha lum i­
nosam ente nas páginas dos evangelhos, porém é descrito num
curto parágrafo de Filipenses 2. Da igualdade com Deus para a
posição de escravo crucificado: isto é a infinita humilhação. E os
seus discípulos devem ter a mesma atitude (Fp 2.5-8).
4) A mansidão freqüentemente está vinculada à humildade
(veja M t 11.29). Trata-se de uma disposição a ceder os direitos e
perm itir que Deus molde o caráter pelas circunstâncias com que ele
cerca nossa vida. O contrário da mansidão, segundo o Salmo 32.8 e
9, é a qualidade do cavalo e da mula, os quais têm que ser dirigidos
pela força, com freios e cabrestos. Peçamos a Deus que sempre crie
em nós o espírito voluntário da mansidão, para experimentarmos a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2).
5) A quinta peça do vestuário de Cristo é chamada longa-
nimidade. Já deparamos com esta palavra em 1.11, no contexto da
petição em favor do fortalecimento com o poder divino. Enfatiza
um elemento fundamental no caráter cristão, o de exercer equilíbrio
de espírito frente a qualquer provação e ser tolerante diante das
falhas e defeitos dos irmão. Além desta constância, mantida pelo
E spírito reinante no coração, sugere uma atitude esperançosa.
Q uando am am os a D eus e confiam os na sua providência, a
esperança cristã sempre brota de novo, mesmo após repetidos esma-
gamentos e perseguições.
6) “Suportai-vos uns aos outros” deve ser uma exortação a todos
que vivem ou trabalham juntos. Os hábitos, as práticas, a cultura
ou a falta de cultura sempre provocam alguma irritação naqueles
que se associam mais estreitamente. A carência de harmonia nas
relações m útuas só pode ser superada pela tolerância e aceitação
dos colegas, num espírito de constante perdão. Foi assim que o
Senhor Jesus viveu na terra, cercado do vexame dos pecados
daqueles homens tão imperfeitos com quem vivia; mas ele aplicava
incessantemente o óleo lubrificante do seu perdão e aceitação.
7) “Perdoai-vos mutuamente” chama atenção específica para
a necessidade de que o cristão esteja sempre pronto a perdoar
quando for ofendido ou vítima da maldade. Mas a mutualidade

271 -
E P Í S T O L A S DA P R I S Ã O

exige que ele tam bém fique atento: não estará ele mesmo pecando
contra um seu irmão? Que procure a reconciliação perdoando,
bem como pedindo hum ildem ente o perdão do seu parceiro (cf.
M t 5.23-25). D eixar de perdoar não pode ser um a opção para o
filho de D eus, já que ele m esm o foi absolvido de toda a sua
iniqüidade pelo perdão que recebeu de Deus gratuitam ente (Mt
18.21-35).
8) “Acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo d
perfeição” (v. 14). O amor “agapê ” isto é, amor desprendido, sacri-
ficial, que visa o benefício do próximo, é aqui descrito como o
principal vestido exterior. Ele m antém no lugar apropriado cada
uma das outras peças de roupa. O amor seria, então, como o polo
norte para a bússola da vida, orientando o cristão para a direção
prática que deve tomar.
O termo vínculo (sundesmos) descreve o elemento unificador
e, portanto, a integração e a coerência. Cristo é declarado o prin­
cípio de coerência do universo inteiro, segundo 1.17. Vemos agora
que o “agapê ” é o princípio integrante de toda conduta realmente
cristã. Não devemos perder de vista, no entanto, que Cristo é a
fonte e a perfeita expressão desse amor, não criado nem produzido
por nós, mas recebido por interm édio do Espírito (G1 5.22) que
Deus nos concedeu através da regeneração.

Piretrlzes para uma vida cristã bem sucedida


Primeiramente focalizemos nossa atenção nos conselhos do Senhor
para uma vida emocional equilibrada. “Seja a paz de Cristo o
árbitro em vossos corações” (v. 15). Com parando esta frase inicial
com João 14.27, concluímos que esta paz é aquela que Cristo dá
Resulta da firme confiança no controle exercido por ele sobre nossas
vidas (cf. João 14.1) e tam bém é o galardão da obediência aos
seus m an d a m en to s. Q u an d o tom am os d ecisões que criam
conflitos, estamos desprezando o árbitro (o juiz de um jogo). Eis,
pois, uma excelente regra a seguir na busca da vontade de Deus:
Sinto no coração a paz que Cristo dá? A decisão cria conflito ou
promove a paz? Já que “fomos chamados em um só corpo”, que é
a igreja, devemos achar que não im porta aos outros o que nós
fazemos individualm ente (Rm 12.17, 18; Hb 12.14)?
Em segundo lugar, há várias exortações para a vida espiri­
tual, particularm ente na adoração:

- 272 -
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

Sede agradecidos (v. 15b) denota o sacrifício norm al do filho


de Deus. Por saber que Deus está fazendo com que todas as coisas
concorram para o bem (Rm 8.28), não há circunstância nem even­
tualidade que não mereçam a reação deste aroma suave levantado
até o trono de Deus (cf. Hb 13.15 e F p 3.18).
Habite ricamente em vós a palavra de Cristo (v. 16). Esta palavra
do Senhor deve ser aquela mensagem que ele proclamou e viveu e
que encontramos em todo o Novo Testamento, sendo Cristo o seu
autor, por intermédio dos seus apóstolos e profetas. D ar às instruções
de Cristo, nosso Rei, um rico acolhimento em nossos corações indica
que a mente e a vontade estão concentradas no intuito de saber e
praticar realmente o que ele quer que sejamos e façamos. Podemos
comparar a expressão “habite Cristo nos vossos corações” (Ef 5.17)
com o perm itir que ele seja dono da casa, sem restrições. Mui valiosa
é a comparação deste versículo com Efésios 5.18, 19, onde Paulo
exorta seus leitores a perm itirem que o Espírito os encha. Aqui,
neste trecho paralelo, são encorajados a dar uma rica aceitação à
palavra de Cristo. Concluímos que o enchimento do Espírito corres­
ponde a uma disposição para obedecer aos mandamentos de Cristo.
Tal desejo e capacidade não se explicam senão pela operação graciosa
de Deus no coração convertido Qo 14.23).
Em toda a sabedoria. A vida espiritual bem sucedida exige
instrução e aconselham ento m útuos feitos com sabedoria. As
ocasiões que Paulo tinha em mente eram provavelmente os cultos
que a igreja prim itiva realizava em casas particulares (veja 4.15).
Assim o número de crentes reunidos não podia ser grande, dando
oportunidade à instrução dos “presbíteros” (também chamados
pastores ou bispos no Novo Testamento) e a exortações m útuas
entre os assistentes. “Em toda a sabedoria” sugere que a reunião
não deve descambar em críticas e exortação de acerbo cunho parti­
cular, mas deve ser totalmente controlada pela sabedoria de Deus,
que se caraterizaria por m uita hum ildade e respeito (veja ICo
2.2-5). O grego, traduzido por aconselhai-vos, hteralm ente significa
“admoestai-vos” ou “adverti-vos”. Há perigos a serem evitados
pelo conselho dos mais experimentados. Deveria haver liberdade
para falar.
Louvor. Junto com a edificação m útua, a igreja deve dar muita
atenção ao culto. A principal forma de adoração seria por inter­
médio da música, salmos, hinos e cânticos espirituais, entoados
para louvar a Deus. Os salmos provavelmente eram os mesmos
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

que encontramos em nossa Bíblia, veículo maravilhoso dos senti­


mentos de louvor e adoração, durante os últimos três mil anos.
Hinos: eram peças compostas em forma prática, que exaltavam a
Cristo (exemplo: Fp 2.6-11). Cânticos espirituais talvez fossem cantos
ou coros compostos nas reuniões, especialmente sob a inspiração
do Espírito (à semelhança da prática de falar línguas e profetizar
— veja ICo 14). O utra possibilidade de interpretação desta frase
seria que toda adoração precisa ser em espírito (Jo 4.23, 24) ou
oferecida pelo E spírito a D eus (Fp 3.3). A m úsica vocalizada
deve ser acom panhada pela m úsica do coração (v. 16b). Freqüen-
tem ente o que se canta não tem eco num espírito de louvor in­
terno, transform ando, assim, a adoração em form alism o e não
um a realidade (cf. ICo 1.4.15). A frase “com, gratidão” (v. 16b)
representa as palavras “en te c h a r i t i “em ” ou “com graça”, suge­
rindo o sentir-se aceito pela graça quando entram os na presença
de D eus para adorá-lo.
Em terceiro lugar a exortação do v. 17 nos dá o segredo de
uma vida diária bem sucedida. Toda ação no m undo e toda palavra
falada devem ter como motivação a glorificação de Jesus Cristo
(veja ICo 10.31). Em nome de quer dizer com o endosso e interesse
particular do indivíduo nomeado. O Senhor, então, deve controlar
tão especificamente tudo que fazemos que seria correto afirm ar
que é Jesus que está agindo através de seus agentes.
Dando graças por ele a Deus Pai revela a necessidade de oferecer
a Deus nossa vida secular, nosso trabalho, nossos prazeres e meios
de entretenim ento, uma vez apoiados pela vontade de Cristo, como
nosso sacrifício de gratidão. No período do Antigo Testamento, os
israelitas tinham a obrigação de oferecer sacrifícios compostos dos
frutos do seu trabalho, como sinal, em ação de graças, de que
tudo vinha das mãos generosas de Deus. Por que não pararmos
um instante, no fim de cada dia, para reconhecer o merecimento
total da parte de Deus, dos afazeres do dia, ao mesmo tempo
pedindo perdão pelos deslizes e pecados cometidos?

0 senhorio de Cristo no lar e no serviço (3 .18 -4 .6 )


18Esposas, sede submissas aos próprios m aridos,
como convém no Senhor. 19M aridos, am ai a vossas
esposas, e não as trateis com am argura. 20Filhos, em
tudo obedecei a vossos pais; pois fazê-lo é grato diante

- 274
EPÍSTOLA DE PAULO AOS C O LO SS EN SE S

do Senhor. 21Pais, não irriteis os vossos filhos, para que


não fiquem desanimados. 22Servos, obedecei em tudo
aos vossos senhores segundo a carne, não servindo
apenas sob vigilância, visando tão só agradar homens,
mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor. 23Tudo
quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o
Senhor, e não para homens, 24cientes de que recebereis
do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Se­
nhor, é que estais servindo; 25pois aquele que faz injustiça
recebera em troco a injustiça feita; e nisto não há acepção
de pessoas.
4 'Senhores, tratai aos servos com justiça e com
eqüidade, certos de que também vós tendes Senhor no
céu. 2Perseverai na oração, vigiando com ações de graça.
3Suplicai, ao mesmo tempo, também por nós para que
Deus nos abra porta à palavra, a fim de falarmos do
mistério de Cristo, pelo qual também estou algemado;
4para que eu o manifeste, como devo fazer. 5Portai-vos
com sabedoria para com os que são de fora; aproveitai as
oportunidades. 6A vossa palavra seja sempre agradável,
temperada com sal, para saberdes como deveis responder
a cada um.

Acreditam os estudiosos que as exortações dirigidas particu­


larm ente aos membros da família, abrangendo os escravos e servos,
faziam parte da instrução particularm ente essencial aos novos
convertidos do paganismo. Para nós, hoje, não é tão fácil imaginar
o m arcante contraste entre a vida transformada dos seguidores do
Senhor Jesus e a que se levava norm alm ente em um lar gentio.
Tudo indica que os m estres das prim itivas comunidades cristãs
relem bravam constantem ente aos seus ouvintes a im portância
de Cristo ser o Senhor do lar. (Compare E f 5.22-6.9; lPe 2.13-
3.7; Tg 2.1-10; lT m 2.8ss; 6.1ss, e os escritos dos prim eiros pais
da igreja: Barnabé, lC lem ente, Policarpo e tam bém o “D ida-
quê”.) É sobretudo notável a reciprocidade das responsabilidades
das pessoas relacionadas, pois em Cristo todo indivíduo se tornou
precioso, e não apenas valorizado segundo a classe social ou
“status” adquirido.

-2 7 5
E P ÍS T O LA S DA P RISÃO

0 dever das esposas


As mulheres devem ser submissas aos seus maridos. Em Efésios
5.21 Paulo diz que todos os cristãos devem se submeter m utua­
mente. Trata-se de uma atitude de respeito e valorização do marido,
que redunda num desejo natural de servi-lo, apoiá-lo e obedecê-lo.
Esta conduta da esposa tem uma limitação: deve agir corretamente,
“como convém no Senhor” (v. 18b). Acima da autoridade do marido
está a soberania do Senhor. Por isso a esposa deve procurar fazer
a vontade do marido quando esta coincidir com a vontade de Deus.
O fato de ser uma esposa submissa mostrará a todos que ela quer
acompanhar o marido, ao invés de controlá-lo ou empurrá-lo. D ar
a ele o maior apoio em tudo que for possível, dentro das normas
cristãs, é a declarada vontade de Deus.

0 dever dos maridos


A obrigação universal do m arido é am ar a sua esposa com o
amor “agapê” ! (veja página 73). O padrão deste am or está claro
em Efésios 5.25: “como Cristo amou a igreja e se entregou por
ela”. Não as trateis com amargura refere-se à im paciência e aos
resmungos que criam tensão no relacionam ento, gerando logo o
desânimo. O esposo, estim ulado pelo Espírito do Senhor, deve
deixar bem claro que deseja o bem da sua m ulher e por isso a
honra e valoriza.
Nestas duas exortações, dirigidas ao m arido e à m ulher,
encontramos o segredo completo de um lar feliz, de onde sairão
filhos também felizes e equilibrados.

0 dever dos filhes


Os filhos m enores e os que ainda m oram com os pais devem
obedecê-los em tudo. De uma certa forma, os pais estão na posição
de Deus diante dos filhos. Se estes aprenderem a cum prir habitual­
mente as ordens daqueles, ser-lhes-á muito mais natural observar
com diligência os m andamentos do Senhor. Assim, como no caso
das esposas, também os filhos devem fazer o desejo dos pais, caso
não contrarie a vontade revelada de Deus. A alegria do Senhor por
tal comportamento se reflete na expressão “fazê-lo é grato” ou,
literalmente, “agrada bem a D eus” (cf. 1.10).

- 276 -
EPÍSTOLA DE PAULO AOS COLOSSENSES

0 dever dos pais


Há, nesta exortação aos pais, uma advertência m uito significativa:
os filhos não devem ser irritados a ponto de ficarem desanimados
(em grego, anthumosin: “sem espírito e sem motivação”) ou mesmo
com ódio dos pais. Os psicólogos modernos têm advertido enfa­
ticamente os pais quanto às conseqüências que pode gerar na vida
futura dos filhos a m aneira como foram criados. Muitos pais, oü
por indiferença ou por receio de disciplinar os filhos, não os ensi­
nam a obedecer. E o resultado disto é a praga de delinqüentes,
“play-boys” e, não raro, criminosos. Por outro lado, há pais que
são tão rígidos, dogmáticos e severos na disciplina que os filhos
são condenados a conviver com um espírito cheio de apatia e de
revolta. O caminho cristão é disciplinar com amor e perdão, se­
guindo o modelo de Deus (Ef 6.4b; Hb 12.4-12).

0 dever des servos


A palavra que Paulo dirigiu aos escravos (<douloi, no grego) mostra
que Deus nunca tencionou provocar um a revolução social, mas
espiritual. Num m undo como o de Roma e seus domínios, a maioria
da população era composta de escravos, gente sem qualquer direito
ou recurso. A mensagem inspirada lhes recomendava: “Obedecei
em tudo aos vossos senhores” (v. 22), pois agindo assim estariam
servindo ao seu verdadeiro Senhor, Jesus Cristo (v. 23).
Paulo usa, aqui, dois padrões de avaliação do trabalho: no
nível hum ano (“vossos senhores segundo a carne”), o serviço pres­
tado pelo empregado deve agradar ao empregador; mas, acima de
tudo, deve ser feito para agradara Deus. Fica subentendido que o
serviço feito sem interesse real, apenas por aparência (ophthalma-
doulia, “serviço para ser visto”) ou para agradar momentaneamente
ao patrão, é desaconselhado.
M uito pelo contrário, o escravo ou empregado cristão traba­
lhará com singeleza de coração, sem fingimento (veja lPe 1.22),
mas plenamente consciente do fato de que o Senhor está presenciando
todo o seu serviço. Esta forma de servir, “temendo ao Senhor” (v.
22b), revela que todo empregado cristão deve se considerar servo de
Deus, acima do relacionamento que tem com o seu chefe. Embora o
conceito de muitos seja que apenas os pastores, missionários e “obrei­
ros” vocacionados estão servindo ao Senhor, a verdade .não é bem

- 277 -
epísto las da prisão

esta. Toda vocação e qualquer serviço que se puder fazer para o Senhor
deve ser feito de coração (v. 23), pois este é o cumprimento da respon­
sabilidade de todo filho de Deus, a de colocar sobre o altar do Senhor
a sua vida inteira. Já que o serviço foi feito, não “para homens” (v.
23b) mas para o Senhor, ele galardoará tudo que for colocado aos
seus pés. Assim se evidenciará a verdade de que “a Cristo, o Se­
nhor, é que estais servindo” (3.24b).
O obreiro ou trabalhador deve estar consciente de que quem
realmente paga o seu salário (em grego antapodosin, “recompensa”)
não é o seu patrão, mas o Senhor. Evidentem ente, esse “paga­
m ento” será futuro, na volta de Jesus Cristo. Essa recompensa
será “a herança” (v. 24), incluindo o direito de gozar plenam ente
os benefícios da vida celestial. E provável que essa referência à
herança tenha como pano de fundo a lem brança dos israelitas
que trabalharam sob a opressão egípcia até a sua libertação, que
resultou finalm ente no recebim ento da herança, a Terra Pro­
m etida.
Por outro lado, Deus não deixará de pagar com o merecido
juízo os pecados cometidos contra os indefesos escravos e traba­
lhadores que, através da história, têm sofrido os condenáveis frutos
da injustiça hum ana. Aquele que criou todos os hom ens com
direitos iguais aplicará a sua justiça a todos, sem acepção.
Vimos, assim, os motivos cristãos para servir bem e evitar
fazer um trabalho mal feito ou injusto. Deus equilibrará tudo no
dia em que finalmente se prestarão e pagarão todas as contas.

Os deveres dos senhores cristãos


F in alm en te chegam os à resp o n sab ilid ad e dos senhores dos
escravos, ou dos empregadores. No primeiro século não se pensava
em deveres dos senhores, porque os escravos não gozavam de
qualquer direito. Mas quando veio o cristianismo, afirmando que
os “donos” também tinham um Senhor que um dia exigiria deles
a prestação de contas, a visão m udou completamente. O maior
dentre os homens não passa de um mordomo, adm inistrando o
que não lhe pertence. Daí a solene advertência: Tratai aos servos
(escravos) com justiça e com eqüidade (4.1). Justiça quer dizer: respeitar
integralmente os iméritos do escravo ou empregado, que tem, garan­
tido pelo Criador, o direito de receber uma justa porcentagem do
fruto do seu trabalho ( veja ICo 9.7-9; ITm 5.18).
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

M ais ainda, o em pregador ou chefe deve tratar seus em ­


pregados com eqüidade. Trata-se da obrigação de garantia da maior
igualdade possível entre todos os que fazem o mesmo serviço ou
desem penham uma função de igual responsabilidade. Não é da
vontade de Deus que os chefes tratem seus subordinados corri
acepção de pessoas, porque o próprio D eus usará de um único
padrão para julgar e galardoar os seus servos.

Os deveres de Iodos os cristãos


Na verdade, o versículo anterior (4.1) marca o fim das exortações
especificamente relacionadas com a vida particular e profissional.
Esta pequena série de m andamentos que segue, e para a qual todos
devem atentar, abrange dois campos de ação: a oração e a vida no
meio de incrédulos.

instruções a respeito da oração


Perseverai vem da palavra grega cujo significado é “continuar”,
“apegar-se bem de perto”, “m anter constantem ente”. A oração deve
ter um lugar central na nossa relação com o Senhor. “Orar sem
c essar” (lT s 5.17) nos exorta, no m esm o sen tid o , a m an te r
constantemente o aparelho telefônico celestial no ouvido e pertinho
da boca, nunca “desligando” a nossa conversa ou o nosso pensa­
m ento da presença divina.
A oração é o meio pelo qual vigiamos, opondo-nos a toda
cilada ou tentação satânica que nos possa atingir pela astúcia. A
vigilância é o contrário de um espírito sonolento, letárgico, desligado
dos problemas e perigos que nos cercam. Lembremos que Jesus,
repetidas vezes, exortou os seus discípulos a vigiarem para que não
caíssem na tentação (Mt 26.40, 41; 25.13 etc.). A proteção mais
segura contra o diabo é a oração feita com “ações de graça” (4.2b).
Cinco vezes o apóstolo chama a atenção para a importância que
deve ter a gratidão na vida dos remidos (1.12; 2.7; 3.15, 17; 4.2).
Suplicai, ao mesmo tempo, também por nós: esta exortação
ressalta a im portância da oração específica para o avanço do
evangelho. Notemos que Paulo pede aos colossenses que orem em
favor de uma porta aberta à Palavra. Deus tem poder para abrir
um a brecha nas defesas do “homem forte” (veja M t 12.29; Lc
1.21, 22); espera, contudo, as orações dos justos para demonstrar

- 279 -
e p í s t o l a s da p r i s ã o

o seu poder. A oração é a chave que abre a porta grande e oportuna


(ICo 16.9) para divulgar o “m istério de Cristo” (veja 1.26, 27),
que é a pregação da salvação pela submissão ao senhorio de Cristo,
entre os gentios. Foi justamente por causa dessa proclamação de
Jesus Cristo como Salvador e Senhor que Paulo teve que escrever
esta epístola em uma prisão (4.3).
Pelo poder da oração Paulo espera desvendar e revelar quem
é Cristo, na realidade. Manifesto traduza mesma palavra que muitas
vezes fala da manifestação de Jesus Cristo na sua segunda vinda.
Quem escutasse a pregação de Paulo deveria sentir a realidade do
Cristo vivo e presente (ainda que invisível) e não duvidaria da sua
“manifestação”. Isto ocorrería em resposta à oração, da parte dos
colossenses, como súplica urgente (cf. ICo 14.24, 25) em favor de
Paulo. Hoje em dia, o que mais falta aos pregadores e evangelistas
é o apoio das súplicas insistentes dos justos.

Todo cristão deve viver sabiamente


entre os incrédulos
Jesus encorajou os seus discípulos a se portarem com a astúcia da
serpente (Mt 10.16). Não deve haver práticas de extremismo que
poderíam ser interpretadas pelos mundanos como tolice, separando
desnecessariamente os cristãos destes últimos. Se isso acontecer,
como pode avançar a causa do Senhor na evangelização? Nada de
barreiras levantadas para os não crentes, além das citadas pelo
próprio evangelho. Veja em ITessalonicenses 4.11, 12 como é
importante que o cristão viva tranqüilam ente, trabalhe e se porte
com dignidade “para com os de fora”, ganhando o respeito sempre
que possível.
Em seguida, os filhos de Deus são aconselhados a tratar o
tempo como algo de muito valor e, por isso, bem aproveitado e
não desperdiçado (v. 5). No original, aproveitar (exagorazontes)
sugere um objeto que pode ser comprado (com investimento de
tempo) e beneficiado, para render lucros durante toda a eternidade.
Oportunidades quer dizer tempo marcado em “m inutos”, “horas” e
“dias”, dando abertura para produzir este lucro eterno, trans­
formando “os dias maus” em tempo beneficiado para a glória de
Deus (cf. Ef. 5.16).
Além de sábio no com portam ento e de aproveitar bem o
tempo, o cristão deve ter, sempre que possível, um falar agradável
EPÍS TOL A DE PAULO AOS C OL OSS ENSE S

aos não-cristãos. Literalm ente Paulo exortou seus leitores a fazerem


uso da palavra “em graça” ou “com graça”. O significado é de
uma linguagem atraente, que provoque nos descrentes uma reação
favorável. Foi essa caraterística no falar de Jesus que agradou aos
seus ouvintes (Lc 4.22). Semelhantemente, os primeiros cristãos
da igreja de Jerusalém também falavam com graça (literalmente,
no grego), de modo a suscitar interesse na doutrina que haviam
abraçado (At 2.47; 4.33).
Temperada com sal acrescenta a figura do sabor do sal, que
agrada o paladar quando combinado com a comida na quantidade
certa. Possivelmente quer dizer que a conversa com os incrédulos
nada lucra com a monotonia, falta de hum or ou aquela seriedade
que revolta as pessoas que não pensam na eternidade. Assim como
o sal desperta o apetite de quem come, assim também as palavras
do cristão devem suscitar interesse, sendo atraentes e até enge­
nhosas e argutas, para que também o descrente seja atraído pela
mensagem do amor salvador.
A referência ao sal pode ser também entendida no sentido
de salubridade. Os cristãos devem evitar qualquer contribuição a
conversas que não sejam benéficas e sadias, mostrando-se sempre
dispostos a com partilhar boas idéias. Enfim , diz o apóstolo, o
cristão precisa estar preparado para responder e contribuir como
deve, por ser ele embaixador, diplomata de Cristo em um m undo
inimigo e hostil (cf. lPe 3.15).

Vidas sob o senhorio de Cristo (4 .7-18 )


7Quanto à m inha situação, Tíquico, irmão amado,
e fiel m inistro, e conservo do Senhor, de tudo vos infor­
mará. 8Eu vo-lo envio com o expresso propósito de vos
dar conhecim ento da nossa situação, e de alentar os
vossos corações. 9Em sua companhia vos envio Onésimo,
o fiel e amado irm ão, que é do vosso meio. Eles vos
farão saber tudo o que por aqui ocorre. 10Saúda-vos Aris-
tarco, prisioneiro comigo, e Marco, prim o de Barnabé
(sobre quem recebestes instruções; se ele for ter convosco,
acolhei-o), ue Jesus, conhecido por Justo, os quais são
os únicos da circuncisão que cooperam pessoalmente
comigo pelo reino de Deus. Eles têm sido o meu leni-
tivo. ,2Saúda-vos Epafras que é dentre vós, servo de
E P ÍS T O L A S DA P R IS Ã O

Cristo Jesus, o qual se esforça sobremaneira, continua­


m ente, por vós, nas orações, para que vos conserveis
perfeitos e plenam ente convictos em toda a vontade de
Deus. 13E dele dou testem unho de que m uito se preocupa
por vós, pelos de L aodicéia e pelos de H ierápolis.
14Saúda-vos Lucas, o médico amado, e também Demas.
l5Saudai aos irmãos de Laodicéia, e a Ninfa e à igreja que
ela hospeda em sua casa. 16E, uma vez lida esta epístola
perante vós, providenciai por que seja também lida na
igreja dos laodicenses; e a dos de Laodicéia lede-a igual­
mente perante vós. 17Também dizei a Arquipo: Atenta
para o m in istério que recebeste no Senhor, para o
cum prires. I8A saudação é de próprio punho: Paulo.
Lembrai-vos das m inhas algemas. A graça seja convosco.

Chegam os aqui à últim a parte do nosso estudo de Co-


lossenses. Paulo, no fim da sua epístola, faz várias referências
pessoais, transm ite saudações e dá suas últim as instruções. Porém
o que basicamente devemos considerar, neste texto, são aquelas
palavras ditas em testem unho de cristãos seus com panheiros,
verificando se elas encontram eco em nossas vidas.

Tíquico
Este companheiro de Paulo era dotado de preciosas qualidades.
Era irmão amado, sem dúvida por causa do seu interesse pelo
apóstolo e por seus companheiros. Evidentemente foi o portador,
junto com Onésimo, desta epístola e também das epístolas aos
E fésios e a F ilem om . N ão podem os a firm a r se T íq u ic o se
prontificou a fazer esse serviço por amor ao apóstolo ou porque
viajaria para Efeso e Colossos de qualquer forma. E suficiente
lembrarmos quanto sacrifício exigia uma viagem de Roma até a
Ásia. T íquico foi tam bém denom inado fiel ministro, porque
desempenhava o seu serviço (em grego, diakonia) com fidelidade.
Comparemos com a descrição de Epafras em 1.7.
Conservo vem da palavra grega “sundoulos” (escravo junto com),
evidência de que Paulo o reconhecia como colega sob o jugo de
Cristo no serviço de Deus.
Os versículos 7 e 8 m ostram até que ponto a situação do
primeiro século dependia de comunicações verbais. A comunicação
e p ís t o l a DE PAULO AOS COLO SS ENSE S

por epístola era bastante rara e, por isso mesmo, usada apenas
para transm itir uma mensagem de grande importância. As infor­
mações do dia-a-dia eram comunicadas oralmente. Atos 28 mostra
que a vida de Paulo como preso, durante os dois anos em que
aguardava uma decisão de César, não era tão difícil. Por isso devia
alentar os corações dos irmãos a quem se destinava esta epístola (v.
8), isto é, consolá-los.

Onésimo
Este filho espiritual de Paulo (Fm 10), dantes um escravo foragido,
era agora um homem regenerado, tendo voltado para o seu antigo
patrão, Filem om , m em bro da igreja de Colossos. Aqui ele é
denominado fiel e amado irmão, sinal da alta posição que Cristo
lhe dera (cf. Tg 1.9). De acordo com a lei romana, Filemom podería
aplicar a Onésimo a penalidade máxima, por ter fugido e roubado
do seu dono. M as Paulo não hesitou em m andá-lo de volta,
garantindo, com confiança: “Ele, antes, te foi inútil; atualmente,
porém, é útil, a ti e a m im ” (Fm 11).

Aristarco, iarcss 8 Jesus


Aristarco, membro da igreja de Tessalônica, fora um dos sete irmãos
que acompanharam Paulo na viagem a Jerusalém, levando a coleta
levantada na Grécia para os irmãos necessitados da Judéia (At
20.4). Pelo que tudo indica, não voltou mais à sua terra, tendo
sido preso. Assim ficou prisioneiro (literalm ente, “de guerra”)
comigo, diz Paulo.
Marcos, autor do segundo evangelho, era primo de Barnabé.
Acompanhara Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária até
Perge, como catequista e ajudante dos missionários; mas, tendo
desanim ado, tinha então voltado a Jerusalém (At 13.13). Paulo
lembra os colossenses de que já receberam instruções a respeito
desse irmão, que provavelmente ainda iria visitá-los. Mas agora
toda a impaciência e rancor que Paulo sentira a respeito de Marcos
já desapareceram, merecendo ele os elogios que Paulo mais tarde
escreveu: “... traze-o, pois me é útil para o ministério” (2Tm 4.11).
JesusJusto, mais um “irmão da circuncisão” (judeu convertido)
que, junto com Aristarco e Marcos, cooperava particularmente no
ministério de Paulo. Atos 28.30, 31 revela que, durante o período

283 -
E P Í S T O L A S DA PR1SÁO

em que escrevia esta epístola, Paulo gozava da liberdade de receber


visitas, sem restrições, e tam bém de pregar o reino de Deus.
Estes três foram um “lenitivo” para o velho apóstolo. A
expressão têm sido indica, no original, que eles, num a ocasião
específica, agiram com Paulo de um modo confortador (parêgoria,
“lenitivo”, “conforto”).

Epafras (veja 1.7) era outro membro da igreja colossense que não
estava voltando para a Ásia na ocasião; por isso Paulo inclui a
sua saudação. Suas qualidades eram notáveis. Paulo o chama
literalm ente de escravo de Cristo Jesus, indicando a sua dedicação e
obediência a Cristo (cf. Rm 1.1). Era também grande homem de
oração: se esforça (em grego agonizomenos) continuamente por vós, nas
orações. Já notam os a palavra esforço usada duas vezes para
descrever as orações de Paulo em favor dos colossenses nessa
conjuntura perigosa da sua vida eclesiástica (1.29; 2.1).
Epafras era um homem de fé e esperança. Não deixava de
suplicar a Deus pelos crentes de Colossos, pedindo que se m an­
tivessem em pé, maduros (ou perfeitos) e plenam ente convencidos
da verdade do evangelho como sendo a plena vontade revelada de
D eus. Que quer dizer tudo isto? Sim plesm ente que Epafras,
fundador da igreja de Colossos, não se conformava com a erosão
da fé dos seus filhos espirituais. O amor de Deus no seu coração o
levara a agonizar nas orações para que os colossenses não perdessem
a tão grande salvação que o Senhor lhes outorgara.
Não devemos esquecer a relação entre a. preocupação (literal­
mente, “luta”) e a oração (v. 13a). Quem não se envolve na vida
dos outros, tal como os pais se preocupam pelos filhos, pouca
ansiedade sentirá. Não era o caso de Epafras, nem de Paulo. As
lutas para form ar o corpo de Cristo nas três igrejas do vale do
Lico forçosamente levaram Epafras a se esforçar na oração, tal
como o fizera na luta para ganhar e instruir os cristãos neófitos.

O médico amado (veja 2Tm 4.11 e Fm 24), autor do livro de Atos


e do evangelho que tem o seu nome, era também companheiro de
Paulo em Roma. Conforme Atos 27, fizeram juntos a viagem de
EPÍS TOL A DE PAUL O AOS C O LO SS EN SE S

Cesaréia a Roma, quando sofreram o naufrágio. É provável que


Lucas tenha ido acom panhar Paulo em virtude da enfermidade
m encionada em Gálatas 4.13, 14 (cf. At 16.10) e, portanto, na
qualidade de profissional. Paulo o chama de amado, assim como o
fizera a Tíquico (4.7) e a Epafras (1.7); com isso talvez se refira a
um serviço sacrificial desempenhado por ele em favor do apóstolo
e sua missão.
D em as está in clu íd o na lista de cooperadores (sunergoi,
“colaborador”) junto com Marcos, Aristarco e Lucas, em Filemom
24. O títu lo parece in d ic a r que ele servia como evangelista.
Infelizmente, em 2Timóteo 4.10 são dadas, a seu respeito, infor­
mações bem diferentes, isto uns seis anos depois desta epístola:
“Demas, tendo amado este século, me abandonou”. Deixando o
ministério que exercera junto ao venerado apóstolo, foi buscar os
valores efêmeros deste século! O mais triste ainda é que milhares de
outros obreiros, desde Paulo até nossos dias, têm seguido os últimos
passos de Demas! E é nosso dever interceder continuamente diante
de Deus pelos que o servem em qualquer função, para que não
perm itam que o amor a este século substitua o amor de Deus.

Outras saudações e recomendações


Laodicéia (veja Ap 3.14), Hierápolis e Colossos eram cidades do
vale do Lico e distavam poucos quilômetros um a da outra. Por
isso, as saudações m andadas para Colossos deveríam abranger
também Laodicéia (v. 15). Particularm ente, Paulo desejava saudar
também os cristãos que se reuniam na casa de Ninfa (v. 15b).
Só bem mais tarde é que as igrejas construiríam templos.
Antes disso, reuniam -se nas casas mais espaçosas dos próprios
irmãos (veja Rm 16.23). Mesmo que houvesse várias congregações
num a mesma cidade (em Efeso, Antioquia da Síria ou em Roma),
não se usava o plural para descrevê-las. Havia uma só igreja em
cada localidade, sendo que todos os membros eram irmãos, uma
só família cristã. Portanto, não se pode determ inar se havia, em
Colossos ou em Laodicéia, uma ou mais congregações. Todos os
cristãos, de ambas as cidades, deveríam ouvir o conteúdo desta
epístola (v. 16), bem como o de outra, enviada por Paulo aos laodi-
censes. Segundo alguns estudiosos, esta últim a talvez tenha sido
a Epístola aos Efésios. Colossenses era, como o livro do Apocalipse,
uma circular, escrita para ser lida e ouvida pelo maior número de

- 285 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

cristãos da Ásia, cuja capital era Éfeso. Portanto, era de esperar


que Paulo desejasse que também os laodicenses conhecessem o
conteúdo da epístola.

Uma paSawra de admeestação para Arquipo


O último nome a ser citado é Arquipo (v. 17). Chamado por Paulo
de companheiro de lutas ou soldado colega (Fm 2), provavelmente era
filho de Filemom e líder na igreja de Colossos. Atenta para o ministério
que recebeste no Senhor: esta exortação parece indicar que Arquipo
bem pouco se preocupava com o falso ensino que vinha ameaçando
a igreja. Paulo, conseqüentem ente, lhe chama a atenção para o
lado episcopal (termo que vem do grego episcopos, “olhar com
cuidado especial”, “cuidar para não perder”) do trabalho de Deus
(veja At 20.28-31). Quantas vezes os ataques perigosos do inimigo
atingem as pessoas desprecavidas e os pastores nem se preocupam!
Paulo se preocupava; Epafras, também. Mas Arquipo mostrava-se
indiferente. Pedro e os discípulos que acompanharam Jesus até o
Getsêmani manifestaram despreocupação frente à terrível ameaça
de Satanás e se portaram mal na hora crítica. Oxalá que nós, que
servimos em posições de liderança, possamos levar bem a sério a
necessidade de ficarmos atentos para o ministério, para o cumprir!

Saudação! finaS de Paul®


A epístola é assinada pelo próprio Paulo, o que confirma a sua
autenticidade. Evidentem ente, havia pessoas que chegavam ao
cúmulo de assinar falsamente uma epístola com o nome de uma
au toridade como Paulo, m andando-a a um a igreja a fim de
enganá-la (veja 2Ts 2.2). Este artifício os colossenses não precisa­
vam temer, quanto a esta epístola.
O apóstolo pede aos leitores que se lembrem da sua prisão
(algemas). Ele parece estar impedido de receber qualquer auxilio
que lhe poderíam prestar, preso que estava por causa de Jesus
Cristo.
E, finalmente, a inspirada epístola é concluída com est%s
palavras sim ples e profundam ente significativas: a graça seja
convosco. Que esta mesma mensagem continue ecoando em nosso
coração!

- 286 -
Introdução

A ocasião da epístola
A vida do apóstolo Paulo foi marcada por uma série de situações
difíceis. Pouco tempo depois da sua conversão a Cristo na estrada
para Damasco, o zeloso fariseu que perseguira os cristãos fugiu
dos judeus que tramavam a sua morte (At 9.23, 29). Durante os
anos seguintes, como ele afirmou mais tarde em 2Coríntios 11.23-
27, ele foi açoitado terrivelmente, surrado com varas e chicotes.
Várias vezes ele havia enfrentado a morte em terra e m ar e experi­
mentado fome, sede, frio e nudez.
D urante um dos períodos freqüentes em que estava preso,
Paulo escreveu a Filemom e à igreja que se reunia em sua casa, a
respeito de uma situação delicada. Um escravo de nome Onésimo
fugira de Filemom, seu dono. Paulo fizera amizade com Onésimo e
havia pouco tempo o levara ao Senhor. As autoridades romanas
não viam com bons olhos quem ajudasse um fugitivo. O envol­
vimento de Paulo com Onésimo poderia representar um obstáculo
à sua própria soltura da prisão. Ele podia até ser punido pela lei
romana e responsabilizado pelo trabalho que o escravo deixara de
fazer.

:89 -
EPÍSTOLAS DA P R I S Ã O

Além disso, Onésimo estava em situação perigosa. Ofereciam-


se recompensas para quem fornecesse informações que levassem à
captura de um escravo fugitivo. Seu dono podia puni-lo com
brutalidade, até crucificá-lo, sem responder por suas ações a quem
quer que fosse. Escravos não eram considerados pessoas, mas
propriedades sem direito algum.
Filemom se convertera por intermédio do ministério de Paulo
(v. 19). A igreja em Colossos se reunia na casa dele. Na mente de
Paulo não há dúvidas de que Onésimo tem de voltar ao seu dono,
Filemom. Ele espera que este não o trate com crueldade. Como
Paulo podería ajudar Filemom a vestir-se do evangelho do perdão
e da reconciliação pela m aneira como recebesse Onésimo?

0 local de composição e a data


Alguns estudiosos dizem que Paulo estava na prisão em Efeso (em
meados da década de 50 d.C.) quando escreveu a epístola. Outros
afirm am que ele a escreveu durante sua prisão em Roma, no
começo da década de 60. As duas cidades eram grandes o suficiente
para que Onésimo pudesse desaparecer entre os m arginalizados
anônim os. A proxim idade de Efeso com Colossos facilitava a
comunicação entre as duas cidades. Em últim a análise, o pano de
fundo da E p ísto la de P aulo aos C olossenses d e te rm in a as
informações em Filem om (como se vê na comparação dos nomes
com Colossenses 4.7-17). D eixando os estudiosos entregues à
polêmica, nos concentrarem os na mensagem desta epístola de
Paulo, pois ela não depende de solução para essas opiniões
conflitantes.

Um retrato de alguém que pertence a Deus


Paulo escreveu a Filem om por causa da sua preocupação com
Onésimo. Ao fazer isso, no entanto, o apóstolo revela m uito de sua
alma e de seu coração. M uita gente tem pouca sim patia por Paulo
como pessoa, lembrando-se dele como alguém inflexível em seu
relacionamento com os que discordavam da sua teologia. Em sua
epístola a Filemom, porém, temos fartas evidências de que a graça
de Deus refinara o caráter de Paulo com o passar dos anos. Seu
relacionamento com Deus o havia transformado em uma pessoa
carinhosa e amorosa. Esta epístola, escrita quando ele contava com
A E P ÍS T O L A , S EM PR E R E L E V A N T E , DE PAULO A FIL E M O M

mais de sessenta anos de idade, revela-nos um Paulo que é um exem­


plo de homem de Deus maduro.
Paulo não se contentou em apresentar o evangelho de Jesus
Cristo apenas em palavras; ele procurava ser semelhante a Cristo
em sua vida cotidiana. A epístola implica que os líderes cristãos, à
semelhança de Paulo, precisam observar padrões éticos elevados,
dando o exemplo para todos os crentes.
Ao longo desta exposição chamarei a atenção para muitas
características do caráter do apóstolo visíveis em sua epístola a
Filemom. Que possamos ser seus imitadores (Fp 3.17).

Algumas características essenciais de


uma igreja genuína
Esta epístola breve, mas m uito bela, trata de m uito mais do que
um a m era questão pessoal em um a com unidade do passado
longínquo. Ela destaca e ilustra vários pré-requisitos para que uma
igreja atinja “a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13).
Paulo aplica à igreja na casa de Filemom o sentido de seu
ensino de que “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em
Cristo Jesus” (G13.28). Em outras palavras, ele conclama os crentes
a aceitarem Onésimo sem restrições na comunhão dos irmãos em
Cristo.
Ele também estabelece um exemplo de como os cristãos têm
de avaliar de modo crítico costumes e hábitos aceitos pela sociedade,
para rejeitar os que são contrários à Bíblia e viver de acordo com a
vontade de Deus.
Na análise e interpretação a seguir, identificaremos essas e
outras características como sinais de uma igreja verdadeira.

A estrutura literária
Esta breve epístola segue um padrão encontrado no Antigo Testa­
mento e em várias parábolas de Jesus chamado de “paralelismo
invertido” (muitas vezes chamado de modo abrangente de quiasmo,
palavra derivada da letra grega chi, “x”). A prim eira unidade
corresponde à sétima, a segunda à sexta e a terceira à quinta. A
unidade central (v. 15-17) forma o clímax da epístola. Nossos títulos
para essas unidades refletem essa organização:

-291 -
E P ÍS T O L A S DA PRISÃO

A - Saudação inicial (v. 1-3)


B - Filemom, sua fé e seu amor têm anim ado o povo de
Deus (v. 4-7)
C - Quem ama de verdade renuncia aos
seus direitos (v. 8-14)
D - Filemom, ame sem restrições:
receba seu escravo como irmão
amado (v. 15-17)
C ’ - Quem ama de verdade assume as dívidas
do irmão (v. 18-19)
B’ - Filemom, me traga ânimo: faça até mais do que
peço (v. 20-22)
A’ - Saudação final (v. 23-25)

-2 9 2 -
Análise e
Interpretação

A - Saudação inicial (v. 1-3)


'Paulo, prisioneiro de C risto Jesus, e o irmão
T im ó te o , ao am ado F ile m o m , tam b é m nosso
colaborador, 2e 1 à irm ã A fia, e a A rquipo, nosso
companheiro de lutas, e à igreja que está em tua casa,
3graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai,
e do Senhor Jesus Cristo.

1 . A epístola, apesar de escrita a Filemom, amigo de Paulo,


não é um documento particular; é uma epístola aberta, a ser recè-
bida e lida pela igreja que se reúne na casa de Filemom. A maior
parte da epístola está na segunda pessoa do singular, o que levou
alguns escritores a afirm ar que ela não foi escrita para ser lida à
igreja. As saudações inicial e final da epístola, no entanto, englobam

293 -
E P ÍS T O LA S DA PRISÃO

toda a igreja, pois Paulo insere um pedido que diz respeito à igreja
inteira. Além disso, a ênfase de Paulo na unidade do corpo de Cristo,
em todas as suas epístolas, apóia sua participação. Ao incluir essa
epístola no cânon, o Espírito Santo confronta a igreja de todas as
épocas com sua mensagem.
Paulo costuma se apresentar como apóstolo. Esta é a única
epístola em que ele se apresenta como prisioneiro. A semelhança
do escravo Onésimo, ele sabe o que é perder a liberdade; a diferença
é que Paulo é um prisioneiro que perdeu sua liberdade espon­
taneamente, por amor a Jesus Cristo (cf. Fp 3.7-8). Ele irá apelar a
Filemom para que este tome um a decisão difícil por causa do evan­
gelho. Com a simples palavra “prisioneiro” Paulo deixa suben­
tendido que partilha da dor de Onésimo, o escravo. Ele sabe o
dilema que seu pedido representará para Filem om, o senhor do
escravo.
Timóteo é um homem mais jovem que serve a Paulo com
fidelidade, “como filho ao pai” (Fp 2.22). Ele é co-autor da epístola,
pois era alguém que tinha interesse genuíno pelo bem-estar dos outros
(Fp 2.20). A expressão “o irmão Timóteo” volta a atenção para o
relacionamento que eles tinham com os crentes em Colossos. Na
verdade, esta epístola é uma correspondência entre irmãos em Cristo,
membros da família de Deus. Como tais, eles partilham dos interesses
do reino de Deus.
Filem om , ao que parece um gentio rico que morava na
pequena cidade de Colossos, na província da Ásia,1 é o principal
destinatário da epístola. Ele se converteu a Cristo por intermédio
do m inistério de Paulo (v. 19b) e se tornou seu grande amigo e
colaborador. Paulo muitas vezes chama seus colegas de colaboradores
ou cooperadores, para enfatizar o trabalho em equipe pelo evan­
gelho (Rm 16.3, 9, 21; 2Co 8.23; F p 2.25; 4.3; Cl 4.11).

2 . Paulo, sabiamente, dirige essa epístola a outros que terão


uma participação vital na reconciliação com Onésimo. A irmã Afia,
provavelmente esposa de Filemom, tem um interesse especial por
qualquer aspecto que afetasse a casa. Arquipo, nosso companheiro de
lutas (filho do casal?) ocupa um lugar de responsabilidade no
trabalho do Senhor (Cl 4.17). Paulo inclui a igreja que se reúne na
casa de Filemom, pois deseja a unidade desses crentes na questão
1. Província romana da Ásia, na atual Turquia (N. do Editor).

- 234 -
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FI LE M O M

da aceitação de Onésimo como irm ão em Cristo. Residências


particulares eram lugares normalmente usados para as reuniões
dos cristãos (Rm 16.5, 23; ICo 16.19; Cl 4.15). Apenas em meados
do terceiro século as igrejas começaram a possuir edifícios para os
cultos. Mesmo hoje, igrejas nos lares têm um papel importante na
expansão do evangelho em muitos lugares.

3 . A conhecida saudação de Paulo, graça e paz a vós outros,


da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, une a saudação
tipicamente grega, “graça”, à saudação tipicamente hebraica, “paz”.
Cada um dos term os expressa um a parte da im portância da
mensagem do evangelho. Por meio da graça, Deus oferece gra­
tuitam ente o perdão dos pecados e restaura-nos à comunhão com
ele, apesar de merecermos condenação e não seu amor e m ise­
ricórdia.
No sentido da palavra hebraica shalom, paz é bem -estar
completo, em todos os sentidos. Pode-se obtê-la somente pela graça
de Deus, que em Cristo oferece paz à raça hum ana (Rm 5.1), uma
bênção já concedida mas não experim entada em sua plenitude,
pois está à espera da vinda do Senhor Jesus em glória.
Essas dádivas maravilhosas vêm de Deus, nosso Pai, e do
Senhor Jesus Cristo. Além de proporcionar comunhão com Deus,
elas nos perm item ser perdoados e viver em harm onia uns com os
outros. Portanto, Paulo, na verdade, está orando para que a graça
de Deus seja derramada sobre esses crentes. O desafio que ele irá
lançar nesta epístola exige uma resposta que ultrapassa a capacidade
hum ana.

B - Filemom, sua fé e seu amor têm animado


o povo de Deus (v. 4 -7)
4Dou graças ao meu Deus, lembrando-me, sempre,
de ti nas minhas orações, 5estando ciente do teu amor e
da fé que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos,
6para que a comunhão da tua fé se torne eficiente no
pleno conhecimento de todo bem que há em nós, para
com Cristo. 7Pois, irmão, tive grande alegria e conforto
no teu amor, porquanto o coração dos santos tem sido
reanimado por teu intermédio.
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

4-5. Dou graças ao meu Deus, lembrando-me, sempre, de ti nas


minhas orações, ou “Sempre dou graças ao meu Deus quando me lembro
de ti nas minhas orações”. Paulo era um homem de oração e mantinha
um relacionamento muito pessoal com Deus (“meu Deus”). Ele faz
pedidos a Deus em favor de todos os santos, com ações de graças (Cl
1.3-5; Rm 1.8-9; Ef 1.16; Fp 1.3,4; lTs 1.2). Suas orações em favor de
Filemom incluem agradecimentos por três aspectos do caráter cristão
evidentes em seu grande amigo: fé (pistis), amor (agape) e comunhão
(koinonia). Esses termos transmitem conceitos essenciais na epístola e
formam a base para o apelo feito nos versículos 8-20.
Paulo provavelmente soubera por meio de Epafras (Cl 1.7)
da fé que Filemom tinha no Senhor Jesus e do seu amor por todos
os santos. Fé e amor genuínos são inseparáveis, pois a fé no Senhor
Jesus gera e nutre o amor. O objeto da fé de Filemom é o Senhor
Jesus, por meio de quem ele se tornou nova criação (2Co 5.17). Do
mesmo modo, sua fé (ou confiança) nos que são de Deus aumenta
à medida que eles são colocados em novos relacionamentos.
Amor é muito mais que sentimento subjetivo. Nós, cristãos,
devemos amar como Cristo nos amou. E um amor que se estende a
todas as pessoas, mesmo as de quem não gostamos ou nossos inimigos,
e somos chamados a amar “todos os santos” —- isto é, todos os que
são de Deus, não importa a situação social, econômica ou racial.6

6 . Paulo agradece a Deus porque sabe que Filemom.já expres­


sou sua fé em termos concretos. Sua fé, no entanto, ligada ao amor,
não devia permanecer estática. Ao mesmo tempo em que Paulo avança
em direção ao propósito de Deus em sua vida (Fp 3.12-14), ele ora
para que Filemom cresça em amor e partilhe de modo prático com
outros todas as bênçãos que Cristo derrama sobre ele.
“Com partilhar” é um dos principais sentidos do termo grego
koinonia, a terceira palavra-chave na epístola (depois de fé e amor
no versículo 5). A idéia básica é “tom ar parte em algo com alguém”,
e a palavra é traduzida por comunhão, associação, participação e
generosidade, além da idéia de compartilhar. A pessoa com quem
se tem comunhão é chamada de parceiro ou companheiro (v. 17).
Paulo usa esse termo com freqüência em suas epístolas, derivando
dele várias conotações em relação à participação na vida cotidiana
dos crentes uns com os outros. Koinonia caracteriza os crentes que
expressam sua unidade em Cristo.

- 296
A EPÍ STOLA» S E M P R E R E L E V A N T E , DE PAULO A FIL E M O M

Uma das afirmações fundam entais da fé cristã é que, pela


graça de Deus, os crentes são unidos com Cristo em um só corpo
pelo Espírito Santo (Ef 2.16-18; 3.6; 4.4-13). Essa união em Cristo
é dupla: os crentes estão unidos com Cristo, a cabeça da igreja
(Cl 1.18), e uns com os outros. Temos relativa facilidade em aceitar
o conceito da união com Cristo. D ifícil, porém , é aceitar — e
praticar — a unidade com outros crentes no toma-lá-dá-cá do
m undo de cada dia. Mesmo assim, o propósito de Paulo é incen­
tivar esse relacionam ento entre os crentes quando ele fala de “com­
partilhar a fé”.
A base da koinonia não é social mas teológica. Partilhar a
com panhia de outros por causa de sem elhanças de contexto
econômico, educacional ou étnico, de estilo de vida e outras coisas,
é de n atu reza social. A koinonia bíblica transcende todas as
distinções culturais, raciais e de classe. Ela é uma expressão de
relacionamentos que resultam do fato de que somos membros do
corpo de Cristo. O individualismo fica de fora. Os cristãos dão uns
aos outros porque pertencem uns aos outros. E não só pertencemos
uns aos outros, mas estamos realmente ligados uns aos outros em
Cristo.
Koinonia inclui as idéias de “comunhão” e “companheirismo”
no sentido de estar junto com outros no culto ou na oração (At
2.4), mas seu sentido vai além disso. A palavra tem a idéia de
“participar com” e inclui o sentido de “partilhar com” os outros. A
“generosidade” se torna tangível quando encontra expressão no
com partilhar de bens m ateriais (2Co 9.13).
A fé que se torna prática pelo amor na vida de Filemom não
é simplesmente um recurso para enriquecer a própria vida; ela é
dada para ser usufruída junto com os outros. Paulo aqui não está
falando de com partilhar a fé por meio da evangelização. Antes,
Filemom deve expressar sua fé no serviço de amor a todos os santos
(incluindo o recém-convertido apresentado no versículo 10).
Koinonia engloba todos os relacionamentos acima e é um
conceito essencial no apelo de Paulo em favor de Onésimo. Em
essência, Paulo ora (v. 6) por Filemom — e por toda a igreja —
para que sua fé, agindo por meio do amor, se expresse em koinonia,
um espírito comunitário de comunhão expresso em novos relacio­
nam entos dinâmicos de identificação, solidariedade e partilha-
m ento com outros crentes. Deus procura formar dos crentes uma
nova família, composta de indivíduos que amam e partilham. Essas
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

qualidades brotam da graça de Deus que nos uniu em Cristo. São


provas da nossa regeneração.
Ao expressar ativamente sua fé por meio desse amor, Filemom
terá pleno conhecimento de todo bem que há em nós, para com Cristo.
Paulo não está falando de conhecimento teórico. Está pensando em
compreender de m aneira prática as ricas bênçãos que Deus nos
oferece. Isso significa compartilhar nossa vida com os outros, porque
somos um em Cristo. Deus determinou que, em Cristo, “todo o corpo,
bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a
justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a
edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.16). Ao praticarmos a koinonia,
damos prova do fato de que os crentes estão realmente unidos em
Cristo e avançam para atingir “a medida da estatura da plenitude de
Cristo” (Ef 4.13).
Comunhão dessa qualidade apresenta a igreja como alterna­
tiva à sociedade do m undo, onde cada um busca seus próprios
interesses e atropela os dos outros. Consolidada pelo amor a Deus
e pela solidariedade com seus membros, a igreja local se torna uma
amostra da vida no futuro reino de Deus. Isso também é plano
divino.

7 . Filemom havia trazido grande ânimo a Paulo e aos demais


crentes em Colossos, pois dem onstrava sua fé p o r m eio de
expressões concretas de amor, enchendo-lhes o coração de alegria.
Isso também os ajudou nas lutas pelo Senhor (o verbo reanimar era
usado para o um momento de descanso gozado por um exército em
marcha; cf. v. 20). Ao que parece, Filemom também renovava as
forças físicas deles, pois o termo comunhão (koinonia, v. 6) pode
denotar generosidade em coisas m ateriais. Alguns estudiosos
propõem que Filemom era m uito próspero e usava seus bens para
ajudar os demais cristãos, sem má vontade. Há quem reparta apenas
de má vontade; todavia, quem compreende a graça de Deus reparte
com alegria (2Co 9.7).
Paulo está radiante com o que Filemom já havia feito (v. 4,
7), sem porém deixar de pedir maiores evidências da sua fé no
Senhor Jesus (v. 5-6). Tais evidências têm de incluir o amor que
alcança todos os seus irmãos e irmãs em Cristo.
Rejeito toda insinuação de que Paulo está bajulando File­
mom, preparando-o para o seu pedido em favor de Onésimo. Isso

298-
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FI LE M O M

seria indigno do apóstolo Paulo (veja o comentário sobre o v. 21).


Pelo contrário, ao se referir às belas qualidades de Filemom; Paulo
está dizendo: “Filemom, as qualidades e experiências que Deus
lhe concedeu prepararam-no para um papel mais difícil, que vou
lhe m ostrar agora”. Por intermédio das dificuldades do presente,
Deus está nos preparando para as lutas que enfrentaremos enquanto
procuramos atingir os seus propósitos conosco em Cristo Jesus (cf.
Fp 3.12-15).
Até aqui Paulo ainda não mencionou Onésimo; ele o fará no
versículo 10. Nesses poucos versículos, porém, ele já nos pintou um
retrato de Filemom. Conhecer esse homem era motivo de ação de
graças. Sua fé e amor vibrantes pelo Senhor eram tema de conversa
entre os crentes (“estou ciente”, v. 5), pois ele se identificava com o
povo de Deus compartilhando a sua fé. Seu amor era motivo de grande
alegria. Ele tinha o dom espiritual de animar as pessoas (cf. Barnabé,
At 4.36). Por causa das suas belas qualidades, Paulo está dizendo:
“Filemom, sua fé e amor têm animado o povo de Deus”.
De onde Filemom tira essas qualidades exemplares? A fonte
principal, é claro, é a graça de Deus que, por meio do seu Espírito
Santo, procura moldar seu povo à imagem de Cristo. Sem dúvida,
Paulo e sua equipe tinham procurado lhe ensinar “todo o desígnio
de D eus”, como era costume de Paulo (At 20.27; Cl 1.25). Além
desses fatores im portantes, o exemplo do próprio Paulo era de tal
calibre que ele podia dizer: “O que aprendestes, e recebestes, e
ouvistes, e vistes em m im , isso praticai” (Fp 4.9).

C - Quem ama de verdade renuncia


aos seus direitos (v. 8 -14 )
8Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em
Cristo para te ordenar o que convém, 9prefiro, todavia,
solicitar em nome do amor, sendo o que sou, Paulo, o
velho e, agora, até prisioneiro de Cristo Jesus; 10sim,
solicito-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei
entre algemas. "Ele, antes, te foi inútil; atualmente,
porém, é útil, a ti e a mim.
12Eu to envio de volta em pessoa, quero dizer, o
meu próprio coração. 13Eu queria conservá-lo comigo
mesmo para, em teu lugar, me servir nas algemas que

- 2 9 9 -
E P ÍS T O L A S DA P RISÃO

carrego por causa do evangelho; 14nada, porém, quis


fazer sem o teu consentimento, para que a tua bondade
não venha a ser como que por obrigação, mas de livre
vontade.

o . Em Cristo, Paulo está investido de autoridade divina. Ele


podia exigir obediência, como fez em certas ocasiões (2Ts 3.6,12).
Sua prisão comprova a fidelidade ao seu cham ado apostólico.
Homens mais velhos eram escolhidos por sua sabedoria derivada
da experiência. Com base nisso, Paulo tinha o direito de ordenar a
Filemom que cumprisse sua obrigação moral.

9. Em vez de exercer seu direito, porém , Paulo apela a


Filemom com base no amor. Na oração e ação de graças de Paulo
por Filemom (v. 4-7), ele provou como o tinha em elevada estima.
Ele não considera seu colaborador alguém inferior, a ser dominado
ou m anipulado, mas de igual para igual, livre para escolher. Por
isso ele dá a Filemom a oportunidade de se expressar, mesmo que
decida negar o pedido de Paulo. O amor liga esses “amados com­
panheiros” e “colaboradores” (v. 1,17). Depois de interceder junto
a Deus em favor de Filemom, Paulo agora intercede junto a File­
mom em favor de Onésimo. Um apelo como esse é m uito mais
forte que uma ordem, pois vem de um amigo que o ama em favor
de outro que é amado como “meu filho”, “m eu próprio coração”,
“irmão caríssimo, especialmente de m im ” (v. 10, 12, 16).
A postura de Paulo em relação às injustiças sociais marca o
contraste com as atitudes encontradas com freqüência hoje em dia.
Filemom provavelmente seria acusado frontalm ente de ter privado
Onésimo dos seus direitos hum anos e ameaçado de perder os seus.
M uitas pessoas entendem que a sociedade se divide em duas classes:
os que têm direitos e os que foram privados dos seus direitos; os
bons e os maus; os “abastados” e os “desfavorecidos” etc. A luta de
classes caracteriza o ser hum ano e as sociedades que ele forma;
encontram-se distinções de classes entre empregadores e empre­
gados, brancos e negros, ricos e pobres, jovens e velhos, poderosos
e indefesos etc. Cada grupo é hostil ao outro. O pecado, que separou
o ser hum ano de Deus, causa separação entre as pessoas.
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO Ã FIL E M O M

Paulo, contudo, tem um a preocupação pastoral por Filemom,


assim como por Onésimo. Cada um dos dois tem a oportunidade
de viver de acordo com as exigências do amor de Deus, por mais
que isso seja custoso. Paulo orou por isso (v. 6), o caminho que leva
à m aior semelhança com Cristo. O amor, não a obrigação, é o que
deve caracterizar o crente e a igreja Qo 13.35).
Paulo não escreve “eu poderia lhe ordenar” para convencer
Filem om de que na verdade ele não tem a liberdade de recusar o
pedido que o apóstolo fará. Ele também não escreveu quase metade
da epístola para induzir Filem om à obediência. Paulo é transpa­
rente ao exprêssar sua posição. Ele sabe que essa será uma decisão
difícil para Filemom; o próprio Paulo tem desejos conflitantes
em relação ao retorno de Onésimo (v. 11-14). Assim, ele descreve
suas próprias dificuldades, ao pôr de lado seus direitos, e indica a
Filem om as escolhas que terá de fazer, sabendo que encontrará
conflitos ao tom ar um a decisão tão crucial. Por meio da sua
palavra, D eus propõe escolhas tam bém a nós. As vezes ele até
enuncia as conseqüências das nossas escolhas.
Em ICoríntios 9, Paulo afirma que é um apóstolo autêntico,
com o direito de comer e beber, o direito de levar um a esposa crente
em suas viagens missionárias e o direito de receber sustento. Depois
ele declara de modo enfático: “Eu, porém, não me tenho servido de
nenhum a destas coisas” (v. 15). Isso mostra o rum o do seu apelo a
Filemom.
Deixar de fazer uso dos próprios direitos é um comporta­
mento muito incomum. Onde ele aprendeu a ceder seus direitos?
A resposta é dada com grande beleza em Filipenses 2.6-11: “Cristo
Jesus, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação
o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou...”. Em sua
encarnação, Cristo abriu mão dos seus direitos divinos. Paulo pre­
faciou essa constatação, dizendo: “Tende em vós o mesmo senti­
mento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5). Ele praticava
o que pregava: abriu mão do seu direito de ordenar a Filemom o
que devia fazer.
Nosso texto diz Paulo, o velho. Ele devia ter mais de 60 anos
de idade, e provavelmente se sentia mais velho, por causa da vida
de sofrimento físico que levou e do seu confinamento na prisão. O
pedido de um idoso sábio e compreensivo não deve ser tratado com
superficialidade. Apesar de acorrentado por ordem de César, Paulo

-301
e p í s t o l a s da p ri s ã o

se considera prisioneiro de Cristo. Ele vê a prisão como confirmação


da sua lealdade a Cristo e, por isso, é uma honra suportá-la.
Todavia, ele pode ter usado aqui a palavra grega traduzida
por “embaixador” (presbutes) em vez de “velho” (presbeutes). As duas
palavras vêm da mesma raiz (embaixadores realmente eram estadis­
tas mais velhos), e a diferença entre elas é de apenas uma letra (cf.
E f 6.20, onde “embaixador” também aparece junto com a idéia de
“prisioneiro”). Portanto, um “embaixador” que provou sua fide­
lidade como “prisioneiro” pode ser entendido como um a exigência
de Paulo para que Filemom respeite sua autoridade. Mas Paulo diz
que está fazendo o seu apelo por amor. Como embaixador de Cristo
ele segue o exemplo do seu Senhor. Põe de lado os seus direitos a
fim de executar o propósito de Deus de edificar a sua igreja, em
que não há nem escravo nem livre, mas todos são um em Cristo
Jesus (G13.28; Cl 3.11). Como embaixador de Cristo, Paulo cumpre
seu chamado instando com as pessoas (2Co 5.20-,parakalo é a mesma
palavra traduzida por solicitar no v. 9) em lugar de lhes dar ordens.
À semelhança de Cristo, Paulo escolheu o caminho da humildade;
esse é o caminho da cruz (Mc 8.35).

10. Depois de reafirmar o relacionamento estreito que tinh


com Filem om , Paulo agora enfatiza seu vínculo estreito com
Onésimo: Solicito-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei entre
algemas. Ele espera que Filemom veja seu escravo sob uma nova
perspectiva. Paulo dá apenas um sinal do seu pedido, pois está para
pedir a Filemom que vá contra os costumes sociais da época. Nos
dias de Paulo, praticam ente ninguém questionava a instituição da
escravatura. Ele quer que Filemom entenda que as ações dos cristãos
precisam ser transformadas por sua fé e amor por Cristo. Ser discí­
pulo inclui rejeitar os costumes típicos da cultura em que vivemos,
se eles não estiverem em harm onia com os valores cristãos.
Como escravo, Onésimo era considerado um “bem semo-
vente”, abaixo de qualquer ser hum ano na escala social. Escravos
fugidos eram gente considerada do mais baixo nível, a escória da
sociedade. Na providência de D eus, ele encontrara Paulo e se
tornara seu “filho” (seguindo a tradição rabínica, Paulo usa a relação
pai— filho para expressar sua relação m estre— aluno com seus

- 3 0 2 -
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FIL E M O M

convertidos, como em ICo 4.14-15; lT m 1.2 etc.). Paulo, na verdade,


está dizendo: “Enquanto eu estava preso, tornei-me pai, e o nome
da criança é Onésimo!”

1 1 . Talvez o próprio Filemom tenha dado a Onésimo esse


nome, que significa “realm ente útil” (euchrestos), na esperança
de que ele demonstrasse sê-lo. O valor de um escravo estava em
sua utilidade. Fazendo um jogo de palavras, Paulo mostra que,
antes, Onésimo era inútil ([achrestos) para Filemom, como escravo
e ainda mais fugido, mas agora ele é fiel ao seu nome. Ele já provou
sua utilidade a Paulo e pode ser altam ente benéfico tam bém a
Filemom.
A palavra chrestos (útil) está por trás da palavra Christos
(Cristo), e não havia diferença na pronúncia das duas. Assim, pode
ser que Paulo estivesse querendo fazer um jogo de palavras (duplos
sentidos eram comuns na literatura antiga). Onésimo agora está
“em Cristo” (enchrestos); como cristão, ele agora tem um relacio­
namento novo tanto com Filemom quanto com Paulo e é m uito
útil (euchrestos) a ambos.

1 2 . Onésimo experimentou a alegria do perdão de Deus,


mas também precisa ser perdoado por Filemom. Por isso, Paulo o
está enviando de volta ao seu senhor, sem certeza de como Filemom
o receberá. Sob a lei romana, um senhor de escravos podia aplicar
qualquer pena que quisesse a um escravo fugido. Era comum tor­
turar ou até crucificar desertores por ofensas menores que a de
Onésimo. Era im portante que Onésimo acertasse as coisas com
Filemom, para dar provas da sua conversão, por meio de recon­
ciliação, restituição e renovada utilidade a ele.
A decisão de Paulo de enviar “seu filho” de volta para um
futuro desconhecido entristece seu coração, pois ele está ligado a
Onésimo pelo amor cristão. Mas ele renuncia ao seu direito de
m anter Onésimo consigo. Paulo, o prisioneiro, sabe que direitos e
liberdade não são uma necessidade absoluta para pessoas que cum ­
prem sua missão na vida. Em suas próprias palavras, “sendo livre
de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número
possível” (ICo 9.19). Ele está confiante de que Deus, que lhe con­
cedeu a graça até de alegrar-se na prisão (Fp 1.18; 4.4), pode dar a
Onésimo a graça necessária para abrir mão da sua liberdade e voltar

-3 0 3
e p í s t o l a s da p ri são

para casa. Escravo ou livre, sua nova vida em Cristo pode evidenciar
um modo de vida alternativo.

1 3 . Filemom provavelmente havia sido colaborador de Paulo


em Éfeso. Agora que Paulo está na prisão por causa do evangelho,
ele depende principalm ente de terceiros para cuidar das suas
necessidades pessoais e das suas preocupações pastorais. Timóteo
está com ele quando escreve a epístola (v. 1), mas Paulo sempre o
enviava a outros lugares como seu emissário (Fp 2.19). Epafrodito
também havia ajudado Paulo na prisão (Fp 2.25-30; 4.18). Agora
que Onésimo o está ajudando (diakonia, o papel de um discípulo,
como Jesus ensinou e exem plificou, Mc 9.35; 10.44), ele está
ocupando o lugar de Filemom, fazendo o que Filemom faria se
estivesse com Paulo. Este reconhece que Filemom e seu escravo
são seus companheiros (koinonoi) no serviço cristão. E faz o apelo
para que Filemom o receba em plena comunhão (koinonia).
Apesar de Paulo ter aberto mão do seu direito de ordenar,
ele agora revela suas preferências. Ele gostaria de m anter Onésimo
consigo, pois a amizade deles é grande e gratificante. Ele não está
buscando apenas os seus interesses, mas também os de Filemom
(Fp 2.4). Está disposto a fazer um sacrifício pessoal, como se
enviasse uma parte de si mesmo (v. 12). Se fosse egoísta, m anteria
Onésimo consigo. No entanto, Paulo está disposto a aceitar Onésimo
em lugar de Filemom e creditar a ele o trabalho do seu escravo.

1 4 , Por respeito à lei romana, Paulo tem de devolver o


escravo. Por respeito a Filemom, Paulo lhe confirma sua liberdade
como senhor do escravo para decidir o futuro de Onésimo. Sabendo
que a comunhão cristã se baseia na participação voluntária, ele faz
um apelo, não uma exigência, esperando que Filemom responda
“de livre vontade”, com disposição e sem se sentir coagido. Ele
convida Filemom a analisar as implicações da sua fé e assum ir a
responsabilidade de pô-las em prática. Será que ele se deixará
constranger apenas pelo amor (v. 7) a fazer todo o bem, como Paulo
orara por ele (v. 6)? Será que ele seguirá o exemplo de Paulo e abrirá
mão de exercer seus direitos? Ou será que insistirá em seu “direito
de posse”? A oportunidade de exercer sua liberdade de escolha
estaria perdida se Paulo lhe desse uma ordem direta.
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FILEMOM

Ao mesmo tempo que Paulo tem Filemom em elevada estima,


ele também valoriza muito Onésimo. Ele intercede junto a Filemom
em favor de seu filho espiritual Onésimo, sem depreciá-lo. O
propósito de Deus em Cristo envolve a eliminação de hostilidades
a fim de formar uma sociedade sem distinção de classes. Ele não
faz isso dando poder a algumas classes de pessoas e relegando outras
a uma condição subumana. Pelo contrário, ele as une num só corpo,
por meio do amor que ele “derramou em nosso coração pelo Espírito
Santo” (Rm 5.5). Paulo atua como representante da nova sociedade
de Deus, em que não há “nem judeu nem grego; nem escravo nem
liberto; nem homem nem m ulher”, pois todos são um em Cristo
Jesus (G1 3.28; ICo 12.13). Paulo considera essa comunhão mais
im portante do que libertar Onésimo da escravidão.
Por meio do seu novo nascimento em Cristo, Onésimo se
tornou membro da família de Deus. Ele e Paulo estão unidos pelo
amor de Cristo. Filemom também é irmão em Cristo. Será que ele
tem amor por “todos os santos” (v. 5) suficiente para renunciar aos
seus direitos como senhor de escravos e receber Onésimo em pé de
igualdade como membro da família de Deus? “Acolhei-vos uns aos
outros, como também Cristo nos acolheu” (Rm 15.7) é o plano de
Deus para todos os seus filhos.

D - Filemom, ame sem restrições: receba seu escravo como


irmão amado (v. 1 5 -1 7 )
15Pois acredito que ele veio a ser afastado de ti
tem porariam ente, a fim de que o recebas para sempre,
16não como escravo; antes, m uito acima de escravo,
como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com
maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor.
17Se, p o rtan to , me consideras com panheiro,
recebe-o, como se fosse a mim mesmo.

1 5 „ Onésimo fugira de Filemom. Paulo, porém, incentiva


Filemom a encarar sua perda de outro ângulo. Pois acredito —
Filemom, pense nisso. O próprio Deus (como fica subentendido
pelo uso do verbo na voz passiva, “veio a ser separado”) pode ter
estado supervisionando tudo o que aconteceu. Não foi Deus quem
EPÍSTOLAS DA PR I SÃ O

elevou E ster à condição de rainha (Et 4.14)? Não foi D eus quem
fez a condição de José como escravo red u n d a r em bem (Gn
50.20)?
Esse “acredito” de Paulo também pode ser uma palavra de
cautela. Os cristãos precisam evitar declarar categoricamente, com
base em Romanos 8.28-29, que dado evento se deu de acordo com o
propósito de Deus. Nossa percepção é uma questão de fé, pois, nas
palavras de Paulo: “Quão insondáveis são os juízos [de Deus], e
quão inescrutáveis, os seus caminhos!” (Rm 11.33).
Se Filemom aceitar Onésimo como irmão amado, essa sepa­
ração tem porária trará benefícios perm anentes a ambos, pois o
corpo de Cristo terá sido enriquecido. Não im porta a condição fu­
tura do escravo, a reconciliação somente será válida se resultar em
comunhão continuada num só corpo em Cristo.

1 6 . Pela fé no Senhor Jesus crucificado e ressurreto, tanto


Filemom quanto Onésimo se tornaram filhos de Deus. Filhos do
mesmo pai são irmãos. Não im porta se um deles é senhor e o outro
é escravo; em Cristo eles são irmãos. O novo parentesco celestial
transcende os relacionamentos terrenos e neles se manifesta.
Paulo está confiante de que Onésimo provará a Filemom a
autenticidade da sua conversão. Ele ainda é escravo, mas tem agora
responsabilidades novas e maiores para com Filemom (como Paulo ,
enunciou em Cl 3.22-4.1; E f 6.2-9; ICo 7.22). Na graça de Deus,
ele servirá a Filemom “em singeleza de coração, temendo ao Senhor”
(Cl 3.22).
Paulo não está pedindo a Filemom que alforrie Onésimo,
mas que o receba como irmão, demonstrando a natureza radical da
sua conversão. Isso alterará profundam ente o relacionamento entre
senhor e escravo. Ele nunca mais poderá tratar Onésimo como mera
utilidade doméstica.
Onésimo era um estranho para Paulo antes da sua conversão;
agora é um irmão amado. O fato de deixar de ser um escravo inútil
o tornaria precioso também para Filemom. Como foi Paulo quem
levou a Cristo tanto o senhor como o escravo, eles partilham uma
relação especial. Essas são razões fortes para esperar que Filemom
acolha seu escravo em seu coração, sua família, seu trabalho e na
igreja que se reúne em sua casa. Uma vez que vivam juntos como
cristãos, Filemom terá a liberdade de alforriá-lo (o apelo de Paulo

-3 0 8 -
A EPÍSTOLA, SEMPRE R ELEV A N TE, DE PAULO A FILEMOM

inclui o reconhecimento dessa liberdade). Apesar de na carne, como


homem, Onésimo talvez continuar escravo, ele e Filemom agora
estão unidos no Senhor. A condição de escravo não tem mais
precedência. Onésimo é antes de tudo um irmão. Essa é a verdadeira
carta de alforria de Onésimo e o centro do apelo de Paulo.

i 7 . Será que Filemom receberá Onésimo com o mes


carinho com que recebería Paulo, seu companheiro (koinonon)? A
am argura (Hb 12.15) podería brotar facilmente quando o senhor
visse seu escravo fugitivo retornar. Ao reconciliar o mundo consigo
em Cristo, Deus não levou em conta os nossos pecados (2Co 5.20).
Filemom também não deve fazê-lo. Paulo o conclama a pôr de lado
toda má vontade: “Receba seu escravo como companheiro na mesma
com unhão cristã (koinonia) que une você e eu no Senhor” . Os
cristãos devem receber (ou “acolher”, a mesma palavra em grego)
uns aos outros “como também Cristo nos acolheu” (Rm 15.7). Em
sua graça, Deus, que nos justifica pela fé, nos recebe na comunhão
com ele e nos possibilita ter comunhão com todos os que têm a
mesma fé preciosa. Todos os redimidos — não importa a etnia,
aparência ou posição social — estão incluídos nesse companhei­
rism o na com unhão e no trabalho do evangelho. Isso une até
senhores e escravos! Foi Calvino quem disse: “Seria um sinal de
trem enda soberba se [alguém] se envergonhasse de considerar
irm ão alguém a quem Deus considera filho”. Depois de elogiar a
fé e o amor de Filemom (v. 5), Paulo o desafia a amar sem restrições.
Recebendo Onésimo como irmão caríssimo, ele será um instru­
mento de Deus na implementação de uma nova ordem social baseada
na koinonia em Cristo. Deus não chama os seus para seguirem as
norm as da sociedade, m as para evidenciar relacionam entos
transformados por Cristo (Rm 12.1-2). Ele convoca a igreja para amar
sem discriminação no meio de um mundo egoísta, ganancioso e cheio
de ódio. Essa alternativa às tentativas hum anas de reforma social
revela um dos aspectos da verdadeira natureza da igreja.

C ’ - Quem ama de verdade assume as dívidas


do irmão (v. 18 -19 )
I8E, se algum dano te fez ou se te deve alguma
coisa, lança tudo em m inha conta. 19Eu, Paulo, de
e p í s t o l a s da p ri s ã o

próprio punho, o escrevo: Eu pagarei — para não te


alegar que também tu me deves até a ti mesmo.

1 8 . Com certeza, a fuga de Onésimo atrapalhou as atividades


do seu senhor. Não sabemos se o escravo roubou dinheiro ou bens,
ou até que ponto Filemom sofreu prejuízo financeiro ou de outro
tipo como conseqüência do que Onésimo fez. Sabemos, porém, que
era preciso fazer restituição. Para elim inar qualquer coisa que
pudesse im pedir Filemom de receber Onésimo com carinho, Paulo
se oferece para pagar a dívida do fugitivo.
Apesar de Paulo não ser responsável por esses problemas e
pessoalmente não dever nada a Filemom, ele faz tudo o que pode
para reconciliar Filemom e Onésimo. A koinonia vai além da mera
preocupação com os outros e se torna participação recíproca nas
alegrias e sofrimentos uns dos outros (Rm 12.15). Nossa partici­
pação chega ao ponto de passarmos por situações difíceis para que
outros possam retom ar o ânimo (2Co 1.6-7; cf. 4.10-15). No versículo
17, Paulo incentivou essa identificação m útua quando pediu a
Filemom que recebesse Onésimo como se estivesse recebendo a ele
mesmo; agora ele se identifica com Onésimo, pedindo que Filemom
cobre dele como se ele fosse Onésimo.
Como m inistro da reconciliação, Paulo retrata com sua ação
a obra redentora de Cristo como nosso substituto. O Filho de Deus
tomou voluntariamente nossos pecados sobre si, cancelando assim
nossa dívida e apresentando-nos a Deus santos e livres de qualquer
acusação (Cl 1.22; 2.13-14). Conseqüentemente, o Pai nos recebe
com carinho. Do mesmo modo, Paulo, im itando Cristo em sua
identificação com os pecadores, prom ete fazer a Filem om o
pagamento completo de todas as dívidas e prejuízos decorrentes
da conduta irresponsável do seu escravo.19*

19. Na forma característica de uma nota promissória, Paulo


acrescenta: “Eu pagarei”. Sua assinatura o obriga a cumprir sua pro­
messa, mesmo que suas finanças sempre fossem tão limitadas que ele
tivesse de trabalhar com as próprias mãos para suprir suas necessidades.
Com ironia amável, ele acrescenta: “Para não te alegar que
também tu me deves até a ti mesmo”. Paulo, como seu pai espiritual,
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FIL E M O M

era o meio pelo qual Filem om recebera nova vida em Cristo.


Onésimo é devedor por causa de perdas materiais; Filemom deve
por causa de um ganho eterno. E impossível comparar as duas
dívidas. Como na parábola do servo que não quis perdoar (Mt 18.21-
35), a dívida de alguém que devia cem denários não podia ser com­
parada com a de outro que devia dez mil talentos.
Filemom está seguro no amor que Paulo tem por ele e sente
o espírito no qual escreve. Talvez esse lem brete amistoso faça um
sorriso brilhar no rosto de Filemom.

B’ - Filemom, me traga ânimo: faça até


mais do que peço (v. 20-22)

20Sim, irmão, que eu receba de ti, no Senhor, este


benefício. Reanima-me o coração em Cristo. 21Certo,
como estou, da tua obediência, eu te escrevo, sabendo
que farás mais do que estou pedindo.
22E, ao m esm o tem po, p rep a ra -m e tam bém
pousada, pois espero que, por vossas orações, vos serei
restituído.

20. Apesar de ser o pai espiritual de Filemom, o apóstolo o


chama de “irmão”, pois, em pé de igualdade, são beneficiários da
graça de Deus que os une nos laços da comunhão cristã. Já que os
crentes se alimentam dessa fonte abundante, eles podem enriquecer
a vida dos outros, incluindo seus líderes espirituais. Em outra
ocasião, Paulo procurou o ânimo mútuo dos crentes em Roma (Rm
1.12); agora ele espera de Filemom algum benefício para si (o me é
enfático no grego). Aquele por quem o coração dos santos tem sido
reanimado (v. 7) pode ser usado para anim ar também a ele. Trata-se
de mais do que mera satisfação na esfera hum ana. O conforto fluirá
das experiências de Filemom no Senhor e trará ânimo e consolo
àqueles cuja vida está oculta “em Cristo” (Cl 3.3).

2 1 . Dois imperativos enunciam os passos necessários para


que a reconciliação de Filemom com Onésimo se torne um a rea­
lidade: receber Onésimo (v. 17) e lançar na conta de Paulo os pre­
juízos causados por ele (v. 18). Certo, como estou, da tua obediência não

309
E P ÍS T O L A S DA PRISÃO

é uma tentativa de bajular Filemom para fazê-lo atender à soli­


citação de Paulo (cf. lTs 2.3-5). Uma tática assim seria contrária a
todo o espírito da epístola. Paulo já afirmou a liberdade de Filemom
(v. 13-14). Ele não está dizendo: “Obedeça a mim”. Antes, a ênfase
característica de Paulo em seu m inistério é: “Obedeça a Deus” (p.
ex., Rm 1.5; 15.18). A exemplo dos filjpenses (Fp 2.13-14), File­
mom tem obedecido a Deus. Ele é um a pessoa constrangida pelo
amor, que segue a Cristo com fidelidade (v. 4-7). Isso dá a Paulo
confiança de que ele continuará obedecendo à m edida que Deus
for agindo nele para que queira e aja de acordo com os seus pro­
pósitos. Confiança nos colaboradores é essencial ao bom trabalho
em equipe.
Paulo deseja o melhor e mais elevado para Filemom. Ele sabe
que “fará mais” do que receber Onésimo e cancelar sua dívida.
Que “mais” Paulo tem em mente? Ele não está pensando na volta
de Onésimo para ajudá-lo na prisão, pois espera ser solto em breve
(v. 22). Ele não pediu ao senhor que liberte o seu escravo. Talvez
gostaria que Onésimo se tornasse seu companheiro em missões
futuras, uma oportunidade única de ser arraigado e edificado em
Cristo (Cl 2.7) e servi-lo. Mesmo continuando escravo, isso real­
mente o libertaria para usufruir a comunhão cristã.
Seja o que for que Paulo tinha em mente com esse “mais”,
ele espera que Filemom se contente apenas se andar a segunda
milha. Ele espera que Filemom, lendo nas entrelinhas, aja motivado
pelo amor a Cristo, em vez de insistir em seus direitos.
Não podemos nos exim ir do impacto do ensino de Paulo
dizendo que ele se aplica a condições sociais que não existem em
nossa sociedade. Se não “fizermos mais” do que a sociedade dita,
multidões continuarão a ser exploradas em relações injustas (rela­
ções de trabalho e discrim inação racial, para citar apenas dois
exemplos). Cristãos que agem por amor a Cristo são instrumentos
de Deus para libertar os oprimidos do nosso tempo, do mesmo
modo que Paulo em seu tempo.

22. A igreja em Colossos esteve orando por Paulo, como e


orava por ela (v. 4-7). Usando os pronomes no plural vossas e vos,
ele manifesta sua gratidão por toda a intercessão deles em seu favor.
Ele também pretende que a epístola seja lida para a igreja, pois
todos serão afetados pela decisão de Filemom.
A EPÍSTOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A FIL E M O M

Em resposta às orações deles, Paulo espera que D eus o


reconduza (como im plica a voz passiva “serei restituído”) aos
crentes de Colossos. Como hóspede na casa de Filem om, ele terá
oportunidade para edificação e incentivo m útuos (cf. Cl 3.16;
lTs 5.11; Rm 14.19). Será um a alternativa bem -vinda à vida na
prisão!

A’ - Saudação final (v. 23-25)


23Saúdam -te Epafras, prisioneiro comigo, em
Cristo Jesus, 24Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus
cooperadores.
25A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso
espírito.

2 3 - 2 4 . Em vez de dizer: “M eus colaboradores m andam


lembranças”, Paulo menciona especificamente duas pessoas para
m ostrar mais uma vez que o evangelho aproxima pessoas de todos
os contextos sociais. Epafras havia pregado aos seus concidadãos
em Colossos e m inistrado à igreja ali (Cl 1.7; 4.12-13). Judeu
crescido em Jerusalém, João Marcos havia conhecido os líderes da
igreja em seus primórdios. Ele desistiu de acom panhar Paulo e
Barnabé em sua prim eira viagem m issionária (At 13.13), porém
mais tarde provou ser um ministro fiel (2Tm 4.11) e escreveu o
evangelho de Marcos. Aristarco, um macedônio, provavelmente se
converteu durante o m inistério de Paulo ali. Ele acompanhou Paulo
em várias viagens e foi preso junto com ele (At 19.29; 20.4; 27.2; Cl
4.10) . Dem as e Lucas eram gentios. D em as estava com Paulo
quando ele escreveu sua epístola; mais tarde abandonou-o (2Tm
4.10) . Lucas, o médico amado, foi companheiro constante de Paulo
e escreveu o evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos.
A igreja em Colossos pode não ter conhecido todos esses
homens em pessoa. Paulo, no entanto, alinha o ministério deles ao
lado do seu, pois eles não são rivais, mas cooperadores. Juntamente
com Paulo, enviam sua saudação a Filemom.
De acordo com Colossenses 4.7-9, Paulo enviou Tíquico a
Colossos, levando a epístola aos Colossenses. Onésimo o acom­
panhou com essa epístola ao seu senhor Filemom.

-311 -
EPÍSTOLAS D A PRISÃO

2 5 . Paulo desafiou Filemom a fazer algo que ia contra todo


os costumes e hábitos sociais aceitos em todo o m undo romano.
Somente pela graça do Senhor Jesus Cristo ele e a igreja (vosso é in­
dicativo de plural) podem acolher Onésimo em seu coração e na
comunhão (koinonia) cristã. Bendito seja Deus, pois em Cristo ele
derram ou abundantem ente a sua graça para que eles — e nós
igualmente — possamos ser frutíferos em toda boa obra (2Co 8.9;
Ef 1.8; 3.20)!

- 312 -
Apêndice

A escravatura existe até hoje como instituição e mantém milhões


na servidão em algumas regiões do mundo, mas poucos estão cientes
disso e ainda menos pessoas fazem algo para m udar a situação.
Essa mesma atitude de indiferença podería relegar a epístola de
Paulo a Filem om às inform ações de interesse histórico, mas
irrelevantes ao mundo em que vivemos. A epístola, todavia, é muito
relevante para a nossa vida, incluindo o aspecto da escravidão.
Acrescentei o estudo abaixo para destacar algumas questões em
Filemom que merecem receber mais atenção em nossos dias.
A mensagem da epístola vai m uito além do dilema que
enfrentavam Paulo, Onésimo e Filemom. Entendemos que essa foi,
em parte, a razão por que uma “epístola pessoal” foi incluída no
cânon do Novo Testamento.

Por que Paulo não denunciou a escravatura diretamente?


Em todo o Im pério Romano, a escravatura estava firm em ente
entrincheirada. Ela havia atingido proporções sem precedentes,
com sessenta milhões de homens, mulheres e crianças na servidão.
Os escravos eram considerados bens particulares, ferramentas como
machados e enxadas. Eram vistos como seres humanos apenas
circunstancialmente e não tinham direito à identidade própria. O

- 313-
E P Í S T OL A S DA PRI SÃO

senhor tinha o direito de usar, m altratar e punir seus escravos como


desejasse. O escravo, por sua vez, não tinha nenhum direito e muitas
vezes perdia todo respeito próprio.
A instituição da escravatura era defendida por interesses muito
poderosos como indispensável à vida econômica do império. O povo
em geral também a aceitava. A brutalidade pode não ter sido um
procedimento regular, mas toleravam-se violência e exploração sem
limites dos escravos.
Deve ter havido pessoas que desejavam m udanças, mas a
escravatura apenas raram ente foi questionada por alguém, já que
o debate público das questões sociais não era uma característica do
império. Como homem de compaixão com um senso profundo de
justiça, o apóstolo Paulo deve ter ficado muito perturbado com o
tratam ento desum ano dado aos escravos e pela instituição da
escravatura em si.
Nas epístolas, Paulo volta sua preocupação sincera para certos
grupos de crentes que enfrentavam situações específicas. Ele não
denuncia a escravatura em si, mas m ina suas premissas, pois ela é
totalm ente incompatível com o conceito bíblico do ser humano.
Temos de entender o ensino paulino sobre problemas culturais espe­
cíficos da perspectiva das preocupações centrais da Bíblia.
Paulo não tinha o perfil político de alguém que defendesse
leis proibindo a escravidão. Promover levantes armados também
não era uma opção para ele. M uitas vezes foi vítima de violência,
mas procurava viver em paz com todo mundo (Rm 12.18). Roma
teria interpretado toda ação aberta contra a escravatura por parte
dos seguidores de Jesus, crucificado por sedição, como mais hosti­
lidade contra o im pério, resultando em contra-ataque feroz.
Alguns historiadores crêem que a igreja recém-nascida teria sido
esmagada sem piedade. Paulo não iria se lançar em uma missão
impossível.
Contudo, isso não quer dizer que ele se absteve de se pronun­
ciar sobre a questão da escravatura; ele tratou do problema de
m aneira bem diferente. A escravidão se torna uma condição do
coração, tanto do escravo quanto do senhor. O escravo sofre por ser
oprimido; o senhor, por oprim ir os outros. Se não passarem por
uma mudança do coração, continuarão a dom inar ou a ser desuma-
nizados. Ambos podem experim entar a transformação do coração
pelo evangelho, o poder de Deus para todo aquele que crê (Rm
1.16). Cristo tinha libertado Paulo da escravidão do pecado (Rm

- 314
A E P Í S T OL A , S E M P R E R ELEVANT E, DE PAULO A FI LEMOM

6.17), e ele estava convicto de que Cristo podia libertar outros de


uma servidão mais devastadora que a escravidão.
Ele sabia que o mal duraria até o fim desta era, mas também
que Deus estava im plantando seu reino, em que homens e mulheres
são libertos do domínio do mal. Esse reino já havia sido iniciado
pela morte e ressurreição de Cristo, mas espera o retorno de Cristo
em glória para ser consumado. Enquanto isso, Deus está enviando
seus embaixadores que, como Paulo, convidam homens e mulheres
em todo lugar a se submeterem voluntariam ente ao governo de
Deus. Aqueles que atendem ao convite podem até se alegrar no
sofrimento, pois isso pode servir para a divulgação do evangelho
(Fp 1.12). Eles se tornam membros de uma sociedade alternativa
que busca refletir o caráter de Cristo nos relacionamentos entre si.
Eles continuam a viver em um m undo mau, mas a liberdade do
seu domínio oferece esperança aos escravizados por ele.
Em suas epístolas, Paulo se dirige tanto a escravos como a
senhores, da perspectiva dos propósitos de Deus de, em Cristo, formar
um novo povo. Em nítido contraste com as práticas desumanizadoras
da escravatura, ele se dirige aos escravos como seres humanos respon­
sáveis (Ef 6.5-8; Cl 3.22-25). Pela fé em Cristo Jesus, eles são filhos
de Deus, em cujo reino não há “nem escravo nem liberto” (G1 3.26-
28; Cl 3.11; ICo 12.13). Ele insiste em que o relacionamento entre
indivíduos — incluindo o relacionamento entre um escravo e seu
senhor — deve evidenciar que eles pertencem a Cristo. Paulo fala
aos senhores de escravos firmado nas mesmas convicções. Deus não
tem predileções. Os senhores, assim como seus escravos, são seres
humanos que precisam prestar contas a Deus, pois têm um Senhor
no céu (Ef 6.9; G14.1). Essa postura radicalmente distinta mina todo
o conceito de escravatura.
Em sua epístola a Filemom (v. 14), Paulo baseia seu apelo
num princípio fundam ental do ensino social do Novo Testamento:
não [...]por obrigação, mas de livre vontade. Ordens ou manipulações
não podem cum prir os propósitos de Deus para o seu povo; eles
precisam ser abraçados voluntariamente, por amor a Deus e aos
outros. Se Paulo tivesse exigido que Filemom alforriasse Onésimo,
teria negado a Filemom a oportunidade de exercer a liberdade de
fazer a melhor escolha. Ele prefere que o ato de Filemom “seja
espontâneo, e não forçado” (n v i) . Paulo deseja a liberdade de Oné­
simo, mas isso não pode violar a liberdade que Filemom tem para
fazer sua escolha.

-315
E P Í ST OL A S DA PRI SÃO

Paulo vai além de “nem escravo nem liberto...” (G1 3.28),


incentivando Filemom a acolher Onésimo como irmão. Ele não
disse: “Liberte-o, e depois pode abraçá-lo como irm ão”. Em Cristo,
ele é seu irmão, não im porta se é escravo ou livre. Para Filemom,
Onésimo nunca mais poderá ser um mero escravo; ele agora é ao
mesmo tempo uma pessoa e um irm ão no Senhor. Sua condição
de escravo não terá prioridade, pois está inserido na comunhão
cristã.
Esse novo relacionamento se estende a todos, a despeito de
raça, gênero, classe social, econômica ou política (Cl 3.11; G1 3.28;
ICo 12.13). Além de ser um a preocupação central da Bíblia, ele
define uma característica essencial de uma igreja autêntica, uma
“casa de oração para todas as nações” (Mc 11.17), instituída em
um m undo dilacerado por todo tipo de divisão e inimizade.
Quando os salvos acolhem uns aos outros como irmãos e irmãs,
estão rejeitando a discriminação aceita pela sociedade que predomina
no mundo. Por dedução, Paulo está exortando os cristãos a avaliar
todos os costumes e hábitos e a rejeitar o que é contrário aos padrões
de Deus para o seu povo (Rm 12.1-2). Isso também caracteriza uma
igreja autêntica.
A escravatura é basicam ente um ser hum ano dom inar o
outro. E opressão. A liberdade de escolha é excluída. Problemas
desse tipo são abundantes hoje em dia. Paulo falou nos termos de
uma injustiça social destrutiva manifesta em seus dias. A escravidão
não é o único tipo de servidão. Temos de ir além do ensino expresso
em situações culturais específicas e aplicar sua mensagem às várias
formas de domínio que existem hoje em dia. Esse é um princípio
básico de interpretação da Bíblia.
Medo, hábitos, circunstâncias, maus tratos físicos e psico­
lógicos, opressão econômica subjugam muitas pessoas, para m en­
cionar apenas alguns. O Novo Testamento chama todos os homens
e mulheres à verdadeira libertação e dignidade humana. Existem
circunstâncias e obrigações das quais não se pode fugir. Paulo não
pediu a Deus que o libertasse da prisão (Ef 6.19-20); ele a aceitou
conscientem ente como vindo do Senhor e a transform ou em
oportunidade de servi-lo. (Além do caso de Paulo, algumas das
maiores realizações hum anas se deram na prisão, como a tradução
da Bíblia para o inglês feita por William Tyndale e O peregrino, de
John Bunyan.) Assim, ele incentivou os escravos que não conse­

- 316 -
A EPÍ STOLA, SEMPRE RELEVANTE, DE PAULO A F iL E M O IV I

guiam obter liberdade a trabalhar com disposição, como para o


Senhor. Desse modo, eles viveríam acima das circunstâncias e
e n co n trariam lib erd ad e (IC o 7.20-24; 9.15-19). A liberdade
espiritual em Cristo possibilita à pessoa ser livre, mesmo estando
sob domínio.
O Novo Testamento ensina que o mal continuará a existir
até o fim desta era, quando então D eus estabelecerá seu reino
eterno de justiça, paz e retidão. E nquanto isso, Cristo deu aos
seus seguidores a responsabilidade de viver como “sal e luz” neste
m undo injusto (Mt 5.13-16). Eles transm item a mensagem de que,
com sua vida e proclamação, os oprim idos podem encontrar em
C risto a liberdade espiritual que os liberta para se tornarem
“úteis”, à sem elhança de Onésimo. Aqueles que foram p reju ­
dicados como Filemom aprendem a perdoar e a acolher os outros,
sem discrim inação, na comunhão (koinonia) em uma sociedade
alternativa. Ao refletirem Cristo em sua vida e m inistério diários,
a ponto de abrir mão de seus direitos como Paulo fez, todos os
salvos trazem esperança e alívio para os que sofrem. Os cristãos
m uitas vezes não têm o poder de m udar estruturas sociais. Todavia,
por meio deles D eus continua causando im pacto na sociedade,
transform ando indivíduos e formando com eles com unidades que
dividem o amor de Cristo enquanto esperam o reino de D eus em
toda a sua glória.

0 que aconteceu a Onésimo depois da epístola de Paulo?


Meio século depois de Paulo escrever a epístola, o bispo Inácio da
Síria foi preso e levado para Roma. Antes de ser morto, ele escreveu
a várias igrejas que o tinham ajudado durante sua viagem. Uma
das epístolas foi dirigida ao “bispo Onésimo de Efeso”. Alguns estu­
diosos duvidam de que esse bispo tenha sido o Onésimo da epístola
de Paulo a Filemom, pois o nome não era raro. Todavia, é bastante
possível que Onésimo, libertado por Filemom, tenha se tornado
bispo na igreja antiga. Ele devia ter perto de 70 anos de idade quando
Inácio escreveu. Éfeso fica perto de Colossos, onde Filem om
morava. A linguagem que Inácio usou em suas diversas referências
ao bispo Onésimo é m uito semelhante à que Paulo usou em sua
epístola a Filemom. Inácio muito provavelmente conhecia a epístola
de Paulo e usou um vocabulário que pode ter refletido a identidade
do antigo escravo. Também é possível que a condição de bispo de

- 317 -
E P Í S T OL A S DA PRI SÃO

Onésimo tenha sido um fator im portante para a inclusão da epístola


de Paulo no cânon do Novo Testamento.

Como a igreja se posicionou diante da escravatura,


depois da epístola de Paulo?
A medida que a semente do evangelho se espalhou e os cristãos
aplicaram sua mensagem de amor, perdão e liberdade a todas as
áreas da vida, muitos crentes começaram a levar a sério as obrigações
morais em relação aos seus semelhantes. Alguns líderes de igrejas
incentivaram os senhores de escravos a libertá-los. Congregações
proporcionaram refúgio a escravos fugitivos.
Depois de séculos de opressão pelo Estado, no ano 313 d.C.,
o cristianism o se tornou a religião oficial do Im pério Romano.
M uitas tensões continuaram existindo, mas Igreja e Estado gradual­
mente se tornaram aliados em atividades cada vez mais seculares.
O conceito de comunidade cristã como sociedade alternativa perdeu
terreno. A proporção que a m ensagem d istin ta do evangelho
retrocedia, os avanços feitos pela igreja no seu início, quanto à
redução da escravatura, corriam o risco de se perder.

' - 318 -
Bibliografia

Comentários sobre Filemom


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London: Tyndale Press, 1960.

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Estudos Sobre Questões Sociais, Políticas e Históricas


O Novo Dicionário da Bíblia, Vol I. São Paulo: Edições Vida Nova,
1966. “Escravos, Escravidão”, p. 516-522.
E P Í S T OL A S DA PRI SÃO

SCOTT, Ernest F. Man and Society. New York: Chas. Scribners’ Sons,
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IssuesinBiblicallnterpretation. Scottdale, PA: Herald Press, 1983.

YODER, John H .A Política de Jesus. São Leopoldo: Editora Sinodal,


1988.

- 320 -
RUSSELL P. SHEDD, Ph.D., é fundador de
Edições Vida Nova, conferencista internacional
e pastor, intensamente preocupado com a
educação teológjca e a formação de líderes
para a igreja brasileira e dos países de língua
portuguesa, foi durante mais de 40 anos
professor de Novo Testamento nas melhores
escolas teológicas de São Paulo e escreveu
inúmeras obras publicadas por Edições Vida
Nova e pela Shedd Publicações.

DEWEY M. MULHOLLAND é norte-americano


residente na Califórnia. É formado em Teologia,
Educação Religiosa e Psicologia. Foi missionário
durante mais de 40 anos no Brasil, durante os
quais esteve intensamente envolvido com
educação teológica. Foi fundador da Faculdade
Teológica Batista de Brasília, onde atuou como
diretor e professor. É autor de Marcos, introdução
e comentário, da Série Cultura Bíblica, publicado
por Edições Vida Nova, e de Teologia da igreja:
uma igreja segundo os propósitos de Deus,
publicado pela Shedd Publicações.
'

Epístolas da Prisão é uma exposição das quatro cartas


tradicionalmente associadas ao período em que Paulo esteve
preso em Roma em meados do primeiro século: Efésios,
Filipenses, Colossenses e Filemom.

Cada trecho deste livro singular é uma fonte de inspiração.


Paulo, o maior e mais prolífico autor do Novo Testamento,
escreveu numa época da vida em que seu pensamento e seu
coração pastoral haviam atingido os mais altos níveis de
maturidade. O fato de estar preso no fim da carreira poderia
gerar um sentimento de derrota e de tristeza no grande apóstolo.
Todavia, o que se vê nessas quatro epístolas é a sublime
expressão de alegria, vitória e gratidão manifestadas por alguém
que chegou ao clímax da carreira, tendo combatido o bom
combate sem perder a fé.

VIDA NOVA
www.vidanova.com.br

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