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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA ___


VARA DA FAZENDA PÚBLICA.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE


SÃO PAULO por meio de seus representantes e signatários abaixo,
com fundamento nos arts. 10, incs. III e IV, 50 e 21, da Lei nº
7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), arts. 81, 82, 83, 110 e 117, da
Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), art. 25, IV, "a",
da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), arts.
127 e 129, incs. II e III, da Constituição Federal, vêm propor AÇÃO
CIVIL PÚBLICA, pelo procedimento ordinário, em face da FAZENDA
PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito
público interno, inscrita no CNPJ sob o nº 46.377.222/0001-29, com
sede nesta Capital, na Av. Morumbi, 4500 (Palácio dos
Bandeirantes), a ser citada na Rua Pamplona, 227, CEP 01405-902,
Jardim Paulista, onde funciona sua Procuradoria-Geral.

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SINOPSE. Crimes de maio de 2006 – policiais e civis mortos em vias


públicas da Grande São Paulo e cidades paulistas – atuação de
agentes de facção criminosa e de agentes do Estado – inexistência
de situações de confronto – homicídios de policiais – atuação de
grupos de extermínio contra população civil estranha à facção
criminosa – responsabilidade objetiva do Estado – marco normativo
Justiça de Transição – violação de direitos humanos fundamentais
de matiz constitucional – Direito Internacional dos Direitos Humanos
– ação civil pública proposta pela Promotoria de Justiça de Direitos
Humanos, Inclusão Social – pedidos de indenização, compensação,
memória e verdade.

I. INTRODUÇÃO.

A presente ação se relaciona com o episódio


recente da história brasileira que ficou conhecido nos meios
jornalísticos e acadêmicos como “Crimes de Maio”. Os fatos se
deram no mês de maio de 2006 e se caracterizaram pela rápida
escalada de mortes de civis e militares, em curto período de tempo,
em vias públicas, principalmente da Grande São Paulo, Baixada
Santista e alguns grandes centros urbanos do interior paulista.

Nesses eventos, que se deram entre os dias


12 e 26 de maio de 2006, 5641 (quinhentos e sessenta e quatro)

1
Há várias contagens das vítimas, conforme o critério utilizado, como se verá mais
adiante.
2
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pessoas foram assassinadas. Entre elas, contam-se 505 civis e 59


agentes públicos.

De acordo com os estudos realizados, os


fatos se deram em decorrência de três fatores principais, que serão
pormenorizadamente tratados ao longo da presente petição inicial.

O primeiro deles se relaciona com existência


de importante e robusta facção criminosa em atuação organizada no
Estado de São Paulo. Durante poucos dias, em sua luta por
hegemonia, o crime organizado conseguiu mobilizar rebeliões
simultâneas em 74 presídios do Estado de São Paulo, de modo a
contestar, principalmente, a transferência de 765 presos para a
Penitenciária 2, de Presidente Venceslau (SP).2

O segundo deles se relaciona com a ação do


Estado em relação aos seus próprios servidores. Conforme vai se
demonstrar, os responsáveis, no âmbito administrativo, tinham
conhecimento dos ataques e, mesmo assim, permitiram que 59
(cinquenta e nove) agentes estatais, entre eles policiais militares e
bombeiros, fossem vitimados pelos ataques anunciados.

2
A história da facção criminosa denominada Primeiro Comando da Capital (PCC),
supostamente criada em resposta a abusos da polícia e também ao chamado Massacre
do Carandiru, em 1992, em São Paulo, guarda pertinência com os fatos ocorridos em
maio de 2006, mas é questão irrelevante para as pretensões jurídicas deduzidas nesta
demanda judicial e, por isso, não será aqui narrada.
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O terceiro fator se relaciona com o


revanchismo ou vingança. Após a morte de agentes do Estado pelos
ataques do crime organizado, iniciou-se um movimento revanchista,
por parte de policiais e de milícias, que foi responsável pela morte de
505 civis, a maioria deles sem qualquer passagem pela polícia e sem
qualquer ligação com a facção criminosa.

Todos esses fatores, de alguma forma, se


relacionam com a não consolidação dos preceitos da Justiça de
Transição, o que permitiu a sobrevivência do autoritarismo dos
regimes de exceção na ainda incipiente democracia brasileira,
animando a atuação dos órgãos policiais e repressivos do Estado.

De modo bastante sintético3, poder-se-ia dizer


que a Justiça de Transição se refere ao conjunto de medidas
políticas e jurídicas que devem ser adotadas em dado país na
transição de uma ordem autoritária para uma ordem democrática, de
forma a compatibilizar os anseios de justiça decorrentes das
violações a direitos humanos havidas no regime anterior com a
consolidação do regime democrático na nova ordem política.

A Justiça de Transição assenta-se, assim,


sobre quatro pilares básicos:
I) direito à verdade e à memória;
II) reparação das vítimas;

3
As considerações teóricas sobre o tema serão retomadas mais adiante, de forma mais
aprofundada.
4
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III) adequado tratamento jurídico aos crimes


cometidos no passado;
IV) reforma das instituições para a
democracia, visando à não repetição.

Os “Crimes de Maio” evidenciam estreita


relação com a Justiça de Transição.

O modo de atuar da polícia, com desprezo


pelos oficiais de baixa patente e tolerando a formação de grupos de
extermínio dentro da própria corporação, traços típicos do regime de
exceção que vigorou entre 1964 e 1985, possibilitou o clima de
revanchismo que resultou no assassinato de 505 civis em 2006.

Com esta ação civil pública objetiva-se,


exclusiva e especificamente em relação aos “Crimes de Maio” a
efetivação de dois pilares básicos da Justiça de Transição, a saber:

 direito à verdade e à memória;


 reparação das vítimas.

Em relação ao direito à verdade e à


memória, pretende-se aqui a condenação do Estado de São Paulo
(Fazenda Pública Estadual) à obrigação de fazer, de modo a instá-lo
a um pedido oficial, público e formal, de desculpas aos familiares das
vítimas, a ser disponibilizado em jornais de grande circulação e na
página eletrônica do Governo do Estado de São Paulo. Ainda neste
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ponto objetiva-se que o Estado de São Paulo seja condenado à


criação de um vídeo institucional, no qual sejam ouvidos os
familiares das vítimas, a fim de se permitir que suas histórias sejam
registradas, contadas, conhecidas, respeitadas e perenizadas,
criando-se uma narrativa oficial, baseada na memória oral, sobre os
fatos que se deram em maio de 2006.

No que concerne à reparação das vítimas,


objetiva-se a condenação do Estado ao pagamento de indenização
às famílias, tanto por dano moral como material, que poderá ser
buscada posteriormente em processos individuais de habilitação,
com as respectivas execuções de sentença. Pretende-se, também, o
pagamento de indenização coletiva em razão da existência de dano
de caráter social, destinado a fundo público específico.

Em relação ao pilar da justiça de transição


que se relaciona com o adequado tratamento jurídico dos crimes
cometidos no passado, importa ressaltar que esta Promotoria de
Justiça, Área da Inclusão Social, não tem atribuição na área criminal,
conforme se observa dos Atos Normativos nº 593/2009 e nº
599/2009 - PGJ4, não podendo, em consequência, oferecer
denúncias e propor ações penais perante o Poder Judiciário.

4
Art. 2º - Na execução de suas atribuições, compete à Promotoria de Justiça de Direitos
Humanos, dentre outras providências:
(...)
VI – requisitar a instauração de inquérito policial e de procedimentos administrativos, e
atuar em conjunto ou de forma integrada em procedimentos investigatórios, instaurados
pelo Promotor de Justiça Criminal, que envolvam ilícitos penais relacionados com sua
área de atuação;
6
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Por fim, em relação às reformas das


instituições para a democracia, ressalta-se que há procedimento
em trâmite nesta Promotoria de Justiça (Inquérito Civil nº
14.725.382/2015-4), no âmbito do qual serão adotadas eventuais
providências destinadas às reformas das instituições policiais, no que
tange aos índices de letalidade, visando a não repetição.

II. QUESTÕES PROCESSUAIS.

II. a) Da Legitimidade Ativa.

O Ministério Público tem legitimidade para a


propositura desta ação civil pública na medida em que à Instituição
compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do artigo
127, caput, da Constituição Federal.

Ademais, a Lei nº 7.437/85, em seu artigo 5º,


inciso I, garante a legitimidade do Ministério Público para propor
ações principais e cautelares na defesa de direitos difusos ou
coletivos.

E especificamente quanto a esta Promotoria


de Justiça de Direitos Humanos com atribuição na área de inclusão
social, sua atuação está vinculada à garantia de efetivo respeito dos
Poderes Públicos e serviços de relevância pública e aos direitos
assegurados nas Constituições Federal e Estadual, devendo atuar

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sob a ótica de defesa dos interesses difusos, coletivos ou individuais


homogêneos ou indisponíveis. É a conclusão que se depreende da
leitura conjugada e harmônica dos artigos 127, caput e 129, inciso II,
ambos da Constituição Federal, bem como do artigo 295, inciso XIV,
da Lei Complementar nº 734/93, Lei Orgânica do Ministério Público
do Estado de São Paulo, com a redação que lhe deu a Lei
Complementar nº 1083/08.

No mesmo sentido acha-se a regulamentação


interna do Ministério Público, em especial o artigo 2º, inciso III, e o
artigo 3º, inciso IV, alínea ‘a’, do Ato Normativo nº 593/2009 – PGJ.

Ressalta-se ainda que a tutela buscada junto


ao Poder Judiciário é de natureza difusa ou coletiva: além de se
obter as indenizações, também é objetivo desta ação garantir a
consolidação de um Estado Democrático de Direito a partir dos
preceitos da Justiça de Transição.

II. b) Da Legitimidade Passiva.

A presente ação civil pública está sendo


proposta contra a Fazenda Pública do Estado de São Paulo.

A Fazenda Pública Estadual figura no polo


passivo, uma vez que foi o Poder Executivo paulista que permitiu,
autorizando ou se omitindo, a ocorrência dos eventos de maio de
2006.

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Além disso, a indenização deve ser paga pela


Fazenda Pública Estadual e as medidas relativas à garantia do
direito à memória e à verdade também devem ser tomadas pelo
mesmo ente federativo.

II. c) Adequação do Instrumento utilizado.

A ação civil pública é cabível para a pretensão


ora deduzida, bem como esse Juízo da Fazenda Pública é
competente para dela conhecer.

Volta-se a presente ação civil pública à


reparação do dano sofrido pelas vítimas e pela coletividade, de modo
a tutelar, a um só tempo, a dignidade da pessoa humana e a
sociedade paulista como um todo. Objetiva-se, também, a
consolidação do princípio democrático, com a efetiva aplicação dos
preceitos da Justiça de Transição.

Discute-se, portanto, matéria de natureza


primordialmente constitucional, com base do art. 1º, caput, e
inciso III da Constituição Federal, numa perspectiva coletiva; daí
a necessidade e pertinência do instrumento previsto na Lei nº
7347/95.

O não pagamento de indenizações pela


violação de direitos humanos provocada pelo Estado de São Paulo e

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a não concretização dos princípios da justiça de transição,


propiciando a atuação violenta das forças estatais, violam a
dignidade da pessoa humana e também o próprio Estado
Democrático de Direito.

III. DA INEXISTÊNCIA DA PRESCRIÇÃO.

Muito embora os fatos tenham se dado há


mais de uma década, não se há que falar em prescrição, aplicável às
relações de natureza civil. Aqui são discutidas violações severas e
graves aos direitos humanos e também ao Estado Democrático de
Direito, que extravasam, portanto, as relações sociais de índole
privada reguladas pelo Código Civil.

Como se pode depreender do que até este


Capítulo está registrado, a questão subjacente a esta demanda gira
em torno da análise da atuação policial estatal empreendida em maio
de 2006, supostamente voltada a garantir a segurança e restabelecer
a ordem pública, por meio de repressão policial a supostos membros
da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) e que
acabou desbordando para execuções sumárias da população civil
não associada à organização criminosa, em grave violação dos
direitos humanos das vítimas.

Essa constatação evidencia que a matéria


tratada escapa à órbita privada do Código Civil e de seus institutos

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(inclusive a prescrição) para adentrar em questões relativas à


segurança pública, que é direito fundamental e dever do Estado.

Se dúvida resta quanto à inaptidão da


incidência do Código Civil ao caso, a transcrição da seguinte diretriz
fundamental posta na Exposição de Motivos do Código Civil, de lavra
do ilustro professor Miguel Reali, põe termo à celeuma:

“a) Compreensão do Código Civil como lei


básica, mas não global, do Direito Privado,
conservando-se em seu âmbito, por
conseguinte, o Direito das Obrigações, sem
distinção entre obrigações civis e mercantis,
consoante diretriz já constrada, nesse ponto,
desde o Anteprojeto do Código de Obrigações
de 1941, e reiterada no Projeto de 1965.” 5

(g.n.)

Não fosse suficiente, o Superior Tribunal de


Justiça já reconheceu que nos casos em que são discutidas graves
violações a direitos humanos não há de se falar em prescrição da
pretensão reparatória.

Muito embora o caso específico se refira à


perseguição política durante o período militar, o fundamento para se

5
Novo Código Civil, Exposição de Motivos e Texto Sancionado, Brasília, 2005, 2ª ed., p.
17.
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afastar a prescrição não foi exclusivamente o artigo 8º, § 3.º, do Ato


das Disposições Constitucionais Transitórias, mas a dignidade da
pessoa humana, como se pode observar nos trechos abaixo
transcritos:

"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO.


INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS
MORAIS. REGIME MILITAR. PERSEGUIÇÃO
E PRISÃO POR MOTIVOS POLÍTICOS.
IMPRESCRITIBILIDADE. DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA. INAPLICABILIDADE DO
ART. 1.º DO DECRETO Nº 20.910/32.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO.
DANOS MORAIS.
1. Ação Ordinária de indenização, proposta
em face da União, objetivando a condenação
da demandada ao pagamento de indenização
por danos morais decorrentes das torturas
físicas, morais e psicológicas sofridas durante
o regime militar.
2. A violação aos direitos humanos ou direitos
fundamentais da pessoa humana, como sói
ser a proteção da sua dignidade lesada pela
tortura e prisão por delito de opinião durante o
Regime Militar de exceção enseja ação de
reparação ‘ex delicto’ imprescritível, e ostenta

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amparo constitucional no art. 8º, § 3.º, do Ato


das Disposições Constitucionais Transitórias.
3. À luz das cláusulas pétreas
constitucionais, é juridicamente
sustentável assentar que a proteção da
dignidade da pessoa humana perdura
enquanto subsiste a República Federativa,
posto seu fundamento.
4. Consectariamente, não há falar em
prescrição da pretensão de se implementar
um dos pilares da República, máxime
porque a Constituição não estipulou lapso
prescricional ao direito de agir,
correspondente ao direito inalienável à
dignidade.
5. Outrossim, a Lei n.º 9.140/95, que criou as
ações correspondentes às violações à
dignidade humana, perpetradas em período
de supressão das liberdades públicas, previu
a ação condenatória no art. 14, sem
cominar prazo prescricional, por isso que a
‘lex specialis’ convive com a ‘lex generalis’,
sendo incabível qualquer aplicação analógica
do Código Civil ou do Decreto nº 20.910/95 no
afã de superar a reparação de atentados aos
direitos fundamentais da pessoa humana,

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como sói ser a dignidade retratada no respeito


à integridade física do ser humano.
6. À lei interna, adjuntam-se as inúmeras
convenções internacionais firmadas pelo
Brasil, como, v.g., Declaração Universal da
ONU, Convenção contra a Tortura adotada
pela Assembleia Geral da ONU, a Convenção
Interamericana contra a Tortura, concluída em
Cartagena, e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica).
7. A dignidade humana violentada, ‘in casu’,
posto ter decorrido, consoante noticiado pelos
autores da demanda em sua exordial, de
perseguição política imposta ao seu genitor,
prisão durante o Regime Militar de exceção,
revelando-se referidos atos como flagrantes
atentados aos mais elementares dos direitos
humanos, que segundo os tratadistas, são
inatos, universais, absolutos, inalienáveis e
imprescritíveis.
8. A exigibilidade a qualquer tempo dos
consectários às violações dos direitos
humanos decorre do princípio de que o
reconhecimento da dignidade humana é
fundamento da liberdade, da justiça e da
paz, razão por que a Declaração Universal

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inaugura seu regramento superior


estabelecendo no art. 1º que "todos os
homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos".
9. Deflui da Constituição Federal que a
dignidade da pessoa humana é premissa
inarredável de qualquer sistema de direito que
afirme a existência, no seu corpo de normas,
dos denominados direitos fundamentais e os
efetive em nome da promessa da
inafastabilidade da jurisdição, marcando a
relação umbilical entre os direitos humanos e
o direito processual.
10. Agravo regimental desprovido." 6

A imprescritibilidade também já foi


reconhecida em outros importantes precedentes no Superior Tribunal
de Justiça, que a desvinculou da perseguição política realizada
durante o período ditatorial (1964-1985):

“DECISÃO PROCESSUAL CIVIL,


CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS E
MATERIAIS. ATOS DE TORTURA. NÃO

6
STJ – Resp: 816.209 – RJ 2006/0022932-1, Relator Min. Luiz Fux, DJ 10/04/2007 e
DP 03/09/2007.
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OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO
QUINQUENAL. VIOLAÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS. ENTENDIMENTO DO
ACÓRDÃO RECORRIDO EM DISSONÂNCIA
COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
IMPRESCRITIBILIDADE POR SE TRATAR
DE VIOLAÇÃO A DIREITOS HUMANOS.
PRECEDENTES: RESP. 1.128.042/PR, REL.
MIN. SÉRGIO KUKINA, DJE 23.8.2013;
AGRG NO ARESP. 302.979/PR, REL. MIN.
CASTRO MEIRA, DJE 5.6.2013. RECURSO
ESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO
PARA AFASTAR A PRESCRIÇÃO
QUINQUENAL.” 7

Nesse caso concreto, o STJ discutia


pagamento de indenizações para adolescentes internados da
Fundação CASA que foram torturados. O julgado indica com clareza,
portanto, que a imprescritibilidade não se limita aos casos de
perseguição política durante a Ditadura Militar.

Além disso, há julgados a comprovarem que


não é só o ato de tortura que é insuscetível à prescrição.

7
STJ, REsp: 1358569 RJ 2012/0265142-3, Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho,
DJ: 09/05/2017.
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O Tribunal Regional Federal da 3ª Região,


inclusive, já acolheu a tese no sentido de que a imprescritibilidade
não se restringe aos casos de tortura decorrentes de perseguição
política. A imprescritibilidade se dá, na verdade, quando existe
violação de direitos humanos:

“DIREITO PROCESSUAL CIVIL.


CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
ANISTIADO POLÍTICO. INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS. POSSIBILIDADE DE
CUMULAÇÃO COM REPARAÇÃO
ECONÔMICA CONCEDIDA PELA
COMISSÃO DE ANISTIA.
IMPRESCRITIBILIDADE. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO
INEXISTENTES.
1. São manifestamente improcedentes os
presentes embargos de declaração, pois não
se verifica qualquer omissão ou contradição
no julgamento impugnado, mas mera
contrariedade da embargante com a solução
dada pela Turma, que, à luz da legislação
aplicável e com respaldo na jurisprudência,
consignou expressamente que "O Superior
Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso
Especial 1.485.260, de relatoria do Ministro
SÉRGIO KUKINA, publicado no DJE de

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19/04/2016, considerou que a 'reparação


econômica de que trata a Lei nº 10.559/02
não exclui, só por si, o direito de o anistiado
buscar na via judicial, em ação autônoma e
distinta, a reparação dos danos morais que
tenha sofrido em decorrência da mesma
perseguição política geradora da pré-falada
reparação administrativa (art. 5º, V e X, da
CF), pois distintos se revelam os fundamentos
que ampararam a cada uma dessas
situações".
2. (...).
3. (...).
4. Ressaltou-se que [se] "encontra-se
consolidada a jurisprudência no sentido da
imprescritibilidade de pretensões
compensatórias de dano moral
decorrentes de graves violações aos
direitos de personalidade e dignidade da
pessoa humana, como são as
questionadas no presente feito, não se
aplicando o Código Civil nem o Decreto-Lei
20.910/1932, sendo irrelevante, portanto,
apontar o termo inicial já que não existe
prazo prescricional para a hipótese".
5. Não tem respaldo, pois, a tese de que a
imprescritibilidade somente deva ser

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aplicada aos casos de tortura, e não de


outras graves violações aos direitos da
personalidade e dignidade da pessoa
humana e, por outro lado, quanto às
alegações de que tal solução viola normas
constitucionais e legais, ou não se enquadram
na espécie a jurisprudência firmada,
evidencia-se que não se prestam os
embargos de declaração a atuar em situações
que tais.
6. (...).
7. (...).
8. (...).
9. (...).
10. (...).
11. Embargos de declaração rejeitados.”8

Ou seja, a partir da análise dos julgados


acima colacionados, extraem-se duas conclusões sobre a
imprescritibilidade da ação de reparação de danos decorrentes de
graves violações a direitos humanos:

 não é necessário que os fatos tenham


acontecido durante o período da Ditadura
Militar (1964-1985);

8
TRF 3ª Região, EDAC n.º 0007028-08.2015.4.03.6100/SP, Relator Des. Carlos Muta,
DJ: 30/11/2017, DP: 06/12/2017.
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 não é necessário que a violação de


direitos humanos seja decorrente de ato de
tortura.

Por fim, a jurisprudência internacional é


pacífica no sentido de que essas graves violações de direitos
humanos são imprescritíveis. No caso Barrios Altos vs. Peru, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos decidiu, no item 41 da decisão,
que:

“41. Esta Corte considera que são


inadmissíveis as disposições de anistia, as
disposições de prescrição e o
estabelecimento de excludentes de
responsabilidade que pretendam impedir a
investigação e punição dos responsáveis por
graves violações de direitos humanos, tais
como tortura, execuções sumárias,
extralegais ou arbitrárias e
desaparecimentos forçados, todas elas
proibidas por violar direitos inderrogáveis
reconhecidos pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos.” 9

9
Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/092b2fec1ad5039b26ab5f98c3f921
18.pdf. Consultado no dia 09 de novembro de 2018.
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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Esse mesmo posicionamento foi reiterado no


caso Bulacio vs. Argentina, consolidando o entendimento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.10

Repetiu-se e aprimorou-se no caso Ibsen


Cárdenas e Ibsen Peña vs. Bolívia e, também, no caso Vera Vera e
outra vs. Equador, no qual a Corte expressou:

“(...) a improcedência da prescrição


usualmente tem sido declarada pelas
peculiaridades nos casos em que envolvem
graves violações a direitos humanos, tais
como desaparecimento forçado, a execução
extrajudicial e a tortura. Em alguns destes
casos, as violações de direitos humanos
ocorrem em contextos de violações massivas
e sistemáticas (§ 117).11

Dessa forma, não há que se cogitar de


prescrição em qualquer das pretensões apresentadas nesta ação
civil pública. A jurisprudência dos tribunais, inclusive a da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, firmou-se de modo a
reconhecer que não corre prescrição para indenizações ou
responsabilizações relativas a graves violações de direitos humanos.
10
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_100_esp.pdf.
Consultado no dia 12 de novembro de 2018.
11
Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/04/6ad46427db93181864bcae212f1ed
947.pdf. Consultado no dia 04 de dezembro de 2018.
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IV. DOS FATOS.

IV. a) As investigações da Promotoria de Justiça de Direitos


Humanos, área da Inclusão Social.

A Promotoria de Justiça de Direitos Humanos


da Capital – Área da Inclusão Social – recebeu em dezembro do ano
de 2014 representação do Centro de Apoio Operacional Criminal do
Ministério Público, encaminhando cópia de procedimentos em curso
naquela pasta, para adoção de providência no âmbito dos direitos
transindividuais no que tange ao episódio ocorrido no Estado de São
Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, caracterizado por uma
onda de violência que culminou em centenas de mortes.

A representação contava aproximadamente


900 (novecentas) páginas e versava sobre fatos complexos,
envolvendo, a princípio, 493 (quatrocentos e noventa e três) mortes e
demandava análise minuciosa das provas. Nesse contexto, tendo em
vista a relevância social e complexidade da questão, requereu-se à
Administração Superior a designação de Promotor de Justiça para
atuar com especial dedicação ao procedimento por período
determinado, viabilizando-se, dessa forma, análise acurada do caso.

Posteriormente, foi feito levantamento de


eventuais expedientes análogos em outras Promotorias de Justiça,
constatando-se a existência de um procedimento (Procedimento

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349/2006) que versava sobre irregularidades de laudos


necroscópicos, mas que foi arquivado.

Com esses dados se instaurou o Inquérito


Civil nº 14.0725.0001580/2014-1 e a ele foram juntados os seguintes
estudos:

 “SÃO PAULO SOB ACHAQUE:


Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio
de 2006”, elaborado pela International Human Rights Clinic,
programa da Universidade de Harvard (Harvard Law School):
neste estudo, publicado em 2011, tem-se relatório pormenorizado do
episódio que ficou conhecido historicamente como “Crimes de Maio”.
Há análise dos antecedentes dos fatos, das rebeliões e das
respostas que o Estado apresentou. Existe ainda balanço do que
tinha sido feito em 2011 e o que ainda precisaria ser feito.

 “Violência de Estado no Brasil: uma


análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da
antropologia forense e justiça de transição” – UNIFESP: neste
estudo existe importante discussão sobre os Crimes de Maio dentro
do contexto da letalidade policial e da Justiça de Transição. O estudo
indica que a violência policial é decorrência da não realização da
Justiça de Transição. Ainda faz importante mapeamento dos óbitos,
especificamente na Baixada Santista, e apresenta estudo
antropológico, a demonstrar que as pessoas foram vitimadas dentro
de um contexto de extermínio, não de confronto, valendo-se de
23
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

técnica própria para análise dos exames necroscópicos. Faz também


interessante levantamento das matérias publicadas pela grande
imprensa paulista naqueles dias de maio, levantamento esse aqui
utilizado como fonte de informações.

 Estudo do CREMESP sobre os Crimes


de Maio: aponta conclusões médicas sobre os óbitos e laudos
necroscópicos, indicando fortes indícios de execuções sumárias.

 Relatório sobre os Crimes de Maio de


2006, da Comissão Especial Crimes de Maio – Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE): traz um
panorama geral dos Crimes de Maio, sistematizando de modo
conciso o contexto histórico, a forma das execuções e a resposta
estatal aos fatos.

 “Eles entram atirando” (Anistia


Internacional): este estudo analisa a letalidade da polícia. Não se
relaciona especificamente com os Crimes de Maio, mas demonstra o
modo de agir de grupos de extermínio na Polícia Militar.

 Força Letal – Violência Policial e


Segurança Pública do Rio de Janeiro e em São Paulo (Human
Rights Watch): retrata a violência policial e também a ação de
organizações criminosas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro,
com destaque para as organizações criminosas Primeiro Comando
da Capital (PCC), Comando Vermelho e Amigos dos Amigos. No
estudo, a Human Rights Watch também examinou 23 processos que
24
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

continham declarações de testemunhas e evidências de um


certo modus operandi indicativo do envolvimento de grupos de
extermínio ou milícias nos homicídios.

 Análise dos impactos do PCC em São


Paulo em Maio de 2006 (Laboratório de análise da Violência da
UERJ): este estudo traz conteúdo gráfico e estatístico, fazendo
análise da violência no Estado de São Paulo durante os Crimes de
Maio.

 “Brasil – entre o ônibus em chamas e


o caveirão: em busca da segurança cidadã” (Anistia
Internacional): o relatório resume a onda de violência decorrente
dos Crimes de Maio e avalia as reações dos governos estadual e
federal. Diante da crescente vulnerabilidade do Estado frente à
criminalidade, examinam-se as falhas do sistema de justiça criminal,
tais como a corrupção generalizada que permitiu ao crime
organizado criar raízes que abalaram profundamente a confiança da
sociedade no sistema de justiça e na polícia.

Além desses relatórios que, de modo mais ou


menos generalizado trazem narrativa pormenorizada dos fatos,
foram juntados aos autos do inquérito civil outros documentos de
extrema importância.

O primeiro deles consiste em uma relação de


vítimas fatais e dos respectivos processos criminais, com cópia dos

25
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

arquivamentos e denúncias. Esse tópico será pormenorizadamente


detalhado em momento oportuno, de modo a demonstrar que os
assassinatos de agentes estatais foram devidamente investigados e
punidos, enquanto as investigações envolvendo morte de civis foram
em regra arquivadas, em razão de invocada legalidade da atuação
policial no curso de sua atuação ou pela insuficiência de elementos
de autoria delitiva.

E o segundo documento importante consiste


no pedido de reanálise dos processos criminais e questionamentos
sobre a atuação do Ministério Público, buscando a responsabilização
penal dos autores dos crimes, formulado por órgãos públicos e
entidades da sociedade civil12. Esse pedido, como já mencionado na
introdução desta petição inicial, não será objeto deste feito. A
Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, área da Inclusão Social,
não tem atribuição em matéria criminal.

Após a juntada de toda essa documentação,


ainda foram juntados aos autos os relatórios da Corregedoria da
Polícia Federal (fls. 404/412 do Inquérito Civil), representação pela
federalização para a Procuradoria-Geral da República (fls. 413/415
do Inquérito Civil), manifestação da Polícia Federal (fls. 418/426 do
Inquérito Civil), informações da Secretaria de Segurança Pública (fls.
429/435 do Inquérito Civil), informações da Polícia Civil (fls. 484/492

12
São autores do requerimento: Ouvidoria de Polícias do Estado de São Paulo; Anistia
Internacional; Movimento Mães de Maio; Defensoria Pública do Estado de São Paulo;
Ação dos Cristãos para Abolição da Tortura (ACAT), Justiça Global, CONDEPE e
Universidade de Harvard.
26
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

do Inquérito Civil) e informações da Polícia Militar (fls. 493/505 do


Inquérito Civil). Todos esses documentos estão acostados à
inicial.

Nos volumes 4/18 do Inquérito Civil foram


juntadas cópias dos Inquéritos Policiais instaurados para apurar
individualmente os delitos relativos aos Crimes de Maio. Esses
documentos não estão acostados aos autos pelo fato de não se
cuidar, no presente caso, de investigação individual dos crimes, mas
análise do dano social que eles causaram e o que representam
dentro do contexto e das finalidades da Justiça de Transição.

Posteriormente, foram juntados aos autos


cópia de apresentação do I Seminário Municipal de Segurança
Pública e Direitos Humanos – Juventude e violência na cidade de
São Paulo (fls. 3652/3690 do Inquérito Civil) e Relatório da Anistia
Internacional sobre execuções extrajudiciais no Brasil (fls. 3692/3704
do Inquérito Civil). Esses documentos também foram acostados à
inicial.

Por fim foi anexado, também, disco compacto


magnético contendo a manifestação do Ministério Público Federal
perante o Superior Tribunal de Justiça, pugnando o incidente de
federalização de alguns dos crimes investigados aqui (fls. 3712 do
Inquérito Civil).

27
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

É com base nesses documentos e


investigações que se elabora a presente ação civil pública. Ressalte-
se que a narrativa dos fatos está alicerçada em fundamentos sólidos
e cientificamente deduzidos pelos autores dos trabalhos
mencionados. A narrativa, pois, não é mera apreciação subjetiva
desta Promotoria de Justiça, mas, sim, resultado de percuciente e
demorada análise dos estudos e relatórios, de diversas e
respeitáveis fontes, elaborados por Universidades (públicas
brasileiras e estrangeiras), Órgãos Públicos com atribuição legal no
assunto, Organizações Não Governamentais com expertise no tema
e Conselhos Regionais profissionais. São estudos baseados em
variada metodologia, desde coleta de depoimentos, até recursos
tecnológicos e computacionais avançados.

IV. b) Síntese das investigações e dos relatórios.

IV.b.1) Os antecedentes dos ataques do PCC.

Todos os estudos e relatórios juntados aos


autos indicam que os ataques do Primeiro Comando da Capital, em
maio de 2006, fundamentaram-se no crescimento do crime
organizado no interior dos presídios do Estado de São Paulo.

Como esclarece o relatório São Paulo sob


Achaque, o próprio Estado criou as circunstâncias para o surgimento
de organizações criminosas dentro do sistema prisional:

28
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“Superlotação, condições desumanas, maus


tratos fomentaram a criação da facção
criminosa que vem crescendo desde 1993, se
legitimando entre os presos ao repudiar
abusos do Estado em situações como as
chacinas do 42º Distrito Policial em 1998 (18
presos asfixiados) e na Casa de Detenção do
Carandiru (111 presos executados)”13

Segundo o relatório “Violência de Estado no


Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da
antropologia forense e justiça de transição” a origem do PCC
remonta ao ano de 1994, momento em que um grupo de reclusos se
organizou na Casa de Custódia de Taubaté contra a disciplina e
contra as violações de direitos que os presos sofriam diariamente
naquela unidade carcerária.14

Posteriormente, a facção acabou se


expandido de modo generalizado, estabelecendo-se em unidades de
segurança máxima, penitenciárias e centros de detenção provisória,
ou seja, em prisões destinadas a presos condenados a cumprir a
pena em regime fechado e em prisões destinadas a abrigar presos
ainda não condenados, denominados presos provisórios.15

13
São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em
maio de 2006. IHRC International Human Rights Clinic/Justiça Global, 2011, p. 5
14
Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na
perspectiva da antropologia forense e justiça de transição” – UNIFESP, 2018, p. 42
15
São Paulo sob achaque, p. 47
29
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Posteriormente, ao que se sabe, a facção


assumiu fortemente o controle do tráfico de entorpecentes, não
apenas em São Paulo, mas em vários Estados brasileiros, mas estes
desdobramentos são irrelevantes para esta demanda judicial.

Durante os eventos de maio de 2006, o


Governo do Estado de São Paulo, por meio de Nagashi Furukawa,
então Secretário de Administração Penitenciária, apresentou a
narrativa de que a megarrebelião e os ataques teriam se iniciado em
razão da transferência de 765 presos para uma penitenciária de
segurança máxima, em Presidente Venceslau, interior de São
Paulo.16

Todavia, em 2008, a imprensa começou a


divulgar versão no sentido de que os ataques estariam acontecendo
em razão dos achaques e sequestros praticados por policiais civis
contra integrantes da facção criminosa.17

Segundo a investigação publicada no jornal o


Estado de São Paulo, policiais civis, comandados por Augusto Peña,
estariam grampeando, sem qualquer autorização judicial, telefones
de membros do PCC e de suas famílias com o objetivo de obter
informações e provas para depois extorqui-los. Conforme consta da
notícia jornalística, os agentes públicos faziam adulterações das

16
Violência de Estado no Brasil, p. 44
17
Disponível dia: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20080505-41838-nac-31-cid-
c4-not. Consulta no dia 05 de dezembro de 2018.
30
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

gravações de modo a forjar provas contra as famílias dos presos e


extorqui-las posteriormente.18

Em outra reportagem intitulada “Policial é


preso acusado de chantagear PCC”, também de maio de 2008,
André Caramante, da Folha de S. Paulo, informa que Augusto Peña
também foi acusado de ter sequestrado, em 2005, para posterior
extorsão, Rodrigo Olivatto de Morais, enteado de Marcos Willians
Herbas Camacho, o Marcola, a principal liderança do PCC19

Desse modo, infere-se que a transferência


dos presos para Presidente Venceslau não teria sido o motivo das
rebeliões e dos ataques, mas apenas o estopim. O relatório São
Paulo sob Achaque também aponta essa realidade:

“a corrupção praticada por agentes públicos


foi uma das principais motivações do PCC
para realizar os ataques em maio de 2006.
Especialmente, um esquema de achaques
(extorsão), praticados contra familiares de
líderes do PCC em 2005”20

E continua:

18
Violência de Estado no Brasil, p. 44
19
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0105200808.htm. Consulta
no dia 05 de dezembro de 2018.
20
São Paulo sob achaque, p. 04
31
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“A corrupção policial, embora pouco


considerada nos estudos sobre este tema, foi
um importante fator para o estopim dos
ataques do PCC. Essa conclusão consta,
inclusive, de um relatório da Polícia Civil que
esteve em um processo sob segredo de
justiça até janeiro de 2010. Os líderes do PCC
conceberam os ataques de maio em grande
parte como revanche pelas extorsões
praticadas pela polícia. Desde 2005, policiais
civis da cidade de Suzano achacavam os
líderes do PCC, interceptando ilegalmente as
conversas telefônicas de seus familiares e
cobrando propinas para não prenderem.”21

Além disso, há indicativos de que a


megarrebelião e os ataques aconteceram para prejudicar a
campanha presidencial do então candidato Geraldo Alckmin,
Governador de São Paulo e, portanto, responsável pela
administração prisional do Estado. Segundo o relatório São Paulo
sob achaque:

“havia várias indicações de que o ataque e o


momento foram planejados pelo PCC não em
antecipação a uma transferência de
lideranças, mas para terem um impacto
21
São Paulo sob achaque, p. 26.
32
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

eleitoral, expondo a campanha do ex-


governador Geraldo Alckmin, candidato a
presidência da República. Furukawa inclusive
explicou que suspeitava que os ataques
fossem em agosto, por ser “nas vésperas da
eleição presidencial, para quebrar mesmo
qualquer possibilidade do Alckmin ser eleito”22

A partir do exposto, conclui-se que a


megarrebelião realizada pelo PCC, com posteriores ataques a
agentes públicos, teve diversas causas e não apenas a transferência
dos presos, como apresenta a versão oficial dada pelas autoridades
da época.

IV. b.2) Salve Geral.

Como afirma o relatório São Paulo sob


Achaque, há um relato oficial sobre os Crimes de Maio, o qual
sustenta que os crimes ocorridos durante o mês de maio foram
resultado de uma série de enfrentamentos entre os dias 12 e 20 de
maio de 2006 entre integrantes do PCC e as forças de segurança do
Estado de São Paulo, nas ruas das cidades.

A narrativa, construída pelas autoridades,


afirma que o PCC iniciou os ataques no dia 12 de maio,
beneficiando-se inicialmente da falta de divulgação entre as forças
22
São Paulo sob achaque, p. 32
33
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

de segurança de que tal se daria, o que teria permitido o assassinato


de vários agentes públicos e, posteriormente, em resposta aos
ataques, a morte de membros da organização criminosa em
enfrentamentos com as forças de segurança.23

Essa versão oficial, apesar de não ser


integralmente correta, como vai se demonstrar ao longo desta ação
civil pública, contém relatos importantes. Os ataques, no dia 12 de
maio, de fato aconteceram. Todavia, não houve enfrentamento com
a organização criminosa, mas perseguição de supostos membros do
PCC, com a execução de inúmeras pessoas nas periferias,
vinculadas ou não ao crime organizado, eliminadas sem distinção.

Como já mencionado, a maior parte do


sistema prisional do Estado de São Paulo foi tomado por uma
megarrebelião entre os dias 12 e 14 de maio daquele ano,
envolvendo 74 unidades prisionais (presídios de segurança máxima,
penitenciárias e centros de detenção provisória)24 e demonstrando a
influência e coordenação do PCC dentro do sistema prisional
paulista.

As adesões às rebeliões aconteceram em


ondas, em razão do descontentamento com as condições do sistema
prisional e da corrupção da polícia.25

23
São Paulo sob achaque, p. 58
24
Ibid., p. 49.
25
Ibid., p. 26/27
34
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O relatório São Paulo sob Achaque aponta


com precisão a proporção das penitenciárias nas quais houve
rebelião:26

1) Coordenadoria da Capital e da Grande


São Paulo: 62,5% das penitenciárias e 56,25% dos centros de
detenção se rebelaram;

2) Coordenadoria da Região Central do


Estado: 46,15% das penitenciárias e 66,66% dos centros de
detenção se rebelaram;

3) Coordenadoria do Vale do Paraíba e


Litoral: 62,5% das penitenciárias e 83,33% dos centros de detenção
se rebelaram;

4) Coordenadoria da Região Noroeste:


59,09% das penitenciárias e 66,66% dos centros de detenção se
rebelaram;

5) Coordenadoria da Região Oeste: 80,76%


das penitenciárias e 50% dos centros de detenção se rebelaram.

Após o início das rebeliões, dezenas de


ônibus foram incendiados e agências bancárias e repartições
públicas foram atacadas a tiros e bombas.
26
São Paulo sob achaque, p. 48/49
35
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Na sexta-feira, mais precisamente,


começaram os ataques a policiais e outros agentes públicos. O
primeiro ataque, segundo o relatório São Paulo sob Achaque, deu-
se com a rebelião na Penitenciária Dr. Paulo Luciano de Campos –
Avaré I, após o suposto líder mais influente do PCC, Marcola, ser
transferido dali para uma cela do DEIC na cidade de São Paulo.27

Os ataques e homicídios, que ficaram


posteriormente conhecidos como “Salve Geral”, não se deram
durante tiroteios, mas em emboscadas contra agentes públicos que
estavam em horário de folga nas ruas, restaurantes, bares e espaços
públicos de São Paulo.28 Esse fato, por si só, já demonstra que a
narrativa oficial é equivocada. Os enfrentamentos aconteceram
apenas em escala reduzida. Os membros do PCC executaram
policiais e os colegas policiais das vítimas revidaram, matando
membros da organização criminosa e civis sem qualquer
envolvimento (maioria dos casos).

Como esclarece o relatório “Violência de


Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na
perspectiva da antropologia forense e justiça de transição”, fazendo
menção ao relatório São Paulo sob Achaque:

27
São Paulo sob achaque, p. 47
28
Ibid., p. 62
36
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“Os documentos e narrativas da época


permitem afirmar – continua o relatório – com
bastante certeza que durante os primeiros três
dias (de 12 a 14 de maio) o PCC realizou
dezenas de ataques contra os agentes
públicos, e como consequência foram mortas
43 pessoas em ações ligadas ao PCC. Nos
mesmos dias, também houve ações que
tiveram como resultado a morte de agentes
públicos em enfrentamento com a
organização criminosa. No entanto, a partir do
dia 14 e até o dia 20 de maio, as evidências
indicam que houve uma decisão oficial de
iniciar uma ação repressiva de resposta aos
ataques.”29

Além disso, há indicativos de que os ataques


aconteceram em todo o Estado de São Paulo, com maior destaque
para a Capital, Região Metropolitana e Baixada Santista. O estudo
realizado pela UERJ, com base em dados parciais, fez registro da
quantidade de mortes por arma de fogo no Estado de São Paulo:30

29
Violência de Estado no Brasil, p. 51
30
ANÁLISE DOS IMPACTOS DOS ATAQUES DO PCC EM SÃO PAULO EM MAIO DE
2006, laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), Pesquisa encomendada por
CONECTAS DIREITOS HUMANOS, Relatório Final, 2008, p. 14. Essa tabela não faz
diferenciação entre os mortos civis e mortos agentes públicos. No entanto, serve para
ilustrar a grande quantidade de vítimas nas mais diversas regiões do Estado de São
Paulo, o que demonstra que a violência foi generalizada.
37
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Houve, portanto, abrangência espacial e


abrangência temporal ampla, levando o Estado de São Paulo a uma
situação generalizada e difusa de violência e medo.

É importante ressaltar que, durante os


ataques, não havia certeza do que estava realmente acontecendo. A
cobertura da mídia era insuficiente e os órgãos oficiais não estavam

38
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

revelando os dados com precisão, deixando a população


desorientada. Ademais, não havia redes sociais ou mídia alternativa
disseminada, permitindo grassassem os boatos31.

IV. b.3) Represálias.

Pouco tempo após os primeiros ataques


realizados pelo PCC nos dias 12 e 13 de maio de 2006, a Polícia
Militar e grupos de extermínio, possivelmente também formados por
policiais militares, começaram a revidar as mortes dos policiais
vitimados. Foi a partir deste momento que civis começaram a morrer
com maior frequência.

Nota-se que as represálias se deram a partir


de um modus operandi bastante específico (a ser explicado
oportunamente), vitimando principalmente pessoas que moravam e
estavam nas regiões periféricas das cidades do Estado.32

31
Naquele clima de incerteza, decorrente da falta de notícias seguras e de muitos
boatos, dezenas de Promotores de Justiça que atuavam nas Promotorias de Justiça
Criminais do Fórum da Barra Funda assinaram documento em solidariedade aos
policiais que estavam sendo mortos. O primeiro signatário desta petição inicial, abaixo,
titular à época de cargo de Promotor de Justiça criminal, foi um dos signatários daquele
documento. E vale-se deste momento para retratar-se e apresentar escusas aos
familiares dos muitos mortos daqueles dias. Aquela assinatura fora fruto dos temores
decorrentes das poucas informações e do anúncio dos riscos a que estariam
submetidos os agentes públicos em geral. Visto à distância e decorrido o tempo, fica
evidente o equívoco daquele documento.
32
Violência de Estado no Brasil, p. 84
39
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Segundo o Relatório São Paulo sob Achaque,


a Polícia Militar foi responsável por boa parte das execuções e os
integrantes das Rotas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA)
lideraram as execuções:

“O grupo das Rondas Ostensivas Tobias de


Aguiar (ROTA) da Polícia Militar liderou as
execuções cometidas por PMs fardados.
Policiais, enquanto membros do grupo de
extermínio e atuando geralmente
encapuzados, mataram outras dezenas de
pessoas. Policiais também foram

40
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

responsáveis por desaparecimentos forçados.


Ao todo, mesmo com acesso limitado a
informações, identificamos 122 homicídios
ocorridos entre 12 e 20 de maio de 2006,
contendo indícios consistentes de possíveis
execuções praticadas por policiais.” 33

O relatório também indica que os comandos


da Polícia incentivaram e aceitaram uma resposta violenta e
indiscriminada por parte de seus subordinados:

“Quando o auge dos ataques do PCC havia


passado, os comandos das polícias
incentivaram e/ou aceitaram uma resposta
violenta e indiscriminada por parte de seus
subordinados e foram complacentes com
violações de direitos humanos em grande
escala contra a população de São Paulo, em
especial os moradores de áreas pobres. [...]
mas policiais também executaram dezenas de
pessoas em ações ilegítimas, tais como
“tiroteios” forjados, após o PCC já ter cessado
os ataques coordenados.”34

33
São Paulo sob achaque, p. 27
34
Idem.
41
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os ataques letais contra agentes públicos na


Capital, Região Metropolitana e Baixada Santista cessaram na noite
do domingo, dia 14. Esses ataques foram revidados, com maior
intensidade, exatamente a partir do dia 14.

De acordo com relatório São Paulo sob


Achaque, em 72 horas após o Dia das Mães (segunda, terça e
quarta-feira, dias 15, 16 e 17), policiais, só na Capital, Região
Metropolitana e Baixada Santista, mataram 60 pessoas, todas em
supostos tiroteios, sem que nenhum dos policiais fosse ferido.35

Essa situação indica claramente que não


houve confronto, mas sim execução, em represália às mortes dos
agentes públicos nos primeiros dias dos Crimes de Maio.

No período referido houve aumento


significativo do número de mortos por parte da polícia e
especificamente pela ROTA. De acordo com os dados do Comando
de Policiamento de Choque (CPChq), a letalidade nesse período foi
excepcionalmente alta. A primeira tabela indica a quantidade de
mortes no mês anterior e posterior; e a segunda tabela indica a
comparação de mortes em maio dos anos de 2005 e 200736:

35
São Paulo sob achaque, p. 60
36
Ibid., p. 90/91
42
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os gráficos indicam que os grupos de choque


mataram muito acima da média nos poucos dias dos Crimes de Maio
e escamotearam-nos com “autos de resistência”. Conforme aponta o
relatório São Paulo sob Achaque, 23 pessoas mortas pela ROTA
nesse período tinham indícios significativos de execuções e por isso
o texto apontou que:

“As duas comparações estatísticas indicam


que o CPChq aparentemente não sofreu
maior ‘resistência’ do que o normal quando
policiava as ruas de São Paulo após o início
da onda de violência de maio de 2006, mas
mesmo assim chegou a matar acima do seu
normal. Tais estatísticas sugerem que
quando os PMs do CPChq saíram na
segunda-feira, 15 de maio de 2006, muitos

43
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

parecem ter saído para matar (negrito


nosso).”37

A partir desses dados é possível inferir que


houve, de fato, revide por parte da polícia como reação ao “Salve
Geral”. Os detalhes das represálias, com outros dados indicando a
participação da polícia, serão apresentados no tópico específico em
que são discutidas as evidências da responsabilidade pelas mortes
dos civis.

IV. b.4) O fim dos ataques e das represálias.

Não se sabe exatamente o que ensejou o fim


dos ataques e da escalada da violência durante os Crimes de Maio.
Ao que tudo indica, houve um acordo das autoridades com a chefia
do PCC. Segundo o relatório São Paulo sob Achaque, há indícios
significativos de que houve uma composição entre o PCC e o
Governo do Estado.

“A suspensão quase simultânea das dezenas


de rebeliões levantou a forte suspeita de que
o governo teria feito um acordo de teor
desconhecido com o PCC. As autoridades
estatais nunca negaram que houve um

37
São Paulo sob achaque, p.92
44
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

encontro (ou “conversa”) com o suposto líder


da facção.”38

No dia 16 de maio, o jornal Folha de São


Paulo noticiou que as autoridades teriam feito um “acordo” com o
PCC, fato que foi veementemente negado pelo governo paulista. Um
“acordo” entre o PCC e o Estado foi negado pelo Comandante Geral
da Polícia Militar e pelo Delegado Geral do DEIC, dentre outras
autoridades.

Todavia, a negativa do acordo foi apontada


por diversas autoridades no relatório São Paulo sob Achaque:

“Alguns interlocutores afirmavam a existência


do acordo. Outros como o Comandante da PM
Éclair, falavam em uma mera “conversa”.
Outros, ainda, como o Cabo Wilson Morais,
Presidente da Associação de Cabos e
Soldados da Polícia Militar do Estado de São
Paulo, preferiram o termo “trégua”. Nagashi
Furukawa, então Secretário de Administração
Penitenciária, em entrevista aos
pesquisadores Paula Miraglia e Fernando
Salla em 2008, especulou que talvez a
redução radical na ocupação de celas RDD na
gestão posterior à dele seja uma evidência de
38
São Paulo sob achaque, p. 27
45
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

que haveria uma espécie de acordo. Resta, no


entanto, que ao menos o encontro foi
confirmado pelo Estado como tendo
acontecido entre Marcola e a advogada e ex-
delegada Iracema Vasciaveo, que dizia poder
influenciar a facção.”39

Segundo o relatório São Paulo sob Achaque,


o fim da violência coincide com um encontro secreto entre a cúpula
do governo paulista com Marcola. Em 2015, em entrevista ao jornal
O Estado de São Paulo, Cláudio Lembo, então Governador do
Estado, negou acordo com o crime organizado, mas admitiu que o
encontro de Marcola com a sua advogada, autorizado por ele, ajudou
a por fim aos ataques.40

O relatório “Violência de Estado no Brasil:


uma análise dos Crimes de Maio de 2006 na perspectiva da
antropologia forense e justiça de transição” – UNIFESP indica, com
base em reportagem da Folha de São Paulo, que: “horas depois das
negociações com representantes do governo, a cúpula do PCC
ordenou o fim dos ataques e das rebeliões em São Paulo”. 41

Segundo a reportagem, os líderes da


organização teriam ordenado aos presos e aos membros do PCC
que estavam fora das prisões o fim dos ataques. Na reunião com as
autoridades, segundo o jornal, o PCC teria condicionado o fim dos

39
São Paulo sob achaque, p. 27.
40
Ibid., p. 56.
41
Violência de Estado no Brasil, p. 48.
46
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

ataques a benefícios para os presos transferidos para a penitenciária


de Presidente Venceslau, exigindo que a tropa de choque da Polícia
Militar não mais entrasse nos presídios rebelados e que não
houvesse retaliações contra os presos.

De todo modo, se é certo que inexiste


consenso sobre o que ensejou o término dos ataques e o término
das represálias praticadas pela Polícia Militar, é igualmente certo que
há indícios significativos de que houve um acordo entre o Governo e
a organização criminosa.

De qualquer forma, ressalte-se novamente


que, ao término dos ataques do PCC e da represália da Polícia
Militar, foram vitimadas 564 pessoas, sendo 505 civis e 59
militares, no período de apenas 09 (nove) dias.

V. AS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS.

Em relação às investigações criminais, pode-


se afirmar que, até a presente data, as vítimas consideram que não
houve uma reposta adequada por parte do Estado.

Por esse motivo, o Movimento Mães de Maio,


em parceria com o grupo Conectas Direitos Humanos, no ano de
2009, solicitou ao Procurador-Geral da República a federalização da
“Chacina do Parque Bristol”, que se deu em 14 de maio de 2006.

47
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O pedido afirma que, ainda que do ponto de


vista formal tenha havido um inquérito policial:

“as investigações se limitaram a poucas


diligências para oitiva de familiares, sem nem
ao menos aprofundar investigações a respeito
das reiteradas indicações de que havia
policiais envolvidos ou investigar os fatos no
contexto em que ocorreram.”

Em 2016, o Procurador-Geral da República


conheceu do pedido e apresentou o pedido de federalização perante
o Superior Tribunal de Justiça. Nesse incidente, o Procurador afirma
que:

“A inércia das instâncias e autoridades


estaduais, caracterizada, neste caso, pela
realização de investigação meramente formal,
protocolar, ignorando a busca da verdade
material, das conexões existentes entre
crimes quase simultâneos e extremamente
similares, impossibilitou a responsabilização
dos autores, sendo inafastável a necessidade
de revisão dos atos de instrução e a
reabertura das investigações, dessa feita por
parte da Polícia Federal.”

48
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

No volume 1, anexo 1, fls.15, do Inquérito Civil


que, em peças selecionadas, instrui essa petição inicial, há indicativo
de que houve, de fato, arquivamento de boa parte dos casos, sendo
que os policiais foram denunciados em poucos casos.42

Dados publicados pela própria ouvidoria da


polícia indicam a grande proporção de arquivamentos nas
chacinas43:

42
Casos de Resistência Seguida de Morte: 48 casos, 79 vítimas.
- 72.92% Arquivados
- 4.17% policiais denunciados
- 22.91% em andamento (em 2010).
43
Fl.19 Inquérito Civil, anexo I (doc. anexo).
49
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

E, de fato, as pesquisas demonstram a


inexistência de condenações criminais pelos crimes aqui tratados,
cujos motivos escapam desta demanda e, especialmente, das
atribuições desta Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, cuja
atuação cinge-se à tutela coletiva.

VI. A IMPRENSA E OS MOVIMENTOS SOCIAIS.

VI. a) Cobertura dos fatos e a narrativa da imprensa.

Como apontam os estudos, a partir do


momento em que compreendeu o que se passava, a mídia fez
cobertura ampla dos acontecimentos, uma vez que influenciaram
diretamente e de modo intenso na rotina de toda a população
paulistana e paulista. A cobertura jornalística dos fatos, à época, se
mostrou bastante divergente.

Segundo o relatório “Violência de Estado no


Brasil: uma análise dos Crimes de maio de 2006 na perspectiva da
antropologia forense e justiça de transição”, o Jornal Estadão se
notabilizou por defender uma ação dura da polícia, só assumindo
postura mais crítica a partir das inúmeras evidências que apontavam
o uso excessivo da força por essa instituição. Contudo, mesmo
nesse momento, tratou as vítimas não vinculadas às forças policiais
como “agressores”. Já o jornal a Folha de S. Paulo, adotou discurso

50
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

mais moderado e houve grande destaque para as matérias


assinadas por André Caramante, que questionavam as declarações
oficiais, exigiam do governo maiores informações sobre os fatos e
publicavam as versões dos familiares das vítimas44

No começo, o Estadão indicava que as


vítimas civis eram “supostos integrantes do PCC”. No entanto, a
partir do dia 16 passaram a utilizar o termo “agressores”. Na mesma
edição do dia 16, a cobertura dos fatos ocupou dez páginas do
caderno “Cidades” e o jornal constatou que, “em doze horas, polícia
mata treze suspeitos nas ruas”. Nesse momento o Estadão
apresenta a disposição dos policiais de promover uma resposta
violenta aos ataques sofridos, e a reportagem conclui: “Desde que o
PCC iniciou os ataques tem sido assim. Os homens da polícia que
não estão acuados têm sangue nos olhos. Querem vingança e não
escondem o desejo de matar. Inclusive as mulheres”. Essa
reportagem foi de autoria de Álvaro Magalhães.45

Na matéria de capa do dia 19 de maio, a


Folha trouxe a fala do comandante-geral da Polícia Militar, Elizeu
Eclair Borges, que afirmou que a “polícia não matou inocente” e
que “70% dos mortos têm uma longa ficha criminal”. Em outra
matéria, o jornalista André Caramante atualizava o número de
suspeitos mortos pela polícia para 107 em sete dias, ao mesmo
tempo em que constatava que “desde quarta-feira [17 de maio]

44
Violência de Estado no Brasil, p. 76.
45
Idem.
51
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

nenhum agente de segurança do estado (policiais civis, militares ou


agentes penitenciários) foi assassinado”. As matérias assinadas por
Caramante foram bastante críticas às declarações do governo e
exigiam mais informações sobre os fatos.46

Durante a fase revanchista, mais


especificamente no dia 17 de maio de 2006, o comandante da
PM, em entrevista ao jornal Estadão, declarou que: “A caçada
continua”, reconhecendo que havia, de fato, um movimento de
caça, não de combate legal ou de enfrentamento entre os
envolvidos.47

No dia 16 de maio, a Folha de São Paulo


começou a publicar informações sobre a reação das forças policiais
aos ataques do PCC e sobre a morte de pessoas sem vínculos com
a organização. Na reportagem, o jornal chamava a atenção para o
fato de a Secretaria de Segurança Pública não ter divulgado detalhes
dos ataques a policiais e a civis. Ante o pedido do jornal para que
fossem divulgadas as identidades das vítimas mortas durante os
confrontos, a resposta da Secretaria de Segurança foi que: “a lista
está em elaboração, mas não informou quando será divulgada.”48

46
Violência de Estado no Brasil, p. 81.
47
‘A caçada continua’ afirma polícia. E mata 32”, O Estado de S. Paulo, 17 maio 2006.
Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20060517-41119-nac-36-cid-c7-
not. Consulta no dia 05 de dezembro de 2018.
48
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200624.htm. Acesso
no dia 05 de dezembro de 2018.
52
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Como se percebe na notícia abaixo, trazida


pelo relatório elaborado na UNIFESP, a Folha de S. Paulo indicou
que policiais indicaram as retaliações nas redes sociais:

No dia 18 de maio, a Folha de S. Paulo


publicou três reportagens narrando a versão dos amigos e familiares
das vítimas, que negaram veementemente o envolvimento delas com
a organização criminosa.49

Sobre o fim dos conflitos, em outra


reportagem da época, também da Folha de São Paulo, afirmava-se
que horas depois das negociações com representantes do governo,

49
“Para família de morto, elo com o PCC é ficção”, “Parentes de rapaz contestam PM” e
“Testemunhas de chacina acusam policiais”, Folha de S. Paulo, 18 maio 2006.
Disponível em:
https://acervo.folha.com.br//leitor.do?numero=16810&anchor=5240365&pd=6e5c18373b
3c2830421d3e3afb50efd5. Acesso no dia 05 de dezembro de 2018.
53
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

a cúpula do PCC ordenou o fim dos ataques e das rebeliões em São


Paulo. De acordo com a reportagem, os líderes da organização
teriam ordenado aos presos e aos membros da organização que
estavam fora das prisões o fim dos ataques. Em reunião com as
autoridades, segundo o jornal, o PCC teria condicionado o fim dos
ataques a benefícios para os presos que tinham sido transferidos
para a penitenciária de Presidente Venceslau. Teria exigido, ainda,
que a tropa de choque da Polícia Militar não entrasse nos presídios
rebelados e que não houvesse retaliações contra os presos.50

Posteriormente, a mídia continuou dando


cobertura ao episódio. Em 2008 foram publicadas notícias sobre o
início dos ataques.

Em reportagem de Marcelo Godoy, publicada


no jornal O Estado de São Paulo, tem-se uma explicação diferente
da versão oficial sobre o início dos ataques:

“A revolta da cúpula do Primeiro Comando da


Capital (PCC) com os achaques e sequestros
praticados por policiais civis de São Paulo foi
uma das causas que levaram a facção
criminosa a praticar as ondas de atentados
que começaram em maio de 2006 e

50
Gilmar Penteado, André Caramante e Cristiano Machado, “Cúpula de facção ordena
trégua”, Folha de S. Paulo, 16 maio 2006. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1605200602.htm. Acesso no dia 5 de
dezembro de 2018.
54
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

paralisaram o Estado. O esquema que mais


enfureceu os bandidos foi aquele que seria
comandado por Augusto Peña.”51

O sequestro do irmão de Marcola, suposto


chefe do Primeiro Comando da Capital, igualmente foi trazido pelas
notícias jornalísticas no ano de 2008, também em reportagem de
André Caramante. Esse sequestro foi tido pelos jornais como o
possível estopim para o início dos ataques.52

No ano de 2009, foi lançado o filme “Salve


Geral”, do diretor Sérgio Rezende, abordando os crimes que
aconteceram em maio de 2006 a partir de uma mobilização
promovida pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).

No ano de 2012, o Movimento Mães de Maio


entregou uma carta à então Presidente da República Dilma Rousseff
solicitando uma resposta do Estado brasileiro53. Na mesma época,
foi publicada notícia relativa aos 6 anos de impunidade.54

51
Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20080505-41838-nac-31-cid-
c4-not. Acesso no dia 05 de dezembro de 2018.
52
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0105200808.htm
53
Disponível em: http://www.global.org.br/blog/maes-de-maio-entregam-carta-a-
presindente-dilma-rousseff/. Acesso no dia 04/12/2018.
54
Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/06/por-que-os-493-
assassinatos-de-maio-de-2006-continuam-impunes.html. Acesso no dia 04/12/2018.

55
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em 2016, quando os crimes completaram 10


anos, a Folha de S. Paulo publicou documentário sobre os fatos,
denunciando a falha nas investigações e o medo dos familiares.

O documentário está dividido em 4 episódios:


“As feridas de maio: Cap.1 - Sem respostas”55, “As feridas de maio:
Cap.2 - Órfãos de 2006”56, “As feridas de maio: Cap.3 - PCC S/A”57 e
“As feridas de maio: Cap.4 - O que não aprendemos”58

No mesmo ano, também foi publicado o


documentário “Não saia hoje”, da diretora Susanna Lira, pelo Canal
Futura, sobre os fatos, a partir da perspectiva dos familiares das
vítimas.59

Percebe-se, portanto, que os Crimes de Maio,


desde 2006, têm sido insistentemente abordados pela mídia, em
várias plataformas – da grande imprensa escrita ao cinema –, mas
até hoje não se conseguiu a responsabilização de seus autores,
especialmente do Estado.

55
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZKce3-LwK0M. Acesso no dia 21
de novembro de 2018.
56
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Mm4ytx1Ixs8. Acesso no dia 21 de
novembro de 2018.
57
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zBPMsu1xBrA. Acesso no dia 21
de novembro de 2018.
58
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-0gdF_66C-o. Acesso no dia 21 de
novembro de 2018.
59
Disponível em: http://www.futuraplay.org/video/nao-saia-hoje/71001/. Acesso no dia
04 de dezembro de 2018.
56
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

VI. b) Os movimentos sociais que surgiram em decorrência dos


fatos.

Uma das consequências dos Crimes de Maio


de 2006 foi a vigorosa reação social. Várias entidades passaram a se
preocupar com o tema e houve o surgimento do Movimento Mães de
Maio, formado por familiares de vítimas da violência dos crimes.

A iniciativa de constituir um movimento das


vítimas de violência surgiu de três mães que tiveram seus filhos
assassinados em maio de 2006: Débora Maria da Silva (mãe de
Edson Rogério Silva dos Santos), Vera de Freitas (mãe de Mateus
Andrade de Freitas) e Ednalva Santos (mãe de Marcos Rebelo
Filho). Após a criação do movimento, com o objetivo de buscar
verdade, memória e justiça para vítimas da violência do Estado,
outras mães, familiares e amigos se associaram.

Atualmente, o movimento social tem sua


importância reconhecida, na medida em que busca a
responsabilização dos agentes estatais e reconhece que os crimes
ocorreram em razão da letalidade policial, que sobrevive à custa da
não reestruturação da segurança pública após a redemocratização
do país. Tem importância também por buscar preservar a memória
das vítimas e a verdade dos fatos.

No ano de 2011, foi publicado, pelo próprio


movimento, o livro “Do luto à luta: movimento mães de maio”,

57
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

relatando a militância do grupo e expondo a omissão estatal na


responsabilização de seus agentes. O grupo ainda foi tema de
variadas matérias de imprensa e de diversos documentários
publicados na internet, conforme já mencionado no tópico acima.

Ressalte-se, também, que o Movimento Mães


de Maio, em parceria com o grupo Conectas Direitos Humanos, no
ano de 2009, solicitou ao Procurador-Geral da República a
federalização da “Chacina do Parque Bristol”, que se deu em 14 de
maio de 2006, sob a alegação de que as instâncias locais teriam
falhado nas investigações.

Além do Movimento Mães de Maio, a


Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo (doc. anexo), a Anistia
Internacional, a Justiça Global e o CONDEPE solicitaram ao
Ministério Público a reabertura das investigações no âmbito criminal,
bem como providências gerais a respeito dos fatos.

VII. AS EVIDÊNCIAS DA RESPONSABILIDADE ESTATAL.

VII. a) O Estado sabia que os ataques do PCC aconteceriam.

A partir do que se observa da narrativa dos


fatos, é possível concluir pela responsabilidade do Estado de São
Paulo na escalada de violência em maio de 2006 e pela morte das

58
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

564 pessoas nos 10 dias em que aconteceram os tristemente


chamados “Crimes de Maio”.

Inicialmente, constata-se que o Estado sabia


que os ataques aconteceriam e, mesmo assim, deixou de avisar e
alertar os policiais militares, inclusive bombeiros, que não puderam
se preparar e se proteger; e, em consequência, foram pegos de
surpresa e acabaram mortos. Existe responsabilidade do Estado,
portanto, na morte dos 59 policiais.

Os relatórios “São Paulo sob Achaque” e


“Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de
2006” apontam essa realidade nas seguintes passagens:

“O PCC matou dezenas de agentes públicos,


todos de baixo escalão. Geralmente, os
funcionários foram surpreendidos em seu
horário de folga, nos primeiros dois dias da
onda de violência, em razão da falha do
governo em alertar devidamente seus policiais
e agentes penitenciários sobre o ataque que
já havia sido anunciado.”60

O então Secretário de Administração


Penitenciária, Nagashi Furukawa disse que:

60
São Paulo sob achaque, p. 27
59
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nas primeiras reuniões com Cláudio Lembo,


falei. Falei das dificuldades de entendimento
com a Secretária de Segurança Pública. Falei
da gravidade das coisas. Falei da
megarrebelião que estava anunciada para
agosto e que providências seríssimas tinham
de ser tomadas. E ele falou: “não, não vai
continuando aí. Eu sei que você e o Saulo não
se entendem bem, mas eu sou bom para
conciliar as pessoas. Vocês comigo vão se
entender.”61

Corroborando a informação do então


Secretário de Administração Penitenciária, o Presidente da
Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado de São
Paulo (ACSPMESP), Cabo Wilson de Oliveira de Morais, informou
que as mortes de tantos policiais em maio de 2006 teriam sido
evitadas se a cúpula do governo tivesse alertado seus agentes sobre
o risco dos ataques.62

VIII. b) houve movimento revanchista, no qual policiais e grupos


de extermínio revidaram os ataques.

De todo modo, após o início das mortes dos


agentes públicos, civis começaram a morrer, a demonstrar que as

61
São Paulo sob Achaque, p. 35
62
Ibid., p. 63
60
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

corporações estavam promovendo vingança. E essa vingança se deu


de modo sistemático nas periferias das grandes cidades, como
observado no tópico em que se especificou o alcance dos ataques a
agentes e ao público, bem como o local das mortes dos civis.

Note-se o caráter de vingança ao se observar


o perfil das pessoas que morreram. No início, os agentes estatais e
civis63 foram vitimados e só depois houve aumento, significativo,
apenas da quantidade de mortos civis64.

63
A expressão “civil” aqui é empregada como a pessoa não integrante das forças
estatais de segurança, pouco importando se militar ou não.
64
“Violência de Estado no Brasil, p. 68/69.
61
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Esse gráfico demonstra com clareza que a


narrativa dos “autos de resistência” é completamente falaciosa. Com
os dados apresentados, é possível concluir que não houve conflito.

No dia 12 de maio, quando iniciaram os


ataques, foram 10 agentes públicos mortos e 12 civis mortos, o que
poderia, eventualmente, indicar possível confronto.

A partir do dia 14, a falsidade da narrativa dos


confrontos é escancarada, em razão do aumento exponencial na
quantidade de mortos civis. No dia 14 de maio, tem-se a morte de
107 civis e 8 agentes públicos. Isso quer dizer que para cada agente
público morto, foram mortos pelo menos 13,4 civis. No dia 15 de
maio, a proporção é de 16,8 civis para cada agente público. No dia
16 a proporção é de 12,5 civis para cada agente público. No dia 17
de maio a proporção é de 21,7 civis para cada agente público. Nos
demais dias não houve qualquer morte de agente público, mas de 22
civis.

62
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Se realmente tivesse havido confronto, a


média das mortes dos agentes estatais teria se mantido ao longo dos
dias, mas o gráfico acima demonstra que as mortes dos agentes
públicos se deram apenas nos primeiros dias, que foram aqueles em
que realmente aconteceram os ataques dos membros do PCC.

Este gráfico, que representa a quantidade de


óbitos na Baixada Santista, ilustra bem o movimento revanchista.65

Por fim, importa ressaltar que o capítulo 9


do Relatório Violência de Estado no Brasil, ao fazer a análise
territorial dos óbitos na baixada santista, indica que os agentes

65
“Violência de Estado no Brasil, p. 165
63
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

estatais não foram vitimados nos mesmos lugares que os


civis.66

O dia em que mais agentes públicos


morreram na Baixada Santista foi o segundo dia dos ataques.
Todavia, ao se observar a localização das ocorrências, percebe-se
que elas não se deram no mesmo local. Em alguns casos os óbitos
se deram em bairros próximos, mas em alguns casos os óbitos
aconteceram em cidades distintas67. Esse fato demonstra que, de
fato, não houve conflito.

66
Violência de Estado no Brasil, p. 99/159.
67
Ibid., p. 165
64
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

VIII. c) há indícios concretos de que houve extermínio, a partir


dos estudos de criminalística produzidos sobre o caso.

A tese de que houve, na verdade, extermínio


de civis em contexto revanchista é ainda confirmada pelos estudos
realizados por institutos de criminalística.

Esses estudos apontam que houve grande


número de disparos contra as vítimas e que esses disparos atingiram
principalmente áreas vitais (cabeça, pescoço e tronco)68, conforme
ilustra a imagem infra reproduzida, extraída do Relatório Final
Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de
2006 na perspectiva da antropologia forense e da justiça de
transição:

68
Violência de Estado no Brasil, p. 57.
65
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O Conselho Regional de Medicina do Estado


de São Paulo, a pedido do Ministério Público e da Defensoria
Pública, realizou inspeção no IML-Central e elaborou relatório datado
de 24 de maio de 2006 (fls. 301/333). A inspeção, segundo consta no
próprio relatório, realizou “... análise das perícias relacionadas às
recentes vítimas de homicídios na cidade de São Paulo, consistiu em
análise documental dos laudos emitidos pelos médicos legistas do

66
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

IML Central no período entre 0h do dia 12/05/2006 até às 13h30 do


dia 20/05/2006.”. Constou também que, a partir de 15 de maio
daquele ano, em função dos confrontos envolvendo policiais e civis,
corpos de toda cidade com sinais de morte violenta passaram a ser
direcionados prioritariamente para o IML Central.

O relatório do CREMESP, contemporâneo às


intervenções policiais supostamente voltadas a inibir a ação delitiva
dos membros do PCC, mas que na verdade vingava policiais mortos
e fazia majoritariamente vítimas que não eram integrantes da facção,
traça panorama seguro do local das lesões mortais no considerável
número de cadáveres que aportou no IML, corroborando as
conclusões nele lançadas com as demais que embasam esta ação
civil pública.

No esquema gráfico abaixo reproduzido, é


possível perceber grande quantidade de tiros na cabeça, que foram
inevitavelmente fatais69:

69
Fls. 318 do Inquérito Civil nº 14.0725.0001580/2014-1 (Estudo CREMESP).
 Área 01 (vermelho): 140 indivíduos/ 216 ferimentos.
 Área 04 (azul): 169 indivíduos/ 244 ferimentos.
 Área 18 (amarelo): 119 indivíduos/ 189 ferimentos.
 Área 03 (amarelo): 56 indivíduos/ 60 ferimentos.

67
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Observa-se que, das 564 vítimas, 484


levaram tiros na cabeça. Destas 484 pessoas, 175 foram
atingidas na região da nuca (com até 06 tiros).

Os esquemas abaixo indicam a quantidade de


tiros nos membros superiores e inferiores e nas costas70:

70
Fls. 318 do Inquérito Civil nº 14.0725.0001580/2014-1 (Estudo CREMESP).
 Área 5 (rosa): 142 indivíduos/ 256 ferimentos.
 Área 13 (amarelo escuro): 80 indivíduos/ 103 ferimentos.
 Área 12 (azul): 55 indivíduos/ 87 ferimentos
 Área 27 (amarelo claro): 110 indivíduos/ 168 ferimentos.
 Área 26 (roxo): 17 indivíduos/ 25 ferimentos.

68
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A imagem demonstra que das 564 vítimas,


404 foram alvejados na parte posterior, sendo que 142
indivíduos foram feridos nas costas (com até 14 tiros!).

No esquema abaixo, tem-se a quantidade e


disposição dos tiros e ferimentos nas áreas não vitais (braços, parte
anterior).71

71
Fls. 318 do Inquérito Civil nº 14.0725.0001580/2014-1 (Estudo CREMESP).
 Área 24: 96 indivíduos/ 121 ferimentos.
 Área amarela: 17 indivíduos/ 25 ferimentos
 Área laranja: 17 indivíduos/ 17 ferimentos.

69
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Na imagem constata-se que a minoria dos


projéteis acertou áreas vitais, o que indica que os policiais, de fato,
atiraram para matar.

No esquema abaixo se observam os


ferimentos em áreas vitais e em áreas não vitais. Como é de se
esperar em contexto de execução sumária, os tiros nas áreas vitais
são mais numerosos do que em áreas não vitais72:

72
Fls. 319 do Inquérito Civil nº 14.0725.0001580/2014-1 (Estudo CREMESP).
 Área verde: 57 indivíduos/ 77 ferimentos.
 Área amarela: 43 indivíduos/ 54 ferimentos.
 Área azul clara: 16 indivíduos/ 23 ferimentos.
 Área azul escura: 23 indivíduos/34 ferimentos.
 Área azul clara (peitoral): 246 indivíduos/ 399 ferimentos.
 Área rosa: 141 indivíduos/ 215 ferimentos.
 Área verde: 73 indivíduos/ 95 ferimentos.

70
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Inquestionavelmente, portanto, em razão


da quantidade de tiros nas vítimas e em razão da sede dos tiros
nos corpos, houve clara intenção de matar; e nenhum indício,
mínimo que seja, da ocorrência de confronto.

Os subscritores puderam, ainda, avaliar a


distância dos disparos fatais, conforme gráfico abaixo reproduzido.73

73
Fls. 317 do Inquérito Civil (doc. anexo).
71
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Em 11 casos, os tiros foram encostados, ou


seja, a arma de fogo utilizada para o disparo estava encostada no
corpo da vítima; em outros 51 casos, a arma de fogo estava a curta
distância – isso significa que os peritos captaram sinais de gases e
resíduos de combustão da pólvora provenientes da explosão do
disparo no corpo atingido, indicando que se encontrava a distância
muito próxima. Nos outros 434 casos analisados, os disparos fatais
foram à distância.

Corrobora ainda a essas conclusões a análise


pericial feita pelo Doutor Ricardo Molina de Figueiredo, o qual
analisou os laudos onde constava “resistência seguida de morte” de
124 pessoas que morreram entre os dias 12 e 20 de maio de 2006.
Foram as seguintes constatações tiradas:

72
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“A análise dos dados colhidos nos 124 laudos


revela três aspectos importantes:

1) A maioria dos disparos atingiu as vítimas


em regiões de alta letalidade;
2) Grande parte das vítimas apresenta
entradas de disparos com baixa dispersão,
ou seja, com pouca distância entre eles;
3) Há um número expressivo de disparos com
direção “de cima para baixo”74

E ao final, o perito sentencia:

Sumarizando, e sem deixar de ressaltar o


caráter preliminar deste relatório, podemos
concluir que, dentre os casos examinados,
há, certamente, casos de execução. Em
uma primeira estimativa seria razoável
admitir que cerca de 60% a 70% dos casos
apresentam indícios de execução, por
causa da ocorrência, simultânea, dos três
fatores acima listados.” (g.n.)

74
Perícia Criminal, Crimes de Maio, São Paulo, 2006, p. 89 (fls. 59 do Anexo II, volume 1).

73
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

VIII. d) Evidências de que as vítimas não eram de facções


criminosas.

Como se não bastasse, a grande maioria das


vítimas não tinha qualquer vínculo com o crime organizado, sendo
certo que boa parte delas não tinha sequer passagem pela polícia.

Muito embora a cobertura da mídia durante os


ataques afirmasse que a maioria das vítimas teria algum
envolvimento com o crime, esse dado não é verdadeiro.

A cobertura da mídia neste ponto foi bastante


divergente. Conforme aponta o relatório da UNIFESP, as
informações trazidas pela Folha de São Paulo não foram precisas, já
que contava apenas com dados parciais:

“Segundo a reportagem de Afra Balazina, na


edição do dia 24 de maio da Folha, o “governo
do estado agora afirma que, dos 110 mortos
em ações policiais, 79 tinham ligação com a
facção criminosa, mas não divulga lista”. Em
outra matéria, na mesma edição, o jornal
afirmava que “26% dos mortos tinham ficha
limpa”. O levantamento contemplou o universo
de 38 mortos identificados pela polícia.”75

75
Violência de Estado no Brasil, p. 82
74
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O Estudo realizado pelo Conselho Estadual de


Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), que foi realizado
posteriormente aos fatos, aponta que a maioria não tinha passagem
pela polícia. Segundo o estudo, as vítimas foram em sua maioria
homens, jovens, negros/pardos, primários e pobres. Seguem as
características das vítimas:

1. Sexo: mais de 96% das vítimas eram


homens.
2. Idade: mais de 80% das vítimas tinham até
35 anos e dessas mais de 63% eram
compostas de jovens de até 25 anos.
3. Cor: mais da metade dos assassinados
eram negros e pardos.
4. Antecedentes Criminais: apenas 6% das
vítimas detinha algum antecedente junto à
Justiça.

Repita-se que a grande maioria dos civis


que morreram não tinha qualquer envolvimento com a
criminalidade. Isso indica que a atuação da Polícia Militar e dos
grupos de extermínio se deu nas periferias, vitimando
aleatoriamente pessoas pobres, sem vínculos com o crime
organizado.

75
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

VIII. e) Modus operandi da Polícia Militar e dos Grupos de


Extermínio.

Por fim, o próprio modus operandi indica a


colaboração da Polícia Militar com grupos de extermínio nos casos
dos Crimes de Maio. Com base nos diversos elementos (entrevistas,
denúncias e documentos oficiais), o relatório “São Paulo sob
Achaque” apresenta o modus operandi utilizado em quase todos os
óbitos da época.

Nas mortes dos civis, foram observados


quatro passos fundamentais:

a) toque de recolher;
b) escolha das vítimas;
c) ataque dos encapuzados;
d) chegada da polícia e alteração das provas.

Em primeiro lugar, acontecia o toque de


recolher: um elemento comum em diversos casos era o aviso por
parte da Polícia Militar de um toque de recolher para a população
civil, fixado sob ameaças e anunciado claramente por integrantes
fardados da Corporação às pessoas que se achavam na via pública.

Em segundo lugar, a escolha das vítimas:


diversos relatos apontam que policiais militares teriam abordado
pessoas com passagem pela polícia ou “suspeitas” de vínculo com o

76
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

crime e a grande maioria dos abordados teria sido assassinada


momentos depois.

Em terceiro lugar, o ataque de encapuzados:


grupos de encapuzados, geralmente em carros sem identificação,
teriam atacado e matado as vítimas anteriormente abordadas e
quem estivesse junto com elas, na via pública.

Por último, a chegada da polícia e alteração


e destruição das provas: outro elemento comum nesses ataques
era a rápida chegada de viaturas policiais, em muitos casos sem
tempo suficiente para que tivessem sido acionadas, cujos integrantes
providenciavam a imediata retirada dos corpos, a remoção de
cápsulas de projéteis e alteração da cena do crime para dificultar a
investigação das mortes.76

Este modus operandi indica clara colaboração


da Polícia com os grupos de extermínio (“os encapuzados”) que
efetivamente praticaram as execuções.

A Polícia Militar avisava da existência do


toque de recolher e, pouco depois, grupos de pessoas
encapuzadas atiravam nas vítimas, que eram pessoas que
estavam nas ruas das periferias das grandes cidades. Logo
depois dos homicídios, praticados por meio de inúmeros
disparos em áreas vitais, a Polícia Militar chegava para alterar o
76
São Paulo sob achaque, p. 102.
77
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

local do crime e inviabilizar a produção de provas em eventual


processo criminal.

Esse modo de agir adotado para promover a


matança indiscriminada que os policiais militares empreenderam a
pretexto de resistirem aos ataques de membros de PCC foi bem
retratado na passagem do livro da professora Camila Nunes Dias e
do cientista político Bruno Paes Manso:

“Um dos casos mais absurdos ocorreu em


maio de 2006 com Vera Lucia dos Santos,
que passou a última década inserida em uma
trama digna de filme de terror. Vera levava
uma vida sem sobressaltos na cidade de
Santos. (...) A vida era dura, mas uma
tragédia ocorrida no dia 15 de maio de 2006
mostrou que as coisas poderiam piorar numa
escala inimaginável. Naquele fim de semana,
policiais e agentes penitenciários tinham sido
atacados e mortos por integrantes do PCC.
Havia tensão nas ruas de Santos, mas nada
que abalasse o clima festivo do apartamento
de Vera, que compartilhava com a família uma
alegre expectativa. No dia seguinte, 16 de
maio, Ana Paula, a caçula de vinte anos,
grávida de nove meses, daria à luz Bianca na

78
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Santa Casa da cidade, a alguns quarteirões


dali. A cesariana já havia sido marcada.
Durante a tarde, Vera, a filha e amigos
assistiram aos filmes de vídeo que o genro,
Eddie Joey de Oliveira, descendente de um
marinheiro filipino, alugou na locadora. Perto
das 19 horas, Ana Paula sentiu vontade de
tomar uma vitamina. Sugeriu que ela e o
companheiro fossem na padaria beber o suco
e buscar o leite de sua outra filha, Ana Beatriz,
que tinha pouco mais de um ano. O casal
estava acompanhado do compadre, que seria
padrinho de Bianca, e do cunhado.
Os quatro passaram na frente de um bar.
Homens que tomavam cerveja saíram de lá,
entraram em um carro e seguiram o grupo de
perto. Também eram quatro. Os boatos sobre
revanche da polícia e toques de recolher
estavam fortes nos bairros com comércio de
drogas dominados pelo PCC. O compadre do
casal, ao ver um carro vindo lentamente atrás
deles, ainda falou: “Vai ter geral”. Joey o
tranquilizou. “Não estamos devendo nada.
Vamos para a padaria.” Como os quatro não
tinham ligação com o crime, não imaginavam
que seriam importunados. Antes que eles
chegassem, os homens saíram de dentro do

79
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

carro com touca ninja. E atiraram. O


compadre e o cunhado do casal conseguiram
correr, fugindo das balas. Ana Paula achou
que a barriga a salvaria e ficou. Joey não
abandonou a mulher e a filha. “Sou
trabalhador”, chegou a dizer antes de tomar
um tiro. Ana Paula entrou na frente e levou um
disparo no braço. Caiu no chão. Ao se
levantar, puxou a máscara do criminoso e o
reconheceu. Joey começou a gritar o nome do
assassino e a pedir que soltasse a mulher
grávida. “Ela está grávida”, dizia.
O assassino deu uma chave de braço em Ana
Paula e colocou a arma em sua cabeça. Antes
de disparar, disse “Estava”. Joey se jogou
sobre a mulher morta e tentou acordá-la. Foi
metralhado pelas costas e também morreu.
Um mulher grávida e seu marido foram mortos
no centro de Santos.”77

VIII. f) Indícios de que os grupos de extermínio eram formados


por policiais.

A atuação sincronizada da Polícia Militar com


os grupos de matadores indica com clareza que havia envolvimento

77
A Guerra e ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, Ed. Todavia, p. 108/109.
80
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

subjetivo entre os dois. É indicativo também de que os grupos de


extermínio eram formados, muitas vezes, pelos próprios policias.

Esse procedimento típico observado nos


Crimes de Maio já havia sido denunciado pelo estudo “Eles entraram
atirando: policiamento de comunidades socialmente excluídas”,
realizado pela Anistia Internacional.

Existe, com frequência, o registro das mortes


de pessoas em periferia como autos de resistência seguida de morte:

“Os governos estaduais do Rio e de São


Paulo publicam estatísticas de homicídios
policiais sob o título de ‘resistência seguida de
morte’ ou ‘autos de resistência’. Nenhum
destes termos existe legalmente no Brasil,
mas isso permite que os policiais registrem
incidentes fatais como sendo resultado de
confronto, omitindo assim detalhes
importantes. Rotular sistematicamente as
vítimas de homicídios policiais como
agressores faz com que poucos destes casos
sejam investigados de modo efetivo e
independente. Os governos estaduais têm
usado estas estatísticas como indicador de
eficiência policial, ignorando o fato de que
muitos dos que foram mortos não tinham

81
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

antecedentes criminais, estavam


desarmados, eram negros ou pardos e
foram alvejados pelas costas”.78

Esse quadro de “pessoas sem antecedentes


criminais, desarmados, negros ou pardos alvejados pelas costas” é
um retrato do que aconteceu em boa parte dos homicídios praticados
pela Polícia Militar de São Paulo durante maio de 2006.

Nesse sentido, o relatório São Paulo sob


Achaque indica a clara atuação de grupos de extermínio formados
por policiais, que agiram para vingar a morte de seus colegas.

No relatório, há conclusão categórica no


sentido de que grupos de extermínio atuaram no caso. No estudo
são examinados 71 casos de vítimas desses grupos com
evidências de participação de policiais. Os dados provêm de
denúncias encaminhadas para a Ouvidoria de Polícia e para a
Defensoria Pública, informações do Departamento de Homicídios e
Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, inquéritos policiais e
entrevistas com testemunhas realizadas pela equipe do relatório.79

78
Anistia Internacional - “Eles entraram atirando: Policiamento de comunidades
socialmente excluídas”, 2005, p. 38.
79
São Paulo sob Achaque, p. 98.
82
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O mesmo relatório aponta dado importante no


sentido de que a própria utilização de toucas (capuzes) indica a
participação da polícia:

Sobre as toucas utilizadas em grande parte


dos crimes, Teixeira disse, ‘o uso do capuz é
tido pela comunidade como indício de que o
crime foi praticado por PM... Nem todo
matador encapuzado é PM, mas o PM só
mata usando capuz’.80

Durante a elaboração do relatório São Paulo


sob Achaque o Corregedor da Polícia Militar, Coronel José Paulo
Menegucci, informou que durante a matança a Ouvidoria da Polícia
recebeu dezenas de ofícios alertando para o possível envolvimento
de policiais militares em homicídios praticados por grupos de
extermínio.81

Há alguns casos concretos, segundo o


relatório São Paulo sob Achaque, confirmando a participação de
Policiais Militares em certas chacinas e execuções. Para exemplificar
e ilustrar os fatos, menciona-se a atuação de grupo de extermínio
que, no domingo, dia 14 de maio de 2006, no Parque São Rafael,
periferia de São Paulo, matou 5 pessoas.

80
Ibid., p. 101.
81
Ibid., p. 100.
83
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Conforme aponta o estudo, com base no


relatório final do Departamento de Homicídios e de Proteção à
Pessoa (DHPP), da Polícia Civil do Estado de São Paulo, não há
dúvidas de que os autores dessa chacina foram policiais
militares, motivados pelo desejo de vingança da morte de um colega
durante os ataques realizados pelo PCC.82

Aquela chacina seguiu a tipologia acima


apresentada. Inicialmente, aconteceu o toque de recolher, a
escolha do alvo, o ataque dos encapuzados e a destruição da
cena do crime.

Há confirmação de chacina praticada por


policiais também no caso da Vila Gustavo, São Paulo/SP, com o
mesmo modus operandi explicitado.

Ainda no ponto, convém ressaltar que em


2009, a ONG Conectas formulou representação à Procuradoria-Geral
da República para federalizar a investigação da chacina do Parque
Bristol, zona Sul de São Paulo.

O pedido foi aceito e o então Procurador-


Geral da República, Rodrigo Janot, em maio de 2016, deduziu a
pretensão de federalização ao Superior Tribunal de Justiça, sob o
argumento de que o caso não foi suficientemente investigado no

82
São Paulo sob Achaque, p. 103/104
84
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

âmbito estadual e que haveria grandes indícios de que as mortes


teriam sido praticadas por Policiais Militares.83

Ante o exposto, ressurge inquestionável


que o Estado de São Paulo teve responsabilidade direta nos
“Crimes de Maio”, seja por não ter agido de modo a evitar a
morte dos agentes públicos (como lhe cabia), seja porque as
mortes dos civis foram provocadas por grupos de extermínio
formados por policiais militares.

IX. DO DIREITO.

IX. a) Justiça de Transição: bases para uma consolidação


democrática.

A Justiça de Transição é conceituada, grosso


modo, como o conjunto de iniciativas, mecanismos (judiciais e não
judiciais) e estratégias para superar o legado de violência e garantir a
consolidação do regime democrático, numa transição que se
manifesta, basicamente, por meio das seguintes providências:
atribuição de responsabilidades; garantia efetiva do direito à memória
e à verdade; reparação em favor das vítimas; e fortalecimento das

83 Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/FederalizaoCrimesdeMaio.pdf/view.
Acesso no dia 26 de novembro de 2018.
85
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

instituições com valores democráticos de modo a se garantir a não


repetição das situações de violência.

Nos dizeres de Jorge Chediek, representante


residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e coordenador residente do Sistema ONU Brasil:

“...justiça de transição é o conjunto de


mecanismos usados para tratar o legado
histórico da violência dos regimes autoritários.
Em seus elementos centrais estão a verdade
e a memória, através do conhecimento dos
fatos e do resgate da história. Se o
Desenvolvimento Humano só existe de fato
quando abrange também o reconhecimento
dos direitos das pessoas, podemos dizer que
temos a obrigação moral de apoiar a criação
de mecanismos e processos que promovam a
justiça e a reconciliação. No Brasil, tanto a
Comissão de Anistia quanto a Comissão da
Verdade configuram-se como ferramentas
vitais para o processo histórico de resgate e
reparação, capazes de garantir procedimentos
mais transparentes e eficazes.”84

84
CHEDIEK, Jorge. Justiça de Transição. Manual para a América Latina. ONU. Brasil e
Nova Iorque, p. 16 Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/manual_justica_transicao_america_la
tina.pdf.
86
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Na definição das Nações Unidas, numa


tradução livre, pode-se dizer que a justiça transicional é o conjunto
completo de processos e mecanismos relacionados com os esforços
de uma sociedade para superar o legado de uma larga escala de
abusos contra os direitos humanos no passado, a fim de assegurar
responsabilização, a administração da justiça e a reconciliação,
tratando-se de medidas judiciais e não-judiciais.85

No mesmo sentido, Kai Ambos, invocando o


Report Secretary General Transitional Justice, ensina que:

“a justiça de transição compreende o âmbito


integral de processos e mecanismos
associados aos intentos de uma sociedade de
afrontar um legado de abusos em grande
escala no passado, para assegurar
responsabilidade, promover justiça e obter
reconciliação”.86

De modo mais sucinto, Ruti Teitel aponta que


justiça de transição pode ser

85
Guidance Note of The Secretary-General. United Nations Approach to Transitional
Justice
86
AMBOS, Kai. Anistia, Justiça e Impunidade: Reflexões sobre a Justiça de Transição
no Brasil. Editora Fórum, 1ª edição, Belo Horizonte, 2010, p. 27.
87
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“definida como uma concepção de justiça


associada a períodos de mudança política,
caracterizada por respostas legais para
confrontar os abusos dos regimes repressivos
anteriores.”87

Pode-se dizer, portanto, que sempre que haja


o rompimento de um regime autoritário ou marcadamente não
democrático é necessária a adoção das medidas de justiça de
transição para que a sociedade, por suas instituições, adapte-se à
nova realidade democrática.

E, mais que isto, tais postulados


transicionais devem perdurar num tempo tanto necessário
quanto suficiente para garantir a consolidação das instituições
democráticas.

A Justiça de Transição não é um momento


fugaz ou um conjunto de medidas de pronta e rápida adoção. É um
processo que se protrai no tempo e que varia de acordo com as
injunções políticas, sociais e culturais da sociedade que esteja em
processo de transformação.

Lembra Renan Honório Quinalha que:

87
TEITEL, Ruti. Transitional Justice Genealogy, apud QUINALHA, Renan. Justiça de
Transição: contornos do conceito, 1ª edição, Editora Outras Expressões, São Paulo,
2013, p. 134.
88
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“...ao contrário do que comumente se supõe,


as transições não são momentos pontuais,
mas processos que se arrastam no tempo e
encadeiam diversos acontecimentos
diferentes e, muitas vezes, até contraditórios
entre si. São fenômenos complexos, que
conjugam questões de diversas ordens postas
pelas mudanças políticas quando
desencadeadas”.88

Tal processo depende fortemente das tensões


entre as forças políticas remanescentes do regime anterior e as
novas forças emergentes da fase de renovação política. As primeiras
tendem a obstar medidas que atinjam seus interesses e que possam
resultar em responsabilizações pessoais de antigos violadores de
direitos humanos. As segundas tentam avançar na agenda da justiça
quanto às hipóteses do passado e, ao mesmo tempo, consolidar as
novas instituições democráticas.

Esse é o contexto da transição brasileira. O


decurso de 33 anos desde o final do regime militar e de três décadas
da Constituição Federal não permite concluir-se que a transição
esteja completa e, por isso, seria descabida a propositura de uma
ação judicial destinada a instar o Estado a adotar providências

88
QUINALHA, Renan. Justiça de Transição: contornos do conceito, 1ª edição, Editora
Outras Expressões, São Paulo, 2013.
89
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

destinadas à consolidação democrática sob o marco daquele


conhecimento jurídico-político.

Vale dizer, pois, que enquanto dado instituto


ou atuação estatal estiver marcado pelas características do
autoritarismo, da exclusão e desigualdade de direitos e da violência,
não se terá alcançado a consolidação democrática e, portanto,
aquelas providências transicionais continuarão pendentes.

Tal se dá, claramente, no funcionamento das


forças policiais do Estado. Seu modelo e filosofia de atuação seguem
os parâmetros da ditadura militar, não obstante as três décadas
decorridas desde seu ocaso formal.

O historiador e ex-responsável pelo escritório


da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque, destaca que:

“...torna-se cada vez mais urgente e


necessário que as organizações da sociedade
civil assumam o desafio de pensar a
segurança pública no marco conceitual e
político da democracia e dos direitos
humanos. Diante das conquistas em outras
áreas da luta por direitos políticos,
econômicos e sociais – que fazem parte da
trajetória de construção democrática, pelo
menos, desde os anos 1980 – a esfera da

90
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

segurança pública e da política recebeu muita


pouca atenção, a não ser como objeto de
denúncias de violação desses direitos. O
aumento chocante da violência contra a vida e
das mortes provocadas pelas ações
repressivas das polícias nos coloca diante de
uma situação de emergência cívica que não
pode e não deve ser mais adiada.”89

Os acontecimentos tratados nesta ação


judicial cingem-se àqueles homicídios de maio de 2006. Mas,
lamentavelmente, não são episódios isolados, já que a letalidade
policial (tanto de policiais que matam, como de policiais que morrem)
é problema crônico na sociedade brasileira e que vem desafiando a
todos que pretendam pensar as políticas de segurança pública com
seriedade e responsabilidade.90

Certamente, um dos caminhos para o


enfrentamento da questão é a consolidação de um modelo de polícia
baseado nos direitos humanos, na estrita legalidade e no
compromisso de proteção do cidadão (que há de ser visto, pois,
como titular de direitos e não como inimigo a ser enfrentado,
combatido e abatido).

89
ROQUE, Átila. Segurança, direitos e violência: uma outra polícia é possível? – in
Direitos Humanos no Brasil 2008: relatório da Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos. São Paulo, 2008, p. 146
90
A busca de medidas estatais, a partir de decisão judicial, destinadas a algum
aprimoramento na atuação das agências policiais será objeto de oportuna ação civil
pública específica.
91
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Isso pressupõe alcançar-se a superação do


modelo autoritário, herdeiro da ditadura militar, ainda sobrevivente na
prática cotidiana brasileira.

O já invocado pesquisador Átila Roque


observa:

“É fundamental pensar uma outra estrutura


institucional e legal que balize a construção de
uma polícia verdadeiramente cidadã e
defensora de direitos. O aparato de segurança
e justiça criminal brasileiros mantiveram-se,
mesmo após a Constituição de 1988,
basicamente com as mesmas estruturas e
práticas institucionais desenhadas pelo regime
militar. Herdeiras de um modelo militarizado e
tributárias de uma cultura societária leniente
com a violência contra pobres e negros, as
polícias se colocam cada vez mais distantes
do ideal civilizatório da segurança pública
como direitos fundamental de todas as
pessoas.”91

É exatamente por tais motivos que os


postulados da Justiça de Transição, cogentes por força do princípio
91
ROQUE, Átila, Op. Cit., p. 149.
92
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

democrático, de viés constitucional, afiguram-se plenamente


aplicáveis à presente demanda judicial, fornecendo-lhe robustos
fundamentos jurídicos.

Durante o período de justiça transicional,


devem ser tomadas diversas providências para se consolidar o novo
regime, sem que haja esquecimento dos erros e crimes praticados
pelo anterior. Busca-se a consolidação da democracia, mas sem o
mero esquecimento do passado autoritário. Em verdade, parte-se da
convicção de que a maturidade da nova ordem democrática
pressupõe o enfrentamento claro e inequívoco do passado de
exceção, com a adoção de medidas que permitam a madura e
segura superação do momento histórico passado.

Nesse sentido, o Conselho de Segurança da


ONU definiu quatro eixos que devem orientar as práticas estatais
dentro do contexto da justiça de transição, sendo eles relacionados:
I) ao direito à verdade e à memória; II) ao direito à reparação das
vítimas; III) ao adequado tratamento jurídico aos crimes cometidos
no passado; e IV) à reforma das instituições para a democracia.

No ordenamento jurídico brasileiro, a Justiça


Transicional ingressa pela via do princípio democrático, expresso no
caput do artigo 1º da Constituição Federal, ao apontar que a
“República Federativa do Brasil (...) constitui-se num Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos”, dentre outros, a
cidadania e a dignidade da pessoa humana (incisos II e III).

93
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Lembra Uadi Lammêgo Bulos que:

“...o Estado Democrático de Direito surge em


oposição ao Estado de Polícia – aquele
autoritário, que apregoa o repúdio às
liberdades públicas, no sentido mais vasto e
completo que esta expressão possa ensejar.
Ao utilizar a terminologia ‘Estado Democrático
de Direito’, a Constituição reconheceu a
República Federativa do Brasil como uma
ordenação estatal justa, mantenedora dos
direitos individuais e metaindividuais,
garantindo os direitos adquiridos, a
independência e a imparcialidade dos juízes e
tribunais, a responsabilidade dos governantes
para com os governados, a prevalência do
princípio representativo, segundo o qual todo
poder emana do povo e, em nome dele, é
exercido, por meio de representantes eleitos
através do voto”. 92

E mais adiante, o mesmo autor invoca os


mestres portugueses Canotilho e Vital Moreira para arrematar:

92
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada, Editora Saraiva, 6ª edição,
São Paulo, 2005, p.79.
94
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“O Estado de direito é democrático e só


sendo-o é que é Estado de direito; o Estado
democrático é Estado de direito e só sendo-o
é que é democrático.”93

Pois bem. O teor, o alcance e a relevância dos


princípios e balizas da Justiça de Transição dialogam diretamente
com a qualidade de democrático do Estado de Direito. Não se pode
cogitar que um Estado se consolide como democrático – e, portanto,
de direito, na significativa frase dos professores portugueses – sem
que as instituições do anterior regime autoritário sejam desmontadas
e substituídas por instituições que garantam a igualdade de todos e o
primado da justiça.

E mais: que garantam, no âmbito da


inafastável aplicabilidade da justiça, o pleno exercício da cidadania e
a inabalável proteção da dignidade das pessoas que foram vítimas
(diretamente ou de seus familiares) do arbítrio e da violência
praticados pelo Estado.

Por isso lembra Marlon Weichert, citando De


Greiff, que:

93
Idem.
95
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“...é indubitável o nexo causal existente entre


as políticas de justiça de transição e o
conteúdo material do princípio democrático.”94

Assim, o que se busca nesta ação judicial, ao


se invocar os princípios e conceitos da Justiça Transicional, é a
observância e o respeito ao fundamento maior do Estado brasileiro,
isto é, o princípio democrático que marca o Estado de Direito e eleva
a cidadania e a dignidade da pessoa humana à condição de
fundamentos da República. A demonstrar a condição de alicerce de
toda a ordem jurídico-constitucional, não por outro motivo tais
princípios estão consagrados no primeiro artigo da Constituição
Federal.

Se houvesse ainda alguma dúvida sobre a


necessidade de se imbricar a existência da democracia à
observância das medidas da justiça transicional, essas se desfizeram
quando aquele triste período da recente história brasileira foi sobeja
e detalhadamente apreciado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos na célebre sentença em que o Brasil foi condenado,
exarada no denominado Caso Gomes Lund.

Ali se apontou que, a despeito do fim do


regime autoritário e da redemocratização marcada pelo advento
da Constituição Federal de 1988, que consagrou inúmeras

94
WEICHERT, Marlon. Justiça Transicional, Estúdio Editores, 1ª edição, São Paulo,
2015, p. 19.
96
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

liberdades, direitos fundamentais e direitos sociais, não foi


aplicada de modo eficiente a necessária Justiça de Transição.

A omissão do Estado brasileiro ficou


reconhecida internacionalmente no mencionado julgamento do caso
Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos.

Ocorre que, mesmo com o advento da


Constituição Federal de 1988, conhecida por “Constituição Cidadã”,
justamente por ter este escopo de (re)construir uma civilidade
democrática no Brasil, muitos resquícios autoritários mantiveram-se
incólumes.

Muitos desses resquícios se relacionam com o


proceder da própria polícia, em especial a militar, que atua amiúde
de modo excessivamente truculento e ainda lança mão de
expedientes ilícitos na sua forma de atuação. Tal se verifica, por
exemplo, na conduta de modificar a cena do crime para
impedir/dificultar as investigações – o que aconteceu em boa parte
dos 505 assassinatos dos Crimes de Maio – e que já era prática
comum no regime ditatorial (1964-1985) e manteve-se durante os
primeiros tempos da redemocratização, como se observa nos relatos
trazidos na significativa obra Rota 66: a história da polícia que mata,
do jornalista Caco Barcellos.

97
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Observa-se, claramente, uma continuidade na


forma de violação de direitos por parte da polícia, com a utilização
dos mesmos métodos para garantir a impunidade de crimes
praticados pelos próprios agentes estatais.

Durante o período da Ditadura Militar (1964-


1985), iniciou-se no Brasil a prática dos “autos de resistência”,
também conhecidos como “auto de resistência seguido de morte”. O
“auto de resistência”, na prática, funcionava como instrumento
utilizado pela polícia para encobrir suas ações que deveriam ser
registradas como casos de homicídios.

Esse tipo de procedimento também foi


observado durante a fase de redemocratização. A narrativa trazida
no livro “Rota 66: a história da polícia que mata”, que trata da morte
de um grupo de jovens de classe média da São Paulo por ação de
uma unidade das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA),
ilustra bem essa situação.

No Capítulo 7 da referida obra, intitulado “A


Armação”, o autor escreve sobre um episódio ocorrido em São Paulo
em 1992: trata-se do assassinato de três jovens por policiais
militares.

Narra o autor sobre o homicídio das vítimas,


sobre a alteração do local do crime; sobre a intenção dos policiais de
matar; e sobre o registro da ocorrência como “auto de resistência”:

98
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“Os corpos dos rapazes estão sendo


arrastados do Fusca para o compartimento de
presos da Rota 17, numa violação do local do
crime que deveria ser totalmente preservado.
Os PMs da Rota 66 encenam um gesto
humanitário, uma tentativa de salvar a vida
dos rapazes providenciando transporte ao
hospital mais próximo. O tenente não só deixa
de impedir a irregularidade como participa da
encenação.”95

Logo após, descreve-se que os policiais


começaram a revirar o carro para poder encontrar qualquer objeto
que pudesse incriminar as vítimas. No mesmo texto, há descrição
dos danos aos veículos e às vítimas, que indicam claramente a
intenção de matar:

“Basta contar os tiros que atingiram o carro


para se concluir que a intenção dos PMs não
era a de evitar a morte dos rapazes.
(...)
Os ferimentos nos corpos são ainda mais
reveladores. O sangue escorre por 23
perfurações de balas, a maior parte em

95
BARCELLOS, Caco. Rota 66: a história da polícia que mata. 19. ed. Editora Globo,
1992, p. 59
99
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

regiões vitais, como o coração e a cabeça. A


pressa em socorrer só ocorre, de fato, na
retirada de corpos do local do crime. A
caminho do hospital, ao contrário, a
velocidade dos policiais militares é de lesma”.
96

E por fim, há o registro da ocorrência, que


passa a ser: “resistência à prisão seguida de morte”:

“A primeira frase escrita no Boletim de


Ocorrência define a natureza do inquérito:
resistência à prisão seguida de morte. A
natureza da segunda informação já revela de
que lado está o responsável pela
investigação. No espaço destinado à vítima, o
delegado titular da 15ª Delegacia, Hugo
Ribeiro de Melo, escreve o nome do sargento
José Felício Soares. Na sequência relaciona
os outros quatro PMs da Rota 66. Sim. Desde
agora os papéis estarão oficialmente
invertidos. Os cinco matadores são
registrados como vítimas dos estudantes
mortos. E os três rapazes serão indiciados, os
responsáveis pela morte deles mesmos. Em
seguida, o delegado começa a narrar o
96
BARCELLOS, Caco. Op., Cit., p 59
100
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

histórico dos fatos, baseado no testemunho


dos matadores-vítimas.”97

A argúcia do então jovem jornalista registra,


para a posteridade, um modus operandi que lamentavelmente
sobreviveu dos tenebrosos tempos da ditadura militar para os
tempos da democratização. E tornou-se de tal modo habitual, que se
naturalizou em números maiúsculos em maio de 2006. E, quiçá,
persista intacto até os dias de hoje.

Com efeito, o procedimento acima


descrito, relativo a uma ocorrência de 1992 (!), coincide com o
procedimento utilizado pela Polícia Militar do Estado de São
Paulo, em atuação conjunta com milícias, no caso dos Crimes
de Maio. Tem-se a execução, a modificação do cenário e o
registro do “auto de resistência”.

Essa situação de lavratura de “autos de


resistência” para escamotear a realidade foi observada durante a
narrativa do Rota 66 e foi também expressamente reconhecida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Cosme Rosa
Genovena e outros vs. Brasil (Favela Nova Brasília).

No parágrafo 166 da sentença do caso, a


Corte Interamericana dispôs que com o registro de “auto de

97
BARCELLOS, Caco. Op., Cit., p 62
101
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

resistência” cria-se, na perspectiva oficial, um contexto no qual a


vítima era o opositor, sem que, contudo, o fosse:

“166. Os representantes também


mencionaram que a investigação dos fatos do
presente caso foi prejudicada por seu registro
como “auto de resistência”. Com efeito, o
conceito de “auto de resistência” implica que
as vítimas sejam tratadas como “opositores”, o
que resulta no estabelecimento de uma única
linha investigativa, voltada para buscar seus
eventuais antecedentes criminosos e provar
sua culpa por algum crime que tenha ocorrido
no âmbito dos fatos investigados.”98

A partir da análise destes dois relatos (Rota


66 e sentença do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil), infere-se que
os procedimentos típicos dos “Esquadrões da Morte” das forças de
segurança da ditadura militar se mantiveram nas décadas de 90 e
2000, já na fase da ordem democrática.

A não observância das balizas da Justiça


de Transição, sobretudo no que concerne às efetivas e
necessárias reformas das instituições, permitiu que em 2006 a

98
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf.
Acesso no dia 14 de novembro de 2018.
102
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

maior chacina da história do Brasil acontecesse a partir de


atuação policial.

Todos os relatórios dos Crimes de Maio de


2006 indicam que não houve enfrentamento das vítimas com a
polícia, mas execução sumária. Além disso, o fato de não ter havido
registro adequado das ocorrências impossibilitou o avanço das
investigações e a consequente responsabilização dos agentes.

Conforme já salientado, o relatório São Paulo


sob Achaque explicita que a polícia atuou como verdadeiro grupo de
extermínio:

“Policiais paulistas mataram 126 pessoas


entre 12 e 20 de maio de 2006, em casos
oficialmente classificados como ‘resistência’
seguida de morte (RSM). Nessas situações,
os policiais alegaram ter agido em legítima
defesa, geralmente em um suposto tiroteio.
Entretanto, as evidências sugerem que muitas
dessas pessoas foram executadas.” 99

Além disso, o mesmo estudo aponta que a


polícia atuou incisivamente de modo a impedir as investigações:

99
São Paulo sob Achaque, p. 73.
103
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“O esclarecimento dos Crimes de Maio foi


dificultado, em grande parte, por ações de
policiais que não preservaram os locais dos
homicídios, intimidaram testemunhas,
desapareceram com provas ou adotaram
medidas para acobertar crimes praticados por
membros de suas corporações”100

O mesmo relatório continua:

“em muitos casos, os policiais foram vistos


removendo os corpos de pessoas
aparentemente mortas e levando-os
desnecessariamente ao hospital, em alegadas
tentativas de prestação de socorro (ver, por
exemplo, o caso #34). A remoção do corpo de
um local de homicídio sem o devido exame
pericial consiste numa destruição de prova.
Por mais que policiais possam ter de fato
tentado socorrer determinadas vítimas,
observamos tais ‘socorros’ em todos os casos
de mortes produzidas em supostos confrontos
com a polícia.”101

100
São Paulo sob achaque, p. 169
101
Ibid., p. 170
104
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Há constatação, ainda, de que a polícia


ameaçou testemunhas e promoveu o apagamento dos registros
realizados pela linha telefônica 190.102

As mesmas práticas foram constatadas pelo


relatório “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de
Maio de 2006, na perspectiva da antropologia forense e da justiça de
transição”, elaborado pela UNIFESP. Ao discorrer sobre
investigações envolvendo policiais, o relatório, de modo mais sutil
que o relatório São Paulo sob Achaque aponta que:

“Na maioria dos processos de investigação,


quando existe suspeita de participação de
agentes públicos, há indícios, como veremos
a seguir, de destruição da cena do crime e de
adulteração ou destruição de provas que
possam incriminar esses agentes. Em outros
casos, especialmente quando as vítimas são
pessoas pobres e moradores de periferias,
encontram-se precariedade e desinteresse na
apuração e na elaboração dos inquéritos
policiais que levam, na grande maioria dos
casos, ao acelerado arquivamento dos
processos sem uma investigação adequada

102
São Paulo sob achaque, p. 170.
105
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

que possa identificar os culpados dos crimes.”


103

Pode-se concluir, portanto, que a polícia que


atuou no período ditatorial foi, basicamente, a mesma que atuou
durante os Crimes de Maio (e é a mesma que ainda atua)104. A
impunidade de policiais, que agem de modo truculento e criminoso e
que ainda alteram ou ocultam provas, é situação atual e decorrente,
dentre outros fatores, da não reforma das instituições no sentido de
sua adaptação à lógica democrática.

Nessa esteira de raciocínio, a presente ação


se mostra absolutamente necessária, sob o marco da Justiça de
Transição, uma vez que tem por objetivo buscar a responsabilização
do Estado pelos danos causados em decorrência da atuação de sua
polícia, marcada pelo autoritarismo que deveria ter ficado no
passado. É necessária também porque contribui para a construção
da verdade histórica, com a declaração judicial de que o Estado, por
meio de seus agentes, praticou crimes e, em razão de falhas na
investigação, permitiu a impunidade.

103
Violência de Estado no Brasil, p. 19
104
Certamente há outros aspectos, na vida brasileira, que denotam a denominada
democracia inconclusiva. As instituições brasileiras não conseguiram a plena
consolidação democrática e muitas delas ainda mantêm vivas as tradições e
pensamentos autoritários herdados da ditadura militar. Há vasta literatura a respeito,
notadamente no âmbito da ciência política. Nesta ação judicial, contudo, interessam tão
somente as instituições policiais que são, quiçá, os exemplos mais acabados daquela
nefasta sobrevivência.
106
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Após essa necessária exposição teórica, que


indica a importância histórica do caso, passa-se à discussão sobre a
responsabilidade do Estado e sobre as medidas relativas à verdade
e à memória que deverão ser adotadas em relação às vítimas.

IX. b) Fundamentos Jurídicos da responsabilidade objetiva do


Estado.

O autor pretende demonstrar, nesta demanda,


que o Estado, ora réu, a partir de atos de seus agentes, causou
danos a centenas de pessoas, promovendo a morte de mais de 500
jovens e deixando familiares e amigos entregues ao abandono.

Tais danos impõem ao Estado o dever de


indenizar os familiares e a sociedade, à vista da responsabilidade
civil do Estado. Vale lembrar, contudo, que a obrigação de tal
natureza se exaure com a indenização, haja vista tratar-se de
obrigação meramente patrimonial.

A demanda, contudo, não se limita a tal pleito.


Coexistem, no caso, a responsabilidade civil do Estado decorrente
dos postulados do Direito Civil/Administrativo com a sua
responsabilidade jurídico-política baseada nos postulados da Justiça
de Transição.

107
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Neste item, o autor trata tão somente da


responsabilidade civil, fazendo-o a partir do artigo 37, § 6º, da
Constituição Federal, bem como do artigo 43 do Código Civil.

O texto constitucional assim dispõe:

“As pessoas jurídicas de Direito Público e as


de Direito Privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa”.

O Código Civil, por seu turno, disciplina o


tema do mesmo modo, nos seguintes termos:

“As pessoas jurídicas de direito público interno


são civilmente responsáveis por atos de seus
agentes que nessa qualidade causem dano a
terceiros, ressalvado o direito regressivo
contra os causadores do dano, se houver, por
parte destes, culpa ou dolo”.

Trata-se da teoria do risco administrativo,


adotada pelo atual código civil brasileiro, segundo a qual há a
obrigação do Estado indenizar o dano tão somente como

108
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

consequência do ato lesivo causado à vítima, não se exigindo falta


na prestação do serviço ou ainda a ocorrência de culpa ou dolo por
parte dos seus agentes (o que seria exigível se tivesse sido adotada
a teoria da culpa administrativa).

Como ensina Silvio de Salvo Venosa,

“...repara-se o dano simplesmente porque


existe um ato ou um fato que o produz. O ato
pode ser lícito ou ilícito, não sendo necessária
a noção de culpa. Seu fundamento é a
equidade. Todos os cidadãos são iguais
perante as cargas públicas. Para a perfeita
aplicação da teoria erigida em preceito no
nosso direito, há que se fixar parâmetros: o
dano deve ter o caráter de permanência,
ainda que não tenha o de perpetuidade, deve
ser direto (relação de causalidade entre o
causador do dano e o Estado), atual e não
tão-só eventual e, principalmente, excepcional
e não ordinária, isto é, deve exceder os
inconvenientes comuns da vida na
coletividade, em suma deve ter o caráter de
anormalidade”. 105

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. Editora Atlas, 9ª edição, São
105

Paulo, 2009, p. 253.


109
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

As ocorrências aqui tratadas atendem com


exatidão aos requisitos apontados pelo doutrinador.

Os danos são evidentemente permanentes.


São mortes violentas, em homicídios, e os sofrimentos daí
decorrentes. Para um pai ou uma mãe que perca o filho em tais
condições, pode-se afirmar que o sofrimento é mais que permanente:
é eterno.

O dano é direto, guardando estrita relação de


causalidade entre as mortes (efeitos) e a atuação dos agentes do
Estado (causas).

São danos atuais, concretos, efetivos e não


eventuais ou excepcionais, no sentido de que não são práticas
habituais e corriqueiras da atuação dos agentes estatais, mas, sim,
desvios excepcionais. Mas não foram fugazes ou eventuais
ocorrências sem consequências, mas, sim, duradouras, isto é,
estabelecidas e consolidadas durante pelo menos uma dezena de
dias, em vastas regiões do território paulista.

Vê-se, pois, que o dever de indenizar, por


parte do Estado, é inegável, independentemente de conduta
animada por dolo ou culpa, por parte de seus agentes. Apenas a
eventual culpa da vítima poderia mitigar tal responsabilidade (o que
não aconteceria se o Direito brasileiro tivesse adotado a teoria do

110
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

risco integral), sendo certo que aquelas motivações, por parte dos
agentes, poderão propiciar, se for o caso, apenas ação de regresso.

A responsabilidade de indenizar, portanto, no


caso em questão dispensa a ‘falta do serviço’ e decorre tão somente
do ‘fato do serviço’, na qual a culpa é ínsita ao fato lesivo produzido
por agentes da Administração Pública.

A disciplina constitucional e legal exige que o


ato ou omissão tenha sido praticado por agente da Administração
(expressão ampla, que abarca os servidores públicos de modo geral,
inclusive, à evidência, policiais), em tal qualidade.

Ensina Hely Lopes Meirelles, em texto


atualizado por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e
José Emmanuel Burle Filho, que:

“não se exige, pois, que tenha agido no


exercício de suas funções, mas simplesmente
na qualidade de agente público, e não como
pessoa comum. Para a vítima, é indiferente o
título pelo qual o causador direto do dano
esteja vinculado à Administração; o
necessário é que se encontre a serviço do
Poder Público, embora atue fora ou além de
sua competência administrativa. O abuso no
exercício das funções por parte do servidor

111
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

não exclui a responsabilidade objetiva da


Administração. Antes, a agrava, porque tal
abuso traz ínsita a presunção de má escolha
do agente público para a missão que lhe fora
atribuída”.106

Especificamente sobre a atuação ilícita de


policiais, vale invocar-se o julgado da Corte Suprema, segundo o
qual:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
ESTADO. Tiroteio. Policial que não estava no
exercício das funções, mas agiu como se
estivesse. 1. A norma do art. 37, § 6º, da
Constituição Federal, não exige que o agente
público tenha agido no efetivo exercício de
suas funções, ou seja, durante o seu horário
de trabalho, bastando que sua conduta denote
a qualidade de agente público.
Precedentes.”107

Com efeito, policiais que nesta qualidade


atuem ao arrepio da lei, em grupos de extermínio ou simples bandos

106
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Atualizado por Eurico de
Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. Editora
Malheiros, 35ª edição, São Paulo, 2009, p. 661/662.
107
STF, RE/SP 770.068, Relator Min. Roberto Barroso, DP: 30/11/2015
112
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

de matadores, fazem-no a partir de sua condição de policiais e, não,


de cidadãos que se disponham a agir como justiceiros. O liame de
fato que os une é a condição de agentes do Estado e a própria
atuação articulada com os demais policiais, que se apressam em
apagar os vestígios dos crimes e impedir as provas periciais de
reconstituição e levantamento do local, seja removendo os
cadáveres, seja apagando vestígios da ação, demonstram que os
crimes ocorrem sob o pálio da Administração Pública, implicando
responsabilidade civil.

E pouco importa se os tais agentes foram ou


não identificados; se foram ou não responsabilizados administrativa e
criminalmente. Importa tão somente a prática voluntária da conduta,
resultando (nexo causal) em dano a alguém.

Vale invocar significativo e didático acordão


sobre o tema, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“Ação Ordinária – Autoras que buscam a


reparação de danos materiais (despesas com
funeral) e moral em razão da morte dos filhos,
atingidos que foram, em meio a perseguição
policial, por disparos de arma de fogo –
Reparação devida, quer sob o ângulo da
responsabilidade objetiva do Estado quer sob
a perspectiva da responsabilidade subjetiva,
ocorrendo lembrar que não será o fato de o

113
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

inquérito policial haver sido arquivado na


base da ocorrência de excludente de
ilicitude, em favor dos policiais, a impedir a
condenação na esfera civil, porque se aplica
aqui a norma dos artigos 64, caput, e 67,
incisos, ambos do CPP, c.c. a regra do art.
935 do Código Civil – Prova indiciária que se
revela suficiente para a condenação na esfera
patrimonial”.108

Nas graves ocorrências aqui tratadas, o


quanto necessário para a caracterização da obrigação de indenizar,
pelo Estado, está bem demonstrado, cabendo ao Poder Judiciário
reconhecê-la, de modo a assegurar as respectivas execuções
coletiva e individuais.

No que concerne à indenização por dano


difuso ou coletivo, o que ora se busca é o ressarcimento por dano
social, objeto de tópico específico desta petição inicial.

Quanto aos danos morais individuais, busca-


se o reconhecimento judicial genérico da obrigação e a possibilidade
posterior de habilitação individual, tanto por parte dos familiares dos
policiais mortos como dos familiares dos civis mortos.

108
TJSP, 7ª Câmara de Direitos Público, Apelação nº 1002145-57.2017.8.26.0053,
Relator: Luiz Sergio Fernandes de Souza, DJ: 30/07/2018, DP: 02/08/2018
114
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Busca-se, também, fixação de indenização


por danos morais e materiais às vítimas que sobreviveram aos
Crimes de Maio, sendo certo que os valores devem ser discutidos no
processo das habilitações individuais.

No âmbito das habilitações individuais, a partir


da condenação genérica, será possível a produção de prova
destinada à comprovação da pertinência do pleito (na hipótese de
anterior indenização por ação própria) como, sobretudo, dos valores
devidos.

Tal hipótese de liquidação e execução poderá


ser promovida na exata dicção do artigo 97 do Código de Defesa do
Consumidor, cuja regra há de ser aplicada a presente situação por
se tratar do microssistema jurídico aplicável ao processo coletivo no
Direito brasileiro.

Por fim, ressalte-se que os danos morais


individuais comportam sejam desde logo arbitrados nesta ação,
conforme se verá nos próximos tópicos.

IX. b) Caracterização de dano social.

Além da existência do dano gerado aos


familiares das vítimas, a ação do Estado provocou indiscutivelmente

115
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

significativo dano social, diminuindo a qualidade de vida das pessoas


de modo geral, seja pela escalada da violência, seja pela não
investigação adequada e não apuração dos fatos de forma
exauriente.

Nas últimas décadas, principalmente após a


redemocratização do País, o processo civil brasileiro tem passado
por reestruturação, lenta e gradual, mas fortemente necessária aos
novos moldes sociais. A mudança diz respeito ao acolhimento, em
âmbito processual, dos direitos fundamentais de terceira geração,
como a solidariedade, o meio-ambiente sadio, a paz e a
autodeterminação dos povos.

Essa dimensão de direitos pensa o ser


humano como gênero e não adstrito ao indivíduo ou mesmo a uma
coletividade determinada. Como ensina Pietro de Jesus Lora
Alarcon:

“a aparição dessa terceira dimensão dos


direitos fundamentais evidencia uma
tendência destinada a alargar a noção de
sujeito de direitos e do conceito de dignidade
humana, o que passa a reafirmar o caráter
universal do indivíduo perante regimes

116
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

políticos e ideologias que possam colocá-lo


em risco...” 109.

Assim, o reconhecimento dos direitos de


terceira geração constitui-se como mais uma conquista da
humanidade no sentido de ampliar a proteção dos cidadãos. Ocorre
que não basta reconhecê-los no plano material ou normativo e não
propiciar instrumentos hábeis que os tornem exigíveis e auferíveis,
daí advindo o indispensável nascimento dos ditames do processo
civil coletivo.

O primeiro diploma a disciplinar o tema no


Brasil remonta à década de 1960, quando surge a ainda pouco
explorada Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965). A partir da
década de 1980, os doutrinadores pátrios, inspirados nas class
actions americanas, passaram a se debruçar sobre a matéria,
momento em que surgem as Leis da Política Nacional do Meio
Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e da Ação Civil Pública (Lei nº
7.347/1985), essa um verdadeiro marco para o processo civil coletivo
brasileiro.

Com a promulgação da Constituição Federal


em 1988 e a subsequente edição, em 1990, do Código de Defesa do
Consumidor, estava formado o microssistema processual coletivo,
voltado à proteção de todos os direitos coletivos lato sensu,

109
ALARCON, Piero de Jesus Lora. O patrimônio genético humano e sua proteção na
Constituição Federal de 1988. Método, São Paulo, 2004, p. 81
117
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

englobando os direitos difusos, os coletivos stricto sensu e os


individuais homogêneos.

Não obstante a criação desse microssistema


normativo, apto a resguardar os interesses de toda uma coletividade
ou mesmo de toda humanidade, parte dos juristas brasileiros ainda
contempla uma visão completamente individualista (civilista) do
fenômeno. Exemplo disso é a divergência, em âmbito doutrinário e
jurisprudencial, da existência do dano social e a possibilidade de
pagamento de indenização.

Os danos sociais, nas palavras de Antônio


Junqueira de Azevedo110, são aqueles que causam um rebaixamento
no nível de vida da coletividade e que decorrem de condutas
socialmente reprováveis, ou seja, condutas corriqueiras que causam
mal-estar social. Envolvem interesses difusos e as vítimas são
indeterminadas ou indetermináveis (correspondem ao art. 81,
parágrafo único, inciso I do Código de Defesa do Consumidor).

Esses danos constituem-se, pois, na


aplicação da função social da responsabilidade civil, atrelada ao
fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, o qual, com fulcro
na supremacia da Constituição, preceitua que os fundamentos de
validade jurídica do Direito Civil devem ser extraídos da Constituição.

110
AZEVEDO, Antonio Junqueira. Novos estudos e pareceres de direito privado,
capítulo “Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil – o dano social”.
Editora Saraiva, São Paulo.
118
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nas palavras da Ministra aposentada do STJ


Eliana Calmon,

“as relações jurídicas caminham para uma


massificação, e a lesão aos interesses de
massa não podem ficar sem reparação sob
pena de criar-se litigiosidade contida que
levará ao fracasso do direito como forma de
prevenir e reparar os conflitos sociais. A
reparação civil segue em seu processo
evolutivo, iniciado com a negação do direito à
reparação do dano moral puro para a previsão
de reparação de dano a interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos, ao lado
do já consagrado direito à reparação pelo
dano moral sofrido pelo indivíduo e pela
pessoa jurídica (cf. Súmula 227/STJ)”.111

Aqui cabe a compreensão de que as técnicas


de tutela do direito são opções políticas e ideológicas ligadas à
cultura, à filosofia e ao modo de ser do direito em determinado
momento histórico. A partir do constitucionalismo, movimento político
cultural surgido nos séculos XVIII/XIX na Europa Ocidental, os
direitos fundamentais foram gradativamente, por meio de suas
denominadas dimensões, assumindo a centralidade do ordenamento
jurídico.
111
STJ, Resp. 1.269.494-MT, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 24.09.2013.
119
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Assim, a própria ideia de tutela da


personalidade merece um novo enfoque atualmente. Isso porque:

“os direitos de personalidade manifestam-se


como uma categoria histórica, por serem
mutáveis no tempo e no espaço. O direito de
personalidade é uma categoria que foi
idealizada para satisfazer exigências da tutela
da pessoa, que são determinadas pelas
contínuas mutações das relações sociais, o
que implica a sua conceituação como
categoria apta a receber novas instâncias
sociais”.112

Evidentemente, pois, que uma coletividade


está sujeita a suportar danos morais. Certas condutas atingem não
apenas pessoa determinada, mas, também, um grupo indeterminado
de pessoas ou toda a sociedade.. E, por tais características, foi
designada como dano social.

Atualmente, essa categoria de dano é


reconhecida tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência.

112
José Rubens Morato Leite. Dano Ambiental: do individual ao coletivo
extrapatrimonial. RT, São Paulo, 2000, p. 287.
120
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nesse sentido é o Enunciado 455, aprovado


na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça
Federal/Superior Tribunal de Justiça que, fazendo referência ao
artigo do Código Civil que trata da medida da indenização derivada
do dano, reconheceu a existência dos danos sociais:

“Enunciado 455: A expressão “dano” no art.


944 abrange não só os danos individuais,
materiais ou imateriais, mas também os danos
sociais, difusos, coletivos e individuais
homogêneos a serem reclamados pelos
legitimados para propor ações coletivas”.

Examinando essa nova categoria de dano, o


dano social, Antônio Junqueira113 aduz que se um ato é doloso,
gravemente culposo ou negativamente exemplar, pode não ser lesivo
somente ao patrimônio material ou moral da vítima, mas atingir toda
a sociedade.

O STJ, em recurso repetitivo114, seguiu esse


entendimento, ao reconhecer que a condenação por danos sociais
requer pedido expresso e deduzido no âmbito de uma ação judicial
coletiva.

113
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na
responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JR.,
Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (coord.). O Código Civil e sua
interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
114
STJ. 2ª Seção. Recl. 12.062-GO, Rel. Ministro Raul Araújo, julgado em 12/11/2014
121
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Cuida-se, portanto, de um dano que atinge os


fundamentos da sociedade organizada, em suas expressões
políticas, culturais e institucionais, refletindo sobre os valores que
inspiram as relações humanas, tais como a solidariedade, a justiça, a
generosidade, a igualdade democrática e de direitos e, sobretudo, o
sentimento profundo de justiça.

Assim, é patente que uma coletividade, diante


de ofensas praticadas contra seus bens e direitos, pode ser
culturalmente ofendida ou sofrer abalo em sua honra, crença,
dignidade e reputação. Como ensina a douta Ministra aposentada
Eliana Calmon, referindo-se aos danos morais coletivos lato sensu,
incluindo os aqui denominados ‘danos sociais’, ainda no bojo do
mesmo acórdão já citado:

“o dano moral deve ser averiguado de acordo


com as características próprias aos interesses
difusos e coletivos, distanciando-se quanto
aos caracteres próprios das pessoas físicas
que compõem determinada coletividade ou
grupo determinado ou indeterminado de
pessoas, sem olvidar que é a confluência dos
valores individuais que dão singularidade ao
valor coletivo”115.

115
STJ, Resp. 1.269.494-MT, Rel. Min. Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 24.09.2013.
122
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

No entanto, não é qualquer atentado aos


interesses da coletividade que merece ocasionar o seu
ressarcimento por dano moral. De acordo com o Ministro do STJ
Massami Uyeda, é indispensável:

“que o fato transgressor seja de razoável


significância e desborde os limites da
tolerabilidade”.116

É, à evidência, o caso dos autos, em que


houve inequívoco dano social. Os ataques de maio, em seus
primeiros dias, paralisaram as maiores cidades do Estado de São
Paulo, em razão da própria ineficiência do Estado em gerenciar a
crise. Como se não fosse suficiente, o Estado omitiu-se na morte de
seus agentes policiais e, por outro turno, contribuiu com a escalada
da violência, matando, em atividade de milícia, mais de 500 pessoas,
sendo que a grande maioria delas não tinha qualquer vinculação com
o crime organizado117.

Seria um equívoco defender que não houve


diminuição da qualidade de vida da população de modo geral. Com a
resposta inadequada do Estado perante a crise, houve aumento
significativo da violência no mês de maio de 2006, causando intenso
medo na população, de modo mais ou menos generalizado.
116
STJ, REsp 1221756/RJ, Rel. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 02.02.2012.
117
Esta observação final é mero recurso retórico: é evidente que a eventual vinculação
das vítimas com atividades criminosas igualmente não permitiria ou legitimaria o
homicídio nem o tornaria menos reprovável. Estado que mata criminoso ao invés de
responsabilizá-lo legalmente pelo crime é Estado mais criminoso que ele.
123
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

O direito à segurança recebeu status bastante


singular na Constituição Federal. O próprio preâmbulo já dispõe que
é objetivo do Estado Democrático garantir a segurança e o bem-estar
dos indivíduos e, já no art. 5º, caput, foi prevista a inviolabilidade do
direito à segurança. Sem prejuízo, foi criado o Capítulo III no Título V
(Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas), fazendo
previsões específicas sobre a Segurança Pública.

O Estado de São Paulo, ao agir com base no


revanchismo ou na vingança, foi propulsor da violência e do
assassinato de mais de 500 pessoas. Houve, portanto, violação do
direito à segurança da população de todo o Estado de São Paulo,
que se viu acuada perante a violência e a falta de informações
claras. O dever de indenizar, então, se mostra inegável.

IX. c) Quantificação dos danos: parâmetros para pagamento de


indenizações de danos morais e sociais.

A fixação de danos morais e sociais não pode


ser feita de modo aleatório e assistemático. Seja como garantia para
que o réu saiba o motivo por que está sendo condenado a pagar
certo valor e não outro; seja porque decisões que impõem
obrigações ou restrições de direitos precisam basear-se em
categorias jurídicas tiradas de estrita racionalidade. Assim, tal
arbitramento deve servir-se de critérios objetivos e claros.

124
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Para quantificar o dano a partir de critério


absoluto e bem determinado, propõe-se, nesta ação, paradigma
estabelecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Cosme Rosa Genoveva e Outros vs. Brasil (Caso Favela Nova
Brasília).

O referido caso relaciona-se com as falhas e


com a demora na investigação e punição dos responsáveis pelas
violações de direitos humanos no período compreendido entre 18 de
outubro de 1994 e 8 de maio de 1995, que ocorreram na Favela
Nova Brasília, no Município do Rio de Janeiro. Durante aqueles
meses, a Polícia Civil realizou duas operações, que resultaram na
morte de 26 pessoas e estupro de outras três.

Na primeira operação, a polícia matou 13


homens, sendo quatro adolescentes, além de cometerem violência
sexual contra três jovens do sexo feminino, sendo duas
adolescentes. A segunda operação teve como resultado três policiais
feridos e a morte de 13 homens, dos quais três eram adolescentes.

Durante as investigações, as mortes foram


registradas como “resistência à prisão resultante da morte dos
opositores” e “tráfico de drogas, grupo armado e resistência seguida
de morte”. Ambas as investigações foram arquivadas em 2009 em
decorrência da prescrição da pretensão punitiva dos crimes.

125
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Trata-se, portanto, de caso que guarda


significativa semelhança com o que se analisa aqui, na medida em
que ambos se relacionam com a impunidade de crimes praticados
por agências repressoras estatais. Em ambos os casos, as
investigações traziam a concepção prévia de que as vítimas foram
mortas em consequência de suas próprias condutas, devido ao
contexto de enfrentamento com a polícia.

Assim, possível e aconselhável a utilização


dos mesmos parâmetros para quantificar o valor da indenização por
dano moral a ser pago às famílias, bem como o valor do dano social,
a ser destinado ao Fundo Estadual de Reparação dos Interesses
Difusos e Coletivos lesados, previsto na Lei Estadual n º
13.555/2009.

Na mencionada sentença da Corte


Interamericana de Direitos Humanos, proferida no dia 16 de fevereiro
de 2017 em desfavor do Brasil, dispôs-se que:

“353. No capítulo VII, se declarou a


responsabilidade internacional do Estado
pelas violações dos direitos estabelecidos nos
artigos 5, 8 e 25 da Convenção Americana,
em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo
instrumento (par. 224, 231, 239, 242 e 274
supra), e, quanto a L.R.J., C.S.S. e J.F.C.,
também em relação aos artigos 1, 6 e 8 da

126
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

CIPST e 7 da Convenção de Belém do Pará


(par. 258 e 259 supra). Considerando o
exposto e as diferentes violações
determinadas nesta Sentença, este Tribunal
fixa, de maneira justa, a soma de US$
35.000,00 (trinta e cinco mil dólares dos
Estados Unidos da América), uma única
vez, para cada uma das vítimas de violações
dos direitos às garantias judiciais, à proteção
judicial e à integridade pessoal reconhecidos
nos parágrafos 224, 231, 239, 242, 258, 259 e
274 da presente Sentença, e a soma adicional
de US$15.000,00 (quinze mil dólares dos
Estados Unidos da América) para L.R.J.,
C.S.S. e J.F.C., individualmente.”118

Assim, em relação à violação dos direitos


previstos nos artigos 5 (integridade pessoal), 8 (garantias judiciais) e
25 (proteção judicial), a Corte Interamericana de Direitos Humanos
condenou o Brasil ao pagamento de indenização de U$ 35.000,00
(trinta e cinco mil dólares) para cada uma das vítimas, valor que
corresponde hoje119 a R$ 136.150,00 (centro e trinta e seis mil, cento
e cinquenta reais), que se mostra plenamente razoável, à vista dos
valores arbitrados em casos semelhantes, em razão da atividade de

118
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_333_por.pdf.
Consultado no dia 31 de outubro de 2018.
119
Valor esse calculado no dia 13 de novembro de 2018. Cotação do dólar na data: US$
1,00 = R$ 3,89
127
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

extermínio e negativa de justiça aos familiares das vítimas dos


Crimes de Maio.

Assim, entende-se que o valor da indenização


por danos morais a ser fixado para cada uma das vítimas deve ser
de pelo menos R$ 136.150,00 (centro e trinta e seis mil, cento e
cinquenta.120

Em relação aos danos materiais, postula-se


que tal valor seja calculado em execuções individuais, nas quais
cada família deve comprovar os gastos que suportaram em
decorrência do crime, além de eventuais lucros cessantes.

Em relação às vítimas que não vieram a óbito,


levando em consideração que o Estado, dentro de um contexto de
violência generalizada não protegeu a população, bem como
considerando o valor fixado para aquelas mortas durante os Crimes
de Maio, propõe-se que o valor da indenização por danos morais
seja reduzido da metade, dado que o dano que suportaram foi
menor, para o equivalente a US$ 17.500,00 (dezessete mil e
quinhentos dólares), equivalente hoje a R$ 68.075,00 (sessenta e
oito mil e setenta e cinco reais).

Também este valor deve se estribar num


critério objetivo. Ele se justifica também com a sentença do caso

120
Impende ressaltar que essa indenização não se confunde com a indenização por
danos materiais, que dependerá de futura liquidação caso a caso.
128
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Favela Nova Brasília, que acrescentou o valor de US$ 15.000,00


(quinze mil dólares) para as vítimas que sofreram violência sexual.

A individualização dos créditos, tanto para os


danos materiais como para os morais, há de ser feita por meio de
habilitações individuais, a serem promovidas pelos interessados em
Juízo, por meio de legitimação ordinária e, se for o caso, por meio de
assistência judiciária.

Em tais hipóteses, os danos materiais deverão


ser comprovados caso a caso, enquanto os danos morais devem ser
fixados, desde logo, na decisão que há de vir nesta demanda, em R$
136.150,00 (centro e trinta e seis mil, cento e cinquenta reais)
para os familiares das vítimas fatais e R$ 68.075,00 (sessenta e oito
mil e setenta e cinco reais) para as vítimas não fatais.

Em relação ao valor do dano social causado


pelos eventos, e ainda se valendo de um parâmetro claro e objetivo,
o Estado deve ser condenado ao pagamento de indenização no valor
de R$ 76.788.600,00 (setenta e seis milhões, setecentos e oitenta
e oito mil e seiscentos reais), a ser destinado ao Fundo Estadual
de Proteção aos Interesses Difusos e Coletivos Lesados.

Trata-se do valor a ser pago a cada vítima,


multiplicado pelo número total de vítimas, a saber, 564 (quinhentos e
sessenta e quatro). Não se inclui no total o valor a ser pago para as
vítimas não fatais, uma vez que esse número é bastante controverso

129
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

nos estudos que foram utilizados para fundamentar a presente


demanda.

IX. d) Ainda a reparação individual: assistência psicológica.

Um dos pilares da Justiça de Transição, como


visto acima, é a reparação às vítimas. O modo de fazê-lo não há de
ser apenas por meio de compensações financeiras, como se
discorreu no item anterior, mas também por quaisquer outros meios
que atendam ao objetivo de recompor, com a máxima efetividade
possível, a situação anterior à violência estatal.

As gravíssimas situações tratadas nesta ação


judicial impõem aos familiares das vítimas chacinadas relevantes
marcas e sofrimentos psicológicos. Afiguram-se dispensáveis
quaisquer considerações adicionais sobre este assunto: pode-se
pressupor, sem grande esforço, que familiares de jovens
violentamente assassinados pelo Estado suportam graves e
profundos traumas psicológicos.

O conceito de reparação das vítimas, nos


termos das orientações das Nações Unidas, implica quatro
competências a serem alcançadas: restituição, compensação,
reabilitação e satisfação.121

“Princípios e Diretrizes Básicos do Direito a Garantias e Reparações para Vítimas de


121

Graves Violações ao Direito Internacional Humanitário”. Estudos do Professor Theo Van


130
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Com efeito, dispõe Princípio 18 dos Princípios


e Diretrizes Básicos do Direito a Garantias e Reparações para
Vítimas de Graves Violações ao Direito Internacional Humanitário:

“Vítimas de graves violações ao direito


internacional dos direitos humanos e sérias
violações ao direito humanitário devem,
conforme e proporcionalmente à gravidade da
violação e às circunstâncias de cada caso,
receber plena e efetiva reparação, conforme
fixado nos princípios 19 a 23, a qual deve
incluir as seguintes formas: restituição,
compensação, reabilitação, satisfação e
garantias de não-repetição”.122

Nesse sentido, à guisa de reabilitação, é


preciso oferecer às vítimas e familiares garantias de plena saúde
física e mental, destinada à superação possível daqueles traumas.

Lembra Marlon Alberto Weichert que:

“A reabilitação diz respeito a serviços que o


Estado deve prover para reintegrar a vítima à

Bovem, aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidos pela Resolução nº 60/47,
de 2005. E também “Princípios para combater a impunidade”, a partir de estudos de
Louis Joinet e Diane Orentlicher, aprovados pela Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas em fevereiro de 2005.
122
Idem.
131
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

vida social ou laboral. Inclui assistência


médica e psicológica, (re)qualificação
profissional e recuperação ou atenção escolar
especial.”123

Assim, o Estado há de ser condenado a


prestar assistência psicológica aos familiares das vítimas que assim
o desejarem, específica para as situações de trauma violento, por
profissionais disponibilizados ou contratados pelo Estado para tanto
e pelo tempo necessário, a critério dos profissionais.

IX. e) Garantia do Direito à Verdade e à Memória.

Superada a questão da indenização, passa-se


à discussão de outro dos quatro pilares da Justiça de Transição, a
saber, o direito à verdade e à memória.124

Quando se trata de justiça de transição, além


das reparações a serem pagas em forma de indenizações ou outras
medidas compatíveis, a satisfação devida às vítimas e seus
familiares há de ser feita pela revelação das circunstâncias em que
se deram as violações de direitos humanos.

123
Obra citada, p. 29.
124
Renova-se a informação de que a busca de responsabilização penal dos agentes e
as investigações criminais dos fatos não se inserem nas atribuições desta Promotoria
de Justiça de Direitos Humanos, conforme já esclarecido, e que será distribuída
oportunamente ação civil pública tratando das medidas de aprimoramento institucional
voltadas à não repetição dos fatos aqui tratados.
132
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Conforme esclarece Marlon Alberto Weichert:

“há um interesse tanto individual das vítimas –


que têm o direito de saber o que se passou
com elas ou seus parentes, bem como as
respectivas circunstâncias – como coletivo e
social, correspondente ao direito da sociedade
de ser informada e se informar sobre o como
e o porquê de ter sido submetida a um regime
de graves violações de direitos humanos. O
propósito social é reconhecer e entender para
não repetir ou reproduzir.”125

No mesmo sentido e do modo bastante


didático, leciona Renan Honório Quinalha:

“...a segunda dimensão, comumente


designada como direito à memória, é
constituída, essencialmente, por políticas
públicas e outras iniciativas orientadas tanto
para homenagear os que foram perseguidos
quanto para esclarecer o funcionamento da
repressão, dando ampla repercussão social a
essas informações. Essa dimensão é
fundamental para o processo de construção
125
WEICHERT, Marlon. Op.Cit., p. 26
133
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

coletiva e oficial de uma memória capaz de


revelar não somente as formas de exercício
do poder autoritário, mas também enaltecer o
papel da resistência de setores da sociedade
civil”126

No presente caso e inspirado por tais


propósitos, é indispensável que as vítimas tenham um
pronunciamento judicial declarando que os homicídios que entraram
para a história contemporânea do país como Crimes de Maio não se
deram em razão de confronto, isto é, por iniciativa das vítimas, mas
em razão de atividade típica de grupo de extermínio. É uma forma de
esclarecer os fatos para as famílias, mas também de esclarecê-los à
sociedade, que não há de conviver com grupos de extermínio e
tolerar tais níveis de brutalidade.

No contexto atual, em que ainda se tem uma


polícia que utiliza “autos de resistência” para ocultar os crimes por
ela praticados127, é de extrema importância o reconhecimento,
mesmo que de modo incidental, que o Estado de São Paulo errou (e
ainda erra) ao tolerar essa prática deletéria à democracia brasileira e
que contribuiu/contribui para o quadro de violência sistêmica
observado no Brasil.

126
QUINALHA, Renan Honório. Justiça de Transição: contornos do conceito. 1ª edição,
São Paulo, Editora Outras Expressões, 2013, p. 144.
127
Prática essa proscrita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Favela
Nova Brasília vs. Brasil).
134
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Nesse sentido, é indispensável que haja


condenação do réu a um pedido formal de desculpas às vítimas e
seus familiares, por meio de ato público amplamente divulgado
e mediante a publicação de texto claro e objetivo a ser veiculado
em sua página eletrônica oficial e nas páginas eletrônicas de redes
sociais em que mantenha atividades de divulgação oficial, além de
publicação também em imprensa escrita, isto é, em pelo menos três
edições de jornais de grande circulação na capital e interior de São
Paulo.

Esse pedido de desculpas, com consequente


reconhecimento de responsabilidade, além de contribuir para o
esclarecimento público da verdade dos fatos, sedimentando o
entendimento de que as operações policiais em maio de 2006 foram
absolutamente equivocadas, também se mostra como forma
subjetiva de reparação às vítimas, sobretudo pela possibilidade
de participação em ato público destinado à apresentação formal
do pedido de desculpas.

Ressalta-se que a condenação a esse tipo de


ato público é prática comum no Direito Internacional e amplamente
aceita na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estado
Brasileiro, inclusive, também em caso envolvendo Justiça de
Transição, já foi condenado a realizar ato público e formal de
reconhecimento de responsabilidade, como se observa no caso
Gomes Lund vs. Brasil:

135
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

“277. A Corte Interamericana valora


positivamente as iniciativas de
reconhecimento de responsabilidade interna
e as numerosas medidas de reparação
informadas pelo Estado. Entretanto, como
fez em outros casos, para que o
reconhecimento interno surta plenos efeitos,
o Tribunal considera que o Estado deve
realizar um ato público de reconhecimento de
responsabilidade internacional, em relação
aos fatos do presente caso, referindo-se às
violações estabelecidas na presente
Sentença. O ato deverá levar-se a cabo
mediante uma cerimônia pública em
presença de altas autoridades nacionais e
das vítimas do presente caso. O Estado
deverá acordar com as vítimas e seus
representantes a modalidade de
cumprimento do ato público de
reconhecimento, bem como as
particularidades que se requeiram, como
o local e a data da realização. Esse ato
deverá ser divulgado pelos meios de
comunicação e, para sua realização, o
Estado dispõe do prazo de um ano, contado

136
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

a partir da notificação da presente Sentença.”


128

No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Corte


Interamericana aceitou o reconhecimento de responsabilidade como
pedido formal de desculpas aos familiares da vítima, indicando que
pedidos de desculpas e atos de reconhecimento de responsabilidade
podem ser usados de modo mais ou menos indistinto:

“241. Para efeitos de uma desculpa


pública aos familiares da vítima, a Corte
acata e aprecia o reconhecimento parcial de
responsabilidade internacional realizado pelo
Estado na audiência pública realizada em 30
de novembro de 2005, com relação ao
presente caso (par. 36 e 63 supra). Nessa
oportunidade, o Estado manifestou que:
reconhece a procedência da petição da
Comissão Interamericana no que se refere à
violação dos artigos: 4 (Direito à vida) e 5
(Direito à integridade pessoal) da Convenção
Americana.” 129

128
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.
Acesso no dia 13 de novembro de 2018.
129
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf.
Acesso no dia 13 de novembro de 2018.
137
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

No entanto, não basta que o Estado de São


Paulo reconheça sua responsabilidade, trazendo a verdade sobre os
fatos. É indispensável, também, que a memória das vítimas seja
recuperada e protegida.

Conforme esclarece Marlon Alberto Weichert,


há inúmeras formas de promover a memórias, tais como:

“divulgação de depoimentos, reunião de


arquivos, publicação de livros, encenação de
peças teatrais, estímulo a expressões
musicais e exposições artísticas, e a criação
de monumentos e espaços de memória”.130

No presente caso, já há estudos e livros sobre


o tema, que inclusive auxiliaram na elaboração da presente petição
inicial. Todavia, não existe, por parte do Estado, qualquer documento
oficial que demonstre o que de fato aconteceu durante aquele maio
de 2006. Nessa esteira de raciocínio, tem-se como essencial, à
maneira de história oral, a elaboração de vídeo com registro de
depoimentos de familiares das vítimas, a ser produzido pelo
Estado e mantido em disponibilidade na página oficial do Governo
Estadual e em suas redes sociais, em link visível e por tempo
indeterminado, bem como nos arquivos públicos estaduais.

130
WEICHERT, Marlon. Op. Cit., p. 33
138
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A manutenção do vídeo nas páginas


eletrônicas do Governo Estadual por tempo indeterminado tem a
função de lembrar, sempre, que o Estado foi responsável por
aquelas graves violações de Direitos Humanos.

Sem prejuízo da função pedagógica, a


disponibilização do vídeo cumpre, em menor escala e de modo
indireto, a garantia de não repetição. Por certo a mera
disponibilização do vídeo e sua divulgação não garantem que no
futuro sejam evitadas ações de extermínio por parte do Estado.
Todavia, a perenização da memória dos acontecimentos deixa
sempre presente o que se viveu e as dores a relacionadas, indicando
que esse tipo de ação, por parte do Estado, é equivocada e merece,
sempre, forte repúdio.

X. DOS PEDIDOS.

Como já esclarecido na introdução desta ação


civil pública, os pedidos elaborados, sem prejuízo dos pleitos de
natureza processual, amoldam-se aos pilares da Justiça de
Transição. Assim, são três modalidades de pedidos: os pedidos
relacionados à reparação stricto sensu das vítimas e seus familiares;
os pedidos relacionados à memória e à verdade; e, por fim, os
pedidos de natureza processual131.

131
Vale lembrar, uma vez mais, que dos quatro pilares da Justiça de Transição, dois são
objeto desta demanda (reparação às vítimas e direito à memória e verdade). Dos outros
139
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os pedidos de condenação por danos


materiais, morais e sociais e a disponibilização de auxílio
psicológico aos familiares das vítimas relacionam-se com o pilar
da Justiça de Transição que diz respeito à reparação das vítimas
e da sociedade (compensação e reabilitação).

Não se objetiva aqui o enriquecimento ilícito


dos familiares das vítimas. Busca-se a reparação dos danos sofridos,
em consonância com as indenizações aplicadas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos em casos de mortes
decorrentes de violação sistemática de direitos humanos, conforme
explicado no tópico específico.

Além disso, busca-se uma indenização por


danos sociais, de viés claramente difuso ou coletivo, que deve ser
destinada ao Fundo Estadual de Reparação dos Interesses Difusos e
Coletivos Lesados, previsto na Lei Estadual nº 13.555/2009,
permitindo-se a realização de projetos que tenham por objetivo a
tutela dos interesses sociais da coletividade.

Os pedidos relacionados à reparação dos


danos estão elencados nos itens B, C, D e E.

dois, um não se inclui dentre as atribuições desta Promotoria de Justiça de Direitos


Humanos (responsabilização criminal dos violadores de direitos humanos) e outro será
objeto de oportuna e específica ação judicial (providências de aprimoramento
institucional voltadas à não-repetição).
140
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os pedidos de formulação de pedido


formal de desculpas e elaboração de vídeo institucional sobre a
memória dos casos se relacionam com o direito à verdade e à
memória.

Com e elaboração de um pedido formal de


desculpas, o Estado de São Paulo reconhece, de modo solene, que
teve responsabilidade pelos acontecimentos, esclarecendo a
verdade histórica e respeitando a memória das vítimas civis e dos
agentes estatais que perderam suas vidas durante os dias de maio
de 2006.

Já a elaboração de vídeo institucional, com a


oitiva dos familiares, serve para demonstrar respeito ao sofrimento e
à história de vida de cada um, como também para dar voz a essas
pessoas que até hoje sofrem e buscam reparações pelos danos
suportados. A manutenção desse vídeo nas páginas oficiais do
Governo do Estado de São Paulo, inclusive nas redes sociais,
também denota a função essencial, fortemente simbólica, de
preservar a memória coletiva. Em menor grau, essa medida também
serve como garantia de não-repetição, deixando perene na memória
coletiva paulista aquela gravíssima e severa violação de direitos
humanos fundamentais.

Os pedidos relacionados com o direito à


verdade e à memória se encontram nos itens F e G.

141
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Os demais pedidos são natureza processual.

Isso posto, requer o Ministério Público do


Estado de São Paulo, por meio de sua Promotoria de Justiça de
Direitos Humanos, Área de Inclusão Social:

a) seja determinada a citação e intimação


do réu, no endereço acima fornecido, a fim de que, advertido da
sujeição aos efeitos da revelia, nos termos do art. 344 do Código de
Processo Civil, apresente, querendo, resposta aos pedidos ora
deduzidos, no prazo de 15 (quinze dias).

b) Condenação do Estado de São Paulo ao


pagamento de indenização pelos danos materiais causados aos
familiares das vítimas, tais como despesas com funeral, tratamentos
médicos, hospitalares, psicológicos e medicamentos, lucros
cessantes etc., mediante habilitação individual.

c) Condenação do Estado de São Paulo ao


pagamento de indenização pelos danos morais individuais
causados (pelos sentimentos de angustia, solidão, medo, saudade,
desesperança, humilhação, vergonha, injustiça, incompreensão e
outras dores morais decorrentes da perda de entes queridos e da
não punição dos responsáveis), mediante habilitação individual, no
valor de R$ 136.150,00 (centro e trinta e seis mil, cento e
cinquenta reais) para os familiares das vítimas fatais e R$

142
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

68.075,00 (sessenta e oito mil e setenta e cinco reais) para as


vítimas não fatais.

d) Condenação do Estado de São Paulo ao


pagamento de indenização por danos sociais (difusos), no valor de
R$ 76.788.600,00 (setenta e seis milhões, setecentos e oitenta e
oito mil e seiscentos reais), decorrentes do ambiente social de
violência, truculência, insegurança, medo, ensejadores de fragilidade
de instituição policiais, políticas e do sistema de justiça, em prejuízo
da ordem democrática e do Estado de Direito; o valor deve ser
destinado ao Fundo Estadual de Reparação dos Interesses Difusos e
Coletivos lesados, previsto na Lei Estadual nº 13.555/2009.

e) Condenação do Estado de São Paulo à


disponibilização de assistência psicológica aos familiares de
vítimas que assim o desejarem, específica para as situações
tratadas nesta ação judicial, por profissionais disponibilizados ou
contratados pelo Estado para tanto e pelo tempo necessário, a
critério dos profissionais.

f) Condenação do Estado de São Paulo à


elaboração de pedido formal e público de desculpas às vítimas e
seus familiares, por meio de ato público amplamente divulgado,
como também pela publicação de texto claro e objetivo em sua
página eletrônica oficial e nas suas redes sociais, bem como em pelo
menos três edições de jornais impressos de grande circulação na
capital e interior de São Paulo (quanto a estes, no mínimo na

143
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Baixada Santista e em Campinas), em anúncios de no mínimo ¼ de


página.

g) Condenação do Estado de São Paulo à


elaboração de vídeo, de duração razoável para a sua finalidade,
com registro de depoimentos de familiares das vítimas, que
assim o desejem, a ser produzido pelo Estado e mantido em
disponibilidade na página oficial do Governo Estadual, bem como em
suas redes sociais, em link visível e por tempo indeterminado, assim
como nos arquivos públicos estatais.

h) Condenação do réu ao pagamento das


custas processuais, com as devidas atualizações monetárias.

i) Dispensa do autor do pagamento de


custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, em face do
artigo 18 da Lei nº 7.347/85 e do art. 87 da Lei nº 8.078/90.

j) E que sejam as intimações do autor


feitas pessoalmente, mediante promoção de vista eletrônica dos
autos à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital, Área
de Inclusão Social, situada na Rua Riachuelo, 115, 1º andar, Sala
151, Centro, nesta Capital, em razão do disposto nos artigos 180 e
183, § 1º, do Código de Processo Civil e no art. 224, inc. XI, da Lei
Complementar Estadual nº 734, de 26.11.93 (Lei Orgânica do
Ministério Público de São Paulo).

144
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Protesta-se provar o alegado por todos os


meios de prova em Direito admitidos, incluindo-se a juntada de
documentos, depoimentos pessoais, oitiva de testemunhas e outras.

Acompanham esta petição inicial os


documentos anexos, ora digitalizados, integrantes do Inquérito Civil
nº 14.0725.0001580/2014-1, e selecionados conforme sua relevância
e pertinência com os termos da ação judicial.

Atribui-se à causa, para fins de alçada, o valor


de R$ 153.577.200,00 (cento e cinquenta e três milhões, quinhentos
e setenta e sete mil e duzentos reais).

São Paulo, 14 de dezembro de 2018.

EDUARDO FERREIRA VALERIO


2º Promotor de Justiça de Direitos Humanos

BRUNO ORSINI SIMOMETTI


Promotor de Justiça de Direitos Humanos – designado

LUCAS MARTINS BERGAMINI


Analista Jurídico

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