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Leitura:

o mundo além das palavras


Leitura:
o mundo além das palavras
Organizadoras:
Ana Gabriela Simões Borges
Andressa Grilo Assagra
Clarice Guterres López de Alda
Realização Técnica:
Instituto RPC

Coordenação e edição:
Ana Gabriela Simões Borges, Andressa Grilo Assagra e Clarice López de Alda

Produção de textos e fotografia:


Brisa Teixeira

Revisão de Textos:
Adamastor Marques

Apoio técnico:
Everton Renaud e Gustavo Viana

Projeto gráfico e diagramação:


Sintática Comunicação

L533

Leitura: o mundo além das palavras / Instituto RPC. Organizado por Ana
Gabriela Simões Borges, Andressa Grilo Assagra e Clarice López de Alda.
Curitiba: Instituto RPC, 2010.

184 p.

ISBN: 978-85-64009-00-4

1. Educação – Alfabetização. 2. Leitura – Práticas de leituras – Ensaios.


3 Leitura – Ensino Fundamental.

CDD 370.7
Sumário

Leitura e Cidadania 06
Um país que não lê 08
Introdução 10
Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento 12
Formação do leitor aprendiz 14
Boneco do Conhecimento 24
Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica 32
A crítica dos sentidos 34
Ponte entre a escola e o mundo 48
Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental 56
Por que e para que ensinar a leitura? 58
Atualidade no currículo 68
Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola 76
Leitura literária na escola 78
Quando o faz de conta inspira o mundo real 88
Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada 96
Produtores de significado 98
Adolescentes Editores de Jornal 110
Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação 118
Novas referências para o saber 120
Por um mundo menos desigual 130
Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola 138
Ler é atribuir sentidos 140
Cada aula, uma novidade 152
Capítulo 8 - Ciberleitura 160
Ciberleitura no contexto educacional 162
Ligados nesta arte 176
Leitura e Cidadania

A Gazeta do Povo criou o Projeto Ler e Pensar, que hoje é coordenado


pelo Instituto RPC, porque acredita que o jornal é um eficiente recur-
so para projetos didáticos criativos voltados à promoção da leitura
e cidadania.

Reconhecido como um dos meios de comunicação mais completos,


independentes e plurais, que aprofunda e analisa informações, pos-
sui e emite opinião, o jornal, por suas características, agrega valor
ao processo de ensino-aprendizagem e amplia horizontes e compre-
ensão de mundo.

Na plataforma impressa ou digital, todos os dias o jornal publica


textos diversificados (reportagens, notícias, artigos, opinião etc.) so-
bre temas como cultura, educação, política, esportes, economia, ci-
dadania e serviços, bem como utiliza fotos e outros recursos gráficos
que o tornam atrativo e confiável. Uma fonte quase inesgotável de
informação e pesquisa sobre fatos e assuntos da atualidade.

Os conteúdos do jornal levam o mundo para dentro da sala de aula e


estimulam a prática da reflexão, comparação, análise, síntese e con-
clusão. Ou seja, a leitura constante e sistemática dos conteúdos do
jornal, comprovadamente, conduz o aluno a contextualizar o apren-
dizado escolar e a entender melhor o seu papel na sociedade.

Além disso, quando incorporado às práticas pedagógicas da escola,


o jornal propicia e favorece o cumprimento do propósito maior da
educação, que é formar seres humanos capazes de compreender sua
realidade e nela interferir de maneira positiva.

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Afirmações que não são nossas, e sim dos professores que vêm de-
senvolvendo o Ler e Pensar ao longo dos anos. De acordo com seus
relatos, o uso do jornal no ambiente escolar tem sido determinan-
te para a formação de alunos leitores habituais, bem informados e
críticos. Crianças e jovens que, com toda a certeza, estão e estarão
prontos para conduzir seu destino e o futuro das suas comunidades
e até da Nação.

Nelson Souza Filho


Diretor de Redação do Jornal Gazeta do Povo

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Um país que não lê

Em um século onde saber expressar-se – fazer-se entender e ser enten-


dido nos mais diferentes contextos e situações – é sinônimo de sobre-
vivência e inclusão social. Enfrentar e combater o decrescente interesse
do jovem e adolescente pela leitura é um dos maiores desafios do Brasil.
Uma guerra de proporções gigantescas composta de muitas batalhas
que precisam ser encaradas com urgência pela sociedade como um
todo e pelas instituições de ensino de modo particular.

Comunicar-se é uma habilidade adquirida e aperfeiçoada ao longo da


vida. Talento que se desenvolve principalmente a partir da leitura, um
testemunho oral da palavra escrita que se tornou uma atividade extre-
mamente importante para o homem civilizado, atendendo a múltiplas
finalidades. Ler, porém, é um hábito que rapidamente vem sendo subs-
tituído pela facilidade e superficialidade das informações eletrônicas, os
chamados hipertextos, cada vez mais sintéticos e em linguagem cifrada.

Se é sabido que ninguém consegue aperfeiçoar a habilidade de expres-


são e comunicação manuseando e ouvindo expressões pouco letradas,
cabe à escola – ambiente da educação formal – ensinar e estimular a
prática da leitura significativa e contexualizada. Até porque, é na esco-
la que a sociedade deposita a responsabilidade de reverter o ciclo do
analfabetismo total e funcional que vem se perpetuando no Brasil dos
últimos séculos.

Pesquisas publicadas em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pú-


blica e Estatística (Ibope) e pelo Instituto Pró-Livro revelam dados no
mínimo preocupantes em relação à leitura no País. Nada menos que
45% da população brasileira não leem sequer um livro por ano. E desse
percentual, 53% dos pesquisados dizem simplesmente não “ter inte-

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resse” enquanto outros 42% admitem “ter dificuldade” de ler. Ou seja,
somos uma Nação de não leitores.

Portanto, por analogia, seguindo o raciocínio inicial, somos uma nação


de não comunicadores. Um país de pessoas com dificuldade para en-
tender e se fazer entender, que, apesar de todos os avanços já atingidos,
continua transitando na contramão da compreensão exigida pela socie-
dade contemporânea.

Existem várias justificativas para o reduzido número de leitores no Bra-


sil. Nós da Rede Paranaense de Comunicação concordamos com análise
da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO) e acreditamos que o pouco valor simbólico atribuído aos li-
vros; o fato de poucas famílias brasileiras terem o hábito da leitura; e
ainda termos poucas escolas efetivamente investindo em programas de
leitura são os fatores preponderantes para o desenho desse cenário.

Sobre o primeiro fator – valor simbólico do livro –, temos pouca influên-


cia. Mas como grupo de comunicação temos condições de fomentar o
hábito de ler entre as famílias e facilitar o desenvolvimento de progra-
mas de leitura nas escolas.

Com o projeto Ler e Pensar, a RPC coloca a força da comunicação a ser-


viço da educação, democratiza o acesso à informação e dá a sua con-
tribuição efetiva para reverter as estatísticas que ainda classificam o
brasileiro como um povo com pouca intimidade com a leitura.

Mariano Lemanski
Presidente do IRPC

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Introdução

Uma utopia possível

A leitura de jornal conecta professor e aluno numa eficiente e praze-


rosa forma de ensinar e aprender há séculos conhecida dos filósofos
gregos e orientais: usar fatos cotidianos para explicar e dar sentido ao
assunto em discussão.

Usar a realidade para contextualizar os conteúdos curriculares ou dis-


cutir temas de relevância social exigem a presença de mestres dispos-
tos a inovar seus métodos de ensino em favor de níveis de excelência
elevados e da formação de cidadãos críticos, leitores assíduos. Jovens
e adolescentes com opinião própria, motivados ao questionar e ansio-
sos por aprender cada vez mais.

A publicação que você tem em mãos se propõe a unir os fundamen-


tos pedagógicos do Ler e Pensar às experiências práticas adotadas por
professores em diversos níveis e contextos escolares, montando uma
instigante arquitetura exploratória de possibilidades educacionais.

Para conduzir e amarrar os universos da academia e da escola, facili-


tando o diálogo entre a perspectiva pedagógica e a relevância social, a
obra foi dividida em oito capítulos: Alfabetização e Letramento, Apro-
priação da Leitura Crítica, Práticas de Leitura no Ensino Fundamental,
Literatura Infantil e Contação de História na Escola, Leitura Significa-
tiva e Contextualizada, Práticas de Leitura na Comunicação e na Edu-
cação, Leituras e Literatura na Escola e Ciberleitura.

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As oito abordagens são complementares e ao mesmo tempo inde-
pendentes. Revelam possibilidades que podem ser adotadas de forma
integrada ou isolada por professores de todos os níveis, sempre com
resultados eficientes e eficazes.

Por tudo isso, acreditamos que esta publicação seja inspiradora, e con-
vidamos você a copiar, sem medo de plágio, cada ideia criativa aqui
registrada.

Afinal, elas não pertencem ao Ler e Pensar e sim a corajosos profes-


sores que, mesmo sendo de diferentes formações e enfrentando dife-
rentes realidades, enxergam a educação como meio de transformação
social e decidiram arriscar novas receitas na prática docente usando
os ingredientes da confiança, estímulo à criatividade, identificação e
desenvolvimento de habilidades e competências dos alunos.

Uma utopia possível.

Boa leitura!

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Capítulo 1
Alfabetização e
Letramento
O capítulo inicial deste livro é tido por muitos professores como um
desafio sem igual: o incentivo à leitura durante o período de alfabeti-
zação. Quem encara o desafio de teorizar sobre o assunto é a professo-
ra Angela Mari Gusso, doutora em Estudos Linguísticos, ex-professora
da Rede Municipal de Ensino de Curitiba e docente em cursos de gra-
duação e pós-graduação. Pesquisadora de Aquisição da Escrita, Angela
Gusso tem diversas publicações sobre o tema em anais de eventos do
ramo da Linguística e em periódicos da área de ensino.

A teoria apresentada no ensaio de Angela relaciona-se com a prática


desenvolvida pela professora Elenice da Cruz Gonçalves, que atua na
Escola Rural Municipal de Santa Bárbara de Cima, localizada no mu-
nicípio de Palmeira. Em 2009, ela foi premiada no Concurso Cultural
Ler e Pensar. Seu trabalho com jornal, aplicado a alunos em fase inicial
de alfabetização, destaca-se pelo uso de elementos lúdicos, como o
“Boneco do Conhecimento” com o qual alunos e professores apren-
dem juntos a cada leitura realizada. A proposta simples vem obtendo
grandes resultados no âmbito da leitura e da escrita nos primeiros
anos escolares.

O ensaio de Angela e a prática de Elenice nos mostram que é possível


incentivar a leitura antes mesmo de a criança entender o significado
da “sopa de letrinhas” à qual começam a ter acesso.

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Formação do leitor
aprendiz
Angela Mari Gusso

Vivemos rodeados de uma grande quantidade de materiais que tra-


zem impressas informações gráficas, muitas vezes associando lin-
guagem verbal e imagem, com os mais diferentes propósitos. Esses
materiais se fazem presentes em larga escala no nosso cotidiano e,
embora, muitas vezes, não nos demos conta da presença intensa da
leitura na vida diária, ela é um fato. Note-se que já no momento em
que acordamos, na hora da higiene matinal, precisamos ler os frascos
que estão no banheiro: shampoo, creme de enxágue, creme dental, de-
sodorante... Na cozinha, é necessário identificar o pote onde se guarda
o açúcar e o café; verificar a validade do leite, do requeijão cremoso,
ler as instruções para a nova dieta que se pretende iniciar na segunda-
feira da semana seguinte. Ao sair para o trabalho, outras leituras são
realizadas, agora para identificar a linha de ônibus, para ativar o tele-
fone celular, e assim vai o dia inteiro. São leituras de diferentes textos,
para múltiplas finalidades, em interação com múltiplos interlocuto-
res, cada uma realizada de modo específico – leitura rápida, minucio-
sa, silenciosa, em voz alta, mista...

Os textos circulam propagados em uma gama variada de suportes:


embalagens de produtos, placas, outdoors, cartazes, panfletos, ta-
buletas, jornais, revistas, livros, camisetas, paredes e muros, telas de
computador, dentre outros. A sociedade, à medida que cria novas tec-
nologias, favorece possibilidades inusitadas de expressão gráfica, ge-
rando novos gêneros textuais, transmutando outros, e, por outro lado,
vai exigindo do cidadão novas capacidades leitoras. Merece destaque

14 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


o fato de que na década de 1990 ocorreu acentuada aceleração da
produção e troca de informações, devido ao fenômeno da globalização
e ao advento de uma série de novas tecnologias.

Uma vez que o modo de uso da língua escrita é dinâmico, o conjunto


de competências e habilidades que caracterizam um leitor proficiente
também precisa modificar-se, para atender a tal demanda. Foi bem
diferente, por exemplo, a época em que a elite brasileira se reunia em
palacetes para ouvir leitura de poemas; nesse contexto histórico o
comportamento do bom leitor era a realização de leitura expressiva,
com boa fluência, com entonação apropriada, para permitir aos ou-
vintes acompanharem o ritmo dos versos. Sem dúvida, ainda hoje se
espera de alguém, ao realizar leitura oral em um evento, que o faça
com boa fluência, velocidade e volume de voz compatíveis com o con-
texto. Por exemplo, a leitura de um discurso de formatura, voltado a
um grande público, será diferente do modo de ler uma história para
uma criança, na hora de ela se deitar para dormir.

No entanto, há de se convir que circunstâncias como essas são even-


tuais. Mas há inúmeras outras situações de leitura comuns na vida
cidadã e que, necessariamente, precisam ser dominadas por toda a
população de uma sociedade letrada, quando se pensa em cidadania.
Para uma pessoa alcançar a proficiência de leitura desejável, ela de-
pende, nos momentos iniciais do processo de aprendizagem da leitura
e da escrita, de dois requisitos: apropriação da tecnologia da escrita
pelo processo da alfabetização e vivência de práticas variadas de leitu-
ra e escrita para possibilitar a apreensão dos usos e funções dessa mo-
dalidade linguística pelo processo de letramento. Na sequência, essas
práticas precisam ser perseveradas, pois, por se tratar de um processo,
pressupõe desenvolvimento contínuo.

A partir dessas premissas, conclui-se que o percurso necessário para


a formação de um leitor inicia antes da escolarização, passa por um

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ensino sistematizado nos bancos escolares e se prolonga vida afora.
Levando-se em conta que a constituição de leitores é um proces-
so cujo início acontece antes do ensino formal da língua escrita, a
criança que vive situações sociais nas quais a prática de leitura se
faz presente está então, por meio dessa experiência, desenvolvendo
o aprendizado das competências necessárias para a prática leitora.
Dados empíricos revelam que no mundo contemporâneo a leitura é
uma aprendizagem social, antes de ser escolar, pois seu valor social
de comunicação é apreendido no convívio com os materiais escritos
circulantes na vida cotidiana das famílias. Rótulos, etiquetas, letrei-
ros de lojas, catálogos, Bíblia, receita médica ou culinária, livros, re-
vistas, jornais são alguns exemplos de materiais comumente encon-
trados em nossa sociedade e que propiciam a inserção dos sujeitos
no mundo da escrita.

Apesar da larga produção de escritos, não se pode ignorar que são


bastante desiguais os modos como as crianças pertencentes aos dife-
rentes grupos sociais vivem práticas que as beneficiam como ouvintes
e, posteriormente, como autoras dos atos de leitura. A criança que vive
nos meios onde se faz uso constante da leitura tem condições distin-
tas daquela cujo ambiente social está pouco vinculado à escrita, isso
é, onde essa modalidade de linguagem está funcionalmente ausen-
te. E, sem dúvidas, a desigualdade de oportunidades gera impacto na
formação de leitores, haja vista os grupos sociais construírem suas
experiências afetivas e sociais com a leitura de modos particulares.
Assim, sabendo-se dessa inter-relação, assume caráter fundamental,
já no início da escolarização, proporcionar às crianças, cujo acesso à
escrita é restrito, experiências que lhes permitam avaliar o valor social
conferido a essa modalidade de linguagem.

Também a leitura do leitor experiente está vinculada a dados cultu-


rais. Quando lemos, para conseguir produzir sentidos para um texto
em questão, precisamos das leituras anteriores. Os sentidos dos textos

16 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


advêm daquilo que foi lido antes dele, da bagagem cultural, dos va-
lores sociais vigentes na época. Portanto, um texto é sempre comple-
mentado pelo leitor, que interage produtivamente com ele para a pro-
dução de sentidos; para essa interação, lança mão de conhecimentos
prévios e estratégias cognitivas relevantes (em especial, a antecipação
de conteúdo e realização de inferências), associando-as às pistas e
sinalizações deixadas pelo autor.

Pesquisas recentes têm indicado que a familiaridade com materiais


escritos é antes uma condição para o êxito no acesso ao mundo da es-
crita, do que uma consequência dessa experiência. Através das leituras
que ouve, a criança começa a perceber que a modalidade escrita dife-
re do oral usado no cotidiano, em diversos aspectos: organização do
texto, vocabulário, construção das frases. Por exemplo, um conto de
fadas não tem a mesma estrutura do bate-papo; o vocabulário usado
nas conversas familiares é diferente do empregado em uma instrução
de jogo; há algumas estruturas sintáticas próprias da escrita, prati-
camente não usadas na fala, que, por meio da escuta de textos lidos
pelo outro, vão sendo incorporadas e, posteriormente, quando já se
tornarem familiares, passarão a ser empregadas nos escritos. Além
disso, no manuseio de materiais impressos, na simples exploração
incidental de uma página qualquer, a visão percebe os espaços em
branco entre as palavras, bem como os demais recursos gráficos que
se somam às letras, tais como os acentos e os sinais de pontuação,
facultando, intuitivamente, a apreensão de certas características do
sistema de escrita.

O fato de atualmente estar assegurado a todos os brasileiros o aces-


so à escola aos 6 anos pode e deve ser aproveitado por essa institui-
ção para dar prosseguimento ao processo de inserção da criança na
cultura escrita, a partir do estágio em que ela se encontrar quando
do seu ingresso. No ambiente escolar, ao contrário das experiências
proporcionadas por outras esferas sociais, esse processo deverá ser

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sistematizado, com base em um planejamento que contemple princí-
pios linguísticos, psicológicos e pedagógicos, sob pena de não lograr
o êxito almejado. O grande desafio da educação linguística (área de
conhecimento que engloba oralidade, leitura e escrita) é permitir a
desmistificação do letramento. O mundo letrado deve ser algo real
para que a criança possa ir, gradativamente, ampliando sua condição
de acesso e usufruto dos bens culturais atrelados à escrita.

Para tanto, não basta que as pessoas, sejam crianças ou adultos, te-
nham acesso à tecnologia da escrita, isso é, à apropriação do conjunto
de técnicas dessa modalidade linguística: conhecer o alfabeto e de-
senvolver habilidades para codificar fonemas em grafemas, decodifi-
car grafemas em fonemas, bem como manipular os materiais usados
(lápis, caderno, borracha, livros didáticos, computador). Apesar de esse
domínio ser requisito indispensável, ele não é suficiente, uma vez que
permite ao sujeito tornar-se alfabetizado, mas não lhe confere a con-
dição de quem sabe ler e escrever e pratica de modo competente a
leitura e escrita na vida cidadã.

Alfabetização é um termo que, atualmente, está associado ao processo


individual de habilidades requeridas para leitura e escrita que ocorre
nos anos iniciais de escolarização. Já letramento refere-se aos aspectos
sociais da apropriação da escrita, ao valor conferido a ela nos mais
variados contextos sociais e áreas do conhecimento; a condição de le-
trado dos sujeitos é, dialeticamente, causa e consequência de transfor-
mações sócio-históricas.

Foi no início deste século que o contexto educacional incorporou o ter-


mo e passou-se, então, a falar em letramento escolar. Com isso, a escola
começou a se dar conta de que mais do que responsável pelo ensino e
aprendizagem da técnica de escrita, a ela cabe também possibilitar as
condições para que o sujeito desenvolva as competências requeridas
para usar leitura e escrita nas práticas sociais, respondendo adequa-

18 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


damente às demandas sociais do ler e escrever. Apesar disso, convém
não esquecer de que a escola não é a única responsável pela promoção
do letramento, pois outras esferas sociais (família, igreja, ambientes
de trabalho e de lazer etc.) também possibilitam a promoção dessa
condição aos seus respectivos grupos, porém, informalmente.

Uma vez que as demandas dos indivíduos e dos grupos sociais dos
quais eles fazem parte são variadas e que as condições históricas e de
estágio de desenvolvimento dos grupos também são diferenciadas, há
de se falar em letramentos, no plural, pois as formas de leitura, escrita
e uso da linguagem em geral são heterogêneas, variam no tempo e no
espaço. Quando se fala em letramentos, portanto, leva-se em conta a
linguagem verbal em sua totalidade – ouvir, falar, ler e escrever –, e
as demais linguagens. Além disso, diz respeito, ainda, ao domínio dos
mais diversos instrumentos tecnológicos, ou seja, estende o uso do
lápis e papel, em decorrência do surgimento e ampliação das tecno-
logias digitais que exerceram impacto sobre as condições de produzir
e circular textos na sociedade, bem como no modo de ler os novos
gêneros textuais delas decorrentes.

Um exemplo é o infográfico, gênero textual recente, mas que ganhou


largo uso nos jornais e revistas (são quadros informativos que mistu-
ram texto e ilustração para divulgar uma informação visualmente).
Se, por um lado, esse gênero surgiu graças aos recursos tecnológicos
e exigências atuais de inovação na comunicação, por outro, impôs ao
seu público-alvo um novo comportamento enquanto leitor. Nele, a
leitura não precisa, necessariamente, ser realizada no sentido ver-
tical, da esquerda para a direita; como são várias as possibilidades
de organizar as informações, a sequência dos quadros não é imposta
de modo rígido, tal como exige a sequência cronológica das histórias
em quadrinhos, por exemplo. Ele se caracteriza por facultar ao leitor
maior liberdade do que a permitida pelos textos informativos exclusi-
vamente verbais.

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Como as formas e os recursos de escrita vêm se modificando e deter-
minando inusitadas condições ao ato de ler e escrever, as pesquisas re-
lativas a essa área também têm se multiplicado. A produção científica
sobre os temas da alfabetização, letramento e ensino de língua ma-
terna tem trazido, nas últimas três décadas, um conjunto de saberes
solidamente estabelecido a respeito da natureza, função e usos tanto
da linguagem oral, como da escrita. Esses conhecimentos teóricos per-
mitem ao professor criar estratégias de ação mais adequadas, mais
produtivas para alavancar a competência socioverbal dos alunos, em
todos os níveis de escolaridade.

A título de exemplo, pode-se mencionar a contribuição trazida pelos


estudos referentes à questão dos gêneros textuais ou gêneros discur-
sivos, dependendo da vertente dos estudos sobre texto. Pesquisadores
dessa área contribuíram significativamente para desmistificar a ideia
de que há uma “capacidade” geral para a leitura, isso é, de que o lei-
tor que lê satisfatoriamente um determinado gênero textual terá esse
mesmo desempenho diante de todos os textos, sejam quais forem os
gêneros ou esferas sociais a que eles pertencerem. Estudos compro-
vam que a capacidade de compreensão não é transferível através dos
gêneros, ou seja, ter proficiência na leitura de contos ou crônicas, por
exemplo, não assegura domínio dos requisitos necessários para ler
textos didáticos, poemas, propagandas ou outros. Cada gênero exige
estratégias diferentes, que só são apreendidas no contato sistemático
com ele.

As particularidades dos gêneros textuais se justificam pelo fato de


eles serem forjados historicamente, de acordo com a necessidade
dos grupos sociais e de suas respectivas práticas de letramento que
envolvem leitura e escrita. Cada gênero emerge em uma dada esfera
social (acadêmica, jornalística, jurídica, religiosa etc.) para atender às
necessidades e atividades socioculturais particulares, portanto seus
propósitos são distintos – informar, opinar, divertir, instruir etc. – logo,

20 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


sua estrutura composicional, conteúdo temático e estilo, necessaria-
mente, serão diferenciados. Sendo assim, por natureza, os gêneros são
dinâmicos e alteram-se, principalmente, como consequência das ino-
vações tecnológicas; nesse sentido, pode-se postular que nenhum lei-
tor atingirá o grau máximo de letramento (qual será ele?), pois sempre
haverá novos desafios, mesmo para leitores proficientes.

Em função disso, todas as propostas de renovação de língua materna


têm insistido na importância de a escola ficar alerta para a necessida-
de de, desde os anos iniciais, trabalhar com gêneros variados, trazendo
para as aulas de todas as áreas do conhecimento os textos que circu-
lam nas diferentes esferas da sociedade, evidentemente, respeitando
o nível de experiência dos leitores. Por exemplo, o jornal é um suporte
que pode ser usado desde os anos iniciais, porém sempre se levando
em conta – tanto na escolha do assunto como na do gênero – a com-
petência leitora do estudante. Assim, para crianças de níveis escola-
res mais avançados, notícias, anúncios, entrevistas, agenda cultural,
reportagens, entre outros, se constituem em materiais interessantes
para serem explorados pelas diversas áreas de conhecimento; já para
iniciantes em leitura, são mais acessíveis, por exemplo, as legendas de
fotos, manchetes, notas jornalísticas, além de cartas e e-mails publi-
cados no suplemento infantil.

Quando se trata de pensar em modos de promover práticas de le-


tramento nos momentos iniciais de escolarização, vale lembrar dos
textos que exploram a sonoridade das palavras, tais como parlendas,
poemas, quadrinhas, trava-línguas, textos não verbais (placas, logo-
marcas, tiras), gêneros que associam linguagem verbal e não verbal
(histórias em quadrinho, cartas enigmáticas, propagandas, legendas
de fotos jornalísticas), além de textos informativos publicados em
revistas, jornais, enciclopédias e sites destinados ao público infantil,
textos de circulação na esfera cotidiana (bilhetes, rótulos, convites, re-
ceitas, provérbios, anedotas, avisos, letras de músicas), entre outros.

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Na exploração desses materiais, paralelamente, o professor promove-
rá atividades para a criança ir se apropriando do sistema convencio-
nal de escrita e desenvolvendo habilidades de uso desse sistema em
atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais. O trabalho com o
sistema de escrita carece de abordagem sistemática, explícita e direta,
pois é um conhecimento que, para ser construído pelo aprendiz de
escrita, depende da mediação do professor. Sem essa condição, o per-
curso será muito mais lento e difícil, o que para alguns alunos torna-
se desanimador a ponto de julgarem-se incapazes de se apropriarem
desse bem cultural.

O sistema de escrita usado em nossa sociedade é alfabético e ortográ-


fico, do que decorre seu caráter convencional e arbitrário; em função
disso, naturalmente, sua apropriação se caracteriza por uma relativa
complexidade. Para a escola favorecer o alcance do domínio sobre seu
funcionamento, é importante diversificar os estímulos, com a explo-
ração de situações que promovam a ação e a busca intelectual das
crianças. Brincadeiras coletivas ou em pequenos grupos com palavras
que rimam e que iniciam com o mesmo som, realização de jogos con-
templando sílabas, letras, palavras (bingo, boliche, baralho, dominó,
quebra-cabeças) constituem recursos valiosos para o desenvolvimento
da consciência fonológica (capacidade para focalizar os sons da fala),
para identificação das letras e percepção da relação entre fonemas e
grafemas. Atividades dessa natureza substituem com indiscutível su-
premacia os exercícios mecânicos, de mera repetição de letras, sílabas,
palavras e frases, tradicionalmente usados pelos métodos cartilhescos.

Vale, porém, insistir que só o trabalho com o sistema de escrita será


insuficiente para a formação de leitores. É indispensável que a alfabe-
tização se caracterize na perspectiva do letramento para que mais cedo,
e de forma mais eficaz, as crianças aprendam a ler e a escrever, porém
compreendendo o que leem e produzindo textos para finalidades di-
versas, em situações de usos reais da escrita na sociedade.

22 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


Para saber mais
Alfabetização e linguagem. Pró-letramento. Disponível em: www.
portal.mec.gov.br/

COSTA, Marta Moraes da. Sempreviva, a leitura. Curitiba: Aymará,


2010.

KLEIMAN, Angela. Letramento e suas implicações para o ensino de


língua materna. Disponível em: http://online.unisc.br/

REGO, Lúcia Browne. Descobrindo a língua escrita antes de apren-


der a ler. Em: Kato, Mary Aysawa. A concepção da escrita pela criança.
Campinas, SP: Pontes, 1992.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social.


São Paulo: Parábola Editorial, 2009. www.letramento.iel.unicamp/
br/portal/

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Boneco do
Conhecimento
Professora: Elenice da Cruz Gonçalves
Instituição: Escola Rural Municipal
Santa Bárbara de Cima
Cidade: Palmeira
“Bem aventurado é aquele que transfere o que sabe
e aprende o que ensina”.
Cora Coralina

Quem acredita que o jornal é um suporte pedagógico útil apenas nas


séries finais do Ensino Fundamental precisa conhecer o trabalho da
professora Elenice da Cruz Gonçalves com alunos do primeiro ano.

Atuando na Escola Rural Municipal Santa Bárbara de Cima, no muni-


cípio de Palmeira, Elenice criou um método simples e lúdico de traba-
lhar com o jornal e fazer com que seus alunos pudessem compreender,
na prática, a importância da leitura como fonte de conhecimento.

A atividade – que consiste na leitura diária de uma notícia publicada


no jornal, seguida de um momento de conversação no qual os alunos
são estimulados a opinar sobre o texto lido – fez com que todos pudes-
sem tirar dúvidas, aprender juntos e refletir sobre notícias importantes
que já tinham tido contato pela televisão ou rádio.

Ao final de cada atividade, os alunos têm o direito de regar a cabeça


do “Boneco do Conhecimento”, um brinquedo ecológico confeccionado
pelas próprias crianças que, quando molhado, fazia brotar as semen-
tes colocadas em seu interior.

A leitura e a conversação foram acompanhadas por mudanças no bo-


neco, que inicialmente era careca e passou a ter cabelos verdes.

“Usei o Boneco para fazer uma analogia entre o crescimento das plan-
tas e o do conhecimento das pessoas”. Disse aos alunos que, assim
como as plantas precisam de água para brotar e crescer, o conheci-
mento precisa da leitura e da informação para se desenvolver. “Cada
leitura que fazemos é como se estivéssemos regando o nosso conheci-
mento. Ele vai crescendo, fazendo com que fiquemos diferentes, mais
espertos, mais informados e mais bonitos”, assegura Elenice.

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Mesmo que o aspecto lúdico do Boneco seja o que mais chama a aten-
ção dos alunos, Elenice considera a leitura diária do jornal como de
extrema importância para o processo de aprendizagem. “Apesar de eles
serem tão jovens, o contato com os mais variados tipos de texto está
despertando a curiosidade. Além disso, ao aprender a ler e a escrever
com o jornal, a criança também começa a entender qual a função social
da escrita e o quanto ela é importante para a sua vida em sociedade”.

No papel de primeira professora e, de certa forma, responsável pelas


impressões que o aluno terá sobre a vida escolar, Elenice assumiu o
compromisso de transformar essa experiência num momento prazero-
so e estimulante. E seu entusiasmo já “contagiou” os professores das
demais séries.

“O jornal é percebido como um recurso pedagógico por toda a escola. É


bom saber que o projeto de leitura iniciado no primeiro ano terá uma
continuidade porque todos temos como objetivo atender às novas exi-
gências dos educandos e fazer da escola um espaço privilegiado de
ensinar e aprender”, afirma Elenice.

A prática

O “Boneco do Conhecimento” nada mais é que uma cabeça confec-


cionada com uma meia fina feminina, areia, sementes de alpiste,
dois botões e um pequeno pedaço de feltro vermelho.

A cabeça é feita de meia e preenchida com uma mistura de areia


e sementes de alpiste que, quando regadas, começam a brotar. Os
botões fazem às vezes dos olhos e o feltro, de boca. A cada texto lido
em sala, as crianças regam a cabeça do boneco e a analogia está no
crescimento da planta com o crescimento do conhecimento.

26 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


Vencendo dificuldades

Mas não é só a pouca idade dos alunos que torna


o trabalho da professora desafiador. Seus alunos,
em sua maioria, vivem em condições precárias.

A comunidade rural de Santa Bárbara de Cima


ainda aspira por saneamento básico, melhorias e
oferta na educação, nos serviços de saúde e quali-
dade das estradas.

“Em dia de chuva, o transporte escolar não tem


condições de chegar à escola e os alunos que vêm “No jornal a gente
a pé não conseguem atravessar um trecho porque a aprende a reconhe-
ponte está quebrada. Nesses dias, são poucos os que cer as letras que a
conseguem chegar à escola”, lamenta a professora. professora mostra no
quadro”.
Ana Maria Amaral
Fora da escola, os alunos enfrentam a falta de
Voichcoski, 6 anos
oportunidades. O fato de morarem numa área
rural de condições precárias e desde pequenos
trabalharem na lavoura com os pais, diminui a
autoestima e a perspectiva de um futuro melhor.
Com isso, alguns alunos apresentam problemas
de relacionamento, timidez, agressividade e difi-
culdades cognitivas de aprendizagem.

Para enfrentar esses entraves, a proposta pedagógi-


ca adotada pela Escola Santa Bárbara de Cima está
voltada à formação de cidadãos críticos, produtivos
e com mobilidade social. Nessa perspectiva, o traba-
lho da professora Elenice e seu “Boneco do Conhe-
cimento” não só está alinhado à proposta da escola
como às necessidades sociais da comunidade.

27
Leitores mirins

O projeto de leitura com alunos do primeiro ano começou em 2009,


quando o projeto Ler e Pensar chegou à escola e a turminha de alunos
de 5 e 6 anos foi também contemplada.

A partir daí, com o apoio das sugestões do Boletim de Leitura Orientada,


a professora Elenice, que já utilizava alguns textos de jornal em sala, mas
nunca havia criado um projeto específico de uso, passou a pensar em for-
mas de ampliar seu trabalho. Mais ainda. Ousou acreditar que crianças
em fase de alfabetização também poderiam aprender com o jornal.

Apesar do interesse e boa vontade, os desafios e dificuldades iniciais


foram grandes. E o principal deles era levar o jornal para crianças que
ainda nem liam. “Aprendemos juntos a descobrir o jornal e embora no
início não tenha sido muito fácil, aos poucos todos nós fomos conhe-
cendo o que ele tem de interessante e quais as possibilidades lúdicas
e criativas que oferece.”

Tanta persistência valeu à pena. Em 2009, a professora Elenice foi pre-


miada no Concurso Cultural Ler e Pensar, que reconheceu o seu esforço
pelas excelentes ideias colocadas em prática no processo de alfabeti-
zação e letramento dos alunos do 1.º ano.

28 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


Bagunça criativa

Como em qualquer proposta que fuja da rotina e


use outros recursos além do livro didático ou apos-
tila, levar o jornal para sala de aula provoca uma
“certa bagunça”, que pode ser desmotivadora para
professores que não compreendem o efetivo valor
do seu uso. “É verdade que muitas vezes os alu-
nos aproveitam a atividade para extrapolar, mas
nada que algumas regrinhas simples não resol-
vam. O importante é saber que estamos criando
uma oportunidade para as crianças aprenderem a
pesquisar, a interagir, a dialogar e a conviver com “O jornal tem notícias
e sabendo mais a
a diversidade. Aí tudo vale a pena”.
gente fica mais inteli-
gente”.
Na turma, todos sabem que segunda-feira é o dia
Jonatan Henrique
“oficial” de trabalhar com o jornal, mas também
Machado, 6 anos
sabem que as atividades iniciadas na segunda se
estendem por toda a semana. Isso acontece por-
que as aulas são um processo aberto, no qual as
ideias vão surgindo aos poucos, no contato das
crianças com o jornal. “E nele meu papel passa a
ser de orientadora. Mostro e ajudo a decodificar
seus conteúdos, estimulando os alunos a desen-
volverem o gosto pela leitura”.

O modelo tem dado certo. Nas turmas de alfabe-


tização nas quais a professora já teve oportunida-
de de introduzir o trabalho com jornal, as crianças
apresentaram uma notável desenvoltura na comu-
nicação, não têm medo de falar e expressar opini-
ões. São alunos que já descobriram o prazer de ler
(todos os tipos de textos) e adoram ir à escola.

29
Exemplo prático

A leitura da reportagem “Animais invasores: controlar ou abater?”, pu-


blicada pelo jornal Gazeta do Povo do dia 21 de abril de 2010, caderno
Vida e Cidadania, foi o ponto de partida para uma série de atividades
envolvendo as disciplinas de Ciências, Português, Artes e Matemática.

O trabalho começou com um bate-papo no qual os alunos tiveram de


identificar os animais citados, diferenciando os selvagens dos domés-
ticos. Depois, tiveram de apontar a função dos animais na natureza e
emitir sua opinião sobre matar ou não esses invasores.

Na sequência, Elenice pediu para os alunos marcarem no texto todas


as vogais já aprendidas em sala, trabalhou o som das letras e pediu
para os alunos identificarem palavras conhecidas iniciadas com as
cinco vogais.

Depois, os alunos foram desafiados a elaborar um minidicionário com


palavras desconhecidas por eles encontrandas nas notícias da Gazeta
do Povo.

“Também fizemos um exercício de caça-palavras com o nome dos


animais, confeccionamos animais de sucata e ainda reforçamos o
conteúdo de quantidade, quando tinham que contar quantas letras
tinham, por exemplo, a palavra “aranha”. Em Matemática ainda, eles
fizeram gráficos, após uma enquete realizada em sala para saber
quantos tinham cachorro em casa”.

30 Capítulo 1 - Alfabetização e Letramento


Com métodos simples e lúdicos, alunos compreendem na prática a importância da leitura
como fonte de conhecimento.

Alunos da professora Elenice mostram desenhos feitos a partir da leitura do jornal.

31
Capítulo 2
Apropriação da
Leitura Crítica
Lidar com o leitor, organismo vivo em constante mutação, e ao mesmo
tempo orientá-lo de modo a garantir a apropriação do conhecimento
é uma tarefa das mais complexas. Aprender a ler criticamente exige,
no mínimo, informações comparativas, fontes históricas, referências e
análise de cenário.

Além de tais ferramentas nem sempre estarem disponíveis no ambien-


te escolar, promover a leitura crítica entre estudantes, especialmente
de Ensino Fundamental e Médio, esbarra em outro fator dificultador:
a falta de tempo.

A análise acadêmica do tema é assinada pelo jornalista e doutor em


Literatura Brasileira José Carlos Fernandes, professor nos cursos de
Jornalismo da PUCPR e UFPR. José Carlos escreve reportagens, crônicas
e editoriais para o jornal Gazeta do Povo, onde trabalha desde 1989.
Pesquisador das relações entre o leitor de jornal e o leitor literário,
leitura e cidade, e leitura não escolarizada, ele é otimista diante do
crescente número de professores interessados no tema. Alerta, porém,
que é necessário fugir do lugar comum ao planejar aulas que tenham
como intenção promover a leitura crítica dos meios de comunicação.

Em suas práticas, com persistência e vontade, a professora Janisse


Cordova Dornelas da Costa, que dá aulas para 4.ª série, da Escola
Municipal Germano Paciornick, em Curitiba, conseguiu fazer das suas
aulas um momento para promover mudanças nas atitudes e modo
de pensar dos alunos, provando que a tarefa pode ser árdua, mas não
impossível. Premiada na edição 2009 do Concurso Cultural Ler e Pen-
sar, a principal preocupação de Janisse é tornar seus alunos leitores
críticos, reflexivos, questionadores e, sobretudo, cidadãos capazes de
entender e respeitar as diferenças de cada um.

33
A crítica dos sentidos
José Carlos Fernandes

“Apropriação da leitura crítica” – eis o tema. Meu primeiro conta-


to com essa proposta, confesso, não foi de uma simpatia oceânica.
Como o robô B-9 da série Perdidos no Espaço, pensei cá com meus
botões: “Perigo, perigo”. Pois é, conduzido pela memória de menino
de calças curtas, de pronto me lembrei da crônica “Sob o feitiço dos
livros”, do educador Rubem Alves, publicada no extinto suplemento
“Sinapse”, do jornal Folha de S. Paulo. Fiz essa leitura em 27 de janei-
ro de 2004, mas a guardo com o frescor de minutos atrás. Se penso
em leitura crítica, penso no que disse Alves nesse alfarrábio. Alerto:
esse texto deveria constar nos anais da educação, onde ocuparia a
pasta “artilharia pesada contra conspiradores da leitura”. Deixa mor-
tos e feridos. Às falas.

O educador, filósofo, psicanalista e ex-pastor Rubem Alves relata em


“O feitiço dos livros” uma experiência que teve com um professor de
sua filha. Dá para sentir o calor das chispas trocadas entre eles. Ao
subir na mesa para discordar da recomendação de uma leitura cha-
tésima, seguida de ficha igualmente enfadonha prescrita pela escola,
o pai escutou a máxima de que o objetivo do trabalho era “produzir a
consciência crítica”. Pois estava armado o salseiro. Alves queria saber
por que sua filha tinha de ler um livro sensabor se podia degustar uma
obra prazerosa e dela se fartar. Difícil um professor que não tenha
uma resposta na ponta da língua para pais hedonistas, ora pois.

Rubem, claro, mandou pelos ares todo seu arsenal teórico sobre o
desejo e o prazer – duas categorias filosóficas marginais e obviamen-
te assustadoras. Rejeitou, qual um membro da Resistência Francesa

34 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


em plena Segunda Grande Guerra, aquele discurso algo utilitarista
em torno do ato de ler, cuja crença, por certo, movia as crenças mais
profundas do professor. “Penso que o meu mundo seria muito pobre
se em mim não estivessem os livros que li e amei”, escreve Alves a
linhas tantas de sua defesa. Está dado seu recado: só os livros que
amamos fazem parte de nós.

Cá entre nós, não condeno de todo o mestre espartano, que defende


a leitura crítica. Talvez ele estivesse condicionado a tratar a leitura
como uma tina de roupa ou coisa assim, mas é provável que tenha
sorvido uma boa literatura sobre o assunto. Não foi por mal. Sua
associação entre leitura e criticidade é tão mecânica quanto gritar
“silêncio para a chamada”. Raro quem não o faça. Tenho para mim
que, seja o sujeito quem for, nada mais fez do que reproduzir uma
cantilena usada a tal ponto nos círculos educacionais que se tornou
uma receita de bolo de fubá. Dizer que a leitura aumenta o senso
crítico se tornou tão banal quanto dizer “vai chover”.

Eu não saberia dizer quantas gerações de estudantes cresceram ou-


vindo que é preciso ler para escrever melhor, mas arriscaria que esse
cacoete é remanescente dos tempos do Iluminismo, no século XVII, e
que deve estar bem explicada na obra do historiador Robert Darnton –
autor do imprescindível O grande massacre dos gatos. Só quem lê tem
o que dizer, diz-se. Ler é um instrumento para não ser um tolo, repete-
se... E daí para adiante. São frases prontas que soam como um pito,
uma carraspana, um sabão bem dado. Não há notícias de que essas
recomendações severas, dignas de um Torquemada, tenham aumen-
tado o número de leitores, mas mesmo assim devem ter versão similar
em pelo menos 20 idiomas, sem contar o sânscrito e o aramaico.

É simples explicar por que a formação da leitura incutiu categorias


como a tortura e negação do prazer. Como o avesso do tolo é o crí-

35
tico, criou-se o teorema imperfeito de que quem lê sabe das coisas.
Apesar da preguiça que nos provoca a imagem do “sábio amargo e
ressentido”, a associação entre leitura e conhecimento não deixa de
ter um fundo de verdade. O risco reside, contudo, em equiparar a
leitura aos efeitos de um alvejante ou às utilidades de uma tábua de
passar roupa, como já se disse. Mas de resto, as tentativas – seja as
de Rubem Alves, seja a de todos nós – parecem em vão para derrubar
esse sofisma.

Com base nesse raciocínio torto, ler tem de servir para alguma coisa,
o que exclui da conversa umas tantas obras da literatura universal,
cujo maior mérito é justamente não servir para nada, e ainda um
rodo de compêndios de filosofia, igualmente inúteis, assim como a
cultura oral, já que lhe sobra emoção, senso comum e lhe falta fina-
lidade prática. Pode-se viver muito bem e alcançar o progresso das
nações sem que seja preciso decifrar a obra de Espinoza, passar pelos
labirintos de Nietzsche ou enfrentar as contradições de Montaigne.
Passa-se muito bem sem ouvir contos de assombração ou sem culti-
var memórias familiares.

Mesmo assim, a relação íntima entre leitura e ócio, leitura e dese-


jo e leitura e prazer permanece como um problema clássico, cuja
raiz mais longínqua parece ser o próprio pecado original. Impossível
não lembrar o esforço de Marshall McLuhan, no texto “Visão, Som
e Fúria”, em espinafrar a cultura livresca, sem sucesso. O mago da
comunicação da década de 1960 defendia, a seu modo, que meios
de comunicação, como a tevê, podiam dar conta de necessidades hu-
manas, sim. E que eram extensões dos sentidos.

Mas McLuhan parecia sentir muito prazer no que dizia, o que o re-
duziu a poeira. Sua defesa apaixonada de pouco adiantou: a tele-
visão, veículo que admirava, não escapou da fúria dos críticos, que

36 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


a elegeram o motivo dos males do mundo, pelo menos até Arlindo
Machado escrever A televisão levada a sério. Tenho para mim que a
televisão foi mais demonizada que a pornografia – e mesmo assim
ocupa lugar de honra em 98% dos lares brasileiros, sendo para mui-
tos o único canal de informação disponível. Sem falar nos grandes
temas que, de resto, não chegariam à população se não tivessem
sido cotejados pela telinha – dos transplantes à adoção e à condição
feminina. Pois é.

Tenho cá para mim que essa suposta ligação umbilical entre leitura
e serventia foi propagada tantas e repetidas vezes que se converteu
em uma verdade incontestável, cuspida da boca para fora, principal-
mente na falta de algo mais interessante a dizer. Parodiando Alves,
eu lembraria aqui que em nome das verdades muitas fogueiras fo-
ram acesas. O discurso papagaiado pelo professor da filha de Alves
é o caso. Funciona muito mais como estratégia de poder e de intimi-
dação do que de educação, ainda que ele acredite, sem dúvida, estar
usando as próprias entranhas para defender o conhecimento, com o
qual tem obrigações juramentadas.

Para salvar o que há de crítico na prática da leitura, esse ensaio pre-


cisa tentar desnudar tal conceito, dissecá-lo na mesa do IML, rendê-
lo aos efeitos do formal. É tarefa passível de linchamento. Explico.
Por partes.

Aquele que defende a leitura crítica e a acha um bom motivo para


dedicar a vida – você, eu, o professor da filha do Rubem – toma
para si a figura do leitor. Nós o encarnamos. Como lemos muito,
experimentamos a fortuna dos livros e nos tornamos mais sabidos,
críticos, interessantes. Somos um modelo a ser seguido. Temos o
que dizer. E dizemos, a quem interessar possa, que um texto que
não sirva para mudar nossa relação com o mundo não deve ser

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lido. Um livro sem conteúdo equivale à sedução de alguém não
confiável. É lixo. “Perigo, perigo...”, como diria o prudente B-9, o
robô da infância.

O que se quer dizer com isso é que, por uma espécie de conspiração
do destino, a exclusão literária está implícita na ideia de “leitura crí-
tica”. O que não se presta deve ser evitado. Trata-se de uma expres-
são carregada de preconceito, contaminada pela censura e tomada
de uma chatice sem igual, para a qual gente como Alves reserva o
bocejo eterno. Se não houver precauções sobre esse autoritatismo, o
leitor crítico há de se tornar aquele que filtra sua biblioteca com a
fúria de um inquisidor. Há de banir qualquer obra que não contribua
para melhorar de forma instantânea, por isso pobre, a relação entre
ele – o sujeito – e o objeto – o mundo.

Essa atitude pouco ou em nada difere do que pregam as cartilhas


políticas, os livros de catequese ou os manuais de autoajuda. A ide-
ologia que rege a equação “leitura e criticidade” tem mais a ver com
engajamento social e com o conforto psicológico do que com a ex-
periência real e comprovada sobre a leitura dos livros. Com todo o
respeito aos renhidos defensores da “leitura crítica”, às vezes essa
seara parece coisa justamente de quem não gosta de ler.

“A literatura é feita com as palavras que desejam morar no corpo”,


avisa Alves ao professor espartano de sua filha, na tentativa de de-
movê-lo de suas intenções. Esse impasse, contudo, não se resume a
uma mera oposição entre a leitura por prazer e a leitura por dever
cívico ou que nome se queira dar a ela. Há de se contabilizar que
é quase impossível ignorar a associação de fato e de direito entre
o ator de ler e a formação do senso crítico. Negar que a criticidade
aumenta com a leitura, reconheça-se, é reduzi-la tanto quanto dizer
que ler só serve para isso ou aquilo.

38 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Às falas. Raro encontrar alguém que não tenha prestado mais aten-
ção à realidade depois de uma leitura – seja ela a de um roman-
ce cor-de-rosa ou de um manifesto panfletário distribuído na Praça
Osório. São muitos os indícios de aquele que lê dispõe de mais me-
diações e recursos para responder a demandas da vida como ela é.
E fim de papo: a escola, na sua nobre função de transmitir conhe-
cimento, tem na leitura seu instrumento de trabalho. Não raro, por
esse motivo, vê-se coibida na hora de responder às demandas do
prazer garantidas ao ato de ler.

Dito isso, volta-se ao começo. Zero a zero. Nem Rubem nem o pro-
fessor de sua filha vencem nesse ringue. Deve-se buscar outra chave
para abrir esta porta. E ela existe – é cultural. Em vez de tentar piso-
tear as evidentes virtudes críticas da leitura, instaurando a ditadura
do prazer, deve-se considerar que desde as décadas de 50 e 60, com
a alvorada da filosofia de Barthes e com os estudos de estética da
recepção – nascida na Universidade de Constança, na Alemanha – os
esforços da literatura se voltaram para o leitor. Mudou tudo. Este é
o ponto de onde se deve partir. Desconsiderar o leitor é retrocesso, é
sonegação de massa crítica. Sem dizer que o leitor funciona como o
fiel da balança. Tendo ele como medida de todas as coisas se resolve
o impasse entre a turma do prazer e a criticidade.

Chega a ser irônico: foi apenas no pós-Guerra que aqueles que garan-
tem a existência do texto, os leitores, foram, digamos, descobertos.
Os escritos de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e, na mesma esteira,
Umberto Eco, sobre o assunto, inspiraram legiões de estudiosos. Em
sua obviedade aparente, soaram como algo realmente novo. O leitor
carrega um museu imaginário – para cunhar aqui a expressão de An-
dré Malraux – e esse museu é acionado a cada página. Cada leitura é
única e irrepetível. Lê-se com as entranhas da experiência e do saber
acumulado. Lê-se fazendo sinapses. É único. Prazeroso. Lê-se para

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preencher os espaços vazios – expressão algo poética para as gran-
des dúvidas que nos acompanham. Era disso que o pai Alves queria
falar com o professor crítico, sem sucesso.

Em miúdos, depois de Constança, seus pensadores, Eco e todos os


entusiastas da figura do leitor, tornou-se praticamente imoral igno-
rar a poética da leitura e a poética do leitor. Ou seja, a leitura crítica,
no seu sentido mais funcional, envelheceu junto com as cartilhas da
escola, mas não porque não vale a pena, mas porque algo de mais
fascinante se sobrepôs a esse debate, dando-lhe uma dimensão mais
relacional e menos rígida, como se depois de ler todo mundo devesse
estar sujeito a uma sabatina.

O mundo chegou às teorias do leitor, da mesma maneira que chegou


à abstração, à música dodecafônica, à poesia sem rima e às deliran-
tes semanas de moda. É disso que Alves tenta falar: sabe-se muito
sobre o leitor. Viva o leitor – ele é complexo, dinâmico, abusado e
está num labirinto. No labirinto, o leitor perde-se. E o leitor do século
XXI se perde – na rede, nas imagens, na cidade, nos excessos, nas tra-
gédias, nas criticidades todas das quais necessita para se mover.

Alguns dirão que toda esta discussão se encontra implícita na su-


posta teoria da leitura crítica, que via de regra não ignora o leitor
nem o prazer. Mas não colocar os apelos da estética da recepção em
primeiro plano corresponde a ignorar um movimento cultural que
oxigenou o debate sobre a leitura, enxergando-a para muito além de
uma penitência escolar.

É um campo minado. A escola se tornou a detentora da leitura, par-


ticularmente em países de economia periférica, nos quais o ensino
tem responsabilidade total sobre a educação para o conhecimento.
Ler é um ato escolar, uma tarefa. Mas a estética da recepção e sua

40 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


teoria do leitor abalaram esse reinado, chamando atenção para a
leitura que corre por outras bordas, não raro longe dos bancos da
escola. Ela é tão produtiva quanto, uma relação com o mundo que
nem sempre cabe nos conteúdos programáticos da escola.

Os códigos da leitura não escolarizada, contudo, são outros. Nesses,


a leitura ordenada, produtiva e pedagógica não é um cânone. Há,
inclusive, a possibilidade de uma leitura desordenada, anárquica e
labiríntica, nascida menos da necessidade de um aprendizado for-
mal e mais de emergência de uma ruptura emocional e intelectual.
Estão aí para comprovar as teorias de Macedônio Fernández – inspi-
rador de Jorge Luis Borges –, agora revisitadas pelo argentino Ricardo
Piglia no livro O último leitor.

Eis a questão. A escola, pelo que tudo indica, tem dificuldade de en-
tender o abalo dos sentidos – entre outras premissas da experiência
estética contemporânea – como uma forma de criticidade. Ao bater
na tecla da leitura crítica, subentende-se que, para chegar a esse es-
tágio, o aluno leitor deve seguir etapas, digerir autores, acompanhar
escolas, responder provas. Ou seja, tem de matar o prazer da leitura
para conquistar o conhecimento.

No que tange à leitura sem prazer estético, contudo, diria que atende
pelo nome de “leitura espartana”. De penitência. De necropsia. E o
pior – de maniqueísmo. É como se, historicamente, nos fosse impos-
to um falso problema: o de que há duas leituras, incompatíveis entre
si, e que apenas uma delas merecesse a confiança. É preciso se deter
um pouco sobre essa afirmação.

A desconfiança da leitura lúdica tem raízes fortes no pensamen-


to ocidental. E não se deve tomar, de antemão, que a conspiração
contra ela nasce de professores mal-amados, que escondem em seu

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autoritarismo uma deficiência pessoal como leitores. Cabe um pa-
rêntese – a incompreensão dos meandros da experiência estética que
ronda a escola não é de todo culpa dela. Como desenvolve o teórico
britânico Terry Eagleton no livro A ideologia da estética (Ed. Zahar,
1993), a arte pela arte, a arte sem conexão política e ética – consa-
grando a criação como desbunde – se apartou dos grandes debates,
o que inclui o escolar.

Como explora Eagleton, na virada do século XIX para XX os artistas –


já embalados pelas vanguardas – reivindicaram para si a chamada
“arte pela arte”, que obviamente foi recebida com um pé atrás pelos
círculos do saber mais estratificados e conservadores. É o caso da
escola, em cuja esteira a retração é regra. Os motivos saltam aos
olhos. A arte que não quer dizer nada, destituída de mensagem e de
ensinamento, calcada num conhecimento subjetivo do mundo – a
arte que se nega a ser ilustração para se tornar uma realidade em
si mesma – foi alardeada como resultado de uma experiência radi-
cal. Pode experimentá-la apenas aquele que desce aos infernos, que
rompe barreiras, que prova da amoralidade.

Não causa espanto que a escola a tenha recebido com quatro pedras
na mão. Basta acompanhar, ainda hoje, os livros de História ou os
currículos de Artes para ver até onde conseguem chegar: depois de
passar pela “Monalisa”, de Da Vinci, as cartilhas passeiam por Picas-
so e Dalí, dificilmente avançando mais do que isso. No campo da
literatura não é diferente. Em 2009, acompanhou-se toda a polêmica
dos livros proibidos em muitas escolas, reacendendo a discussão so-
bre até onde vai a capacidade das instituições de ensino de dar conta
da literatura contemporânea, uma literatura que, via de regra, tenta
dar conta do leitor múltiplo e não com o leitor do século XIX, cuja
existência a escola insiste em sustentar.

42 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Desses contínuos embates entre a arte que se apresenta como libido,
desejo e luxúria e a arte que se presta a formar é que parece nascer
essa identificação instantânea entre leitura crítica e lição de casa.
Trata-se de um equívoco, cujo maior dano tem sido o de travar os
avanços nas políticas de leitura – dentro e fora da escola.

Assim como Eagleton, outros autores puseram na parede a mitifi-


cação do artista e essa aura de que só se conhece a verdadeira arte
depois de uma viagem ao submundo. Seria, convenhamos, como
traçar um caminho único, reduzindo a experiência humana à con-
travenção. Uma bobagem. O mesmo não se pode dizer de todo o
conhecimento sobre o leitor trazido pela estética da recepção. Se de
um lado a escola tem o dever de se proteger da banalidade da arte e
dos sofismas que proliferaram na esteira das vanguardas, por outro
não devia se eximir de assimilar a contribuição de Iser e Jauss ao
campo da leitura.

Ao colocar o leitor na berlinda, revelando como “ele funciona”, a esté-


tica da recepção exige dos professores uma postura menos unilateral.
É preciso renunciar à figura do aluno como tábula rasa e converter-
se a um outro campo de experiência. Como diz Marisa Lajolo, aquele
que lê faz uma leitura do mundo. O estudante lê o mundo, ainda que
suas referências sejam esparsas, tímidas ou pouco críticas.

Lidar com esse organismo vivo, em mutação, que é o leitor – e ao


mesmo tempo orientá-lo, de modo a garantir a transmissão do co-
nhecimento –, é tarefa das mais complexas. Para dar conta dela, nas
últimas duas décadas pipocaram práticas escolares ocupadas de
desburocratizar a leitura, permitindo que acontecesse, em sua ma-
gia, também dentro da escola.

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Muitas instituições, por exemplo, criaram salas com almofadas, de
uso livre e esparramado. Outras tantas criaram a hora da leitura e,
para felicidade geral, muitas entenderam que só haveria melhora
nos índices de leitura se colaboradores das escolas e professores
também fossem vistos com o livro nas mãos.

Aprendeu-se muito nesses anos, embora ainda seja cedo para dizer
que tenha morrido, em alguma reunião de conselho de classe, aque-
la velha opinião de que ler é se instrumentalizar para entender a
realidade, reduzindo, em muito o campo da leitura. A escola ainda
tem medo do discurso do desejo – o defendido por Alves diante do
professor autoritário – por relacioná-lo a uma prática destituída de
racionalidade e de mérito.

Superada essa associação algo ingênua, a escola pode estar livre


para transformar a sala das almofadas – ou o que valha –, a sala de
aula, os corredores e principalmente a rua em espaço de leitura. Um
dos grandes trunfos dos estudos sobre o leitor reside justo aí. Não só
desmontou a figura do leitor aluno como apontou um leitor que tem
de ser investigado continuamente, nos retirando da situação con-
fortável de antigamente – a situação do leitor estanque, dado aos
pendores iluministas, interessado em acumular conhecimento e não
em gerar respostas.

Nesse sentido, uma das leituras que mais respondem às demandas


do século XXI é a de jornal. Não causa espanto que tantos professo-
res, atentos – digamos – à nova configuração técnica da leitura crí-
tica, estejam se dedicando ao uso do jornal em sala de aula. É claro,
trata-se de uma zona de risco. Não é difícil encontrar quem faça do
jornal uma extensão da velha teoria da leitura crítica, com todos os
ranços a que tem direito. Por tratar da realidade, a imprensa diária
seria a fortaleza do leitor que reage aos fatos.

44 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Na mesma linha – e ainda menos raro – há mensageiros da leitura
crítica que transformam o jornal em sua tábua de tiro ao alvo. Incor-
rem num erro severo: negam o valor da imprensa na construção da
sociedade democrática a fazem uma leitura ingênua da produção da
notícia. Uma lástima.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky, numa defesa brilhante do papel


da mídia na construção do leitor, expresso em seu livro Metamorfose,
pergunta aos mais amargos como é que a mídia pode fazer tantas
cabeças. Afinal, desde o nosso nascimento, estamos muito mais ex-
postos à influência da família, da igreja e da escola do que propria-
mente da televisão e, muito menos, dos jornais e revistas.

A criticidade, na sua forma menos maleável e orgânica, resuma-se,


põe para correr a imprensa. Mas é também ela que se abre a um
fenômeno dos mais impressionantes. Com a alvorada da internet,
alterou-se em definitivo o panorama da leitura. Foi preciso correr
atrás do leitor, entendê-lo para tê-lo. Em desvantagem, dada a crise
da leitura diária, os jornais têm se reinventado. Não se trata de uma
frase de efeito.

Para sobreviver tem sido preciso entender o leitor literário, o leitor


labiríntico, o leitor hedonista, o leitor que responde às demandas ur-
banas – como a violência, o desemprego e as mudanças nas relações
de vizinhança, para citar três. Ignorar esse movimento corresponde
a repetir o tal do erro histórico. Na década de 60, as descobertas
sobre o leitor feitas por gente bamba como Iser e Jauss encontraram
um solene desprezo nos círculos jornalísticos e em parte do circuito
escolar. O preço foi um descompasso, que outro preço não nos cobra
senão uma perda de leitores de qualidade nas duas instâncias – a
educação e a imprensa.

45
Um dos pecados mais graves, nesse caso, é o preconceito. Um e ou-
tro meio construíram o seu leitor ideal. Ele é comportado, aplicado,
severo – um homem de Esparta, como já se disse. Segue rotinas, mo-
delos e responde sempre que convocado. Já o leitor real precisa dar
respostas bem menos sacerdotais à vida. Necessita de serviços, de
interpretações, do riso largo. A percepção crítica do mundo passa por
todos esses sentidos. Não deve haver preconceito.

A criticidade que nos salva é a que nos leva ao habitante da cidade.


Ele é o cidadão. Um de seus direitos mais sagrados é o de se en-
cantar. Só assim poderá responder a um mundo que roda cada vez
mais rápido. Eis um princípio bem crítico, sobre o qual pensamos
com muito prazer.

46 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Para saber mais
ALVES, Rubem. A maçã e outros sabores. Campinas: Papirus Editora,
2005.

CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura. Trad. Cristiane Nascimen-


to. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

COSTA, Marta Morais da. Sempreviva, a leitura. Curitiba: Ed. Aymará,


2009.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São


Paulo: Ed. Ática, 2000, 6.ª ed.

LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A leitura rarefeita. Leitura e li-


vro no Brasil. São Paulo: Ed. Ática, 2002.

LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Ed. Moder-
na, 2001.

MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias. Um ano de leituras prazerosas.


Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2006.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e leitura. Ensaios. São Pau-


lo: Ed. Global, 2009. 2.ª ed. Revista e ampliada. Coleção Leitura e For-
mação.

47
Ponte entre a
escola e o mundo
Professora: Janisse Cordova
Dornelas da Costa
Instituição: Escola Municipal
Germano Paciornick
Cidade: Curitiba
“Ser professor é semear em terreno sempre fértil
e se encantar com a colheita”.
Gabriel Chalita

A tradicional rivalidade entre as torcidas dos principais times parana-


enses e o aumento da violência no futebol foram a “inspiração” que a
professora Janisse Cordova Dornelas da Costa teve para promover uma
verdadeira revolução social entre seus alunos da 4.ª série, na Escola
Municipal Germano Paciornick, de Curitiba, no ano de 2009.

Como grande parte dos alunos matriculados na escola mora em áreas


de favela e invasão, é carente e convive diariamente com a violência
e a rivalidade no futebol sempre acabava em algum tipo de conflito
iniciado na rua e levado para o ambiente escolar.

Para enfrentar o problema, a proposta inicial foi usar o jornal para


discutir o tema “violência no futebol” e influir positivamente sobre o
comportamento dos alunos. Inicial, porque depois de um tempo, to-
das as outras violências também entraram no “cardápio” das aulas e o
desafio educacional e social ganhou uma proporção muito maior.

A experiência de mais de 15 anos de magistério, oito deles usando o


jornal como instrumento de apoio pedagógico, deu à professora Janis-
se a segurança necessária para escolher os textos a serem trabalhados
e construir as atividades e debates que a levariam a atingir os objeti-
vos traçados. Os resultados foram compensadores.

“A escola não pode mais fechar os olhos para questões sociais que
fazem parte da vida dos alunos e sim trabalhá-las de forma coerente,
respeitosa e comprometida. E as mídias ajudam muito neste proces-
so porque funcionam como pontes que abrem a sala de aula para o
mundo. Educar com o jornal possibilita uma melhor compreensão da

49
realidade, ao mesmo tempo que também desenvolve as potencialida-
des do aluno”, salienta Janisse.

O trabalho sobre violência rendeu à professora o prêmio no Concurso


Cultural Ler e Pensar, em 2009, mas, apesar da alegria da premiação,
ela garante que essa não foi sua maior recompensa. “A minha grande
realização foi constatar mudanças significativas na atitude dos meus
alunos. O resultado foi melhor do que eu esperava. Consegui realmen-
te fazer a diferença para aqueles 140 alunos. Eles tornaram-se leitores
críticos, reflexivos, questionadores e, sobretudo, cidadãos capazes de
respeitar as diferenças, mais tolerantes com a diversidade e com uma
melhor autoestima”.

A prática

A dramatização da Notícia, técnica que aprendeu em um dos cursos


oferecidos pelo projeto Ler e Pensar, foi uma das formas que Janisse
lançou mão para mobilizar seus alunos. Ao aproximar intimamente
as áreas de comunicação, educação e a criatividade do teatro, a pro-
fessora criou um ambiente estimulante e sintonizado com os novos
tempos. Um momento no qual todos os alunos podiam ler o jornal,
debater e elaborar criticamente seu entendimento sobre as notícias
relacionadas à violência.

Na prática os alunos são divididos em grupos, escolhem uma no-


tícia, ensaiam em um local da escola escolhido por eles e depois
dramatizam a notícia para os demais colegas da turma.

50 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Conhecimento e autonomia

Para colocar uma proposta como essa em prática


é preciso, antes de mais nada, conhecer bem as
características da turma e a individualidade e, se
possível, a realidade dos alunos. “Depois, é só ler
muito, ter persistência e seguir a intuição”, disse a
professora Janisse.

Isso porque todo o trabalho se fundamenta na


liberdade que os alunos precisam ter para ler o
jornal onde quiserem, bem como para escolher o
“Nas aulas com o
modo como vão abordar o tema lido (explicação
jornal a gente fica sa-
oral, dramatização da notícia, telejornal etc.) na
bendo das coisas que
hora de discuti-lo e defender seus pontos de vista.
acontecem no mundo.
Outro ponto importante é sempre promover ativi- A sala fica mais alegre
dades em grupo. “Você é louca! Jamais faria isso! porque nós fazemos
Olha a bagunça! Eles gritam o tempo todo e não atividades em grupo,
param sentados!”. A reação da professora auxiliar aprendemos a escrever
de Janisse, ao participar de uma aula com jornal, melhor e também
teve como resposta: “Calma, é assim mesmo, logo nossos pais ficam
você verá o resultado”. informados porque
levamos o jornal para
Janisse afirma que nunca se preocupou com a “ba- casa”.
Wagner Ricardo
gunça”, mas, como sua auxiliar, outros professores
Kozera Frankowiski,
julgam o trabalho em grupo improdutivo devido
10 anos
a conversas e agitação. “Mas, acreditem, é nesse
momento que ocorre o melhor do aprendizado,
porque eles discutem, defendem suas ideias e de-
cidem os papéis de cada um”.

51
Xô monotonia

Desde o dia em que levou o jornal para a sala de aula pela primeira
vez, Janisse garante que suas aulas passaram a ser muito mais criati-
vas e divertidas. “Nunca mais dei aquelas aulas monótonas nas quais
só eu falava e 35 alunos ficavam estáticos, só ouvindo.  Não gosto
nem de lembrar quando tinha aula dessa maneira, e não desejo isso
para meus alunos. Quem é professor sabe, é só lançar algo diferente
que o entusiasmo toma conta da sala”.

Para Janisse, o professor realmente comprometido com o aprendizado


e com o desenvolvimento integral dos alunos precisa estar atento aos
interesses da classe e sempre buscar a melhor maneira de direcionar
o seu trabalho.

Ela percebe a falta de tempo e a necessidade de cumprir o programa


escolar, mas não entende porque os professores resistem às mudanças
educacionais e insistem no modelo tradicional de ensino.

“O educador deve constantemente se atualizar, buscar cursos de for-


mação continuada. Além disso, precisa exercer a criatividade para mo-
tivar seus alunos. Todas as profissões são importantes, mas ser pro-
fessor tem um peso a mais, lidamos com pessoas e necessitamos criar
vínculos com elas. Somos formadores de opinião”.

52 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Novas ideias

O fato de as turmas e alunos serem sempre di-


ferentes não assusta a professora, que aproveita
essa diversidade para exercitar ainda mais sua
criatividade. “Cada turma tem suas característi-
cas, mas o meu interesse e o envolvimento deles
são sempre os mesmos”.

E é por acreditar no sucesso da proposta e meto-


dologia de uso de jornal em sala de aula que Janis-
se já está preparada para alçar novos voos, desta
“Gostaria de usar o
vez para discutir o tema “O lugar onde vivo”.
jornal em todas as
aulas. Gosto de ler
No novo projeto, a ser iniciado no segundo semes-
o jornal para ficar
tre de 2010, os alunos serão levados a ler, deba- sabendo sobre tudo
ter, produzir reportagens e notícias sobre a cida- o que acontece. Meu
de onde moram, abordando questões como meio interesse pela leitura
ambiente, cidadania, violência, pontos turísticos, aumentou”.
infra estrutura, moradia e outros. Gabriela Ferreira de
Jesus, 11 anos
“Vamos buscar informações atuais sobre esses te-
mas nas páginas da Gazeta do Povo. Depois, len-
do a página Nostalgia (com fotos e textos sobre
Curitiba antiga), publicada também na Gazeta,
faremos uma comparação da evolução da cidade
até os dias atuais. Quero que os alunos reflitam
sobre o ambiente urbano e o papel de cada um na
preservação e qualidade de vida”.

53
Abordagem lúdica

Para a professora Janisse, o grande trunfo de usar o jornal em sala


de aula está na possibilidade que o veículo oferece de promover uma
abordagem lúdica, que faz parte do cotidiano dos alunos. “Se fôsse-
mos trabalhar a violência ou outros problemas sociais usando como
referência os fatos registrados na comunidade ou os problemas reais
da escola, isso nunca poderia ser feito coletivamente em sala porque
iríamos criar situações constrangedoras. A partir da leitura das notí-
cias publicadas no jornal, trabalhamos as situações genericamente
e ninguém se sente constrangido. E ao final do trabalho, vemos que
conseguimos discutir o que precisa ser discutido obtendo resultados
muito expressivos”.

Durante o desenvolvimento das atividades, dar autonomia e exigir


respeito às diferenças são condições fundamentais porque fazem
com que o aluno aprenda a conviver em grupo e a respeitar as ideias
dos colegas. “O trabalho é tão prazeroso e produtivo que quando
estamos envolvidos na discussão de uma reportagem ficamos horas
e horas nessa atividade. A aula se alonga. Ninguém tem pressa de ir
embora”.

54 Capítulo 2 - Apropriação da Leitura Crítica


Professora Janisse: “Quem é professor sabe, é só lançar algo diferente que o entusiasmo
toma conta da sala”.

Aulas divertidas e criativas com o jornal permitem aos alunos desenvolverem as suas
potencialidades.

55
Capítulo 3
Práticas de Leitura no
Ensino Fundamental
À medida que o processo de alfabetização avança, aproximar o es-
tudante dos livros e despertar seu interesse pela leitura podem fazer
toda a diferença sobre seu futuro.

Pequenas práticas desenvolvidas pelos professores contribuem para


tornar a sala de aula um espaço alfabetizador e, mais do que isso,
um local de encantamento para a leitura. A opinião é da pedagoga e
mestranda em Educação Ana Gabriela Simões Borges, coordenadora
geral do Instituto RPC, e da jornalista e mestre em Educação Andres-
sa Grilo Assagra, responsável pela produção de conteúdos do projeto
Ler e Pensar. Ambas são autoras de materiais didáticos e produzem o
Boletim de Leitura Orientada (BOLO), tabloide que chega quinzenal-
mente às escolas apoiadas pelo projeto.

Imersas diariamente em atividades que envolvem a leitura, a mídia e a


educação, neste capítulo as autoras defendem a importância de traba-
lhar com a diversidade de gêneros textuais em sala de aula e afirmam
que a prática pode levar os estudantes a ampliar o domínio de produ-
ção textual, sem perder de vista a relevância social do aprendizado.

Já a experiência em destaque é assinada por Márcia Bíscaro, profes-


sora de 4.ª série na Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves, do mu-
nicípio de Campina Grande do Sul. Para Márcia, que sistematicamente
utiliza diversos textos literários para despertar o gosto pela leitura e
estimular a produção de textos entre seus alunos, o jornal é uma fer-
ramenta educativa que já se tornou indispensável nas aulas.

Premiada em 2007 no Concurso Cultural Ler e Pensar, desde então


Márcia vem sendo procurada por professores que buscam inspiração
para realizar atividades e projetos que tenham como matéria-prima
o jornal.

57
Por que e para que
ensinar a leitura?
Ana Gabriela Simões Borges e
Andressa Grilo Assagra

Quando começar a ler? O que ler? Como ler? Por que e para que ensinar
a leitura? Por que a leitura é uma das últimas opções de lazer para as
crianças? O que fazer para formar leitores? Por que as pessoas leem
cada vez menos?

Essas são apenas algumas das dúvidas que passam pela cabeça das
pessoas preocupadas com a educação. Afinal, todos sabem que uma
educação de qualidade depende da leitura e que ela é a base para o
aprendizado das crianças e jovens em nosso País.

Não é por acaso que a leitura é um dos temas mais debatidos no meio
educacional. Além de ser um dos alvos das avaliações nacionais, é um
dos principais pontos de partida para a inserção do aluno na vida es-
colar, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, pois é
na escola que o aluno aprende a ler para aprender todo o resto.

Sabe-se que estimular a leitura não é uma tarefa tão simples e que
também não compete unicamente à escola. Entretanto, em um país
como o Brasil, onde muitas crianças ainda têm dificuldade de acesso
a livros, jornais, revistas e outros materiais de leitura, a escola acaba
sendo um dos únicos espaços em que esse acesso pode ser facilitado.
Recentemente acompanhamos pelos noticiários as comemorações
dos avanços nas avaliações nacionais pelos quatro cantos do País. Que
ótimo que melhoramos, mas, ainda assim, insistimos em perguntar:
será que temos mesmo tanto a comemorar?

58 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


Se compararmos a Prova Brasil com o antigo Sistema de Avaliação
da Educação Básica (Saeb), por exemplo, veremos que cinco de seis
médias de Língua Portuguesa e Matemática estão hoje inferiores às de
1995. Além disso, ainda estamos longe de atingir as notas mínimas
desejáveis para os países desenvolvidos e contamos com um número
significativo de pessoas não alfabetizadas. Dados como esses acionam
a luz da emergência e nos fazem pensar no que pode ter dado errado,
mas também no que ainda se pode fazer.

Não pretendemos aqui fazer um histórico dos índices educacionais


mensurados pelas avaliações nacionais, nem dar a fórmula mágica
da leitura, muito menos ficar lamentando o que poderíamos ter feito,
ou os infindáveis motivos que têm afastado os alunos do ato de ler.
Nossa intenção tanto com o ensaio, quanto com a organização deste
livro, é estimular, por meio de bons exemplos, a prática frequente da
leitura nas escolas.

É preciso deixar claro que, quando nos referimos à leitura, nos refe-
rimos ao seu sentido mais amplo. Entendemos a leitura como uma
prática social necessária, uma atividade rica, transformadora, praze-
rosa, interativa; que constrói sentidos, que estabelece uma relação di-
nâmica e que dialoga com o leitor e o texto; e que é capaz de divertir,
entreter, ensinar, informar e, até, de fazer o leitor viajar.

Muito já escutamos sobre a leitura durante a nossa trajetória educa-


cional. Até parece que foi ontem que alguns teóricos diziam: “Não de-
vemos estimular o hábito da leitura; devemos sim, estimular o gosto
pela leitura”. A palavra hábito, nesse contexto, ganhou fama de vilã e
o gostar de ler virou a moda da vez, assim como muitas outras, que
enquanto educadores já vimos passar. Não achamos que estimular
a leitura como hábito seja tão ruim assim; imagine que mundo terí-
amos se ler fosse tão importante para as pessoas quanto escovar os
dentes. Não sabemos dizer se essa “moda” passou, mas o fato é que

59
a leitura, seja como hábito, seja como gosto, precisa fazer parte do
cotidiano dos nossos alunos.

Isso faz lembrar de uma palestra do professor Mário Sérgio Cortela à


que assistimos em 2009. Ele dizia que se tornou um leitor porque seu
pai conversava todos os dias sobre os conteúdos do jornal. Como ele
queria ter o que discutir, passou a ler diariamente e mantém o hábito
até hoje. O bom é que ele não ficou apenas na leitura de jornal, buscou
conhecimentos em várias outras fontes. Nesse caso, concluímos que
o hábito veio antes, o gosto depois, e que o interesse de Cortela pela
leitura foi fundamental.

Esse exemplo nos mostra que ler se aprende lendo, assim como escrever
se aprende escrevendo. É preciso que se ensine a ler oferecendo práticas
de leitura que privilegiem a reflexão e que façam os alunos irem além
da simples decodificação das palavras. A Lei 9.394/96, de Diretrizes e
Bases da Educação, afirma que o objetivo do Ensino Fudamental é a for-
mação básica do cidadão e tal objetivo será alcançado mediante o “de-
senvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o
pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo” (BRASIL, 1996, artigo
32). Com isso, podemos concluir que estimular a leitura não é apenas
apresentar aos alunos a sua técnica; e que para formar bons leitores, a
escola ainda tem um grande trabalho a ser cumprido.

Pode até parecer fácil, mas não é tanto assim, pois as atividades de
leitura na escola precisam ser muito bem planejadas. Não vale “contar
uma história” só porque choveu na hora do intervalo, ou levar um jor-
nal para a sala de aula para sair da rotina, sem ter qualquer objetivo
e planejamento. Essas atitudes podem ter um efeito catastrófico, e em
vez de arrebanhar leitores, pode distanciá-los ainda mais.

Sabemos que é comum alguns professores ensinarem a ler da forma


como aprenderam. Não queremos aqui fazer qualquer crítica, nem en-

60 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


trar na discussão sobre métodos de ensino, mas não podemos deixar
de lado o fato de que os alunos de hoje não são os mesmos de anos
atrás. Os pequenos cidadãos que se sentam hoje em bancos escolares
são diferentes daqueles que fomos; são crianças e jovens mais dinâ-
micos, imersos na cultura globalizada do século XXI, estão conectados,
têm acesso a muitas informações, são questionadores e exigem, mes-
mo que indiretamente, novas formas de ensinar.

Ainda que o novo aluno exija um novo professor e uma nova maneira
de construir o conhecimento, é necessário um processo de transição,
no qual o professor é o condutor. Ao professor cabe o papel de re-
lacionar as categorias textuais para leitura com o desenvolvimento
intelectual dos estudantes, estabelecendo também uma relação com
o aprendizado cotidiano que os estudantes apresentam, vinculando
séries, currículos, desenvolvimento cognitivo e afetivo.

Mas, então, o que fazer para incentivar a leitura? Ideias e exemplos não
faltam e para conhecê-los basta fazer a leitura deste livro, consultar
as revistas educacionais mais lidas, os livros que tratem do tema ou,
ainda, olhar o que o colega da sala ao lado anda fazendo. O importan-
te é que cumpramos nosso papel de apresentar diversas possibilidades
de leitura: dos livros aos jornais, das rodas de leitura à contação de
histórias, do diálogo sobre obras literárias às comunidades de leitores,
das imagens aos poemas, dos gráficos à arte.

Existem várias opções, mas são a sua escolha e a forma como a levará
para a sala de aula que poderão ser transformadoras, ou diminuírem
ainda mais o interesse dos alunos pela leitura.

Por esse e outros motivos, a seleção das leituras é uma das partes mais
delicadas, pois é preciso conhecer bem a turma para definir os tipos
de leitura a serem apresentados, levando em conta o novo conceito
de aluno. Também não se pode ignorar o fato de os estudantes, hoje,

61
estarem inseridos em um ambiente imagético, com textos cada vez
mais curtos e com referências de leitura cada vez mais dispersas e
que isso deve ser mudado aos poucos. Assim, radicalizar e levar Dom
Casmurro para a sala de aula sem nenhum preparo pode não ser a
melhor estratégia.

A leitura não é algo passivo, depende da interação entre texto e leitor.


É o leitor quem cria o sentido a partir de seus conhecimentos prévios
e de sua expectativa com relação à leitura. No caso do aluno, porém,
a intenção muitas vezes parte do professor. Quem deseja que a leitura
seja feita, porque é importante e necessária, é o professor. Só ele pode
transformar o que precisa ser lido em algo prazeroso e significativo.
Segundo Frank Smith, o significado da palavra “leitura”, em todos os
sentidos, depende de tudo que está ocorrendo, não somente do que
está sendo lido, mas do porquê de um determinado leitor estar lendo.

Nós, leitores mais experientes, sabemos que só lemos o que é in- teres-
sante, importante ou necessário e sabemos que essa escolha pode variar
de acordo com os diferentes contextos e momentos de vida. Da mesma
forma devemos proceder com nossos alunos. Muitas vezes, a nossa aten-
ção centra-se apenas na seleção do texto e nos esquecemos do contexto
e do sujeito, ou seja, do momento de vida e do aluno que irá ler.

Seja como for o processo de seleção de um texto, é preciso ter em men-


te que o mesmo deve ter um significado compartilhado com os alu-
nos. Entender o motivo pelo qual se lê – e o significado do que se lê – é
o primeiro passo para que se compreenda a importância da leitura e
assim se procure formas para inserir esse importante hábito no coti-
diano da escola.

Concordamos com Silva (2002) quando ele diz que todos nós educa-
dores temos como objetivo formar alunos e leitores questionadores,
capazes de se situar no contexto social, compreendê-lo e transformá-

62 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


lo. Para isso, precisamos pensar em recursos condizentes com tais ob-
jetivos e transformar definitivamente nossas boas intenções em ações
coerentes. Coerentes, porque vemos por aí muitas práticas que vão
contra nossas intenções. Explicando melhor, para escrever este ensaio
buscávamos textos norteadores e teóricos renomados e foi aí que en-
contramos um artigo, intitulado “Pragas da leitura”, em que Sírio Pos-
senti (1994) chama atenção para alguns obstáculos que podem surgir
e alerta para sete erros, ou “pragas”, mais comuns:

1 – Rotular as leituras. Achar que existem leituras adequadas para


idade, sexo ou temática específica, por exemplo, para meninos, para
meninas, crianças, adolescentes, leituras sobre amor ou sobre aventu-
ra. Em uma única leitura podemos ter tudo isso e até um pouco mais
e aquelas que classificamos como leitura para adultos, como o jornal,
podem ser muito bem aceitas pelas crianças.

2 – A imagem que os adultos têm das crianças. Segundo o autor, o


potencial das crianças é menosprezado e diminuído por nós adultos.
Por isso muitas vezes se leva para a criança textos que não acrescen-
tam nada de novo e por vezes com uma linguagem que o autor clas-
sifica como idiota.

3 – A leitura dos livros didáticos é a terceira praga apresentada pelo


autor, que se preocupa com a forma com que esses livros podem ma-
tar a curiosidade dos alunos. Isso porque são como minienciclopédias,
nas quais as crianças acreditam conter todo o conteúdo sobre um de-
terminado assunto, o que faz com que não tenham curiosidade ou
necessidade de buscar informações em outras fontes.

4 – A demasiada censura na escolha das leituras, por exemplo: se


tiver palavrão não pode, se falar de violência não pode, se falar de sexo
não pode; além de tantos outros temas que são comuns na sociedade,
mas que “de jeito nenhum” podem ser abordados pela escola. Difi-

63
cilmente, segundo o autor, poderemos indicar boas leituras que não
tratem de assuntos como esses.

5 – A leitura única e uniforme para todos com respostas únicas e


prontas para todos. Isso é como se perguntássemos aos alunos o sig-
nificado de um poema, esperando uma só resposta.

6 – O autor também critica o pensar que qualquer leitura serve, en-


tão nem é preciso selecionar.

7 – Para encerrar, as pragas da vez são os educadores que não têm


qualquer compromisso com a leitura, não pedem para os alunos
lerem, ou pior, também não leem. Esses dificilmente conseguirão
despertar em seus alunos a vontade e o prazer de ler.

Ao apresentarmos tais entraves (ou pragas da leitura, conforme define


o autor), queremos também despertar em você a reflexão, o diálogo e
a construção de novos significados. De forma alguma nossa intenção
é dizer “faça isso!”, “não faça aquilo!”, como nas receitas pedagógicas.
Até porque, é você, professor, quem está em sala de aula, conhece a tur-
ma e sabe dos recursos, oportunidades e limites que a escola oferece.

Analisando tudo o que foi dito por nós e pelos autores até agora, não
podemos deixar de falar de um suporte bastante rico de leitura: o jor-
nal. Foram inúmeros os motivos que nos fizeram escolher o jornal para
comentar um pouco mais: é atual, apresenta uma grande diversidade
de gêneros textuais, pode ser lido por pessoas de todas as idades; in-
forma, coloca o aluno em contato com a realidade e com o mundo;
entre tantos outros motivos que, se fossem citados aqui, poderiam se
estender até o final deste livro.

O jornal não possui apenas textos de caráter informativo, como notí-


cias e reportagens. Nele, podemos encontrar também a literatura nas

64 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


crônicas, a arte nas charges e nas fotos, a diversão nas tiras, o humor
nas piadas, a sensibilidade nas poesias e pensamentos do dia, a opi-
nião nos artigos e editoriais, entre tantos outros gêneros. Arriscamos
dizer que é impossível que nenhum deles desperte o interesse do leitor.
Seja o resumo da novela preferida, as ofertas de produtos, a tabela do
Brasileirão ou o horóscopo do dia, no jornal sempre há algo que nos
chama a atenção; e se chama a nossa atenção, por que não chamaria
a das crianças e jovens?

O sábio educador Paulo Freire (1982) já ressaltava as relações mútuas


entre a leitura do mundo e a leitura da palavra, entre a linguagem e a
realidade, entre o texto e o contexto. Por isso enfatizamos a importân-
cia de se colocar os alunos em contato com o mundo e com a leitura
por meio do jornal.

Essa prática, sem dúvidas, será mais rica do que o simples responder
de um questionário ou um fichamento, que priorizam a reprodução de
ideias. O aluno precisa ser ativo diante do texto, compreender e refletir
sobre o que quis dizer e, a partir disso, chegar às suas próprias conclu-
sões, ou seja, dar um novo significado ao texto a partir de seu referen-
cial e histórico de vida.

Para Villardi (1999), a leitura se dá quando o indivíduo é capaz de atri-


buir sentido ao que lê, pois está vinculada à capacidade de interpretar
o que está escrito, utilizando análise e crítica ante as informações co-
lhidas, o que se constitui como um dos atributos que permitem exercer,
de forma mais abrangente e complexa, a própria cidadania.

Mais uma vantagem do jornal é que ele permite a prática de leitura no


Ensino Fundamental, mesmo pelas pessoas ainda não alfabetizadas,
como as das séries iniciais e as da Educação de Jovens e Adultos, por
exemplo. Com esses alunos é possível ler imagens, observar as diferen-
tes fontes e tipos de letras e números e é possível que você, professor,

65
leia para eles. Mantê-los em contato com esses suportes de leitura que
circulam na sociedade pode trazer ganhos surpreendentes.

O cotidiano escolar é um ambiente letrador e como tal deve estimular a


leitura. Porém não qualquer leitura, mas uma leitura vinculada a uma
relação com o leitor. Como já dissemos antes, é ele quem vai construir
os significados do texto e é ele também que determinará o sucesso de
um texto, ao relacionar seus conhecimentos prévios e assim construir
novos conhecimentos.

Nesse cenário, nosso compromisso como educadores é fazer o que ne-


nhuma política educacional conseguiu: transformar a importância da
leitura para a construção da cidadania em fato.

Muitos foram os autores que inspiraram este ensaio e que deram suas
contribuições para a educação e especialmente para a leitura, mas a
maior inspiração veio mesmo da vontade de dar a nossa parcela de
contribuição para os professores, escolas, Secretarias de Educação e
parceiros, que ao longo de 11 anos vêm nos acompanhando nessa ca-
minhada em prol da leitura, por meio do projeto Ler e Pensar. Com a
certeza de que juntos já fizemos muito pela leitura, encerramos nossa
conversa, esperando que, também juntos, façamos ainda mais.

66 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


Para saber mais
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9.394, de
20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Brasília-DF, 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/ar-
quivos/pdf/ldb.pdf . Acesso em 24 de setembro de 2010.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1982.

GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula, 3ª ed. São


Paulo: Ática, 20001.

MEIRELLES, Elisa. Literatura, muito prazer. Revista Nova Escola. São


Paulo, ano XXV, n.º 234, p. 48-58, ago. 2010.

POSSENTI, Sírio. Pragas da leitura. Leitura, escola e sociedade. São


Paulo, FDE, Série Ideias n.º 13, páginas 27-33, 1994.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. O Ato de Ler: Fundamentos Psicológi-


cos para uma Nova Pedagogia da Leitura. São Paulo: Cortez Editora,
2002.

_____. A Leitura no Contexto Escolar. Disponível em: http://www.cr-


mariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_05_p063-070_c.pdf. Acesso em 15 de
agosto de 2010.

SMITHS, Frank. Compreendendo a leitura – Uma análise psicolinguís-


tica da leitura e do aprender a ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

VILLARDI, Raquel. Ensinando a gostar de ler e formando leitores


para a vida inteira. Rio de Janeiro: Qualitymark / Dunya ed., 1999.

67
Atualidade no
currículo
Professora: Márcia Kaminski Bíscaro
Instituição: Escola Municipal
José Eurípedes Gonçalves
Cidade: Campina Grande do Sul
“A educação sozinha não transforma a sociedade,
sem ela tampouco a sociedade muda”.
Paulo Freire

“Meus primeiros trabalhos com o jornal foram feitos para ‘não desa-
pontar a supervisora’, já que ela defendia a proposta e estimulava os
professores da escola a adotá-la. Mas como não era uma iniciativa na
qual eu efetivamente acreditava, acabava nem sabendo o quê e como
trabalhar”.

A “confissão” é da professora Márcia Bíscaro Kaminski, que atua na


4.ª série da Escola Municipal José Eurípedes Gonçalves, no município
de Campina Grande do Sul, e estava longe de refletir a atual realidade
das suas aulas com jornal.

“Senti que precisava de orientação para desenvolver a prática e fui


buscar aprimoramento nas oficinas e cursos oferecidos pelo Instituto
RPC. Com o tempo, aprendi a lidar com o jornal e desenvolvi atividades
com resultados tão bons que isso mudou os meus conceitos. Hoje vejo
o jornal como um recurso pedagógico indispensável.”

Márcia revela também que antes de o jornal entrar nas suas práticas
era uma professora fechada, não tinha muitas ideias e de certo modo
era limitada. “Com o jornal amadureci bastante, ampliei minha visão
do processo educativo e passei a buscar constante aprimoramento.
Não tenho mais vergonha de falar ‘não sei’ porque agora o fato de
não saber sobre alguma coisa me desafia a pesquisar sobre o assunto.
Depois que ganhei o prêmio do Ler e Pensar, minha autoestima au-
mentou, passei a perceber o valor do meu trabalho e, principalmente,
sinto que ele pode ser constantemente melhorado.”

E se Márcia comemora as mudanças ocorridas na sua maneira de dar


aula, festeja ainda mais o impacto positivo do jornal sobre os níveis

69
de aprendizado e interesse dos alunos pela leitura. “As crianças ado-
ram ler o jornal, e também passaram a pedir mais livros na escola e
hoje eles querem ler nos horários de folga e ainda pedem para levar
para casa. Dá gosto de vê-los devolvendo os livros e comentando sobre
tudo o que leram”.

A prática

A técnica usada por Márcia é simples e consiste em mostrar cada


pedacinho do jornal, associando os textos e fotos publicados com os
conteúdos que estão sendo estudados em sala de aula. A associação
facilita o entendimento e “traduz” a importância de aprender aquele
conteúdo, já que o aluno consegue enxergar onde ele aparece na
vida real.

O processo tem sido tão bem absorvido pelos alunos que é bastante
comum ouvir perguntas como “Profe: será que isso não tem no jornal?”
em toda a vez que Márcia começa desenvolver um conteúdo novo.

70 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


Aprendizado para a vida

Criar um link entre os conteúdos escolares e a atua-


lidade é a principal preocupação de Márcia na hora
de planejar suas aulas. Uma preocupação motiva-
da pelo interesse dos próprios alunos – que cobram
essa aproximação – e pelo empenho pessoal em
contribuir na preparação deles para sua vida esco-
lar futura.

“Muitos estudantes chegam ao 3.º ano do Ensino


Médio e não sabem fazer uma produção de texto.
Não vencem um vestibular porque não sabem inter- “Quero sempre ser um
pretar e escrever uma redação. E isso ocorre porque dos melhores da sala,
faltou o aprendizado com a atualidade, que é fun- por isso, quando co-
damental nessas produções.” meçamos a trabalhar
com o jornal, procurei
Trabalhando o jornal como elemento de aproxima- logo me adaptar com
ção, só neste ano de 2010, Márcia garante que regis- aquele novo tipo de
trou uma melhora de 90% na escrita, na produção de aula. Me concentro
textos e na capacidade crítica dos seus alunos. “Eles na leitura e tento
estão na frente, em vantagem competitiva”, diz or- interpretar sozinho o
gulhosa. que leio, pois sei que a
professora vai traba-
Márcia sabe que nos próximos anos eles vão mudar lhar algo em cima do
de escola (a atual só vai até a 4.ª série) e muitos não que estamos lendo”.
terão a sorte de encontrar professores com o mes- Rafael Victor Appel,
mo desempenho, mas acredita que as sementes 9 anos
plantadas continuarão dando frutos e tornando-os
leitores críticos pela vida toda. “O que mais quero é
desenvolver em meus alunos um aprendizado para
a vida. Espero que outros professores pensem da
mesma forma e também façam a sua parte.”

71
Olhar comparativo

A maior parte dos alunos de Márcia não tem computador em casa e


até a chegada do jornal à escola, nunca tinha tido contato com esse
meio de comunicação.

A realidade ajudou Márcia a valorizar a oportunidade de ter conta-


to com um meio de comunicação que os manteria informados sobre
os principais acontecimentos do Paraná, do Brasil e do mundo e que
abriu as portas para o trabalho de leitura crítica da mídia.

Isso aconteceu naturalmente, ao longo do trabalho, quando os alunos


passaram a comparar os conteúdos do jornal com o meio com o qual
eles têm mais contato: a televisão.

Eles começaram a perceber que na tevê os assuntos são apresentados


rapidamente, de forma resumida, e não têm tantos detalhes, mas no
jornal a notícia é mais aprofundada, além de possibilitar uma releitu-
ra toda a vez que isso precisa ser feito.

“Aproveitei que eles mesmos manifestassem esse interesse para fazer


uma comparação orientada sobre as principais características não só
desses dois veículos como também dos outros meios de comunicação.
Para isso, identificamos um tema que tinha sido divulgado em todas
as mídias e analisamos o tratamento e abordagem que recebia em
cada veículo.”

72 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


Diálogo e criatividade

No dia de trabalho com jornal a sala fica uma ba-


gunça, mas, como a professora faz questão de sa-
lientar, “é uma bagunça criativa”, na qual alunos
trabalham em grupo, interagem e querem saber o
que os outros grupos estão fazendo.

“É bagunça mesmo, mas o importante é ver que


estão aprendendo, exercitando o diálogo, a crítica
e a criatividade. Sabem que para produzir um bom
trabalho todos precisam conviver e se entender com
todo mundo”, diz Márcia. “A professora sempre
nos diz que o jornal é

Nesses dias, reclamações como “jornal suja a mão” uma ferramenta valio-

ou “jornal é coisa de velho” não assustam a profes- sa que temos todos os

sora e são rebatidas na hora. “Suja a mão sim, mas dias em nossas mãos

olha o que você pode ver aqui dentro de interessante, e que se soubermos

veja como é valioso e quantas notícias atuais ele nos aproveitar o jornal va-

traz todos os dias”. A insistência transformou a tur- mos nos tornar verda-

ma, e até os alunos tímidos desabrocharam. “Com o deiros leitores. O que

jornal eles ficaram mais soltos. Perderam a timidez”. mais gosto do jornal
são as Cruzadinhas

Apesar do sucesso das suas aulas, na escola poucas e o Sudoku porque

outras professoras se interessam em trabalhar com exigem concentração”.

o jornal porque veem a prática como “um trabalho Giovanna de Souza

a mais” ou dizem que o salário não compensa para Dantas, 9 anos

tanto esforço.

Para aquelas que abraçaram a ideia, Márcia é uma


espécie de conselheira. “Digo que trabalhar com jor-
nal cansa mais do que as aulas tradicionais, mas
que os resultados são muito mais compensadores”.

73
Jornal do Estudante

Uma das maiores novidades na Escola Municipal José Eurípedes


Gonçalves em 2010 foi a criação do Jornal do Estudante, que nasceu
na turma de Márcia e chegou ao segundo semestre como o jornal
da escola.

Seguindo o modelo e a estrutura de editorias presentes nos jornais


tradicionais, a produção da escola publica assuntos de interesse dos
alunos, a partir da leitura de notícias, charges e outras reportagens
publicadas na Gazeta do Povo.

“O interesse surge durante as atividades com jornal. Os assuntos


que despertam maior curiosidade na turma acabam sendo escolhi-
dos para compor o Jornal do Estudante. A partir da primeira semana
de julho, por exemplo, nosso foco passou a ser as reportagens sobre
eleições, presentes em quase todas as edições da Gazeta do Povo.”

Eleito o tema da próxima edição do Jornal do Estudante, além da


turma de Márcia, outros professores e alunos começaram a ser en-
volvidos. Hoje, boa parte da escola participa da produção.

“Ao realizar essa atividade, percebo que consigo ampliar o meu pa-
pel como docente. Além de transmitir informações, cumpro a tare-
fa fundamental de promover a conscientização para o exercício da
cidadania, abro caminhos para os educandos pensarem sozinhos e
os impulsiono ao desejo de reconstruir seus próprios conceitos, fa-
zendo da escola um lugar de entendimento, análise e produção de
informação.”

74 Capítulo 3 - Práticas de Leitura no Ensino Fundamental


Professora Márcia e alunas durante a confecção do Jornal do Estudante

Alunos mostram publicação produzida com assuntos da atualidade escolhidos por eles e
distribuída em toda a escola.

75
Capítulo 4
Literatura Infantil e
Contação de Histórias na Escola
Tendo objetivos diferentes, a leitura deve ser trabalhada de acordo
com o gênero textual, e são diversas as maneiras de ler, assim como
diversos são os textos e os objetivos de leitura. No que diz respeito
ao gênero literário, a escola assume o importante papel não só de
apresentar aos alunos um mundo lúdico, prazeroso, divertido e emo-
cionante, como principalmente o de promover ações pedagógicas
estruturadas e planejadas, que os levem a compreender e apreciar o
universo da leitura e da literatura.

O capítulo que dedicamos à Literatura Infantil e Contação de Histórias


na Escola está repleto de ideias e provocações que estimulam o gosto
pelo gênero, tornando a escola um local especial para a formação de
leitores apaixonados.

O tema é tratado pela pedagoga, especialista em Literatura Infantil


e doutoranda em Educação Elisa Maria Dalla-Bona, professora do
Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Paraná, onde desde
1991 ministra disciplinas como Prática Pedagógica e Metodologia de
Ensino da Literatura Infantil.

O entendimento da importância da leitura literária para o desenvolvi-


mento infanto-juvenil impulsiona as aulas lecionadas pela professora
Suely Rubbo Coelli, que atua na Escola Municipal Frei Tiago Luchese,
no município de Bituruna. Utilizando a técnica da Contação de Histó-
rias, Suely promove o envolvimento dos alunos. Mesclando emoção,
razão e imaginação – literatura e contação de histórias se transfor-
mam em atividade dinâmica e dialógica, que reflete a infinita capaci-
dade dos seus alunos para associar experiências e ideias.

77
Leitura literária
na escola
Elisa Maria Dalla-Bona

A literatura deveria deixar de ser um apêndice da área de Língua Por-


tuguesa para se constituir como uma disciplina obrigatória no Ensino
Fundamental e assim ter definida a sua lista de saberes e competên-
cias específicas. Como decorrência, o corpo docente teria de passar a
dominar as finalidades, os conteúdos e as estratégias pedagógicas
específicas desta área do conhecimento. Estas são as questões que
pretendemos abordar, ainda que parcialmente, a seguir.

A literatura infantil ao ser escolarizada tem sofrido um processo de


didatização que desfigura, desvirtua e falseia (SOARES, 1999) o texto
literário, criando resistências e aversão à leitura. Principalmente são
apresentados aos alunos apenas fragmentos e adaptações precárias
do texto literário que é transformado em pretexto para estudar gramá-
tica, ou para exercícios de interpretação que “privilegiam as perguntas
‘livrescas’ que se prendem à reprodução de palavras que são usadas
no texto; à não intertextualidade; aos aspectos não relevantes para
a compreensão; à execução de exercícios que solicitam preenchimen-
to de lacunas; ao assinalamento de respostas que demandam certo/
errado, falso/verdadeiro e outros semelhantes” (RANGEL, 2005, p. 150-
151). Agrega-se a esses problemas a limitação do tempo dedicado à
leitura literária na escola. Dificilmente os alunos têm a oportunidade
de ler literatura em sala de aula, e quando o fazem são estimulados à
passividade. Os professores não provocam a reflexão, o raciocínio e a
troca de ideias entre os alunos.

78 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


As teorias da resistência (SNYDERS, 1988; GIROUX, 1997) confirmam a
existência das forças conservadoras presentes na escola, como as aci-
ma expostas, ao mesmo tempo em que afirmam que elas podem ser
combatidas pela atuação ativa de professores e alunos. Nessas teorias
as escolas são vistas como espaços de lutas contraditórias e entendem
que os sujeitos envolvidos no processo educacional são capazes de
usar o conhecimento crítico para a tomada de consciência das condi-
ções de dominação. Uma das formas de a escola se transformar em
espaço de contestação, luta e resistência é investir no encontro dos
alunos com os conhecimentos científicos, técnicos e artísticos. Nesse
último inclui-se a literatura como importante agente de crítica, de de-
núncia e de inquietação, que são ingredientes imprescindíveis para a
criação de novos modos de vida.

Pensar na escolarização da leitura literária para além dos limites das


forças conservadoras é investir na formação do leitor, é inserir o aluno
numa experiência estética que pressupõe sentir prazer, entender, apre-
ciar e compreender uma obra, é investir no potencial que a literatura
tem de:
• desvelar as arbitrariedades sociais;
• de provocar a reflexão do que se quer ser ou do que precisa mudar
tanto no nível pessoal, quanto social;
• de provocar a afetividade;
• de emocionar, divertir e dar prazer;
• de contribuir para a humanização da pessoa e à construção da sua
sociabilidade;
• de favorecer o relacionamento do mundo da ficção com a realidade;
• de extrapolar espaços por meio da imaginação na construção de in-
contáveis e infinitos horizontes;
• de promover a experiência do encontro com o outro (autor, colegas,
professor);
• de promover a capacidade de debate e de confrontação de ideias;
• de dialogar com diferentes culturas e interpretar as ideias e os valo-

79
res que a configuram;
• de desenvolver a capacidade interpretativa;
• de desfrutar da experiência estética e singular da linguagem literária;
• enfim, de tornar o mundo mais compreensível, sensível e humanizado.

As situações escolares, muito comuns, em que o professor propõe a


leitura de um poema ou de uma história e em seguida pergunta aos
alunos o que o autor quis dizer precisam ser superadas. A leitura li-
terária só dá satisfação ao leitor quando ele participa da análise e
não se limita a contemplar a solução já formulada pelo autor, ou pelo
professor.

Tanto o texto quanto o leitor são ativos (ISER, 1996). O texto literário
se apresenta de forma inacabada e descontínua ao leitor, que por sua
vez, com o uso de sua imaginação e experiências, completa as lacunas
do texto. Assim, as atividades de interpretação de texto devem ser as
de construção de sentido, que por sua vez é um efeito experimentado
pelo leitor e não preexistente à leitura.

O papel do professor é o de convidar o leitor para integrar-se no pro-


cesso de constituição da obra, contemplando-a, entendendo-a e in-
terpretando-a, o que torna a leitura um processo singular e particu-
larizado. Entretanto, é preciso considerar que, ao interpretar um texto
literário, o leitor não está completamente livre, mas limitado tanto
pela visão de mundo que já possui (suas crenças, princípios e ideias),
quanto pelas normas contidas na obra de arte literária (JAUSS, 2002).
A atividade de interpretação de uma obra literária é uma experiência
estética, ou um ato de prazer que mobiliza o leitor e o impele à ação,
estimulando-o a refletir sobre seus preceitos éticos e morais. A arte
não existe para confirmar o conhecido, e sim para contrariar expecta-
tivas, podendo levar o leitor a uma nova percepção de seu universo.
A obra literária não é um mero reflexo das palavras do autor reprodu-
zidas na mente do leitor, ela é o resultado de uma interação (leitor-

80 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


texto) que é ao mesmo tempo receptiva e criadora. Esta interação é
profundamente dependente da mediação da escola para auxiliar o lei-
tor a preencher as lacunas deixadas pelo autor, para auxiliá-lo a entrar
no jogo do texto, a mergulhar no mundo da imaginação e da ficção,
a dominar a linguagem literária para reconstruir o universo simbólico
contido nas palavras.

O professor deve ser um auxiliar do aluno para aproximá-lo do maior


número possível de obras de modo a ampliar seu universo cultural,
instigá-lo a desvendar as pistas deixadas pelo autor, a expressar os
conteúdos intelectuais, sensoriais e afetivos despertados pela obra.
Cabe também ao professor aproximar os alunos de obras que superem
as suas expectativas, os instiguem, os desafiem e para usar um termo
de Jauss (2002), que os emancipem.

Preocupadas com as questões práticas enfrentadas pelos professores


ao trabalhar com literatura, as autoras Bordini e Aguiar (1993) criaram
o método recepcional, que recebe esse nome porque é fundamentado
na teoria da estética da recepção (JAUSS, 2002; ISER, 1996). O método
recepcional busca criar as condições na escola para que se estabeleça
uma efetiva comunicação do leitor com o texto, mobilizando seu ima-
ginário, num processo sempre ativo.

O ponto de partida do trabalho com a literatura na escola, a partir do


método recepcional, é o conhecimento literário anteriormente adqui-
rido pelo leitor, que pode tê-lo ajudado a definir algumas preferências
e a iniciar a constituição do seu horizonte de expectativas que é for-
mado por aspectos sociais (classe social à que pertence), intelectuais,
ideológicos (valores), linguísticos (padrão expressivo) e afetivos. O pro-
fessor é o responsável e o dinamizador do processo de aprendizagem,
provocando situações literárias que propiciem o questionamento des-
se horizonte e favorecendo a sua superação pelo domínio de conheci-
mentos mais complexos.

81
O método recepcional, ao colocar o leitor em contato com obras lite-
rárias desafiadoras, provoca um esforço salutar para responder aos
desafios ante o novo, de adotar uma postura de disponibilidade. As
ações pedagógicas propostas têm características provocativas, pro-
blematizadoras e reflexivas, gerando impactos no leitor (aluno) e em
seu meio social (escolar e familiar), na medida em que, por meio da
leitura literária, provoca a revisão de suas crenças, atitudes e valores.

No que se refere à seleção dos textos literários, no método recepcional


o ideal é a coexistência, no ambiente escolar, dos textos com os quais
os alunos estão mais familiarizados, com os de “outras épocas, regiões
e classes sociais, em diferentes níveis de estilo e abordando temáti-
cas variadas” (BORDINI E AGUIAR, 1993, p. 86) e também com aqueles
produzidos pelos próprios alunos. Isso favorece a comparação entre o
familiar e o novo, entre o próximo e o distante.

O processo de trabalho proposto pelo método recepcional sugere, ain-


da, a participação ativa dos alunos no planejamento e na execução
das atividades. A frequência de oportunidades para a expressão e o
debate oral e escrito entre os alunos, destes com o professor e também
com os membros da comunidade, favorece a atividade dos alunos e
são criadas as condições para que ele aja como sujeito da História.

As estratégias didáticas são de natureza lúdica e capazes de provocar


o desejo de aprender e de superar-se. Este método objetiva o desenvol-
vimento das capacidades de observar, descrever, analisar, comparar,
interpretar, críticar, extrair conclusões e aplicar os conhecimentos ou
comportamentos adquiridos a novas situações.

A avaliação proposta é processual, dinâmica e permanente, ocorren-


do a cada leitura do aluno. “No desenvolver dos trabalhos, esse deve
evidenciar capacidade de comparar e contrastar todas as atividades
realizadas, questionando sua própria atuação e a de seu grupo. A res-

82 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


posta final deve ser uma leitura mais exigente que a inicial em termos
estéticos e ideológicos” (Idem).

Assim, ler literatura na escola é se inserir num mundo lúdico, prazero-


so, divertido e emocionante, provocado por ações pedagógicas estru-
turadas, organizadas e planejadas, sem serem sisudas e impositivas,
mas desencadeadoras da interação do leitor com o texto.

Cabe à escola, como afirmamos de início, assegurar formalmente o


trabalho com a literatura, dando acesso a textos cuja qualidade lite-
rária provoque o desejo de ler cada vez mais, a fruição de um prazer
superior, enfim o desenvolvimento das competências leitoras. Trata-se
de um ambiente em que professores e alunos deixam-se levar pela
força e a emoção das palavras narradas, em que os alunos sentem o
desejo de criar e escrever seus próprios textos literários, gargalham
com o humor e se deixam contagiar e proteger por ele e provam do
prazer da narração de uma história.

A questão do estímulo à leitura, especialmente quando se trata de


crianças pequenas, passa também pela contação de histórias, pois uma
narração bem feita provoca o desejo de ler o livro. Mas na escola essa
atividade é comumente improvisada, resultando no tumulto entre as
crianças, que desinteressadas pela atividade se estapeiam, conversam
e fazem provocações com os colegas. A leitura do professor passa a ser
intercalada com gritos para chamar a atenção das crianças.

É bom lembrar que o prazer de ouvir uma história bem contada não
se esgota na infância. Tomo como referência a minha própria experi-
ência recente, provocada pelo encantamento de ouvir histórias nar-
radas por Celso Sisto. Ele é um contador de histórias que não utiliza
de outros recursos senão a expressão corporal e a entonação de voz.
Ele consegue tocar profundamente seus espectadores sem utilizar
de materiais de apoio, o que faz com que a atenção se volte para

83
a narração, para o texto e não para os recursos que eventualmente
possam ser utilizados.

Celso Sisto nos dá pistas importantes sobre o tema, em seu livro Textos
e pretextos sobre a arte de contar histórias. Ele insiste na necessidade
de o professor se preparar para a contação, o que pressupõe diversas
leituras antecipadas da obra, até que se sinta tomado pelo desejo de
contá-la. Assim, as palavras vão brotando “dos lábios com veemência,
convicção, detalhe e emoção” (SISTO, 2005).

O professor não pode ter pressa depois de começar, pois os princípios


da estética da recepção estão presentes também quando os alunos
ouvem uma história, na medida em que por meio de sua imagina-
ção vão preenchendo as lacunas e os vazios do texto. Sisto se refere à
cumplicidade que o narrador deve criar entre história e ouvinte, “ofe-
recendo espaços para o ouvinte se envolver e recriar. Esses espaços de
locomoção do ouvinte dentro de uma história podem ser construídos
pelas pausas, silêncios, ações, gestos e expressões de forma harmô-
nica” (Ibidem). Assim, a narração expressiva em que a voz provoca
suspenses, instiga, encanta, faz rir e se insinua está ávida pelo leitor,
pela reação criativa no sentido de alguém que muito mais do que um
espectador é um coautor. “Uma história é feita, na cabeça do ouvinte,
pela construção de expectativas, frustrações, reconhecimentos e iden-
tidades” (Ibidem).

Ler ou contar uma história depende de o professor optar por aque-


la situação em que ele se sente mais confortável. Em qualquer delas
tem de estar presente o cuidado com a expressão da voz, da face, dos
movimentos corporais, “emoção, texto, adequação, corpo, voz, pausas
e silêncios, olhar, espontaneidade e naturalidade, ritmo, clima, memó-
ria, credibilidade” (Ibidem). O importante é provocar o espectador para
que construa mentalmente o que está sendo contado e estabeleça a
comunicação com a história.

84 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


Ao final da narração é muito importante que o professor estimule o
debate, de forma que os alunos possam falar sobre o que estão sen-
tindo, sobre as relações que estabeleceram entre a história e sua rea-
lidade, ou com outros textos que leram. Nesse caso, a lembrança pode
ser de um texto literário, mas pode também ser de uma notícia do
jornal, por exemplo. Os bons textos literários sempre abordam com
profundidade temas que se relacionam com a vida real, com os sen-
timentos humanos, as inseguranças, as dificuldades, os conflitos, as
curiosidades etc.

A narração de um texto literário pode derivar para o trabalho com


diferentes linguagens (música, filme, artes plásticas) e também com
diversos gêneros textuais, como um poema, uma carta, uma receita
médica, uma bula de remédio, uma piada, uma entrevista jornalís-
tica e um artigo científico. É uma maneira de explorar o potencial
para as intertextualidades que um texto literário tem, ou para abor-
dar o mesmo assunto de forma diversa, descobrindo a riqueza de
cada uma delas.

Destaco o potencial que o jornal tem como auxiliar na formação do


leitor literário. Os cadernos direcionados para o público jovem e os de
atividades culturais são ótimos recursos para o professor, que pode
proporcionar aos alunos a leitura de análise de obras, a leitura de en-
trevistas com autores, conhecer lançamentos, divulgar encontros para
audição de textos literários, acesso a artigos de especialistas, a partici-
pação em iniciativas de promoção da leitura divulgadas pelo jornal.

Dentre as inúmeras atividades que podem ser desenvolvidas a partir


do jornal, há algumas que interessam muito aos alunos, por exemplo,
a criação de um caderno cultural da escola. Inspirados nos cadernos
que conhecem nos jornais, os alunos podem escrever comentários so-
bre os livros que leram, que podem ser complementados por outros
alunos com as análises de obras similares e com ilustrações dos que

85
se sentem mais aptos para o desenho. O caderno é um excelente espa-
ço para a divulgação de obras do acervo da escola, para a divulgação
de novas aquisições, para a publicação das entrevistas que realizaram
com autores e ilustradores, para a divulgação de poemas criados pelos
alunos, ou selecionados por eles. Os quadrinhos também podem fazer
parte do caderno, tanto os criados pelos alunos quanto os compilados
por eles.

Quando a escola dispõe de uma assinatura de jornal é importante que


frequentemente os alunos recortem as informações relacionadas às
atividades literárias para que montem uma textoteca. Para assegurar
uma dinamização maior de acesso a essas informações, a coletânea
pode ser colocada na biblioteca da escola.

Estas atividades visam criar as condições para que os alunos sintam o


desejo de trocar experiências literárias, aprofundem seus conhecimen-
tos acerca do assunto e encontrem um espaço real para desenvolver a
sua criatividade e divulgar seus textos.

86 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


Para saber mais
BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura. A for-
mação do leitor: alternativas metodológicas. 2.ª ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1993.

GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais. Rumo a uma


pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São


Paulo: Editora 34, 1996. 2 v.

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In:


LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor. Textos de estética da recep-
ção. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

RANGEL, Jurema Nogueira Mendes. Leitura na escola. Espaço para


gostar de ler. Porto Alegre: Editora Mediação, 2005.

SISTO, Celso. Textos e pretextos sobre a Arte de Contar Histórias.


Curitiba: Positivo, 2005.

SNYDERS, Georges. A alegria na escola. São Paulo: Manole, 1988.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:


EVANGELISTA, Aracy et alii. A escolarização da leitura literária: o
jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

87
Quando o faz de conta
inspira o mundo real
Professora: Suely Goretty Rubbo Coelli
Instituição: Escola Municipal Frei
Tiago Luchese
Cidade: Bituruna
“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”.
Paulo Freire

Para a professora Suely Goretty Rubbo Coelli, da Escola Municipal Frei


Tiago Luchese, do município de Bituruna, educar é aventurar-se – e
levar junto os alunos – a um mundo de desafios e coisas novas, que
façam sentido para a vida real.

Então, nada mais natural para ela que se inspirar no mundo do “faz
de conta” para promover uma das atividades lúdicas mais envolventes
usando o jornal: a contação de histórias.

“O projeto nasceu como uma estratégia para fugir da rotina e da mes-


mice que as aulas acabam se tornando quando nós professores não
encontramos caminhos para tornar a escola um ambiente de apren-
dizagem atrativo, capaz de instigar o aluno e desafiá-lo a novas des-
cobertas”.

Segundo ela, a busca pelo envolvimento da emoção, da razão e da


imaginação, numa atividade dinâmica e dialógica, consegue refletir
a infinita capacidade dos estudantes para a associação e circulação
de experiências e ideias, especialmente numa sociedade tão seletiva,
excludente e altamente competitiva.

A implantação da proposta não foi fácil. A professora teve de enfren-


tar o desafio de superar as limitações dos alunos, pouco familiariza-
dos com textos literários e, principalmente, nada acostumados com o
exercício do raciocínio dedutivo.

“Mas a partir do momento em que sabemos aonde queremos chegar,


todos se envolvem e os resultados são perceptíveis em diferentes si-
tuações. Os alunos passam a demonstrar maior interesse pela leitura,
prestam atenção aos detalhes, fazem inferências, estimativas, levan-

89
tam hipóteses, questionam, criticam. Muito diferente e mais fluido
que antes do projeto, quando tudo era muito difícil de acontecer”.

Suely afirma que até mesmo quando a discussão envolve temas po-
lêmicos, os alunos se posicionam criticamente, inclusive citando refe-
rências e as fontes que consultaram para fundamentar suas opiniões.

“Além disso, têm segurança e se sentem à vontade para citar exemplos


vivenciados por eles próprios, com a família, vizinhos e conhecidos.
“Isso acontecem porque as aulas ocorrem em clima de harmonia, com
direitos e deveres muito bem estabelecidos e um permanente respeito
ao outro”.

A prática

A partir da leitura de uma história como Ali Babá e os 40 ladrões – na


qual um homem pobre fica rico ao descobrir um tesouro deixado por
ladrões em uma caverna –, lendo um capítulo por aulas e instigan-
do os alunos a conhecerem a história, a professora estimula os seus
estudantes a buscarem fatos semelhantes publicados no jornal im-
presso e na edição da Gazeta do Povo Online. A intenção é demons-
trar aos alunos que é possível encontrar histórias reais com algo em
comum com o mundo da fantasia. O trabalho remete à reflexão e
análise tanto da história ouvida quanto da notícia, que identifica-
da permite que o aluno transponha para a realidade o contexto e
o argumento da narrativa e vice-versa. Depois, as conclusões são
apresentadas oralmente aos colegas, em duplas, socializando o co-
nhecimento adquirido.

90 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


Conexões possíveis

Em um primeiro momento, associar os clássicos


da literatura às notícias que saem na imprensa
e ao cotidiano dos alunos causa surpresa e es-
tranheza. Depois, a magia e o encantamento dos
textos lidos conseguem ultrapassar barreiras e
pré-conceitos, já que são usados como oportuni-
dade para revisitar conceitos e entender melhor a
realidade.

Mas, além de trabalhar aspectos culturais, sociais, “É importante tra-


econômicos, políticos e religiosos dos alunos, as balhar com o jornal
aulas com contação de história também podem porque desenvolve a
ser usadas como uma ponte para a consolidação inteligência da gente.
do conhecimento escolar, lançando luzes sobre O que eu mais gosto
questões relacionadas às disciplinas curricula- dessa aula é quando a
res. Uma faceta do trabalho que exige constante professora conta histó-
atenção e interesse por parte do professor. rias e quando lemos os
livros”.
Michael Jonatam,
“Ao escolher um texto literário para ler em sala, é
11 anos
preciso organizar todo um plano de abordagens
explorando as possibilidades que ele oferece.
Assim, quando existe a chance, por exemplo, de
explicar melhor os conteúdos de História, Geo-
grafia ou Matemática, vou para a sala de aula já
preparada para promover a discussão e responder
às dúvidas dos alunos. Sem essa preparação, fica
muito difícil conseguir explorar e fazer todas as
conexões possíveis”.

91
Heróis anônimos

Ainda saboreando o sucesso do projeto de contação de histórias usan-


do os textos clássicos e o jornal, a professora Suely já está em busca
de novas “provocações” e quer substituir a matéria-prima principal de
suas aulas por histórias de vida.

Para isso, começou a identificar pessoas da comunidade que têm tra-


jetórias inspiradoras, apesar de enfrentarem as mesmas dificuldades
dos alunos.

“Quero mostrar que os verdadeiros heróis são pessoas simples, humil-


des, que fazem parte, anonimamente, da comunidade. Pessoas que
não pertencem à elite, não aparecem na televisão, não fazem parte
de grupos sociais de destaque. Trabalham no mato ou na roça e têm
experiências de vida fantásticas porque dominam o senso comum e
valorizam muito mais o ser do que o ter”.

Ela diz que a maior parte das crianças, ainda que esteja longe desses
modelos, se identifica e valoriza referenciais equivocados. Sonham
em ser a garota escultural da tevê, o jogador famoso de futebol que
ganha rios de dinheiro, a atriz famosa que vive um romance de conto
de fadas... Ou seja, suas referências são casos raros e modelos prati-
camente inacessíveis para as pessoas comuns.

Ouvir relatos de pessoas reais e que vivem num mundo muito pareci-
do com o dos alunos pode mostrar a eles que devem viver e lutar pela
sua própria vida e não tentar viver a vida dos outros. “Espero que eles
compreendam que ter sucesso é vencer nossos próprios desafios, de-
senvolver nossos talentos e aproveitar as oportunidades que surgem
de forma honesta, fazendo o bem para si mesmo e para os outros”.

92 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


Humano e conectado

Para Suely, o professor do século XXI deve ser des-


pojado, aberto, “digital” e “conectado”, mas sem
perder a sensibilidade e o caráter humano. “Preci-
samos inspirar confiança e acreditar no potencial
dos alunos. Afinal, pelas nossas mãos passam os
futuros presidentes, médicos, cientistas, dentistas,
empresários, jornalistas e outros tantos talentos
que um dia precisaram ter suas aptidões desco-
bertas e apoiadas”.
“Quando a professo-
“Tenho certeza de que estou fazendo diferença na ra conta histórias a
vida dos meus alunos e acredito que outros profes- gente viaja no mundo
sores também podem fazer. Eu mesma sou fruto da leitura. O jornal
do esforço e interesse de professores dedicados e é muito importante
interessados que me motivaram a ler e a expressar para o nosso desenvol-
minhas opiniões e ideias, e a ter confiança para vimento”.
lutar pelos meus sonhos”. Emanuele Matias,
11 anos

E esse é um comportamento que exige dedicação


e um plano de interesses voltado ao desenvolvi-
mento integral do aluno. “Não adianta ter todos os
mais modernos recursos ao nosso alcance se não
soubermos usufruir dos benefícios que eles podem
nos oferecer. E isso não depende da tecnologia e
sim de atender às necessidades da turma, valorizar
as diferentes habilidades de cada aluno e descobrir
o melhor processo de ensino-aprendizagem”.

Infelizmente, admite, muitos professores ainda


resistem à ideia de novas ou inusitadas práticas

93
didáticas. Ficam enfurnados entre as quatro paredes da sala de aula e
levam os alunos a fazer o mesmo, quando até mesmo a pouca idade
os impede de aceitar esse modelo. “Por isso eles se rebelam, se re-
voltam, demonstram indisciplina. Lá fora, o mundo é mais atrativo,
dinâmico e interessante”.

Cidadania

Atender, efetivamente, a um dos objetivos da educação, que é permitir


que o educando adquira conhecimento, descubra e alargue todas as
suas potencialidades. Essa é a mola que impulsiona a professora Suely
ao trabalho permanente com o jornal.

“Vejo no jornal uma ferramenta pedagógica de longo alcance e de


duplo significado. Com o jornal é possível conhecer o mundo e, ao
mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento integral dos alu-
nos como cidadãos. E ajudá-los a exercer sua cidadania plena exige
que trabalhemos questões como valores, caráter, crítica, consciência
e atuação social.”

Para atingir tantas necessidades e objetivos, Suely garante que é preci-


so se despojar de atitudes de poder associadas aos tradicionais papéis
de professor e alunos e fazer tudo para diminuir a distância entre os
dois lados. Ou seja, o professor não pode se apresentar como dono do
conhecimento. Ele deve entender que todos os dias também aprende
algo com seus alunos, porque educar é um caminho de mão dupla.

“Chegar à classe engessada por pré-conceitos não serve mais para os


profissionais da educação. É preciso abrir as ‘janelas’ e visualizar um
mundo aberto a novas possibilidades. O professor deste milênio pre-
cisa ensinar e orientar o aluno para atuar e modificar a realidade me-
lhorando sua vida e a dos outros”.

94 Capítulo 4 - Literatura Infantil e Contação de Histórias na Escola


A partir da leitura de uma história, professora Suely estimula os alunos a buscarem fatos
semelhantes no jornal.

A professora Suely trabalhando, em suas aulas, questões como valores, caráter,


consciência e atuação social.

95
Capítulo 5
Leitura Significativa
e Contextualizada
Ler não é somente identificar símbolos, juntar letrinhas, relacionar as
letras aos seus respectivos sons e repetir frases lidas em cartazes ou
anúncios.

Ler, em seu sentido amplo, significa saber decifrar um grande núme-


ro de informações e reconhecer seus significados e interações com o
mundo. Enfim, entender o que está sendo lido e transformar a leitura
em aquisição de conhecimento.

O ensaio acadêmico sobre o tema Leitura significativa e contextuali-


zada é assinado por Benedito da Costa Neto, professor na área de
Língua Portuguesa e de Literatura, consultor, crítico de arte e escritor.
Professor de Língua Portuguesa da Rede Paranaense de Comunicação
(RPC), Costa Neto também é responsável pelo estilo de linguagem
adotado pelos telejornais da rede. Além disso, ministra aulas em di-
versos cursos universitários.

Já a prática em sala de aula que destacamos para este capítulo é o fan-


zine produzido pelos alunos da professora Adriana Margarete Rolim
da Silva Gonçalves, no contraturno da Unidade de Educação Integral
Abranches, em Curitiba. Com aulas dinâmicas e divertidas, Adriana,
premiada no Concurso Cultural Ler e Pensar de 2008, usa a leitura de
jornal para motivar o aprendizado entre jovens adolescentes e faz das
suas aulas um exemplo de criatividade, interatividade e estímulo ao
protagonismo.

97
Produtores de
significado
Benedito da Costa Neto

Quando lemos, o que lemos? A leitura está efetivamente no texto lido


ou em nossa mente? Será que o que lemos nos precede, sendo uma
voz que fala antes de nós, ou seria uma voz nova, que fala a cada dia e
que fala algo novo a cada vez? Nós somos leitores ou somos também
produtores de significado? E o que seria mais importante no ato da lei-
tura: o que vem antes do texto e que tornou possível este texto; quem
o escreveu; nós mesmos?

A voz de nossa professora de Português ecoa em nossa mente indican-


do um bom caminho para o texto: não fazer perguntas, pois um tex-
to deve ser afirmativo, mas eu gostaria de começar este texto (assim
como comecei a apresentação oral que o antecedeu) justamente com
perguntas, para que, a partir delas, seja possível afirmar o que deverá
ser afirmado.

Ler, para um erudito livre e independente como Alberto Manguel, é


um processo complexo, sem dúvida, mas um processo extremamente
marcado pela condição cultural. Para ele, a leitura não é apenas a
dos olhos sobre o texto, uma vez que cegos podem ler e uma vez que
há outros tipos de leitura, como a da vidente que observa o fogo, o
pescador que sabe quando há peixe, o amante que passa os dedos
pelo corpo do amado1, entre tantas outras infindáveis formas de ler.
Já para autores mais ligados à pesquisa acadêmica, no seio da Lin-

1
A obra de Manguel em que ele afirma isso e pesquisa outras formas de ler é Uma
história da leitura.

98 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


guística, ler é um processo, digamos, mais fechado, que admite uma
taxionomia: haveria uma leitura neurofisiológica, uma leitura cogni-
tiva, outra afetiva, e ainda leituras como processo argumentativo e
simbólico, ocorrendo todas ao mesmo tempo e não sendo nenhuma
“superior” à outra. Este tipo de análise ganhou corpo no século XX e
pode ser encontrado em pesquisadores como Vincent Jouve2. Ainda no
meio acadêmico, podemos encontrar outras formas para o ler, como
a do pesquisador luso-americano António Damásio, a partir de cujas
pesquisas podemos intuir que o processo de ler está atrelado à ideia
que temos de nós mesmos, assim como à nossa percepção do mundo3
(memória, um sentido do “eu” e um sentido do existir).

De um modo ou de outro, a dúvida permanece e talvez o ato de ler


seja tudo isso: haveria muitos significados para a leitura, que não
caberiam neste texto. Em particular, quero me dedicar a um tipo de
leitura em especial, a do jornal. Talvez fosse coerente com a multi-
plicidade dos meios jornalísticos frisar, não por excesso de zelo, que
há uma leitura de jornal escrito, em papel, específica, e que difere da
leitura em página da web, por exemplo. O leitor de jornal é aquele que
recebe o jornal em casa, pela manhã, aquele que para em uma banca
para ler o que está à disposição ou ainda aquele que comprou o jor-
nal para lê-lo na praça, no banco, no aconchego da sala ao retornar
para a casa. Há enorme diversidade de jornais e de cadernos: jornais
de bairro, jornais de grande circulação, jornais específicos e, no inte-
rior de cada um, uma diversidade de cadernos, desde uma seção de
classificados, que sustenta muitos jornais financeiramente, até textos
muitíssimo particulares, como os sobre vinhos, moda ou ainda, em
cadernos especiais, sobre a velhice ou a violência urbana.

Sem saber, o leitor está em consonância com o que se discute dentro

2
A obra em questão é A leitura.
3
Para Damásio, em O mistério da consciência, há diferença entre a noção de “eu” e
a noção do existir.

99
do meio acadêmico: ora temos um leitor que buscará o tema, o sen-
tido, o significado, o conteúdo, o dado que o antecede, sendo muitas
vezes um dado que ele não conhece e que, por não conhecê-lo, não
pode duvidar dele, ora teremos um leitor mais passivo, que passa os
olhos pelo jornal à procura de algo interessante, por lazer, passatem-
po ou por mera formalidade dos eventos diários. Se um jornal traz um
dado irregular (como dizer que Abu Dabi fica no Marrocos), o leitor
necessitaria ser aquele leitor não ideal imaginado por Umberto Eco
no século passado4, que buscaria cada dado para verificar se é ou
não verdadeiro. Mas não são todos os dados, por assim dizer, pois os
números e informações sobre uma investigação policial não podem
ser checados, o que nos faz imaginar que o leitor deve ter com o jor-
nal um pacto de aceitação do dado, ou um pacto que o faz aceitar
determinados dados, se pensarmos ainda no mesmo Eco que trata do
“pacto de leitura”.

Ocorre que o jornal é um múltiplo também no sentido empregado,


hoje, pela arte contemporânea5. O jornal não é apenas um emaranha-
do de letras, frases, parágrafos, que o leitor deve traduzir. Tal tradução
é uma falsa ideia da leitura. Ler também é traduzir algo (uma escrita,
principalmente, em nosso caso), mas ler, em sentido mais amplo, é de-
cifrar um grande número de informações que o jornal carrega consigo:
a diagramação, as manchetes e chamadas (que são escritas também),
as cores, as imagens, as propagandas (misto de imagens e textos), a
tipografia etc., índices pelos quais o leitor reconhece o “seu” jornal e
“seu” texto. Todas essas características, juntas, fazem da leitura o que
ela é: uma tradução em múltiplos níveis.

Porém, se a leitura fosse uma decifração de textos (“escritas” em vá-


rios sentidos de “escritas”, como Barthes, por exemplo, teria imagi-

4
Umberto Eco tratou disso em vários escritos, mas penso agora em Lector in fabula.
5
Quanto a esta nomenclatura, penso nos estudos de Nicolas Bourriaud e Anne Cauquelin.

100 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


nado6 e tantos outros antes dele, depois dele), isso seria uma tarefa
razoavelmente simples de resolver. Estudos de gramática e de escrita
dariam conta do desafio e ler seria um processo de decifração ora de
cores, ora de tipografia, ora de uma escrita com regras sem as quais
não se pode fazer um jornal: as normas gramaticais vigentes no in-
terior de cada redação, certas regras gramaticais aceitas em acordos
internacionais e em certas gramáticas normativas. No entanto, exis-
te o conteúdo da escrita, algo que um pensador como Pêcheux, se
emprestássemos dele certa ideia sobre o discurso, chamaria aconte-
cimento. Todo texto tem uma estrutura (frasal, gramatical etc.), mas
todo texto tem um conteúdo ideológico, político, soociocultural, que
faz ou não parte da vida e do mundo do leitor7. Quem escreve para
um jornal, escreve de um ponto social muitas vezes não definido, mas
tentaremos um caminho investigativo sobre este ponto. Pensemos
primeiro num lugar físico de escrita, de onde tudo flui. Antigamente,
há não muito tempo, os jornalistas, no interior de cada redação (e
com certeza em alguns lugares do mundo isso ainda deve ocorrer)
escreviam a partir de máquinas de escrever8. Hoje, talvez seja comum
em todo o país a utilização de computadores, interligados em rede,
com acesso à internet, enfim, que facilitam em parte a escrita em
si, a produção de textos. Mas este profissional da escrita escreve de
um lugar que não é simplesmente este lugar físico – é, para além do
espaço físico, não sem importância, como já mostrado por estudio-
sos com certa abordagem fenomenológica ou por outros a partir de
abordagens sociológicas, um espaço cultural, um espaço do dizer em

6
Barthes ocupou-se disse grande parte de sua produção, mas penso em O prazer do texto.
7
Aqui há uma leitura bastante livre de O discurso – estrutura e acontecimento, de
Michel Pêcheux.
8
Em muitas redações de jornais escritos e falados, a máquina de escrever foi usada
até meados dos anos 1990, por uma questão de custos. Era realmente caro investir
em equipamentos eletrônicos para todas as equipes. Valeria lembrar, igualmente,
que o uso de computadores em larga escala, no meio empresarial, é fato relativa-
mente recente na História.

101
que a voz não é apenas gramatical ou espetacularmente estrutural,
com erros e acertos. A voz que fala num jornal é uma voz social, reple-
ta de intenções as mais diversas, de interesses, de interpretações do
mundo, de visões específicas. É lugar-comum dizer que o jornalismo
deve ser a voz da liberdade, mas tal liberdade pode não ter as asas
tão dilatadas como sonha a versão típica das edições, que cantam a
liberdade de expressão e o teor da verdade de cada matéria. E, nesse
momento, entra em questão o que há de mais complexo na leitura,
que é a questão do discurso.

É extremamente comum encontrarmos a palavra “interpretação”


quando verificamos os textos dos pesquisadores que investigam a
leitura. Tal palavra remete a um grande número, por sua vez, de pos-
sibilidades interpretativas: por vezes, deparamos com a ideia de que
é possível resgatar a voz do autor e procuramos num texto esta voz
perdida; se a voz nos é próxima, por exemplo, a voz de um escritor ou
jornalista vivo, fica razoavelmente fácil distinguir o texto de um Luis
Fernando Verissimo de um texto de José Simão, mas se a voz é antiga,
e se perde na noite dos tempos, fica bastante complicado ouvir esta
voz e a interpretação dela não é mais do que um desejo. De todo
modo, nossa leitura é sempre uma leitura do hoje e não do ontem. É
como se fizéssemos uma atualização (no sentido que Pierre Lévy dá
ao termo quando discute a cibercultura9). No Brasil, principalmente,
dada a força da USP e das análises sociológicas difundidas pelo estu-
dioso Antonio Cândido, é comum encontrarmos análises desse tipo,
mescladas a outros discursos: a psicanálise freudiana ou junguiana,
a fenomenologia de Bachelard, a nova história de autores tão díspa-
res como Natalie Zemon Davis e Carlo Ginzburg etc. Ocorre que tais
análises são possíveis, como qualquer outra análise, mas muitas ve-
zes deixam de lado o seguinte: fazemos também, nós, uma leitura do
hoje, do agora e dos discursos posteriores ao texto, que o atravessam.

9
Tal pensamento está em O que é o virtual?

102 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


Há também autores realmente complexos que parecem acenar para
este tipo de análises – Clarice Lispector, certo Kafka – e são justamante
esses que, por motivos razoavelmente compreensíveis, passam a ser
objeto de análises “de autor”. A ideia central é: “se entendo um autor,
posso entender sua obra”. O risco é: “confundo o autor com a obra”.
Pode parecer lógico também que, se entendemos o universo solitário
e, segundo biógrafos, depressivo de Lispector, entenderemos melhor
A paixão segundo G. H., mas isso não ocorre na leitura de um jornal,
haja vista que é bem comum não conhecermos os jornalistas. Embora
“vivos”, produzindo “em nosso tempo”, eles não são pessoas próximas
tampouco analisáveis nesse sentido. Não obstante, a leitura é tam-
bém uma busca por uma “voz de autor”, apontável ou não.

Outro tipo de análise comum, igualmente interpretativa, é a análise


do “texto em si”. Há diversas análises ao longo do século XX preocupa-
das com o texto em si a partir do momento em que a textualidade ga-
nhou importância em detrimento das questões gramaticais ou discur-
sivas, o que seria talvez certo modo positivista de ler e de interpretar o
texto. Há tanto o modo de análise do texto com o desejo de encontrar
para ele uma definição, sem a qual a análise não seria possível, assim
como a análise das potências textuais do texto, o que ganhou corpo
no Brasil a partir dos anos 1980, quando a Linguística Textual passou
a ser estudada em larga escala, o que contaminou – no bom senti-
do – as análises literárias. Tais análises são possíveis e interessantes,
mas desde que não tenham como objetivo maior a classificação vazia:
discutir se um texto ficcional é novela, romance ou conto, é também
importante, mas não como fim em si. Também na leitura do jornal
ocorre um certo tipo de classificação. No geral, o jornal (parece óbvio,
mas é mais espinhoso que isso) é classificado justamente como aquele
cujo texto é “jornalístico”, como se o texto jornalístico fosse um gênero
à parte e fechado. Não seria mentiroso dizer que o jornal é “jornalísti-
co”, mas se isso for importante para uma análise (separar o que seria
jornalístico daquilo que não é), há de se pensar também que cada jor-

103
nal se diferencia do outro e que em cada jornal há universos textuais
e discursivos diferentes. Ao pé da letra, cada jornal é um veículo de
informação, mas as informações podem ser sobre política, economia
e gastronomia — num jornal de grande circulação, privado – e podem
ser informações sobre aumento salarial, demissões, direitos do traba-
lhador – num jornal sindical. A questão do “texto em si” (tanto as aná-
lises gramaticais quanto textuais) pode ser um grande aliada em sala
de aula, mas desde que outras análises não fiquem de fora. Fariam
parte deste grupo algumas análises ditas estruturalistas, ao modo de
Propp, e ainda análises da Linguística textual ao modo difundido no
Brasil pela professor Ingedore Koch. Até mesmo algumas ferramentas
da Sociolinguística são usadas nesse tipo de análise. Quando não são
mera formalidade classificatória, podem ser úteis. Por exemplo, se di-
zemos que um texto foi escrito por homem ou mulher, se o texto foi
escrito por jovem ou idoso, se o texto foi escrito por pessoa de tal ou tal
formação, devemos ter em mente que por detrás dessas afirmações há
discursos muito poderosos, incluindo aí alguns preconceituosos.

Haveria um terceiro modo de analisar o texto que não verificando sua


origem tampouco as questões estruturais que fazem um texto ser um
texto. Costumo dizer que as análises discursivas são um tipo de análise
e de interpretação possível e diferente das dos outros dois grupos. A seu
favor, conta-se com a capacidade de investigar o texto em seu território
de escrita, em seu momento de dizer, seja ele sociocultural ou histórico.
Análises sociológicas em geral (usos e costumes, gênero, política), aná-
lises históricas, análises que utilizam ferramentas das áreas “psi”, análi-
ses que utilizam discursos do Direito ou da Medicina, são possibilidades
muito interessantes para a sala de aula. A seu desfavor, tal modalidade
de investigação tem lá suas obrigações: a) necessita ser erudita, para
que não se corra o risco de falsas conclusões; b) não pode procurar a
verdade como um fim, pois que a investigação é uma procura eterna
e não um processo com limite final e estabelecido; c) não pode desviar
demais a atenção do texto, seja um romance ou um jornal o que se lê.

104 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


Do lado de cá do texto (ou seja, nem a leitura do antes, tampouco
a leitura do texto em si), haveria um tipo de leitura não aceita pela
academia, mas existente e, volta e meia, tentando penetrar o sagrado
espaço acadêmico. Decerto, não existe interpretação que não seja pes-
soal, que não seja uma investigação “do leitor”, única e intransferível.
Porém, muitas vezes, a leitura torna-se tão pessoal que ultrapassa a
condição de uma leitura e de uma interpretação. Isso ocorre quando a
leitura vai além dos dados e do discurso do texto lido, o que podería-
mos chamar leitura “intimista”, “livre” ou ainda “impressionista”, sem
relação com o movimento artístico moderno. Cada leitor lê o texto
a seu modo e seria um exercício borgeano ler A ilha do tesouro como
um livro de receitas ou como um oráculo. Mas, em sala de aula, tais
leituras não são bem-vindas. Do mesmo modo que um romance não
deve ser lido como receita, assim é o jornal. De todo modo, a sala de
aula é um lugar livre para especulações, mas também para orientação
sobre os limites da leitura e da interpretação. Quem lê Clarice Lispec-
tor procurando saídas para a vida pessoal faz decerto um exercício
fascinante de leitura, mas não exatamente um exercício acadêmico ou
de resultados benéficos para a sala de aula.

Evidentemente, cada uma dessas análises não pode ser separada sim-
plesmente e isolada. Ao lermos um texto e ao avaliarmos um texto, na
verdade mesclamos vários tipos de análise. Desde que haja a pergunta
“quem o escreveu?”, estamos procurando um sujeito anterior à leitura,
que pode dizer muito a respeito do texto. Isso é mais simples do que
imaginamos. A leitura não deixa de lado seu autor, e inclusive utiliza-
mos adjetivos específicos para nos referirmos a um tipo ou a uma mo-
dalidade textual: borgiano, rosiano, foucaultiano. Do mesmo modo,
enxergamos no jornal uma modalidade, como já citado no começo
deste texto, e continuamos com a utilização de expressões adjetivas:
jornalístico, televisivo, de revista, da web, editorial (como adjetivo e
como substantivo), de lazer, econômico etc. No caso particular de um
jornal, valeria lembrar que talvez não conheçamos todos os jornalis-

105
tas, mas não é tão complexo observar que há articulistas, editorialis-
tas especiais, colunistas razoavelmente fixos, cujos textos ganham em
sentido quando colocados lado a lado, principalmente se conhecemos
o trabalho anterior de quem escreve. Do mesmo modo, se há a pergun-
ta “quando isso foi escrito?”, de algum modo estamos entre o primeiro
e o terceiro tipo de análise, tentando uma fixação não arbitrária para
o texto, de modo a tentar entender o que é/foi escrito numa determi-
nada época, sabendo de antemão que as épocas diferem entre si e que
algo dito numa época não poderia ser dito em outra, do mesmo modo
que, se algo é dito exatamente como o foi em outra época, o resultado
desse discurso é só aparentemente igual. Então, podemos dizer que a
interpretação de um texto tem, sim, a ver com quem o escreveu (seria
melhor sabermos quem o escreveu, mas a fonte em que está já aju-
da), da mesma forma que o lugar/tempo de onde o texto “fala” nos é
importante, desde que não fiquemos analisando a vida particular de
autores e jornalistas.

Em paralelo, a leitura de um texto prevê certos mecanismos de leitura


e de apreciação e ainda de aceitação. Muito se fala sobre o pacto que
realizamos com um texto (Umberto Eco, por exemplo, já citado) e do
como separamos mentalmente um gênero textual de outro. Na super-
fície do texto, convivem regras gramaticais, regras de escrita, acordos
e convenções que, se rompidos, corrompem não apenas a qualidade
do texto como apontam-no como um “não texto”. O texto de jornal em
particular tem uma lógica, uma sequência, e as características conhe-
cidas como continuidade e progressão (nomenclatura típica da Lin-
guística Textual) são importantes aliadas na leitura em sala de aula.
Quem trabalha gramática, por exemplo, pode se servir dos textos de
jornais, que invariavelmente utilizam uma linguagem não erudita,
mas via de regra em concordância com a norma culta. Até mesmo er-
ros e deslizes podem ser questionados em sala, sendo o texto do jornal
um bom exercício de pontuação. Curto e objetivo, ele pode treinar a
ordem direta do português e a dura lida com o ponto e a vírgula. Em

106 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


resumo, o texto em sua formalidade pode ser usado como mecanis-
mo de difusão da norma culta, que o aluno precisa dominar tão bem
quanto as demais línguas que utiliza em seu dia a dia.

Invariavelmente, o mais complexo na leitura de um texto é a questão


discursiva: descobrir e explicar o que atravessa o texto ao nível dos
discursos. Nenhum texto é neutro, nenhum texto é vazio ou opaco,
pois o texto é o resultado (em sentido exposto por Mikhail Bakhtin)
de uma interação entre sujeitos. Quem escreve em um jornal, como
já dito, escreve de um lugar físico e de um lugar cultural e o faz em
relação a outrem: o leitor. Este leitor está na imaginação do jornalista
(ou do escritor, dramaturgo, publicitário, designer gráfico) e o conteú-
do da escrita é o resultado das referências de quem escreve – sempre
em relação a quem lê. Para Bakhtin, haveria como que três sujeitos no
ato da escrita: a) quem escreve, que é uma consciência em particular;
b) quem lê, ou seja, para quem é direcionada a escrita; c) outras vozes,
que estão amalgamadas ao que se escreve, e que existem antes do
texto. Não sendo possível investigar as intenções verdadeiras, con-
cretas, definitivas e acabadas de quem escreve, podemos investigar
possibilidades. Não sendo possível descrever “verdadeiramente” as
intenções de quem escreve, podemos inferir, tirar conclusões, fazer,
então, uma leitura.

Penso que a leitura em sala de aula possa ser uma aventura acadêmi-
ca e uma aventura que leve os alunos a lugares não antes visitados,
mas desde que a leitura entre como processo que impeça a difusão do
preconceito, abra portas para novos mundos, exercite a capacidade de
entendimento das coisas do mundo, aumente a capacidade de inves-
tigação e faça crescer o interesse por leituras mais profundas e menos
comerciais e vazias.

107
Para saber mais
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes,
2008.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de


Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1999.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São


Paulo: Perspectiva, 1996.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção – como a arte reprograma o


mundo contemporâneo. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística – uma introdução crítica. Tra-


dução de Marcos Marciolino. São Paulo: Parábola, 2002.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea – uma introdução. Tradu-


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DAMÁSIO, António. O mistério da consciência. Tradução de Laura Tei-


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ECO, Umberto. Lector in fabula – a cooperação interpretativa nos


textos narrativos. Tradução de Atílio Cancian. São Paulo: Perspetiva,
1986.

_____. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard


Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe


Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

108 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


_____. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo, Loyola, 1996.

_____. O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais e


Eduardo Cordeiro. Alpiarça: Passagens, 2000.

JOUVE, Vincent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo:


UNESP, 2002.

LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Tradução de Paulo Neves. São Paulo:


Ed. 34, 2004.

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia


Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

VAL, Maria da Graça Costa. Redação e textualidade. São Paulo: Mar-


tins Fontes, 1999.

109
Adolescentes Editores
de Jornal
Professora: Adriana Margarete
Rolim da Silva Gonçalves
Instituição: Unidade de Educação
Integral Abranches
Cidade: Curitiba
“O trabalho escolar é um equilíbrio entre o esforço
e o prazer, instrução e diversão, educação e vida”.
Paulo Almeida

Apresentar o conhecimento de maneira diferenciada e divertida ao


mesmo tempo que mantém a coesão e a disciplina necessárias em
uma classe. É com essa preocupação que a professora Adriana Mar-
garete Rolim da Silva Gonçalves, que atua no contraturno da Unidade
de Educação Integral Abranches (antigo Piá), prepara suas aulas. Um
exercício que a leva, por consequência, a repensar constantemente a
sua didática e ainda exercitar a criatividade. E tudo isso para conse-
guir traduzir os conteúdos para a linguagem dos alunos, tornando-os
atraentes ao ponto de favorecer a apropriação da informação e a cons-
trução do conhecimento.

A proposta é arrojada e faz com que Adriana exerça múltiplas funções


simultaneamente. Além de professora, ela também vira um pouco mãe,
psicóloga e amiga... Trabalho que vai muito além do contrato para dar
aulas, mas nada que assuste tanto que a faça desistir, porque quanto
mais se aproxima dos alunos mais consegue atenção e respeito deles,
obtendo melhores resultados nas atividades que desenvolve.

Nesse processo em constante evolução, o uso do jornal em sala de


aula teve um importante papel. Segundo Adriana, leituras e pesquisas
com jornal oferecem ao professor uma excelente oportunidade de pro-
mover aulas diferentes, instigantes e interativas. Aulas que aceleram
o processo cognitivo, favorecem a apropriação dos conhecimentos es-
colares e a comunicação transversal.

Na experiência que vem realizando, Adriana afirma que o destaque


fica para a proposta de elaboração de um fanzine (publicação feita
com recortes, colagens e jornalismo instintivo). Segundo ela, essa pro-
dução a levou a aproximar-se ainda mais os seus alunos, entendendo
os interesses e universos pessoais deles.

111
A proposta exige uma maior aproximação com o grupo e, enquanto isso
ocorre, Adriana ouve relatos, dúvidas, críticas e o que os estudantes pen-
sam sobre cada assunto. “Isso me permite dialogar com o aluno, conhe-
cê-lo melhor. Aos poucos vou descobrindo que um adolescente, que se
sente incompreendido e à margem da sociedade, pode se tornar um su-
jeito que reconhece suas capacidades intelectuais, afetivas e cognitivas,
consciente de sua responsabilidade para consigo e com seus pares”.

Mas, segundo ela, para conseguir tais resultados o professor precisa es-
tar disposto a ser um aprendiz em tempo integral. “Não dá para repetir
velhas fórmulas. É preciso conhecer a linguagem e as expectativas dos
jovens para poder conquistá-los e deles conseguir o melhor”.

A receita tem dado certo. Orgulhosa, Adriana todos os anos vê seus alunos
sendo premiados em feiras de redação, concursos de frases e de poesias.

A prática
O fanzine “Quem Somos”, nome escolhido pelos alunos, mostra o
mundo da adolescência de forma divertida e em linguagem ade-
quada à percepção do grupo.

Publicação semanal coletiva de baixo custo, o fanzine favorece a


integração e motiva os alunos à prática de leitura e pesquisa.

Seu conteúdo reflete o universo adolescente, com seus questiona-


mentos e certezas, seus gostos musicais e literários, além de publi-
car depoimentos sobre o cotidiano e ainda um apanhado retrospec-
tivo sobre o que ocorreu na semana anterior.

A publicação também prevê a edição de reportagem relacionada à


disciplina de História Mundial, com comentários dos jovens sobre
aquilo que entenderam, suas pesquisas e considerações.

112 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


Ler é chique

Um resultado social do projeto com jornal é a va-


lorização dos alunos, pois muitos deles não têm
nenhuma outra condição de acesso ao meio de co-
municação.

Por ser um veículo que precisa ser comprado, os


alunos “acham chique” ler jornal, e isso aumenta
sua autoestima. Além disso, como têm oportuni-
dade de ler mais aprofundadamente sobre deter-
minadas notícias, passam a levar as informações “Eu achei divertido
para casa, ampliando e qualificando o diálogo com trabalhar com jornal
a família. “Estar ‘por dentro’ os faz sentir importan- porque, além de pensar
tes e aptos a dialogar com outras pessoas”. e montar matérias, nos
divertimos e aprende-
A prática de ler ajuda principalmente a vencer o mos coisas que nós não
obstáculo da leitura superficial ou ineficaz, na qual sabíamos. As coisas mais
o aluno decodifica as letras e frases, mas não com- legais foram: montar
preende o conteúdo daquilo que está lendo. um jornal nosso, traba-
lhar e pesquisar sobre a
Segundo Adriana, o jornal facilita a transposição vida do adolescente, ler
dessa dificuldade e favorece a aquisição de com- sobre política e desenhar
petências importantes, como escrever melhor, usar um logotipo para nosso
o dicionário como fonte de pesquisa, para não re- fanzine”.
petir palavras, e para a substituição de expressões Allan Bento Ribeiro,
informais, típicas dos jovens, por frases elaboradas. 12 anos
É gratificante ver os alunos passarem a trocar ex-
pressões como “Eu acho que...” por ‘Eu penso que...’.
‘Percebe-se’, ‘Entende-se’ e expressões como ‘Tipo
assim’ por ‘Semelhante a’”.

113
Quebra de paradigmas

Promover atividades que levem o estudante a pesquisar, questionar


e a criticar pressupostos e paradigmas é, segundo Adriana, o grande
segredo do sucesso de suas aulas com adolescentes, pois nessa faixa
etária todos querem ser ouvidos e desafiar modelos preestabelecidos.

“Jovem normalmente fala pouco, escreve pouco, mas pensa muito.


Nesse universo, o fanzine surge como uma válvula de escape. É ado-
lescente escrevendo para adolescente, sem medo de expressar-se. E
isso tem impacto na atitude de todos”.

Segundo a professora, alunos que tinham medo de falar porque acha-


vam que não tinham assunto mudaram o comportamento a partir
do fanzine. “Agora eles dialogam e se posicionam de outra maneira,
até porque precisam definir e pesquisar sobre o que vai ser publicado
no jornal”. Outra evolução percebida é a qualidade textual dos alu-
nos, que ficam mais exigentes e percebem quando falta pontuação,
vírgulas e existe repetição de termos. Enfim, demonstram empenho
constante em fazer um bom jornal e em transpor para o papel o que
entenderam sobre o assunto a fim de serem compreendidos pelos
leitores.

114 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


De olho no futuro

Adriana não descuida da aprendizagem formal


e de exigir o uso da linguagem padrão. “Escla-
reço que embora o que mais eles usem sejam a
internet e o telefone celular – onde as palavras e
expressões podem ser cortadas – esses meios não
são referências no uso da linguagem formal. E se
quiserem vencer na vida, vão precisar continuar
estudando e aprender a gostar de ler, expressar-
se e escrever corretamente. Falo sempre que a lin-
guagem padrão é muito importante em situações
‘‘Trabalhar com jornal
como uma entrevista de emprego, no vestibular
é fantástico, você cria
ou concursos”.
a sua própria matéria,
com as suas palavras.
Para estimular o aprendizado da linguagem pa-
Conhece novas coisas e
drão, Adriana promove o acesso não só à leitura
a linguagem melhora
de jornal como também a dos livros. O interesse
muito. Utilizar o jornal
aumentou tanto que a classe ganhou uma mini-
foi uma experiência
biblioteca. “Quando terminamos uma atividade, é
muito boa no meu
comum o aluno pedir um livro para ler e ainda tem
desempenho escolar
aqueles que passam o recreio lendo algum livro”.
também. Com uma
conversa mais culta
A leitura literária alimenta o círculo virtuoso de
eu posso conseguir um
relacionamento entre a professora e os alunos.
futuro melhor, uma
“Muitos tidos como machistas pedem para ler li-
carreira melhor’’.
vros de poesia. Eles me surpreendem o tempo todo
Jéssica Teleginski de
e isso é muito gratificante”.
Oliveira, 12 anos

115
Ética e cidadania

Melhor entendimento sobre cidadania, ética, trabalho em equipe e


respeito à opinião alheia também são resultados importantes regis-
trado pelo projeto fanzine.

De acordo com a professora Adriana, trabalhar temas como direitos e


deveres, juízo de valor ou limites usando como referência os conteú-
dos a serem publicados no jornal faz com que os alunos exercitem a
democracia e construam referências importantes. Afinal, nem tudo o
que os alunos pensam ou querem pode ser publicado – até por uma
questão de espaço físico do jornal.

A discussão dos temas não está explícita no desenho nem faz parte
dos resultados tangíveis do projeto, mas vai aparecendo aos poucos,
ao longo do processo, porque os alunos passam a exigir mais de si
mesmos antes de emitir opiniões, debater e defender ideias sobre as-
suntos que pretendem publicar.

Um bom exemplo ocorreu durante a produção do fanzine sobre moda


e comportamento. A edição exigiu que todos pesquisassem acerca
de estilos, moda e tribos que se identificam por determinado tipo de
roupa. A partir daí, os alunos conseguiram respeitar a diversidade e
reduzir seus preconceitos.

116 Capítulo 5 - Leitura Significativa e Contextualizada


Professora Adriana e alunos decidem juntos os temas que farão parte do fanzine.

Produção dos fanzines melhorou a qualidade textual dos alunos e do diálogo em sala
de aula.

117
Capítulo 6
Práticas de Leitura na
Comunicação e na Educação
Não há como interpretar uma informação ignorando a forma como a
mesma é percebida pelo indivíduo receptor, suas referências e relações
sociais. Toda comunicação – especialmente aquela intermediada por
um veículo, seja jornal, rádio, televisão ou internet – pressupõe um
receptor capaz de desvendar mensagens, promover elaborações cultu-
rais e chegar à construção de relações entre a informação à que tem
acesso e o seu próprio universo social.

Neste capítulo, o tema é tratado pela doutoranda em Educação Mar-


lei Gomes da Silva Malinoski, professora da Secretaria Estadual de
Educação do Paraná e da Universidade Tuiuti do Paraná. Marlei, que
também responde pela Coordenadoria de Integração das Licenciaturas
da Universidade Tuiuti do Paraná, trabalha com disciplinas e conteú-
dos que envolvem leitura, letramento, paradigmas, ensino de língua e
linguagem, práticas pedagógicas e formação docente.

Em sua abordagem na escola, o tema Práticas de Leitura na Comuni-


cação e na Educação é visto sob a ótica da professora e coordenadora
Mary Lucia Medeiros Baldança, da Unidade de Educação Integral Dr.
Osvaldo Cruz , em Curitiba.

Produzir um jornal gigante foi uma das propostas de Mary para levar
os alunos do contraturno a analisarem e refletirem sobre as informa-
ções publicadas no jornal. Segundo a professora, ao deixar os alunos
livres para folhear, ler, manusear e discutir entre eles o que será pu-
blicado no Jornal Gigante, cria-se um espaço efetivo para trabalhar as
referências e relações sociais, individuais e coletivas, porque todos são
estimulados a expor o que entendem e o que esperam de cada um dos
assuntos em pauta.

119
Novas referências
para o saber
Marlei Gomes da Silva Malinoski

Os discursos “oficiais” escolares reforçam a ideia de que ler é uma


questão de hábito ou gosto, adquirido por vontade individual, inde-
pendentemente dos vínculos sociais estabelecidos pelo sujeito. O que
demonstra uma interpretação equivocada, pois não há como inter-
pretar uma informação ignorando a forma como essa se processa no
indivíduo e nas suas relações com a cultura.

São as práticas de leitura que favorecerão a comunicação e a apro-


priação de recursos cada vez maiores de compreensão e reelaboração
de textos, mas não somente a prática de ler o escrito e sim expor-se
a diversas formas de leituras, práticas reais e delas extrair contextos
relacionados à sua forma de comunicação social.

Se pensarmos na leitura como um fenômeno social – por sua vez é


representado de forma simbólica – compreenderemos que o hábito de
leitura não existe e sim o habitus do leitor. Esta não é uma característi-
ca inata do indivíduo, é uma determinação de trocas significativas de
cultura entre pares sociais que, naturalmente, determinarão a percep-
ção, aceitação ou refutação do lido.

Para melhor compreender a possibilidade de se realizar trocas significa-


tivas de cultura no ato de ler, exemplificaremos com a leitura do jornal,
não pressupondo apenas o caráter informacional do mesmo e sim abor-
dando a potencialidade de troca cultural encontrada em suas páginas.

120 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


No jornal observamos que a leitura se torna um processo de apropria-
ção do conhecimento, pois obedece às mesmas leis de outras práticas
culturais, ou seja, organização, seleção, critério, associação cultural e
informação.

A organização parte do conhecimento do indivíduo sobre a estrutura


apresentada no texto lido e assim dela extrair a informação. Assim,
comunicação de um conto e de uma crônica, ou de uma notícia e de
um classificado se dará quanto melhor o indivíduo puder interagir
com sua estrutura e assim perceber a organização da informação
comunicada.

A seleção está diretamente relacionada à organização, uma vez conhe-


cendo a organização do veículo comunicativo o leitor poderá buscar a
informação desejada e comprovar ou refutar ideias, relacionando-as
com outras informações selecionadas.

A capacidade de relacionar informações confere ao leitor à possibili-


dade de estabelecer um critério de confiabilidade da informação, uma
vez que poderá checar a articulação da informação selecionada.

Mas será a capacidade de associar a informação com o universo cul-


tural do leitor, que possibilitará a efetivação da comunicação entre a
intenção do produtor da informação, o lido e o leitor. Pois não há como
interpretar uma informação, ignorando a forma como essa se proces-
sa no indivíduo e nas suas relações sociais. O veículo de comunicação
jornal organiza práticas sociais de elaborações culturais, que partem
desde a seleção por cadernos, sessão e notícia até a construção de re-
lações da informação com o universo social do leitor. Ler é uma forma
de pensar o mundo com base nas nossas escolhas e descortinada pela
nossa forma de atribuir cultura e informação ao caráter comunicativa
da mensagem.

121
O caráter comunicativo da mensagem sugere, assim, um repensar so-
bre a leitura. Enfatizando um olhar sobre a cultura presente no ato de
ler, será que o dito fracasso escolar nas práticas de leitura e escrita não
estaria justamente nas formas de representação do sentido da leitura
dado pelas práticas educacionais e a didatização do lido?

Ao se considerar que a ideia principal, o resumo e a síntese se constro-


em no processo da leitura e são produtos da interação entre os pro-
pósitos que causam, o conhecimento prévio do leitor e a informação
aportada pelo texto, consideraremos que a leitura se realiza, então, na
convergência do texto com o leitor. O discurso escrito tem, forçosa-
mente, um caráter virtual e político, pois não pode ser reduzido nem
à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor.
Político, sim, pois o ato de ler só se efetiva quando houver um encon-
tro entre leitor e texto. E as ideologias que os perpassam na busca do
significado, que se edificam nas formas simbólicas estruturadas pelas
sociedades em tempos e contextos delineados possibilitarão o ler e o
compreender.

Ler e compreender são palavras que podem se relacionar a várias acep-


ções semânticas, diretamente relacionadas ao pensamento daquele
que as produzir. São palavras, e, antes mesmo de defini-las, torna-se
importante ressaltar sua implicação como tal. A forma como se pensa
uma palavra é que constrói o seu significado. Não é simplesmente o
conteúdo de uma palavra que se altera diante de um novo significado,
mas o modo pelo qual a realidade é generalizada e refletida em uma
palavra.

Assim, as implicações do ato de ler, para uma sociedade, estão relacio-


nadas às implicações políticas e à compreensão crítica do ato, que não
se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem
escrita, mas que se antecipam e se alongam na inteligência do mun-
do. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, como já enun-

122 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


ciado por Paulo Freire: ˝(...) a leitura crítica da realidade, dando-se,
num processo de alfabetização ou não e associada, sobretudo a certas
práticas, claramente políticas de mobilização e de organização, pode
constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação
contra-hegemônica˝. (FREIRE, 2003).

Defini-se, então, uma perspectiva interativa para o ensino da leitura,


pautada nas experiências prévias do leitor sobre o lido, que envolve-
rão sua compreensão semântica da palavra, abarcando significação,
decodificação e estruturas textuais.

Nossas experiências, como leitores, antecipam nossa leitura, visto que


conforme a tipologia textual, nossa familiaridade com o texto e o re-
conhecimento do universo discursivo é que estabeleceremos relações
leitoras maiores. São nossas familiaridades com textos diversos em
múltiplos gêneros, que quanto maiores mais ampliarão nossas repre-
sentações sobre o lido.

Ler passa a ser o processo pelo qual se compreende a língua escrita.


Pois envolve a decodificação – quanto mais significativa e familiariza-
da, melhor; a inferência – determinada pela proximidade conceitual
entre o texto e o leitor e as suposições promovidas por ambas a respei-
to do texto. Assim, o leitor quanto mais familiarizado com o texto será
capaz de prever fatos ou até mesmo impor inferências na ordem que
se dará a estrutura textual.

Para Bourdieu, a leitura pode ser substituída por uma série de palavras
que designa uma espécie de consumo cultural ou pré-saberes. São es-
ses pré-saberes que auxiliam o processo de letramento do indivíduo.

O autor vê a linguagem de modo privilegiado na comunicação da so-


ciedade. Os grupos sociais se comunicam pela parte comum de seus
códigos que será mais aclarada quanto mais relações possam fazer.

123
Ou seja, quanto mais suas agências de letramento se entrecruzem em
um momento de significação e intervenção.

Os pré-saberes são importantes porque, conforme Bakhtin (2001) não


se pode observar apenas a natureza do enunciado linguístico, uma
vez que observar-se-ia mero formalismo e não o vínculo forte entre
língua e vida. Existe a necessidade de interação com o verbal, e a com-
preensão leitora deve privilegiar a natureza do ato leitor.

A palavra torna-se, segundo Iser (1996) e Bakhtin (2000), o código co-


mum que assegura a recepção de uma determinada mensagem. Po-
rém, o código só constitui o texto quando se estabelece, em potencial
cognitivo, o sentido da obra. Então, o ato de ler se relaciona com a
consciência sobre o lido e a consciência estabelecida ao se escrever.
É o encontro de duas necessidades, a de conhecer e a de se registrar.
Há também o encontro ideológico, pois a inferência de uma palavra
dentro de uma mensagem depende da caracterização da mensagem
no contexto à qual pertence, em que inferir significa concluir um sig-
nificado pertinente a um conceito.

Com base em um ensino de leitura descendente, em que se privilegie


o universo cultural do aluno, Colomer e Camps (2002) sugerem algu-
mas condições para o ensino produtivo e significativo.

Primeiro é fundamental partir do que os alunos sabem e ter consciência


de que a escolarização permite ampliar experiências sobre o mundo e
não reduzi-las. Lembrar que a escrita é uma modalidade de comuni-
cação (abstrata) que deve ser interpretada como tal, não substitui a
modalidade oral, mas se agrega a conhecimentos prévios. Dessa for-
ma, não é o texto que tem sentido e sim as inferências do leitor sobre o
texto. Não é o que o texto quis dizer, pois esse é mudo, e sim é o que o
leitor depreende de informação, relacionada ao seu contexto, do texto.
É o que o leitor tem a dizer sobre o texto.

124 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


Em um segundo momento, deve-se favorecer a comunicação multir-
referencial. A linguagem escrita deve ser descortinada em sua poten-
cialidade simbólica. Por isso as produções devem apresentar um uni-
verso múltiplo de possibilidades, sejam reais ou imaginativas, ideários
construídos apenas pela possibilidade da linguagem. Lembrando que
a linguagem é uma construção social e sua interpretação comunicati-
va dependerá das interpretações do leitor.

No terceiro momento, familiarizar os alunos com a escrita e criar uma


relação positiva com o escrito: não representamos a escrita reduzida
a um universo apenas de gênero ou tipo. Não lemos um texto jorna-
lístico da mesma forma que lemos um romance e nem como lemos
um poema. A leitura de cada um exige uma estratégia e requer do
leitor um número de estruturas e processos diferenciados. A criança
deve estabelecer uma relação afetiva com o texto escrito e de forma
a reconhecê-lo em diversos gêneros e veículos. Além de reconhecê-lo,
deve experimentá-lo em situações de publicação (compreender a pa-
lavra publicação como tornar público – social – integrado a práticas
de comunicação).

Em um quarto momento fomentar a consciência metalinguística, não


esquecendo que o ato de ler se trata de um processo, que inicia na
compreensão do código e suas regras e estruturas, então ler é com-
preender regras e estruturas, que também são acordos sociais para
estabelecer a melhor forma de comunicabilidade. A criança deve reco-
nhecer as micro e as macroestruturas de um texto, ou seja, da sílaba à
frase, e como essa se contextualiza e significa em um universo estru-
turado de texto.

O quinto momento está em utilizar textos concebidos para a sua leitu-


ra e não “montados” para aferir capacidade de decodificação e locali-
zação de ideias desconexas. Lembrar que ler é uma prática social, por
isso não devemos simular ambientes ou veículos de leitura. A leitura

125
se distancia de práticas orais à medida que se estrutura como uma for-
ma simbólica e complexa. Adaptar textos é restringir a potencialidade
leitora do indivíduo.

No sexto momento oferecer experiências com textos e leituras diver-


sos, independentes da idade e sim relacionados à maturidade do leitor.
Oficialmente aprendemos a ler da mesma maneira, porém o ato de ler
requer conhecimentos e práticas linguísticas diversos. Não lemos um
romance da mesma forma que um poema, ou da mesma forma que
buscamos uma palavra em um dicionário, como já foi dito, mas nos-
sas experiências em simples ações como essas dependerão do quanto
essas práticas se relacionaram em nosso cotidiano.

O sétimo momento está mais para um alerta, pois devemos compre-


ender que ler não significa oralizar e sim interagir e agir. A leitura não
é um ato isolado ou uma técnica de avaliação qualitativa ou quanti-
tativa da aprendizagem do ler. Ler pode e deve ser uma forma de apro-
priar-se de um determinado conhecimento, que não significa oralizá-
lo literalmente. Mas agir sobre ele em um contexto de comunicação,
que pode ser até a compreensão de outras leituras. Por isso, a leitura
em voz alta deve ir além da capacidade decodificadora do leitor; deve
expor sua compreensão leitora, que será percebida na interação desse
com o texto, ao se presenciar as pontuações expressivas como elemen-
to de compreensão e indagação sobre o lido.

Assim, a escolarização deve fornecer aos alunos um âmbito de alfa-


betização para o letramento configurado por contextos significativos
de aprendizagem, funcionais e relevantes, que ofereçam experiências
organizadas que fundamentem a vivência da leitura.

A informação, trazida pela leitura, deve estar relacionada à contex-


tualização, o que requer uma seletividade do leitor, que está baseada
na qualidade e na utilidade do material apresentado como elemento

126 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


passível de comunicabilidade. O ensino deve inserir elementos novos à
forma de linguagem que o aluno já possui, acomodando e expandindo
seu conhecimento a respeito da sua forma de percepção das variantes
linguísticas e discursivas apresentadas pelo texto.

O ensino da leitura e da compreensão busca desenvolver a autonomia


do sujeito, para que ele seja capaz de construir conceitos pertinentes
ao texto lido e assim tornar-se capaz de elaborar a crítica. Dentro de
uma possibilidade abrangente do diálogo, capaz de inferir à mensa-
gem conhecimento, habilidades, valores e atitudes diante da mensa-
gem decodificada e do contexto da linguagem, possibilitando a efeti-
vação da comunicação entre os sujeitos e a emancipação da cultura e
do compreender o escrito.

Ao compreender o escrito o homem consegue ordenar sua história,


que se torna linear e cronológica. O conhecimento passa a poder ser
sistematizado, racionalizado. O ato de compreender o lido passa a ser
uma tecnologia intelectual que teria um papel fundamental no esta-
belecimento de novas referências para a constituição do saber.

A leitura na escola deve ser percebida como um meio de realização da


aprendizagem e não como um objeto do conhecimento. O texto, e nele
o literário, passa a ser uma forma de ser do homem no mundo, um
posicionamento leitor. Retomando o termo utilizado por Jouve (2002),
a relação do leitor com o texto não é um epifenômeno. Não há mágica
ou divindade, o que existe é um trabalho de significação.

Ler está relacionado às inferências que o texto produz para e no leitor;


identificar é apenas um dos processos da leitura, que não abrange
o seu todo, caracteriza-se como ferramenta inicial, que sozinha, des-
vinculada do contexto social e das inferências produzidas pelo leitor,
torna-se um ato vazio.

127
Para saber mais
BAGNO, Marcos. Língua Materna: Letramento, variação e ensino/
Marcos Bagno, Gilles Gagné, Michael Stubbs. São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2002.

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem.


São Paulo: HUCITEC, 2002.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ª ed. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2001.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do


romance. 5.ª ed. São Paulo: Annablume, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas: introdução


organização e seleção Sergio Miceli. 5.ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2007.

BOURDIEU, Pierre; PAIRE, Alain; CHARTIER, Roger. Práticas da leitura.


2.ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

BRITTO, Luiz Percival Leme. A Sombra do Caos: Ensino de Língua X


Tradição Gramatical. Campinas. Mercado das Letras. Associação de
Leitura do Brasil. Coleção Leituras no Brasil. 2004.

COLOMER, Teresa; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreen-


der. Porto Alegre: Artmed, 2002.

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se


completam. São Paulo. Cortez, 2003 a.

128 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


GERALDI, João Wanderley (org.). O Texto na Sala de Aula. São Paulo:
Ática, 2002.

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.

ISER, Wolfgang. O ato da Leitura: uma teoria do efeito estético.


Trad. Joannes Kretschmer – São Paulo: Ed. 34, 1996.

JOUVE, Vincente. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.

KLEIMAN, Ângela B. (org.). Os Significados do Letramento. São Paulo:


Mercado das Letras, 2001.

MAGNANI, Maria do Rosário. Leitura, Literatura e Escola. São Paulo:


Martins Fontes, 1989.

MESERANI, S. O intertexto Escolar: sobre leitura, aula e redação.


São Paulo: Cortez, 1998.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ª ed. Porto Alegre: Artmed,


1998.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo:


Martins Fontes, 2000.

129
Por um mundo
menos desigual
Professora: Mary Lucia Medeiros
Baldança
Instituição: Unidade de Educação
Integral Dr. Osvaldo Cruz
Cidade: Curitiba
“Num tempo em que a esperança parece cada
vez mais escassa, é fundamental reavivar nossa
confiança em dias melhores”.
Gabriel Chalita

Formar cidadãos críticos e contribuir para um mundo menos desigual


é o desafio que Mary Lucia Medeiros Baldança criou para si mesma e,
embora seja gigante, ela garante que registra resultados efetivos.

Professora e coordenadora da Unidade de Educação Integral Contratur-


no Dr. Osvaldo Cruz, em Curitiba, Mary Lucia explica e justifica o desafio
no perfil de seus alunos. Oriundos, em sua grande maioria, de famílias
de baixa renda e escolaridade, que residem em áreas de ocupação irre-
gular e têm renda proveniente do trabalho na construção civil ou na
reciclagem de materiais, as crianças apresentam dificuldade de apren-
dizagem e são acompanhadas por programas sociais do governo.

Consciente da necessidade de oferecer apoio pedagógico e social aos


alunos da sua turma, desde 2009 a professora Mary Lucia vem incor-
porando o jornal no planejamento de suas aulas, mas a atividade não
é novidade na escola, que recebe e trabalha com o jornal desde 2003.

Uma das iniciativas que mais deram resultado na classe foi a produ-
ção de um jornal gigante, que levou os alunos a apresentarem uma
grande evolução quanto ao apreço pela leitura, ampliação do vocabu-
lário, melhora na produção escrita, interpretação de textos e, é claro,
comportamento cidadão. “Eles aprendem a posicionar-se, exercitam
a reflexão, problematizam as questões da sociedade e demonstram
muito interesse em melhorar de vida. E sabem que para isso terão de
continuar estudando”, diz a orgulhosa professora.

Tantos avanços transformaram Mary Lucia numa apaixonada por jor-


nal. Atualmente na função de coordenadora, ela mobiliza e organiza

131
com os professores o planejamento das aulas trabalhando com o jor-
nal. “As mídias podem e devem ser aproveitadas no processo educati-
vo, desde que na sua finalidade esteja o compromisso com a forma-
ção crítica do sujeito com um mundo menos desigual.Necessitamos
quebrar paradigmas e valores cristalizados que enrijecem a prática
educativa. É preciso abrir a sala de aula para o mundo, onde o alu-
no enriqueça sua experiência de vida, aprenda a ser responsável por
suas palavras, em relação a si e ao meio em que está circunscrito e ao
mundo”.

A prática

O Jornal Gigante é uma atividade de envolvimento. Exige um efetivo


trabalho em equipe, baseado no respeito às opiniões. Tudo começa
com a apresentação detalhada do jornal e explicação da sua função
social. O momento seguinte é de familiarização com as editorias. A
professora deixa os alunos livres para folhear, ler, manusear e dis-
cutir entre eles.

Na sequência, os alunos selecionam as matérias que mais chama-


ram a atenção, registram o dia, recortam e começam a formar o
Jornal Gigante, que segue a proposta do jornal convencional. Chega,
enfim, o momento da apresentação. Todas as equipes apresentam
seus jornais gigantes, explicando e expondo suas opiniões sobre os
textos, notícias, fatos ou fotos que selecionaram.

132 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


Avanço no Ideb

O resultado do trabalho de educação social de-


senvolvido por Mary Lucia e outros professores
tem influenciado o comportamento e mudado a
realidade do Contraturno Dr. Osvaldo Cruz. De um
quadro de grande rotatividade de alunos registra-
do em anos anteriores, a escola chegou a 2010 co-
memorando um índice de evasão menor que 1%.

Paralelamente, a escola também registrou um


avanço no desempenho registrado pela pesquisa “As aulas com o jornal
Ideb – Índice de Desenvolvimento da Educação Bá- são divertidas e apren-
sica, saltando da nota 3,8 em 2005 para 5,1 em demos bastante. Gosto
2007, e 5,4 em 2009. Os professores garantem que de ler notícias da
o trabalho realizado com o jornal, que vem acon- área de Ciências e fico
tecendo desde 2003 na escola, tem colaborado preocupada em saber
para esses avanços. que o ar está poluído e
que as florestas estão
“O ato de ler e escrever ganha significado quando pegando fogo”.
Mayane Iris Soares
aproximamos a informação da realidade dos anos.
Alves, 10 anos
A partir de atividades como redigir uma notícia,
criar um anúncio, fazer uma pesquisa na heme-
roteca, confeccionar um jornal gigante e analisar
imagens e fatos, os alunos são estimulados a emitir
opiniões, perceber novas possibilidades e entender
a importância do conhecimento. No trabalho com o
jornal estimulamos as competências de ler, escrever
e interpretar o mundo. E o melhor, é que tudo isso
pode ser feito concomitantemente, sem perdermos
o horizonte dos conteúdos disciplinares”.

133
Abrir a sala para o mundo

Educar para cidadania é contribuir para a construção de um mundo


melhor. E a professora Mary Lucia destaca os três principais impac-
tos percebidos ao longo do desenvolvimento do projeto com jornal:
maior autonomia, maior criticidade e melhoria na linguagem oral e
escrita. A autonomia das crianças, explica ela, é adquirida durante as
atividades, que normalmente exigem decisão sobre o quê e quando
ler. Já a criticidade vai sendo construída aos poucos, à medida que
a criança se familiariza com a leitura e discute com os colegas. “Aos
poucos eles vão descobrindo a função social do jornal, que é contribuir
efetivamente para a formação de sujeitos que reflitam e proponham
encaminhamentos para as problemáticas locais e do mundo. Atuando
responsavelmente na realidade em que vive”.

Já os impactos sobre a linguagem oral e escrita aparecem como conse-


quência direta da leitura. “Tanto a hemeroteca quanto o Jornal Gigante
e outras atividades com o jornal que realizamos podem e devem ser
repetidos, para que os alunos possam avançar em todos os aspectos e
objetivos do projeto: autonomia, criticidade e crescimento na lingua-
gem oral e escrita”.

134 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


Uma nova realidade

A professora lembra que, assim como o jornal,


outros meios de comunicação atendem hoje à
necessidade de criar novas formas de organizar e
transmitir o conhecimento. Afinal, lembra ela, os
alunos diariamente estão sendo impactados pelos
meios de comunicação e tecnologias. “Eles, por
exemplo, vivem recebendo e enviando textos pelo
celular. O celular os conecta com o mundo. Diante
de coisas como essas, não dá para dar aulas exa-
tamente como antes da ‘revolução tecnológica’”. “É bom observar
e saber o que está
Mary Lucia acredita que os professores que estão acontecendo no
hoje exercendo o magistério precisam ficar atentos país e no planeta. O
à evolução do modelo, comportamentos e estrutu- jornal ajuda a gente a
ra social, porque só assim vão garantir a efetivida- entender melhor o que
de do seu trabalho. “E isso exige leitura, aprender aprende nas aulas. Fo-
todo o dia, investir na formação continuada, e ter tos, tirinhas e charges
humildade para avaliar seu trabalho e mudar sem- também trazem muita
informação”.
pre que necessário”.
Matheus Felipe de
Góis da Silva, 10 anos
“Em todas as profissões, as pessoas são perma-
nentemente exigidas em aperfeiçoamento e quali-
ficação. Por que no magistério seria diferente? Nós,
professores precisamos agir assim se estivermos
efetivamente comprometidos com o nosso papel
social e nos sentimos responsáveis pela formação
dos pequenos cidadãos”.

135
Via de mão dupla

Em sala de aula, são inúmeras as práticas que Mary Lucia desenvolve


usando o jornal. Todas elas voltadas à promoção da leitura significa-
tiva e contextualizada. “Esse tipo de proposta leva os alunos a se per-
ceberem no mundo e terem uma melhor compreensão da realidade. É
um exercício que mobiliza tanto quem ensina quanto quem aprende.
Ou seja, o professor precisa estar disposto ao debate, ver suas posições
contestadas e a não se posicionar como ‘dono da verdade’”.

Ela lembra que o destino didático do jornal aproxima a escola do mun-


do, exatamente porque amplia os níveis de compreensão, oferece uma
variedade de informações e contribui efetivamente para que o aluno
perceba e desempenhe com criticidade um conjunto de atividades as-
sociadas ao seu papel social.

Por tudo isso, Mary Lucia não acreditar em fórmulas prontas. “Deve-
mos sempre diversificar, surpreender e arriscar. Nem sempre dá certo,
mas é somente com os erros e acertos que o professor vai aprimorando
e alimentando seu trabalho”.

136 Capítulo 6 - Práticas de Leitura na Comunicação e na Educação


Atividades com o jornal resultam na ampliação do vocabulário e melhoram a produção
escrita.

Jornal Gigante tornou-se uma atividade de envolvimento e trabalho em equipe baseada


no respeito às opiniões.

137
Capítulo 7
Leituras, Literaturas e Escola
Este capítulo, que é dedicado à análise comparativa entre o texto ver-
bal e o texto literário, parte do pressuposto de que todo o texto é uma
ocorrência linguística, escrita ou falada, de qualquer extensão, dotada
de unidade sociocomunicativa, semântica e formal. Ou seja, há uma
unidade de linguagem em uso e essa unidade precisa ser compreendi-
da e trabalhada no ambiente escolar.

O ensaio sobre o tema em questão é de responsabilidade de Catia


Toledo Mendonça, doutora em Estudos Literários, com tese defendi-
da sobre a importância da leitura da série “Vagalume” no processo
de formação do leitor. Professora adjunta na PUCPR onde coordena o
curso de pós-graduação lato sensu em Língua Portuguesa e Literatura
Infantil nas séries iniciais, Catia analisa a leitura de texto verbal em
sala de aula, em particular a leitura do texto literário, e faz ainda uma
reflexão sobre a necessidade de a escola trabalhar textos diversifica-
dos. Para Catia, o texto literário não está em sala de aula do modo
como deveria nem com a constância necessária.

A prática que exemplifica a análise coube a Expedita Estevão da Sil-


va, da Escola Municipal Augusto Staben, de Campina Grande do Sul.
Com experiência de vinte anos no magistério, a professora revela o es-
forço de diminuir as diferenças no processo de democratização da in-
formação e na promoção da leitura em escolas públicas. Expedita, que
já atuou como professora, coordenadora e supervisora, afirma que,
independentemente da função exercida, sempre procurou inovar. Com
isso ganhou a atenção dos alunos, a admiração de outros professores
e o agradecimento dos pais. Um trabalho reconhecido e premiado na
edição 2009 do Concurso Cultural Ler e Pensar.

139
Ler é atribuir
sentidos
Catia Toledo Mendonça

Ler é atribuir sentidos. Esse é o conceito de leitura com que se trabalha


hoje. É inegável a importância da leitura na formação do sujeito e, a
partir da ideia de que o sujeito se constrói no discurso do outro, difun-
dida por Bakthin, faz-se a proposta de revisão do exercício da leitura
na escola. Vê-se a necessidade de a escola fornecer aos alunos textos
em maior quantidade, de naturezas e linguagens diferentes. Dessa ne-
cessidade vem a consciência de se trabalhar a aquisição da leitura de
textos que exigem habilidades leitoras diferentes. Dependendo da lin-
guagem utilizada na produção do texto, serão necessárias habilidades
diferentes para que seja feita a leitura. Fala-se, então, em leitura de
múltiplas linguagens; assim, textos pictóricos, musicais e verbais já
convivem na escola brasileira.

Neste ensaio, no entanto, deseja-se discutir a leitura do texto verbal


em sala de aula; em particular, a leitura do texto literário, que, segun-
do a opinião desta autora, não está em sala de aula nem do modo
como deveria, nem com a constância necessária. Também será parte
da reflexão desenvolvida aqui o questionamento sobre a leitura do
texto paradidático em sala de aula, frequentemente confundido, pelos
professores, com o texto literário.

A seleção dos textos a serem lidos na escola brasileira depende, direta-


mente, dos conceitos de criança, de literatura infantil e de escola, que
se desenvolveram, principalmente, a partir do final do século XIX.

Naquela época, a criança era vista como um ser sem autonomia algu-
ma, como uma página em branco, que deveria ser controlada e pre-

140 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


enchida pelo adulto. Nesse sentido, o papel da escola era selecionar
os conteúdos a serem assimilados pelos alunos, que obedeceriam às
determinações dos adultos. Os textos escritos para crianças eram, en-
tão, suportes nos quais a ideologia da época era claramente difundi-
da. Tem-se, portanto, a legitimidade de textos, por exemplo, de Olavo
Bilac, como A Pátria, em que o poema, impecável quanto à forma, é
utilizado para ensinar às crianças as noções de patriotismo, trabalho
e progresso, ideologia obviamente positivista e que ditou os caminhos
da Literatura e da Escola brasileiras no século XIX, além de, claro, estar
presente nos dizeres de nossa bandeira: Ordem e Progresso! A obra
literária destinada a crianças, a exemplo dos critérios antes utilizados
pela crítica literária, principalmente na pessoa de Sílvio Romero, visa
à construção da identidade nacional e, por isso, tinha em seu aspecto
pedagógico um critério determinante da qualidade literária.

A função pedagógica que caracterizava as obras produzidas nesse pe-


ríodo permaneceu presente na maioria das obras escritas para crian-
ças no Brasil, na primeira metade do século XX, e foi marcante, inclu-
sive, na obra lobateana. Monteiro Lobato, o grande nome da literatura
infantil brasileira, tinha por meta tornar a escola brasileira um lugar
mais agradável para a infância. Adepto da Escola Nova, tendência que
foi implantada no país nas primeiras décadas do século XX, Lobato
conjuga fantasia e conteúdo programático em várias de suas obras,
como Emília no país da gramática ou Aritmética da Emília, livros em
que os netos de Dona Benta, o Visconde de Sabugosa, Emília e Quin-
dim aprendem brincando os conceitos que deveriam ser passados pe-
los professores, na escola, de forma convencional. A grande diferença
dos textos lobateanos para as outras obras da época é o compromisso
do autor com uma escola em que o conhecimento se alie ao prazer, em
que a criança seja vista como um ser capaz de gerar conhecimento e
o professor, um agente desse processo. Essa teoria pode ser verificada
facilmente na obra de Lobato, pois as crianças participam das con-
versas, questionam, acrescentam ao conhecimento do adulto – seja

141
ele Dona Benta ou Tia Nastácia – os seus próprios saberes. Ou seja: a
criança não é mais um ser em branco, que a escola e a literatura, como
agentes ideológicos, devem preencher.

Na década de setenta do século XX, com a difusão das ideias piage-


teanas sobre a criança e com a promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases 5.692, que torna obrigatória a leitura de autores nacionais nas
escolas, acontece o chamado “boom” da literatura infanto-juvenil bra-
sileira. Com o engajamento de novos autores, que não se colocam a
serviço da escola, a literatura infantil começa a ser vista como um
texto autônomo, o que pode ser percebido com as novas tendências
textuais registradas então. Edmir Perroti, em sua obra O texto sedutor
na literatura infantil, de 1982, assinala a presença do discurso estético
ao lado do utilitário, usado até então na produção da literatura infan-
til. Nomes como Ligya Bojunga Nunes – ganhadora do Prêmio Hans
Cristhian Andersen, o Nobel da literatura infantil – Marina Colasanti,
Ana Maria Machado e Bartolomeu Campos de Queirós são apontados
como autores que privilegiam o discurso estético, apesar das exigên-
cias da escola, e caminham na contramão da literatura de mercado.

Nesse sentido, as ligações entre pedagogia e literatura começam a ser


condenadas no texto de Literatura Infantil, que tem, então, como cri-
térios de literariedade os mesmos utilizados para a leitura do texto
literário adulto, a chamada literatura sem adjetivos. Desde então, a
visão literária em relação à seleção dos textos para leitura na Esco-
la tem se afastado bastante daquela que os professores formados no
curso de Pedagogia têm.

Essas divergências de formação se espelham no dia a dia das salas


de aula de nosso país, onde a leitura instrumental prevalece sobre
a literária, uma vez que a perspectiva pragmática da Pedagogia é a
que está na formação do professor que atua nas séries iniciais. Assim,
apesar dos esforços dos críticos de literatura infantil, temos, na escola

142 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


brasileira, no quesito leitura literária, um retorno à perspectiva do iní-
cio do século XX, quando um texto era julgado por sua capacidade de
ensinar, passar valores, ideologias.

Os critérios literários, como a forma a linguagem é utilizada, os des-


vios do lugar comum, a perspectiva da “arte da palavra” não são leva-
dos em conta quando da escolha dos textos e dos livros selecionados.
Por tudo isso nossos alunos não têm contato com o verdadeiro texto
literário, a não ser por meio de alguns fragmentos, que aparecem em
livros didáticos, geralmente desviados de sua condição literária para
servir de ponto de partida para o estudo gramatical. É o famoso texto
usado como pretexto, que não ensina nada, já que essa não é a natu-
reza do texto literário, e nem contribui para a formação do leitor, uma
vez que seus aspectos literários não são explorados e, portanto, não se
ensina a ler o texto literário através de fragmentos.

Sabe-se que cada tipo de texto exige habilidades diferentes em sua


leitura. Desse modo, é justo afirmar que o texto literário exige habili-
dades diferentes para sua leitura daquelas que exige, por exemplo, o
texto informativo ou pedagógico. A leitura desses textos – chamada
de instrumental porque serve como instrumento para alcançar algu-
ma coisa – exige o conhecimento do idioma, a capacidade de decifrar
o código, mas não exige, como o texto literário, o preenchimento de
tantos espaços, deixados pelo autor para que o leitor se torne coautor
de texto, como determina a Estética da Recepção.

O professor das séries iniciais deveria ser capaz de ensinar aos alunos
os caminhos para preencher essas lacunas, ensinar a estabelecer as
relações necessárias para a compreensão da leitura que está fazendo.
Nesse sentido, Vera Aguiar e Glória Bordini, na obra A formação do
leitor: alternativas metodológicas, enfatizam a importância de, no En-
sino Fundamental, criar-se um repertório de textos literários para os
alunos, que lhes permita selecionar, “catar” o significado de um novo
texto que se constrói no diálogo com o outro.

143
Na perspectiva do letramento literário, o papel do professor é o de
mediador de leitura. Ele deverá ser aquele que tomará a mão do leitor
e o guiará pelos bosques da ficção, como o leitor-modelo preconizado
por Umberto Eco. É necessário que o professor letre seus alunos em
relação ao texto literário, que elabore um programa em que o processo
de formação do leitor seja a preocupação, e não apenas a leitura feita
no contexto geral do conteúdo da escola.

Embora não se deseje estipular faixas etárias limitadoras aos leitores,


sabe-se que mesmo grandes autores, como Bartolomeu Campos de
Queirós, que afirma não escrever necessariamente para criança, têm
textos de complexidades diferentes. Então, não se pode considerar que
o leitor de Cavaleiros das sete luas seja o mesmo de O Piolho, ambos de
Queirós. No primeiro texto, elaborado em refinada linguagem cono-
tativa, encontram-se referências aos diversos mitos, principalmente
da mitologia grega, como Gaia, Flora e Moira, e a constância da nu-
merologia, referente aos números sete, quatro e três, principalmente.
Um neoleitor infantil certamente não será capaz de perceber as entre-
linhas, não entenderá as metáforas constantes no texto. Nesse caso,
tem-se como leitor-modelo da obra de Bartolomeu Campos de Quei-
rós um leitor já em desenvolvimento, que tenha em seu repertório o
contato com o texto poético, com a mitologia e com a linguagem figu-
rada. O mesmo não acontece com o texto O Piolho, em que se percebe a
concepção defendida por José Paulo Paes, de que “poesia é brincar com
as palavras” (PAES, 2007). Os jogos sonoros elaborados a partir da pa-
lavra piolho (olho, repolho, piolho) são apropriados a um leitor ainda
em início de formação, que não será chamado a fazer tantas relações
como aquelas necessárias para a leitura de Cavaleiro das sete luas.

Um professor que tenha o processo de formação do leitor em mente


ao elaborar seu planejamento conhecerá a necessidade de graduar as
dificuldades apresentadas nos textos de forma crescente, assim como
não pode perder de vista a possibilidade de colocar o aluno em conta-

144 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


to com textos mais diversos possíveis, e não apenas expô-lo ao texto
informativo.

José Paulo Paes chama esse crescer em dificuldades do texto literário de


teoria do degrau (PAES, 1990). Ou seja, o leitor deve permanecer sem-
pre subindo, vencendo novas dificuldades, galgando novos degraus.
Nesse sentido, é necessário, antes de tudo, que a escola não se renda
ao que chamo de “ditadura do gosto”. Ao se tentar “despertar o gosto
pela leitura”, são apresentados aos alunos textos facilitados, que não
exigem do leitor grande esforço. Esses textos, que são adequados para
as séries iniciais, se mantidos ao longo das séries, além de não desen-
volver novas habilidades leitoras, também não apresentam desafios
ao leitor que, cansado da mesmice, tende a desinteressar-se pela lei-
tura. Ao traçar etapas de um processo, o professor deve considerar a
variedade de gêneros, de tipos textuais, mas também deve considerar,
dentro de cada um, as dificuldades crescentes. Além disso, a incursão
por novas experiências estéticas permite que o leitor conheça novas
formas de dizer, conheça o texto rico em imagens e perceba as formas
como a literatura elabora a linguagem. Nesse sentido, a leitura literá-
ria se torna fundamental.

Além disso, se o letramento literário não garante que o leitor seja ca-
paz de ler qualquer outro tipo de texto, ele permite que o leitor desen-
volva a capacidade de estabelecer relações, de perceber o que está “por
baixo” da escrita. O texto literário permite que se estimule o leitor para
a percepção da metáfora do iceberg, ou seja, a maior parte do sentido
do texto está subentendido, não está na superfície e somente um leitor
que tenha aprendido a perceber esse fenômeno será capaz de preen-
cher as lacunas deixadas pelo autor, estabelecer relações e realizar o
texto em sua plenitude.

Além da preocupação com o processo de formação do leitor, a defesa


do texto literário em sala de aula cresce pela certeza dos benefícios

145
que sua leitura traz. Ao se ler um texto informativo, ou um paradi-
dático, as informações absorvidas serão consideradas no momento,
e não se transformarão, necessariamente, em conhecimento. Walter
Benjamim, em seu famoso texto, do início do século XX, O Narrador, já
apontava as diferenças entre conhecimento e informação, destacan-
do a permanência do primeiro em detrimento da transitoriedade do
segundo. A informação é importante no momento em que ela é no-
tícia, enquanto o conhecimento se perpetua, se agrega ao espírito do
indivíduo. A literatura oferece suportes e modelos para compreender e
representar a vida interior, os afetos, as ideias, os ideais, as projeções
fantásticas e também modelos para representarmos nosso passado, o
de nossa gente, o dos povos, da história, ou seja, a literatura favorece
o conhecimento.

Nos textos literários, encontra-se a representação do mundo, mas


não de forma didática. No bom texto literário, o leitor terá a opor-
tunidade de conhecer outras formas de viver, mas não será induzido
a mudar seus valores ou seu comportamento, como acontece, por
exemplo, nos textos de autoajuda. Muitos dos textos escritos para
crianças e que estão nas bibliotecas escolares poderiam ser enqua-
drados na categoria de autoajuda, como por exemplo Meu irmãozi-
nho me atrapalha, de Ruth Rocha, em que a autora, utilizando uma
linguagem coloquial, às vezes até simplificada demais, procura re-
produzir a situação vivida por uma criança que ganha um irmão.
Observe-se o trecho a seguir:

˝Eu tenho um irmãozinho que se chama Pedro. A gente chama


ele de Pedrinho. Ele é bem bonitinho e eu gosto muito dele. Acho
que eu gosto. (...) E a minha mãe fica me enchendo, que ela quer
que eu leve ele pra todo lugar que eu vou: pra brincar na areia,
pras festas de aniversário, pra ir ao shopping com meu pai. (...)
Está certo que às vezes criança pequena atrapalha. Mas também,
às vezes, criança pequena é bem divertida! E sabe de uma coisa?

146 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


Eu não acho que eu gosto dele. Eu sei que eu gosto muito, muito
mesmo do meu irmãozinho!˝1

Se bem que pese o fato de o texto apresentado aqui ser uma monta-
gem de trechos diversos do texto original, percebe-se claramente a co-
loquialidade excessiva utilizada pela autora. Certamente por desejar
atingir o leitor infantil e, entende-se, por pressupor que este não seria
capaz de entender uma linguagem mais elaborada, o que a coloca no
início da escada de nosso leitor, e somente aí. Assim mesmo, deve-se
considerar a natureza desse texto, visivelmente escrito para ajudar a
criança que está passando pela situação vivida pelo personagem do
conto. Ora, se esta leitura for sugerida como leitura literária, não só
ela estará ocupando um lugar que não lhe pertence, já que o texto está
bastante longe do conceito atual de literatura infantil, como também
estará fugindo de sua proposta inicial, que é ajudar as crianças a acei-
tarem o irmãozinho, uma vez que muitos alunos não estarão vivendo
tal situação. Então, esta seria uma leitura adequada para ser indica-
da pela orientadora educacional, por exemplo, para uma criança que
estivesse precisando de ajuda para lidar com a situação presente. A
indicação ou a leitura para a turma inteira revela-se, pois, inadequa-
da. Quero também chamar atenção para o trecho “minha mãe fica
me chateando”. Além da coloquialidade já citada, fica clara a visão da
mãe como alguém chato, e isso porque está ensinado à criança a se
comportar, ou seja, reforça-se o enfraquecimento da mãe como figura
positiva de formação do indivíduo e se fortalece o enfrentamento da
criança com os pais, tendência comum na década de setenta, quando
a mesma autora escreveu Marcelo, marmelo, martelo, em que a falta
de diálogo entre pais e filhos quase ocasiona um desastre em casa.

Note-se que não se pretende aqui atacar a obra de Ruth Rocha, que
tem textos de boa qualidade, mas apenas destacar o fato de que ter

1
ROCHA, Ruth. Disponível em http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_02.htm.
Acesso em 25/06/20210.

147
um livro assinado por um autor de literatura infantil não é garantia
da qualidade literária do texto, como se pode comprovar com o tre-
cho acima. É responsabilidade do professor escolher as obras que seus
alunos lerão, levando em consideração todos os itens já citados neste
ensaio, mas, principalmente, deverá analisar a qualidade da obra a
ser lida. Nós, que gostamos de ler, lamentamos a falta de tempo de
ler os livros que gostaríamos de ler; já que não se pode ler tudo, que
se selecione o lido pela qualidade, para que não se desperdice tempo e
esforço, lendo o que não vale a pena.

Nesse sentido o professor poderá buscar ajuda em sites, em cadernos


infantis dos jornais, onde as indicações de leitura são atualizadas e
pertinentes. No caderno Gazetinha, por exemplo, encontram-se fre-
quentemente discussões sobre as obras preferidas pelos jovens, lidas
por professores especializados em Literatura Infantil e Juvenil, que po-
derão auxiliar o professor das séries iniciais em sua escolha.

Outra questão importante, no que se refere à leitura literária, é a pos-


sibilidade de, pela leitura de autores de diferentes épocas e culturas,
ter-se o contato com formas diferentes de ver a vida. O confronto com
textos literários distintos leva a enfrentar a diversidade social e cultu-
ral. Hoje, quando os estudos culturais são uma tendência mundial, co-
locar o leitor infantil em contato com textos que representem culturas
diferentes é proporcionar a ele a oportunidade de relativizar conceitos
e perceber que a diversidade é fator positivo. Pode-se, então, trazer
para a sala, não apenas os textos consagrados pela crítica ocidental
e majoritariamente europeia, mas obras das várias partes do mundo,
como por exemplo Mil e uma noites, em que a visão oriental está pre-
sente. Nos casos dos textos traduzidos e adaptados, o professor deve
prestar atenção à qualidade da adaptação, para não cair na armadilha
da facilitação excessiva, presente em vários textos adaptados, inclusi-
ve de Mil e uma noites.

148 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


Uma possibilidade de diversidade importante é a busca de contos de
autores indígenas, como Daniel Munduruku, Olívio Jukupé e tantos
outros, que hoje publicam as histórias de suas tribos, não mais sob o
olhar eurocêntrico, como ocorria até então. São histórias que revelam
a mundivisão do índio, como um fascinante texto escrito por Daniel
Munduruku (disponível em http://www.overmundo.com.br/overblog/
sobre-o-tempo-e-o-trabalho), em que ele fala sobre a relação entre
tempo e trabalho na perspectiva indígena.

O contato com a diversidade, segundo Teresa Colomer (2007), é um


direito dos alunos, que devem “saber que existem corpus distintos,
com variadas ofertas para diferentes momentos e funções de vários
tipos.”

Finalmente, não se pode olvidar uma reflexão sobre o lugar do texto


poético no processo de formação do leitor. Presente nos livros didáti-
cos mais pela extensão que por sua natureza, a poesia é “trabalhada”
na escola como suporte para questões de ordem gramatical ou, no
máximo, em solenidades cívicas, quando os alunos são solicitados a
declamar poemas que abordem o tema da festividade. Assim, estes
gêneros textuais que falam sobre árvores são lidos no Dia da Árvore,
assim como poemas que falam sobre o Brasil são declamados nas fes-
tividades de Sete de Setembro, reforçando o caráter pedagógico com
que se vê a literatura e deixando de lado as particularidades do texto
literário em si, uma vez que só se considera o conteúdo e não a forma
como o texto é escrito. Em rápida visita às escolas, pode-se constatar
que os alunos são levados a crer que o texto poético Tem de ser rima-
do, apesar de não se explorar o ritmo, a musicalidade, que está na
essência poética. A definição de José Paulo Paes (1999), desse modo, é
deixada de lado, para que, mais uma vez, se destaque o caráter peda-
gógico da literatura, conceito ultrapassado, mas que ainda é reforçado
nas escolas brasileiras.

149
Neste ensaio, procurou-se não apresentar receitas, mas questionar
as práticas de leitura nas escolas brasileiras e apresentar alterna-
tivas, uma vez que a realidade atual não se mostra eficiente, como
atestam os resultados obtidos pelos alunos brasileiros em testes in-
ternacionais e como é facilmente comprovável, em visita a nossas
escolas. Nesse sentido, é que as sugestões apresentadas para a ênfa-
se na leitura literária se justificam, já que se vê tal prática como um
caminho possível para complementar o letramento de nossos alu-
nos, assim como uma forma de permitir que eles, enquanto leitores
literários, tenham contato com textos que lhes permitam escolher e
construir sua própria realidade, sem que esta seja imposta por textos
pedagógicos e utilitários.

Nesse sentido, é que se sente a falta da formação literária para o pro-


fessor das séries iniciais, pois, como se procurou comprovar neste en-
saio, é necessário que ele tenha subsídios que lhe permitam ler criti-
camente os textos literários, para que possa exercer adequadamente
seu papel de mediador de leitura e contribuir para a formação do leitor
em nossas escolas.

150 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


Para saber mais
AGUIAR, Vera Teixeira & BORDINI, Glória. A formação do leitor: alter-
nativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

BENJAMIM, Walter. O narrador. Disponível em http://www.4shared.


com/file/98851761/c5473cd4/Benjamin_Walter_O_narrador___.html.
Acesso em 25 de junho de 2010.

COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola.


São Paulo: Global, 2007.

PAES, José Paulo. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções.


São Paulo: companhia das Letras, 1990.

_____. Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 2007.

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo:


Ícone, 1986.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. O piolho. Belo Horizonte: Ed. RHS,


2003.

_____. Cavaleiros das sete luas. Belo Horizonte: Miguilim, 1997.

ROCHA, Ruth. Meu irmãozinho me atrapalha. Disponível em http://


www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_02.htm. Acesso em 25/06/2010

151
Cada aula,
uma novidade
Professora: Expedita Estevão da Silva
Instituição: Escola Municipal
Augusto Staben
Cidade: Campina Grande do Sul
“Sempre faço o que não consigo fazer
para aprender o que não sei”.
Pablo Picasso

“O jornal é um material pedagógico no qual, a partir de uma notícia,


é possível aprofundar os conhecimentos e envolver várias disciplinas.
Cada aula com jornal é uma novidade, uma curiosidade”.

A afirmação é da professora Expedita Estevão da Silva, que atua na Es-


cola Municipal Augusto Staben, no município de Campina Grande do
Sul. Pedagoga com mais de vinte anos de magistério, Expedita, que já
exerceu várias funções no ambiente escolar – professora, coordenado-
ra, supervisora – , destaca a importância do apoio da direção da escola
aos professores que desenvolvem projetos dessa natureza.

“Entender o papel da mídia na educação não deve ser privilégio de


determinados professores e sim de toda a estrutura educacional. A
iniciativa isolada de um professor não consegue ter o mesmo impacto
que um projeto coletivo da escola. Por isso, independentemente das
funções que exerci, sempre procurei desenvolver projetos, estimular e
apoiar iniciativas inovadoras para a escola.”

Expedita se considera uma professora que não para no tempo e não


aceita repetir modelos pedagógicos ultrapassados. Seu maior orgulho
é ter conseguido acompanhar as mudanças ocorridas nas metodolo-
gias de ensino, a evolução dos processos e as novas ideias e linhas
pedagógicas. “O que me deixa mais satisfeita é perceber as novas po-
sições da escola em relação ao uso da mídia na educação.”

E foi por aí, procurando entender as novas demandas educacionais,


que ela descobriu e incorporou o jornal como recurso pedagógico de
incentivo à leitura. “Fico encantada com os resultados que estes proje-
tos geram. Meus alunos passam a ler e a escrever melhor e, no parale-

153
lo, também a emprestar mais livros da biblioteca, porque o gosto pela
leitura cresce exponencialmente.”

Tamanho interesse provou, inclusive, a necessidade de criar a Hora


da Leitura, momento semanal em que a professora e o alunos vão à
biblioteca para descobrir novos livros e leituras. “Na Hora da Leitura
sempre uso a metade do tempo para ler uma história. Na outra meta-
de, as crianças ficam livres para ler o que quiserem.”

Expedita também criou uma Caixa de Leitura, que fica disponível na


sala e é constantemente renovada atendendo a pedidos dos alunos.
“Temos de tudo na caixa: histórias em quadrinhos, livros de poesia,
folclore e biografias. Tudo de acordo com o gosto da turma.”

A prática
O tema bulliyng, tratado na reportagem que a Gazeta do Povo publi-
cou no dia 16 de junho de 2010, possibilitou que a professora Ex-
pedita discutisse o assunto, também presente na escola, com todos
os alunos. E o debate começou já com a análise do título “Bullying
atinge 35% dos alunos do DF”.

“Vocês sabem o que quer dizer bullying? Vocês acham que isso só
acontece no Distrito Federal? Vocês acham que na nossa escola
existe esse problema?” Com perguntas dessa natureza, Expedita
provocou a discussão do assunto, trazendo-o para a realidade da
comunidade. Na sequência, pediu para fazerem um resumo, seguin-
do as seis perguntas básicas usadas no jornalismo: O que? Quem?
Onde? Como? Quando? Por que? A atividade continuou como tarefa
de casa e os alunos aprofundaram o assunto fazendo pesquisas e
em conversa com os pais.

154 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


Socorro!

A primeira experiência da professora Expedita com


o jornal em sala de aula foi quase traumatizante.
Por pouco, muito pouco, ela não desistiu.

Como não tinha experiência para planejar o desen-


volvimento das atividades propostas, perdeu-se na
orientação até de coisas simples como auxiliar os
alunos no ato de abrir e ler o jornal. “Conforme a
atividade ia acontecendo eu pensava: ‘Meu Deus
isso não vai dar certo, é muita bagunça e pouco
“O jornal fez com que
resultado’.”
eu tivesse mais inte-
resse em ler, pois lá
Depois desse dia, ela levou um tempo para ter cora-
tem algumas informa-
gem de novamente trabalhar com o jornal, mas re- ções que não vemos
conhecia a importância de utilizá-lo para promover na televisão. Gostei de
a leitura e aproximar a mídia do processo educativo. trabalhar com o jornal
sobre o Bullying e tam-
Intimamente, Expedita sentia que precisava encon- bém sobre as pulseiras
trar maneiras de tornar o trabalho mais produtivo, coloridas. Descobri que
e a solução apareceu quando encontrou o objetivo devemos tomar muito
principal da iniciativa: era necessário reverter a di- cuidado.”
ficuldade que seus alunos apresentavam nas ativi- Ramilly Amatti de
dades de leitura e escrita. Brito, 10 anos

Foco definido, o desafio foi encontrar o método e ati-


vidades adequados à fase de aprendizado dos alu-
nos, que começavam a escrever com letra cursiva.

E a ideia de reservar os primeiros minutos de aula


para a leitura do livro Uma história para cada dia,
acabou dando tão certo que fez a professora esque-

155
cer as dificuldades iniciais e abriu caminho para novas e gratificantes
experiências que passou a desenvolver com o jornal em sala de aula.

Flexibilidade e admiração

Contrariando a percepção de muitos professores, Expedita garante que


o jornal nunca a impediu de cumprir o currículo escolar. “Logo que
comecei a ver os resultados, pedi à supervisora para eu não participar
das reuniões de planejamento que ocorrem todo início de bimestre.
Expliquei que o jornal já estava muito presente nas minhas aulas, e
que um planejamento que o excluísse me deixaria presa, pois não con-
seguiria continuar o projeto”.

A supervisora aceitou o argumento e, a partir disso, Expedita conquis-


tou a necessária liberdade e o respeito dos colegas, requisitos essenciais
para continuar usando o jornal e ainda influenciar outros professores.

Apesar de não participar do planejamento em conjunto com outras


professoras, Expedita diz que ele é um dos requisitos básicos para o
trabalho do professor. “Só que nas minhas aulas, volta e meia, ele pre-
cisa ser adaptado e o cronograma sofre alguma alteração. Faço isso
para não deixar escapar as novas ideias e o interesse dos alunos.”

O projeto Gazetinha Augusto Staben (GAS), por exemplo, não fazia parte
das aulas planejadas por Expedita para 2010, mas acabou sendo de-
senvolvido e teve um dos melhores resultados já registrados. A ideia
nasceu em 2009, entre os alunos da turma de 3.ª série, que gostaram
tanto de produzir um jornal que pediram a sua continuidade quando
passaram para a série seguinte.

O GAS conta com três páginas e publica assuntos do cotidiano da escola,


curiosidades, porquês dos feriados e notícias do mundo. Única inicia-

156 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


tiva do gênero na escola, o jornal produzido pelos
alunos também tem sido usado como recurso de
integração, principalmente para os alunos novos.

Vocês viram isso?

Um dia, enquanto folheava o jornal Gazeta do Povo


na sala dos professores, Expedita viu que na colu-
na Imagens do Universo tinha uma foto mostran-
do as menores pessoas do mundo e pensou: “É por
aqui que vou começar a trabalhar com o jornal”.
“Aprendi na escola que
Recortou a imagem e levou para a classe dizendo: o jornal é um meio de
“Olha pessoal, que legal! Vocês viram isso?” A ima- comunicação e quem
gem passou de aluno em aluno e alguns inclusive lê fica informado de
pediram para levar para a casa, com o objetivo de tudo o que acontece
mostrar aos pais. Enquanto isso ocorria, Expedita no mundo. Ler jornal
já estava pensando lá na frente, em como usar o nos dá muitas ideias.
Fui eu que tive a ideia
jornal para fazer atividades mais amplas, que in-
de fazer o jornalzinho
centivassem a leitura.
da sala, foi muito
legal e todo mundo
Nas aulas seguintes, a professora procurou desta-
adorou. Tomara que
car e ler outras notícias ligadas ao universo dos
possamos fazer outro”.
alunos, mas eles ainda eram passivos, só ouviam.
Eric Dion da Silva,
Quando percebeu que já estavam acostumados a
10 anos
ouvir as notícias, viu que era o momento de explo-
rar o jornal em todas as suas possibilidades.

“A Pedagogia do Fica Quieto acabou. Os alunos es-


tão mais curiosos, querem saber mais, expor o que
pensam, têm interesses que extrapolam os muros
da escola, e o professor precisa acompanhar essas
novas demandas”.

157
Hoje é comum encontrar a professora e os alunos com um jornal na
mão, desenvolvendo inúmeras atividades, sem medo de lidar com as-
suntos de qualquer natureza.

Consciência social

Para medir os impactos do trabalho com o jornal sobre o desenvol-


vimento dos alunos, a professora adotou as técnicas de comparar os
cadernos e avaliar o desempenho oral, em debates. E garante que são
indiscutíveis as melhorias na escrita, na postura e defesa de ideias.
“Na comparação de desempenho de um ano para o outro, dá para
perceber o quanto meus alunos amadureceram, e não só em atitudes
individuais, mas também no sentido social, porque a cada dia estão
mais aptos a participar de atividades coletivas e conscientes de seus
limites, direitos e deveres.”

Para exemplificar a última afirmação, Expedita usa a própria leitura


de jornal no ambiente escolar. “Como os alunos sabem que outros co-
legas, os professores e até os pais também terão oportunidade de ma-
nusear o exemplar do jornal, passaram a cuidá-lo de forma diferente.
Aprenderam a devolvê-lo sem amassados, limpo e com os cadernos
em ordem porque já compreendem o que é um bem coletivo.”

Tanta dedicação e tamanhos resultados foram reconhecidos na edição


2009 do Concurso Cultural Ler e Pensar, quando a prática de Expedita
foi destacada e premiada.

158 Capítulo 7 - Leituras, Literaturas e Escola


Na “Hora da Leitura” alunos vão à biblioteca para descobrir novos livros e leituras.

A cada atividade com o jornal, a professora Expedita percebe melhorias na caligrafia,


postura e defesa de ideias.

159
Capítulo 8
Ciberleitura
O que é ciberleitura? Como incentivar a leitura em ambientes virtuais?
Como contribuir para a formação de cidadãos críticos e participativos,
lançando mão dos recursos disponíveis no ciberespaço?

O ensaio que publicamos neste capítulo é assinado por Márcia Silva


Di Palma, mestre em Educação e pesquisadora do NuPPEI – Núcleo de
Pesquisas em Processos Educativos Interativos da Universidade Tuiuti
do Paraná, instituição em que ministra aulas nos cursos Letras e Peda-
gogia. Ela tenta responder a essas e outras perguntas a partir da análi-
se desse fenômeno cultural, que tem na construção de uma sociedade
em rede o seu principal elemento.

Márcia pesquisa o papel das novas tecnologias no contexto escolar e


na formação de professores em cursos de pós-graduação presenciais e
a distância da UTP e outras instituições.

Para ilustrar o tema Ciberleitura, selecionamos a experiência didática


da professora Sonia Maria Alves Domingues, da Escola Municipal Pau-
lo Freire, de Curitiba. Veterana no uso do jornal impresso como recurso
pedagógico, há dez anos, ela desenvolve atividades utilizando esse ins-
trumento como apoio às suas aulas. Recentemente, passou a trabalhar
também com o jornal em plataforma eletrônica e revolucionou a uti-
lização da sala de informática da escola. Para ela, a web possibilita a
construção de materiais didáticos que atendem a diferentes estilos de
aprendizagem, e o jornal utilizado na internet é um instrumento que
contribui para a formação das novas gerações.

161
Ciberleitura no
contexto educacional
Márcia Silva Di Palma

Este ensaio é fruto das pesquisas realizadas no NuPPEI – Núcleo de Pes-


quisas em Processos Educativos Interativos, no que diz respeito às mu-
danças ocorridas nos processos de leitura diante das influências das no-
vas tecnologias, e principalmente seus reflexos no contexto educacional.

O estudo se justifica porque, como profissionais e intelectuais da


educação, precisamos estar em permanente processo de atualização
e reflexão crítica para que possamos desempenhar o nosso papel de
educadores e formadores com maior eficiência. Nesse sentido o obje-
tivo maior deste ensaio, em vez de trazer respostas prontas, é trazer à
luz alguns elementos que sirvam de pontos de partida para reflexões
individuais e em grupo sobre a temática.

Discutir a respeito da leitura e da ciberleitura não seria possível sem


antes abordar o advento da escrita, isso porque leitura e escrita estão
absolutamente articuladas, como os dois lados de uma mesma moeda.
Portanto, gostaria de começar a refletir sobre os processos de leitura a
partir da gênese e evolução dos registros escritos na história do mundo.

Desde os primórdios da história, o ser humano se deparou com o gran-


de desafio de garantir que o conhecimento acumulado por uma deter-
minada geração pudesse ser não apenas transmitido às gerações mais
jovens, mas também que servisse de base para outras descobertas e
evoluções. Esse desafio fez com que o ser humano desenvolvesse sua
primeira fase de relação com o conhecimento: A memorização. Como

162 Capítulo 8 - Ciberleitura


a base da comunicação estava centrada na comunicação oral, muitos
conhecimentos se perdiam, o que não somente comprometeu, mas
reduziu significativamente o progresso das civilizações.

O surgimento da escrita representou uma grande conquista para a


humanidade, constituindo-se na segunda fase da relação do homem
com o conhecimento: a escrituração. Os primeiros registros gráficos
podem ser identificados há cerca de 50.000 anos. Eram incisões em
pedras ou ossos que tinham o objetivo de controlar a quantidade de
animais e/ou objetos pertencentes a cada grupo de indivíduos que vi-
viam como nômades. Posteriormente, há cerca de 30.000 anos, essas
incisões já se tornam mais sofisticadas e passaram a serem figuras
gravadas ou pintadas em cavernas, retratando cenas de caçadas e do
cotidiano dos homens das cavernas.

Apesar desses registros tão antigos, essas manifestações culturais e ar-


tísticas ainda não podem ser consideradas como “escrita” uma vez que
não há consistência ou padronização de símbolos. Há cerca de 4.000
anos, porém, já é possível identificar em vários locais do planeta – Me-
sopotâmia, China, Egito, América Central – a presença dos “desenhos-
escrita”, ou seja, a produção de um conjunto de símbolos mais ou me-
nos padronizados, que tinham um significado estabelecido, para todos
ou quase todos os membros de um mesmo grupo ou estrato social.

Com o passar do tempo, alguns ícones foram assumindo valores per-


manentes, fazendo com que as mensagens escritas em um determina-
do momento histórico pudessem ser decodificadas e interpretadas por
outros grupos sociais geograficamente distintos e contribuindo com
isso para que civilizações já extintas possam ser estudadas e compre-
endidas na contemporaneidade.

Dessa forma, a escrita representou um marco na história da huma-


nidade, pois significa a possibilidade de preservar falas, ideias, fatos,

163
ultrapassando limites de tempo e espaço e preservando a essência das
diferentes culturas.

Porém nem sempre houve uma preocupação de que o conteúdo dos


registros escritos estivesse disponível a todos os membros da socieda-
de. Assim, ao longo da história da humanidade, a leitura passou por
vários momentos, com características próprias a cada um.

Até a Idade Antiga, a leitura era realizada em voz alta, nos templos
e edifícios governamentais, pelos membros das elites e sacerdotes. A
temática girava em torno de conhecimentos “sagrados” que apenas
uma pequena parcela da sociedade tinha acesso. Essa prática objeti-
vava garantir que a mensagem fosse traduzida/verbalizada correta e
adequadamente sem que houvesse a interferência da interpretação do
leitor quanto ao que havia sido lido. A prática da leitura em voz alta
e o questionamento pontual sobre elementos concretamente identifi-
cáveis no texto, se mantive da Antiguidade até por volta do século V
depois de Cristo.

Após a queda do Império Romano, a Igreja Católica Romana assumiu


uma posição hegemônica e, para garantir que os ensinamentos con-
tidos na Bíblia não fossem questionados, censurou, retirou de circu-
lação e destruiu vários documentos escritos. Dessa forma, a maioria
da população não poderia ter acesso à explicação de seus dogmas,
e assim restringia o acesso à leitura a alguns membros da nobreza
e do clero, que tivessem tido uma educação formal mais elaborada.
Naquele momento histórico, a leitura se restringia a alguns poucos
exemplares da Bíblia e de outros textos religiosos copiados manual-
mente, que tinham um caráter doutrinário e, portanto, não podiam
ser “interpretados” ou discutidos.

A invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg (1398-1468) re-


presentou uma grande evolução para os processos de leitura porque

164 Capítulo 8 - Ciberleitura


permitiu não apenas a expansão na produção dos livros, mas também
criou condições para a impressão de periódicos com notícias e temá-
ticas de amplo interesse, inclusive das novelas cujos capítulos eram
disponibilizados a cada mês ou semana. Paralelamente, a ampliação
dos processos de escolarização fez com que houvesse um aumento
significativo do número de pessoas com acesso à leitura, competência
essa que era extremamente valorizada em todas as sociedades.

A valorização da leitura e a ampliação de exemplares impressos per-


mitiram que emergissem diferentes tipos de textos: narrativos, descri-
tivos etc., que provocaram uma mudança gradual na maneira como
a leitura era feita. Se até o século XV era realizada em voz alta e, a
partir de então, passou a ser feita silenciosamente, essa prática criou
condições propícias para que houvesse diferentes interpretações dos
textos escritos. A partir do século XVIII, e com os avanços da indústria
e da imprensa, desenvolvem-se vários tipos de textos – jornalísticos,
publicitários, literários –, que tinham objetivos e formas de organiza-
ção próprias.

O aumento significativo do acervo cultural da humanidade permitiu


o desenvolvimento de áreas específicas do saber, das Ciências Huma-
nas, Exatas, Biológicas, Sociais etc., a partir do século XIX, e com isso
identifica-se uma terceira fase da relação do homem com o conheci-
mento: a especialização.

Naquele período, percebe-se o desenvolvimento da competitividade


em todos os níveis da sociedade, e é possível perceber essa competiti-
vidade inclusive na publicação dos jornais e periódicos que primavam
pela notícia bombástica, “o furo” de reportagem, para conquistar mais
leitores. Observa-se também uma multiplicidade de tipos, gêneros, es-
tilos e formatos de escrita que se ampliam radicalmente no século
XX, criando condições para uma ampliação do conceito de leitura, que
deixou de referir-se apenas a textos escritos para englobar também

165
a interpretação de outros símbolos e linguagens. Assim, o conceito
de leitura, a partir da segunda metade do século passado, passou a
referir-se ao “processo de (de)codificação e interpretação de símbolos
gráficos, imagens, sons, situações isoladas ou combinadas, dando-
lhes um significado pessoal” (SANTOS, 2006).

Também é possível perceber que, apesar do grande número de pessoas


escolarizadas e com acesso a vários textos escritos, apenas uma pe-
quena parcela da população tinha acesso às publicações com conheci-
mentos científicos de ponta, já que o material escrito produzido pelos
“intelectuais” estava “pronto e acabado”, obedecendo a uma lógica e
hierarquia determinada pelo autor, com o qual não seria possível dis-
cutir pessoalmente em tempo real.

Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e das


tecnologias digitais, que passaram a ser integradas ao cotidiano de
uma parte da população, a partir da segunda metade do século XX. Ob-
servou-se a emergência de um conjunto de condições propícias para o
surgimento e avanço de uma nova cultura global. Essa cultura traduz
as contradições inerentes à “Sociedade do Conhecimento” – apesar do
grande avanço científico que fornece as bases para o desenvolvimento
econômico e político, as questões sociais em vários pontos do planeta
ainda carecem de atenção.

Diante dessas contradições, percebe-se o nascimento de uma quarta


fase na relação do homem com o conhecimento: a universalização in-
dividualizada, que se caracteriza pelo acesso irrestrito ao saber vivo e
significativo, construído a partir do interesse do leitor (LEVY, 2004).

O acesso irrestrito às bibliotecas virtuais promovido pela globalização


planetária fez com que as trocas simbólicas entre pessoas dos mais
diversos locais do planeta deixassem de ser feitas concretamente no
mundo real e se transferissem para o mundo virtual, também conhe-

166 Capítulo 8 - Ciberleitura


cido como ciberespaço ou ainda nuvem de internet. Essas trocas, por
envolverem pessoas de origens e culturas diversas, interferem na ma-
neira como as pessoas pensam, sentem, agem, se relacionam e se co-
municam.

Essa nova cultura se manifesta pela presença constante de computa-


dores em vários ambientes – familiar, escolar, profissional, de lazer;
em bancos, supermercados, escolas, centros de saúde etc. –, que, devi-
do à facilidade de acesso e articulação com outros meios digitais como
a telefonia móvel, jogos etc., por exemplo, criam uma outra maneira
de construir e dominar conhecimentos na sociedade.

Além disso, o ciberespaço é um espaço de comunicação livre, uma


região abstrata, invisível que permite a divulgação e a circulação de
informações sob vários formatos, ele garante uma ampla possibili-
dade de leitura de imagens, sons, textos etc. Com isso, descarta-se a
necessidade da presença física das pessoas como interlocutores, ao
mesmo tempo em que se permite a interação, a edição/atualização
imediata de conteúdos por pessoas que estejam geográfica ou tem-
poralmente distantes. Observam-se assim uma rápida atualização
de conteúdos nos mais diferentes formatos e a construção de redes
interativas multifacetadas. Um exemplo concreto é a rápida prolife-
ração de sítios de notícias, que divulgam acontecimentos de maneira
pontual e objetiva, contrastando com as mídias impressas em que a
notícia é veiculada de maneira mais contextualizada, fundamentada
e aprofundada.

Ao contrário dos textos impressos, na web todas as informações se


encontram no mesmo plano não havendo hierarquização entre elas.
Porém, ao mesmo tempo, o todo se diferencia e ganha relevância de
acordo com as relações que o leitor vai estabelecendo. Como não exis-
te hierarquia absoluta, cada página é um ponto de partida e/ou de
chegada e/ou uma bifurcação para milhares de rotas possíveis.

167
Bem, além dos aspectos formais trazidos pela tecnologia, não pode-
mos deixar de considerar os efeitos que a utilização sistemática dos
recursos tecnológicos nas atividades cotidianas traz ao desenvolvi-
mento de aspectos biológicos, como percepção, sentidos, memória, ra-
ciocínio e imaginação; competências essas, que foram maturadas no
ser humano durante milênios como fator fundamental para garantir a
sobrevivência e/ou melhorar a qualidade de vida dos seres humanos.

Assim, é preciso ter claro, que o meio digital não apenas dá suporte
às questões do dia a dia, mas interfere, modifica e amplia numerosas
funções cognitivas humanas como os sentidos da visão, audição, tato.
Na área da saúde, por exemplo, a manipulação genética com o uso de
microscópios eletrônicos e instrumentos comandados por joysticks que
permite diagnosticar problemas genéticos em gametas antes mesmo
da fecundação; as nanocirurgias, que corrigem defeitos congênitos de
bebês ainda por nascer; a manipulação das células-tronco, que per-
mite a recuperação de órgãos e sistemas seriamente comprometidos
sem a necessidade de intervenções cirúrgicas de grande porte. Essas
competências sensório-motoras foram estimuladas exaustivamente
durante a infância e adolescência dos profissionais que as realizam
atualmente.

A memória de curto e longo prazo também tem sofrido interferências,


já que muitas informações que no passado precisavam ser “decoradas”
atualmente são transferidas para as diferentes mídias digitais – compu-
tador, CD, pendrive, telefone celular – liberando espaço em nossa me-
mória biológica para outras funções mais significativas ou criativas.

Também é possível observar que a forma de raciocínio tradicional


também vem sofrendo influências dos meios digitais, deixando de
ser linear (sequências de lógicas, deduzíveis/previsíveis) para assumir
uma visão mais ampla de contexto. Isto facilita a compreensão de si-
tuações complexas e vislumbra soluções inusitadas, porque articulam

168 Capítulo 8 - Ciberleitura


vários conhecimentos oriundos de estímulos diversos recebidos de jo-
gos, filmes etc.

Com isso, o espaço para o desenvolvimento da imaginação através


de simulações se amplia significativamente, tornando possível a in-
venção de jogos virtuais cuja aparência nas telas de LCD, plasma
e LED estão cada vez mais próximos da realidade. Ou ainda abrem
espaço para a concretização no cinema de mundos fictícios, que com
auxílio de várias técnicas de filmagem e composição gráfica trazem
à vida, em três dimensões, personagens, plantas, meios de transpor-
te etc. fazendo com que a realidade virtual e a real se tornem quase
a mesma coisa.

A presença permanente dos computadores, então, faz com que as


crianças da maior parte da população comecem a interagir com todo
o aparato tecnológico cada vez mais cedo e que passem a ter o seu
desenvolvimento cognitivo e sensório-motor influenciados pela lógi-
ca de organização cibernética. Diante das modificações de nature-
za biológica, o processo de construção de conhecimentos também se
modifica sendo possível observar que se iniciam cada vez mais cedo
os processos de letramento alfabético, digital e gráfico, ou seja, esse
novo modelo interfere diretamente na organização dos indivíduos, da
sociedade e como consequência afeta de modo radical a peculiaridade
do trabalho pedagógico escolar.

Se a relação com o mundo se modifica, também se altera a relação


com a leitura. Assim, a expressão “ciberleitura” – grafado com i em
português – então se constitui na combinação do prefixo cyber, que
diz respeito a “uma região abstrata, invisível que permite a circulação
de informações na forma de imagens, sons, textos etc. e permite uma
forma de comunicação que descarta a necessidade da presença física
e sincrônica das pessoas” (LÉVY, 2000); com o complemento leitura.
Portanto, o termo “ciberleitura” refere-se ao processo de (de)codifica-

169
ção e construção de significados a partir do acesso de textos eletrôni-
cos/hipertextos que são divulgados na nuvem virtual – Internet.

O hipertexto é um formato de texto que integra várias linguagens –


imagens estáticas e dinâmicas, sons etc. – que são disponibilizadas na
rede e que se articulam com várias outras formando um mosaico que
pode ser acessado a partir de qualquer ponto, com destinos mutáveis
e inusitados.

Ao acessar um hipertexto, o leitor passa a desenhar e a construir um


percurso inédito em uma rede de relações individualizada que tanto
pode obedecer a uma lógica linear, mais simples, ou pode ser tão com-
plicada e complexa quanto à curiosidade e/ou criatividade do leitor
permitirem.

É preciso ainda deixar claro que a disponibilização dos textos on-line


não significa o fim dos livros e materiais impressos, já que milhões de
pessoas em todo o planeta desenvolvem uma relação especial com
a textura do papel e a possibilidade de interagir com o autor, ainda
que de maneira limitada, através de reflexões escritas nas bordas das
páginas ou pedaços de papel colocados entre as páginas de um livro
para identificar os trechos favoritos ou mais relevantes.

O fato de o texto ser apresentado na tela não muda nada, pois ainda se
trata de leitura, muito embora seja preciso ter claro que com os hiper-
documentos e a interconexão geral as modalidades de leitura tendem
a transformar-se. Isso porque nos materiais impressos tradicionais a
sistemática que ainda predomina é a da leitura realizada, no caso dos
países ocidentais, de cima para baixo, da esquerda para a direita, pará-
grafo por parágrafo, linha a linha, da primeira à última página.

Discorrendo a respeito da ciberleitura, Smith (1999) explica que a lei-


tura Online não descaracteriza as formas tradicionais de leitura já que

170 Capítulo 8 - Ciberleitura


as pessoas acessarão os conteúdos virtuais pelas mesmas razões que
acessariam textos impressos, a saber: pelo prazer, pela informação,
pela identificação com a temática, pela experiência e hábito de leitura.
“Não há novas razões para a leitura Online, mas sim uma nova gama
de possibilidades de folhear documentos anteriormente inacessíveis e
até legalmente restritos.”

Apesar da grande variedade de tipos, gêneros e estilos, a organiza-


ção do texto impresso não permite uma rápida atualização ou mes-
mo a interação entre autor e leitor. Por outro lado, as qualidades do
texto impresso podem ser trazidas para os textos eletrônicos, com a
vantagem de poder articular temáticas diferentes, autores clássicos e
contemporâneos, linguagens diversas e cuja leitura pode obedecer à
lógica definida pelo leitor.

Essa reordenação na forma de ler traz à luz outro aspecto a ser des-
tacado e que diz respeito à quebra da condição passiva do leitor e o
transforma em coautor e interlocutor. Isso porque os hipertextos tra-
zem a possibilidade de discutir, contribuir e inclusive atualizar os con-
teúdos disponibilizados por outrem, e isso faz, com que a relação entre
leitura e escrita se torne mais integrada e ativa que nunca.

A combinação desses aspectos não pode ser descartada pela escola e


pelos profissionais que nela atuam. Principalmente os professores de
Língua Portuguesa, já que a ciberleitura abre uma gama de possibili-
dades inteiramente nova para o trabalho com a língua e a literatura,
substituindo o exercício descontextualizado e repetitivo por atividades
com uso criativo das múltiplas linguagens como recursos para facili-
tar, melhorar a comunicação.

Nesse sentido é interessante o trabalho com jornais e revistas Onli-


ne, pois os mesmos trazem temáticas atuais e que podem ser livre-
mente acessadas pelos alunos, tanto no ambiente escolar quanto em

171
suas casas ou lan houses. Todavia, não se pode imaginar que o sim-
ples acesso ao sítio de interesse trará grandes impactos ao processo
de aprendizagem dos alunos, porque é importante que os professores
conheçam e estabeleçam uma estratégia para o uso pedagógico dos
recursos tecnológicos para que os mesmos não se esvaziem de seus
potenciais educativos.

Ou seja, o professor precisa repensar seu papel e buscar novas formas


de trabalho que superem as formas fossilizadas de atuação ao longo
dos séculos, e converter-se em parceiro de seus alunos no processo
de aprendizagem. Os alunos, por sua vez, também precisam superar
uma atitude passiva de reprodução dos conhecimentos transmitidos
e começar a se auto-organizar no processo de aprendizagem. Existem
várias atividades que podem ser realizadas com auxílio do computa-
dor Online e off-line.

As atividades Online dizem respeito a pesquisas realizadas em sítios


da nuvem de Internet que disponibiliza bancos de imagens, de textos,
vídeos de propagandas e curta-metragens, blogs, salas de bate-papo
etc. com objetivos específicos estabelecidos previamente pelo profes-
sor. As informações levantadas nesses ambientes devem ser articula-
das e integradas àquelas encontradas em livros didáticos, enciclopé-
dias, dicionários e periódicos.

A partir desse levantamento podem ser realizadas atividades em com-


putadores que dispensem o acesso à rede, ou seja, que estejam off-line,
com a produção de textos em processadores como o Word e com a apli-
cação de suas ferramentas – encontrar palavras, formatar, destacar
etc. Outra possibilidade é a utilização do Power Point para a produção
de textos de diversas natureza, com a inclusão das imagens seleciona-
das dos sítios Online. É possível ainda a criação de um pequeno vídeo,
a partir das fotos digitais tiradas em uma festa no ambiente da escola,
com textos explicativos utilizando o recurso do Movie Maker.

172 Capítulo 8 - Ciberleitura


A partir desses materiais, a turma, ou a escola como um todo, pode
montar seu próprio sítio virtual para disponibilização de suas pro-
duções, como a criação de um jornal acadêmico com a divulgação
dos projetos que estão sendo realizados para a comunidade. Enfim,
as possibilidades são infinitas, e nós professores, como formadores
de cidadãos críticos e emancipados, precisamos, mais do que nunca,
rever nossas estratégias para o estímulo da leitura e da escrita para
que nossos alunos não sejam excluídos do processo de participação e
construção da Sociedade do Conhecimento.

173
Para saber mais
ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência. SP: Loyola, 1999.

AQUINO, R. FRANCO, D., LOPES, O. História das sociedades: das co-


munidades primitivas às sociedades medievais. RJ: Ao livro técnico,
1980.

BRASIL. Portal Sua Pesquisa. Pré-História – As fases da Pré-História,


cultura e arte pré-histórica, Paleolítico (Idade da Pedra Lascada),
Mesolítico, Neolítico (Idade da Pedra Polida), a vida dos homens
das cavernas, nômades e sedentários, origem da agricultura, arte
rupestre. Disponível em www.suapesquisa.com/prehistoria.

HIGOUNET, Charles. História concisa da escrita. 10.ª ed. São Paulo:


Parábola Editorial, 2003.

KIM, Joo Ho. Cibernética, Ciborgues e Ciberespaço: Notas sobre as


origens da cibernética e sua reinvenção cultural. In: Horizontes An-
tropológicos. Porto Alegre, ano 10, n. 21, jan-jul 2004. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/ha/v10n21/20625.pdf.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do cibe-


respaço. 4.ª ed. São Paulo. Loyola, 2003.

_____. As tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamen-


to na era da informática. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1993. 13.ª reimp,
2004.

_____. Cibercultura. 2.ª ed. São Paulo: Editora 34, 2000, 4.ª reimpres-
são, 2003.

174 Capítulo 8 - Ciberleitura


MARTINS, Maria Helena. O que é leitura? São Paulo: Brasiliense,
1982.

NOVAES, Tatiana. Uma proposta pedagógica de ciberleitura. In:


Revista letra magna. Revista eletrônica de divulgação científica em
língua portuguesa, linguística e literatura. Ano 2 – n. 3 – 2. Sem. 2005.
Disponível em http://www.letramagna.com/tatianenovais.pdf.

SANTOS, Betina Astride. Ciberleitura: o contributo das TIC para a


leitura no 1.° ciclo do ensino básico. Porto: Profedições, DL 2006.

SMITH, Frank. Leitura significativa. Porto Alegre. Artmed, 1999.

175
Ligados nesta arte
Professora: Sonia Maria Alves
Domingues
Instituição: Escola Municipal
Paulo Freire
Cidade: Curitiba
“Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos
nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos
alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”.
Paulo Freire

Sonia Maria Alves Domingues, professora da Escola Municipal Paulo


Freire, em Curitiba, foi uma das pioneiras a utilizar o jornal em sala
de aula no Estado do Paraná. Há dez anos, conheceu o projeto Ler e
Pensar e desde então foi criando atividades diferenciadas utilizando
como principal recurso o jornal impresso e on-line. Para ela, o uso de
gêneros textuais tem um papel decisivo na formação de leitores, por
isso a cada aula que ministra traz para si mesma o desafio de formar
alunos leitores e produtores de conhecimento.

Apesar da experiência, a cada início de ano ela enfrenta dificuldades


na implantação do projeto com jornal, porque as turmas mudam e a
proposta do ano anterior já não serve mais. É preciso adequar os inte-
resses e modificar o projeto para que o trabalho seja realizado com a
excelência de sempre.

Com esse objetivo, o trabalho começa com a preocupação de conhecer


a turma e só depois se pensa no plano a ser executado. “Cada ano é
necessário motivar novas turmas para o trabalho com o jornal. Inicio
com a sensibilização e a importância de estarmos sempre bem infor-
mados sobre as notícias, – locais e mundiais. Com o passar dos dias,
todos ficam motivados e querendo sempre aprender mais sobre as
possibilidades do jornal, e é aí que apresento o projeto que criei para
eles”, afirma Sonia Maria.

“Charge, cartum e tirinha: tô ligado nessa arte!” foi uma das ativida-
des desenvolvida pela professora para 2010. A escolha do trabalho
com esses gêneros textuais foi motivada pelo fato de a turma interes-
sar-se pela linguagem artística.

177
“Esses gêneros oferecem um conteúdo rico e crítico, que têm inúmeras
abordagens sobre a política nacional, estabelecendo relações de inter-
textualidade, exigindo conhecimentos específicos da linguagem e do
período histórico a ser analisado”, diz ela.

Com essa atividade, a professora Sonia procurou estimular os alunos a


fazerem análises críticas por meio de exposição onde também tinham
de apresentar suas conclusões. “Foi muito interessante levá-los a per-
ceber situações polêmicas que envolvem a realidade. Temos o envolvi-
mento de todos em atividades críticas e problematizadoras, nas quais
descobrimos e valorizamos talentos.”

A prática

Durante a atividade, a professora Sonia garante um tempo para a


leitura das notícias de interesse comum. Num segundo momento,
os alunos vão para a sala de informática onde aprofundam o tema
escolhido pesquisando na Gazeta do Povo Online e em outros sites.
Depois, a professora reserva um tempo para os alunos trabalharem
com jogos educativos. As regras estabelecidas com antecedência
evitam dispersão. “Associamos a leitura de jornal impresso com a
leitura na internet porque a tecnologia facilita a obtenção de da-
dos, imagens, resumos de forma rápida e atraente. E, durante todo
o processo, o professor passa a ser um facilitador, ajudando o aluno
a interpretar esses dados, a relacioná-los e a contextualizá-los.”

178 Capítulo 8 - Ciberleitura


Aliados tecnológicos

A sala de informática é território comum nas aulas


da professora Sonia, pois ela diz que a tecnologia
deve ser introduzida na aprendizagem destas no-
vas gerações. “A web possibilita a construção de
materiais didáticos que atendem a diferentes esti-
los de aprendizagem. Nós usamos o jornal na pla-
taforma internet e isso tem nos ajudado muito.”

Sonia lembra que livro didático não é mais o único


recurso acessível e é preciso apropriar-se das inú- “As aulas de leitura
meras outras possibilidades hoje disponíveis. com o jornal impresso
e na internet são mais
Ela afirma que tanto os livros quanto as revistas, divertidas. Procuro as
jornais, enciclopédias, CD-ROMs e sites da internet charges na Gazeta do
são fontes de informações úteis ao aprendizado. Povo Online e quando
“A internet é uma tecnologia que, pela novidade e acesso de casa sei
suas inúmeras possibilidades, amplia a motivação exatamente onde
dos alunos à pesquisa.” encontrá-las.”
Alane Maria Leal da
Rocha, 10 anos
Nesta proposta, Sonia Maria tem usado progra-
mas que possibilitam a criação de jornais eletrô-
nicos escolares, que simula uma redação de jornal
e onde os alunos fazem desde a produção textual,
de imagens (fotos e desenhos), até a editoração e
publicação na web, utilizando um ambiente que
integra os usuários participantes.

“Lembro sempre que é possível aprender conver-


sando com pessoas, assistindo a vídeos, documen-
tários e notícias. Acredito que ao assumir o papel

179
de leitor e pesquisador, o professor consegue incentivar os alunos às
mesmas práticas, levando-os a participar ativamente do processo de
aprendizagem”, afirma a professora Sonia.

Leitores preparados

“As atividades que realizo com o jornal, tenho absoluta certeza, tor-
nam meus alunos mais preparados para a leitura e a efetiva com-
preensão daquilo que leem. À medida que a pessoa lê e consegue
identificar as ideias principais do texto, passa a levar em conta os
fatores que influenciam a situação examinada, e isso dá sentido à
leitura. É um círculo virtuoso realimentado por novos textos e novas
descobertas”, diz Sonia.

Isso ocorre, segundo ela, porque o jornal publica informações atua-


lizadas e usa recursos de comunicação que facilitam a compreensão
dos fatos. “O aluno pode entender a lógica dos movimentos da socie-
dade e, com isso, cria suas próprias hipóteses e pode ainda entender,
contestar, expor ideias e defender os seus interesses.”

O jornal também possibilita a conexão, não apenas com as diver-


sas disciplinas, mas especialmente entre a comunidade escolar e o
mundo. Quando a proposta de estudo ocorre a partir dos conteúdos
do jornal, tudo fica fácil e nota-se que o assunto abordado vira um
tema inesgotável.

“Sinto que todos ganham nesse processo. E isso acontece porque


não há competição nem isolamento em sala de aula, só trabalho
em equipe”.

180 Capítulo 8 - Ciberleitura


Todos atualizados

A professora Sonia também destaca que, ao longo


do tempo, além de o trabalho com o jornal des-
pertar os educandos para a importância da leitu-
ra e da informação como base para a construção
do conhecimento, ainda permite uma constante
atualização tanto do educador como do aluno,
mantendo todos em sintonia com os temas mais
relevantes da atualidade.

E só ficando atento ao que acontece e ao que “O jornal visto pela in-


desperta o interesse do grupo é que o professor ternet é interessante e
consegue estabelecer esse tipo de diálogo com os divertido. Para buscar
alunos. Avaliar as práticas, retomar e redirecionar uma notícia, vamos
a transmissão dos saberes e relacioná-los com tais direto aonde a gente
interesses, que podem transitar da política aos es- quer. É tudo mais rápi-
portes, das artes à moda, dos negócios às ciências do e interativo. Gosto
e tecnologias, é a única forma de tornar o processo muito quando desen-
eficiente e eficaz. volvemos atividades
pelo computador.”
Daniel Alves da Silva,
A sincronia fina entre os acontecimentos externos
10 anos
e a sala de aula amplia a bagagem cultural, facili-
ta o diálogo e o entendimento em classe, equilibra
a relação entre professor e aluno e permite o en-
gajamento social. E quando todos falam a “mes-
ma língua” e discutem assuntos que conhecem,
as conclusões ficam mais consistentes, ganham
importância social.

181
Caminho sem volta

Para o professor que até gostaria de trabalhar com o jornal e ou-


tras mídias em sala de aula, mas ainda percebe mais problemas que
benefícios na proposta, Sonia dá um recado: as gerações que estão
chegando hoje à escola já nasceram “plugadas” e, por isso, é preciso
refletir sobre as práticas didáticas, planejar atividades que contribu-
am para os objetivos que a escola quer atingir e escolher com cuida-
do os recursos que serão usados.

“O professor que não se atualizar terá cada vez mais alunos desmo-
tivados e com baixos rendimentos escolares. Essa nova maneira de
educar, usando as mídias, é desafiadora e muito diferente da manei-
ra tradicional com a qual eu e a maior parte dos professores fomos
qualificados durante o curso de Magistério, mas é um caminho sem
volta.”

“Tomando por base o que acontece comigo – e o mesmo já foi ma-


nifestado por vários alunos –, o jornal permite que nos libertemos
da rotina, amplia a consciência e promove a valorização de todos,
porque pessoas informadas se sentem mais preparadas para a vida.
Com o jornal, as aulas podem ser conduzidas de forma mais agradá-
vel e interessante. Ganham os alunos e eu também ganho, e muito”,
assegura a professora Sonia.

182 Capítulo 8 - Ciberleitura


Com charges, cartuns e tirinhas em mãos, alunos são levados a perceber e a debater
situações polêmicas que envolvem a realidade.

Sala de informática é território comum nas aulas da professora Sonia, que por meio de
jornais eletrônicos estimula a leitura.

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