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1 INTRODUÇÃO
A presente monografia tem por escopo apresentar os fundamentos do conceito de lesa-
secularism como parte de um movimento de contestação da ordem religiosa vigente que se
inicia, dentre outros, no Estado de Acre, com o Encontro Nacional de Ateus – ENA, evento de
organização nacional que foi realizado entre 2012-2015, mas ecoou em terras acrianas entre
os anos de 2013-2016. O ENA, como ficou conhecido tal evento no país, só teve a
participação acriana em sua segunda edição. Um dos convidados, o Prof. Marcos Alexandre,
proferiu a primeira palestra da edição local denominada “O Sol Nasce Para Todos” e segunda
nacional. No molde nacional, muitas capitais resumiram-se a realizar churrascos numa espécie
de confraternização entre colegas. Foi somente no Acre que o projeto idealizado pela página
do facebook Sociedade Racionalista e apoiado pela ATEA (Associação Brasileira de Ateus e
Agnósticos) teve certificação acadêmica.
O início dessa empreitada acadêmica, além do evento mencionado, partiu de um
estudo minucioso da obra A história do ateísmo de George Minois (2014) que faz um recorte
histórico acerca dos diversos gêneros em que se subdivide o ateísmo, bem como analisando
seus críticos, seus maiores pensadores e perseguidores ao longo dos séculos. O ateísta é antes
de tudo um livre pensador. As redes não lhe aprazem. Ao largo deste debate, vale salientar que
a dignidade da pessoa humana, fundamento da República brasileira, será tratada, por vezes,
como um dos fundamentos do conceito de laicidade, consoante a visão defendida neste
trabalho.
O preâmbulo da constituição federal foi promulgado sob a guarda de Deus durante a
constituinte. Por sua importância, tratam-se, portanto, as crenças, como segundo fundamento
do conceito da laicidade aqui apresentado: a humanidade precisa da guarda (e permissão) de
Deus. Além de um fundamento, esta é também uma temperança. Para além do radicalismo
imanente da humanidade, está sua capacidade de acreditar. Se a revolução laica um dia
ocorrer, este é um direito que jamais pode ser obliterado: o direito de crer.
Para os efeitos desta empresa, a laicidade será posta em pé de igualdade com a
dignidade da pessoa humana, este, será, por fim, a base do ensaio do conceito proposto no
título. Dentro do período estudado, além das previsões que acabaram se confirmando (a
elaboração da presente monografia iniciou-se antes da eleição presidencial), está
inegavelmente a Ação Direta de Constitucionalidade nº 4439, onde era arguida a
inconstitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas e nos autos de
primeiro grau advindos da justiça acriana.
À despeito deste direito – o de crer - hodiernamente ter sido utilizado para propósitos
que ofendem os direitos humanos, amiúde, a religiosidade gera grandes homens. Deve-se
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respeito ao medo da morte. Justifica-se, por isso, o objeto do presente estudo; pela tentativa,
mesmo que infrutífera ou ignorada pela academia, de escrutar mais a fundo esta dicotomia
inerente: laicos x não laicos.
O conceito de lesa-secularism bebe nesta fonte: mas vai além, buscando o nascedouro
da primeira. É neste nascedouro que está o fundamento da laicidade, que tem em seu tripé,
além da dignidade da pessoa humana e o memento mori (crenças), a luta de classes como um
fim em si mesmo. Luto, logo existo. Não importa quantas classes haja, já defendia Foucault,
elas permanecerão em permanente conflito pelo controle do poder.
No iluminismo, por exemplo, estão as bases para a dignidade da pessoa humana (Kant,
por exemplo), o memento mori vem de Nietzsche (dentre vários outros filósofos que tratam da
temática morte) e do medievo, mas é com o auxílio da sociologia que esta história jurídica se
deslinda. Strauss não poupa críticas a este imperador positivo do direito brasileiro que deve
ser superado:
Neste ponto, ainda estamos perante algo que se assemelha a uma norma objectiva, a
um imperativo categórico: “Tu terás ideais”. O imperativo é “formal”; não determina
de forma alguma o conteúdo dos ideais, mas ainda poderia parecer que estabelece
um padrão inteligível ou não arbitrário que nos permitiria distinguir de uma maneira
responsável entre a excelência humana e a depravação. Por conseguinte, poderia
parecer que cria uma irmandade universal de todas as almas nobres; de todos os
homens que não são escravizados pelos seus apetites, pelas suas paixões e pelos seus
interesses egoístas; de todos os “idealistas” – de todos os homens que podem
estimar-se e respeitar-se mutuamente. Porém, isso não passa de uma ilusão. O que à
primeira vista parece ser uma igreja invisível acaba por ser uma guerra de todos
contra todos, ou melhor, um pandemonium. A formulação de Weber do seu
imperativo categórico era “Segue o teu demónio” ou “Segue o teu deus ou o teu
demónio”. Não seria justo censurar Weber por se ter esquecido da possibilidade de
haver demónios malignos, mesmo que possa ter sido culpado de os subestimar. Se
tivesse sido pensado apenas nos bons demónios, seria forçado a admitir um critério
objetivo que lhe permitisse distinguir em princípio os demónios benignos dos
malignos. Na realidade, o seu imperativo categórico quer dizer “Segue o teu
demónio, seja ele benigno ou maligno”. Pois não há conflito insolúvel e mortal entre
os vários valores que o homem tem que escolher [...]. A baixeza absoluta consiste
em seguir os próprios apetites, as paixões ou o interesse, a ser indiferente ou tíbio
perante os ideais ou os valores, perante os deuses ou os diabos (STRAUSS, 2009, p.
41-42).
Uma tese jurídica densa, ao fim e ao cabo, passa por um exercício de convencimento.
Dentre as múltiplas classes que o século XXI e o capitalismo engendrou, permeia, em maior
ou menor grau, a antinomia laicos e não laicos. Simplifique-se: há ricos e pobres em cada lado
do muro, em maior ou menor grau, geralmente a depender do grau de instrução. Algumas
classes, como a científica (capitalismo financeiro), possuem laicos em maior número. Entre as
classes, A, B, C, D e E enumeradas no jornal, o pensamento laico permeia; embora todas, no
Brasil, sejam politicamente representadas de forma esmagadora pelos não laicos.
É este ser sedento de conhecimento e arrogância que assassina seu criador, segundo
Nietzsche. Um exemplo análogo utiliza-se para criticar a ausência de presença feminina no
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congresso, muito embora mais da metade da população seja constituída por este gênero:
ambos os casos denotam um grave problema de representatividade, bastante comum no
Brasil.
Na contramão do que os países com um grau de ceticismo avançado fizeram na virada
do milênio, o Brasil proibiu as pesquisas com células tronco. A grande discussão de onde
começa a vida que o direito tão afavelmente surrupiou da medicina, findou na bancada
evangélica e católica do congresso, um atraso ímpar para o progresso científico nacional
financiado por setores retrógrados da sociedade. Das várias teorias (natalista,
preconcepturista, etc.), a ciência ainda não tem uma resposta definitiva para tal questão, o que
não significa deveras que a bancada da Bíblia possa proibir o aborto: a expressão maior do
direito de dispor do próprio corpo, inerente à condição feminina; tal qual o direito de dispor
da própria descrença é um direito inerente à humanidade.
A temperança do fundamento da laicidade para os objetivos deste estudo, nos infirma
que acreditar que o aborto é condenável (no estrito sentido que o cristianismo imprime a esta
expressão) é permitido: proibi-lo em razão desta crença, jamais. Esclareça-se: o ‘eu não
posso’ não deve significar ‘você não pode’ numa esfera jurídica minimamente razoável.
Contudo, não foi desta forma que entendeu o STF no voto vencedor do Ministro Alexandre de
Moraes na ADI em estudo. A ADI nº 4439 lança luz acerca da colisão entre a dignidade da
pessoa humana (dispor de seu corpo e mente e, por conseguinte, do direito de não crer) e o
direito de utilizar dinheiro público para financiar o ensino confessional.
Retomando o exemplo do aborto, tem-se que o Código Penal brasileiro condena a
prática expressamente. O aborto é uma conduta juridicamente tipificada e condenável na
esfera moral cristã. E a dignidade da pessoa humana? Os críticos deste conceito certamente se
escudarão no argumento de que o feto tem a mesma dignidade que a mãe. Um vão argumento,
pois o feto não existiria fora do corpo materno, sem seu corpo, sem seus cuidados mínimos
mesmo após o nascimento.
Para esclarecer, utilizar-se-á a seguinte hipótese: uma mãe cristã na angústia do
julgamento de sua religião após realizar um aborto, sabendo do que pensam as alas radicais de
sua igreja, acerca da condenação ao sofrimento eterno, resolve tirar a própria vida. Se
legalizado, o aborto seguro salvaria ao menos uma vida. Agora tomemos um exemplo nada
hipotético: uma mãe que morre durante um aborto realizado de forma ilegal, pois no país isto
é fato típico e antijurídico e condenável, tanto para quem realiza o aborto quanto para quem
permite ou auxilia tal prática.
Continuando neste exemplo nada incomum no Brasil, poderíamos chegar a destruir,
em detrimento de um feto, a vida da mãe, a vida do médico, a vida dos genitores dos
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adolescentes, a vida de tantos outros cujo núcleo duro dos artigos 124 a 128 do Código Penal
atingem. A mãe que permitiu poderia ser prejudicada. Quantas vidas destruídas, condenadas,
por um feto. Um amontoado de células, hoje, pode condenar muitas pessoas inclusive à morte
numa mesa de clínica de aborto clandestina.
Assim, defende-se neste estudo, como na dialética marxista, que há sempre uma luta
de contrários. No capítulo dedicado a crítica da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº.
4439 – que tramitou coetaneamente a este estudo - proposta pela Procuradoria Geral da
República contra o ensino confessional em escolas públicas (e as subvencionadas pelo poder
público?), será analisada a decisão do plenário do pretório excelso. No decorrer do estudo, a
visão imprimida à ideia do mito baseada no estruturalismo de Lévi-Strauss e suas implicações
para o “mito da laicidade” poderão engendrar a legitimidade ad causam para um futuro
recurso na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH contra a recente decisão do
pretório excelso, por exemplo.
É no voto exarado pelo Ministro Roberto Barroso que se visa fundamentar,
juridicamente, a empreita proposta. Esta ADI está para o ENA, como o discurso do Professor
Doutor Wlisses James, durante o segundo ENA, está para a sustentação oral da ATEA no
Supremo Tribunal Federal – STF: verdadeiros manifestos ateístas contemporâneos.
A ADI tratada, o ENA, e os demais referenciais, com toda vênia aos obter dictum do
discurso de ambos os lados, é apenas uma gota no oceano da obra A História do Ateísmo de
George Minois (2014). O ensino confessional não coaduna com princípios e fundamentos
basilares da constituição e não somente porque ele ofende de morte o princípio insculpido no
art. 19, inciso I, da Constituição Federal. Ele é a perpetuação do pensamento não laico no
Estado, a cola que permite ainda a imbricação de ambos, mas sempre com a religião acima:
por isso o judiciário, um de seus poderes, o valida. A fala do professor Dr. Wlisses James,
egresso do curso de história e professor da instituição que sediou o evento foi um dos
principais elementos do encontro:
[...] eu acho que o que nós temos que discutir aqui primeiro eu sou ateu ou
materialista [...] eu não acredito na existência de um deus ou de deuses... isso não
significa dizer que eu quero destruir as religiões, não perco meu tempo discutindo
com as pessoas se elas creem ou não creem, eu só quero ser respeitado por não crer.
Eu acho que essa é a perspectiva que nós temos que pensar, o ateísmo não é religião!
É exatamente a liberdade de não crer. E o Estado brasileiro nos últimos 20 anos
tem tido um crescente de gigantesco de fundamentalismo religioso e eu acho que
isso nós temos que estar preocupados [...] a pouco menos de um mês no congresso
nacional [...] querendo colocar a perspectiva que o homossexualismo é doença,
patrocinado por grupos religiosos [...] o Estado laico brasileiro está sendo
profundamente ameaçado [...] (informação verbal, grifo nosso)1.
1 A íntegra do II ENA, ocorrido na Universidade Federal do Acre em 2013, está na documentação entregue à
banca examinadora da presente monografia.
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em uma pessoa qualificada que fosse mulher (95% votariam), católica (94%
votariam), judia (92% votariam), negra (92% votariam), mórmon (79% votariam),
homossexual (79% votariam) ou atéia [sic] (49% votariam) [...] (DAWKINS, 2006,
p. 27, grifo nosso).
ou menor grau, ainda que somente escondida sob uma faceta mitológica. Esta é uma das
facetas do conceito memético utilizado na obra O Gene Egoísta de Richard Dawkins (1979),
qual seja, os memes desejam se reproduzir assim como os genes. Logo, não é sem razão que a
dicotomia por excelência, aquela que a presente monografia visa defender, está entre laicos e
não laicos, modificando, portanto, o termo utilizado por Minois e Marx (ateus x crentes;
burgueses x proletários), bem como delimitando seu alcance dentro dos parâmetros do projeto
de pesquisa já apresentado.
E se escora aí não somente pelo fato de que tal contradição ou antinomia entre classes
estar inserta nos mais diversos níveis sociais que o capitalismo produziu; para além disso,
representa a dominância e o grau de que cada um dos três elementos do conceito de lesa-
secularismo proposto, sendo um dos fundamentos pétreos que visa desconstruir o mito da
laicidade, dando a este fundamento – o maior deles a se tomar a pirâmide kelseana como
parâmetro – deve ser sopesado com os demais fundamentos do lesa-secularismo: a dignidade
da pessoa humana, e por último, o memento mori.
Como em qualquer conceito inaudito, utiliza-se de recursos de linguagem como a
hipérbole e eufemismos; numa sociedade ideal, essas questões estarão no topo de qualquer
análise jurídica séria, tendo em vista que, mutatis mutandis, os males da humanidade
decorrem da ignorância ou desrespeito de um ou outro fundamento da pirâmide proposta
dentro do conceito de lesa-secularismo.
Sopesando estes princípios-fundamentos da nova roupagem impresso ao secularismo,
agora já imprimindo a importância que lhe será dada, a crença deve ser o menos importante,
pois se trata de uma característica predominantemente pessoal. O eu nunca deve sobrepor-se
ao nós.
O povo brasileiro pode crer em deus(es), mas ele não deve controlar a legislação e a
vida ordinária do cidadão. A dignidade da pessoa humana imprimi sua relevância em virtude
da máxima “não fazer aos outros o que não desejas que façam a ti”. E este é o segundo
princípio-fundamento justamente porque a vida é tragédia. O ser humano tem um lado
lúgubre inerente, imanente. A tragédia. E o último fundamento, emprestado da sociologia
marxista, é a luta de classes, pois é na dicotomia/antinomia laico x não laicos que está o
bastião do fundamento da laicidade ou secularismo. Uma lesão à laicidade é uma lesão ao
pensamento secular.
O verdadeiro campo de batalha do fundamento é a luta entre estas duas classes,
antagônicas, extremamente belicistas que se distribuem sempre entre os laicos e não laicos.
Os instrumentos da batalha, nesta elucubração, são a dignidade da pessoa humana e o
memento mori, como se um lado dissesse ao outro ser detentor da ‘verdade’ sobre os “deveres
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ser” da humanidade. Afirma-se isto pois laicos não são apenas os ateus, mas também os
agnósticos e até mesmo cristãos moderados que adotem os princípios da laicidade. Da mesma
forma que ateus podem ser não laicos (ao não defender o aborto, por exemplo); não se trata de
duas categorias totalmente estanques, não se trata de um rol taxativo, ao contrário, trata-se
apenas de uma simplificação para os fins deste estudo.
Assim, quando o mito2 da maioria verte num daqueles discursos que representam bem
a análise que se visa criticar (ódio contra homossexuais, preconceito e discriminação contra os
laicos, etc.), aquela onde a minoria tem que se "submeter" a vontade da maioria; o mito não
tem somente estruturas como acredita Strauss, o mito é em cada milissegundo da história.
Faz-se inevitável a provocação: do início ao final desta pesquisa, o próprio termo “mito”
ganhou novas acepções meméticas. Logo, em cada sociedade, cada época, o conceito de
laicidade é erigido à sua maneira mítica, incluindo-se aí o próprio conceito de Deus.
No breve estudo de caso que será realizado acerca do episódio conhecido como
queima da bíblia ocorrida no evento denominado IV ENA, tal dicotomia se torna clara: o ‘nós’
e ‘eles’, laicos x não laicos. A premissa que se erigi a partir daí é que os radicais de fato
acusam as vítimas – o conceito da cristofobia e heterofobia denotam isto – de serem os
verdadeiros radicais, alicerçados pelo discurso – amiúde - das instituições que deveriam velar
por estas minorias: perpetua-se assim o paradigma da perseguição ao que não se compreende,
todavia, sob uma nova roupagem.
O STF, um dos poderes republicanos constituídos na Carta de 88, cuja atribuição,
dentre outras, é velar por seu papel de controle contramajoritário, deu a palavra final na ADI
4439 quando decidiu que deve ser confessional o ensino religioso nas escolas públicas; este
status quo, lato-sensu, é apenas uma das facetas que levou o vocalista da banda Violação Anal
ser perseguido.
O importante, aqui, é estabelecer que a vontade de potência laica, aliada ao
materialismo histórico dialético, pode desembocar em algo mais poderoso: o conceito de lesa-
secularism, elevando-o, conforme será defendido, ao rol de direitos abarcados pelos institutos
da imprescrição e da impossibilidade de graça ou anistia, por exemplo. Não se quer aqui
defender que os seis ministros que defenderam o ensino confessional no STF sejam párias
como será abordado no capítulos 5, contudo, enfrentarão o julgamento da História. A história
laica é uma história material, desde fogueiras até mesmo à loucura – no caso de Nietzsche -,
perpassando pelas abjurações e preconceitos cotidianos que fazem dos choques de existência
2 Nietzsche entendia a tragédia como algo necessário, daí a necessidade de uma análise mítica no sentido em que
será defendido no presente estudo, tendo em espeque a desunião dos laicos que permite, em tese, uma dominação
imposta na esfera jurídica, como restou configurado na decisão da ADI 4439 e que retumba nas esferas social,
econômica (vide a poderosa igreja erigida por Edir Macedo) e vai ao encontro da própria definição de nomos em
Strauss.
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laica x não laica um adequado objeto de estudo a ser avaliado sob a perspectiva da dialética
marxista.
A presente monografia tem por objetivo, portanto, a partir do materialismo histórico de
Marx, consoante se defenderá no capítulo 6, lançar luz sobre os eventos elencados para daí,
numa análise destes, entender o motivo de ainda experimentar-se hodiernamente de forma
mítica o princípio da laicidade insculpido no art. 19 da carta magna; sendo este ainda visto
como algo irreal por alguns ou até cruel por outros.
Por fim, após o escrutínio da bibliografia proposta e da documentação reunida, trazer
entendimento sobre questões que vigem em nossa sociedade de forma tão premente: desde
perseguição a religiões afrodescendentes à cura gay; passando pela ausência de ateus
declarados na política e pelo STF "acovardado" ante a questão do ensino confessional nas
escolas públicas. E, sem qualquer pretensão de encerrar o tema, escrutar o ato mais polêmico
em defesa destes valores: o direito de queimar o livro que tantos queimou durante a história
da humanidade no contexto de uma apresentação artística (a desconstrução do mito). O mito e
a arte andam de mãos dadas, o fogo e a mitologia igualmente...
3 Defende-se aqui a ideia de que a vontade de potência é superior, na filosofia nietzschiana, ao próprio conceito
de eterno retorno do mesmo, posto que é no primeiro conceito que Nietzsche trata da própria vontade de criação
de novos valores para sociedade.
4 Repise-se que os termos proletários e burgueses já estão desatualizados, posto que o capitalismo tornou-se
global; logo, tanto trabalhadores quanto capitalistas, só podem ser vistos sob o mesmo espeque.
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5 O leitor observará que no decorrer do trabalho a ideia de fogo sob diferentes óticas e acontecimentos, sendo tal
ideia retomada em várias passagens durante o texto.
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e que qualquer entendimento contrário não deve ser obrigatório e sequer considerado numa
grade secular de ensino.
Nos enterros e funerais a etiqueta exige uma paráfrase do tipo “ele foi para um lugar
melhor”. Os laicos negam esta visão, todavia esta negação não implica violência; antes, é
apenas resultado imaterial da memética e uma luta contra a ficção que se tornou o art. 19 da
constituição. Certamente, advém desta dificuldade em retirar da laicidade sua faceta mítica
que alguns países não descartaram a luta armada, especialmente sob a ótica dos laicos
comunistas; os comunistas asiáticos fizeram suas inquisições contra os não laicos,
perseguiram os cristãos. Não à toa o nome da revolução das revoluções, a Maoísta, é
predominantemente guiada pelo laicismo radical. Assim tal embate é detalhado em outro
momento histórico:
[...] Em maio de 1960, a revista kommunist publica o resultado de uma pesquisa
sobre o ateísmo que foi realizada com os trabalhadores das fazendas coletivas
situadas ao norte de Moscou: afastados de tradições e com costumes rurais, eles
perdem rapidamente as noções religiosas; a oração definha e conserva apenas um
aspecto estritamente utilitário. Uma cátedra de “ateísmo científico” é criada em
Moscou em 1963 (MINOIS, 2014, p. 647).
Desta forma, assim como não se acredita que hoje um usuário de psicoativos deva ser
preso, o usuário deste psicoativo “fé” igualmente não deve sofrer consequências. Na China,
adotou-se a liberdade de culto, mas sem a possibilidade de arrecadar-se dinheiro com isto.
Assim, a tragédia aqui abordada, foi o não entendimento desta mensagem: a laicidade do
Estado, este ente mítico – o leviatã – que defende os direitos mais fundamentais do ser
humano, deve ser preservada primordialmente a fim de que sejam evitados tais radicalismos
por um ou outro lado.
O mito da caverna coetâneo deve ser superado pela obliteração do mito da laicidade. O
Estado só é laico para os não laicos, num paradoxo terrível, pois minorias como os ateus e
agnósticos veem-se totalmente alijadas de seus direitos mais fundamentais: o de não crer, ou
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duvidar da crença alheia. O estudioso a seguir não poderia ser mais preciso sobre um fato que
ainda vai demorar a aportar em terras acrianas:
A civilização do ano 2000 é ateia. O fato de ainda falar de Deus, Alá, Iavé ou outros
não muda nada, porque o conteúdo do discurso não é mais religioso, mas político,
sociológico, psicológico. O próprio sagrado deixou de existir; nem o homem, que
era visto no século XIX como o sucessor de Deus, tomou o seu lugar. Basta ver
como ele é tratado, como é manipulado, como é martirizado, para se convencer de
que a humanidade não foi divinizada. No naufrágio generalizado dos valores, resta
apenas um sagrado irredutível: eu (MINOIS, 2014, p. 730).
Critique-se o fato de que Nietzsche não era afeito a ideia de que houvesse no
proletário homens excelsos que pudessem destruir ídolos; note-se atentamente que ambos,
proletários chineses e russos, como participantes de revoluções laicas, em última análise,
destruíram ídolos. O antropocentrismo jurídico que isto implica é sem precedentes, tendo em
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vista que ter fé e ter religião são antinomias, conforme denota a citação acima. Fé há em
milhares de deuses, desde o Mestre Irineu, homem genial da plebe – já introduzindo uma
crítica á Nietzsche6 – que criou em pleno Acre do século XX uma fé inabalável num chá que
já visitou o mundo inteiro (conhecimento roubado dos índios, naturalmente).
Crença é fé: é acreditar em algo metafísico, além do physys em Strauss: mítico. Não se
discute fé, fé se aceita. Eu tenho fé que um dia vou morrer: memento mori. Esta é uma crença
comum a todos, laicos e não laicos e é justamente no único momento de existência em que
estão juntos, já que no decorrer de suas vidas, perseguem-se. Em toda crença verdadeira há
beleza, ou não seria uma crença. Em muitos casos, esta beleza se resume ao medo da morte,
como defendia Nietzsche. Até quando se temerá a laicidade plena? Por isso este filósofo foi o
anunciador da morte de deus. Não porque Ele de fato tenha morrido para os que têm fé, mas
para os laicos, que não aceitam mais suas premissas e mandamentos. Seja culpada ora a
ciência (a gaia ciência), ora o próprio homem, criador da ciência, o responsável pelo deus
moribundo retratado em sua obra é, acima de tudo, o próprio Deus ciumento, vingativo e
crucificado, único responsável por sua própria decadência. Segundo Strauss:
[...] a busca pela sabedoria, a busca pelo conhecimento universal, pelo conhecimento
do todo. Essa busca não seria necessária se tal conhecimento fosse acessível de
forma imediata. No entanto, o afastamento do conhecimento do todo não significa
que o homem não tenha pensamentos sobre o todo: a filosofia é necessariamente
precedida por opiniões do todo [...]. Filosofia é, essencialmente, não a possessão da
verdade, mas a busca pela verdade (STRAUSS, 2013, p.1-2).
6 Nietzsche defende que os “homens superiores” adviriam de uma casta de intelectuais, numa redução simplória,
os “além-do-homem”. Defende-se aqui que os verdadeiros além-do-homem são os laicos; é uma assertiva
logicamente comprovável partindo-se das premissas básicas de que Marx acreditava que uma “classe” supera a
outra (premissa 1) e de que destruir ídolos está fortemente atrelado aos dois pensamentos; Marx cria que era o
povo (proletário) quem os destruiria – como de fato ocorreu durante a revolução de 17 – já Nietzsche pregava
que seriam os além-do-homem a quem caberia tal tarefa.
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Portanto, o princípio deveria ser o da não laicidade, pois como hoje é entendido o
princípio da laicidade, seriamente compromete os direitos humanos mais elementares: dentre
eles, o da dignidade da pessoa humana que é, em verdade, um fundamento sobre o qual se
erige o Estado de direito brasileiro e um dos fundamentos para o conceito de lesa-secularismo.
Por fim, a vontade de potência laica é a desconstrução do próprio conceito de que o país é
laico e defende o princípio da laicidade, daí dizer-se princípio da não laicidade. Eis a grande
ironia: se a tragédia grega é o “bom e o belo” para Nietzsche, a sabedoria dos índios deveria
igualmente ser para qualquer brasileiro: é a cultura pátria representada, uma cultura que
inundou o mundo pelo seu belo e bom conhecimento da natureza: o chá, por exemplo. Isto é
uma crença, defendida pelo princípio da laicidade; agora ser laico não é defendido por este
mesmo conjunto de leis.
É no materialismo histórico dialético que se encontra o motor da história e este, com
toda vênia e respeito ao brilhantismo de Marx, não poderia visualizar o que a globalização
trouxe a este insólito cenário: o combate de todos contra todos. Milhões de imigrantes sírios
perderam sua vida por este embate que envolve religião e dinheiro, desembocando na política,
e causando inúmeras tragédias. O Estado Islâmico não é fruto da mente de insanos, é fruto da
mente não laica. Eis o mito da laicidade: uma tragédia grega anunciada, alimentada pela
Esperança, aquele sentimento último da caixa de Pandora, o mais nocivo dos sentimentos.
Os ideais ou valores culturais carecem do caráter especificamente obrigatório dos
imperativos morais. Estes têm uma dignidade própria, e Weber estava interessado
em garantir que essa dignidade fosse reconhecida. Mas, precisamente por causa da
diferença fundamental entre comandos morais e valores culturais, a ética
propriamente dita guarda silêncio quanto às questões culturais e sociais. Embora os
gentil-homens, ou homens honestos, concordem necessariamente a respeito das
coisas morais, eles discordam legitimamente a respeito de coisas como a arquitetura
grega, a propriedade privada, a monogamia, a democracia, e aí por diante
(STRAUSS, 2009, p. 40).
É por isso que dificilmente alguém que chute uma imagem de Nossa Senhora
enfrentará o Ministério Público acriano e a polícia; mas alguém que queima uma bíblia não
encontra o mesmo benefício. Um laico não pode manifestar seu protesto livremente, como
assegura a constituição para os que têm crenças. Nem acobertado pelo espaço de autonomia
acadêmica, num evento laico, um ateu pode se comportar livremente. Eis o mito representado
através de uma tragédia jurídica (e memética) recente.
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Em 2013 o II ENA teve como palco a própria Universidade Federal do Acre - UFAC,
sua principal apoiadora nestes quatro anos de história do projeto de extensão. A grande
repercussão e as várias demonstrações de preconceito foram apenas o primeiro passo nesta
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árdua caminhada que só teve um começo, mas jamais terá um final: a caminhada rumo à
laicização de fato de um país de raízes profundamente cristãs.
Dentre os inúmeros relatos de preconceitos enfrentados, as ameaças de morte sofridas
contra o subscritor da presente monografia e ao vocalista da banda violação anal (Roberto
Silva, estudante de filosofia da UFAC que efetivamente incendiou a palavra de Deus), a
mudança do local do outdoor de divulgação do evento contratado junto a uma empresa de
publicidade local de forma unilateral e a depredação de cartazes do evento de divulgação de
ano após ano, são apenas alguns exemplos. Sobre o episódio do outdoor, um dos integrantes
da equipe, certa monta, passando pelo local contratado, notou que a propaganda não mais
estava lá. Um vídeo-denúncia foi gravado e veiculado no youtube cuja repercussão
rapidamente fez com que pedidos de desculpas e retratações fossem oferecidos pela empresa
em questão; foi uma vitória com gosto de derrota, tendo em vista que a propaganda do evento
naquele ano fora substituída por uma firula carnavalesca do governo do Estado, numa
flagrante quebra de contrato.
Parafraseando Hobsbawn, podemos visualizar algo semelhante a uma “Era dos
Ídolos”, principalmente nas sociedades ocidentais, de forte tradição cristã; o malafaísmo, o
macedismo e demais fundamentalismos neopentecostais estão tendo um avanço temerário na
sociedade tupiniquim, aliando o desespero econômico à famigerada teologia da prosperidade.
Esta última, sendo a responsável, inclusive, pelos “nortes” (inclusive educacionais) da forma
de pensar contemporânea: o novo Cristo quer enriquecer. Exemplos pululam. No Acre, um
pequeno passeio pelas ruas leva qualquer José à fachada de diversas denominações deste tipo:
o colégio São José (que recebe dinheiro público), colégio Adventista, João Calvino, o extinto
Colégio Batista, igrejinhas a cada esquina, caixas de som ensurdecedoras e pessoas pregando
alhures.
Cristãos amiúde utilizam-se de máximas como “você deveria ter mais respeito pela
minha religião”, ou “se você não crê, porque se importa?”. Quando reunidos pela primeira vez
na história do Estado, no dia 17 de fevereiro de 2013, os ateus acrianos escolheram discutir
filosofia, sendo este, desde então, o tom de todos os eventos. O professor Wlisses James da
Universidade Federal do Acre, durante uma intervenção no II ENA, já referenciada acima,
ressaltou sua preocupação quanto a um aluno fundamentalista que teve na própria UFAC
dizendo que “em alguns anos ele vai estar dando aula em alguma escola por aí”.
[...] A introdução recente de capítulos da história religiosa nos programas de ensino
secundário da França também provoca reações. Certos livres-pensadores se
alarmaram com o modo como os autores de livros didáticos para o primeiro ano do
ensino médio, por exemplo, trataram a questão da origem do cristianismo. Em abril
1998, numa “tribuna livre” da revista Historiens et Géographes, Michel Barbe se
assumiu como porta-voz dessas preocupações, afirmando que “esse capítulo tende a
27
Esta é uma preocupação válida, pois a educação é o meio pelo qual o preconceito é
enraizado numa sociedade, tanto no núcleo familiar quanto nas escolas e igrejas. Escolas
dominicais, geralmente, são o primeiro contato de uma criança com a Igreja enquanto
instituição. E o pastor, padre ou ministrante, sempre um adulto, é visto pela criança, como
detentor de um saber que não deve ser questionado. Vejamos o que Richard Dawkins diz a
respeito:
A religião fundamentalista está determinada a arruinar a educação científica de
inúmeros milhares de mentes jovens, inocentes e bem-intencionadas. A religião não
fundamentalista, “sensata”, pode não estar fazendo isso. Mas está tornando o mundo
seguro para o fundamentalismo ao ensinar as crianças, deste muito cedo, que a fé
inquestionável é uma virtude (DAWKINS, 2009, p. 72).
Há uma imagem emblemática e ao mesmo tempo estarrecedora sobre este tal livro
sagrado que denota bem o movimento contestatório ateu e talvez ajude o leitor a compreender
o ato do estudante de filosofia Roberto da Silva. Trata-se de uma imagem que a equipe ENA
produziu em parceria com o Núcleo Ateísta de São Paulo em 2013 e cuja repercussão é
bastante conhecida no meio ateu. A imagem, permeada pelo humor negro (característica
ateísta por excelência), compara a bíblia a uma caixa de cigarro (ou seja, perigosa), faz
admoestações exageradas, porém, não menos válidas quando se trata de observar a Bíblia
enquanto escrita por “pessoas inspiradas por deus”.
O III ENA, realizado em 2014, teve como palco o Memorial dos Autonomistas e
contou com a presença de um padre católico entre os palestrantes. Foi o evento de menor
repercussão tanto midiática quanto de público, tendo em vista o pouco tempo para
organização disponível.
O IV Encontro Nacional de Ateus foi novamente um núcleo de arte, filosofia e grande
polêmica. Desde sua primeira edição, o ENA propiciou à comunidade acriana, debates
acalorados por onde quer que tenha passado. Em sua quarta edição, os debates e resultados
foram muito além das expectativas (tanto de público esperado, quanto de repercussão na
imprensa e na sociedade), tornando-se desde sua primeira edição, um capítulo que não poderá
ser ignorado pelas gerações vindouras.
O II Sara(te)u trouxe mais de quinhentas pessoas para o campus da UFAC e propiciou
um lugar de grande efervescência artística e filosófica para os que ali compareceram. Para
além do episódio incontroverso (e certamente fruto de análise e estudo por parte das gerações
futuras) da queima da Bíblia, pode-se ver um público realmente interessados pela história
desta minoria que os ateus representam. Durante este evento musical, teatral e que contou
com a apresentação de vários artistas locais e desta universidade, o microfone aberto
28
proporcionou um espaço de divulgação cultura para os presentes, bem como para as bandas
que ali se apresentaram.
O CD entregue a reitoria de extensão possui um vasto arquivo fotográfico deste dia
que entrou definitivamente para os anais da história. A terceira edição do ‘CinemAteu’, afora
os debates que levantou e as discussões realizadas, trouxe inclusive um filme que sequer foi
exibido em um único cinema da capital acriana: A teoria de tudo.
O V ENA em si novamente reuniu professores, alunos e sociedade civil num momento
ímpar de divulgação filosófica e artística. Em 2016 o V ENA, em virtude do ocorrido no
fatídico episódio da “queima da bíblia” trouxe um debate, transmitido ao vivo para todo o
país, entre este que vos escreve e o protestante Ediclei Silva. A contenda marcou o retorno do
evento à UFAC, onde restou lotado o anfiteatro Garibaldi Brasil até que não houvesse mais
cadeiras e as pessoas tivessem que se sentar no chão; tudo está disponível, na íntegra, na rede
mundial de computadores no sítio do youtube7.
Desde que nascemos até o momento que morremos é a Igreja quem dá seu “aval” para
a existência. Membros da maior organização ateísta a nível nacional, durante a visita do novo
papa argentino, realizaram um manifesto chamado “Ventos do Secularismo” onde
promoveram um “desbatismo coletivo” como forma de protesto que consistia em “secar” as
águas do batismo de seus corpos. Por sua vez foram execrados em rede nacional pela
jornalista Rachel Sherezade do SBT num vídeo que virou um verdadeiro “hit” de preconceito
e intolerância pela internet. Dentre as pérolas da jornalista destaque-se: “[...] pobres ateus eles
não sabem o que dizem, inconformados e incomodados pela fé, protestando contra o que não
acreditam [...] (youtube, 2018, informação verbal)8”.
O professor Wlisses James, já mencionando neste trabalho, relata um fato com o qual
muitos ateus se identificam, ou seja, o dia da reza. Todos devem se reunir e pedir ajuda e
proteção a deus, durante este momento ímpar – o dia da reza. Se um ateu ou agnóstico não
participa é visto como um pária, ou tem que ouvir horas e horas de “pregação” sobre como ele
vai sofrer pela eternidade em virtude de sua descrença. Assim, este movimento contestatório
no Acre não visa a extinção da religião, mas o fim do preconceito decorrente dela. Todas as
minorias são protegidas por lei, por que não os ateus? Serão os descrentes para sempre
impelidos a participar da “hora da reza”?
Enquanto isso não é discutido seriamente, filhos de descrentes serão impedidos de
participar dos escoteiros, maçonaria e outras instituições que não aceitam ateus entre seus
membros. Esses são os valores propagados pelo cristianismo, tão terríveis que Nietzsche os
7 As alusões ao do sítio youtube estão nas referências pela ordem em que aparecem no texto.
8
29
compara a valores de negação da vida. No trecho abaixo, de Crepúsculo dos Ídolos ele
enfatiza que:
Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesmo
nos coage a instituir valores; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos
valores... Disto se segue que também essa contranatureza de moral, que capta Deus
como contraconceito e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida – de
que vida? De que espécie de vida? – Mas eu já dei a resposta: da vida declinante,
da vida enfraquecida, cansada, condenada. Moral, como foi entendida até agora –
como ultimamente foi ainda formulada por Schopenhauer, como ‘negação da
vontade de vida’ – o que o próprio instituto de décadence, que faz de si um
imperativo: ela diz: ‘Vai ao fundo!’ – ela é o juízo dos condenados (NIETZCHE,
2009, p. 35, grifo nosso).
Por fim, a contestação defendida nos termos do ENA é uma luta por direitos e
oportunidades que aqueles que não creem possuem. É uma luta por um Estado laico de direito
e de fato. É uma luta por igualdade. Luta por aceitação. Aceitação do fato de que é possível
ser feliz e plenos sem deus no coração e de que religião se discute sim. De olhar nos olhos do
“Homem Santo” e poder dizer sem medo de represálias como Nietzsche em Zaratustra: “Será
que ele não ouviu em seus bosques que deus está morto?”.
Como não contestar religiões que sequer resolvem problemas que elas mesmas criam?
A Bíblia é bastante clara quanto ao castigo reservado àqueles que porventura não creiam em
Deus ou escolham um outro Deus de sua preferência. Como não contestar um conjunto de
dogmas que diz que aqueles que não seguirem à risca suas normatizações para a vida serão
condenados a um sofrimento eterno? Talvez por isso Roberto da Silva, o estudante de filosofia
que ateou fogo a uma Bíblia Sagrada durante sua apresentação no Sarau que antecedeu o IV
ENA. Durante a confecção deste trabalho acadêmico, o caso João de Deus explodiu na mídia.
Exemplos pululam. O ENA exsurgiu da vontade de ao menos se discutir tais assuntos.
30
Os valores morais passados pelas religiões podem se tornar perigosos em mentes ainda
em formação. Em países árabes os homens-bomba, mais do que incentivados em sua loucura,
são tidos como verdadeiros ‘heróis’ nacionais.
No Brasil, muitos jovens repetem de maneira assustadora o discurso de pessoas tidas
como ícones de suas denominações religiosas. Silas Malafaia, Marcos Feliciano, Edir
Macedo, protegidos por aquele ar de “fé inquestionável na salvação de suas almas”, tomam
para si o cajado de Moisés e “guiam” seu rebanho através de preocupações, além de absurdas
(sob uma ótica científica), perigosas à liberdade do indivíduo. Relacionamentos com pessoas
de outras religiões (e principalmente descrentes) são desaconselhados, pois são pessoas do
“mundo”. Aquilo que Nietzsche chamou de “platonismo da plebe”, acaba por aspergir o
preconceito de forma perigosa, pois leva a comportamentos que exortam a exclusão,
perseguição e afastamento daqueles que sejam considerados em desacordo com a “palavra”,
como aconteceu com o vocalista da banda Violação Anal, uma das atrações do Sara(te)u.
Foi uma disputa acirrada que eclodiu no país inteiro, uma fábrica de ‘memes’ (no
sentido que Richard Dawkins lhe imprimi) depreciativos. As páginas da história ainda irão se
debruçar sobre este tempo onde nunca a moralidade cristã esteve tão em pauta: tanto na vida
cotidiana como na política. Sobre a Moralidade religiosa, o físico brasileiro Marcelo Gleiser
expõe suas preocupações no livro Criação Imperfeita:
Que moralidade religiosa era essa que inspirava o assassinato de inocentes? O que
aconteceu com o “não faça aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”?
Para piorar, havia também a questão do sofrimento humano. Onde estava Deus
quando minha mãe morreu? Por que eu? Será que era já um pecador aos seis anos?
Será que meus irmãos ou meu pai eram? Onde estava Ele quando rezava pedindo
ajuda? E os terríveis desastres que marcam a história da humanidade? Terremotos e
erupções vulcânicas assolando cidades inteiras; maremotos e furacões; os crimes
hediondos perpetrados pelos homens contra os homens, o Holocausto, o genocídio
de russos e chineses por Stalin e Mao, a dizimação dos nativos das Américas... A
lista é longa e assustadora. Afirmações como “Deus age de forma misteriosa”, ou
“Deus tem mais o que fazer do que atender às preces de uma criancinha metida”, ou
“os feitos e os crimes dos homens devem ser atribuídos aos homens e não a Deus”,
me soavam como desculpas, e não aliviavam em nada a minha angústia (GLEISER,
2010, p. 56).
O Sara(te)u deveria ser mais uma noite de diversão, culto ao deus Dionísio e demais
atrações para entretenimento dos jovens de Rio Branco; mas como em todo ENA, a
trivialidade passa ao largo, e desta vez não seria diferente. Após o evento, os rumores do ato
do estudante de filosofia começaram pelas redes sociais e logo estava estampado no programa
31
Sobre a repercussão do caso, Zanon disse que achou exagero e denunciou sofrer
ameaças. "Somos um Estado muito conservador e se você olhar o face do rapaz que
queimou verá que ele está sofrendo ameaças. Eu também estou", assegurou, citando
que analisa ingressar com ações na Justiça contra quem o ofendeu e o ameaça (UOL,
2015).
A repórter adverte, numa matéria complementar a da queima da Bíblia que tais adeptos
do ateísmo não têm respeito pela “palavra de Deus”, num acontecimento influenciado pela
repercussão do caso: um jovem aparece em sua página de facebook virtual supostamente
fumando uma página da Bíblia. Por óbvio o jovem foi também alvo de inquérito do Ministério
Público do Acre. A crescente de ódio resultou na intervenção dos pastores e deputados
federais, Feliciano e Rick, que solicitaram a abertura de inquérito policial após a repercussão
do evento. No memorando nº 780/SEPC/GS o Secretário de Estado e Segurança Pública
assim ordena a seu subalterno:
Conforme diálogo anterior, encaminho-lhe anexo, pronunciamento realizado pelo
Deputado Federal Pr. Marco Feliciano, bem como respectivo e-mail encaminhado
pelo referido parlamentar o qual requer instauração de inquérito policial sobre os
fatos narrados no aludido pronunciamento, para que sirva de subsídio no inquérito
policial registrado sob o número 46/2015 - 4ª DRPC, em trâmite nessa Delegacia de
Polícia Civil da 4ª Regional. (ACRE, 2015, p. 24, grifo nosso)
32
Mais adiante, no mesmo documento, o pastor e deputado infirma que se viu atingido
em seu sentimento religioso, pedindo, por fim, a responsabilização dos autores de tal
vilipêndio. Na análise da documentação dos autos do inquérito nota-se algumas coincidências.
As diversas autoridades do legislativo e executivo sempre se referem à “Bíblia Sagrada”, com
a exata grafia que é impressa na capa do livro em questão (e na própria ABNT).
Ele não é apenas um livro objeto de culto que fora incinerado numa performance
artística, ele é sacro e santo, é o próprio mito representado, por isso, o ato perpetrado deve ser
punido nos rigores da legislação criminal, segundo os deputados.
A UFAC abre procedimento administrativo prontamente e a promotoria do Ministério
Público do Acre assim se manifesta apenas oito dias após o fato ocorrido (numa velocidade
incomum, mesmo para a justiça acriana), expressando suas preocupações ao delegado
competente, então corregedor da Secretária de Estado e Segurança Pública, em virtude da
grande repercussão do caso, dando-lhe a devida cominação legal em seu entendimento:
Esclareço que os fatos em questão materializam-se, em tese, como atos de
intolerância religiosa, os quais, apresentado tipicidade penal com fulcro no art. 20 da
Lei 7.716/89 e entendimento exarado pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas
Corpus 82.424, de relatoria de Ministro Moreira Alves. (ACRE, 2015, p. 47)
Até mesmo professores são investigados pelos poderes estatais por simplesmente
auxiliarem o evento. O inquérito em tela resultou na denúncia nº 005845-84.2015.8.01.0001,
proposta pelo Ministério Público que pediu o arquivamento do inquérito policial objeto de
análise. Após o delegado responsável pelo inquérito entender pela denúncia de um dos
organizadores do evento e Roberto da Silva, como incursos nas penas do art. 208 do Código
Penal, num dos trechos da peça apresentada o promotor de justiça infirma que:
Em relação a Roberto Silva, em depoimento prestado ás fls. 37/38, afirmou ter
realizado o ato de queimar a Bíblia fora isolado, ou seja, por conta própria, sem a
conivência ou interferência de terceiros. Disse que
apenas cientificou ao organizador do evento Felipe Zanon que iria queimar um
exemplar da Bíblia, em forma de protesto contra o "fundamentalismo religioso
vigente na sociedade", de modo que este não se opôs, mas lhe asseverou das
possíveis consequências (ACRE, 2015, p. 91, grifo nosso).
E mais adiante:
O ato promovido por Roberto Silva, com uma possível "conivência" de Felipe
Zanon (organizador da 4ª edição do ENA), poderia se enquadrar na última parte do
art. 208 do Código Penal, qual seja “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto
religioso”, tendo em conta que se queimou uma determinada edição da Bíblia
33
Sagrada, cujo sentido, valores e princípios ali vigentes são seguidos por um vasto
número de fiéis, dos mais diversos seguimentos cristãos (ACRE, 2015, p. 92, grifo
nosso).
Faz-se necessário transcrever o caput do art. 20 da lei que define os crimes de raças ou
cor: Art. 20. “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”. Até 1997 tal lei previa pena de reclusão de dois a cinco
anos e multa. Com a alteração realizada pela lei 9.459/97, passou a ser de um a três anos e
multa a punição cominada. Note-se que o promotor é extremamente técnico nos crimes que
ele vislumbra terem indícios de materialidade e autoria. Veja-se um trecho da jurisprudência
consignada no pretório, sendo, assim noticiado no site do próprio STF:
Assim, consignou-se que o crime de racismo é evidenciado pela simples utilização
desses estigmas, o que atenta contra os princípios nos quais se erige e se organiza a
sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua
pacífica convivência no meio social. Reconheceu-se, portanto, que a edição e
publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e
dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e
subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas
na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao
discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências
históricas dos atos em que se baseiam (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2019).
Vale salientar que todo o evento, à despeito do ato perpetrado por Roberto da Silva,
correu sem qualquer altercação. Foi um evento tranquilo e não tivesse gravado tal ato, o fato
teria passado despercebido ao grande público e jamais teria sido mencionado num discurso
oficial no congresso nacional. Saliente-se que esta monografia não se destina a ser um atlas
jurídicos sobre o acontecimento, contudo, não se pode negar que comparar a queima de uma
Bíblia a um ato anti-semita e ao holocausto, é demasidado exagero, conforme ementa a
seguir: “HABEAS CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.
RASCISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA”
(BRASIL, 2013, p.1).
Como não é o objeto do presente estudo, não cabe destrinchar o voto completo que
resultou na ementa acima; contudo, alguns detalhes é importante frisar, posto que, em tese, foi
o próprio custo legis que suscitou tal jurisprudência. Já que se trata de dois casos concretos e
cominados pela mesma legislação penal (art. 20 da L. 7.716/89), é necessário realizar a
distinção de ambos.
É inclusive pré-requisito de admissibilidade do recurso em alguns casos. A história
jurídica por trás do HC 82.424/RG passa pelo Superior Tribunal de Justiça cujo acórdão
atacado, em síntese, dizia que o paciente havia se utilizado do remédio heroico para infirmar
34
que a constituição dava guarida da imprescritibilidade apenas para o art. 5º, inciso XLII, da
Constituição Federal e não ao art. 20 supra.
Note-se: a tese jurídica de defesa certamente atacou a interpretação em prejuízo do réu
neste caso específico. O relator, Ministro Moreira Alves, sem mais delongas, cita o art. 3º,
inciso IV da CF: “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer formas de discriminação”.
Em suma, o Ministro relator entende que a acepção de racismo não engloba quaisquer
formas de discriminação, dando provimento ao HC para extinguir a punibilidade daquele que
publicou um livro dizendo que judeus não são uma raça. Foi vencido e a ordem denegada pelo
plenário. Ainda que quisesse fazer entender o membro do MP no caso da queima da bíblia,
com a devida vênia, os evangélicos não são uma raça superior (embora alguns se vejam
assim).
A transcrição da gravação do ato em si jamais fez parte deste processo kafkiano.
Assim, entendeu o promotor haver indícios de cometimento de um crime inafiançável e
imprescritível no caso em estudo.
O promotor de justiça intuiu que há princípios na Bíblia Sagrada seguidos por um
vasto número de fiéis, ou seja, ‘eles’ se sentem vilipendiados ao verem queimar um livro que
engloba desde à condenação da sodomia até mesmo a apologia ao incesto. E continua num
tom admoestativo em sua denúncia:
Pois bem, como dito anteriormente, as ideias defendidas pelas partes foi exercida
com a devida liberdade que a Constituição Federal assim garante. Some-se a isso a
questão de que o ato de se queimar um exemplar da Bíblia (ainda que seja um ato
reprovável socialmente) não impediu que houvesse atos de adoração a Deus, em que
a bíblia [sic] fosse utilizada como a principal propagadora de fé e dos ensinamentos
cristãos bem evidentes na maioria da população do Estado. Trata-se de
manifestações de pensamentos diferentes, sob a guarda constitucional da liberdade
de expressão (ACRE, 2015, p. 95, grifo nosso).
tô [sic] falando que eu não acredito nem em deus nem no diabo, tá?” (informação verbal, IV
ENA, SARATEU, 2015)9.
Sequer era uma Bíblia Sagrada o objeto mitológico supostamente vilipendiado, era
uma Bíblia de Promessas. Era um ateu, num evento de ateus, fazendo uma performance
artística, investigado e denunciado com base, dentre outros, num precedente acerca de um
anti-semita que infirmou que judeus não são uma raça.
“Eu não quero ser evangelizado”, eis o manifesto ateu em sua mais perfeita
representação memética. A violência simbólica contra os laicos subverte até mesmo a ordem
jurídica, a importância dos poderes constituídos, tudo em nome da Bíblia Sagrada, porém, não
está albergada em qualquer legislação específica. Daí a importância do ensino confessional
nesta lógica mitológica da laicidade: é preciso ensinar o respeito a palavra de Deus, mesmo
num evento ateísta num campus universitário (que, por lei, deveria ser autônomo).
O mito do Estado laico é observado em maior ou menor grau em cada evento descrito
anteriormente e é também contemporâneo ao ENA; o mito da laicidade agora encontra
alicerce no STF, numa daquelas votações históricas, onde o lado perdedor saiu com cinco
votos e de cabeça erguida; deixa-se agora a justiça comum de primeiro grau onde tramitou a
denúncia abordada no capítulo anterior em direção ao pretório. O mito sai do campo micro em
direção ao campo do macro.
9 Vale ressaltar que na mídia eletrônica entregue aos membros da banca onde a presente monografia foi
defendida estão diversos arquivos (inclusive vídeos de reportagens nas quais este trabalho se baseia, arquivo
fotográfico denso, bem como o registro completo de etapas do projeto denominado Encontro Nacional de Ateus
realizado no Acre no período em estudo.
36
Não é, mas deveria ser um dever de abstenção imposto ao poder público a vedação do
ensino confessional. Mitos não devem ser entendidos apenas no sentido de algo irreal,
ilusório; sobremaneira, visa-se, através da dialética marxista, demonstrar o lado positivo
deste: o reconhecimento de uma “Era do mito da laicidade” por si só pressupõe o germe para
sua superação. Para Marx, a Era burguesa estava fadada a ser superada pela Era proletária: a
Era mitológica da laicidade o será igualmente. Um mito que se prepara para deixar o
fantástico e se tornar, como em democracias mais evoluídas, parte dos direitos realmente
fundamentais de uma sociedade, de um povo. Entender o conceito de laicidade aqui defendido
faz-se necessário para entender o mito e vice-versa.
Quanto terão importado na minha opção [de pesquisa] as fábulas que me contavam
quando eu era criança? Minha mãe lia para mim as fábulas recolhidas em finas do
século XIX pelo escrito siciliano Luigi Capuana, povoadas de todo tipo de magias e
de horrores: mães-dragão com a boca ensangüentada com as carnes de "cordeirinhos
e cabritinhos que pareciam meninos"; seres minúsculos de olhar inocente, enfeitados
com turbantes emplumados que, virada a página, se transformavam em monstruosos
lobisomens de bocarra escancarada. [...] (GINZBURG, 2007, p. 296).
O ateísmo, por assim dizer, não é a laicidade em si: é a negação radical de sua faceta
mítica. A laicidade de fato, que se observa hoje, sempre foi a legitimação do domínio não
laico tanto na esfera jurídica, como na social e econômica. É olhar para a nota do real e achar
que o lugar de deus não é ali. É observar o STF julgar a tudo e a todos com uma cruz à
39
espreita. É ver, dia após dia, este mito do Estado laico se construir e desconstruir,
perpetuando-se. E os ateus são os radicais nesta luta.
A luta de contrários é o motor da história: os Alan Ricks e Robertos de Souza estão em
lados opostos, embora raramente se perceba... mas o que significa o mito para estes lados
opostos? Perorou certa vez o deputado Jair Bolsonaro: “vivemos num estado cristão”; de tão
cristão teve chancelado pelo STF o ensino confessional financiado pelos cofres públicos como
ocorre aqui no Acre em relação aos colégios São José e João Calvino.
O mais polêmico, à guisa de problematização do tema, será a consolidação dos
fundamentos jurídicos para uma possível demanda junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, posto que, conforme insculpido no conceito de lesa-secularism, é inadmissível para
a dignidade da pessoa humana – um dos fundamentos da república federativa do Brasil - que
ainda se admita um ensino confessional infanto-juvenil em pleno século XXI.
A história da loucura moderna é aquela onde o aborto de fetos é condenável, mas o
aborto de mentes é financiado pelo Estado.
Segundo sua sustentação, a advogada da ATEA elencou vários aspectos nocivos que
poderiam resultar da continuidade do fomento da educação religiosa pelo Estado. Ora, filhos
de um umbandista teriam que assistir às aulas cristãs ocidentais? Os filhos de casais
homoafetivos teriam de ouvir que a prática das pessoas que mais ama é um pecado
abominável. E os filhos de ateus teriam de ver seus filhos doutrinados numa crença, para
alguns, até odiosa. Isso gera instabilidade social, gera sofrimento pessoal aos que ali estarão
por mera imposição social. Que método científico poderia exprimir a dor de uma criança que
vê suas crenças e modos de vida ditas infames?
[...] E, também, a guerras, perseguições e fundamentalismos diversos, da Inquisição
ao Jihadismo [grifo nosso]. No plano existencial, a religião se liga a sentimentos
humanos, como medo e esperança, e ao cultivo de valores morais e espirituais, que
remetem ao bem, à solidariedade e à compaixão. A religiosidade, aqui, envolve a
relação com o sobrenatural e o transcendente, com a concepção de que a vida não se
limita a uma dimensão material ou física. Ao longo dos séculos, a humanidade busca
nas manifestações religiosas – ensinamentos das escrituras, exemplos de vidas
emblemáticas e o reconhecimento de lugares sagrados, entre outras – as respostas
para questões existenciais básicas, como o sentido da vida e a inevitabilidade da
morte (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2017, ADI 4439).
É uma violação aos direitos mais básicos daqueles que tem direito à proteção máxima,
as crianças. O que esses traumas podem gerar em gerações e gerações fruto de uma sociedade
onde a religião faz parte do currículo escolar. Se no também polêmico “Caso Herzog” a corte
novamente condenar o país, este terá de reconhecer os militares da época como criminosos,
tendo em vista que o país se submete às decisões da corte.
Logo, se mesmo um crime ocorrido na década de 1970, apoiado pelos cristãos, no
golpe civil-militar de 1964, o instituto da prescrição e aqueles colecionados na lei de anistia
incidem, o que se dirá de um crime para o futuro? A família brasileira mudou, o pensamento
científico se difundiu, especialmente pelo processo de globalização; o fato notável que hoje,
países europeus tem altos nível de laicidade entre seus cidadãos. Os ditadores do presente
muitas vezes se disfarçam de pastores. O projeto de governar o país é um projeto que este
declinou em sua autobiografia afirmando que o propósito de sua igreja era “que fôssemos um
país cristão”.
Os modelos confessionais e interconfessionais de ensino religioso são, no entanto,
incompatíveis com a exigência de separação formal entre o Estado e as religiões.
Quando se permite que alunos recebam instrução religiosa de uma ou de várias
religiões dentro das escolas públicas, torna-se inevitável a identificação institucional
entre o Estado, que oferece o espaço público da sala de aula durante o período
letivo, e as confissões, que definem os conteúdos a serem transmitidos. A violação à
separação formal fica ainda mais nítida nos casos em que se exige que os
professores da disciplina sejam representantes religiosos ou pessoas credenciadas
por Igrejas e, ao mesmo tempo, se admite que sejam remunerados pelo Estado, em
contrariedade à vedação expressa do art. 19, I da Constituição (BRASIL, Supremo
Tribunal Federal, 2017, ADI 4439).
41
Se este trabalho servir ao menos para conscientizar o leitor para o fato de que tais
práticas são condenáveis, ou seja, expor crianças a um livro que prega a pedofilia, o estupro e
o incesto (para não citar a imensa lista de valores condenáveis ali prescritos), já terá sido
exitoso. O recurso é o trabalho: é imprimi-lo basicamente, separando-o em forma de petição
jurídica, fazendo uma releitura do país que persegue laicos. Quando este momento chegar (se
chegar), o direito fará definitivamente seu papel: proteger as minorias, os incapazes e aqueles
que por sua condição necessitam de sua guarida.
Este é o papel por excelência dos operadores do direito: defender as minorias. A
ditadura da maioria não necessita de defensores; necessita de retentores para parar seu avanço
hostil a toda liberdade individual (que tanto citou o Ministro Alexandre de Moraes em seu
voto). É proteger o íntimo daquele homossexual, grávida, suicida e herege que quer viver de
modo diferente do status quo. A ditadura da maioria não precisa mais de defensores. A
cristofobia e a heterofobia já desempenham à contento tal papel na atualidade.
Na obra Ecce Hommo cujo significado Ariano Suassuna tão bem representou em sua
obra O Auto da Compadecida com seu Jesus negro, desnuda-se numa roupagem diferente na
filosofia de Nietzsche. “O homem”, “o iluminado” é perigoso. E num período da história onde
a bancada evangélica e seus pensamentos anacrônicos avançam, e um presidente
mundialmente acusado de defender o fascismo foi eleito. Vivemos de fato um Estado laico?
Quando se fala em isonomia na presente monografia, não é sob a ótica da isonomia
positivista. É uma igualdade de direitos e de fato. No papel da constituição está inscrito o
nome de Deus e logo adiante, ali, onde não é “tão importante”, o princípio da laicidade no art.
19. O Supremo julga sob a cruz. Todos os poderes estão sob a cruz. No sentido literal e
metafórico. É o que, antigamente, tratava-se do crime de lesa-majestade. Tal crime consiste na
traição contra sua majestade, ou violar a dignidade de um soberano reinante ou contra o
Estado. Em muitas oportunidades os condenados eram severamente castigados, sempre em
43
praça pública, submetidos muitas vezes à tortura10 seus bens se tornavam propriedade da
Coroa e sua família, condenada a infâmia.
Vale salientar que até em alguns institutos jurídicos, como a sucessão por exemplo, os
bens de um particular podem ser revertidos ao erário, bem como em caso de condenações por
tráfico: o Estado apenas mudou sua roupagem, mas os crimes que pratica contra seus cidadãos
continuam os mesmos. É importante, na construção do conceito de crime de lesa-secularism,
entender que infâmia tem igualmente um significado “jurídico laico” muito próprio. Ser laico
já foi um crime. Isso denota a mudança do que seja um infame na sociedade atual: mas este
lastro de perseguição, Dawkins afirma que continua ainda nos dias de hoje, contudo, sobre
uma nova roupagem.
Os laicos eram “infames” (por exemplo um filho de mulher solteira há algumas
décadas atrás) e sua tentativa (subornando padres e tabeliães) por “salvar o nome da família”,
muitas vezes era algo similar a um filho bastardo na logica civilista antes de 2002. É no
reconhecimento do conceito de lesa-secularismo que se atinge a “dignidade”; não é só a
tortura, nem tampouco numa antinomia entre laicos e não laicos, tendo em vista que, muitas
vezes um religioso defenda valores laicos: é essencialmente ao ataque contra a laicidade do
Estado.
Quando se diz dignidade da pessoa humana, não encontramos somente em seu núcleo
duro a defesa da propriedade, da liberdade e igualmente da Revolução Francesa; temos ainda
um rol de artigos, tanto em cartas nacionais como internacionais, positivando o mesmo. No
presente trabalho, aborda-se este conceito como os mais elementares direitos de um povo: a
verdadeira laicidade do estado. O direito comparado demonstra que o que é considerado
“fundamental” num país, não é considerado em outro. Qualquer tentativa de negar tal lógica é
ofender Cuba, Coreia do Norte, China e Rússia, cuja estrutura social pende para um
socialismo.
Assim, o conceito de lesa-secularism reconhece o fato jurídico que fazem com que as
pessoas se sintam livres para questionar os não-laicos acerca dos motivos de seu ceticismo;
num exemplo grosseiro, seria como sempre perguntar aos homossexuais: Por que você gosta
de pessoa do mesmo sexo? E se fosse o oposto? Os laicos insistentemente questionando “por
que deuses existem?” (o direito que busca a verdade, repise-se). Isso, indubitavelmente,
coloca em polos opostos (na ADI 4439, a ATEA interviu a favor da PGR, vale sempre
recordar) de uma relação jurídica que sequer deveria ser controvertida. É abominável, é
infame que o Estado tenha um ensino confessional nas escolas públicas! É chancelar que seres
em formação estão submetidos a uma pessoa, conforme o voto do ministro relator, que pode
10 É importante frisar aqui que o próprio crime de tortura nos dias de hoje é considerado inafiançável e
insuscetível de graça ou anistia, assim como o terrorismo.
44
lhes fazer uma verdadeira lavagem cerebral. Senão vejamos o seguinte excerto do voto
vencido do Ministro Roberto Barroso na ADI 4439:
Os modelos confessionais e interconfessionais de ensino religioso são, no entanto,
incompatíveis com a exigência de separação formal entre o Estado e as religiões.
Quando se permite que alunos recebam instrução religiosa de uma ou de várias
religiões dentro das escolas públicas, torna-se inevitável a identificação institucional
entre o Estado, que oferece o espaço público da sala de aula durante o período
letivo, e as confissões, que definem os conteúdos a serem transmitidos. A violação à
separação formal fica ainda mais nítida nos casos em que se exige que os
professores da disciplina sejam representantes religiosos ou pessoas credenciadas
por Igrejas e, ao mesmo tempo, se admite que sejam remunerados pelo Estado, em
contrariedade à vedação expressa do art. 19, I da Constituição (BRASIL, Supremo
Tribunal Federal, 2017, ADI 4439).
Ninguém arriscaria seu filho a uma lavagem cerebral de forma lúcida; isto ocorre pelo
fato de que a religião é um ópio e neste ponto, vale salientar que este é um dos conceitos que
permanecem atuais na sociologia marxista; Marx, ao estudar o Estado, percebeu este, pós-
revolucionário Estado, viu na religião uma utilidade. Esta é a moral da época, utilitarista. É o
brasileiro médio bradando “o país está uma droga” sentado num sofá, acreditando que a
democracia é somente o voto. Democracia é tomar as ruas como fazem os defensores da
descriminalização das drogas, bem como os homossexuais e demais LGBT’s. Os laicos não
têm partido, devido sua grande pluralidade. Um laico, antes de tudo é também um humanista.
Cruel, muitas vezes, como Fidel, Che, Mao, em alguns momentos de suas vidas: quem não o
é? A realidade deve ser vista através do outro; o outro é um termômetro da realidade. Se eu
enxergo no outro “o povo brasileiro”, eu vejo que o Outro se torna o caos 11 e o pensamento
político reflete esse caos. As oligarquias que sempre governaram são não laicas; por mais que
não praticantes, mas não laicas.
[...] estamos aqui nesta tribuna Senhora Ministra Presidente para dar voz a um grupo
verdadeiramente vulnerável, minoritário numericamente sem nenhum poder de
influência na tomada de decisão do Estado e porque não dizer, Senhor Ministro
Relator, num grupo esquecido, sequer mencionado por muitas das sustentações orais
que me antecederam refiro-me aos ateus e agnósticos. e peço licença para trazer a
Vossa Excelências um número assustador. Pesquisa Sensus realizada em 2007
revelou, Senhora Presidente, que 84% dos brasileiros votariam num negro para
presidente, 57 votariam numa mulher, 32 num homossexual, mas apenas 13% se
disporiam a votar num ateu. E mais além, pesquisa realizada pela Fundação Perseu
Abramo, em 2008, revelam que assustadores 42% dos brasileiros reconheceram
sentir "aversão" aos descrentes e dentre esses 42%, 17 declaram sentir ódio de ateus
e 25% declararam antipatia. Este é um número que precisa mudar, Senhora Ministra
Presidente, e é por isso que estamos aqui para conferir ao modelo legal uma
interpretação que seja compatível com a igual dignidade e com o igual respeito que
devem merecer todos os cidadãos desta república e mais, com uma interpretação
superadora [sic] desta triste realidade de ódio presenciada na sociedade brasileira. E,
neste contexto, senhora Ministra Presidente, dada a exiguidade do tempo a ATEA é
manifestamente contrária ao ensino religioso em escolas públicas e não poderia ser
diferente mas pede licença a douta Procuradoria-Geral para ir além Senhora Ministra
Presidente o art. 33 contém partes que são flagrantemente inconstitucionais e que
positivam este sentimento de ódio que vive na nossa sociedade. Leia o caput do art.
33 "o ensino religioso de matrícula facultativa" e aí vem o aposto abominável com
todo respeito "é parte integrante da formação básica do cidadão". Data máxima
vênia, eu tenho uma lei dizendo que uma pessoa que não tem formação religiosa é
um cidadão de segunda categoria e depois nós não entendemos porque que 42% dos
brasileiros sentem aversão a ateus. Eu tenho o Estado, o Poder Público com sua
força normativa e com a sua força simbólica estabelecendo que quem não tem
formação religiosa não tem a sua cidadania plena. Isso é absolutamente inaceitável,
data máxima vênia, não podemos conviver com cidadãos de primeira e segunda
categoria. Até porque o art. 210 quando ele diz "da formação básica do cidadão" diz
que "é dever do estado" e no seu parágrafo primeiro ele diz que o ensino religioso é
facultativo. Ora, se ele é facultativo ele evidentemente não é integrante daquele
núcleo básico de formação e é muito perigoso dizer que aquele que não tem uma
crença religiosa também não tem moralidade e pior do que isso: também não exerça
sua cidadania. Então é importante, sim, que esta Corte dê um passo simbólico em
proteção deste grupo evidentemente vulnerável e minoritário e suprima este aposto
absolutamente desnecessário e discriminatório constante do caput do art. 33. E
vamos além, para além de defendermos que o ensino religioso necessariamente não
pode ser confessional e há nos autos um estudo precioso da Professora perdão Ana
Maria Cavalieri “o mal estar do ensino religioso nas escolas públicas” em que ela
analisa os efeitos danosos do ensino religioso nas escolas públicas do Rio em que
ao contrário do que sustentado pela douta representante da AGU, ensinar religião
para crianças na escola pública não é o espaço ideal de formação religiosa, há
relatos de inúmeros professores dizendo como esse tema gerou ódio, trouxe o ódio, o
preconceito e a discriminação pra dentro da sala de aula, muitas vezes para
crianças de 5 anos de idade. Então, com todo respeito, para além de defender que o
ensino não pode ser confessional, a ATEA prega a inconstitucionalidade do aposto
do art. 33 e mais ainda a máxima efetividade à nota da facultatividade. O ensino
religioso mesmo que não confessional deve necessariamente ser ministrado ou no
início ou no término das aulas para que aqueles que não desejam participar sofram o
mínimo fardo o mínimo encargo, se assim desejarem por não participar daquela
disciplina, por uma interpretação que proteja este grupo vulnerável Senhora
Presidente, obrigada (informação verbal, grifo nosso).
não podem ser submetidas ao ensino confessional. É um direito elementar de cada ser humano
escolher sua própria crença, como defende a Carta Magna, mas principalmente, proteger
aquilo que após quinhentos anos nos vem sendo negado: o direito de não-crer.
É um dever do Estado o ensino laico; não lhe é facultado. Esta lógica do ensino
confessional fere de morte o Estatuto da Criança e do Adolescente. O mais terrível neste
quadro é que a sociedade literalmente aplaude a um fato que toda nação (mesmo a Igreja
católica defendeu através de seu amicus curiae na ADI em estudo) dita civilizada já aboliu o
ensino não laico. Nem o próprio pai tem o poder de recusar um filho por motivos religiosos!
Por que o Estado, no direito público, os referenda em sua corte máxima? Conclui-se daí que o
Estado está de fato oficializando de forma tática o cristianismo. O Brasil é um país de pobres,
de classe média e de classe evangélica. Muitos evangélicos são laicos, contudo, uma
avassaladora maioria não o é. O direito público não pode jamais subvencionar qualquer
crença, à despeito o que pensem as pessoas em contrário.
Secularismo, longe de implicar antagonismo em relação à religião ou às pessoas de
fé, implica verdadeiramente em um profundo respeito e tolerância em relação a
todas as religiões. Implica em mútua tolerância e respeito por todas as crenças e
também pelos que não acreditam (Dalai Lama apud Luis Roberto Barros, ADI
4439).
direito positivista vigente, encontra-se uma verdade incômoda: a ofensa ao direito de não crer,
principalmente quando subvencionado pelo Estado.
Um pensamento tão elementar, o de que tudo tem uma natureza jurídica recôndita,
como defende Strauss, atinge como um raio o mito da laicidade, visto que ateus são odiados
justamente pela faceta mítica da laicidade, perseguidos e ainda pior: não possuem qualquer
voz na política brasileira. Infirme-se que ateus são, não raro, no Brasil, uma minoria dentro
daquilo que, para efeitos desta monografia, se consideram os laicos. Agnósticos, humanistas,
seguidores da teologia da libertação, dentre muitos outros, desde os Padres que esconderam os
companheiros de Chico Mendes, até os ateus que pegaram em armas durante a guerrilha do
Araguaia, fazem parte do rol de laicos aqui defendido. Um espectro mais sóbrio ainda ronda
este quadro quando se analisa tais questões pela ótica do outro; um comunista Chinês ateu não
entende como laico o Estado brasileiro: é a negação coetânea do mito da laicidade brasileira.
Tendo em vista que Stálin era ateu, Mao igualmente e, muito provavelmente Fidel,
ícones daquilo que se convencionou chamar “comunismo” (afora a China comunista, vale
salientar que a URSS dizia-se socialista), nem todos o eram de fato. À despeito de
interpretações contrárias, vislumbra-se agora a última fase do pensamento laico.
A história é feita de vários feixes reunidos do que os “especialistas” consideram
“verdade” e como já defendido aqui, esta verdade submete-se ao caos. O que se percebe nas
sociedades com um grau mais elevado de laicidade, é a recusa do ensino confessional. É por
este motivo que a Revolução Maoísta é não laica primeiramente, pois a cultura chinesa é
milenar. Em Apocalipse Now o capitão francês aposentado que foi plantar borracha no
Camboja vira-se para Martin Sheen e perora que os americanos não vencerão a guerra do
Vietnã, pois os vietnamitas aceitam dinheiro dos Russos, dos laicos russos, por um motivo
muito simples: se amanhã eles forem comunistas ou socialistas, eles serão vietnamitas,
mesmo que socialistas ou comunistas, serão, antes de tudo, vietnamitas.
O que divide a esquerda radical da moderada, de fato, é o nível de comprometimento
dos não laicos (maioria) com os laicos (como ocorre no Partido Socialismo e Liberdade – por
exemplo). Vivemos numa sociedade que recusa o fato de que o líder da Igreja de São Pedro
não é “dono” de um país que, por menor que seja, defende seu Estado não laico.
Desnecessário citar aqui as mazelas que implicam a obrigação de homens
(humanidade) inteligentes serem castos; tal pensamento é utópico. É uma negação da
realidade da natureza que nem mesmo o instituto do casamento, muitas vezes, consegue
obliterar. Isto é “núcleo duro” do conceito de lesa-secularism: em nenhuma parte do mundo,
do Vaticano aos confins da Amazônia, pode-se obrigar uma criança a aceitar valores que esta
não reconhece como verdadeiros. O título do capítulo chama-se ensaios, pois ninguém sabe ao
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certo como (ou se) isto será um dia fiscalizado. O que se tem é um conceito que,
resumidamente, protege os absolutamente incapazes contra os absolutamente capazes.
O poder familiar pode representar uma obrigação de visita à igreja imposta pelos
genitores? Até que idade isso é permitido?! Aos 13 anos, dozes meses e trinta e um dias, o
sexo entre absolutamente incapazes e absolutamente capazes é proibido. O sexo é mais
“íntimo” ou mais “relevante” que o conceito de laicidade? Das crenças (ou não crenças) de
uma pessoa natural?
O conceito de lesa-secularism se erige uma vez mais através destas perguntas que, em
maior ou menor grau, intenta-se defender na presente linha argumentativa, sendo
precisamente o evento divisor de águas onde um Estado passa de fato a ser laico. Na
Revolução Cultural ou Bolchevique tal ruptura foi violenta, sendo o Estado convertido num
instrumento a serviço dos laicos. Todos são livres para terem sua fé naquilo que acreditam,
todavia não podem jamais ter o poder de impor àqueles que não veem em tal credo (cristão,
hindu, budista, Katukina, etc.) uma representação da verdade ou angariar dinheiro com isso.
Muito já se perguntou, estatisticamente falando, acerca de quantos Nietzsches e
Einsteins já perdemos na África, na Ásia (onde há o maior número de pessoas consideradas
“gênios”), pela fome, pela pobreza, pela violência, por perseguições religiosas... Quantos?
Criou-se, numa tentativa de contrarreforma tardia, o termo cristofobia em setores radicais da
sociedade: como se delas fosse todo pensamento do Cristo. As três religiões monoteístas
dominantes do mundo hoje têm uma ideia diferente acerca de quem foi Cristo. Uns afirmam
filho do próprio Deus, outros apenas um profeta. O mito da laicidade é proporcional à
amplitude deste direito natural: o direito de não crer. É neste contexto que o conceito de lesa-
secularism deve ser entendido: é o caos quem governa as crenças, não é um direito natural.
Tais veredas podem fazer arrepiar aos antropólogos da não laicidade. Veja-se: o lesa-
secularism tem sua primeira ponderação: povos intocados. Os Judeus que “ganharam” seu
país também. Justa ou injusta, esta foi a partilha do oriente médio financiada pelo Ocidente.
Ao observar a história da humanidade, concordando ou negando, pode-se afirmar que o homo
sapiens sapiens parece apontar na direção da laicidade de fato.
Hoje, na pirâmide jurídica da CF, no inciso VI do art. 5º lê-se “é inviolável a liberdade
de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” o termo laicidade
só pode se depreender do fato de que é inviolável o “pensar”, a consciência, todavia, não há
qualquer expressão literal que abarque os laicos em toda sua complexidade e dimensão.
Logo adiante, no inciso VII, temos que “ninguém será privado de direitos por motivo
de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política,” salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em
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lei;” aqui temos a laicidade “recôndita” no fato de que filosoficamente não se pode privar
direitos de ninguém por suas de convicções filosóficas. Isso é a laicidade de fato e de direito.
As crianças estão entre este “ninguém”. Esta é uma ofensa máxima à dignidade da pessoa
humana laica que até o presente momento vem sendo “tolerada”.
Novamente, sob pena de ser mal-entendido já na gênese do conceito ou talvez
instituto, que seguramente necessita ainda demasiado aprofundamento e pesquisa, não se pode
negar a lógica, especialmente a filosófica, de que não é possível negar a proteção aos laicos,
conforme a constituição. Ir contra princípios não laicos, hoje, no Brasil e no Acre causam
prejuízo, julgamento às vezes até perseguição. Quem é sabe, quem não é nem imagina; eis a
lógica dos perseguidos da modernidade. Somente um Estado não laico pode perseguir o
pejorativo bolsa “Traveco”, como ficou conhecido o programa social que visava retirar
travestis das ruas de São Paulo.
A revolução começa contra o Czar; Lenin apenas viu a oportunidade. E a Igreja e o
Czar eram as instituições que massacravam o povo. Cada época tem o seu contexto e o seu
inimigo, mas não é somente um inimigo do proletário, é um inimigo, acima de tudo, dos
laicos. É por isso que se pode afirmar que um humanista é sempre laico; mas nem todo laico é
humanista. Existem os comunistas, os religiosos moderados, etc.
O termo subvencioná-los do art. 19 da CF, tomando-se o contexto onde fora escrito,
qual seja o Brasil de 1988, certamente utilizou-se de uma norma gramatical machista, posto
que religião e igrejas, substantivos femininos, fazem o plural “eles”; logo, subvencioná-los,
diz o texto da lei. Contudo, há outra concordância possível, gramaticalmente falando, onde o
verbo concorda com o substantivo mais próximo, ou seja, igrejas. O “financiar” do artigo
refere-se claramente a cultos religiosos e igreja, mas não fala em escolas.
Uma redação laica do comando normativo deveria ser “não os subvencionando de
qualquer maneira ou através de quaisquer instituições”, por exemplo. Todavia, o que o inciso I
do art. 19, infirma algo diverso, ou seja, que embora não possa subvencioná-los, igualmente é
defeso lhes embaraçar o funcionamento. Isto deve ser dito e redito, pois foi este o
entendimento do STF: que proibir o ensino confessional é “embaraçar” cultos religiosos da
maioria: é este o resumo do voto vencedor daquele julgamento: somos um Estado cristão.
O conceito de lesa-secularism nasce da necessidade de retirar Deus da constituição, o
deus cristão. Não estamos mais em 1824: o Brasil escolheu ser um país laico, só não o fez
com maestria jurídica, talvez. Esta é precisamente a importância do conceito proposto: o
cuidado na redação de um texto de lei sob seus auspícios. Muito da transformação
(humanização diria) do judiciário advém do Estatuto da Criança e do Adolescente. Funciona.
A solução das questões levantadas só segue em direção à violência quando lados opostos não
50
são instados a conversar. Não se chegará nunca à paz na terra - tão prometida – a persistir a
negação do direito fundamental ao Estado laico. O próprio Estado talvez nem seja mais
necessário neste estágio. Marx acreditava que este era o estágio do comunismo, onde a
prevalência do bem comum naturalmente extinguiria a necessidade de um Estado.
No caso da Lei de Anistia (onde o STF foi derrotado na CIDH) conforme analisado no
capítulo anterior, a Corte Internacional firmou jurisprudência no sentido de que é inadmissível
anistiar “criminosos de guerra”: fere a dignidade da pessoa humana! Os torturados puderam
literalmente assistir, em 2014, um deputado (hoje presidente) bradar em plenário suas
lamúrias, como boa viúva da ditadura que é, que se regozijava da memória de Carlos Alberto
Brilhante Ustra.
Em pleno século XXI a bancada cristã no congresso não deseja sequer discutir leis
mais abrangentes no que concerne aqueles que pensam diferente, mas rapidamente o
estudante Roberto da Silva perdeu seu emprego e viu sua vida virada pelo avesso. A história
do país está repleta de exemplos de como o fundamentalismo religioso é apenas um
lamentável atraso para o Brasil, bem como um ranço histórico que influencia inexoravelmente
a vida cotidiana e também os rumos da política.
A proibição da pesquisa com células-tronco embrionárias, a tentativa de boicote à
legalização da união homoafetiva e mais recentemente a cura gay emplacada pelo mesmo
deputado federal Marco Feliciano que perseguiu Roberto da Silva, são apenas alguns
exemplos:
[...] A idéia [sic] de “Deus” inventada para servir de antítese à vida – nela, tudo o
que há de nocivo de envenenado, de caluniador, toda a hostilidade mortal contra a
vida sintetizada numa espantosa unidade! A idéia de “além” de “verdadeiro mundo”,
inventada para depreciar o único mundo que existe – para não deixar a nossa
realidade terrestre nenhuma finalidade, nenhuma razão, nenhuma tarefa a propósito!
A idéia de “alma”, de “espírito” e finalmente a de “imortalidade da alma”, inventada
para desprezar o corpo, para torna-lo doentio – “santo” – para contrapor uma
leviandade horripilante a todas as coisas que merecem seriedade na vida, às questões
de alimentação, de habitação, de regime intelectual, do tratamento dos doentes, da
higiene, da meteorologia. [...] (NIETZSCHE, 2009, p. 129).
Devemos ter em mente ainda que a criminalização e demonização das drogas tem
fundamento na religião e na política imperialista estadunidente de meados do século XX e foi
propalada principalmente pelo governo Nixon. É absurdo o ensino do criacionismo pós-
Darwin e mesmo assim as pessoas acham “natural” que esta fábula continue sendo contada
com ares de verdade e de inspiração divina. Dawkins, em Deus um Delírio, é enfático quando
perora sobre o fundamentalismo ateu:
[...] Acontece porque as evidências da evolução são fortíssimas e fico
apaixonadamente perturbado com o fato de meu oponente não conseguir enxergar
isso – ou, o mais comum, recusar-se até a pensar nisso, porque contradiz seu livro
sagrado. [...] (DAWKINS, 2009, p. 20).
51
“morreu de sua piedade pelos homens”; foi sufocado pela teologia. Ele foi morto
também pelo desenvolvimento humano, pelos refinamentos da ciência, pela
psicologia, que o tornaram “absolutamente supérfluo”. Os homens não podem mais
tolerar um Deus como este, justiceiro, cruel, ciumento: ele choca o bom gosto, “ele
fracassou em demasiadas de suas criações, esse oleiro noviço. [...] Deus foi morto
também pelo “mais ignóbil dos homens”, como mostra um trecho de Assim falou
Zaratustra. O que, em nossa opinião, não significa que é preciso ser ignóbil para
cometer um ato semelhante [...] (MINOIS, 2014, p. 627).
Trata-se de reconhecer que o lugar da religião não é mais nas escolas, nem de forma
facultativa, pois o dano potencial a qualquer criança que seja, já desaconselha sua presença.
Tal estudo já foi realizado pela professora Ana Maria, consoante sustentação oral da ATEA no
STF. O Estado do Acre não pode mais financiar escolas de caráter confessional como João
Calvino e São José. O dinheiro público não pode restar manchado pela lágrima de uma só
criança vítima de preconceito. A religião já está nas famílias, nos feriados, na televisão, em
toda Igreja de cada rincão do país: chegou o momento de deixar as salas de aula.
O discurso religioso fundamentalista justifica o transexual vítima de violência, a
adolescente que não interrompe a gravidez pois sua religião não permite, a pesquisa científica
atrasada em virtude das proibições de cunho religioso; está à espreita no Supremo, sob a cruz
ele julga. Na boca dos políticos que à surdina fazem espúrias transações. Nos padres
pedófilos, na dor de cada um que já foi vítima de preconceito religioso.
A religião já permeia as leis e cada aspecto citado no presente estudo e enquanto o
princípio da laicidade não for elevado à categoria de fundamento, ali permanecerá, atemporal.
53
A sociedade brasileira só será verdadeiramente livre, justa e solidária quando a religião for de
maneira efetiva separada do Estado. Este trabalho não se propôs a destituição de ídolos, mas
de mitos e julgamentos, de uma sociedade que teima em não entender o óbvio: religião e
Estado são uma combinação perigosa.
Essa linguagem permite à Igreja contemporânea realizar a proeza de se proclamar
representante de toda a humanidade, inclusive de todos que fazem oposição a ela. O
mesmo processo acontece num domínio diferente, o da moral sexual, em que as
autoridades eclesiásticas, por uma estarrecedora decisão de 1997, declaram que,
caso seja previsível a desobediência do crente, é melhor que ele não conheça as
exigências reais da fé. É exatamente isso que diz o “Vade-mécum para os
confessores”, publicado pelo Conselho Pontifical para a Família, a propósito da
proibição da contracepção: “é preferível deixar os penitentes em sua boa-fé nos
casos em que o erro se deve a uma ignorância subjetivamente invencível, quando é
previsível que o penitente, mesmo que tenha a intenção de viver sua fé, não mudará
seu comportamento e acabará pecando formalmente”. Assim, todo mundo fica
satisfeito: ninguém desobedece à Igreja, já que a Igreja não pede nada; do mesmo
modo, ninguém é contra a Igreja, uma vez que ela se apresenta como representante
de todos os homens de boa vontade, seja qual for sua crença. Essa atitude é
característica da adaptação à nova forma de religiosidade do mundo atual, uma
religiosidade sem conteúdo preciso, sem credo, suscetível de uma infinidade de
expressões diferentes que revelam a variedade do “espírito” (MINOIS, 2014, p.
706).
fato. Parece que o conceito de ateísmo materialista ainda é utilizado no judiciário brasileiro, e
visto como uma filosofia hostil:
Pouco importa: a difusão crescente de obras materialistas ateias começa a suscitar
comentários e reações na opinião pública, pois nunca antes tais opiniões foram tão
maciças e tão francamente emitidas. Acaram as precauções com a linguagem, os
disfarces, os duplos sentidos que, desde o século XVI, acompanhavam esse tipo de
literatura. Agora, o título de materialista ateu é reivindicado. A palavra
“materialismo” data de 1702 e entra pouco a pouco nos dicionários. Em 1752, o
dicionário de Trévoux dá uma definição bastante hostil: “Dogma muito perigoso
segundo o qual certos filósofos indignos desse nome, afirmam que tudo é matéria e
negam a imortalidade da alma”. Em 1762, o dicionário da Academia é neutro
“Opinião daqueles que não admitem outra substância além da matéria” (MINOIS,
2014, P. 475).
E não são apenas os ateus que sofrem o risco diário de serem evangelizados dentro ou
fora da sala de aula, os índios passam por um momento delicado com a eleição presidencial de
2018. São os filhos da pátria! Estes filhos do qual fala o hino! A luta de classes, hoje, mais do
que travada entre capitalistas e proletários, com todas as ressalvas e vênias possíveis aos que
pensem em contrário, transmutou-se em laicos versus não-laicos. E ambos os lados estão
desunidos, daí este cenário caótico em que se encontra o país – e que porque não dizer o
mundo. No Supremo existe uma “bancada evangélica”, no congresso sua força é sentida e
para ser presidente tem-se que, no mínimo, fazer uma visita à Igreja, sendo ateu ou não, pois o
ateísmo é infame, conforme já se defendeu aqui.
Chancelou ainda o Supremo - e esta é a maior vergonha de sua história – que um
brasileiro no ventre de sua mãe alemã fosse deportado; ser esta criança, estar na sua pele,
sendo filho de uma judia e saber que o STF permitiu que sua genitora perecesse nas mãos de
Hitler. É incansável o art. 19, inciso I, da CF, tão malfadado e citado, especialmente no
capítulo em que se analisou a ADI que tratou do ensino confessional, é de um mecanicismo
tênue: “I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança,
ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”.
A bancada evangélica, enquanto esta monografia é escrita, se fortalece para um novo
mandato e a cura gay bíblica é ventilada por setores retrógrados da sociedade: foram ofícios
do Ministério Público do Estado do Acre e da Câmara dos Deputados em Brasília, poderes
constituídos, que deram azo a abertura a investigação daquilo que ficou passou ao imaginário
brasileiro como “a queima da bíblia da UFAC”. Na trágica aquarela brasileira decorrente,
confunde-se azul e rosa, meninos e meninas, ao invés de simplesmente crianças.
Acaso me compreenderam? – O que me separa, o que põe à parte de todo o resto da
humanidade, é ter descoberto a moral cristã. Por isso eu precisava de uma palavra
que contivesse um sentido de uma provocação dirigida a cada um. Não ter aberto
mais cedo os olhos é, a meu ver, a maior imundície que a humanidade tem na
consciência, pois é o fato de abusar de si mesmo que se tornou instinto, a vontade
orgulhosa de não ver a causalidade, a realidade, quaisquer que sejam, uma fraude em
55
O ENA representa apenas uma das facetas da luta dos laicos na prática: parafraseando
Marx, foi a epifania de uma minoria para sair das páginas dos livros e transformar de fato a
realidade12; tal projeto, por si só, talvez fosse alicerce suficiente para o conceito de lesa-
secularismo, mas se deve ir além. A queima da bíblia foi o basta, o réquiem deste mito, a
"chegada do meio dia" do qual Nietzsche fala na obra Assim Falava Zaratustra, ou da qual a
fala da advogada da ATEA na ADI ora analisada. E que implicações isso trará para um futuro
não tão distante?
Desde a fundação da Associação de Ateus e Agnósticos do Acre, em 2012, no dia em
que se comemora o Corpo de Cristo, quando de maneira mais ampla os ateus começaram a se
reunir no Estado, o que se observa são histórias de sofrimento e de preconceito que se
acumulam. A família geralmente é onde tudo começa e onde, infelizmente, mais duramente o
preconceito é sentido no início da descrença. Depois a escola, o local de trabalho e, por fim,
em quase todos os aspectos da vida social cotidiana.
O futuro é muito maior e mais belo que a dicotomia ateus x crentes, contudo, tal
dicotomia não deixa de ser mais ou menos importante no desenrolar do que Minois chamará
de futuro através das Eras. Tal utilização histórica do termo Era não é uma singularidade de
Minois, tendo em vista que ela está fartamente apresentada na obra de Hobsbawn, afeito a este
tipo de separação em Eras como metodologia para seus estudos. Talvez a performance de
12 É famoso o aforismo marxista de que “chega” de estudar a história, pois é chegada a hora de transformá-la.
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Roberto da Silva e quem vazou o vídeo para imprensa sejam questões nunca respondidas, ou
não sem um trabalho de pesquisa bem mais aprofundado. O que o levou a perpetrar seu ato
verdadeiramente?
Qual historiador não sentiria certa vergonha ao defender as revoluções Russa e
Chinesa pelo que fizeram contra a religião organizada? Mesmo o Japão feudal fora bastante
violento contra o cristianismo. A ausência da liberdade de crença amiúde desemboca em
revanchismo. Do médico que realiza um aborto ao queimador de bíblias do IV ENA, o
aparato Estatal não se afastará enquanto não for verdadeiramente laico. Este afastamento,
quando transmutado em revanchismo, desemboca em violência, porque o princípio da
laicidade não é respeitado na dimensão epistemológica aqui proposta, ou seja, como
fundamento: é considerado um princípio menor na pirâmide atual, como revelado na recente
decisão da ADI 4439. Estados ateus podem ser tão cruéis quanto cristãos a depender do ponto
e da forma em que ocorreu a ruptura deste princípio.
“Se esquecermos os feitos de nosso ancestrais, como podemos esperar que não
voltemos a ser escravos dos brancos?” perorava Hobsbawn (1998). Hobsbawn deixa essa
pergunta inquietante, advinda de ecos perdidos da floresta do Surimane não sem razão. O
discurso vigente de que não é possível mudar nada e de que a história acabou 13 é interessante
apenas para aquele grupo detentor de privilégios. A balança da (in)justiça brasileira, um dos
poderes mais influentes do Estado, pende para o lado da classe dominante que hoje, em sua
maioria, representa os não laicos.
Esta classe dominante, por sua vez, e através do controle dos meios de produção, bem
como dos meios de comunicação social, domina a maioria de fato através, dentre outros
métodos, das famosas fake news. A religião sempre foi utilizada como um método eficaz de
controle: "o platonismo da plebe" sobre o qual teorizou Nietzsche. Analisar tais implicações
no Acre e no Brasil entre 2013-2016, bem como em recortes históricos exemplificativos, sob
os auspícios de todos os mitos que nos rodeiam – com a devida vênia a estes – resulta na
vontade de potência laica, outro importante aspecto do presente trabalho.
Enquanto este trabalho é elaborado, um chinês acaba de se tornar o homem mais rico
do mundo, segundo a revista Forbes e a China comunista já é considerada a maior
superpotência mundial. Repise-se que os chineses foram constantemente invadidos por
impérios coloniais cristãos e por isso sua Revolução é chamada de Cultural: o retorno a
cultura chinesa através da vontade de potência laica. Àquele momento histórico, a cultura
13 O historiador americano Francis Fukuyama (1992) acreditava que chegaria um ponto no tempo onde a
História chegaria a um fim e encontraríamos a figura do “último homem”. Interessante notar que Nietzsche fala,
numa acepção completamente diversa, que “aguardava” o último homem. Este último homem, para Nietzsche,
seria a linha divisória entre o homem e o além-do-homem.
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chinesa (comunista) era não laica, logo, seguindo os ensinamentos de Marx, a China aceitou o
aforismo que infirma que a religião é o ópio do povo e adotou (e adota ainda) medidas legais
para regularizá-lo.
Coetaneamente, religião é poder, tem poder e financia os poderes constituídos. O
cineasta Glauber Rocha na película clássica Terra em Transe dá ao seu vilão maior esta visão
mítica do político brasileiro não à toa; do escolhido, do salvador da pátria que chega com a
Cruz e a Espada à mão para mudar tudo o que está aí.
O laico não crê, logo, a liberdade de crença não lhe beneficia concretamente.
Assegurar que alguém possa ser cristão ou judeu não garante que alguém possa guerrear
contra tais preceitos religiosos. Logo, o direito de milhões de brasileiros vem sendo
sumariamente negado pelo Estado não laico brasileiro. Milhares de brasileiros escolhem não
acreditar, afirmando alguns, inclusive, que a vida não passa de poeira de estrela. Essa é a
tragédia, este é o verdadeiro mito que deve sobrepor-se ao entendimento de laicidade aqui
proposto. Não acreditar é a tragédia, é entender que cada respiração é uma respiração a menos
e que não haverá uma além-vida. É uma filosofia triste, mas poderosa, pois torna cada
experiência única.
Não há interesse público numa educação sob preceitos cristãos da mesma forma que
não se pode dizer que o coleguinha não faz parte da raça humana, ou faz parte de uma raça
inferior por ser judeu. Numa citação famosa, Marco Feliciano diz algo sobre a África ter sido
punida com a escravidão por Deus em virtude de um acerto de contas bíblico... a isto apenas
se responderia: não, Excelência, foi pelo mercantilismo de cristãos imperialistas em nome
D’ele.
REFERÊNCIAS
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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Por não vislumbrar, nos dispositivos questionados na
inicial, nenhuma ofensa aos ditames constitucionais, JULGO IMPROCEDENTE esta ação
direta, declarando constitucionais os artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e 11,
§1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao
Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando a constitucionalidade do ensino
religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas
de ensino fundamental. ADI 4439/DF. Partes: PGR e outros. Voto Vencedor: Ministro
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