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É verdade que muito já se disse sobre este retângulo que emoldura o fora e que
lindo takes já foram filmados privilegiando o agora emoldurado, eu vejam eu poderia
começar falando daquilo de tudo que já falaram, mas eu não tenho mais o que dizer
sobre esta cidade tantas vezes nomeada e mais vezes ainda cantada. Mas tenho algo a
dizer sobre a casa na qual insisto em viver.
Da janela, o costumeiro som vindo do bar já não provoca incômodos. O alarido
viril tornou-se parte do quarto. O quadro de moldura branca pregado na mesma parede
há anos. A cômoda de madeira maciça com um lascado na lateral. O vaso de uma planta
miúda dessas que não morrem por qualquer motivo. Tudo é tão pertencente aquele lugar
quanto o vozeiral adulto que invade a casa. Elas parecem já ter se acostumado. Mas, do
alto da janela, um som ínfimo irrompe no interior. Uma faísca de som que não compete
em volume com o falatório dos homens, mas chama atenção por seu distinto tom.
Por favor, por favor mãe, só mais um pouquinho, ele insistia, agarrado a barra da
saia da mãe implorando por mais brincar. Um choro infantil embalava a voz do menino.
De cima, só se viam as mãos pequeninas a sacudir o corpo materno. Seu rosto, seu
corpo, escapavam aos olhos de quem espiava do alto. Do segundo andar pouco se via
além de outras tantas janelas e um ângulo torto e estreito do bar. Mas a voz, o choro
ínfimo, ecoavam no quarto como um berro a romper com o falatório cotidiano do bar.
Já é tarde, e a mãe responde ao menino com um “sossega garoto” e talvez até um
leve tapa - que do quarto não fazia muito estalo. Da cama, elas gargalham e resmungam
ao avistar a cena: Que fofo, de um lado. Que saco, do outro. O vozeiral inflamado dos
homens formava um som tão uniforme que ao invés de abafar o ruído infantil, o
destacava. A criança sacolejando a mãe que distraída pedia mais uma cerveja agora fazia
parte da paisagem. Cala a boca menino, uma pensa em gritar da janela, enquanto a outra
ri e lembra de ser criança...
“Tenho saudades de ser criança” diz. A frase incitada pelas súplicas do menino
- que perturba a mãe esgarçando seu vestido de tanto puxar - ecoa no quarto e naquela
conversa já contaminada pelo tardar da hora e pelas taças de vinho em mãos. Breves e
despretensiosas palavras vindas da amiga. Resguardadas pela segurança do íntimo, mas,
capazes de atiçar o pensamento rumo a novos tempos.
Em um segundo, a outra se dá conta de que nunca havia pensado sobre isso. Não
sabia se tinha ou não saudades de ser criança. Como isso era possível? Talvez, já
capturada pelo mundo enrijecido dos adultos, habituada a dureza cotidiana das
intermináveis reuniões - até as supostamente revolucionárias sempre conduzidas pelo
som infindo de tantas e tantas palavras de ordem - algo da infância lhe escapasse.
Se assustou com aquela afirmação tão natural de quem sabia exatamente do que
sentia falta: do brincar, do correr, dos gestos leves, da palavra ingênua e de um fingir
legítimo, permitido somente a quem ainda é criança. Essa criança que goza da
“faculdade de se interessar vivamente pelas coisas, mesmo pelas mais triviais em
aparência” (BAUDELAIRE, 1993, p. 223). Constrangida pela civilidade sóbria do
mundo adulto não era capaz de perceber a infância que escapa “para fora do
enquadramento opressivo” (BINES, 2018, p.2).
Atiçada pela frase da amiga e pelo resmungar do menino quis então lembrar de
ser criança. Forçou o pensamento para trás em busca de respostas, enquanto do lado de
fora a criança ainda chorava e ria pedindo a mãe com jeitinho por mais minutos na rua.
Forçou, mas a infância que lhe vinha tão embaçada, escorregadia por entre os
pensamentos, era boa? A saudade certeira da amiga parecia lhe obrigar a testemunhar
uma infância feliz.
Mas, talvez não tivesse tido mesmo uma infância tão gloriosa, ela ousou pensar.
Talvez por isso suas lembranças infantes não fossem dignas dessa saudade tão certeira
que a outra ali lhe confessava com brilho nos olhos. Todavia, não lhe vinham memórias
tristes, nada que predominasse no pensamento e a fizesse lamentar aquele tempo.
Lembrou, pois, da casa da vó que lhe abrigou na infância e com certo esforço
narrou à amiga o corredor comprido que ligava as três casas no mesmo quintal onde ela
vivia a inventar suas tolices de criança: o grande campeonato atlético que se repetia
semanalmente e exigia que a mãe lhe costurasse roupas dignas de uma ginasta olímpica.
Tinha dúvidas se a mãe um dia soubera costurar, mas o macacão listrado e justo no
corpo com a bandeira do Brasil no peito era tão vivo em seu pensamento que podia
apostar que sim, a mãe o teria costurado inteiro a mão; as arapucas de pegar rolinhas
espalhadas pelo quintal demandavam não só pedaços de madeira aliados a panelas
velhas, mas também um chapéu esverdeado que lhe emprestava tons de caçadora. Teria
de fato, alguma vez, em suas armadilhas capturado algum pássaro?
Já não sabia mais. “É complicado separar o que aconteceu daquilo que poderia
ter acontecido” 1lhe anunciava o livro jogado na cabeceira da cama. Para Ranciere
(2005, p.59):
Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da
era estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e
formas de intelegibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos
fatos e razão da ficção e que esses modos de conexão foram retomados pelos
historiadores e analistas da realidade social. Escrever a história e escrever
histórias pertencem a um mesmo regime de verdade.
TERMINAL
Caminha sem pressa, pois assim como ela, o seu ônibus sempre sai atrasado.
Entre um café fraco e um cigarro forte, filtro vermelho, avista a estante empoeirada da
singela livraria. Nunca havia se dado conta, mas os poucos livros empilhados nas
prateleiras, aqueles que ainda não perderam espaço para ás magazines da moda, são
versões pockets de romances e grandes clássicos da literatura brasileira. Claramente, o
corre-corre pertencente ao local, o ir e vir dos transeuntes se atualizam em livros mais
enxutos, condensados. Afinal, ali não há tempo para se alongar as leituras.
Escorre os dedos por entre os livretos empoeirados até se deparar com a
coletânea Viver & Escrever, que reúne uma série de entrevistas a autores brasileiros. A
associação entre vida e escrita é suficiente para despertar o interesse matutino. O ônibus
enfim iria sair e ela rapidamente cata uns trocados para comprar o livro que a faria
companhia durante as prováveis horas de engarrafamento. Diariamente de casa ao
trabalho, do trabalho à casa, o trajeto nem era tão longo, mas o trânsito intenso.
Mais do que suas obras, na coletânea Viver & Escrever (STEEN, 2008) o
entrevistador parece inquerir sobre os singulares processos de escrita em jogo para cada
autor. Quando e como começou o interesse pela escrita? Que rituais estão nele
envolvidos? Houve apoio da família? Da onde vem a inspiração? E por aí vai...
“Roía as unhas? Não sei, vejo-a tão secreta, se escondia dos outros, até de mim”
(STEEN, 2008, p.146) é o que Lygia Fagundes Telles, uma das autoras entrevistadas na
coletânea, responde ao tal entrevistador ávido por saber detalhes de sua infância em São
Paulo. Infância, vocação, desafios, hábitos, motivos. Mote lançado em busca do íntimo
da autora ou a velha questão colocada aos escritores: como é seu processo de criação?
É como se, no fundo, todos os leitores imaginássemos, platonicamente, que
existe um grande depósito de ideias. Os mortais comuns se limitariam a pegar
as mais óbvias, ao alcance de qualquer um, enquanto alguns privilegiados
conheceriam os segredos para chegar aos cantinhos mais obscuros e
recônditos, de onde seriam capazes de trazer originalidades insuspeitadas
pela maioria: a matéria prima da criação, em estado bruto (MACHADO,
2009, p. 126).
O desvio proposto por Lygia lhe chama a atenção. O tom ao mesmo tempo
inventivo e inexato das respostas a respeito de seu passado parecem romper com a
expectativa ao qual os leitores parecem ser levados a construir ao longo das perguntas, a
de que ali, nas breves linhas de um texto, essa “matéria prima da criação” virá a ser
desvelada em toda sua pureza e “estado bruto”. E com a maestria de quem ao narrar o
passado inventa, sobre sua meninice Lygia conta que:
No sábado abria o belo álbum de música que o avô cego mandou fazer para
ela, um álbum de couro vermelho com seu nome em letras douradas: Zazita.
Compôs uma valsa que se chamava Coração de Lili Alegre, sim, mas vendo
hoje seus retratos, descubro em todos o mesmo olhar triste – ela era triste?
(STEEN, 2008, p.150)
Ela era triste? A pergunta ressoa sem respostas exatas. Se por um lado as
perguntas precisas do entrevistador parecem levar Lygia em busca de suas memórias
infantes, a lembrança desse passado na obra da autora frequentemente escapa a ideia de
cristalização e/ou sacralização do que se passou. Sempre submetida as interferências do
presente, memória e invenção se aliam em um grande jogo inventivo dando as histórias
da autora inúmeras potencialidades.
De repente, o ônibus freia abrupto. Buzinas, impaciências, xingamentos, uma
briga de trânsito. Já está acostumada e o fuzuê lhe prende menos a atenção que as
personagens de Lygia. Na obra da autora, é de grande destaque o ciclo denominado
Memória e Invenção - iniciado em 1980 com o livro Disciplina do amor e encerrado em
2007 em Conspiração de Nuvens. Sobre esse ciclo, Ana Maria Machado afirma que:
E ainda:
À deriva entre imagens, acasos, sonhos, enquanto parece compartilhar com o
leitor a exploração da memória e invenção como algumas das vertentes
privilegiadas da criação literária, a autora se deixa levar a esmo, numa
espécie de estado de entrega, disponível ao imprevisto. Parece vogar ao sabor
das reminiscências vagas de episódios autobiográficos (da infância,
adolescência, juventude estudantil e vida adulta), [...]. Mas de repente faz
com que neles incida o relâmpago de uma ruptura evidentemente inventada, e
essa faísca os ilumina e promove a ficção. (Id. p.129)
Mas que ninguém se confunda: não se escreve ficções para se esquivar, por
imaturidade ou irresponsabilidade, dos rigores que o tratamento da “verdade”
exige, mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo da situação,
caráter complexo que o tratamento limitado ao verificável implica uma
redução abusiva e um empobrecimento. Ao dar o salto em direção ao
inverificável, a ficção multiplica ao infinito as possibilidades de tratamento.
(SAER, 2009, s/p.)
Dar um salto. Memória, invenção, dentro, fora. Dar um salto. Pular a janela.
SALTO
RUA
[18 de Maio] “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: por
uma sociedade sem manicômios”. A frase escrita em chamativas letras vermelhas
desperta a atenção de quem chega a praça da Cinelândia. Desceu as escadas apressadas,
do alto da janela só se enxergava um borrão de gente, mas de perto e com os pés no
Este trecho faz referência a declaração do General Villas Bôas comandante do Exército
Brasileiro, também mencionada na reportagem da Revista Fórum “ Jornal Nacional: Globo usa mensagem
do comandante do Exército para ameaçar STF” Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/jornal-
nacional-globo-usa-mensagem-do-comandante-do-exercito-para-ameacar-stf/ > (acesso em: 28 ago. 2018)
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A frase faz menção a intervenção federal aprovada em fevereiro de 2018 no Estado do Rio de Janeiro,
que deixa a segurança pública fluminense sob responsabilidade de um interventor militar, o qual responde
diretamente ao presidente em exercício.
chão era possível ler a mensagem na cartolina branca e grande pendurada na frente da
Câmara dos Vereadores.
Do cartaz, um resto de tinta se deixa escorrer pelo chão e gotas vermelhas sujam
a escadaria. De longe, o carmim derramado no chão parece sangue. De perto, também.
Vez ou outra um sapato apressado pisa sobre a tinta e pegadas vermelhas se espalham
pelos degraus. Sobe, desce, estica de um lado, puxa do outro, o varal de cartazes é um
colorido obstáculo aos transeuntes apressados, mas poucos enxergam suas cores.
Condenados a seus reflexivos gestos, os pedestres tal qual no conto de Allan Poe
(1981): “tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em
abrir caminho através da turba”. Ou, como para Walter Benjamin (1989, p. 126) sobre o
mesmo conto: “Seus transeuntes se comportam como, se adaptados à automatização, só
conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação a
choques".
Da escadaria da Câmara sobe e desce gente séria e sisuda. Representantes da
administração municipal cercados por seguranças maus encarados. Muitos nem paravam
para olhar. Já outros cavam espaços de fala no microfone central. Na esquina do antigo
cinema - um dos poucos que ainda resistem nas ruas da cidade - o zumzumzum de um
famoso festival reúne atores e produtores. Na lateral da Câmara a fila da famosa pipoca
já dobrava a esquina e o cheiro de bacon já tomava a praça. Tudo passando ao mesmo
tempo e a toda hora.
A frase do cartaz principal estava também espalhada em camisetas e adesivos.
Para todo lado que se olhasse, invitava um apelo ao passado: o horror do hospício não
pode ser esquecido, o horror do hospício não pode ser repetido. Após mais de trinta anos
de Reforma Psiquiátrica Brasileira hasteava-se na escadaria central do Rio de Janeiro
uma bandeira em prol da memória. Memória da luta por uma sociedade sem
manicômios.
Era uma aposta no exercício de lembrar. De não deixar cair no esquecimento a
luz que só entra em frestas pelas grades, os gritos que se agudizam a noite quando
ninguém os ouve, as marcas vermelhas nos pulsos e nos tornozelos, o andar
cambaleante de quem vive dopado e o branco reluzente dos jalecos que esbanjam
verdades. Tudo aparentemente guardado no grande baú do passado quando o sistema de
tratamento da loucura ainda era o mesmo da Idade Média: o sequestro. (BARRETO,
2010).
A dobradinha “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”
implicava um gesto ético e político, o de que: “o conhecimento do passado tem por alvo
não só a si mesmo, numa pretensa objetividade desinteressada, mas muito mais uma
relação de intensidade ao passado que possibilite uma atitude e uma ação mais justas no
presente” (GABNEBIN, 2011, p.156). Lembrar, pois, para não repetir.
Passou alguns minutos contemplando o cartaz, observando a rua. Tudo acontecia
de uma só vez. A tinta vermelha pingava incessantemente nos degraus borrando as
letras e ferindo o branco cintilante da cartolina. “Para que nunca mais aconteça”: quanto
mais o vermelho escorria mais turvas tornavam-se as palavras. No chão, a poeira da rua
misturava-se a tinta derramada e dava a ela um tom indecifrável.
Ao redor, o aglomerado de gente ia se multiplicando. Trabalhadores da rede de
saúde mental, usuários dos serviços, artistas e simpatizantes de uma sociedade sem
manicômios se reuniam ao redor do pequeno palco feito de um tapume improvisado.
Ambulantes se juntavam ao tradicional festejo antimanicomial e quanto mais tarde
ficava mais cervejas vendiam.
Um tom alegre e festivo se expressava em abraços e sorrisos. Velhos amigos,
novos colegas de trabalho, usuários, estudantes, os que vemos sempre e os que não
víamos fazia um tempão, todos reunidos. No microfone alguém cantava uma canção.
Do lado oposto da calçada um bêbado dançava ao som do seu radinho de pilha. Ao seu
lado, vendedores gritavam cerveja! Cerveja! E em seus isopores, adesivos estampavam
sementes de esperança.
Um clima amistoso se espalhava pela praça adentrando os bares verde e amarelo
das esquinas. A curta caminhada entre a Cinelândia e o Largo da Carioca era o momento
mais esperado. E a cada passo que se dava o tom divertido das músicas se intercalava a
intensidade das falas de denúncia e reivindicação borrando os limites entre festa e
manifestação. Talvez fosse uma briga, talvez fosse uma festa.
Os passantes apressados, típicos engravatados do centro do rio de janeiro
expressavam certa curiosidade no olhar. Mas não podiam se demorar na contemplação
do ato. Do escritório ao restaurante. Do restaurante ao shopping. Do shopping ao metrô.
Do metrô a casa. É sempre tarde demais.
Este trecho faz menção a música “Loucura Somos todos Nós” de autoria da Oficina Livre de
Música e Oficina Literária do CAPS Clarice Lispector
apocalípticos carros do exército a circular pelas ruas fazendo estrondo. Como se não
bastasse o moleque esperneando na barra da saia da mãe. E ainda, aqueles homens
afoitos com o último clássico do campeonato de futebol. Agora, logo agora, no
momento em que o café está pronto, os livros sobre a mesa e o computador ligado à sua
frente. Bem nessa hora, a vizinhança resolver dar início a uma briga de bar.
Pronto. Não lhe faltava mais nada além de silêncio e inspiração. Ambos
quebrados com o fuzuê. Pensou em fechar a janela, vidro e cortina. Antes de tentar,
desistiu. Já sabia que as abas de vidro eram menos eficazes que o som vindo do
botequim. Tentou não se interessar pelo falatório, mas do terceiro andar, a imagem da
bíblia tremendo ao alto contrastava com o copo de cerveja sacolejando em outras mãos
e a cena lhe chamava atenção.
Ainda que seu campo de visão fosse limitado as outras janelas, à rua estreita e a
lateral do bar. Do alto, tudo ganhava certo tom teatral. Tal qual uma espectadora atenta,
e ainda que sem perceber, ela vislumbrava promessas de significação a cada cena vista e
ouvida de dentro. Da janela, punha-se a decifrar o que de longe lhe atingia.
A mulher de vestimenta longa e cor neutra, cabelos brancos amarrados ao alto e
uma cruz a balançar no peito carregava nas mãos uma bíblia e com o pé direito
pisoteava o chão do bar olhando nos olhos do homem que ali estava. Olhava ao redor e
amaldiçoava os pecadores, todos ocupados demais com seus petiscos para darem
qualquer atenção a mulher. Isso não lhe parecia um problema. O castigo viria, ela
esbravejava. Deus está no comando, repetia entre um versículo e outro. Vocês todos vão
queimar no fogo do inferno, anunciava aos gritos.
O homem a quem ela fitava com furor achou graça de início. Imitava seus gestos
como ares jocosos. E ao invés da bíblia era o copo de cerveja que ele sacudia ao alto.
Também usava o pé direito para pisotear o chão, mas ria ao zombar dos possíveis
demônios. Ria. Gargalhava. Como se a sua frente, naquelas roupas compridas e cabelos
presos, só pudesse enxergar uma grande e verdadeira anedota.
Mas ao passo em que a mulher insistia em convocar seu Deus ao bar, para o
homem, a chacota já perdia a graça. E enquanto ela condenava os boêmios da Lapa -
praguejando castigos divinos - as palavras do homem condenavam a própria mulher. Do
chiste ao ódio, agora era ele quem esbravejava: Puta! Vadia! Cala a boca! Isso é falta de
homem! Vai procurar o que fazer, sua velha! Nem merece ser estuprada! Nem merece
ser estuprada, ele repetia. As palavras entravam no quarto como num eterno eco a
repetir as palavras do candidato à presidência.6
Nas mesas do bar alguns pediam calma ao homem, outros mandavam a mulher
embora. Mas a maioria restante, entretida demais com a comida ou a novela parecia não
perceber que algo acontecia. Do alto da janela era possível sacar os olhares, estavam
fixados entre si, em suas próprias mesas ou voltados para a grande televisão presa na
parede do bar. De longe, pareciam hipnotizados pela sequência de imagens ofertadas no
telão. Se o fuzuê lhes chamava a atenção era apenas por poucos segundos e com olhares
permeados de desprezo.
Do quarto, uma mesa repleta de livros, artigos e palavras soltas na frente no
computador. A cena, além de atravancar a escrita oferecendo gritarias, insultos e
palavrões trazia por entre as brechas da janela anúncios de um inferno. Um inferno
distante daquele proclamado pela mulher - o inferno ardente com sua chama a queimar
corpos de pecadores boêmios. E mais próximo daquele afirmado por Calvino (1974,
s/p), este “no qual vivemos todos os dias”. Certa tristeza espreitava. Frente ao inferno,
escrever soava como um gesto infrutífero. Fechou os livros, fechou os olhos, jogou o
corpo na cama e adormeceu.
Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas da histórias que nós
nos contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades
de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto
os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das
imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o
que se pode fazer. [...] Os enunciados políticos ou literários fazem efeito no
real. Definem modelos de palavra ou de ação, mas também regimes de
intensidade sensível. Traçam mapas do visível, trajetórias entre o visível e o
dizível, relações entre modos de ser, modos de fazer e modos de dizer.
(RANCIERE, 2005, p.59)
. Este trecho faz referência a declaração do candidato a presidência em 2018 Jair Bolsonaro,
como foi mencionada na publicação online do site Jusbrasil . Disponível em:
https://lunatenorio.jusbrasil.com.br/noticias/156410097/nao-te-estupro-porque-voce-nao-merece-volta-a-
dizer-bolsonaro-a-deputada