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O presente artigo tem como objetivo discutir conceitualmente a noção de precariedade do trabalho, tendo
em vista que ela é amplamente utilizada na sociologia, sem que um significado preciso seja formulado. Pro-
põe-se uma abordagem relacional e construtivista, que procura articular as condições objetivas e subjetivas
de produção do fenômeno em questão. Para tanto, parte-se do debate sobre o conceito de trabalho, a fim
de melhor definir em que consiste sua precariedade. Argumenta-se, igualmente, a necessidade de situar
esse debate no âmbito de quadros teóricos mais amplos de interpretação sociológica. Identificam-se duas
dimensões cruciais na análise da precariedade do trabalho, a relação de emprego ou trabalho e a atividade
laboral propriamente dita, discutindo-se exemplarmente as perspectivas teóricas de dois autores franceses
especialmente interessados nesse tema: Robert Castel e Serge Paugam. Finalmente, discutem-se algumas
implicações desse debate para a realidade brasileira, sustentando-se a importância de dar um tratamento
multidimensional ao fenômeno.
Palavras-chave: Trabalho. Emprego. Precariedade. Precarização. Desigualdade.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000200008 313
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entre ambas. Ela pode supor, ainda, um quadro trabalho como objeto teórico de investigação.
de referência que focalize sejam as dimensões Reconhecendo os limites de tal abordagem pu-
estruturais mais gerais do fenômeno, sejam as ramente conceitual, sugere-se, em seguida, na
dimensões relativas à ação e à representação segunda parte, a necessidade de identificar qua-
dos atores individuais ou coletivos em suas dros teórico-sociológicos de referência a partir
circunstâncias concretas de existência. dos quais a precariedade do trabalho é social-
Nesses termos, propõe-se, neste artigo, mente situada e explicada. Exploram-se, nesse
uma abordagem ao mesmo tempo relacional particular, as perspectivas sociológicas dos au-
e construtivista da precariedade do trabalho. tores clássicos da sociologia. Na terceira parte,
Nela, não se trata de estabelecer, a priori, uma procura-se identificar duas dimensões funda-
definição objetiva e exaustiva do fenômeno. mentais da precariedade do trabalho a partir da
Trata-se, num primeiro momento, de explo- contribuição teórica de dois autores franceses,
rá-lo conceitualmente em seus contornos, na Castel (2001, 2009) e Paugam (2000, 2008). Na
qualidade de um procedimento essencialmen- quarta e última parte deste artigo, procura-se
te heurístico, para, em seguida, reconhecê-lo explorar conceitualmente as particularidades
e tratá-lo como uma “categoria social”, que é desse fenômeno no Brasil, onde uma velha pre-
o produto da construção social e histórica de cariedade estrutural do trabalho se combina
atores e sujeitos situados em suas relações so- com uma nova precarização do trabalho. Para
ciais. Sendo uma construção social relacional, isso, propõe-se a mobilização das dimensões
essa categoria pode implicar diversas maneiras analíticas identificadas anteriormente.
de defini-la e de relacioná-la com outras dimen-
sões da vida social, segundo o ponto de vista,
os interesses e os valores desses atores sociais. APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS: as
Como hipótese teórica, sugere-se que, dimensões do trabalho
na investigação sociológica, na medida em que
prevalecem abordagens mais estruturais que A precariedade do trabalho só pode ser
privilegiam algumas dimensões específicas adequadamente analisada e interpretada se o
da precariedade do trabalho, particularmente próprio trabalho, como objeto de investigação,
aquelas relacionadas com a deterioração do for definido e delimitado. O trabalho tem sido
estatuto do emprego, corre-se o risco de subes- habitualmente concebido como uma atividade
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timar a extensão e a profundidade do fenôme- através da qual o ser humano estabelece uma
no, particularmente no Brasil, onde uma velha relação metabólica com a natureza e o mundo
precariedade estrutural do trabalho é muito social, a fim de assegurar a reprodução de suas
forte. Daí a importância de se levar mais in- condições materiais de existência. Para a econo-
sistentemente em consideração a dimensão do mia política, essa atividade se define, abstrata-
trabalho propriamente dito, como atividade mente, como fundamento do valor econômico,
dotada de sentido. Considera-se, ainda, que se da criação de riqueza, como a produção de bens
corre o risco de subestimar a precariedade do e serviços escassos (Lantz, 1992; Freyssenet,
trabalho se não se levar suficientemente em 1993). Nas sociedades modernas, marcadas por
consideração sua condição de categoria sub- uma forte divisão social do trabalho e pela ex-
jetiva, isto é, como construção social dos tra- pansão das relações mercantis, o trabalho assu-
balhadores inscritos em um contexto social e me, predominantemente, seja a forma geral de
profissional ou ocupacional particular. um “trabalho remunerado”, monetariamente re-
Este artigo está dividido em quatro par- tribuído e exercido em função das demandas de
tes. Na primeira, procura-se propor e explorar bens ou serviços de outros atores sociais, seja
conceitualmente as diversas dimensões do a forma específica de um “trabalho assalaria-
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ou seu insuficiente reconhecimento e, no limi- condições sociais e das relações nas quais se
te mesmo, sua completa desvalorização social inscrevem os atores sociais é de fundamental
ou condenação como atividade ilegítima. Nas importância para uma compreensão mais ade-
sociedades modernas, o sistema de proteções e quada do mundo do trabalho. Enfim, a relação
direitos vinculados ao trabalho constitui, nesse subjetiva com o trabalho como atividade dota-
sentido, importante mecanismo de reconheci- da de estatuto, de reconhecimento, de retribui-
mento social e valorização da condição laboral, o ção e de sociabilidade mostra-se fundamental
que implica não só a proteção contra os riscos da para apreender mais profundamente a questão
existência, tais como a proteção previdenciária e da precariedade do trabalho.
os direitos trabalhistas, mas a formação de iden- Ainda em relação a essa segunda dimen-
tidades individuais e coletivas. O trabalho é, por- são, parece importante destacar o aspecto da
tanto, uma atividade a partir da qual o indivíduo retribuição econômica, do trabalho como fonte
pode ser reconhecido e se reconhecer em função de rendimento e o que ele implica em termos
da posição social que ocupa, tratando-se, pois, de reconhecimento social. Desse modo, se o
de um fator decisivo no processo de construção trabalho é, por excelência, a fonte da riqueza
de identidades profissionais e sociais. socialmente produzida, ele é também um de
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seus principais meios de distribuição. Através critérios que remetem às chamadas linhas ab-
do trabalho se torna possível tanto a reprodu- solutas ou relativas de pobreza e miséria), ela
ção da vida social em geral como a reprodu- também pode ser apreendida através de crité-
ção e subsistência dos trabalhadores indivi- rios subjetivos, isto é, através da compreensão
dualmente. A classe trabalhadora, constituída da relação subjetiva que os atores sociais têm
de não proprietários dos meios de produção, com seu trabalho como fonte de rendimento
conforme nos propõe Marx (1983), é um grupo monetário e de acesso a bens e serviços. Num
social que não dispõe dos recursos habitual- caso como no outro, trata-se de apreender tais
mente acessíveis aos proprietários – tais como “definições” da precariedade do trabalho como
rendas, juros, lucros, etc. – para assegurar o construções particulares, situadas em contextos
acesso aos rendimentos monetários e, conse- sociais e relacionais específicos. Sociologica-
quentemente, ao consumo em um sistema eco- mente, trata-se de analisar e explicar o processo
nômico mercantil. Nesses termos, o rendimento de formação e justificação de tais construções,
do trabalho torna-se um indicador fundamen- bem como suas consequências na constituição
tal para medir sua precariedade, uma vez que e transformação das relações sociais.
está em jogo, para a maior parte da população
que depende do trabalho, o acesso aos bens e
serviços considerados “necessários” para a ga- O TRABALHO, A PRECARIEDADE
rantia de uma existência “digna”. Um rendi- E OS QUADROS SOCIOLÓGICOS
mento “insuficiente” do trabalho pode acarretar CLÁSSICOS DE REFERÊNCIA
ao indivíduo que trabalha ou a seu grupo uma
situação de “privação material” ou “pobreza”. Os aspectos conceituais apresentados no
Vale salientar que as noções de necessidade, item anterior e que podem ser explorados em
dignidade, insuficiência, privação ou pobreza investigações sociológicas mais empíricas care-
supõem um conjunto de construções sociais cem, no entanto, de um quadro teórico de refe-
que podem ser investigadas pela sociologia, rência a partir do qual essas situações objetivas
remetendo a normas, valores e relações sociais ou subjetivas de precariedade podem ser en-
específicas. A noção de “remuneração digna” se quadradas e explicadas. A proposição de qua-
constrói e se define sempre em termos relacio- dros teóricos de referência permite situar e es-
nais: tanto em relação ao volume global médio tabelecer relações entre as diversas dimensões
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último caso, coerções ilegítimas não garantem ções e conexões de sentido que precisam ser
a adequada correspondência entre as regras so- identificados pela explicação sociológica. Nes-
ciais e as disposições e valores coletivos. Essas ses termos, Weber nos propõe uma perspectiva
formas anormais de divisão do trabalho cons- sociológica de construção do objeto trabalho
tituem, no entanto, para o autor, estados provi- como “atividade significativa”, isto é, como
sórios, típicos de períodos de transição e pro- atividade cujos sentidos subjetivos adquirem
fundas transformações sociais. Em última aná- conteúdo e forma em condições sociais parti-
lise, a própria precariedade do trabalho tende culares, as quais é preciso investigar.
a ser superada com o adequado ordenamento e Desse modo, o trabalho é uma atividade
amadurecimento das instituições sociais. cujo sentido se inscreve no conjunto da vida
Se, em Durkheim, esses estados mentais social e nas relações que os atores estabelecem
coletivos, essas crenças e valores, adquirem entre si. Sua inscrição no mundo social supõe
o estatuto de estruturas objetivas, em Weber um processo de hierarquização das múltiplas
(1987a), elas são pensadas como significados esferas da vida social, configurando-se um jogo
produzidos no curso da própria ação social. Para entre atividades sociais mais ou menos valori-
esse autor, o trabalho torna-se um objeto socio- zadas ou desvalorizadas. A dinâmica histórica
lógico relevante de investigação na medida em de construção do “trabalho” como uma esfera
que essa atividade social estrutura um conjun- de atividade especializada, valorizada por si
to de valores e significados culturais historica- mesma, expressa esse jogo, cujo reverso é, por
mente específicos e situados (Weber, 1987b). É exemplo, a perda de valor das atividades religio-
assim que, nas sociedades modernas, caracte- sas. No próprio interior do mundo do trabalho
rizadas pela existência de uma ética do traba- e da esfera econômica, um jogo complexo de
lho, isto é, pela valorização do trabalho como valores e hierarquias se configura, implicando
produção de riquezas, as atividades orientadas sua estruturação como uma “ordem simbólica”.
em torno de interesses econômicos, visando à A “precariedade do trabalho”, nesse sen-
valorização do mundo material e à acumulação tido, pode ser definida como o resultado de um
de bens materiais, passam a adquirir um esta- processo de desvalorização de determinadas
tuto central na configuração da ação social e, ocupações, profissões ou grupos sociais numa
portanto, na própria explicação sociológica. dada hierarquia social ou profissional, tendo
Nessa perspectiva, essa centralidade do como consequência níveis inferiores e (ou) in-
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trabalho e essa ética do trabalho não podem satisfatórios de retribuição material e simbóli-
se apresentar para a sociologia como um dado ca. A “precariedade do trabalho”, por isso, não
em si mesmo, mas como um elemento cultu- pode ser adequadamente apreendida senão no
ral que precisa ser explicado em sua historici- interior dessa ordem simbólica. A perspectiva
dade. É preciso, pois, investigar as condições interacionista é, talvez, aquela mais capaz de
de produção de determinados significados da produzir as ferramentas conceituais para apre-
ação social em seu contexto particular, identi- ender essa dimensão da vida social, sobretudo
ficando as conexões de sentido delas decorren- em suas interações cotidianas (Hugues, 1996).
tes. A valorização do trabalho, das atividades
econômicas e da produção da vida material
desencadeadas pelo capitalismo moderno, em A EMERGÊNCIA DA PRECARIZAÇÃO
sua racionalidade econômica extrema, é expli- DO TRABALHO COMO PROBLEMÁ-
cada pelo autor a partir dos valores e da reli- TICA SOCIOLÓGICA
giosidade protestante, orientada em torno de
objetivos de valorização do reino de Deus nes- O modo como se analisa e se interpreta
te mundo, de uma vocação. São essas orienta- o problema da precariedade do trabalho tem
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relação direta com a importância que se atribui Através da noção de “sociedade sala-
e com o lugar que se dá ao trabalho nas socie- rial”, Castel faz referência, pois, a um sistema
dades contemporâneas, o que tem implicações de regulação capaz de proteger os trabalhado-
sobre o próprio estatuto teórico da categoria res face aos riscos e incertezas da existência,
trabalho (Offe, 1989). No âmbito da sociologia, sua participação social dependendo, em larga
o trabalho tem sido considerado mais do que medida, de sua inscrição no quadro da divisão
uma simples atividade social, dentre outras. social do trabalho. Segundo o autor, é a crise
As investigações em torno das transformações desse trabalho que supõe proteção e reconhe-
do mundo do trabalho têm se apresentado e cimento, isto é, um modelo de integração típi-
se caracterizado como análises de transforma- co dessa sociedade salarial, que está na base
ções estruturais profundas, que levam em con- da nova questão social contemporânea. Seu
sideração o conjunto da vida social. É nessa fundamento é a própria crise capitalista, que
qualidade que o fenômeno da precariedade do se inicia nos anos setenta do século XX e cul-
trabalho também tem sido considerado. minou na emergência de um novo modelo de
Se, no âmbito da sociologia e dos dis- organização do trabalho e de regulação social
cursos correntes, o tema da “precariedade” é baseado na flexibilidade da produção e das re-
comumente definido no sentido de uma “preca- lações de trabalho. Até então, competitivida-
riedade social”, dirigindo sua atenção aos gru- de e segurança no trabalho puderam conviver
pos sociais em situação de vulnerabilidade, po- num modelo de desenvolvimento baseado no
breza e exclusão social (Appay; Thébaud-Mony, crescimento econômico, no pleno emprego e
1997), é no âmbito da sociologia do trabalho, no bem-estar social. Esse modelo, que é pos-
sobretudo a partir dos anos noventa, que os es- to em xeque com o avanço das políticas neo-
tudos sobre a “precarização do trabalho” vão liberais, tem como consequência um processo
se multiplicar, identificando-se, nas formas de profundo de desarticulação da classe trabalha-
organização do trabalho e de gestão da força de dora, de suas formas de organização coletiva e
trabalho, os fundamentos de um processo mais de seu sistema de direitos e proteções. Em úl-
profundo de fragilização da classe trabalhadora. tima análise, trata-se de um processo histórico
A “precarização do trabalho” estaria na origem, de institucionalização de um novo modelo de
pois, de um processo mais amplo de “precariza- regulação e de conformação do denominado
ção social” (Castel, 2001). “precariado” (Castel, 2009).
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duo se integra à vida social, cria uma identi- como pela autonomia e liberdade de iniciativa
dade social e profissional, estabelece laços de que implica. Se, por um lado, o trabalho pode
pertencimento e sente-se útil em relações de ser fonte de prazer e satisfação, por outro, ele
complementaridade com os demais trabalha- pode ser uma importante fonte de sofrimento
dores e cidadãos. Além do conjunto de prote- para o trabalhador.
ções e garantias cristalizado na intervenção do 3) A dimensão do homo sociologicus,
Estado social, esses laços de participação or- cuja satisfação é medida pela relação com os
gânica asseguram aos indivíduos um lugar no outros, sejam os colegas e o grupo profissional
mundo, uma satisfação e um reconhecimento de pertencimento, seja a empresa e as chefias e
pelo que fazem, pelo trabalho que realizam. hierarquias superiores.
Assim, o tipo ideal de integração profissional, A relação subjetiva que o trabalhador es-
segundo Paugam, define-se como uma dupla tabelece com seu trabalho apresenta-se, pois,
garantia: a) de reconhecimento material e sim- como uma relação multidimensional, de tal
bólico do trabalho como atividade profissional forma que o indivíduo pode estabelecer uma
e b) de estabilidade do emprego e segurança identificação positiva ou negativa com seu tra-
econômica. balho em suas várias dimensões, o que resulta,
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do ponto de vista analítico, numa complexa marcada pela instabilidade no emprego, pela
grade de interpretação sociológica. incerteza em sua relação com a empresa e pela
Do ponto de vista da relação com o em- insatisfação no trabalho (Paugam, 2000).
prego, a estabilidade é a noção-chave para Nesses termos, a compreensão das for-
Paugam, sendo ela entendida como o exercí- mas contemporâneas de integração profis-
cio regular e contínuo do trabalho, implicando sional implica analisar tanto a relação com o
certa duração do vínculo e permitindo ao tra- emprego, sua desestabilização, como a relação
balhador planejar seu futuro. Nesse sentido, a com o trabalho, marcada por transformações
dimensão subjetiva é igualmente importante. organizacionais profundas. Para Paugam, essa
Não se trata de definir a precariedade apenas compreensão exige identificar tanto as deter-
objetivamente, pela proliferação de estatutos minações estruturais implicadas no mundo do
atípicos, menos protegidos, mas de identifi- trabalho como as experiências vividas dos tra-
car a crescente insegurança no emprego em balhadores. A questão da identidade profissio-
razão da fragilização das relações de trabalho nal deve ser especialmente considerada, pois,
– que se expressa no estatuto do emprego – e através dela, é possível captar o processo de
da instabilidade das empresas e das ativida- “desqualificação social” como uma experiên-
des econômicas em contextos marcados pelas cia vivida pelos trabalhadores em seus cotidia-
flutuações do mercado, pela intensificação da nos de vida e trabalho. O que caracteriza, en-
concorrência e pela crise econômica. Tais fa- fim, a precariedade não é apenas a desestabili-
tores são decisivos para compreender e situar zação dos vínculos de emprego e a inseguran-
em que medida os trabalhadores interiorizam ça material dela decorrente, mas a ruptura de
uma identidade negativa com o trabalho, com uma identidade e uma relação com o trabalho
a empresa, e se ressentem da incerteza em re- e com a empresa, com o reconhecimento pela
lação a seu futuro. função que se desempenha. Além de estarem
Assim, Paugam sugere a existência de limitados em suas perspectivas de elaborar um
diversos níveis de integração profissional nas projeto de vida profissional, os trabalhadores
sociedades contemporâneas, segundo a combi- da precariedade não sentem prazer nem com o
nação dos dois critérios propostos: a “integra- que fazem nem com as relações que estabele-
ção estável”, que articula satisfação no traba- cem, vivendo uma experiência de forte aliena-
lho e estabilidade no emprego; a “integração ção no trabalho.
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da população jamais estiveram integradas a um tir dos quais definem e avaliam o trabalho e
conjunto de relações de trabalho regulares e sua precariedade. Essa tensão pode se manifes-
estáveis e a um sistema de proteção social. Por tar em diversos níveis na sociedade, tanto no
essa razão, a questão da precariedade do traba- plano das instituições encarregadas de medir
lho adquire contornos incertos, uma vez que, e regular o trabalho e suas relações, como no
no Brasil, não chegou a se constituir a chamada plano da ação dos atores sociais, individuais e
sociedade salarial, caracterizada pela genera- coletivos, isto é, no âmbito direto das próprias
lização da relação salarial estável e protegida relações de trabalho. A precariedade do traba-
para o conjunto da população que trabalha. lho torna-se, pois, um fenômeno de contornos
Devido à ausência ou ao limitado alcan- incertos. Mostra-se heterogênea e descontínua
ce da “norma do emprego estável” como um tanto no nível das categorizações institucio-
modelo de referência que organiza o conjunto nais e objetivas,3 como no nível das categori-
do mundo do trabalho e das relações de traba- zações nativas e subjetivas (Demazière, 2003).
lho, é possível supor que outros sistemas de É peculiar, pois, ao contexto social e po-
referência contribuam para organizar as práti- lítico brasileiro a tensão entre modelos norma-
cas, as representações e as relações de trabalho tivos distintos e heterogêneos, tomando como
no Brasil. Se a referência ao emprego estável referência tanto a norma do emprego estável
não deixa de existir, outras formas de trabalho, – que prevaleceu na Europa e que organizou as
passando tanto pelo emprego instável e irre- relações de trabalho para algumas categorias
gular como pelas formas de trabalho não assa- profissionais no Brasil (servidores públicos,
lariadas – o trabalho autônomo, os pequenos por exemplo) – como a norma do emprego ins-
negócios, as profissões liberais – têm um papel tável, vigente na própria institucionalidade do
fundamental na configuração dos padrões nor- país, em seu sistema legal, ou ainda as normas
mativos de referência dos atores sociais. legais e (ou) práticas que orientam as relações
Dada essa pluralidade de formas e rela- de trabalho entre diversas categorias de traba-
ções de trabalho, essa elevada heterogeneidade lhadores não assalariados (autônomos, pro-
estrutural, configura-se, no Brasil, nos termos fissionais liberais, trabalhadores domésticos,
propostos por Castel, tanto um “assalariamen- trabalhadores artesanais, etc.). As políticas
to pleno”, marcado por direitos e proteções, públicas mais recentes de microcrédito, que
como um “indigno assalariamento”, marcado visam a estimular o empreendedorismo, tam-
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se e normalizam-se formas de trabalho tipi- gência das políticas neoliberais ao longo dos
camente individuais, supondo-se transformar anos noventa e a consequente desestruturação
os trabalhadores em “empreendedores”. Em do mercado de trabalho. No novo cenário que
grande medida, trata-se de reconhecer formas se anunciava, um elevado desemprego estru-
de trabalho tipicamente individuais, instituin- tural, uma ampliação da informalidade e uma
do-se medidas específicas de proteção que, em crescente insegurança passaram a dominar o
última análise, reforçam a individualização imaginário dos trabalhadores, sobretudo da-
dos riscos e institucionalizam a instabilidade queles que haviam logrado obter níveis mais
decorrente das flutuações do mercado. elevados de proteção e segurança no emprego
É no contexto desse quadro complexo (Pochmann, 2002).
que a precariedade do trabalho precisa ser Enfim, para compreender o complexo
analisada e interpretada sociologicamente. conjunto de condições que afetam a experiên-
Ela é, antes de tudo, uma categoria social que cia da precariedade, é preciso levar em con-
está atravessada pelas tensões inerentes a essa sideração não apenas o contexto político (os
multiplicidade de formas e de relações de tra- valores em construção) e a conjuntura eco-
balho, evidenciando-se uma luta simbólica nômica (as coerções materiais), mas o tecido
para definir os limites do trabalho considerado social a partir do qual as práticas e relações
legítimo. O sentido dessa precariedade pode de trabalho se configuram, sobretudo aquelas
variar consideravelmente quando se tomam, referentes aos arranjos e aos modos de vida da
como referências, as condições subjetivas dos classe trabalhadora. Assim, nos termos pro-
próprios atores sociais, na medida em que ela postos por Paugam, é preciso considerar que
se apresenta como uma categoria nativa, uma os “laços sociais” e a integração dos indivíduos
categoria ordinária do senso comum. se configuram através de uma complexa arti-
No Brasil, uma análise da precariedade culação entre diversas instituições e esferas da
como categoria subjetiva deve levar em consi- vida social, entre o público e o privado. Nes-
deração um conjunto amplo de fatores, além ses termos, as formas de integração e solida-
daqueles já apontados anteriormente. Se, por riedade baseadas nas relações de proximidade
um lado, aqui se configurou um modelo au- (familiares, comunitárias, religiosas, de vizi-
toritário e despótico de relações de trabalho nhança, etc.) e na assistência privada podem
(Burawoy, 1990; Dedecca, 2006), por outro, é ter um papel decisivo não só na constituição
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preciso considerar que, desde o final da dita- de “suportes objetivos” para os indivíduos,
dura militar, a emergência de novos movimen- mas nas suas experiências subjetivas de segu-
tos sociais e do novo sindicalismo brasileiro rança/insegurança, de enfrentamento dos ris-
produziu um processo de redemocratização e cos da existência.
um conjunto de transformações sociais, políti- Nesse cenário, o trabalho não se apre-
cas e culturais que, em parte, ficaram cristali- senta apenas como uma atividade individual.
zadas no arranjo proposto pela constituição de Ele pode se configurar em arranjos sociais, fa-
1988, comumente lembrada como constituição miliares, através dos quais modalidades coleti-
cidadã. Nela, reconhece-se o “trabalho” como vas de “suporte” são criadas. Numa sociedade
um direito de todos os cidadãos, bem como a onde as proteções coletivas (estatais) são mais
obrigação de o Estado garanti-lo. Um conjun- frágeis, o trabalho torna-se, ainda mais, sobre-
to de direitos civis, políticos e sociais foram tudo através de arranjos coletivos, um meio
criados e assegurados, constituindo-se numa decisivo de subsistência e de reprodução dos
importante referência para os trabalhadores e grupos sociais, independentemente do conteú-
para os movimentos sociais posteriores. Esse do em si desse trabalho. Através dos arranjos e
processo, no entanto, chocou-se com a emer- suportes baseados em formas de solidariedade
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modalidades de suporte para a sua integração. semprego ou sua ameaça podem provocar, em
Propõe-se, aqui, que a noção de suporte não certos casos, uma forte sensação subjetiva de
deva ser tomada apenas no sentido objetivo de precariedade, de insegurança, sobretudo quan-
formas de sustentação dos indivíduos face aos do a estabilidade do vínculo se torna uma refe-
riscos da existência social, como sugere Cas- rência central para o trabalhador. Nos casos em
tel. Os suportes devem ser considerados tam- que se configura uma relação mais instrumen-
bém em sua dimensão subjetiva, isto é, como tal com o trabalho, estima-se que os suportes
subjetivamente ressentidos pelos indivíduos baseados em laços de proximidade, na medida
em suas condições e relações de trabalho e em em que asseguram segurança econômica, pos-
suas condições sociais de vida. As articulações sam neutralizar subjetivamente a experiência
entre trabalho e suportes devem ser mais bem da precariedade do trabalho, embora ela possa
investigadas em suas dimensões objetivas e afetar amplamente toda a coletividade de per-
subjetivas. A precariedade do trabalho pode tencimento do indivíduo.
configurar-se, em grande medida, nessa articu- Se, por um lado, pode-se afirmar que os
lação pouco explorada teoricamente. diversos suportes têm um papel fundamental
Nesse sentido, parece pertinente pro- na conformação da relação subjetiva com o tra-
por, para o Brasil, um quadro “ideal-típico”, balho e na experiência da precariedade, pode-se
no qual uma forte relação instrumental ao supor igualmente que a atividade profissional,
trabalho como suporte econômico – face às em si mesma, possa se constituir num suporte
incertezas de um mercado bastante instável –, subjetivo importante para a construção positiva
articulado com outros suportes e relações de da identidade individual e coletiva. Se, através
solidariedade, combina-se com uma fraca re- de seu trabalho, o indivíduo se reconhece no
lação ao trabalho como ofício, como atividade mundo e estabelece uma relação significativa
significativa. Nesse caso, pode-se configurar, consigo mesmo e com os outros, na ausência de
sobretudo entre as camadas sociais mais vul- um trabalho significativo, de uma coletividade
neráveis, uma identidade ambígua com o tra- que o reconheça e sancione seu engajamento
balho, sua importância econômica (individual em uma atividade legítima, uma forte precarie-
e coletivamente) contrastando com sua desva- dade social pode ser ressentida.
lorização e baixo reconhecimento social. Enfim, uma ênfase excessiva no estatuto
Diversas dimensões, como o nível de ren- do emprego como suporte de proteção social
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Francisco Beckenkamp Vargas
The present article aims to discuss conceptually L’objectif de cet article est de discuter, en termes de
the notion of work instability, having in mind concepts, la notion de précarité du travail, étant
that it is widely used in sociology without a donné qu’elle est largement utilisée en sociologie
precise definition. It is proposed a relational and sans que soit formulé à son égard un signifié précis.
constructivist approach that seeks to articulate Une approche relationnelle et constructiviste
objective and subjective conditions of the production est proposée qui essaie d’articuler les conditions
of the phenomenon studied. In order to do this, this objectives et subjectives de production du
study starts with a discussion about the concept of pénomène en question. Nous commençons donc
work intending to define, more appropriately, what par le débat concernant le concept de travail afin
constitutes its instability. It is equally debated the de mieux définir en quoi consiste sa précarité.
necessity of situating this debate in the ambit of Nous insistons aussi sur le besoin de situer ce débat
broader theoretical frameworks of the sociological dans le contexte des cadres théoriques plus larges
interpretation. Two crucial dimensions are d’interprétation sociologique. Nous identifions
identified in the analysis of work instability, the deux dimensions cruciales dans cette analyse
relation of job or work with labor activity itself, de la précarité du travail, la relation d’emploi ou
discussing the exemplary theoretical perspectives de travail et l’activité de labeur proprement dite.
of two French authors who are especially interested Nous discutons à titre d’exemple les perspectives
in the subject: Robert Castel and Serge Paugam. théoriques de deux auteurs français particulièrement
Finally, some implications of this debate are intéressés par cette question : Robert Castel et Serge
discussed for the Brazilian reality, sustaining the Paugam. Finalement, nous abordons quelques
importance of giving a multidimensional treatment implications de ce débat dans la réalité brésilienne
to the phenomenon. et nous affirmons qu’il est important d’adopter une
approche multidimensionnelle du phénomène.
Keywords: Work. Job. Instability. Precarity. Inequality. Mots-clés: Travail. Emploi. Précarité. Précarisation.
Inégalité.
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