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Ninho de Fogo

A Mestiça
Livro 1
Para Eduardo.

Magia não é real, mas sua imaginação é.


Agradecimentos

Vovô, você é um dos maiores responsáveis por eu ter me


tornado uma devoradora de livros. Obrigada por todas as histórias
que me contou, o coelho e a onça serão para sempre os melhores.
Mirella Santana (www.mirellasantana.deviantart.com),
muito obrigada pela capa maravilhosa, ficou melhor do que eu
tinha imaginado.
Danilo, você ainda não sabe, mas serviu de inspiração para
um de meus personagens preferidos.
Isie, obrigada por se aventurar comigo nesse mundo
distante.
Mãe, você vai dizer que amou o livro, mesmo não sendo
verdade, pois mães são assim mesmo. Te agradeço por isso, e por
sempre estar ao meu lado.
E por fim, agradeço a Melane, David e Jack, por me
escolherem para contar sua história, e por me tirarem de noites
entediantes na frente do computador. Adorei fazer parte desse
mundo e vocês sempre farão parte do meu.
Prefácio

Você já se sentiu deslocado, como se não


pertencesse a lugar nenhum?
E não importa o quanto você tente, não consegue se
adaptar. É como montar um quebra-cabeça, sabendo que
muitas peças estão perdidas e você nunca conseguirá ver a
imagem final.
É assim que minha vida funciona, todas as peças
estão espalhadas, então fico o tempo todo juntando os
pedaços, pois sei que só farei parte de algum lugar e serei
eu mesma, quando completar o quebra-cabeça.
Capítulo

1
Despertar

O despertador grita freneticamente na cômoda ao


lado de minha cama.
Sei que tenho que levantar, mas o sono consegue
gritar mais alto que o despertador.
Minha avó, Mary, entra pela porta trazendo um
copo de leite quente e desliga os gritos que saem da
cômoda.
— Bom dia, anjo — ela diz deixando o copo e
saindo para a cozinha, onde certamente está passando
manteiga em torradas quentinhas, como todas as manhãs.
Me levanto relutantemente, me arrastando até o
banheiro, lavo o rosto, escovo os dentes e prendo meu
cabelo ruivo, que hoje parece mais indomável que o
normal, em um rabo de cavalo no topo de minha cabeça.
Não levo muito tempo me arrumando, também não
sou tão vaidosa como minha amiga, Caroline, afinal estou
apenas indo ao colégio.
Me troco, coloco os sapatos, jogo um beijo para o
retrato de mamãe e papai ao lado de minha cama e desço a
escada tomando o leite, enquanto ando em direção à
cozinha, onde encontro um prato com torradas
amanteigadas recém-feitas em cima da mesa.
Vovó está sentada com um livro de receitas nas
mãos, alguns fios de seus cabelos grisalhos estão soltos
sobre sua testa, enquanto lê atentamente.
Ela é o tipo de mulher que adora cozinhar, todos os
tipos de comidas. Ela sempre me espera com um prato
diferente na mesa, acho que por ter crescido sem meus
pais, ela pensa que eu preciso ser mimada em dobro.
Vovó Mary é o tipo de senhora amigável e gentil,
igual aquelas que vemos nos filmes. Todo mundo gosta
dela e ela sempre é atenciosa com todos.
Acho que sou uma pessoa de sorte por tê-la como
avó.
Depois de comer dou um beijo em sua bochecha
rosada e saio em direção ao meu carro não tão novo assim,
porem recém-comprado.
É um jipe Chrerokee 2005, a tintura verde musgo
está um pouco gasta e desbotada em alguns lugares, mas
não me importo. Preciso de um carro resistente e que ande
bem pela estrada de terra, então para mim o jipe está
ótimo.
David, meu vizinho há dois anos e melhor amigo
desde então já está encostado no capô do carro, me
esperando.
— Tem certeza que não quer ir de moto hoje? Esse
carro me dá arrepios — ele sorri.
— Sem chance, meu carro é muito mais seguro que
essa moto.
— Depois não venha dizer que eu não avisei!
David ou Davi, como eu gosto de chamá-lo
carinhosamente, é o tipo de cara que pode mudar sua
expressão em um segundo, em um momento parece bravo,
com aquela cara de mau que ele sempre tem, mas quando
sorri suas feições se transformam completamente e ele
parece um garoto de cinco anos de idade. Sem falar
naqueles olhos azuis turquesa, que me dão vontade de
olhar o tempo todo e mesmo com seu um metro e noventa
e dois centímetros de altura e músculos por toda parte, eu
nunca poderia ficar amedrontada por alguém com olhos
iguais aos dele.
Seus cabelos pretos estão grudados em seu pescoço
essa manhã, o que significa mais uma caminhada matinal
para se manter em forma, que ele adora fazer; Não sei
como ele consegue, eu mal consigo me levantar da cama
de manhã, imagine fazer uma caminhada.
Caroline sempre diz que se tivesse alguém como
David de vizinho, perderia horas na frente do espelho
antes de sair de casa, mas comigo as coisas não são assim,
eu não o vejo dessa forma e muito menos ele a mim, nós
somos bons amigos e me sinto muito bem sobre isso.
Eu o deixo na cidade todas as manhãs, no começo
pegávamos o ônibus, mas agora com meus dezesseis anos,
eu dirijo meu não tão novo carro.
Ele trabalha em uma oficina mecânica ao lado de
meu colégio, então vamos e voltamos para casa juntos.
Moramos em uma pequena cidade no estado da
Virginia, Estados Unidos, não sei por que moramos tão
longe da cidade, vovó diz que é porque adora o campo e a
natureza, eu também gosto, quer dizer, o lugar é realmente
lindo, as folhas das árvores são as mais verdes que já vi
em minha vida e a grama tem sempre aquele cheiro de
chuva que eu adoro, de manhã quando o sol nasce e
ilumina as árvores é como se algo mágico estivesse
acontecendo, como disse, esse lugar é adorável, mas isso
para mim é um pouco demais.
David é meu único vizinho e pegamos uma
estradinha de terra ao lado da floresta para só depois pegar
a pista asfaltada e ir para a cidade. Sim, é um longo
caminho, mas com Davi é sempre um caminho divertido.
Depois de deixá-lo na oficina e ouvir a despedida
que ele sempre diz:
— Te vejo depois.
Estaciono o carro e vou para minha aula de
química, onde encontro minha amiga Caroline sentada no
lugar de sempre.
— E aí? Como vai Davidelicia hoje?
Reviro os olhos.
— Bem!
— Você sabe, ele daria um ótimo namorado para
esbaldar por ai como prêmio.
— Caroline, eu te adoro, mas às vezes você diz
coisas tão absurdas que me pergunto por que gosto tanto
de você.
Nós rimos juntas. Caroline é o tipo de garota que
você apenas gosta, desde o primeiro momento, ela é amiga
de todo mundo e com aquele lindo e brilhante cabelo loiro
que vai ate as sua costas, olhos dourados e pele rosada,
não faltam pretendentes em sua fila.
No intervalo, gostamos de nos sentar no gramado
perto das árvores, onde é mais fresco. Aqui posso sentir o
perfume das flores silvestre que dona Lucy, a zeladora da
escola, faz questão de plantar por toda parte.
Me sento ao seu lado, encostada num velho
carvalho, como sempre, estou rindo sobre algo que
Caroline disse, é só isso que fazemos a maior parte do
tempo juntas.
Estamos conversando tranquilamente quando
Tifany, uma garota metida que tem como atividade
principal infernizar a minha vida, aparece.
— Olha lá, se não é a caipira – ela diz morrendo de
rir com suas amiguinhas seguidoras ao seu lado.
Não olho em sua direção e finjo não ter escutado
seu comentário maldoso.
— Ignore, Melane, não vale a pena – Caroline diz
encostando a mão em meu joelho.
— Eu sei – digo sem lhe olhar em seus olhos. Sei
que não vale à pena, mas por uma vez, apenas uma vez na
vida, gostaria que Tifany tivesse uma lição, não sei qual o
problema dessa garota.
O resto do dia passa normalmente, voltamos para
sala de aula de Filosofia, onde tudo que faço é apenas
escutar a voz chata de minha professora mais odiada,
Odete. Juro que um dia ainda morro de tédio em uma de
suas aulas e a única culpada será ela.
Despeço-me de Caroline na saída e passo na oficina
para pegar David.
— E aí? – ele diz enquanto entra no carro batendo a
porta violentamente.
— Ei, cuidado com o carro! – digo apontando o
dedo em sua direção.
— Essa lata velha? – diz sorrindo largamente, me
provocando.
— Não responderei essa pergunta.
Conversamos pelo caminho todo na volta para casa,
como todos os dias.
— O que fez na oficina hoje?
— O de sempre, consertei carros.
Olho para ele com uma sobrancelha levantada e ele
sorri de uma forma engraçada.
— Jura?
— Melane, sou um mecânico, é isso que os
mecânicos fazem.
— Ah, não sei por que ainda falo com você.
— Porque você precisa de mim. – ele continua
sorrindo.
Nem perco tempo lhe respondendo, apenas dou
risada, sem tirar os olhos da estrada. Discutir com David é
a maior perda de tempo, pois você nunca ganha, jamais,
nem mesmo quando está certa sobre o assunto.
Chego a casa depois do longo caminho pela estrada
de terra, converso com minha avó no almoço e a ajudo a
lavar a louça. Depois subo para o quarto para terminar de
ler o romance que comecei há dois dias. O resto do tarde
passa tranquilamente, termino o livro que realmente me
surpreende no final, ao invés da baboseira de sempre,
mocinha casando-se com mocinho e vivendo felizes para
sempre, esse tipo de final sempre me irrita de uma forma
que não entendo muito bem.
Falo com Caroline pelo telefone à noite, escuto um
pouco de como foi sua tarde com aquele tal garoto novo, o
qual ela nunca mais irá querer sair novamente.
Estudo um pouco quando a noite chega, as provas
ainda estão distantes, mas gosto de estar preparada, ainda
mais se tratando de minha professora Odete, senhorita
gosto de aplicar testes surpresas. Olho de relance para o
despertador marcando 00:36, o que significa que mais uma
vez fiquei perdida na leitura, me esquecendo do mundo ao
meu redor. Desligo a luz do abajur ao lado e me deito,
caindo como uma pedra sobre o travesseiro.
Eu vejo sangue, muito, escorrendo pela grama
verde enquanto sua cor vermelha fica ainda mais intensa
pelo contraste. Um homem está deitado no chão com um
ferimento profundo em seu peito, acaricio seu cabelo
muito bagunçado e seus fios loiros deslizam por meus
dedos suavemente, enquanto a brisa fresca os leva para
longe de mim.
A ferida por onde o sangue escorre parece profunda
e posso sentir o cheiro de queimado penetrando meu nariz,
coloco as mãos sobre seu peito ensanguentado e
chamuscado, a umidade quente percorre minha mão,
escorrendo por entre os dedos, estamos sozinhos, isolados
do mundo á nossa volta. É como se eu já o conhecesse,
como se ele fizesse parte de minha vida, de alguma forma,
como se eu me importasse com ele, como se tudo
dependesse dele, desse momento, mas o mais estranho de
tudo é que não estou nem um pouco apavorada, nunca
estive tão tranquila assim em toda minha vida.
Num momento estou vivendo essa cena, fazendo
parte dela, sentindo a calma que me rodeia e um segundo
depois estou de fora, sobrevoando a área, vendo toda a
cena do alto, o sangue saindo de seu corpo violentamente
enquanto a garota de cabelos ruivos apenas observa,
tocando levemente o ferimento.
É então que o pânico toma conta de mim.
Acordo de uma só vez, me sentando na cama
rapidamente, ofegante, o suor pingando de minha testa
enquanto coloco a mão sobre o coração numa tentativa de
acalmar as batidas desesperadas.
Foi apenas um pesadelo.
Me levanto da cama e desço as escadas à procura de
um copo de leite quente, isso sempre me ajuda a dormir e
espero que possa fazer algo por mim agora. Esse estranho
pesadelo me afetou mais do que gostaria, de uma forma
tão vívida que me assusta e dá arrepios apenas por
lembrar. Tento evaporar os pensamentos, enquanto desço
os degraus vagarosamente.
Pego o leite na geladeira, o despejo em um copo e
aqueço no micro-ondas.
Ando até o velho sofá laranja desbotado da sala e
me sento com o copo morno em minhas mãos, dobro as
pernas e tento beber lentamente, na esperança de que o
sono volte. Odeio ficar acordada a noite, pois sempre me
sinto uma morta-viva no dia seguinte.
Escuto a moto de David se aproximando e vou até a
janela. Ele estaciona a moto no exato momento em que
olho pelo vidro embaçado pela pouca neblina da noite.
O que ele faz lá fora a essa hora?
Coloco o copo na mesinha do centro feita de
madeira velha e me apresso pela porta antes que ele entre.
— David? – tento soar alto, mas ainda sim tentando
sussurrar, tudo ao mesmo tempo.
Ele não me escuta e continua andando em direção a
sua casa.
Apresso meus passos enquanto tento novamente,
agora mais alto.
— Davi?
Ele se vira espantado, me olhando com aqueles
grandes olhos azuis, agora parecendo assustados demais e
olha pros dois lados antes de se aproximar.
— O que faz aqui? – pergunta me olhando
diretamente nos olhos.
— Eu ia fazer a mesma pergunta. Estava apenas
tomando leite quando te vi chegando.
Ele continua me olhando sem dizer nada.
— O que foi? – pergunto dando uma risada
nervosa, tentando descobrir o motivo desse mistério todo,
nós nunca tivemos segredos antes.
David olha mais uma vez pros lados antes de
responder.
— Não foi nada, estava apenas dando uma volta –
diz enquanto coloca as mãos nos bolsos da calça.
Levanto minha sobrancelha o máximo que consigo
enquanto o encaro.
— Por que não quer me contar o que estava
fazendo?
Ele hesita uma vez antes de responder.
— Mas eu já disse, foi apenas uma volta, a noite
está quente, queria pegar um pouco de ar.
Aceno com a cabeça, mesmo não tendo acreditado
em uma única palavra do que disse, eu o conheço bem e
sei quando está mentindo, como sempre hesita antes de
responder, fica sério demais, ou por seus olhos sempre a
procura de algo que não está por perto, sempre olhando
em todas as direções, da mesma forma que acabará de
fazer.
— Tudo bem – digo me virando para voltar para
casa.
Ele me puxa pela mão antes que me afaste.
— Mel, porque está acordada?
— Está quente demais para dormir – é tudo que
digo antes de me virar novamente, não irei contar sobre
meu pesadelo, não depois de estar mentindo tão
descaradamente assim para mim.
Onde ele deve ter ido? E por que não quer me
contar?
Será que é uma garota? Nunca o vi com ninguém, a
não ser eu ou Caroline, mas isso é totalmente diferente. E
se for uma garota, por que não me contar? Mas seria bem
estranho estar com alguém tão tarde assim, ou talvez seja
por isso que não esteja me contando a verdade.
Sinto algo estranho quando esse pensamento passa
por minha cabeça, não tenho ciúmes por ele estar com
outra garota, de jeito nenhum, não é isso, ao menos é no
que quero acreditar, acho que o fato preocupante e que me
magoa é que ele esteja escondendo isso de mim.
Volto para cama na espera de poder dormir
novamente, mas é impossível. Se estava nervosa e agitada
pelo pesadelo, agora estou totalmente impaciente com a
mentira de David.
Como havia dito antes, me sinto como um zumbi
hoje de manhã, sei disso apenas enquanto escovo meus
dentes sonolenta.
Visto a primeira roupa que vejo e me arrasto,
literalmente, para a cozinha, segurando o copo de leite que
minha avó deixou no criado mudo mais cedo.
— O que foi? – minha avó pergunta assim que
entro na cozinha.
— Sono– é tudo o que lhe respondo.
Ela sorri de uma forma engraçada, como sempre,
enquanto termina de colocar meu prato na mesa.
— Noite difícil?
— Você nem faz ideia. Tive um pesadelo.
Ela congela-se no processo de virar o suco de
laranja da jarra para o copo de vidro rosa que tenho desde
pequena.
— Pesadelo? – diz com sua voz de avó de desenhos
animados de domingo.
— Ahan – digo balançando a cabeça enquanto
coloco um pedaço de torrada na boca.
— Tinha alguém morrendo, eu acho, estava
queimado e eu tentava ajudar, ao menos é isso que me
pareceu.
Seus olhinhos cinzentos ficam espantados e muito
abertos enquanto me olha seriamente.
— O quê? É só um pesadelo vó, não significa que
vai acontecer - digo levantando os ombros.
— Não, é claro que não – ela diz sorrindo enquanto
termina de por meu suco no copo, mas algo estranho ainda
permanece em seus olhos.
Como as torradas quentinhas com manteiga e saio
depois de lhe dar um beijo de despedida.
David já está ao lado de meu carro verde, ele sorri
assim que me vê passando pela porta, mas não retribuo o
sorriso, ainda estou magoada pela suposta saída para ver a
tal garota cuja qual não sei quem é... Ainda.
— De mau humor? - ele pergunta enquanto entro
no carro.
— Por que está perguntando isso?
— Nada, talvez algo na sua expressão sombria – diz
enquanto tenta imitar minha cara fechada.
Eu não quero, mas não consigo evitar e acabando
rindo da careta que se forma em seu rosto, ele ri junto
comigo.
— Viu, não estou de mau-humor – digo cessando o
riso e me mantendo séria novamente.
Ele apenas me olha pelo canto do olho, enquanto
coloca o sinto de segurança com a ameaça de um sorriso
se formando em um dos quantos de seus lábios.
Dirijo para escola normalmente, nenhum de nós
fala durante o caminho todo, estou cansada, morta de sono
e de certa forma ainda me sinto traída pela suposta
mentira, pode parecer besteira e bla, bla, bla, mas Davi é
meu melhor amigo, devíamos confiar um no outro.
O deixo na oficina, como sempre.
— Te vejo depois - ele acena antes de sair do carro.
Devolvo o adeus com um balançar de cabeça e
dirijo apenas mais alguns metros até o colégio.
Minha primeira aula é de Física, tudo o que uma
morta viva não precisa, mas não tenho escolha, me arrasto
até a sala e me sento ao lado de Caroline.
— O que foi? – diz levantando uma de suas
sobrancelhas perfeitamente depiladas, enquanto me olha
dos pés a cabeça.
— Sono – essa parece ser minha resposta para tudo
hoje.
Ela ri alto, tapando a boca com a mão.
— Bem vinda ao clube colega, passo por isso quase
todos os dias.
Reviro os olhos em sua direção, pois meus motivos
por não ter dormido são bem diferentes dos dela, mas não
consigo não sorrir também.
Os ponteiros do relógio parecem estar grudados uns
aos outros e as horas não passam, é sempre assim, quando
mais queremos que o tempo passe, mais ele se arrasta
lentamente sobre nós.
Finalmente o sinal do intervalo toca, vou para o
gramado com Caroline, me acomodando sob uma árvore,
enquanto vasculho minha mochila a procura de meu
lanche.
Estou comendo minha maça e rindo de uma piada
que Caroline está contando sobre Jason, seu último
namorado, quando Tifany surge do nada, certamente saída
diretamente das profundezas do inferno, vindo diretamente
e unicamente para arruinar meu dia.
— E aí, caipira? Como foi o dia duro na roça
hoje?— ela diz entre gargalhadas.
Eu a ignoro, como sempre venho fazendo.
— Caipira? Estou falando com você!
Tudo teria ficado bem se ela não tivesse balançado
sua juba cacheada castanha e chutado minha bolsa com o
salto de sete centímetros de sua sandália rosa obviamente
nova.
— O que vai fazer caipira?
Isso fez com que minha raiva surgisse em um nível
que eu não me lembro de já ter sentido antes.
Qual o problema dela? Eu nunca fiz nada para ela,
por que ela me odeia?
— Veio com a cara lavada de novo, roceira? Sabe,
um batom às vezes cai bem!— diz entre as risadas
exageradas com suas amigas igualmente insuportáveis.
Quando ela sai andando, morrendo de rir, minha
mente se delicia com a imagem de seu salto quebrando, e
ela caindo no gramado, passando a maior vergonha na
frente da escola toda.
Desejo isso com tanta vontade que quase me
engasgo com a maçã quando Tifany cai apenas alguns
metros a minha frente, levanto o maior tombo da historia
da humanidade, quebrando seu salto na grama.
Na volta para casa eu fico calada.
— O que foi? — Davi pergunta curioso.
— Não é nada.
— Anda, o que aconteceu?
— Nada, só aquela garota, Tifany, me
atormentando de novo!
— O que ela fez?
— O de sempre? Me mandou usar um batom.
— Ela tem inveja!
Dei uma risada.
— Inveja? De mim?
— Sim — ele diz como se fosse a coisa mais obvia
do mundo.
— E qual razão Tifaby teria inveja de uma caipira
como eu?
— Porque você não precisa de maquiagem ou
roupas caras para ficar linda e ser reparada, como ela
precisa!
Olho para ele chocada, não sabia que ele me acha
bonita, na certa ele disse isso porque somos amigos e ele
gosta de mim, mais mesmo assim, foi estranho.
— E também ela caiu hoje, seu salto quebrou!
— Bom!— ele diz sorrindo.
— Não, quer dizer, sim, foi bom, mas o estranho é
que eu queria que tivesse acontecido, eu desejei isso, Davi.
Ele fica enrijecido e volta a ficar sério.
— Como?
— Eu desejei que ela caísse e no mesmo instante
ela caiu, coincidência, eu sei, mas me assustei na hora, eu
senti algo, como se realmente tivesse sido eu, sabe? —
começo a rir comigo mesma.
— O que exatamente você sentiu?
Porque ele está sério e tão interessado nisso? Parece
alucinado com a história
— Melane, me diga!
— Davi, foi isso, coincidência, é só.
Chegando em casa paro o carro rápido e entro pela
sala, jogando minha mochila no chão, já ouvindo as botas
de David atrás de mim. Ainda penso na noite passada, mas
o que aconteceu na escola hoje me fez desligar o
pensamento, tudo que posso ver é a cena de Tufanny se
esborrachando no chão e de como eu desejei que aquilo
acontecesse. Antes que David me pergunte mais alguma
coisa, me apresso para a escada, começo a subir, mas sou
puxada pelo braço antes de chegar ao terceiro degrau.
— Ai, o que você está fazendo? — digo puxando
meu braço numa tentativa fracassada de me livrar de
David.
— Shiu!
— Shiu? Qual o seu problema? Me solta!
— Tem alguma coisa errada! — ele fala me
soltando enquanto vai para a cozinha.
— Mary? — ele pergunta com uma voz mais alta
que o comum, mas ainda longe de ser um grito.
— Mary?
— Vovó?
— Onde ela esta? — pergunto me preocupando, ela
sempre está em casa quando volto da escola.
Subo as escadas correndo e vou olhar o banheiro,
seu quarto, meu quarto, mas ela não está em lugar
nenhum.
— Temos que sair daqui — ele me pega novamente
pelo braço.
— O quê? Por quê? Onde está minha avó?
— Primeiro vamos sair daqui — ele já está me
arrastando para a sala.
— David? O que está acontecendo?
Estamos no quintal agora, David pega os capacetes
em cima da moto.
— Porque você não me responde? O que está
acontecendo aqui?
— Suba! — ele diz subindo ele mesmo na moto.
Cruzo os braços em meu peito e não saio do lugar.
— AGORA! — ele grita.
Eu me assusto, ele nunca havia gritado antes, e eu
estou sem saber o que acontece, onde minha avó está? E
porque temos que sair daqui correndo assim?
Algumas lágrimas começaram a correr por minhas
bochechas antes que eu consiga as segurar dentro de meus
olhos.
— Melane — ele diz calmamente, quase como um
suspiro.
— Eu não tenho tempo de explicar agora, por favor,
se confia em mim, suba na moto.
Eu obedeço, e no momento em que fecho minhas
mãos em sua cintura escuto um barulho ensurdecedor de
motos no final da estrada de terra.
— Droga! — é tudo que consegue dizer antes de
pisar no acelerador e sair em disparada comigo em sua
traseira.
Eu nem ao menos tenho tempo de decifrar o que
está acontecendo, o barulho das motos aumenta a cada
minuto e agora já posso ver os motoqueiros.
Nós vamos em direção a floresta, David parece
conhecer bem o caminho apertado e arriscado por entre as
árvores, pois passamos tão rápido que eu apenas sinto as
folhas raspando levemente em meus braços e pernas.
Não me atrevo a abrir a boca para tirar satisfações
do que está havendo, ou talvez seja apenas o medo que me
faz ficar paralisada.
Depois de um tempo na perseguição sem fim,
chegamos a uma clareira no meio da floresta, eu já estive
aqui outras vezes, quando era criança, talvez, eu conheço
esse lugar.
David derrapa, fazendo uma curva e a moto para.
O som dos motoqueiros vai se aproximando e então
posso vê-los novamente, três homens param e descem de
seus veículos e ficam na entrada da clareira nos
observando.
David se posiciona em minha frente e os encara de
volta.
— David, quanto tempo meu amigo — um dos
homens diz, o cara mais alto e aparentemente mais velho
também, ele tem alguns fios brancos nas laterais da cabeça
se misturando aos outros fios castanhos de cabelo,
enquanto os outros dois aparentam ter menos de trinta
anos, eu diria que o garoto loiro não deve ter mais de
dezenove.
— Davi? Quem são eles? — escuto minha própria
voz sussurrar, mas ele não responde.
— Nos de a garota e tudo será perdoado, sem
mágoas, sem ressentimentos ou punições — o cara velho
diz abrindo os braços em forma de rendição.
David ainda continua calado.
— Vamos David, isso não precisa ser assim, apenas
entregue a garota.
— Isso não vai acontecer – David apenas sussurra
em uma voz sombria e gélida.
Posse ver um pequeno sorriso se curvando em um
dos cantos dos lábios do homem velho.
— Então será do meu jeito.
— Suba nas minhas costas – David sussurra sem
tirar os olhos do homem.
Eu não entendo o que ele diz, e muito menos acho
que ele está falando comigo, estou apenas esperando os
caras sacarem uma arma atirarem em David e me
estuprarem, antes de me matarem também. É o obvio não
é?
— Vamos, Mel, suba nas minhas costas – dessa vez
ele grita, e eu obedeço novamente, ele está tremendo e sua
pele parece cinzenta agora.
Agarro-me ao seu pescoço como posso e fico sem
saber o que fazer, essa cena toda me parece meio estúpida
de estar acontecendo.
David começa a tremer, cada vez mais e em um
segundo ele está crescendo, explodindo, roupas
despedaçadas voando em todas as direções, é tudo muito
rápido e então eu estou nas costas de um dragão.
Um dragão de verdade, enorme, cinza prateado,
com escamas azuis que refletem a luz do sol em meu
rosto, eu não tenho tempo de pegar os detalhes ou de
assimilar as coisas e já estamos no ar, voando entre as
nuvens, mergulhando pelo céu numa velocidade que pode
parecer impossível.
Eu me seguro em seus chifres? Não sei o que é isso,
mas eu os seguro da melhor forma que posso.
Nós estamos fugindo novamente, mas agora três
dragões nos perseguem ao invés de simples motoqueiros.
Uma rajada de fogo passa bem perto de nós e
David, ou melhor, o dragão David mergulha no céu
despedaçando uma nuvem no caminho.
Mais fogo nos persegue, David desvia da melhor
forma que consegue, às vezes vira o rosto e lança uma
serpente de fogo nos adversários, mas eles desviam
facilmente.
Dessa vez o fogo passa há poucos centímetros de
meu rosto, posso sentir a brasa quase queimando minha
pele, e o ar quente me rodeando, o susto é tão grande que
sem nem ao menos perceber ou ter tempo de fazer algo
para evitar, solto as mãos de seus chifres e escorrego por
seu corpo escamoso, gritando com todas as forças que
existem em mim.
Tento segurar em sua pele dura, em qualquer coisa
que possa ser segurada, mas nada adianta, continuo caindo
o me arranhando no processo desesperado de prender-me
novamente ao seu corpo. Consigo agarrar uma de suas
patas, a pele dura e escamosa machuca meus dedos,
mesmo assim continuo pendurada, tentando voltar para
cima. O ar quase corta meu rosto, meus cabelos esvoaçam
loucamente por todos as direções, daqui, de onde estou
posso ver claramente os dragões, e eles também podem me
ver facilmente, pois no exato momento em que meus olhos
se cruzam com um deles, o fogo corre de sua garganta,
vindo diretamente para mim. Não há o que fazer, estou
sem saída, mal conseguindo continuar segurando a pata de
David e o fogo correndo, vindo para mim. Fecho os olhos
esperando pelo pior, então no mesmo instante, poucos
segundos antes das chamas me alcançarem, David balança
a bata para frente, fazendo com que eu voe pelo céu em
direção a sua boca, agora, presa entre seus dentes sou
lançada novamente para suas costas com um balançar de
cabeça, estou outra vez me esforçando para me manter
segura no lugar.
O mais estranho nisso tudo, não é meu melhor
amigo ter se transformado em um dragão ou eu estar em
suas costas voando ou então estar sendo perseguida por
três dragões, o mais estranho ou peculiar é que eu não
estou nem um pouco assustada.
Pelo contrario eu me sinto viva, de uma forma que
nunca havia sentido antes, eu sinto minha energia, desde
meu dedinho do pé até o ultimo fio de cabelo de minha
cabeça. O medo que eu senti na clareia, no solo, com
apenas pessoas sendo o inimigo, se evaporou no minuto
em que eu estive no ar.
Eu me sinto forte, como se nada pudesse me ferir, é
então que começa a esquentar, minhas mãos, meus olhos,
minhas bochechas, quente, eu me sinto pegando fogo.
Então como se soubesse exatamente o que fazer, eu me
viro nas costas de Davi, me sentando de frente para os
dragões e então em uma explosão, rajadas de luz intensa e
azul saem de meus olhos, lábios e mãos, uma luz tão
poderosa, fogo em forma de luz, atingindo o dragão maior,
o que minutos atrás era o homem velho.
Ele começa a gritar rugidos de dor se contorcendo,
caindo do céu em chamas azuis que cintilam por todo seu
corpo, então ele volta a sua forma humana antes de atingir
o solo.
Posso apenas ver os outros dois dragões voando
para outra direção, a oposta de mim, recuando e fugindo.
Então tudo fica escuro.
Capítulo
2
Queimar

A luz do sol bate em meu rosto, pego o travesseiro


colocando em cima para bloquear os raios. É quando as
imagens do dia anterior surgem em minha mente, me
atingindo tão forte que tenho uma dor de cabeça
instantânea.
Que sonho mais realista, penso virando na cama, foi
o sonho mais vívido e surreal que eu já tive.
Escuto a porta do quarto se abrindo e sei que é
minha avó com o copo de leite quente. Tiro o travesseiro
da cabeça me sentando na cama e dou de cara com David.
Minha primeira reação é cobrir o corpo com o
lençol.
— Você está bem? — ele pergunta, algo na sua
expressão preocupada me assusta, o que ele faz em meu
quarto?
Então eu percebo, não estou em meu quarto, as
paredes que deveriam ser azuis e amarelas são de madeira
comum, o lençol que deveria ser florido é amarelado e
desbotado e não há cortinhas para evitar que o sol me
atinja pela manhã.
Esse não é meu quarto, o que significa que tudo não
foi um sonho vívido, eu realmente passei por tudo aquilo.
— Foi tudo real? — me obrigo a perguntar, pois ele
me olha de uma forma tão preocupada e tão piedosa que
me lembra feições de pessoas que vão visitar parentes que
enlouqueceram.
Ele apenas acena com a cabeça.
— Você está bem? — ele se senta ao meu lado na
cama, seus olhos azuis me examinando com cautela.
— Defina bem?
— Alguma dor? Sensação de dormência? Alguma
coisa diferente? — ele ainda está me olhando daquela
forma.
— Só minha cabeça que dói — digo levando a mão
automaticamente para testa.
Ele acena novamente, tirando minha mão e
substituindo pela dele.
— Febre você não tem mais, essa dor passará logo.
— Eu tive febre?
— Sim, por quase dois dias.
— Dois dias? Que dia é hoje?
— segunda-feira — ele diz calmamente.
Eu aceno, sendo que ter tido febre por mais de dois
dias é a coisa mais normal que me aconteceu desde a
última vez que estive acordada.
Eu fui perseguida por dragões, vi meu melhor
amigo se transformar em um, de alguma forma fiz chamas
azuis saírem de mim e matei um homem dragão. Nossa,
dizendo assim parece ainda mais inacreditável do que já é.
— O que aconteceu? — eu sussurro.
— Eu vou explicar tudo, ma primeiro você tem
que...
— Comer — uma mulher na faixa dos quarenta
anos entra pela porta carregando uma bandeja, ela possui a
pele negra e olhos que parecem jabuticabas, seus longos
cabelos estão jogados nas costas em uma trança grossa e
seu sorriso ao colocar a bandeja em meu colo é
aconchegante, ela me lembra de casa. — Primeiro você
tem que comer, querida.
Nem tenho tempo de dizer alguma coisa, a mulher
já está colocando um pedaço de torrada com geleia na
minha boca.
— Essa é Verônica, ela nos deixou ficar em sua
casa e ajudou a cuidar de você.
Ela ainda sorri para mim.
Tento sorrir em sua direção, enquanto corro os
olhos pelo cômodo. Uma janela não muito grande, sem
cortinas, fazendo com que o sol bata em mim conforme
me movimento na cama, o cheiro do lugar não é ruim,
apenas diferente de casa e de tudo que conheço, se
misturando com o aroma da comida.
Poucos móveis, vejo um armário velho perto da
porta e um pequeno baú feito de madeira ao lado da cama.
Termino de comer as torradas, o suco de laranja e
todos os biscoitos, pois na primeira mordida, percebo que
estou realmente faminta.
Verônica tira a bandeja de meu colo e sai pela porta
sem dizer uma palavra, apenas sorrindo.
David respira forte e senta na cama ao meu lado.
— Do que você se lembra?
— Acho que de tudo, até o homem dragão cair em
chamas, depois disso tudo ficou escuro e eu acordei aqui.
— Certo — ele balança a cabeça.
— Eu posso mudar de forma e me transformar em
um dragão, sempre que eu quero, mas a mudança é mais
rápida em momentos de necessidade ou adrenalina, como
foi na clareira — seus olhos turquesa estão bem abertos,
mas parecem tranquilos. — Seu pai era assim também,
então você tem nosso sangue correndo em suas veias —
ele respira mais uma vez. — Você também tem uma parte
bruxa em seu sangue, que você herdou de sua mãe, é por
isso que você pode lançar as chamas, você estava em
perigo e por instinto despertou seu poder, na verdade acho
que ele já estava começando a surgir. Quando me disse
que desejou que o salto de Tifany quebrasse e no mesmo
instante ele quebrou, não foi coincidência.
Ele faz uma pausa, me estudando, como que para
ter certeza que eu estou acompanhando, acenando com a
cabeça ele continua.
— Nós escondemos você durante toda sua vida,
dragões não podem se envolver com bruxas e seu pai
quebrou essa lei quando se apaixonou por sua mãe.
Ele foi morto por isso e ela foi caçada depois, ela se
escondeu por um tempo, mas no dia que você nasceu ela
morreu. Desde então tentamos esconder você, protegê-la.
Se eles te pegarem, vão te matar, você é a única mestiça
viva e é uma ameaça. Dragões não podem se juntar com
bruxas, pois da união nasce algo muito poderoso que
poderia destruir a ambos os lados. Mas nós sabíamos que
você não seria assim e é por isso que eu prometi proteger
você, pelo tempo que fosse preciso.
— Nós quem? E como você sabe de tudo isso e
conhece meus pais? Eu te conheço há apenas dois anos,
David.
— Não. Eu tenho cuidado de você a sua vida toda,
você apenas não sabia que eu estava lá.
— Caleb, quarta série, porque você acha que ele
parou de te atormentar e roubar seu lanche?
— Foi você?
Ele acena com a cabeça sorrindo.
— E porque só nos conhecemos quando eu fiz
quatorze anos?
— Porque você iria perceber que eu não mudaria
minha aparência. Foi por isso que eu te entreguei para sua
avó e fiquei vigiando de longe.
— Você me entregou para minha avó? Me
conheceu bebê?
— Mel — ele diz docemente. — Eu fiz seu parto.
Arregalo os olhos, quase sem poder acreditar em
suas palavras. Tento fechar os olhos e abri-los novamente
umas duas vezes, na esperança de que tudo volte a ser
como antes, de que realmente tudo não tenha passado de
um sonho, o mais estranho e real que já tive. Mas é claro,
não funciona.
Fico pensando, David fez meu parto, me conhece
desde o dia em que nasci, isso é doido demais. Como eu
nunca o vi, até fazer 14 anos ao menos?
Um borrão começa a se formar em minha mente
nesse exato momento, como uma lembrança, guardada e
esquecida há muito tempo atrás...
Tenho sete anos de idade, estou no parque infantil
ao lado da escola. A maioria das crianças está na caixa de
areia com a professora, montando castelos, como os que
vimos numa história que ela contou mais cedo, alguns
estão nos balanços, mas não eu. Eu gosto do escorregador,
não exatamente dele, o que eu gosto mesmo é da altura e
da sensação de estar beeem lá no alto, quase tocando as
nuvens.
Subo as escadas até o topo e fico em pé ao lado da
cerca pintada de vermelho e verde, seguro a grade com as
duas mãos e deito a cabeça bem para trás, sentindo o vento
fresco daqui. Abro os olhos e vejo as nuvens, mas ao
contrario das outras crianças, não fico imaginando com
que forma elas se parecem, fico pensando como é estar por
entre elas, como seria voar.
Começo a gargalhar sozinha, com a imaginação
muito longe, no céu, imaginando que eu posso voar.
— Melane! Querida, cuidado, você pode cair.
Escuto minha professora chamar, dizendo meu
nome alto.
Solto as mãos da cerca e olho para baixo, me
sentando com os pés para fora, os balançando enquanto a
olho.
— Tudo bem professora, eu não tenho medo de
altura.
— Mas eu sim, desça daí, Melane.
Faço que não com a cabeça e volto à posição antiga,
segurando na cerca enquanto olho para o céu.
— Melane, terei que subir ai em cima?
— Eu não vou cair – digo sem tirar os olhos do céu.
— Nós já vamos voltar para sala de aula. Vamos,
desça daí agora!
Eu a ignoro, sei que ainda faltam alguns minutinhos
para voltarmos.
Posso escutar enquanto ela bufa lá em baixo e
irritada começa a subir os degraus do escorregador.
Fico parada, esperando até o último minuto, apenas
esperando ela chegar bem perto. Assim que ela se
aproxima, me esquivo e corro para o escorrega, deslizando
até o chão de terra fofa. Sorrio largamente, fazendo cara
de ordinária, enquanto a olho lá em cima.
— Porque você é assim, Melane? – ela pergunta
com as mãos na cintura.
Apenas levanto meus ombros como resposta.
Não tenho culpa se não gosto de fazer as mesmas
coisas que as outras crianças. Nunca posso brincar da
forma que quero, quando estou no balanço, ela me faz
descer, pois estou balançando alto demais, quando estou
no escorrega, estou me arriscando perto da cerca, fico sem
saída, não me deixam fazer nada do que quero.
O parque está quase vazio hoje, mas há um homem
ao lado do poste de luz amarela, com os braços cruzados e
a perna dobrada, recostando suas costas. Seus olhos estão
em minha professora enquanto sorri de uma forma
engraçada.
Ele se assusta quando percebe que estou olhando
em sua direção, fazendo com que eu me assuste também, e
volte correndo para fila onde as crianças esperam pela
professora.
Ela desce as escadas do escorrega de cara feia, me
olhando pelo canto do olho quando passa por mim, mas
não diz nada.
— Ok crianças, todos de mãos dadas e não saiam
de seus lugares.
Andando em fila, segurando as mãos de meus
colegas, consigo dar uma última olhada no homem, que
continua encostado no poste.
Não me lembro de já ter visto olhos tão azuis assim,
nem antes ou depois desse dia.
— Eu vi você uma vez, tenho certeza disso, contei
para minha avó quando cheguei da escola, que um homem
de olhos azuis estava rindo de mim no parque. Ela ficou
tão nervosa na hora, agora sei por quê.
— Eu me lembro desse dia, me desesperei quando
percebi que você estava me olhando. Sua avó me deu uma
bronca mais tarde.
Tudo está tão confuso para mim, a vida que eu
conheço se evapora numa simples tarde de sexta-feira e
agora tudo está um caos, minha mente está um caos.
— Sua avó concordou com que eu ficasse por perto,
achamos que seria mais seguro apenas eu, do que mais de
minha espécie, assim não chamaria tanta atenção.
Só então me dou conta, o pensamento surge como
uma pedra caindo em minha cabeça, minha avó...
Onde ela está? Ela não estava em casa na sexta e
hoje já é segunda.
— Minha avó? David, onde ela está?
Ele não precisa dizer mais nem uma palavra, a
expressão em seu rosto diz tudo, e eu sei que nunca mais a
verei.
Meu coração dispara e as lágrimas rolam em meu
rosto, uma sensação de aperto e dor que não diminuí
apenas se intensifica.
— Eu sinto muito Mel, ela não pode fazer nada, ela
era apenas humana, sua mãe herdou sangue de bruxo de
seu avô, não tinha nada que ela pudesse fazer.
A dor cresce mais rápido do que as lágrimas rolam,
a voz de David se transforma em apenas um ruído abafado
e distante. Eu começo a sentir de novo, aquele calor, em
minhas mãos, pernas, olhos, em cada pedacinho de meu
corpo.
David me segura pelos ombros, os olhos
arregalados, os lábios se movem, mas não posso escutar
nada, eu apenas sinto a dor.
Ele toca meu rosto, o segurando com as duas mãos.
— Melane, fique calma, olhe para mim.
Eu olho para ele, o sol bate diretamente em seu
rosto agora e o turquesa de seus olhos se transforma em
algo mágico, a luz refletindo nos grandes olhos azuis me
traz uma paz que não sei como explicar. Aos poucos a dor
e a queimação vão embora, me deixando apenas com as
lágrimas no rosto.
E então novamente vem a escuridão, me tragando
para dentro dela.
Capítulo

3
Enfrentar

Escuto a voz de Verônica como se estivesse


submersa em água.
— Melane querida, você está acordada? — ela diz
docemente, enquanto me esforço para entende o
significado de suas palavras. — Melane, está tudo bem
agora, você está com fome?
Abro os olhos, vejo o sorriso aconchegante e os
olhos de jabuticabas de Verônica, me olhando
carinhosamente.
— Você consegue se sentar?
— Eu não sei — escuto minha própria voz agora
dizendo.
Com sua ajuda me sento, enquanto ela coloca mais
uma almofada em minhas costas. Os pensamentos voam
por minha mente, nenhum da forma como eu gostaria,
tudo que posso sentir é dor.
— Minha avó, ela...
— Shiii, eu sei meu bem, eu sei. Foi uma perda
difícil para todos nós, mas vamos superar tudo isso, você
verá. Ela era uma grande mulher! — Verônica diz com o
olhar no horizonte.
— Você a conhecia? — pergunto enxugando uma
lágrima que escorre.
— Sim — ela diz com um sorriso.
— Éramos grandes amigas. Sua mãe e eu
estudávamos juntas quando pequenas e sua avó foi como
uma segunda mãe para mim.
— Que dia é hoje? Quer dizer, por quanto tempo
mais eu dormi? — minha avó se foi, assim como meus
pais e eu estou sozinha agora, não quero falar mais sobre
isso, estou com muito medo que a dor e o calor possam
voltar e que eu durma por mais dois dias.
— Ainda é segunda, você dormiu apenas por
algumas horas. Você é nova nesse mundo e usar seu poder
assim requer muita energia, é por isso que você dorme.
Parece tentador, mas eu não quero dormir mais,
uma hora ou outra eu terei que enfrentar a realidade, então
quanto mais cedo, melhor.
Minha avó Mary sempre dizia que a cura para as
dores do coração é o tempo, então eu quero que ele
comece a passar logo.
— Onde está David?
— Lá em baixo, vigiando.
— Eu posso descer?
— Se você se sente bem para ficar de pé, sim.
Me levanto apoiando a mão no colchão, estou
usando uma calça larga preta e uma camiseta verde
comprida.
— Desculpe, mas eu não tinha nada do seu
tamanho.
— Não tem problema — nunca me importei com
moda e não será agora que isso irá me incomodar, na
verdade, essa seria a última coisa que iria pensar.
— Não se sente tonta?
Eu me sinto um pouco, mas minto. Não quero ficar
aqui sozinha, pensando em coisas das quais não posso
fazer nada para mudar.
— Não, eu estou bem.
Ela diz que sim com a cabeça e me leva até a porta.
Desço as escadas de madeira velha lentamente, me
esforçando no corrimão e encontro um David muito
abatido olhando pela pequena janela da sala.
O lugar tem o mesmo cheiro do quarto e da mesma
forma que antes, algum cheiro de comida se mistura com o
de madeira. A sala é pequena, um sofá azul desbotado no
centro, uma mesinha de cor escura com um vaso de flores
em cima dela, e perto da escada, uma estante contento
mais livros do que pode suportar.
Ele se vira quando eu desço o último degrau e sem
nem uma palavra se dirige até mim e me abraça, quente,
rígido e reconfortante. De alguma forma me sinto um
pouco melhor depois disso.
Nos olhamos por uns longos segundos e então eu
sei que tudo ficará bem.
— Eu falhei com você!— ele diz cabisbaixo. — Eu
devia protegê-la, cuidar de você e de sua avó, e eu falhei.
Ele se sente culpado, mas eu não o culpo. Alguém
com certeza deve ter a culpa disso tudo estar acontecendo,
mas não é David. Pode ser qualquer um, menos Davi.
Ele cuidou de nós por todo esse tempo, ele tem
cuidado de mim, eu nunca irei pensar que ele é o causador
de toda essa dor que sinto agora. Ele é o responsável por
eu não estar desmoronando, ele é o único que me faz
continuar a ser forte, eu só me sinto assim por ele estar por
perto.
— Eu sei que parece que tudo está perdido e que
você não tem mais ninguém, mas eu estou aqui e eu
sempre vou estar aqui para você. Sabe disso não é?
Aceno com a cabeça tentando sorrir levemente.
— Não é sua culpa — digo ainda com meus olhos
presos aos seus.
— Talvez tivesse sido melhor ter te contado sobre a
verdade antes, então você não estaria tão perdida e
despreparada agora. Poderia ter sido muito pior, você
poderia não ter despertado o poder, poderia ter acontecido
tantas outras coisas ruins — ele diz mais para si mesmo do
que para mim.
— Sim, talvez, mas ai ela nunca teria tido a vida
normal que os pais dela sonhavam que ela tivesse. Ao
menos assim ela teve seus dezesseis anos normais e só
agora entrou nesse caos — Verônica diz atrás de mim,
enquanto desce a escada.
— Agora já está feito, não se pode mudar isso. O
importante por agora é você não desmaiar toda vez que
seu poder se manifestar. Descanse um pouco e mais tarde
irei te ajudar com isso, sua mágica pode ser diferente da
minha, mais ainda é magia não é?
— Você também é uma bruxa?
— Em carne e osso, meu bem!
Me deito na cama depois de tomar banho e comer o
ensopado delicioso que Verônica fez.
Olhando ao meu redor percebo o quanto as coisas
mudaram, eu era apenas uma menina caipira que morava
na roça com a avó, de repente sou uma mestiça de dragão
e bruxa, vivendo num chalé escondido na floresta. E não
tenho mais minha avó me esperando em casa.
É diferente perder alguém que nunca conheceu,
como minha mãe e meu pai, eu sei que eu os amo e que
eles seriam maravilhosos comigo e de certa forma eu sinto
falta deles, mas eu nunca tive um abraço de minha mãe ou
um beijo de boa noite de meu pai, agora de minha avó...
Ela sempre esteve lá para mim. Quando eu acordava
assustada a noite ou quando eu me machucava no quintal,
ela sempre esteve lá. Eu sentirei falta dela para sempre.
Depois de derramar o que me parece um rio de
lágrimas no travesseiro, eu adormeço.
Na manhã seguinte acordo com o sol batendo em
meu rosto novamente, mas dessa vez sei exatamente onde
estou.
Faço uma promessa a mim mesma antes de sair da
cama, não mais irei chorar. Minha avó não iria querer isso,
eu tenho que ser forte, eu sei que posso suportar isso e
tudo o que vier pela frente e eu o farei... Por ela.
Desço as escadas e sigo o delicioso aroma de café
que sai da cozinha.
Verônica está sentada com uma xícara na mão, ao
seu lado na mesa está um garoto com o mesmo sorriso
acolhedor, ele parece ser alto, possui a mesma pele
morena que Verônica, os olhos castanhos e o cabelo
cortado bem curto, rente à cabeça.
Ele se vira no momento em que coloco os pés para
dentro da cozinha.
— Oi, eu sou Lucas — ele diz se levantando e
estendendo a mão direita em minha direção.
Eu a perto e tento sorrir, enquanto ele sorri de volta.
— Ele é meu filho, veio para ajudar. Mas chega de
falação agora, coma logo que temos que ajudar você com
seus desmaios, mocinha.
Me sento na mesa ao lado de Verônica e Lucas, a
cadeira range com meu peso.
Como as panquecas com geleia que Verônica
preparou com um copo de leite, ninguém diz nada, apenas
me olham. Embora acredite que Lucas só está calado por
ordens de sua mãe, pois seus olhos e sua expressão dizem
que ele tem muito para falar.
Depois vamos para sala, apenas nós duas.
— David? Onde está? — pergunto.
— Patrulhando a área, não se preocupe, ele foi
assim que Lucas chegou. Você está segura.
Aceno com a cabeça, mas no momento não estou
preocupada com a minha segurança, mas sim com a de
David, ele é tudo que tenho agora.
— Venha querida, sente-se de frente para mim.
Sentamos uma de frente para outra, as pernas
dobradas, ela estende suas mãos e segura gentilmente as
minhas.
— Em magia não há muita coisa para ensinar, seus
instintos falarão mais alto, sempre, você apenas tem que
confiar em si mesma — ela diz olhando em meus olhos.
— Agora, você tem que se controlar, aprender a reduzir o
poder para não desmaiar como tem feito nas últimas vezes.
É bem simples, requer apenas concentração. Pense em seu
poder crescendo dentro de você, o imagine surgindo e
tomando conta de seu corpo.
Eu faço como ela manda, e tento imaginar o calor
subindo por meus membros, imagino a dor, mas nada
acontece.
— Não funciona agora — digo frustrada.
Verônica respira uma vez.
— Pense no motivo que te fez liberar a energia,
tente lembrar.
Lembro de ontem quando descobri que vovó havia
morrido. A dor, a perda, o medo, aquela sensação de
abandono, de estar sozinha, é o suficiente para trazer tudo
à tona novamente, a queimação começa. O fogo crescendo
dentro de mim.
— Está funcionando, eu poso sentir.
— Respire, Melane, você está no controle, você
controla o poder e não o contrário.
A dor aumenta, eu sinto a energia por todos os
lados, ficando mais forte, meus olhos começam a brilhar
levemente agora, e eu desejo não ter começado com isso.
— Melane, sinta, você tem o controle, repita
comigo, eu tenho o controle — Verônica diz calmamente.
— Eu tenho o controle — digo entre os dentes.
— De novo.
— Eu tenho o controle.
— Outra vez.
— Eu tenho o controle — praticamente grito agora,
e então sinto a energia voltando para dentro de mim,
diminuindo. Eu estou bem outra vez — abro os olhos
lentamente. — Deu certo, funcionou — digo quase não
acreditando.
Verônica apenas sorri, como se nunca tivesse tido
dúvidas sobre isso.
Passo algumas horas da tarde treinando isso sozinha
no quarto. Fico sentada no chão com as pernas cruzadas,
imaginando a dor, o calor, e o fazendo voltar, depois de
algumas vezes me sinto mais confiante.
Já é quase final da tarde e David ainda não voltou,
começo a ficar preocupada. Vou olhar pela janela do
quarto, ela está um pouco embaçada, mas ainda posso ver
o lado de fora. A floresta parece medonha daqui de cima,
algo que nunca imaginei sentir olhando essa paisagem,
mas eu sinto.
Fico observando as folhas balançando, o céu
escurecendo aos poucos, parece que tudo que sentia ao
olhar essa imagem, desapareceu.
Minha avó amava essa floresta, talvez meu amor
por ela tenha morrido junto com ela. Obrigo o pensamento
a ir embora, assim que ele começa a se formar em minha
cabeça. Eu prometi, serei forte.
Depois de alguns segundos vejo uma luz prateada
no céu, consigo ver as folhas se movimentando, e depois
de uns poucos instantes, David sai em sua forma humana
por entre as folhas das árvores.
Desço as escadas correndo, ele está entrando pela
porta quando chego.
— Você ficou fora o dia todo, alguma coisa
aconteceu?
— Temos que ir embora, dragões vasculhando a
área, por toda a parte, logo eles estarão aqui.
— Eu vou com vocês — Lucas diz saindo da
cozinha.
— Será mais seguro se eu for — ele diz antes que
alguém o impeça.
David acena com a cabeça.
Verônica nos entrega mochilas, onde enchemos
com comida enlatada, biscoitos, garrafas de água, algumas
capas e cobertores.
Ela não quer que Lucas vá conosco, sei pela sua
expressão, mas ela não diz nada. Sinto me agradecida por
tudo que ela está fazendo, não sei se é certo levar seu filho
conosco, mas não sei o que devo fazer.
— Para onde vamos afinal? — pergunto.
— Para onde eles não esperam, vamos voltar para o
Ninho.
Capítulo

4
Memórias

Saímos para a floresta no meio da noite, sem


lanternas, David explica que tem visão noturna e nos
guiará, estou praticamente cega sendo guiada por sua mão
fechada sobre a minha.
Andamos um bom tempo na escuridão da floresta, o
vento soprando forte, nem mesmo as folhas e árvores
conseguem mantê-lo afastado, não estamos correndo, mas
vamos em passos largos, tenho que apressar-me para
poder acompanhar o ritmo. Andamos tanto, até meus pés
não aguentarem mais um passo.
— Vamos parar para dormir — Davi diz.
— Não precisa, eu aguento — digo, embora nem
mesmo eu tenha creditado em minhas palavras.
— É melhor pararmos, comermos e dormirmos um
pouco. Amanhã sairemos cedo. Eu fico com o primeiro
turno.
Lucas não faz nenhum sinal de relutância, ele
parece exausto também.
Não fazemos fogueira para não chamar atenção,
então nos encolhemos dentro de nossos casacos e
cobertores e ficamos próximos. Lucas e eu deitamos atrás
de uma pedra grande e David se mantém sentado
encostando as costas na pedra.
Mesmo cansada não posso dormir, muita coisa
martelando em minha cabeça.
Sento-me ao lado de Davi.
— Você precisa dormir — ele diz sem me olhar.
— Eu não consigo. Você não está com sono? Saiu
cedo para patrulhar e não parou até agora.
— Estou bem. Já passei por coisas piores — agora
ele me olha, e seus olhos de alguma forma conseguem
ainda ser azul brilhante, mesmo nessa escuridão.
— Me conte mais sobre minha mãe? Sobre o dia
em que nasci. Eu só preciso saber um pouco mais de
detalhes.
Ele me olha parecendo cansado, e responde
suspirando.
— Detalhes?
Aceno com a cabeça, confirmando.
— Do que se lembra daquele dia?
— Lembro-me exatamente de tudo, como se tivesse
sido ontem.
— Então me conte... Por favor.
Ele vira o rosto para o lado novamente, mais um
suspiro antes de continuar.
— Acho que você tem o direito de saber não é? É
de sua vida que estamos falando — continuo o olhando
fixamente. — Estava com sua mãe, escondidos na casa de
um amigo, era perigoso sair de lá e vir para Terra, o único
lugar por onde podíamos fugir estava sendo vigiado, e nas
condições que sua mãe estava, seria muito arriscado.
Seu pai tinha morrido não fazia muito tempo, e
todos nós estávamos acabados, sua mãe mais do que
ninguém. Acho que a única coisa que a mantinha viva, era
você, ela passava horas conversando com você,
acariciando a barriga, ela cantava uma canção de ninar.
Não me lembro muito bem como era, falava alguma coisa
sobre peixes e ondas do mar — ele sorri largamente, com
os olhos distantes, como se não estivesse mais aqui,
comigo, e sim no dia que aconteceu.
Sinto um aperto no peito, mas me mantenho com a
expressão limpa, prestando atenção em cada palavra.
— Achamos que realmente iríamos conseguir,
faltava pouco tempo para você nascer, mas não foi assim
que as coisas aconteceram. Num dia, no meio da noite, a
casa foi invadida, do nada, fogo sendo jogado em cima de
nós pelo teto, janelas, por todos os lados, nem sei como
conseguimos sair de dentro com vida. Nunca estive tão
apavorado assim em toda minha vida. Meu amigo Gabriel,
que estava junto para ajudar a cuidar de sua mãe se
transformou em dragão e nos deu cobertura enquanto
tentávamos sair pela floresta. Sua mãe nunca teve tanta
coragem como naquele dia, corremos o máximo que
podemos, para dentro da floresta escura, tentando nos
esconder em qualquer lugar que podíamos. As contrações
vieram de repende, ainda faltava alguns dias para você
nascer, mas por tudo que estávamos passando, a hora
havia chegado.
Parecia que havíamos os despistados, tentei
carregar sua mãe no colo, mas era inevitável, o parto iria
acontecer, indiferente do que queríamos.
Eu a deitei na grama, e mesmo sem saber o que
fazer ou como agir, eu fiz.
Não foi um parto difícil, não demorou quase nada,
poucos minutos depois eu tinha a bebê de olhos verdes em
minhas mãos — ele faz uma pausa, sorrido levemente. —
Foi a primeira coisa que eu vi, seus olhos. Eu te coloquei
nos braços de sua mãe, e ela lhe embrulhou em sua roupa,
a apertando tão fortemente contra seu peito, ela te queria
mais do que tudo nessa vida, mas isso não durou muito
tempo, eu não sei de onde saíram, por onde vieram, mas
eles estavam lá, por todos os lados.
Peguei você nos braços e tentei ajudar sua mãe, mas
ela se negou, me mandou seguir em frente e não parar por
nada, para ir para Terra e encontrar sua avó.
— Prometa-me, prometa-me que sempre irá
protegê-la, nunca irá abandoná-la — ela pegou minhas
mãos, apertando com uma força que não sabia que
possuía, seus olhos estavam arregalados, porém não
amedrontados.
Eu não queria, insisti mais do que consigo me
lembrar, mas ela era persistente e não me deixaria ganhar
dessa vez.
— Eu prometo, nunca vou deixá-la — então eu fui,
sem olhar para trás, e não parei, como ela havia
mandando. Tudo que ouvi foi uma explosão, a floresta
entrou em chamas, não sei o que ela fez, e nem como fez,
mas ela nos salvou.
Cheguei até a saída de nosso mundo, embrulhei
você em minhas roupas, me transformei, te agarrei com a
boca e sai de lá. Fiz o que tinha que fazer. E foi isso.
Não sei o que devo dizer a ele, imagino como deve
ter sido duro, ter passado por tantas coisas, sozinho,
perdendo tantos amigos. Por minha causa.
Desvio o olhar tentando encarar minhas próprias
mãos, mas mal posso vê-las nessa escuridão.
— Você sabe, não precisa cumprir essa promessa
— digo baixinho.
— O quê? — ele me olha parecendo confuso.
— Nunca me abandonar e sempre me proteger, foi
uma promessa feita há muito tempo, e em outras
circunstancias, sabe, você estava sem saída, mas não tem
que ser assim, sinta-se livre — é o mais justo a se fazer,
livrá-lo dessa promessa, embora não seja o que eu gostaria
que acontecesse.
Ele solta um sorriso abafado.
— Não é por isso que cumpro minha promessa,
Melane — viro o rosto em sua direção. — Seu pai era
como um irmão para mim. Acho que isso é um dos
motivos que me mantêm unido a você, de certa forma.
Abandoná-la não é uma opção para mim, não por ter
prometido, mas por não querer que seja de outra maneira.
Eu sorriu levemente para ele.
— Isso é um alivio.
Ele acena com a cabeça.
— Aquele dia, quando você estava chegando de
noite, e fui falar com você, perguntando onde estava, você
disse que foi dar uma volta, pois estava quente demais
para dormir, isso não era verdade, não é? — pergunto
levantando uma sobrancelha.
Ele sorri levemente antes de responder.
— Não, não era.
— E...?
— Eu tinha sim saído para dar uma volta, realmente
estava calor, mas não fiz um passei de moto. Fui voar um
pouco, sentir a sensação do vento no rosto, tão forte que
quase pode machucar, passar por dentro das nuvens,
esticar as asas o máximo que consigo e mergulhar no céu,
eu adoro isso, acho que é por esse motivo que gosto de
motos, não é nada comparado ao que se sente voando, não,
mas é o mais parecido que posso alcançar aqui. Posso
contar nos dedos às vezes em que me transformei em
dragão durante esses anos, foram apenas duas vezes, é
arriscado. Por isso estava nervoso quando você me
encontrou.
Sinto-me mal por ele, deve ter sido duro, todo esse
tempo cuidando de mim, longe de casa e de quem ele
realmente é. Mas não sei o que dizer, o que deveria dizer?
— Sinto muito?
Ele sorri novamente.
— Não sinta, Mel, isso não é culpa sua.
De certa maneira, é minha culpa sim, mas não há o
que fazer para mudar o passado, nós dois perdemos muito
e passamos por muito. Então, não posso ficar me
corroendo por coisas que não possuem saída.
— Eu tenho mais perguntas — digo tentando mudar
de assunto.
— É claro que você tem.
— Me conte mais sobre tudo isso. Do lugar de onde
você veio e de onde eu vim também,
— Ok — ele diz com uma voz pesada, suspirando.
— Eu não te contei muita coisa ainda afinal. É que
são tantas coisas... Bem, o lugar de onde viemos se chama
Ninho de Fogo, é onde nós, dragões, nascemos e vivemos,
não é um mundo completamente diferente do seu, temos
muitas coisas em comum.
Nós temos um rei que governa por nós,
infelizmente não é um rei muito sábio ou piedoso. Pode ter
sido há muitos anos atrás, mas algo mudou dentro dele,
muitos dizem que ele enlouqueceu. A verdade é que ele é
mesquinho, tem sede de poder em suas mãos. Nenhum rei
pode ser bom com tanta ganância assim. Ele governa há
milhões de anos e tem apenas um herdeiro vivo, você.
— O quê?
— Sim, seu pai, príncipe Samuel era filho do rei
Ariel, sendo assim, quando Ariel assinou o mandado de
morte de seu pai, você se tornou a última herdeira. Ariel
tinha muito medo de que Samuel tomasse seu lugar no
trono, no nosso mundo as pessoas não morrem de velhice,
morremos apenas por alguma doença rara, por assassinato
ou algum outro motivo fora do comum, então o trono
passa para o próximo da linha assim que o rei antigo
estiver velho demais. Então quando Ariel soube sobre sua
mãe, a vingança caiu como uma luva. Ele havia
encontrado a desculpa perfeita para matá-lo e assim
eliminar todas as chances de perder o reinado.
Sua avó, Cristal, não concordava com as atitudes de
seu avô, depois da morte de seu pai ela desapareceu.
Todos acham que ele a matou também — ele diz com os
olhos cansados.
Eu sou uma princesa, certo, mais uma coisa para
minha listinha. Nessas circunstâncias, nada mais me
surpreende.
Meu avô é o responsável pela morte de meus pais e
é por causa dele que estamos fugindo.
Como um homem mata o próprio filho por pura
ganância e agora persegue a neta? Que tipo de monstro ele
é?
— Sim, ele é abominável, e o mundo dos dragões
está caindo cada vez mais rápido, ainda existem muitos
rebeldes que eram a favor de que seu pai viesse a governar
o Ninho, mas depois das mortes eles se mantiveram
calados, com medo, mas eles existem, nós só precisamos
reunir todos eles.
— O que vai acontecer quando chegarmos lá?
Ele suspira antes de responder.
— Guerra, Mel. Ariel tem que morrer. Com você
conosco as chances são maiores, o povo tem esperança em
você.
— Em mim? — pergunto surpresa.
— Você tem mais poder do que imagina, Melane.
As pessoas não terão mais medo com você por perto —
ele diz sorrindo.
As pessoas têm fé em mim? Uma garota que viveu
na roça durante toda sua vida? Não sei como posso dar
esperança a um povo que nem ao menos conheço, em um
mundo que nunca estive.
— Você tem muito que aprender sobre si mesma.
Você é muito mais do que pensa, possui sangue de dragão
e de bruxa em suas veias, Mel. Seus pais eram as pessoas
mais valentes que eu conheci e você não é diferente deles.
— Você era muito amigo de meu pai? — não
consigo ver, mas escuto seu sorriso sussurrado.
— Sim. Você se parece muito com ele, tem o
mesmo sorriso, sabia?
— Verdade?
— Ahan, e você têm muita coragem, assim como
ele, você está enfrentando tudo isso muito bem.
— Que outra escolha eu tenho?
— Descanse um pouco, Mel, amanhã sairemos
cedo — ele diz docemente.
— Está bem, boa noite.
— Boa noite — ele sussurra.
Me deito de costas para David.
— Davi — sussurro de volta. — Quantos anos você
tem?
Ele espera alguns segundos antes de responder.
— Muitos — ele sorri.
— Exatamente?
— trezentos e quatorze... Está bom para você?
Pego fôlego, como ele pode ter trezentos e quatorze
anos? Ele aparenta ter vinte e dois, ou menos, como ele
pode ter vivido tanto? Eu iria viver tanto assim também?
Tantas perguntas para serem feitas.
— Davi, você disse que não podia me conhecer
criança porque eu veria que você não iria envelhecer, mas
eu iria perceber que você não envelhece agora também,
não é?
— Errado. Nós podemos parar de envelhecer
sempre que quisermos, paramos o tempo para nós, Posso
ter a aparência de um homem de 10 anos pelo resto de
minha existência, mas não podemos voltar no tempo, eu
iria envelhecer com você. Eu tenho envelhecido, dois anos
até agora — ele diz com o som de um sorriso fraco.
— E você iria abrir mão de tudo isso e envelhecer?
— Por você? Sim.
Todas as outras perguntas que eu tinha foram
caladas com essa resposta.
Depois de um tempo adormeço, escutando a
respiração lenta de David ao meu lado e alguns poucos
roncos de Lucas.
Capítulo

5
De volta ao lar

De manhã, acordo com Lucas e David empacotando


as coisas. Agora, de dia, posso avaliar melhor o lugar onde
estamos, David deve enxergar muito a noite mesmo, pois
estamos bem escondidos aqui, a pedra
grande sendo rodeada por arbustos largos.
— Eu preciso ir ao banheiro — digo envergonhada,
mas eu realmente preciso fazer xixi.
— Vá ali atrás rapidinho, não fique longe — Lucas
diz apontando um arbusto próximo.
Vou até o arbusto e consigo terminar rapidamente,
mas quando estou fechando o último botão da calça,
escuto um ruído bem a minha frente.
Penso ser um animal, mas então vejo um par de pés
humanos.
— David! — grito o mais alto que posso.
David já está ao meu lado em menos de dois
segundos.
— Tem alguém ali – aponto para a árvore a frente.
Antes que ele possa chegar perto, a pessoa sai
correndo por entre as árvores, David sai atrás a toda
velocidade, mas o espião parece ser rápido.
Eles somem de vista, Lucas está ao meu lado agora,
preparado para lutar.
Alguns segundos mais se passam, meu coração
quase saindo pela boca, enquanto meus olhos percorrem o
caminho de árvores a minha frente.
Então David reaparece puxando um menino pelo
braço.
— É só uma criança? — Lucas pergunta indignado.
E é, um menininho que deve ter uns dez ou onze
anos de idade, cabelos dourados e olhos negros, sobre uma
pele pálida com algumas poucas sardas no nariz. Algo
estranho me toca por dentro nesse momento, apenas por
um milésimo de segundo, sinto que conheço esse
garotinho de algum lugar, mas não consigo me lembrar de
onde.
— Ele não é um menino, tem que quase tantos anos
quanto eu.
Ele não me parece ter ―tanto anos‖.
— Ele parou no tempo, Jack tem quase trezentos
anos, mas descobriu que a vida pode ser mais fácil para
uma criança. Ninguém suspeita de um menininho, não é,
Jack?
O garoto sorri como um menino levado quando é
pego fazendo algo que não deve.
— Não sei por que esse alvoroço todo, só estou
aqui para ajudar! — ele diz com uma voz angelical de
criança.
— Então porque fugir? — Lucas pergunta.
— Sou apenas um menino assustado! — ele diz
sorrindo.
— Sim, claro. Quem te mandou aqui Jack? —
David pergunta.
— Ninguém, eu estava apenas curioso. Escutei
rumores que ela havia sido encontrada. — seus olhos
redondos estão grudados em mim agora.
— Quais são os rumores?
— Que o bebê voltou, e que ela irá tomar seu lugar
no trono. As noticias correm rápido por lá.
— O que veio fazer aqui? — David pergunta
novamente.
— Eu já disse, eu precisava vê-la. É realmente ela,
não é? — seus olhinhos pretos se arregalam para mim. —
Claro que é, ela é a cara da realeza, mesmos olhos verdes,
cabelos ruivos. — ele sorri, enquanto pisca para mim de
uma forma que garotos da idade dele não deviam fazer.
— As coisas tem andado feias por lá, Ninho de
Fogo não está nem perto de ser como já foi um dia.
Um ruído abafado surge por entre as árvores. Todos
nós olhamos para cima à procura do que originou o som.
— Quem está com você? –—David pergunta
sussurrando.
— Ninguém, eu juro, eu vim só — Jack diz com
uma voz fininha sussurrando.
— Como sabe que não foi seguido? — Lucas é
quem pergunta agora.
— Eu não sei — David e Lucas olham para ele.
— Sou apenas um menino — Diz erguendo as
mãos.
— Qual é, Jack? Metade do Ninho sabe que você
não é um menino há muito tempo. Rápido, vamos sair
daqui. Ele foi seguido.
David mal pode terminar a frase, um par de dragões
sobrevoam o local onde estamos.
Nos abaixamos, tentando nos esconder entre as
folhas e arbustos.
— Eu os afasto, nosso povo precisa ser salvo —
Jack grita as palavras pulando para fora do esconderijo
improvisado, para logo explodir em um dragão. Nem de
perto um tão grande como os dragões que vi antes, mas
ainda sim, um dragão, preto com asas esbranquiçadas.
Ele voa em toda velocidade para o céu, contornando
os outros dois e foge para o lado oposto do nosso.
Isso parece funcionar, os dois dragões o estão
seguindo.
— Vamos, não deve estar tão longe daqui — David
diz apressado, me puxando pela mão, forçando-me a
correr.
— O que não está longe? — pergunto ofegante.
— O portal!
— Portal?
— Claro! Como você achou que chegaríamos ao
Ninho?
Corremos por entre a floresta, tenho minha mão
fechada na de Davi e Lucas bem atrás de mim. O tal portal
não está perto como ele tinha imaginado, a prova disso são
minhas pernas que tremem e parecem que vão
desmoronar, quando finalmente David diz.
— Chegamos, é bem ali.
Duas pedras retas, muito altas, uma de cada lado,
com uns quinze metros de distância as separando.
— Tem que estar em forma de dragão para
atravessar — David diz se afastando de nós uns bons
metros. Joga a mochila e me manda pegá-la. — Vire-se
agora.
Eu me viro, e escuto o som de jeans se arrastando
pelo corpo. E então uma explosão. Viro-me e ele já está
em sua forma de dragão.
— Guarde — Lucas pega as roupas no chão e as
coloca em minha mochila.
Lucas me puxa para o lado dando espaço ao grande
dragão que se posiciona em frente ao portal, lançando uma
rajada de fogo por entre ele.
O fogo para, formando uma parede entre as pedras
e vai se dissolvendo aos poucos, abrindo as portas para o
outro mundo.
Devagar, as chamas vão se evaporando e o Ninho
começa a surgir bem na minha frente.
Nesse momento Jack passa gritando e soltando
fogo, atravessando o portal de uma só vez, logo depois
dele os dois dragões surgem entre as nuvens.
David se posiciona para levantar voo, mas Lucas o
para.
— Não. Pegue ela e vá, eu vou atrasá-los o máximo
que conseguir.
David apenas balança a cabeça concordando. Ele
me agarra pela mochila nas costas com suas garras e
atravessa o portal comigo.
Antes de atravessar só posso ver os dragões se
aproximando, enquanto Lucas sussurra algo para si
mesmo, levantando as mãos, uma parede branca
translúcida aparece em sua frente, bloqueando as feras que
começam a soltar baforadas de fogo em sua direção. Ele é
um bruxo também.
E então estou em outro lugar, estou agora em Ninho
de Fogo.
A tontura e a confusão chegam imediatamente,
assim como a falta de ar repentina.
Não sei se foi atravessar o portal ou ter visto Lucas
em perigo, os causadores desses sintomas, mas não
consigo pegar ar para dentro de meus pulmões, eu tento
respirar, mas nada acontece. Caio no chão com um
barulho abafado, David me solta quando estamos
próximos ao solo, um segundo depois, um David humano
está na minha frente.
— Fique calma, Mel, vamos, respire. Está tudo
bem, eu estou aqui, faça junto comigo — ele começa a
fazer longas respirações, levantando as mãos junto com os
pulmões para dar ênfase, então aos poucos posso sentir o
ar percorrer meu corpo novamente.
— Isso, devagar. É normal isso acontecer na sua
primeira vez atravessando o portal — ele explica.
Aceno com a cabeça enquanto respiro lentamente.
— Ótimo, você já parece bem, me passe à mochila
— diz a pegando de minhas costas.
Somente agora percebo que David está sem suas
roupas, completamente nu, bem na minha frente, e a
primeira coisa que me surge na mente é como eu nunca
tinha reparado como seu peito é realmente largo.
— Mel? — David diz com as sobrancelhas
levantadas, enquanto continuo a olhar em sua direção.
— Oh! Claro, desculpe — me viro rapidamente,
sentindo as bochechas queimando mais do que fogo.
Escuto barulho de tecido se arrastando, depois de
alguns segundos me viro e vejo um garotinho subindo a
colina onde estamos agora. É Jack.
Não é uma colina muito alta, com terra vermelha
batida e algumas folhas secas espalhadas pela superfície, o
ar além de seco, é quente, o céu parece cinzento e com
muitas nuvens escuras daqui.
— E lá vem ele. Porque você trouxe os dragões de
volta? — David pergunta nervoso enquanto observa Jack
se aproximar.
— O que eu podia fazer? Eles estavam quase me
pegando!
— Claro! Jack só ajuda quando nada ameaça sua
jovem vida.
— O que posso dizer? Sou apenas um garotinho.
— Sim, essa é sua frase favorita!
— E Lucas? — pergunto aflita. — Ele ficará bem?
— Eu não sei, Mel, realmente espero que sim, mas
agora temos que sair daqui, antes que os dragões voltem.
— O que vai fazer com ela sabichão? Todos irão
reconhecer essa juba ruiva, e da forma que as coisas estão,
ainda há aqueles que acham que ela é a culpada de tudo,
não acho que ficarão muito felizes com isso — Jack diz
com uma expressão travessa.
— Do que você está falando?
— Veja por si mesmo — Jack diz estendendo os
braços para além da colina.
Levanto-me e vou até a beirada para olhar a
paisagem. É tudo muito sombrio, árvores sem folhas, chão
de terra por toda parte, casas destruídas, poeira se
elevando para o céu e ruas vazias.
— Não foi assim que imaginei esse lugar — digo
sussurrando.
— É porque ele não era assim, não desde a última
vez que estive aqui.
— É, as coisas mudaram muito nesses dezesseis
anos — Jack diz parecendo sério enquanto me olha.
— Porque tudo está seco? — David pergunta.
— Um presente do rei, quando ameaçamos começar
uma guerra. Um feitiço dos grandes, lançado no meio da
noite. O céu acendeu em uma explosão vermelha, depois
chamas caíram levando tudo que tinha vida por aqui, foi
assustador. Pessoas mortas de fome e com famílias para
alimentar, não começam uma rebelião sozinhas, não é?
David pega uma capa com capuz da mochila e me
faz vesti-la para cobrir meus cabelos.
— Temos que sair daqui — é tudo o que ele diz
antes de vestir ele mesmo uma capa igual a minha.
Descemos rapidamente a colina, Jack parece
conhecer bem o caminho.
Chegamos à aldeia, aqui de perto as casas parecem
piores, há crianças nas sarjetas esperando por esmolas que
nunca chegam e mulheres sujas tentando vender algo que
me parece com pão torrado. O ar aqui é quente e traz
consigo um aroma de sangue e brasas.
Aperto minha mão na de David, as pessoas parecem
não nos notar ou então não se importam.
As pedras no caminho machucam meus pés, mesmo
com os sapatos, não imagino como estão os pés das
crianças descalças que perambulam por aqui.
Alguns metros a frente, depois de ardamos apenas
por uns segundos, posso escutar um rugido alto de dor.
Com passos largos nos apressamos para ver o que
acontece, as pessoas parecem não ligar para os rugidos, é
mais como algo que eles estão acostumados, continuam
agindo naturalmente, como se nada estivesse acontecendo.
Apenas mais alguns metros e avistamos um par de
dragões se enfrentando violentamente, um dragão marrom
esverdeado acaba de dar uma potente mordida no dragão
menor, de cor avermelhada.
Meus olhos se arregalam com a cena brutal que
acontece diante de mim. Há algumas pessoas em volta,
seus rostos tranquilos, apenas observando, como se essa
cena fosse algo rotineiro para eles.
David parece tão chocado quando eu, enquanto
observa calado com sua cara fechada de sempre.
— Desde quando nos enfrentamos em pleno
vilarejo? — ele pergunta aflito enquanto olha para Jack.
— As coisas tem sido difíceis por aqui, algumas
apostas sempre são bem-vindas em situações extremas de
fome — Jack diz tranquilamente.
O dragão maior lança sua calda pontuda, acertando
fortemente o rosto do dragão avermelhado, que
inconsciente cai no chão com uma pancada forte voltando
a sua forma humana. É uma mulher.
O dragão marrom volta a sua forma de homem
também, e ainda nu, sai gritando com os braços levantados
comemorando com a multidão a sua volta.
A mulher fica jogada ao chão, ninguém faz menção
de ir ver como ela está, ninguém nem ao menos olha em
sua direção, então saio correndo até ela. Escuto David
chamar meu nome, mas não me importo, me ajoelho ao
seu lado, tirando os fios curtos de seu cabelo negro de seu
rosto pálido. Ela é jovem, jovem demais, deve ter minha
idade ou até menos que isso.
Pego uma garrafa de água da mochila e despejo em
seus lábios rachados, ela tosse algumas vezes antes de
abrir os olhos e engolir a água. Sorrio levemente e ela faz
o mesmo com aparente dificuldade.
— Qual seu nome?—pergunto, enquanto enxugo
sua testa suada.
Ela tosse mais uma vez antes de responder.
— Rachel.
— O que você está fazendo? — Jack diz já ao meu
lado.
— Ajudando!
— Ninguém ajuda aqui. Ela sabia onde estava se
metendo quando aceitou lutar.
— Você também não pensaria duas vezes se tivesse
uma irmã pequena em casa e uma mãe doente para
alimentar — a garota diz fracamente, mas consigo sentir o
ódio em sua voz.
— Você pode se levantar? — pergunto, segurando
seus braços para ajudá-la.
Ela acena com a cabeça.
— Já passei por coisa parecida antes.
— Pegue — tiro dois pacotes de biscoito da
mochila e lhe entrego, colocando um dos casacos que
carrego na bolsa em cima de seus ombros.
— Não é muito, mas...
Ela pega os pacotes receosa.
— É mais do que qualquer um já fez por mim em
toda a minha vida — Rachel diz com olhos arregalados.
— Obrigada! –— diz se afastando, mancando, certamente
indo levar os biscoitos para casa.
David me olha sério agora.
— Eu não podia deixá-la ir sem nada.
Ele acena positivamente.
— Você fez bem, agora vamos, precisamos
encontrar alguém.
Jack solta o ar pelos lábios fazendo um barulho de
deboche.
— Sabe onde Amélia mora? — David pergunta a
Jack.
— Mas é claro que sei.
Seguimos Jack pela cidade devastada, a cada passo
que dou, me surpreendo mais.
Nunca vi pessoas tão pobres e sofridas como essas.
O calor me faz suar por baixo da capa grossa, o
vento não ajuda, é ainda mais quente e abafado.
A poeira me faz tossir, é difícil respirar por aqui,
mas todos parecem estar acostumados com o clima seco,
eles andam quietos pelas ruas, sem nos dirigir sequer um
único olhar.
Um vento forte sopra por cima de nós, levanto o
olhar e vejo pássaros gigantes, com asas metálicas
parecidas com espelhos sobre a luz do sol, sobrevoando a
área soltando rugidos melodiosos.
— Fênix? — David pergunta, surpreso.
— Criaturinhas odiosas, levam tudo ao pé da letra
— diz Jack, mal-humorado.
.— Elas gostam de criar suas colônias perfeitas de
lugares destruídos, para assim renascer das cinzas dos
outros — Davi diz ainda com os olhos grudados nos belos
pássaros.
— Como eu disse, levam tudo ao pé da letra...
Abutres, isso que elas são. Deixem-nos em paz, suas
carniceiras — Jack grita, levantando as mãos para o céu.
—Elas estão nos rodeando há meses.
— Isso aqui está pior do que eu pensava — David
diz, mais para si mesmo do que para nós.
Apenas continuo andando com os olhos presos no
céu, observando, enquanto os lindos pássaros desaparecem
por entre as nuvens.
Depois de andar por um tempo infinito, chegamos a
uma casinha pequena de madeira velha e gasta.
Jack bate na parta, dando socos fortes e fazendo
barulho.
Um homem de cabelos grisalhos abre a porta, que
range eternamente.
Ele olha feio para Jack no momento em que vê seu
rosto, depois vira os olhos para David, os arregalando e
sorrindo.
— David, é você?
Eles se abraçaram fortemente, dando tapas nas
costas e sorrindo largamente.
— Entrem, rápido.
Entramos pela porta que range mais uma vez ao ser
fechada, é uma casinha bem simples, poucas janelas
pequenas, uma mesa de madeira com apenas três cadeiras
no centro do cômodo, cortinas esfarrapadas feitas de um
tecido verde florido, alguns bancos de madeira encostados
na parede, mais duas portas fechadas logo depois de um
pequeno espaço onde fica a cozinha.
— Minha nossa, é você mesmo. Eu nem posso
acreditar — o homem diz mais uma vez abraçando David.
— Também senti saudades pai.
Oh! É o pai dele, agora que percebo a semelhança,
eles possuem os mesmos olhos azuis e o mesmo sorriso
infantil nos lábios.
— Deixe-me olhar para você.
Depois de olhar para David por um momento
realmente longo, o homem vira os olhos em minha
direção.
Jack parece entediado sentado em uma das cadeiras,
revirando os olhos de uma forma nada agradável.
— É ela? — o pai de David pergunta me encarando.
— Sim, é ela, eu tive que trazê-la — David diz
puxando o capuz para baixo de minha cabeça, revelando
meus cachos ruivos, que imagino estar numa bagunça
ainda maior que a de costume.
Os olhos do pai de Davi brilham ao olhar para
minha ruivisse, então a porta se abre de uma vez, e duas
mulheres entram arregalando os olhos, deixando cair à
sacola que levam nas mãos.
Elas não dizem nada, apenas me olham.
Jack se apressa, fechando a porta. — Cubra essa
cabeça, alguém podia ter te visto — diz parecendo
zangado.
A mulher que aparenta ser mais velha percorre o
olhar por tola sala, parando diretamente em David.
Eles sorriem e se abraçam também, enquanto ela
passa as mãos freneticamente por seu rosto e cabelos.
— Querido, eu senti tanta saudade.
— Eu também. Amélia — Davi diz sorrindo.
A garota mais nova ainda tem os olhos grudados
em mim.
— É ela?
Acho que devo começar a me acostumar com essa
pergunta.
— Sim, é ela. Contemple os cachos ruivos por um
tempo infinito agora — Jack diz ainda sentado.
— Angélica? Como está crescida — David fala,
indo abraçar a linda garota de cabelos castanhos ondulados
que vão até sua cintura.
— Você devia ter uns 14 anos desde a última vez
que te vi — ele diz sorrindo.
A garota cora as bochechas num tom forte de
vermelho, também sorrindo.
— É bom te ver também — ela diz sem jeito.
— Mel, esse é meu pai, Damião, sua esposa
Amélia, que praticamente me criou, e essa é Angélica,
sobrinha de Amélia e minha grande amiga.
— Oi — é tudo que digo, fazendo um gesto com a
mão.
— Não posso acreditar que é ela. Eu escuto
histórias sobre você a minha vida toda, tenho esperado
tanto por seu regresso — Angélica fala com olhos
vidrados em mim.
— Histórias sobre mim?
— Sim. O bebê que um dia voltaria e nos daria
salvação — diz ainda fascinada.
— Calma, Angélica, ela acabou de chegar, está
nesse mundo há pouco tempo, ainda há muito para
aprender — Damião se aproxima.
— Chegaram agora? —Amélia pergunta,
recolhendo a sacola do chão.
— Há poucas horas — Jack responde.
— O que ele faz aqui? Veio roubar alguma coisa de
novo, Jack? — Amélia diz, apontando o dedo em sua
direção.
— Ele estava ajudando — digo sem graça.
Ele estava mesmo, ele espantou os dragões na
floresta, se não fosse por ele, não sei como teria sido.
Jack me olha agora, um brilho travesso nos seus
olhos escuros. Ele pisca para mim sorrindo novamente.
Esse garoto me provoca arrepios, como aquelas
crianças demoníacas nos filmes de terror, um rosto
adorável com uma voz angelical sob um humor debochado
e mal-humorado e um sorriso malicioso.
Todos na sala me olham.
— Ele ajudou a atravessarmos o portal.
— Sim, eu ajudei.
Amélia revira os olhos.
— Como chegaram aqui? — Damião pergunta
— Nos descobriram, saímos da Terra as presas,
tivemos ajuda de Verônica e Lucas... — Davi diz,
deixando as palavras morrerem no ar quando o nome de
Lucas passa por seus lábios.
— E minha ajuda, não se esqueça, a ruivinha disse
isso claramente — Jack fala, apontando o dedo indicador
para David, que apenas lhe olha de relance.
— Vocês devem estar com fome, vou ver o que
posso fazer — Amélia diz, indo em direção a cozinha.
— Venha me ajudar, Angélica.
Alguns minutos depois estamos sentados a mesa
com um prato de pão torrado com manteiga e um copo de
um suco que por mais que tente, não consigo distinguir o
sabor. Comemos tudo.
Já está escurecendo lá fora, a aldeia parece ainda
mais sombria agora, o vento faz barulhos estranhos
quando sopra por entre os galhos secos das árvores, a
poeira brinca nas janelas e o clima começa a mudar. O
calor insuportável de mais cedo já não existe, agora está
começando a esfriar, cada vez mais. Damião acende um
pouco de madeira na pequena lareira improvisada no meio
da sala.
— O que pretendem fazer? — ele pergunta se
sentando em frente ao fogo.
Com um suspiro David responde.
— Ainda não sei. Acho que ainda temos a
vantagem de não saberem que estamos aqui. Então ainda
temos algum tempo para pensar.
— Se descobrirem que ela está aqui, o que vão
fazer? — Angélica pergunta aflita.
David apenas balança a cabeça negativamente.
— Não vamos pensar nisso agora.
— Eu não quero ser um estorvo para ninguém, se
for arriscado eu ficar aqui...
Ainda não entendo o que se passa de verdade, não
sei com o que estamos lidando, mas não quero por a vida
de ninguém em perigo, muito menos a família de David.
— Não diga bobagens querida, você é mais que
bem-vinda aqui — Amélia diz me olhando
carinhosamente, como se eu fosse alguém querido para ela
e não uma mera desconhecida. Nunca conheci nenhum
parente de Davi, e nunca parei para pensar sobre isso
antes, mas agora, não poderia imaginar pessoas diferentes.
— Vamos ficar bem – David diz olhando em minha
direção com um sorriso carinhoso.
— Vocês ainda têm mantido contados com alguns
dos rebeldes? — ele pergunta para a seu pai.
— Não, ninguém mais fala sobre isso por aqui, o
medo é maior que a vontade de lutar.
— As coisas vão mudar por aqui então — David
resmunga para si mesmo.
— Ok, chega disso por hoje, tiveram uma longa
viagem até aqui, já está tarde e vocês devem estar
cansados. Vou arrumar as coisas para dormirmos —
Amélia diz abrindo um armário de madeira e pegando
algumas cobertas.
— Vou ficar aqui essa noite também — Jack diz
entediado.
As pessoas da sala olham em sua direção.
— O quê? — ele pergunta com uma expressão
inocente.
— Por que não vai para sua casa? — David
pergunta.
— Quero ajudar, só isso.
— Não tem que ficar aqui Jack, obrigado pela ajuda
até agora — David diz como se o caso tivesse sido
encerrado.
— Pode ficar Jack, mas tem que se comportar dessa
vez — Amélia diz levantando o dedo indicador em sua
direção.
— Pode deixar — ele diz sorrindo maldosamente
para David.
— Toma! — Escuto Jack sussurrar as sílabas
olhando diretamente para David, enquanto sorri
largamente.
— Você pode dormir com Angélica — Amélia diz
me olhando.
Angélica sorri para mim, estendendo a mão direita,
eu seguro em sua mão e juntas vamos para o final da sala
onde uma cortina comprida está retraída.
Angélica a puxa formando uma parede de tecido
que nos separa dos outros.
— Mulheres precisam de privacidade.
Eu concordo sorrindo, apesar de privacidade ser
uma das últimas coisas em minha mente.
Arrumamos cobertores no chão, nos aconchegando
em meio aos livros amontoados. Coloco uma das
camisolas velhas, porém muito confortáveis de angélica e
me deito ao seu lado.
— Quantos livros! — digo empurrando alguns
deles para o canto.
— Eu gosto de ler, faz o tempo passar — ela diz os
arrumando mais para longe de mim.
— Eu também gosto de ler, é o que mais faço, fazia
onde morava.
— Sério? — ela pergunta sorrindo.
— Sim, não há nada melhor para mim, mas eu lia
mais histórias do que livros científicos, como esses seus
parecem ser.
— Eu leio de tudo, mas gosto de saber sobre nossa
raça, esses livros falam sobre nossas origens.
Aceno com a cabeça tentando sorrir em sua direção.
Angélica seria aquele tipo de garota nerd se morasse na
Terra, acho que teria gostado dela se a tivesse conhecido
por lá.
— Como está indo com as coisas?-- ela pergunta se
virando para me olhar.
— Indo... Foi difícil no começo e ainda é, mas acho
que estou conseguindo — digo sem olhar para ela.
— Esse lugar não costumava ser assim antes, você
teria gostado daqui, tinha muitas árvores frutíferas e os
campos eram repletos de flores, de todas as cores
imagináveis. As pessoas eram gentis umas com as outras
também.
— Sinto muito.
Ela apenas dá de ombros.
— Como foi no dia em que o feitiço destruiu as
coisas por aqui?
Ela pensa um pouco antes de responder, e quando
fala seus olhos ficam presos no horizonte.
— Não me lembro muito bem, eu tinha apenas 14
anos, estava chegando em casa quando o céu começou a
pegar fogo, tudo muito vermelho, é do que mais me
lembro. A magia foi caindo sobre nós, matando tudo,
destruindo todas as coisas... Foi terrível.
— Sinto muito de novo, não sei o que dizer.
— Não sinta, não foi sua culpa! — ela diz com a
ameaça de um leve sorriso no canto dos lábios.
— Angélica? — pergunto me virando para olhá-la
mais de perto.
— Sim? — ela responde com seus olhos vidrados
em mim.
— Porque todo mundo olha feio quando Jack está
por perto?
Ela sorri uma vez antes de responder.
— Jack pode parecer um menino, mas ele não é.
Ele usa essa aparência inocente para trapacear em tudo
que ele possa, já perdi a conta de quantas vezes o vi
roubando na mercearia, muita gente por aqui sabe que ele
não é confiável, ele não tem um pingo de educação, e
sempre é grosso comigo.
— Isso não me parece ser algo terrível — digo
sorrindo.
— Melane, porque alguém escolheria ficar criança
para o resto da vida? — ela pergunta me encarando.
— Eu não sei, talvez porque a vida seja mais fácil
quando você é uma criança. Você vê as coisas de outra
maneira — digo dando de ombros.
— Exatamente, facilidades, é o que Jack procura.
Aceno com a cabeça, mesmo tendo no pensamento
que meus dias de criança foram os melhores de minha
vida, não pensaria duas vezes se pudesse voltar a ter 10
anos de idade.
— Você está com medo? — ela pergunta uns
minutos depois.
Medo? É algo que eu tenho sentido muito nesses
últimos dias, entretanto não acho que esteja com medo.
Passei por tantas coisas que de certa forma me sinto forte.
— Não — é apenas isso que respondo.
— É por isso que você é quem é. E é por isso que
nós seremos salvos.
Capítulo

6
Komodo

Algumas horas se passam e eu ainda estou


acordada, estou exausta, mas o sono não vem. Essa hora é
a pior, à noite, quando estou sozinha, tem sido as horas
mais difíceis, quando tudo começa a martelar novamente
em minha cabeça, repetidamente. É quando todas as
preocupações surgem, me lembrando de que elas estão ali
e que não irão embora tão cedo.
Penso em meu avô, sendo o culpado de todo esse
caos, de todo o sofrimento. Me Lembro de minha avó
Mary, na verdade, tento não pensar muito nela, não me
ajuda muito fazer isso, então mando o pensamento para
longe sempre que posso.
Fico revivendo os acontecimentos, como tudo isso é
possível, e como essas coisas são reais. Até então tenho
vivido aventuras apenas pelas páginas dos livros que pego
na biblioteca da escola, mas agora estou vivendo minha
própria história, e isso é totalmente diferente do que nos
livros. Penso em minha amiga Caroline e como ela está. O
que todos devem estar pensando? Minha avó e eu
desaparecidas, será que já nos deram como mortas?
Será que Caroline sente minha falta? Tifany
certamente está feliz.
Será que mais alguém, além de Caroline, sentiu
nossa falta? Talvez nada tenha acontecido afinal, talvez os
dias nesse mundo passem de forma diferente do que na
Terra, como em ―As Crônicas de Nárnia‖, e se Ninho de
Fogo também for dessa forma? Essa é uma pergunta que
não posso me esquecer de fazer amanhã para alguém.
Escuto um som abafado, como de pés descalços
sobre o chão de madeira. Abro uma pequena fresta de
cortinha e vejo Jack andando na ponta dos pés.
O que ele vai fazer? Roubar alguma coisa? Ou
então fugir no meio da noite para contar a guarda real
onde estou escondida.
Uma sensação de medo toma conta de mim, talvez
ele realmente seja uma pessoa não confiável, devo ter sido
enganada por sua face doce de criança.
Observo mais um momento, esperando ele sair pela
porta para poder acordar David e lhe contar o que sei.
Ele continua silencioso, desvia da porta e chega até
um armário na cozinha. Jack se abaixa abrindo a portinha,
pegando um pequeno embrulho de sobras do jantar, então
se senta com as pernas cruzadas no chão e come
rapidamente, voltando nas pontas dos pés para sua cama
improvisada.
Abafo minha risada com uma das mãos. Eu não
acho que ele seja assim tão terrível quanto às pessoas
pensam.
Pra mim, é só um menino com muitos anos de vida.
Acordo cedo com Angélica se trocando ao meu
lado.
— Bom dia, princesa.
— Não me chame de princesa. Melane, esse é meu
nome.
— Como quiser — ela responde sorrindo.
— Angélica, como vocês fazem para tomar banho
por aqui?
Na verdade, não me importo muito com isso, mas
faz muito tempo desde a última vez que tomei banho, na
casa de Verônica.
Ela torce o nariz uma vez antes de responder.
— Usamos o lago aqui perto, a água é escura, mas é
a única opção que temos.
— Eu só preciso de um pouco de água.
— Tudo bem, levo você até lá depois.
Aceno com a cabeça.
Troco-me e retraio a cortina.
David e os outros já estão à mesa tomando café, ele
sorri quando me vê.
— Pensei muito essa noite — ele diz com os lábios
na xícara de café.
— Tem uma coisa que eu tinha me esquecido... A
vorpal! — ele diz com um sorriso malicioso nos lábios.
Todos na mesa levantam seus olhos para ele.
— Você sabe que ela não funciona mais. O feitiço
só funcionava com Samuel – Damião é quem diz.
— Talvez funcione com Melane também. Ela
saberá que ela é filha dele, ela a reconhecerá — David diz
parecendo vidrado.
— Mesmo se isso for verdade, como irá pegá-la?
Está guardada a sete chaves dentro do castelo. É
impossível — Damião retruca.
— O que é uma vorpal? — pergunto já agoniada de
não estar entendendo nada.
Todos na mesa me olham, como se eu fosse uma
idiota por estar fazendo essa pergunta.
— É a espada de seu pai — Jack diz, enquanto
coloca um pedaço de pão na boca sem se importar com a
manteiga que escorre por seu queixo.
— Ela é mágica, sua mãe a enfeitiçou. A espada
tem vida própria, ela escolhe quem a irá usar, ninguém
conseguiu empunhá-la depois que seu pai faleceu, a
espada está adormecida, ninguém nem ao menos consegue
levantá-la. E continuará adormecida, apenas esperando
para ser despertada — Angélica diz com olhos brilhantes
de fascínio.
David a olha boquiaberto.
— O quê? Eu tenho pesquisado muito sobre essas
coisas — ela diz na defensiva.
— Ela foi feita unicamente para proteger seu pai em
batalha, sua mãe a enfeitiçou com amor, por isso ela tem o
maior dos poderes. Seu pai nunca perdeu uma luta com ela
— David diz me olhando.
— Ficaríamos muito mais fortes com a vorpal em
suas mãos, Melane — Davi diz mais para si mesmo do que
para mim.
— Não importa. É impossível chegar até ela —
Damião diz mais uma vez.
— Talvez não seja impossível — Jack diz com um
sorriso malicioso nos lábios.
— Sem chances — David diz pela milésima vez —
Não vou deixar você aos cuidados desse moleque.
Esqueça, Jack, pensarei em outro plano.
Jack conta sobre um plano que acabara de ter, mas
David, é claro, não concorda com absolutamente nada do
que surge, segundo ele, de sua mente insana e imatura de
criança.
Ele disse que muitas pessoas do castelo devem
favores a ele.
— Não sabe quantos favores pode descolar em uma
partida de pôquer bem jogada, meu filho — foi o que ele
disse.
Jack acha que pode me colocar dentro do castelo.
Um dragão pequeno e negro como ele, poderia se esconder
facilmente entre as nuvens à noite e se infiltrar dentro das
torres.
Uma vez lá dentro, ele dependeria da lealdade das
pessoas que devem a ele para não nos capturar.
Claro, ele não iria dizer que eu estaria lá também.
Seu plano era dizer que sempre teve curiosidade de ver a
vorpal com seus próprios olhos. Um garoto curioso.
Ninguém iria desconfiar, pois é impossível de levantar a
espada, de qualquer forma.
Depois de estar dentro do quarto, onde a espada é
guardada, ele abriria a janela, e eu estaria do lado de fora,
sentada num galho de árvore que ele deveria me colocar
antes de entrar no castelo.
Eu pegaria a espada e a despertaria. Subiria
novamente em suas costas e nós iríamos fugir de lá sãos e
salvos, simples assim.
— As coisas não são simples, Jack. Você está
contando com a honra de pessoas desonradas, se eles não
cumprirem com suas dividas de pôquer, você poderia ir
preso por invadir o castelo, poderia até morrer e Melane
ficaria presa em um galho de árvore no meio da noite,
sozinha, onde seria descoberta logo pela manhã, e morta.
Fim de papo.
— Confie em mim cara, dividas de pôquer são
sagradas. Nada mais é tão honrado.
— Por que você está tão interessado em ajudar
afinal? — David pergunta a Jack.
— Por que... — ele diz dando uma pausa pensando
um pouco antes de responder. — Acho que esse mundo
merece algo melhor, algo melhor do que esse rei de bosta
que temos e essas terras podres sem vida.
— Porque essa espada é tão importante? —
pergunto.
— Ela tem um poder único, ela te guiaria. Com ela,
você nunca estaria sozinha. Ela pode lutar por si só, tudo
que precisa fazer é empunhá-la, Mel. Nossas chances se
multiplicariam. Depois de reunirmos os rebeldes, nossas
chances de convencê-los a lutar por nós seriam bem
maiores.
É isso, precisamos da espada, mas David jamais irá
concordar.
— Esqueçam — ele diz mais uma vez. — Não irei
arriscar Melane dessa forma, pensarei em outra coisa.
E assim ele encerra a conversa.
Um tempo depois coloco minha capa e vou andar
pela aldeia com Angélica, ela precisa ir comprar pão.
— Como vamos comprar pão se tudo aqui está
morto? Como eles conseguem os ingredientes? Até onde
vi, toda terra está seca — pergunto logo que saímos de
casa.
— Algumas pessoas têm favores pendentes com
alguns tipos de criaturas, magia ajuda na maioria das
vezes. Alguns têm pequenos jardins em seus quintas, mas
eles não duram muito tempo, depois precisam fazer um
novo feitiço para que as coisas voltem a crescer.
— Que tipos de criaturas?
— Todos os tipos — ela diz levantando os ombros.
— Elfos, fadas, duendes, alguns até conseguiram ajuda de
bruxas. Qualquer tipo de coisa que tenha magia.
Nem perco tempo perguntando se esse tipo de coisa
existe mesmo, depois do que vi, acredito em tudo que me
disserem. É isso, é tudo verdade, todas as criaturas dos
livros são reais. Engraçado, eu sempre quis que elas
fossem mesmo, acho que toda garota que adora livros
como eu, imagina isso um dia, mas agora, vivendo no
meio disso tudo, não sei o que pensar.
As ruas nas mesmas condições de ontem. Ar seco e
quente penetrando nossos pulmões com terra vermelha,
enquanto faz meus olhos arderem com a fumaça que
parece estar impregnada pelas ruas.
O olhar nos rostos das pessoas é deprimente, me
sinto fraca apenas por estar aqui tão perto dessas pessoas
sem saber o que fazer para ajudá-las.
Fico pensando sozinha, enquanto caminhamos
caladas uma ao lado da outra.
Como um rei joga uma praga em suas próprias
terras? E deixa seu próprio povo morrer de fome dessa
forma?
Alguém assim não deveria governar.
— Ariel sempre foi cruel assim? — pergunto a
Angélica, desviando o olhar em sua direção.
— Não. Antes ele costumava ser bom, as pessoas
gostavam dele. Num certo dia, ele acordou mudado, ou
talvez ele sempre tenha sido e nunca tenha demonstrado.
Algumas pessoas dizem que ele enlouqueceu.
Dizem que ninguém pode governar por tanto tempo assim,
não faz bem para cabeça.
— As pessoas gostavam de meu pai?
— Sim. Ele era um homem bom. Ele costumava me
dar flores quando me encontrava — Angélica diz sorrindo
com o olhar distante. — Eu era apenas uma garotinha, mas
eu me lembro. Era um homem muito honrado, todos aqui
eram a favor de seu reinado.
Andamos poucos quarteirões quando Jack nos
alcança.
— O que foi Jack? — Angélica pergunta o
encarando.
— Nada, só vim dar uma volta, não aguento mais
olhar para cara de David, aquele cara precisa relaxar um
pouco, cruzes.
Reviro os olhos, mas para mim mesma do que para
alguém em especial.
Sei que David pode ser meio ―velho‖ às vezes e que
na maioria fica com a cara de mau, mas ele é uma das
melhores pessoas que conheço no mundo, sei que tudo que
faz é para me proteger.
Continuamos andando, percebo os olhinhos pretos
de Jack grudados em mim e o olho levantando uma de
minhas sobrancelhas.
— Você até que é bonita — ele diz levantando os
ombros
Dou risada.
— Obrigada!
Apenas alguns passos mais e avisto a garota do
outro dia, Rachel, caminhando sozinha pelas ruas de terra.
— Rachel? — pergunto indo em sua direção.
Ela sorri quando me vê.
— Olá.
— Você está bem?
— Consegui um emprego assando pães. Não ganho
quase nada, mas é alguma coisa.
Fico feliz por ela e ao mesmo tempo, aliviada de
saber que tem como se sustentar de alguma forma.
— Como vai sua mãe? — pergunto preocupada
sobre a mãe doente que ela mencionou no outro dia,
quando a ajudei.
— Ainda doente. Minha irmã cuida dela enquanto
trabalho — diz com um encolher de ombros.
— Vou torcer por ela — Angélica diz sorrindo
olhando para Rachel.
— Obrigada!
— Se tiver algo que possamos fazer por você, não
deixe de avisar, está bem? — ela sorri para mim enquanto
acena com a cabeça.
Não sei por que, mais sinto que preciso cuidar dessa
garota, ela aprece tão frágil e solitária, tendo uma família
para cuidar. Nunca precisei fazer algo parecido em minha
vida, nem sei se seria capaz de tal coisa, assim como
Rachel é capaz.
— É aqui que você trabalha? – Angélica pergunta,
assim que chegamos em frente a uma casinha pintada com
tinta azul clara, já gasta pelo tempo.
— Sim, é aqui — Rachel diz enquanto entra por
uma porta pequena e reaparece abrindo uma janela.
— Estávamos indo comprar pão mesmo, vou querer
dez, por favor — Angélica estende algumas moedas e uma
nota, onde posso ver algum tipo de símbolo real parecido
com um brasão contendo o numero referente à nota e
escrito ―Brasas‖ logo abaixo.
— Brasas — leio em voz alta.
— É assim que chamamos nosso dinheiro por aqui
— Rachel fala o pegando da mão de Angélica.
— Oh, desculpe, com esse dinheiro você pode levar
apenas seis — ela diz com um olhar triste.
— Seis? Mas ontem mesmo estive aqui e o preço
estava como o de sempre.
— Sinto muito, foram as ordens que me passaram
antes de voltar para casa ontem, com dez brasas você pode
levar apenas seis pães. Eu sinto mesmo, não posso fazer
nada e se não obedecer, posso ser demitida.
Angélica acena com a cabeça, sem dizer nada.
— Vocês estão ficando loucos, isso é um absurdo,
onde já se viu uma coisa dessas? Como que mudam o
preço de um dia para o outro. E nós, consumidores, somos
o que então? Cadê o dono dessa joça, em? —Jack
pergunta aos gritos.
— Jack pare com isso — digo olhando bem em
seus olhos.
— Larga de ser boba, Melane, eu só saio daqui com
dez pães, hora essa, onde já se viu, isso é roubo.
Nesse instante, um homem aparentemente muito
alto sai pela porta, onde Rachel trabalha.
— O que está acontecendo aqui? — seus olhos
percorrem o local e param sobre Jack.
— É você, outra vez causando problemas para mim.
— Mas é claro, essa bosta de lugar só está assim
porque ninguém se ajuda, o que pretende aumentando os
preços dessa forma?
— Vá embora, é a última vez que lhe aviso, da
próxima não será assim.
— Você acha que tenho medo de um velho gordo
igual você, cai dentro babaca.
— Jack, cale-se, vamos embora — Angélica diz.
— Não saio daqui sem meus dez pães — ele bate o
pé no chão, feito uma criança mimada.
O homem tira os fios castanhos de cabelo dos olhos
e se aproxima lentamente de Jack. Coloco-me em sua
frente, antes que ele chegue perto demais.
— Ele é só uma criança — digo sem tirar os olhos
dele.
— Não, ele não é, e já me tirou do sério, não sabe
quantas vezes ele me causou problemas essa semana, já
chega, saia da frente, mocinha.
— Não será necessário, nós estamos indo embora.
O homem me encara por um segundo.
— Não o quero perto de meu estabelecimento outra
vez, fui claro?
— Sim — digo acenando.
Ele se vira para entrar novamente na casa, quando
um pedaço de pedra o acerta bem no meio das costas.
— Claro uma ova, seu otário — apenas escuto a
voz fina de Jack atrás de mim, antes que ele saia correndo
por entre as pessoas, esbarrando na maioria enquanto foge.
Angélica fica tensa ao meu lado, enquanto o
homem alto nos olha furiosamente.
— O dinheiro fica comigo, e vocês sumam daqui.
Angélica faz que sim com a cabeça antes de me
puxar pelo braço, me levando embora dali.
— Eu ainda não acredito nisso, perdemos dez
Brasas e não compramos comida nenhuma, o que Jack
pensa que está fazendo? –—Angélica diz pela milésima
vez, sentada numa das cadeiras a mesa.
— Eu não suporto esse garoto — David diz com o
olhar distante.
— Ele só está revoltado por essa situação, a cabeça
dele é diferente da nossa, é como se tivesse apenas onze
anos de idade— Amélia diz o defendendo.
A porta se abre e Jack entra por ela, como se nada
tivesse acontecido.
— No que você estava pensando? — Angélica
pergunta quase gritando.
— Fazendo justiça, ué. Se você não se importa de
ser enganada, eu me importo.
— O dinheiro não era seu para se importar!
— Eu ajudo os indefesos, sua ingrata.
— Ingrata, me fez perder o dinheiro.
Não quero mais ouvir a discussão, ainda mais agora
que David entrou no meio dizendo que Jack deve para de
se meter e voltar para sua vida.
Vou para meu colchão improvisado, onde penso por
um bom tempo, tentando ignorar os gritos.
Todas essas pessoas, tenho que fazer alguma coisa.
Nada irá adiantar ficar parada, esperando as coisas
acontecerem para mim.
David disse que essa espada iria garantir que os
rebeldes se juntariam a nós para podermos derrotar o rei,
meu avô Ariel.
Não gosto da ideia de lutar com meu próprio avô,
mas que outra saída eu tenho?
É isso que meu pai iria querer, ele iria querer que
seu povo fosse feliz, que fossem livres.
Apostas no meio da aldeia, crianças passando fome,
árvores secas para todo lado, não é esse o mundo que ele
iria querer. Depois de um tempo, quando ninguém mais
está discutindo, vou até a cozinha onde David está sentado
parecendo muito concentrado, enquanto conversa com
Damião.
— Vou pegar aquela espada — digo, pondo fim
nessa discussão.
— O quê? — ele me olha confuso.
— Vou pegar essa espada — digo firmemente, sem
piscar, e fazendo meu melhor para parecer decidida.
— Você não sabe o que está falando. Jack é um
irresponsável, não coloque fé em nada que ele fala —
Davi diz levantando os braços para o alto, e aumentando o
tom de voz.
— Eu não me importo, David. Não vou ficar aqui
parada.
— Mel, você não vai e pronto — ele diz virando de
costas para mim, indo em direção a porta.
— A decisão não é sua. Eu vou, David, com ou sem
sua permissão — minha voz não soa tão decidida quanto
antes, mas não tiro os olhos de onde ele está.
Ele se vira me olhando magoado.
— Eu não tenho escolha. E já me decidi — olho
diretamente em seus olhos, não gosto da forma como me
olha agora, mas não tenho outra saída.
E realmente não tenho, se arriscar minha vida para
pegar essa espada é tudo que posso fazer no momento,
então é isso que farei.
Alguém precisa tomar uma atitude, algo precisa ser
feito e tem que ser agora.

David não está gostando nada do que acontece, sua


cara feia continua durante todo o caminho até uma colina
perto da casa de Damião.
Sei que ele só está preocupado, mas tenho que fazer
isso.
Eu me recuso ser a garota que precisa ser salva o
tempo todo. Fiz uma promessa, eu serei forte e eu lutarei,
é isso.
O plano de Jack irá dar certo, tem que dar, e eu terei
essa tal espada mágica comigo logo.
— Virem-se — Jack diz com a mão segurando a
barra da calça.
— Ah, por favor, me poupe — David diz se virando
com uma expressão que não sei distinguir entre raiva e
deboche.
Viro-me também, e em poucos segundos escuto a
explosão abafada atrás de mim.
O pequeno dragão negro de asas esbranquiçadas
está parado a minha frente.
David ainda tem a carranca no rosto, e o olhar
preocupado.
— Não se preocupe, eu vou voltar logo.
Ele me puxa para um abraço apertado, sinto sua
respiração pesada e quente em meu pescoço.
— Ficarei esperando aqui.
David amarra as roupas de Jack em suas pernas.
— para quando voltar a ser menino — diz com um
levantar de ombros.
Ele me levanta pela cintura, me ajudando a subir
nas costas de Jack.
— Te vejo depois.
Dou-lhe mais um sorriso antes de levantarmos voo
e desaparecermos no céu.
Tudo está muito escuro, quase não posso ver
estrelas por aqui. A noite é gelada e o vento bate em meu
rosto, como rajadas de gelo me penetrando até os ossos.
Afundo-me mais em Jack, tentando me proteger do
vento, mas parece não adiantar, mesmo com sua pele
quente por baixo de mim, o frio é tão forte que chega a
doer.
Aguente firme, é o que penso.
Ficamos no ar por um bom tempo, o dragão a baixo
de mim é tão escuro que eu mal posso vê-lo dentro da
negritude da noite.
Tudo é muito escuro, não há luzes por aqui. Só
depois de muito tempo é que posso avistar um grande
castelo brilhando levemente com a luz do fogo que queima
em grandes tochas a nossa frente. Elas estão enfileiradas,
bem na entrada, mas ainda é difícil enxergar daqui do alto.
O castelo parece ser feito de algum tipo de rocha, é
escuro, daqui é como se fosse cinza, mas não tenho como
dizer ao certo.
Jack diminui a velocidade de seu voo, contornando
o castelo lentamente por entre o céu.
Não consigo ver lá em baixo, não sei se há pessoas
por lá.
Jack é tão escuro que somos praticamente
invisíveis, se não fosse pelo pouco reflexo de suas asas
esbranquiçadas, ninguém poderia dizer que estamos aqui.
Ele voa mais um pouco, parando perto de uma árvore,
perto o suficiente para que eu possa descer e me segurar
em um galho grosso. Quase escorrego no processo, nunca
fui uma garota que brincava de subir em árvores, ler
sempre foi mais atrativo para mim. Por sorte, consigo me
segurar, então me sento, colocando as pernas uma de cada
lado do galho e o seguro firme.
Jack olha para mim mais uma vez, antes de sair
voando novamente. Eu o observo e o vejo sumir por entre
a noite.
As árvores são saudáveis aqui, verdes e frescas, o
cheiro de rosas enche meu nariz, quase me embriagando.
Tento me esconder por entre as folhas como posso,
não tenho como dizer com clareza, pois ainda está escuro,
mas devo estar há mais de vinte metros do chão agora,
então me concentro em não cair, apertando um pouco mais
minhas mãos no galho.
Há uma grande janela alguns poucos centímetros de
minha árvore, eu posso ver luzes brilhando de dentro.
O chão abaixo de mim é fresco, grama verde e
úmida, o ar aqui não é seco e não há poeira.
É assim que esse lugar devia ser antes, é como
deveria ser hoje.
Passo uns bons minutos tentando escutar algo de
dentro da janela, mas nada acontece. A ansiedade começa
a tomar conta de mim aos poucos, mil coisas começam a
passar por entre minha mente. Será que Jack conseguiu? E
se ele foi pego?
Balanço a cabeça pros lados, tentando eliminar os
pensamentos e me obrigo a ficar neutra, apenas
observando a janela, tentando novamente escutar algo de
dentro. Ficar nervosa não é a resposta.
Já estou mais do que preocupada, quando escuto
um click e a janela se abre.
O menino de cabelos dourados, agora um tanto
quanto ofegante, me procura com os olhos negros por
entre as folhas.
— Melane? — ele sussurra.
Apareço próxima a janela, ele me estende a mão,
me ajudando a entrar silenciosamente.
— Eu disse, dividas de pôquer são sagradas — ele
sussurra, sorrindo triunfantemente.
É inevitável, eu sorrio de volta. Seu rosto de criança
feliz é algo adorável de se ver. Dessa vez ele apenas sorri,
sem maldade ou malícia, como o sorriso de uma criança
deve ser.
— Rápido, vamos depressa — ele diz.
Olho ao meu redor, paredes douradas brilhantes,
quadros enormes com desenhos de pessoas desconhecidas
enchem as paredes. Cortinhas vermelhas e felpudas
emolduram as janelas de ouro e cristal.
Um tapete azul marinho feito de veludo acaricia
meus pés sujos, candelabros cintilantes brilham a cima de
nós, nunca havia visto um lugar tão luxuoso e bonito
assim em minha vida.
Passo a mão sobre a cortina macia, afundando os
dedos no tecido vermelho.
O lugar tem um cheiro bom, floral, provavelmente
pelas lindas flores espalhadas pela sala em jarras de cristal
delicadas. Posso ver um vaso grande, encostado a parede,
cheio de rosas vermelhas e apenas uma única rosa branca
no centro, explicando o cheiro embriagante que senti na
árvore.
Vejo meu pai em um quadro grande bem no meio
da sala. Ele está usando uma armadura prateada,
segurando um capacete com uma faixa de cabelos
arrepiados no centro, um sorriso triunfante estampado no
rosto. Ele parece feliz. Há um homem parado ao seu lado
na pintura. Eles são parecidos, o outro, no entanto é mais
velho, alguns poucos fios de cabelos brancos saem por
entre seus cabelos ruivos, seus olhos verdes parecem me
penetrar até a alma, enquanto observo a pintura feita a
mão.
— Conheça seu avó, princesa — Jack diz
sussurrando para mim.
É claro que é ele. É bonito, e não tem a aparência
de um velho avô, como eu tinha imaginado. Claro, se você
pode parar de envelhecer, por que razão iria fazê-lo? Ele
não parece um garoto jovem também, deve estar na faixa
dos quarenta e cinco anos. Imagino que deva ser parte do
respeito, talvez um rei com aparência muito jovem não
deva ser tão respeitado como um mais velho.
Não sei ao certo porque, mas um sorriso se forma
em meus lábios, talvez por pensar em tudo que
poderíamos ser se ele não tivesse se tornado essa criatura
odiosa e mesquinha que matou meus pais e está acabando
com esse mundo. Tudo poderia ser diferente.
Ignoro meus pensamentos, pois sonhar, imaginando
como poderia ter sido, não mudará nada. Volto minha
atenção para o cômodo.
A minha frente uma mesa prateada rodeada de
diamantes, uma almofada macia em cima, aconchegando a
maior espada que já vi, na verdade, é a única espada que vi
na vida, me refiro às espadas que já vi em livros ou em
filmes, ou então... Ah não importa.
É uma espada enorme, deve ter quase meu
tamanho, prateada e afiada, com um rubi vermelho sangue
esculpido em seu punhal.
Ela é linda, e ao mesmo tempo parece mortal, para
alguém que saiba como usá-la, é claro.
Aproximo-me para olhar mais de perto, o rubi
reflete, um pequeno brilho percorre seu comprimento
assim que boto meus olhos sobre ele. Por um instante,
enquanto mantenho meus olhos presos nele, é quase como
se o vermelho fosse realmente feito de sangue, parece
estar liquido ai dentro, se movimentando lentamente.
Ela parece me chamar.
Não resisto e a toco levemente com o dedo
contornando seu punhal.
Uma sensação de dormência percorre meu dedo,
para depois uma corrente elétrica pulsar dentro de mim.
Uma sensação de aconchego, ela me reconhece, gosta de
mim.
Não sei como explicar, eu posso ouvi-la dentro de
minha mente, não com palavras, mas com sensações.
Ela sabe quem eu sou e confia em mim.
— Komodo.
— O quê? — Jack pergunta confuso.
— É o nome dele — digo sem tirar os olhos da
espada.
— Como você sabe? — ele pergunta, os olhos
brilhando agora.
— Ele me disse! — digo sorrindo.
Não me pergunte como, eu apenas sei, como se um
sussurro surdo tivesse sido soprado em meus ouvidos, um
sussurro, como se eu mesma tivesse pensando as palavras,
mas não sou eu quem está fazendo isso. Não há explicação
lógica, assim como para tudo que anda acontecendo, sinto-
me conectada a espada de uma forma tão plena e solida
que é difícil traduzir em palavras.
Eu entendo a espada, é como se ela fizesse parte de
mim, como se sempre tivesse feito.
— Beleza, funcionou. Vamos cair fora daqui — ele
diz revirando os olhos, se apressando pela janela. — Anda,
pega esse negócio e vamos.
Jack pula pela janela, explodindo novamente no
pequeno dragão negro, despedaçando suas roupas pelo ar
no processo.
Estendo minha mão confiante, a espada parece ser
muito grande para alguém do meu tamanho conseguir
segurá-la, mas eu não tenho medo, sei que está tudo bem.
Ela me pertence agora.
Lentamente eu a empunho com a mão direita, leve
como uma pluma.
Sorrindo, corro até a janela onde Jack me espera.
Subo em suas costas, então nós mergulhamos no céu
novamente, parecendo quase invisíveis por entre a
escuridão que nos cerca.
Começo a sorrir freneticamente em suas costas.
Sinto a energia de Komodo por todo meu corpo, ele está
completo comigo agora, como se estivesse esperando por
isso há muito tempo.
O frio do vento já não me incomoda mais, na
verdade, nem me importo, estou feliz demais para me
importar. Sinto-me como se tivesse encontrado um velho
amigo, um bom velho amigo.
Voamos de volta rapidamente, o trajeto parece bem
menor agora, do que foi para chegarmos até o castelo.
Posso sentir a respiração ofegando de Jack, foi uma
viagem muito longa, sei que ele deve estar cansado.
Avisto David sentado na colinha a nossa frente,
quase um pontinho perdido em meio às árvores secas que
o rodeiam. Ele fica de pé sorrindo quando nos vê
chegando.
Levanto Komodo o mais alto que posso para que
ele veja que conseguimos.
A espada consegue brilhar forte, mesmo agora no
meio da noite, vejo seu sorriso se alargar cada vez mais.
Jack faz uma aterrissagem conturbada, por pouco
não caio de suas costas, me seguro em seu pescoço no
último minuto.
David já está ao meu lado me ajudando a descer.
— Vocês conseguiram. Não posso acreditar que
conseguiram — diz entre as risadas, me puxando para um
abraço apertado.
Jack volta a sua forma humana, sem se importar por
estar nu.
— Essa coisa pesa quinhentos quilos — ele está
sem fôlego.
David tira seu casado, o jogando para Jack, que o
pega no ar.
— Parece leve como o vento para mim — digo,
levantando a espada acima de minha cabeça.
— Como foi? Deu tudo certo?
— Exatamente como o combinado. Como eu disse
que seria— Jack fala, enquanto dobra as mangas do casaco
enorme que vai até seus joelhos.
— David, isso é incrível, a espada, eu posso sentir
ela dentro de mim, ela até fala comigo.
— Eu sei, eu me lembro bem dela, já vi seu pai a
usando muitas vezes — seus olhos estão presos em
Komodo.
— Se chama Komodo, eu soube no momento em
que o peguei nas mãos, ele gosta de mim — eu sorrio.
— Komodo... Faz tempo que não escuto esse nome.
— Pessoal, vamos embora daqui, está frio, e eu
estou morto. Lembram-se, criança pequena, voando, ida e
volta até o castelo, com uma garota nada leve e uma
espada esmagadora nas costas — Jack diz levantando as
mãos para o alto.
Voltamos para casa de Amélia com Komodo
enrolado numa manta.
Todos ficam fascinados por termos conseguido.
— Quem diria que ela iria mesmo funcionar —
Damião fala sorrindo.
— Posso segurá-la? — ele pergunta eufórico.
— Hm, não sei, acho que não é uma boa ideia —
digo a ele.
— Não, vai lá, deixe ele tentar.Você consegue —
Jack diz sorrindo.
— Tem certeza? — pergunto a Damião.
Ele acena com a cabeça, ansioso.
Coloco Komodo sobre a mesa de madeira da
cozinha. Damião se endireita, estufa o peito, fecha as mãos
na bainha de Komodo e tenta levantá-lo.
Ele faz força, seu rosto fica vermelho e ele solta
uma baforada de ar violenta com o esforço.
— Esse negócio pesa mais do que qualquer coisa
que eu já vi na vida — ele diz sem ar, desistindo de
levantar a espada.
Todos na sala dão risadas, mas Jack em especial
parece estar tendo um ataque de tanto que rir.
— Quase morri para trazer Melane com isso nas
costas, acho que só não me esmagou, pois ela o estava
segurando, deve ter dosado o peso, ou algo assim — Jack
diz ainda gargalhando.
— Engraçado — digo, pegando Komodo com a
mão direita sem um pingo de esforço. — Tão pesado
como uma agulha para mim.
Todos me olham sorrindo.
— E agora? — pergunto eufórica.
— Agora... Temos que reunir todos os rebeldes. O
pessoal do castelo saberá que você está de volta, quem
mais poderia levantar a espada? Eles sabem — David diz
me encarando.
Me deito com Komodo ao meu lado, ainda enrolado
na manta. Me sinto segura com ele por perto, sim eu
continuo dizendo ele, pois a espada é macho, é estranho de
dizer, tanto quanto de explicar, mas ele é. Sinto um pouco
de meu pai dentro de Komodo, como se ele de alguma
forma estivesse cuidando de mim.
Capítulo

7
Mascarada

Na manhã seguinte, acordo com um barulho alto


que surge do lado de fora. São murmúrios, as pessoas
estão falando, todos sabem que a espada sumiu do castelo.
A espada que não pode ser empunhada durante
dezesseis anos está desaparecida, o que significa apenas
uma coisa. A mestiça voltou.
Angélica entra pela porta eufórica.
— Todo mundo já sabe... Estão todos comentando
— ela diz apressadamente.
— Algumas pessoas estão com raiva, acham que
você devia ter voltado antes, e não ter esperando o lugar se
despedaçar para então aparecer. Outras estão frenéticas,
achando que finalmente seremos salvos — ela continua na
mesma euforia. — As coisas vão ficar feias agora, rei
Ariel deve mandar suas tropas para cá para vasculharem.
Ele não vai parar até encontrá-la.
— Temos que escondê-la, ao menos até podermos
reunir todos — David diz.
— Eu tenho uma ideia — Jack diz levantando o
dedo indicador.
— Chega de ideias, Jack, noite passada funcionou,
mas poderia ter sido um desastre — David diz serio.
— Não é arriscado. Tenho um plano — Jack diz
novamente.
— Então fale — Damião se apressa.
— Ela precisa ficar invisível. Aqui, com vocês, esse
é o primeiro lugar onde iram procurar. Ela tem que ficar
com alguém desconhecido, alguém discreto.
— Ele tem razão, ela não pode ficar com a gente —
Damião fala seriamente.
— Eu não vou deixá-la — David diz
tranquilamente balançando a cabeça, como se essa não
fosse uma alternativa.
— E mais uma coisa, essa cabeleira ruiva precisa
sumir — Jack diz apontando para minha cabeça.
A primeira coisa que surge em minha mente é ter a
cabeça raspada, tintura para cabelo é algo comum em meu
mundo, mas não acho que seja tão natural aqui, onde não
há eletricidade e as pessoas se vestem da mesma forma
que os figurantes dos filmes sobre a Távola Redonda.
Sei que sempre reclamo de meu cabelo bagunçado e
descontrolado, porém, a ideia de ficar sem meus cachos
não me agrada, mas estou disposta a raspá-los agora, caso
seja necessário.
— Não se preocupem, eu sei o que fazer. Esperem
por mim aqui, eu voltarei logo — o garotinho sai pela
porta saltitando e sorrindo.
— Eu odeio esse cara — David diz, o olhando sair
pela porta.
— Jack tem seus defeitos e pode ser trapaceiro às
vezes, mas ele ama esse lugar e está disposto a fazer tudo
para salvá-lo — Amélia diz calmamente. — Ele teve uma
vida difícil — ela completa.
— Sim, claro — David diz sinicamente.
— Você não sabe de tudo, querido. Às vezes as
pessoas formam uma máscara para tapar o que realmente
são.
Fico imaginando sobre o que Amélia está falando.
Jack tem uma máscara? O que ele esconde?
Poucos minutos depois, escuto o mesmo som
melodioso que escutei no primeiro dia aqui, são as fênix,
outra vez.
Olho pela pequena janela da sala e as vejo voando
pelo céu, enquanto cantam como se estivessem marcando
território.
— Elas estão vindo com mais frequência —
Damião diz, também olhando pela janela.
— O que elas estão esperando? — pergunto.
— O último de nossa espécie cair, ou então levar os
últimos com sigo, são criaturas odiosas que constroem
suas sociedades das cinzas de outras, mas não irão atacar
sem motivo.
Isso me alivia, cenas desses enormes pássaros
atacando essa aldeia já estavam se formando em minha
mente. Se isso acontecesse, não sei se iríamos aguentar,
não da forma em que esse povo está.

Depois de quase duas horas, Jack entra pela porta


da sala, trazendo um embrulho de tecido nas mãos.
— Demorou — Amélia fala, enquanto ele entra.
Ele está sorrindo quando puxa o tecido, revelando
uma pequena jaula de aço com um ser pequenino e
brilhante dentro.
— Uma fada! — Angélica cantarola fascinada.
— Você aprisionou uma fada, seu miserável? —
David diz nervoso.
— Não. Eu joguei por ela. Pôquer é uma dádiva,
meus queridos — ele diz sorrindo.
— Nenhum ser merece ser aprisionado e ser motivo
de aposta. Você não sabe com quem está mexendo, fadas
são serem vingativos — Davi diz olhando fixamente paro
o pequeno ser dentro da jaula.
Ela é linda, seus cabelos são de um branco
brilhante, deslizando até sua cintura, seus olhos são
grandes e negros, uma pele azulada que reluz mais que
fogo, asas prateadas aparecem por entre seus cabelos, asas
compridas, quase do seu tamanho, com pontas finas que se
curvavam para os lados.
Até hoje, tudo que sei sobre fadas se resume a pó de
pirim pim pim, e que nunca, mas nunca em sua vida você
deve dizer que não acredita nelas, pois se fizer isso, uma
fada irá cair mortinha em um canto do mundo. Parece que
estou errada sobre o que sei sobre elas, pois o olhar fixo e
gélido que a pequena fada dá para todos no cômodo, não
me soa nada amigável, é como se ela estivesse tentando
memorizar o rosto de cada um nesse lugar.
Ela me dá arrepios.
— Sei exatamente com quem estou me metendo.
Fadas podem não ser os seres mais amigáveis do mundo e
podem ser vingativas ao extremo, mas são honradas — ele
diz levantando a jaula para poder olhar diretamente nos
olhos da fada. — Eu não a prendi aqui, não há motivos
para rancor. Aço é o único material capaz de deter os
poderes de uma fada — ele olha para mim agora. —
Vamos ver então. Você me concede um desejo, coisa
pequena, e eu te liberto, combinado, fadinha? — Jack diz
encarando o pequenino ser.
Ela apenas acena afirmativamente com a cabeça.
— Preciso que faça com que os cabelos ruivos
dessa garota mudem de cor, pretos talvez, loiros, eu não
me importo você apenas tem que mandar esse ruivo
embora.
A fada olha em minha direção, volta os olhos para
Jack e acena novamente.
— Estamos de acordo? — ele pergunta a
encarando.
Mais uma vez ela acena.
— É uma promessa — ela diz com uma voz baixa e
melodiosa.
Com um aceno de cabeça Jack abre a pequena porta
da jaula, libertando a fada.
Colocando a mão do lado de fora, ela se impulsiona
e sai de dentro graciosamente.
Suas asas batendo mais rápido do que asas de beija-
flor, tão rápido que elas parecem não existir, é como se ela
apenas flutuasse no ar, sem a ajuda de nada, como mágica.
Ela voa até mim, parando em frente ao meu rosto.
— Os fios ruivos irão sumir, cabelos negros como a
noite em seu lugar irão surgir...
Sua voz ecoa por minha cabeça, como melodia
sendo derretida em meus ouvidos, meus cachos começam
a cair de minha cabeça, se dissolvendo em pó antes
mesmo de tocar o chão. Fios negros começam a crescer
em seu lugar, escuros, compridos e lisos, caindo por
minhas costas.
— O ruivo apenas irá voltar, quando dele a princesa
precisar...
Mais uma vez a melodia de sua doce voz ecoa por
minha mente, me deixando um tanto quando sonolenta.
— Eu não lhe devo mais nada agora — ela diz
olhando para Jack.
— E eu muito menos a você — ele diz piscando um
olho e acenando com a cabeça.
Com um pequeno aceno ela sai pela janela subindo
tão alto no céu que torna-se impossível de se ver.
Passo as mãos receosas em meus lindos e sedosos
cabelos escuros, eles deslizam facilmente por entre meus
dedos, algo totalmente novo do que antes, quando meus
dedos ficavam presos em cachos indomáveis.
Eu sorrio.
— Fiquei bonita?
— Você sempre é bonita, mas eu preferia antes —
David diz me avaliando.
— Ah! Quem se importa? Você não pode mais ser
reconhecida, querida. É isso — Jack diz, enquanto me olha
entediado.
— Ótimo trabalho, Jack. Isso vai facilitar muito as
coisas Damião diz.
— Eu posso tocar? — Angélica pergunta, já com as
mãos acariciando meus fios negros.
— Claro. Eles não são macios? — pergunto entre
risadas.
— E agora? É isso? Não tem como saberem que
sou eu — falo triunfante.
— Não tão rápido, eles podem desconfiar, e
também tem essa espada enorme com a gente — Amélia
aponta para Komodo.
Pego a espada e sinto sua energia passar por mim.
— Ele não gostou do cabelo — digo gargalhando.
— Melane não pode mais ficar aqui, está arriscado
demais — David diz pensativo.
— Me esconderei com ela pela floresta.
— Oh povinho! Que floresta meu bem? Aquelas
árvores são só pele e osso.
A parte da floresta que ainda tem vida fica perto do
castelo, onde eles te pegariam facilmente — Jack fala
abanando as mãos para o céu.
— Que outra ideia você tem, moleque?
— Não se iluda, David, não sou um menino, estou
apenas preso no corpo de um — ele sorri, da mesma forma
maliciosa de sempre.
— Não se preocupem, crianças, Jack está aqui para
ajudar — diz e se vira para a porta.
— Que outra criatura vai capturar dessa vez? –—
David grita antes que ele saia.
— Você nem faz ideia.
Todos na sala se olham, a mesma expressão
preocupada no rosto, mas ninguém diz nada.

A noite chega rapidamente, não tão fria quanto as


anteriores, mas tão escura quanto.
Jack ainda não voltou, e começo a me perguntar se
ele irá voltar. Estou em minha cama improvisada
acariciando Komodo como se fosse um animal de
estimação, quando a parede de cortinha se move apenas
uns centímetros para o lado.
— Mel? Está acordada?—é a voz de David
sussurrando.
— Sim, estou — digo puxando mais a cortina,
agora podendo ver seus lindos olhos bem próximos a mim.
— Está com sono?
— Não. Quase não tenho tido sono esses dias.
— Quer ver uma coisa? — ele pergunta com os
olhos brilhando.
Aceno com a cabeça, levantando-me
cuidadosamente para não acordar Angélica.
Coloco um casaco fino por cima da camisola e saio
pela porta segurando a mão de David.
— Aonde vamos? — pergunto animada.
— para terra dos sonhos... Jack não é o único com
favores pendentes — ele diz sorrindo.
— Terra dos sonhos?
— Você verá quando chegarmos — é tudo o que
ele diz.
— Vamos andando até aquele lado, me transformo
e vamos voando, o caminho é um pouco longo para ir
andando.
— Eu posso me transformar em um dragão
também? — pergunto animada, ainda não tinha pensando
nisso. Eu posso soltar chamas azuis e falar com espadas
mágicas, porque não ser um dragão também?
— Não, Mel, tem que ser um puro sangue para
transformação dar certo.
— Ah — digo desanimada.
— Ei, quem precisa ser um dragão, quando pode
ser uma mestiça poderosa que todos querem matar? — ele
diz sorrindo largamente para mim.
Eu rio junto.
— Ah, David, eu tinha me esquecido... Quando eu
voltar para Terra, o tempo em Ninho de Fogo passa da
mesma forma que lá?
— Voltar, não sei quando faremos isso — ele
parece com o pensamento longe.— Mas sim, Mel, sinto
muito, os dias aqui passam da mesma forma que na Terra.
— Ah, por um instante pensei que poderia ser como
em ―Nárnia‖ — digo me achando muito boba agora.
— Eu tenho mais perguntas.
— Mas é claro que você tem.
— Como os homens dragões surgiram? Quer dizer,
como eles começaram a se transformar? — é uma
pergunta que não tinha me passado pela cabeça, até esse
momento.
— Bem, seria a mesma coisa se eu te perguntasse
como o ser humano surgiu.
— É, existem algumas teorias para isso, evolução,
religiosas, muitas teorias.
— Nada muito exato, mas existem algumas lendas
que o povo conta, tem uma que minha mãe me contava
quando era pequeno.
— Então me conte — digo virando o olhar em sua
direção, atenta.
— Não é nada demais, algumas pessoas dizem que
um homem chamado Nicolos quando tinha 13 anos
encontrou um filhote de dragão, sem pais, era apenas um
bebê sozinho, morrendo de fome. Na época existiam
dragões que destruíam vilas inteiras em um piscar de
olhos, todos sabiam que quando se encontra um dragão a
única coisa a se fazer é matá-lo. Mas não foi isso que
Nicolos fez, ele cuidou e alimentou o pequeno bichinho,
tudo isso sem dizer nada a ninguém. Deixou o animal
escondido numa caverna e todos o alimentava. Anos se
passaram, o menino e o dragão criaram laços inseparáveis,
laços mais fortes do que os de irmãos de sangue, muito
além disso. Diz à lenda que dragões são as criaturas mais
difíceis de ganhar a confiança, mas uma vez que a tem a
terá por toda eternidade.
Num dia qualquer, alguém da aldeia descobriu
sobre o segredo de Nicolos, todos se revoltaram, e num ato
de desespero e medo, foram atrás do traidor e do monstro.
Não é fácil matar um dragão, de jeito nenhum, mas
como ele faria tudo pela proteção de Nicolos, se deu por
vencido e deixou-se ser morto.
Pouparam a vida do homem, já que a besta não
existia mais.
Nicolos deitou-se ao lado do corpo de seu amigo
naquela noite, não chorou, nenhuma única lágrima, mas a
dor que crescia em seus olhos era de amedrontar a
qualquer um.
Na manhã seguinte ele tomou uma decisão, que
poderia causar repulso ou estranhamento em outros, mas
para ele aquilo tinha um significado, e ele precisava fazer.
Não foi uma tarefa simples, a pele de um dragão é a
armadura mais poderosa e resistente que pode existir, não
foi por esse motivo que ele a queria, não, era algo maior.
Com muito esforço, perseverança e motivação, ele aos
poucos, dia após dia, conseguiu separar a pele do animal.
Com suas próprias mãos fez uma armadura a qual
prometeu sempre vestir para simbolizar seu amigo, que
não poderia mais estar ao seu lado, mas que viveria para
sempre em sua memória e seu coração.
Ele mesmo não imaginava o que havia acabado de
fazer, pois naquela mesma noite, quando vestido com sua
armadura feita da pele de seu companheiro, enquanto
olhava as estrelas, algo inesperado aconteceu. A ligação
entre os dois era tão grande, seus laços tão inquebráveis,
algo assim dificilmente se acaba com a morte. A pele do
dragão ganhou vida, se fundindo com a pele de Nicolos,
cada fibra de armadura se juntando ao seu corpo, os
tornando um só. Em uma explosão, sua pequena forma
humana se transfigura, dando espaço ao grande dragão que
um dia ele chamou de amigo.
Nicolos não se vingou do povo da aldeia, seu
coração era puro demais para tal ato, ao invés disso ele os
ensinou que nem tudo é da forma que parece ser, e nem
toda besta é na verdade um monstro.
Depois disso nenhum dragão inocente sofreu nas
mãos dos humanos.
E foi isso, dizem que depois, os filhos que Nicolos
podiam se transformar em dragões, e os filhos deles
também, e assim por diante.
— Nossa! — digo com os olhos brilhando,
enquanto David me observa sem expressão, como se já
tivesse escutado e contado essa história um bilhão de
vezes.
— É claro, isso é só uma história que o povo conta
— diz levantando os ombros.
— Você não acredita?
— Talvez...
— Eu acredito! — porque não acreditar? Faz todo
sentido, ao menos para mim, estou em um mundo mágico
agora, é difícil as coisas não fazerem sentido, vendo por
esse lado. E acredito que quando se tem laços tão fortes
com alguém, a morte é apenas um estágio, dificilmente
será o fim.
Ele sorri balançando levemente a cabeça.
— Sinto sua falta — diz sem me olhar.
— Estou aqui — apertão sua mão.
— Dos dias tranquilos na Terra, sinto falta de
passar mais tempo com você — ele vira o rosto em minha
direção.
— Eu também — digo com um sorriso fraco.
— Quando tudo isso acabar, prometo que irei te
compensar.
Dou risada.
— Me compensar? Como?
— Ainda não sei, mas vou pensar em algo até lá —
me responde sorrindo.
Chegamos a um local um tanto afastado da casa de
Amélia.
David tira suas roupas quando não estou olhando e
se transforma no dragão cinza com escamas azuis
brilhantes.
Ele levanta uma pata, onde eu me apoio para poder
subir em suas costas.
Estou pegando o jeito da coisa agora, seus dois
chifres são mais fáceis de segurar quando não estamos
sendo perseguidos.
Com um salto estamos no céu, entre as nuvens
escuras da noite fechada.
O vento hoje é refrescante, tudo tão tranquilo daqui,
nenhum som lá de baixo, apenas paz.
Quase não dá para enxergar nada daqui de cima,
apenas o vento em meu rosto, e a armadura quente da pele
de David, é fácil imaginar que nada do que aconteceu foi
real, daqui posso até pesar que tudo não passa de um
sonho e que logo irei acordar. Os devaneios somem
rapidamente de minha mente, quando depois de voarmos
por um tempo não muito longo, chegamos a uma clareira
numa parte da floresta.
As árvores aqui também estão destruídas e secas,
mas tem algo diferente.
Depois de descer de suas costas, ele se transforma
em humano de novo.Tapo os olhos e lhe jogo as roupas
que vim segurando durante a viagem.
Depois de se trocar, ele pega minha mão
novamente, e começamos a caminhar.
— O que viemos fazer aqui? — pergunto curiosa.
— Eu queria lhe dar um presente — ele diz me
olhando.
Andamos poucos passos, ainda de mãos dadas,
parando em frente a uma sequoia gigante, a única que
ainda tem folhas presas em seus galhos, folhas verdes e
saudáveis por todos os lados, algumas flores também
florescem por entre os galhos, flores azuis e rosas. Existe
grama, verde e fresca, formando um circulo apenas onde a
árvore está situada. Olhando para o céu vejo estrelas
brilhantes apenas no local onde a árvore se encontra.
— O que é isso? — digo admirada demais com a
beleza desse lugar.
— Eu disse, Jack não é o único que tem favores
pendentes — ele me olha de forma misteriosa. — Uma
vez, quando era criança, salvei uma fada de uma
armadilha de aço. Ela me agradeceu e me concedeu um
desenho. Eu não o usei até hoje.
De frente para árvore enorme, David eleva seus
olhos para o alto e diz em um tom de voz bem alto.
— Eu tenho um favor a cobrar.
Alguns segundos depois vejo luzes cintilando por
dentro do tronco, como se ele tivesse sua própria luz
interna que reluz para todo os lados.
Todas as cores em uma só, eu vejo rosa, azul,
amarelo, verde e branco, tudo junto por dentro do casco da
árvore e por entre as folhas agora.
Fadas de todos os tipos e cores saem por entre as
folhas e nos avaliam. Todas lindas, brilhantes e formosas.
Posso ver ao lado direito da árvore, bem acima daquela
linda flor azul, a fada de cabelos brancos sentada em um
dos galhos finos do alto.
Eu sorrio em sua direção, mas tudo o que recebo de
volta é seu olhar gélido.
— Meu nome é David Agalion estou aqui para
cobrar um favor feito há quase 300 anos atrás — ele diz
calmamente.
Uma fada de cabelos verdes desce por entre os
galhos, parando em nossa frente.
Ela tem olhos amarelos e asas douradas, que para
mim parecem ser feitas de ouro.
— Creio que eu lhe deva um favor. Uma promessa
feita para um garotinho há muito tempo atrás — ela diz,
sua voz doce e aveludada.
— Desejo ver alguém de outro mundo, alguém que
já se foi... Isso é possível? — ele pergunta sem tirar os
olhos dela.
— Tudo é possível. Apenas pense na pessoa
desejada, imagine como se ainda estivesse entre nós — ela
continua tranquilamente. — Das lembranças mais
profundas surgirá, aquele que logo novamente partirá. —
as palavras da fada ecoam ao nosso redor, penetrando
minha mente, quase me deixando zonza.
Primeiro nada acontece, então algo começa a
brilhar, acendendo, como uma vela num lugar muito
escuro. Apenas uma chama pequena que começa a crescer.
A chama se acende, iluminando o lugar a nossa
frente.
Meus pais, minha mãe com seus cabelos castanhos
ondulados caindo sobre os ombros, olhos grandes e
dourados e um sorriso carinhoso no rosto. Meu pai com
seus cachos ruivos desordenados na cabeça, olhos verdes
como os meus, sorrindo ao me ver.
Estendo as mãos para tocá-los e eles fazem o
mesmo, no entanto, nada acontece, é como se uma rajada
de vento passasse correndo por mim, gelando todo meu
corpo no processo.
Eles me olham tristemente, depois colocamos as
mãos próximas, sem realmente encostar, eu quase posso
senti-los agora.
— Eu sinto tanto a falta de vocês — digo
fracamente.
Minha mãe sorri. Tranquilidade, é isso o que sinto.
Meu pai olha sorrindo para David, por apenas um
segundo, antes de voltar o olhar em minha direção.
Posso ver David sorrindo também.
— E aí, camarada? — ele diz encarando meu pai.
Eles apenas ficam lá, olhando para mim sorrindo
carinhosamente.
Não sei por que, mas eles não podem falar, deve ser
alguma lei de fadas ou algo parecido, eu não me importo.
Só de poder vê-los, isso já é bom demais.
Não sei dizer quanto tempo ficamos assim, parados,
quietos, apenas olhando uns aos outros, imaginando como
poderia ter sido, como as coisas deveriam ter sido.
Então da mesma forma que vieram, eles se vão,
deixando somente a floresta escura novamente.
Só agora percebo que tenho lágrimas escorrendo
pelo rosto.
— O favor está pago. Não lhe devo mais nada.
Com um aceno de cabeça a fada se recolhe para
dentro da árvore, levando todas as outras consigo.
Fico paralisada na escuridão da noite, apenas com a
mão de David fechada sobre a minha, me impedindo de
desmoronar.
— Você está bem? — ele pergunta preocupado.
Faço que sim com a cabeça.
— Mel, eu não fiz isso para você ficar triste, eu
queria lhe dar um presente, a oportunidade de ao menos os
ver... Nem que fosse apenas por uns instantes — ele fala
agoniado, sua voz ficando apenas um pouco mais rouca
que o normal, como sempre acontece quando fica nervoso.
— Não é isso — digo enxugando a última lágrima
de meus olhos. — Foi a coisa mais maravilhosa que
alguém já fez por mim.
Ele me olha sorrindo, apertando ainda mais sua
mão sobre a minha.
Andamos em silêncio até a clareira, onde ele se
transforma outra vez em dragão, subo em suas costas da
mesma forma que antes, usando sua pata como apoio.
Voamos de volta para casa de Amélia, parando
apenas alguns quarteirões de distância.
Desço com facilidade de suas costas, e caminho
lentamente até a beirada de um pequeno morro de terra
batida, enquanto espero ele se trocar.
O vento aqui é fresco, meus cabelos esvoaçados
fazem cócegas em meu rosto conforme mexo minha
cabeça, isso normalmente teria me irritado, mas não hoje,
não agora.
— Esta cansada? — ele pergunta se sentando ao
meu lado.
— Não. Estou feliz.
— Era tudo que eu queria — ele sorri para mim,
seus cabelos negros também se esvoaçam por todas as
direções, os olhos turquesa acesos agora, como se
tivessem sua própria fonte de luz particular, apenas com a
lua nos iluminando e seu rosto de uma alguma forma, mais
perfeito do que já é.
Estamos tão perto, joelhos se tocando. Eu o olho
fixamente, captando cada centímetro de seu rosto,
querendo capturar esse instante em minha memória, esses
olhos, tão lindos, tão familiares, tão David. Ele pega
minha mão entre as sua, mexe seus dedos contra os meus
por meio segundo, se inclina e me beija.
Tranquilidade. Sinto sua respiração calma em meu
rosto, seus lábios gentilmente contra os meus, tão doce.
Sua mão desliza para trás de meu pescoço, me puxando
para mais perto enquanto me beija lentamente, como se eu
fosse feita de cristal e qualquer movimento brusco pudesse
me quebrar em um milhão de pedaços.
É como um por do sol quente depois de uma noite
tempestuosa.
É quase como estar em casa novamente.
Capítulo
8
Surpresas

Amanheceu e eu ainda não dormi, as lembranças da


noite passada
flutuam por minha cabeça.
Ver meus pais foi algo tão maravilhoso, nunca em
minha vida imaginei que isso seria possível de acontecer.
Foi uma noite perfeita, com um final perfeito.
David, não consigo dizer seu nome ou pensar nele
sem imaginar seus lábios em minha mente e a forma como
eles ficaram pressionados contra os meus.
Foi meu primeiro beijo. Teve aquela vez aos sete
anos quando uma garota me desafiou a beijar aquele
garoto, Toby, o fedorento, eu não podia parecer fraca
então o beijei, mas eu não conto isso como primeiro beijo,
não é assim que primeiros beijos devem ser.
Então, oficialmente meu primeiro beijo foi com
David.
É estranho também, nunca havia pensando nele
dessa forma, eu o acho lindo, é claro, quem não acha? Mas
ele sempre foi meu amigo, o irmão que eu nunca tive.
Mas agora, depois que tudo isso aconteceu, não
consigo pensar em David e na palavra irmão, elas não
combinam mais Ele é mais que isso, talvez fosse isso que
devia ter acontecido, afinal. Talvez ficar juntos fosse o
mais certo a ser feito. Eu estou muito bem com isso.
Angélica começa a se mover ao meu lado na cama,
se virando para me olhar.
Ela parece aborrecida hoje.
— Como foi a noite? — ela pergunta rabugenta.
Sorrio ao lembrar novamente do beijo, ignorando
seu mau - humor.
— Foi boa — figo ainda sorrindo.
— Que bom!
Me levanto, seguindo o cheiro de café.
David está à mesa com Amélia e Damião, com
xícaras fumegantes nas mãos.
Ele me olha diretamente nos olhos no momento em
que me aproximo da mesa. Sinto meu rosto queimar
imediatamente.
Ele sorri perante minhas bochechas, que agora
devem estar num tom forte de vermelho tomate.
— Jack ainda não apareceu — Amélia diz com os
lábios em sua xícara de café.
David da uma risadinha sínica por entre os lábios.
— Ele pode estar com problemas? — pergunto me
preocupando verdadeiramente.
Jack pode não ser o tipo de pessoa que todos
esperam que ele seja, mas ele tem me ajudado muito, e de
certa forma, eu gosto daquele garoto.
— Não, Jack sabe se virar sozinho — David diz.
Angélica se aproxima para pegar um pouco de café,
ela ainda está rabugenta e com uma carranca no rosto.
Ela olha fixamente para David, enquanto despeja
seu café na xícara com raiva.
— O quê? — ele pergunta levantando os ombros,
sem saber o que se passa.
— Nada! — ela diz com um sorriso falso e sai pela
porta.
Isso me pareceu uma cena de ciúmes? Eu acho que
sim. Será que Angélica é apaixonada por David? Essa
ceninha diz que sim. Talvez ela tenha me visto sair no
meio da noite com ele ontem e tomou suas próprias
conclusões.
Não é algo que eu irei me preocupar agora, talvez
depois.
Agora eu só quero curtir a sensação gostosa e o frio
na barriga que sinto toda vez que me lembro de ontem à
noite.
Minha calma e sensação de borboletas no estomago
não duram muito tempo, do nada um forte barulho estoura
do lado de fora. Corremos todos para janela para ver o que
é.
Soldados do rei, umas poucas dezenas deles,
vasculhando as casas, destruindo e derrubando pessoas.
Angélica entra correndo pela porta.
— Eles chegaram... Vieram pegar Melane — ela
diz desesperada.
Meu coração dispara, meus olhos procuram
automaticamente por David ao meu lado.
— Vai dar tudo certo, Mel. Confia em mim? —ele
pergunta me encarando.
Faço que sim com a cabeça.
Ele acena de volta.
— Pegue Komodo — ele diz apontando para
espada.
Eu o pego, ainda embrulhado numa manta.
— Você precisa sair daqui agora está bem? Eu
encontro você depois, mas agora você tem que ir, se
misture com as pessoas e aja naturalmente.
— Pode fazer isso? — ele pergunta com as duas
mãos em meu rosto.
— Sim — não tenho certeza se posso, mas é tudo
que tenho no momento.
Ele me beija rapidamente e carinhosamente nos
lábios.
— Te vejo depois — diz sorrindo, tentando
esconder o desespero por trás de seus olhos.
Saio pela porta dos fundos da casa e tento me
misturar entre a multidão assustada.
Os soldados estão em um circulo agora, suas
armaduras prateadas brilhando sobre a luz do sol. Eles
carregam lanças, espadas e escudos com um formato
redondo, um grande dragão vermelho desenhado no centro
de cada escudo.
— Quem manter a mestiça sobre proteção, pagará
com a própria vida como punição. Entreguem a garota e
tudo ficará bem — um dos soldados diz.
— A escolha é de vocês, uma morte ou centenas?
— outro soldado, o mais forte e mais alto diz dessa vez.
Continuo caminhando normalmente por entre as
pessoas, posso sentir a energia de Komodo em minhas
mãos, ele quer lutar, precisa me proteger.
É quando os soldados começam a invadir mais
casas, derrubando portas e pessoas que ficam no caminho.
Não posso mais aguentar. Minhas mãos tremem,
tenho que fazer alguma coisa.
Olhando fixamente para manta em minhas mãos, os
soldados do rei destruindo mais casas a minha procura.
Começo a desembrulhar Komodo, que se agita por dentro
de antecipação.
— Você está louca? Embrulhe esse negócio de
novo.
Uma voz grave e muito rouca sussurra em meu
ouvido, um homem alto, ombros largos e fortes, pele
muito pálida, com pequenas sardas no nariz, os cabelos
dourados caídos na testa desorganizadamente e os olhos
mais negros que já vi.
É como se eu já o conhecesse, algo na forma
familiar como me olha, ou então como seus cabelos loiros
ficam mais bagunçados sobre a testa por causa do vento
quente e forte que sopra sobre nós.
Não pode ser, mas... É ele.
— Jack? — pergunto sussurrando, os olhos
arregalados.
Ele sorri abertamente para mim.
— Fiquei bonito, não é? — pergunta sorrindo ainda
mais.
— Como? Você...
— Sim, sim eu explico para você depois, vamos
sair daqui agora.
Segurando minha mão, Jack me leva por um
caminho, nos distânciando da aldeia e da destruição
causada pelos soldados.
— Não posso deixar esses homens fazerem isso
com aquelas pessoas — digo desolada.
— Você pode, você é mais valiosa viva para eles do
que morta. Eles irão pagar por isso, Melane. Não seja
burra.
Andamos por entre a floresta seca e sem vida por
um bom tempo. A escuridão começava a nos envolver
agora.
Depois de tanto andar, chegamos a uma caverna
escondida no meio de folhas secas e galhos.
O lugar não parece abandonado, está mais para
escondido do que abandonado.
— Pode entrar, não tem ratos. Eu sempre venho
aqui — Jack diz entrando primeiro.
Depois que entro, ele fecha a entrada com uma
pedra por dentro tapando os buracos dos lados com mais
folhas secas.
Há cobertores por aqui, papeis rabiscados com
desenhos infantis grudados nas paredes cinzentas.
— Encontrei esse lugar quando fugia de meu pai
quando ele queria me dar uma surra por ter feito algo
errado — ele diz sorrindo.
Depois se senta acendendo um lampião que está ao
seu lado.
— Você está adulto — digo deslumbrada.
— Sim. É muito estranho ser alto, estou
acostumado a ser baixo e... Menor — ele diz enquanto
aperta os músculos do braço fazendo uma carranca.
Dou uma risada.
— Onde você esteve? — pergunto ainda sorrindo.
— Crescendo? Não é tão rápido como você
imagina, e dói...Muito. Crescer aos poucos é uma coisa,
crescer dez anos em uma noite é bem diferente. Isso doeu
para caramba, tenho arrepios só de lembrar — ele diz com
o olhar distante se perdendo por um segundo.
— Porque você cresceu?
—Uma pessoa desconhecida, discreta? Não era isso
que estávamos precisando? — ele diz como se fosse a
coisa mais obvia.
— Você cresceu para me ajudar?
Ele apenas dá um levantar de ombros.
— Não vamos ser sentimentais agora.
Eu sempre soube, Jack não é o miserável trapaceiro
que todos pensam que ele é.
— Como se sente adulto?
— Estranho. Ainda sou eu mesmo, mas diferente.
Sabe, tem coisas que você só consegue depois que fica
mais velho, não importa quantos anos eu tinha, em um
corpo de garoto eu sempre iria pensar como um garoto.
— Porque todas as crianças crescem, menos uma.
— Como é que é?
— Nada, é só uma frase de Matthew Barrie, ele
escreveu um de meus livros preferidos. Conta à história de
um garoto que nunca cresce.
— E por que ele nunca cresce? — Jack pergunta
curioso.
— Ele não queria ser adulto, não queria perder
todas as coisas boas de quando se é criança, assim como
você.
— Não era por isso que eu não crescia — ele diz
parecendo um pouco irritado.
— Então, por quê?
— Tenho meus motivos, mas isso não importa.
— Você é esquisito, sabia?
— Disse à garota que conversa com uma espada —
ele levanta umas de suas sobrancelhas.
— Belo ponto, mas você foi criança por quase
trezentos e anos e do nada resolve crescer?
Ele demora uns segundos antes de responder.
— Não quero mais viver assim, com nosso mundo
destruído, quero que tudo volte ao normal.
— Nem tudo, você não é mais criança.
— Faz um bom tempo que deixei de ser, qual a
diferença?
— Obrigada — não entendo Jack, mas ele está
ajudando, desde que o vi pela primeira vez, ele só ajudou.
— Não faço só por você — ele diz carrancudo.
— De qualquer forma, seja qual for o motivo, está
me ajudando — ele levanta os olhos em minha direção,
mas não diz nada. — E agora? O que faremos? —
pergunto um segundo depois.
— Esperamos. Pela manhã voltamos para aldeia.
Adormeço rapidamente essa noite, como se todo o
cansaço desses dias tivesse me atingido de uma só vez.
Durmo bem, como não tenho dormindo há muito tempo.
Jack

Fico sério, assim que saiu pela porta da casa de


Amélia. O quê me espera essa noite não será nada
agradável, e também sei que estarei quebrando uma
promessa, mas fazer isso é mais importante agora. É só
isso que importa, não irei me ligar aos fatos, é dizem, os
meios justificam os fins, e meu fim é muito valioso para
mim, espero por isso há quase trezentos anos. Tem que dar
certo, eu farei dar certo.
Ando silenciosamente, passando por toda aldeia,
vendo as pessoas nas ruas, a maioria me conhece, ao
menos pensam que me conhecem. Ninguém sabe quem
realmente sou, nem meus motivos por ser assim.
Passo rapidamente pelas árvores ressecadas até
chegar à caverna, onde tenho ficado todo esse tempo.
Fecho a porta com a pedra e me sento no chão.
Hoje tudo irá mudar, depois de todos esses anos, a
minha chance chegou e não posso desperdiçá-la. Respiro
fundo, penso uma última vez nos motivos para estar
fazendo isso, e então deixo acontecer.
A dor me atinge de uma só vez, assim como os
gritos que saem cortados de minha garganta, a sorte é que
estou longe de todos, ninguém pode me ouvir daqui.
Sinto cada parte de mim, cada célula se
multiplicando, a pele esticando, assim como os músculos
crescendo, é uma dor sem fim e isso é apenas o começo,
tenho o resto do dia pela frente. Contorço-me no chão, me
debatendo como um louco. Nunca senti nada parecido
com isso, crescer dez anos é mais difícil do que eu
imaginei que seria, mas é preciso.
Não sei quantas horas se passaram desde que
cheguei aqui, vi que o sol se pôs e que nasceu novamente,
mas finalmente terminei, estou dez anos mais velhos.
Acho que a dor deve ser a punição por ter me mantido
criança todo esse tempo. Não importa mais, já passou. Foi
difícil, nunca senti tanta dor em minha vida, nem em meus
pensamentos, nunca poderia imaginar algo tão doloroso
quanto foi, mas é isso, já foi.
Ainda estou sentado no chão, olhando meus
membros crescidos. Estico a mão bem aberta em frente ao
meu rosto, quase quatro vezes maior do que era, abro e
fecho os dedos lentamente. Se alguém me pudesse ver
agora, pensaria que sou um idiota por estar agindo dessa
forma, mas não há ninguém por perto, então... Quem se
importa?
Coloco as roupas de meu pai, que já havia deixado
aqui mais cedo, elas me servem perfeitamente, como se
tivessem sido feitas para mim.
Pego o espelho que um dia foi de minha mãe e vejo
meu reflexo, agora muito mudado. Sorrio, estou parecido
com meu pai, sempre fui, mas agora a semelhança se
multiplicou.
Saio pela porta a escondendo novamente com as
folhas antes de ir embora.
Vou direto para aldeia, desejando que não tenha
demorado tempo demais na transformação.
Escuto os gritos antes mesmo de poder avistar o
povoado, eles já estão aqui. Corro por entre as ruas
devastadas, e para minha surpresa minhas pernas longas
são muito mais rápidas do que as antigas, eu sou muito
mais rápido agora.
Posso ver os soldados destruindo tudo pela frente, e
a multidão de pessoas desesperadas.
Melane, tenho que achá-la, antes que eles a achem
primeiro.
É quando a vejo, os cabelos agora negros caídos por
suas costas, me aproximo rapidamente e para minha
felicidade, bem no instante em que essa idiota tenta retirar
Komodo da manta em que está escondido.
— Você está louca? Embrulhe esse negócio de
novo — digo, e embrulho a espada novamente.
— Jack? — ela pergunta com olhos arregalados.
Sorriu antes de responder.
— Fiquei bonito não é?
— Como? Você...
— Sim, sim eu explico para você depois, vamos
sair daqui agora.
Seguro sua mão, aparentemente muito menor que a
minha e a puxo para fora da aldeia. Eles não podem
capturá-la.
— Não posso deixar esses homens fazerem isso
com aquelas pessoas.
E eu não posso deixar que eles a levem, preciso
dela. Tenho esperado por isso minha vida toda, nada vai
me impedir agora.
Tento pensar rápido, dizer algo que possa fazer
sentido para que ela me siga.
— Você pode, você é mais valiosa viva para eles do
que morta. Eles irão pagar por isso, Melane. Não seja
burra.
Ando com ela ainda segurando minha mão, até
chegarmos a minha caverna.
— Pode entrar, não tem ratos. Eu sempre venho
aqui.
Na verdade costumava ter ratos, antigamente é
claro, mas agora...
Depois de fechar a porta com a pedra, a observo,
enquanto avalia o lugar.
— Encontrei esse lugar quando fugia de meu pai
quando ele queria me dar uma surra por ter feito algo
errado.
Eu sorrio com a lembrança, as poucas que tenho
dele são felizes, até mesmo as de quando tentava me dar
uma surra. Sinto falta dele.
Sento-me no chão acendendo o lampião e me
obrigo a tirar as lembranças da memória, preciso estar
focado no que tenho que fazer essa noite.
— Você está adulto.
— Sim. É muito estranho ser alto, estou
acostumado a ser baixo e... Menor — digo enquanto
aperto meu braço, eu gostava mais de como eram antes.
Ele sorri de uma forma engraçada.
— Onde você esteve?
— Crescendo? Não é tão rápido como você
imagina, e dói...Muito.
Crescer aos poucos é uma coisa, crescer dez anos
em uma noite é bem diferente. Isso doeu para caramba,
tenho arrepios só de lembrar — na verdade, tento não
lembrar disso, nunca mais quero lembrar da noite passada.
— Porque você cresceu?
Por que... Desculpe, não posso lhe dizer, isso é
particular demais, e você, de todas as pessoas no mundo, é
a que não pode saber disso.
A sorte é que estou preparado para isso, perguntas
das quais não sei a resposta, ou então não posso respondê-
las.
— Uma pessoa desconhecida, discreta? Não era
isso que estávamos precisando? —falo como se fosse a
coisa mais obvia, é a resposta que ela quer ouvir, então é o
que eu digo.
— Você cresceu para me ajudar?
— Não vamos ser sentimentais agora — Apenas
dou um levantar de ombros.
Ela me olha de uma forma estranha, seus olhos
verdes parecem brilhar, desvio o olhar, não querendo mais
ver dessa cena.
— Como se sente adulto?
— Estranho. Ainda sou eu mesmo, mas diferente.
Sabe, tem coisas que você só consegue depois que fica
mais velho, não importa quantos anos eu tinha. Em um
corpo de garoto eu sempre iria pensar como um garoto.
— Você é esquisito, sabia?
— Disse à garota que conversa com uma espada.
— Belo ponto, mas você foi criança por quase
trezentos anos e do nada resolve crescer?
Essa garota não se cansa de perguntas? Já disse que
fiz isso por ela, não é o bastante? Não é o que ela queria
ouvir?
— Não quero mais viver assim, com nosso mundo
destruído, quero que tudo volte ao normal.
— Nem tudo, você não é mais criança.
— Faz um bom tempo que deixei de ser, qual a
diferença? — ninguém entende isso? Sou um homem, me
tornei um há muito tempo, só estava preso no corpo de um
menino.
— Obrigada — ela diz com os olhos baixos. Essas
palavras causam uma sensação estranha dentro de mim,
mas eu a ignoro.
— Não faço só por você — acho que essa é a
primeira vez que digo a verdade hoje.
— De qualquer forma, seja qual for o motivo, está
me ajudando — ela está fazendo com que as coisas fiquem
mais difíceis para mim. Só quero que ela durma de uma
vez.
— E agora? O que faremos?
Porque você não se cala e para de me fazer
perguntas? Durma logo, para que eu possa fazer o que
preciso.
— Esperamos. Pela manhã voltamos para aldeia.

Finalmente, ela adormece. Sinto como se tivesse


levado uma eternidade até isso acontecer.
Respiro fundo uma vez antes de me aproximar.
Ela está deitada, usando uma coberta como
travesseiro, as duas mãos estão juntas debaixo de sua
bochecha direta, como as crianças pequenas dormem. Seus
cabelos estão caídos em seu rosto, ficando ainda mais
pretos pelo contraste com sua pele muito branca. Ela nem
é tão bonita assim, olhe só, o nariz dela é até
desproporcional! Olho por mais uns segundos, a quem
estou tentando enganar? Ela é perfeita. E como eu não
reparei nisso antes? Aquela vez quando falei sobre isso,
dizendo que ela era bonita, quando fomos comprar pão,
não foi de verdade, apenas estava tentando ganhar sua
confiança, as mulheres gostam desse tipo de coisa, não é?
Isso está sendo mais difícil do que imaginei, na
verdade, nunca imaginei que seria difícil, não pelo motivo
que preciso fazê-lo.
Sento-me ao seu lado, e fico a observando, por
horas e horas.
Eu sei, esse tem sido o propósito de minha vida, é
esse o motivo de não ter crescido, sei o quanto quero isso,
mas... Como pensei que poderia fazer quando a hora
chegasse? É diferente, agora, olhando para ela. Esse não
sou eu, não sou assim, não quero ser esse homem.
Depois de uma eternidade, levanto-me e saio pela
porta.
Não posso fazer isso.
Capítulo
9
Despedaçada
Melane

O sol não bate em meu rosto essa manhã, e não sou


acordada por nenhum barulho. Abro os olhos
vagarosamente.
Jack está sentado bem próximo a mim, descascando
laranjas.
Sento-me espreguiçando-me.
— Só temos laranjas, e não pense que foi fácil
consegui-las — diz, enquanto me passando uma das frutas.
— Não tem problema, gosto de laranjas. Eu dormi
bem está noite.
Ele apenas me olha de lado.
— E você? Tudo bem? Essa foi sua primeira noite
como adulto.
— É, foi tudo muito bem, sim — ele diz sem me
olhar.
Comemos nossas laranjas e então voltamos para
nossa longa caminhada de volta para aldeia.
Ainda mantenho Komodo escondido na manta,
enquanto andamos.
É estranho estar com Jack assim, alto, pareço tão
pequena perto dele agora, e ainda por cima ele está quieto,
quieto demais, fazendo com que tudo fique mais estranho.
— O que foi? — pergunto virando o rosto em sua
direção.
— Han? O quê? — ele pergunta, parecendo
distraído.
— Você não disse uma palavra.
— Estou apenas um pouco cansado — é tudo o que
ele diz.
Deve ser pela mudança, ter crescido tanto em uma
noite, deve ser cansativo, então não pergunto mais nada,
continuamos nosso caminho, calados.
Sinto um aperto no coração, assim que avisto a
aldeia, tudo está destruído, quero dizer, mais do que já
estava antes, algumas pessoas vasculham por entre as
ruínas e destroços por algo que possa ser útil.
A poeira parece ser ainda maior agora, me fazendo
tossir enquanto ando pelas ruas.
Crianças chorando, casas quebradas. Eu sinto
cheiro de morte no ar, com certeza houve mortes por aqui
ontem, e tudo por minha causa.
Seguro firma na mão de Jack, sinto ele se enrijecer
com o toque, mas não se afasta, ao invés disso, ele me
olha com o canto do olho de vez ou outra.
— A culpa é minha — sussurro por fim.
— Não, Melane, a culpa não é sua. Você não fez
isso, foram aqueles miseráveis — ele diz sem me olhar.
— Eu podia ter evitado tudo isso. Lembra-se? Uma
morte ou centenas?
— Não houve centenas de mortes.
— Como você sabe? E não importa. Alguém
morreu por minha causa.
Continuamos andando em meio a devastação, até
que vejo um rosto conhecido.
— Damião! — digo correndo em sua direção.
— Querida, você está bem? Pensamos que tivesse
sido capturada — ele me abraça.
— Estou bem. Onde está todo mundo?
— Jack? — Damião diz olhando para figura alta e
musculosa ao meu lado.
— E aí? —Jack se esforça num sorriso torto.
— Você cresceu!
— Sim, é uma longa história, fiz isso por um bem
maior e bla bla bla.
— Onde estão todos? — repito.
Amélia se aproxima com Angélica que tem
lágrimas nos olhos.
— Onde está David? — pergunto nervosa e aflita.
— Melane, ele foi capturado ontem — Damião diz
com os olhos brilhando, com as lágrimas ameaçando sair.
E é aqui que meu mundo desaba.
Capturado. Ele não está mais aqui. E tudo isso é
minha culpa.
Se eu tivesse ficado e lutado, ao menos ele estaria
aqui, e ninguém além de mim teria morrido.
Mortes em vão, sem sentido algum.
Porque estou sendo tão protegida?
Eu deveria salvá-los e não ao contrario. Todo
mundo se preocupa unicamente com minha segurança.
Minha avó Mary, Lucas, as pessoas da aldeia e
agora David.
Quantos mais terão que morrer para eu possa
continuar vivendo?
— Ele não morreu, Melane. — Jack diz pela
milésima vez. — Eles precisam dele vivo. Você não
entende? É uma armadilha para encontrarem você — ele
diz me encarando.
Estamos na casa de Amélia agora, ou no que restou
dela, mesas e cadeiras estão quebradas e reviradas pela
sala, as cortinhas rasgadas, roupas espalhadas, tudo
destruído.
Angélica me olha gelidamente do canto onde está
sentada no chão. Ela não disse nada, mas ela me culpa, eu
sei. Seu olhar não pode mentir, ela sente algo por David e
me culpa por ele ter sido capturado.
O pior é que ela não está errada, eu também me
culpo, mas eu vou encontrá-lo.
— Se ele está vivo eu vou achá-lo — digo
firmemente.
Recuso-me a chorar. Não mais lágrimas, não mais a
garotinha chorona que eu já fui um dia, eu não tenho esse
luxo agora. Fraqueza se tornou algo intolerável em minha
vida.
— Oh, meu pai! Garota, você não ouviu nem uma
palavra do que eu disse? —Jack pergunta levantando as
mãos para o alto.
— É. Uma. Armadilha — ele diz calmamente,
dando ênfase em casa silaba. — Sabem que você tem
vivido com David na Terra, ele é o mais próximo que você
tem aqui. Sabem que você irá tentar salvá-lo, e eles estarão
te esperando. Diga-me, como irá salvá-lo sendo capturada
e morta?
— Eu não pretendo ir sozinha. Vamos juntar todos
os rebeldes, o mais rápido possível.
— É, agora sim. Quanto mais gente melhor — ele
me encarando.
Murmúrios altos começam a se formar do lado de
fora.
Saio apressada, achando que podem ser mais
soldados.
Não são soldados, são as pessoas da aldeia, eles
estão nervosos, aflitos e com medo.
— A culpa é dela!
— Temos que achar a mestiça e entregá-la.
— Se ela tivesse se entregado nada disso teria
acontecido.
— A culpa é dela.
— Achem a mestiça.
Todos eles gritam euforicamente.
Estão com raiva de mim. Querem me matar. Eles
iriam me matar se soubessem que estou bem aqui.
— Vocês não sabem sobre o que falam, seus
ignorantes... Ela veio para salvar vocês! — Jack diz em
um grito rouco, com sua nova voz adulta.
— Nos salvar? Eu vejo apenas morte por aqui, meu
amigo — um homem velho diz.
— Então é isso, irão entregar a garota que está
predestinada a salvar vocês ao homem em que os colocou
nessa situação? — ele fala com um sorriso sínico. — Que
povinho, em? Não têm vergonha nessas caras sujas?
Talvez vocês mereçam essa desgraça sobre suas cabeças
— grita com ódio.
— Jack, vamos sair daqui — digo puxando seu
braço. — Eles estão sofrendo, pessoas mudam em
momentos de dor. Eles não são pessoas más — digo,
tentando acalmá-lo.
— Ela fica comigo essa noite. É mais seguro para
vocês e para ela — Jack diz a Damião enquanto saímos
para a floresta morta.
Ele apenas acena com a cabeça, sem dizer uma
palavra.
Andamos apressadamente por entre as pessoas, nos
afastando rapidamente.
Jack resmunga o caminho todo Eu apenas fico
calada.
David, seu nome ecoa por minha cabeça o tempo
todo, enquanto a imagem das pessoas gritando meu nome
com ódio se misturam em meus pensamentos.
Aquelas pessoas querem me matar. Como vou
conquistar meu exercito se meu povo quer me ver morta?
Estou me saindo uma bela princesa. Nem ao menos
me apresentei e já sou odiada por todos. O pior de tudo é
que David está lá, preso. Pode estar sendo torturado, ou
coisa pior.

Uma chuva forte cai do lado de fora da caverna de


Jack. Fico imaginado as pessoas que tiveram as casas
destruídas, como elas estão?
Não tenho feito muita coisa por meu povo desde
que cheguei, tudo que tenho feito é me esconder, mas não
quero mais fazer isso, preciso tomar alguma iniciativa.
Jack está quieto, sentado vendo o fogo queimar no
lampião a sua frente.
— Você está bem? — pergunto, quanto me sento
mais perto.
Ele me olha de cima, sinto sua respiração quente
em meu rosto.
— Acho que nunca estive bem, Mel.
Ele me chamou de Mel, apenas David me chama
assim. Sinto um pouco de ciúmes na hora em que as
palavras saem de sua boca, mas percebo que gosto de
como o som fica em seus lábios. Ele tem permissão para
me chamar assim também.
— Eu nunca estive bem. Sou um homem de quase
trezentos anos, que passou toda sua vida no corpo de um
menino. Eu sou um covarde.
— Você não é um covarde! Você é uma das
pessoas mais corajosas que eu conheço. Você me ajudou a
passar pelo portal, nos ajudou a andar pela aldeia, se
arriscou me levando para o castelo para pegar Komodo,
jogou pôquer com homens três vezes maiores que seu
tamanho, ganhou a fada que mudou meu cabelo, você
cresceu dez anos em uma noite, sentiu a dor disso sozinho
nessa caverna. Você tem me salvado desde o dia em que
me conheceu. Tudo isso no corpo de um menino. para
mim está bem longe de ser um covarde — digo passando o
braço por sua cintura, o abraçando.
Jack pode ser diferente das outras pessoas, ele fala
tudo o quer e quando quer, assim como uma criança, acho
que essa parte não era apenas por ele estar no corpo de um
menino, isso é algo somente dele, pode até parecer um
defeito, mas é isso que eu mais gosto nele.
Jack me abraça de volta, descansando o queixo
sobre minha cabeça, ele é quente e aconchegante também.
Seu coração bate forte em seu peito, sinto seus músculos
rígidos em meu rosto e sem que eu perceba as lágrimas
começam a sair de meus olhos, escorrendo por meu
minhas bochechas e parando em sua camisa.
Quando dou por mim, há uma rodela molhada no
tecido onde meu rosto se encosta.
Jack não diz nada, apenas me aperta mais forte
contra seu peito.
Tudo está um caos, David não está mais aqui e um
aperto estranho esmaga meu coração essa noite. Eu choro
silenciosamente, se não fossem pelas lágrimas não teria
como saber que estou chorando.
De alguma forma me sinto melhor com seus braços
ao meu redor, é como acalmar minha dor insuportável para
algo tolerável.
Fico muito tempo pensando sozinha, no povo da
aldeia que teve que morrer por mim, em David que está
preso com aquelas pessoas, em angélica e seu olhar gélido
sobre mim. Me agarro mais firmemente em Jack, sentindo
seu coração bater em minha bochecha, seu perfume
adocicado tomando conta de mim.
Adormeço em seus braços essa noite.
Sei que estou sonhando, de que outra forma estaria
em minha cama confortável, lendo um livro numa tarde de
sábado tranquila?
Eu me lembro desse dia. É de manhã, minha avó
está na cozinha, fazendo torta de limão, minha favorita,
enquanto estou no quarto, deitada de barriga para baixo na
cama, concentrada lendo um livro. Meu cabelo está preso
no alto da cabeça num coque desordenado, e ainda estou
vestindo meu pijama branco de bolinhas vermelhas, estou
usando meias de pares diferentes também, uma é rosa e a
outra é preta, meu rosto está limpo, sem maquiagem
alguma. O sol está bem fraquinho entrando suavemente
pela janela aberta, assim como o vento fresco, uma manhã
perfeita para ler um bom livro de romance, do jeito que eu
gosto. É em horas como essas que agradeço por morarmos
tão longe da cidade, e não termos um único vizinho
sequer.
Lady, a poodle com pelos tingidos de azul está
deitada ao meu lado no tapete. Ela é a cachorrinha de
Caroline, estou com ela por esse final de semana, pois sua
dona teve que viajar de última hora com seus pais e não
tinha ninguém com quem a deixar.
Eu gosto de cachorros, então não me importo de
ficar com Lady, ela é bem comportada, nunca me dá
trabalho... Até agora.
Tudo está tranquilo, até que Lady do nada resolve
sair correndo pela porta, ela nunca fez esse tipo de coisa
antes.
Me levanto rapidamente e desço a escadas correndo
atrás dela.
— Lady, pare, me espere.
— O que houve? — minha avó pergunta lá da
cozinha.
— Não se preocupe, é apenas Lady tendo um
ataque de pelanca, eu vou pegá-la.
Lady desce as escadas feito um raio, e sai pela porta
aberta da sala.
Corro em sua direção, escorregando em minhas
meias no caminho, por pouco não caio de cara no chão da
varanda.
— Lady, pare agora! — grito, mas ela finge não me
ouvir.
Ela corre em direção à casa vazia do vizinho. Vejo
uma moto muito grande preta e prata parada em frente à
velha casa abandonada. Então, no exato momento em que
Lady tenta entrar pela abertura do cachorro, um homem
abre a porta e a pega no colo de uma só vez.
Ele tem cabelos negros que caem bagunçados em
sua testa, fazendo um enorme contraste com sua pele
bronzeada. Assim que levanta o rosto em minha direção,
posso ver olhos azuis demais, brilhando de uma forma que
nunca imaginei ser possível. Ele sorri para mim, enquanto
acaricia as orelhas de Lady.
— Ela é sua? — pergunta, vindo em minha direção.
— Não. Quer dizer, sim. Ela é de uma amiga, mas
estou cuidando dela — digo sem jeito, cruzando os braços
no peito.
Ele acena ainda sorrindo.
— Eu sou David, acabei de me mudar para cá.
— Não sabia que essa casa estava em condições de
ser habitada — é tudo que vem em minha mente.
— Não está, mas vou fazer com que fique — ele
diz olhando para a casa.
Aceno com a cabeça.
— E seu nome é?
— Melane.
Lady se debate no colo de David, querendo ir ao
chão.
— Ah, me dê ela, antes que corra novamente —
digo me aproximando e a pegando de seu colo.
— A gente conversa em casa, Lady — digo
olhando feio para ela, enquanto aponto o dedo indicador
em seu rosto.
David, ri mais ainda.
— Bem, eu já vou indo — digo, já me virando para
entrar.
— Mel? — ele me chama antes que me afaste.
Me viro, olhando em seus olhos, essa é a primeira
vez que alguém me chama assim.
— Gostei das meias — ele sorri de uma forma
engraçada, enquanto aponta pras minhas meias diferentes.
Apenas sorrio de volta, sem poder conter as
bochechas que provavelmente estão muito vermelhas, e
ando em passos largos para dentro de casa. Me esqueci de
como estou vestida.
Foi assim que o conheci.
Depois desse dia, passamos a nos ver sempre, e aos
poucos ele se tornou meu único e melhor amigo.
Capítulo
10
Por um fio

Acordo pela manhã com as lembranças do sonho


vivas em minha mente. O dia que o conheci parece tão
longe, num tempo tão distante, meu maior medo é que
esse tempo nunca volte, que eu nunca mais volte a vê-lo.
Se David estivesse aqui, ele diria que temos que nos
manter positivos, ele acredita em mim, me disse que sou
mais forte do que penso, é hora de provar a mim mesma
que ele está certo sobre isso.
Tento me virar e percebo que ainda estou nos
braços de Jack. Seus lábios estão entreabertos e ele respira
tranquilamente.
Olhando para ele agora, enquanto dorme, posso
jurar que as feições infantis estão de volta ao seu rosto. Ele
é bonito, sempre foi.
Mesmo quando criança, com o rosto angelical e
olhos redondos, agora é diferente, uma beleza mais
máscula. Ele ainda é o Jack que conheço, tem os mesmo
cabelos loiros desarrumados sobre a testa, os mesmos
olhos negros hipnotizantes, os longos cílios dourados, as
adoráveis sardas no nariz e a pele tão pálida quanto a
minha.
Olhos sonolentos se abrem no momento em que
estou avaliando suas feições bem de perto. Finjo estar
acordando também, tento parecer o mais sonolenta
possível.
Ele parece não notar, senta-se espreguiçando ao
meu lado.
— Vamos até a aldeia agora? — pergunto, já
ficando de pé.
— Não. É melhor ficarmos por aqui hoje — ele diz
me puxando com a mão, me fazendo sentar novamente no
chão. — Vamos esperar a poeira baixar, aquelas pessoas
estão com raiva de você agora, Mel.
— Eu não me importo, Jack. Não posso viver mais
assim, se mais gente morrer enquanto eu me escondo... Eu
não posso aguentar.
— Você precisa estar preparada antes. Não seja
idiota.
— Como vou me preparar se estou trancada numa
caverna? E não me chame de idiota.
— Então não aja como uma. Vamos treinar.
— Treinar?
Ele acena, me olhando.
Jack se levanta, e começa a procurar algo num dos
cantos bagunçados da caverna. Ele tira uma espada do
meio de uns cobertores, ela é pequena, bem menor que a
minha, mas parece muito afiada.
— É um sabre. Meu pai me deu quando fiz oito
anos, e me ensinou a usar —diz, olhando para a espada
em suas mãos.
— Onde está seu pai agora?
— Ele morreu quando eu ainda era pequeno...
Quero dizer, pequeno mesmo, eu tinha dez anos — ele diz
ainda olhando para espada, seus olhos melancólicos.
— Oh! Sinto muito Jack.
— Não tem problema, já faz muito tempo.
Sem mais uma palavra ele sai em direção a floresta
morta.
— Anda, moleza — diz, virando o rosto para mim.
Me apresso, indo atrás dele, levando Komodo
comigo.
Olhando para mim ele se posiciona, levantando sua
espada em minha direção.
— Vamos ver o que você pode fazer — ele diz
sorrindo.
— Eu não posso fazer nada, Jack. Eu nunca lutei
com alguém em toda minha vida, até então tudo que sei é
que se alguém quiser lutar comigo, eu provavelmente
apanharei até a morte — digo revirando os olhos.
Komodo começa a tremer em minhas mãos, ele
quer lutar.
Confiança. É essa palavra que ecoa em minha
mente, como se eu mesma tivesse pensando isso, mas não
sendo eu. Ele quer que eu confie nele. Komodo se
manifesta de formas estranhas dentro de minha mente.
Minha mão se eleva a minha frente, como se tivesse
vida própria.
Jack sorri para mim, o mesmo sorriso travesso de
quando ele era um menino.
Tento ficar na mesma posição que ele, em guarda.
Como se tivesse feito isso milhões de vezes antes, me
aproximo de Jack com um passo largo acertando em cheio
sua espada com Komodo.
Ele se assusta, recuando um passo, os olhos bem
abertos agora, mas o sorriso continua em seus lábios.
Jack vem para cima de mim, tentando me acertar.
Rapidamente desvio de seu golpe com um simples girar de
braço.
Avanço em sua direção, girando Komodo em
minhas mãos, ele parece ser feito de plumas agora, leve
como o ar a meu redor.
Um sorriso brota lentamente em meus lábios, Jack
faz uma investida em minha direção. Me defendo
facilmente, parando Komodo no ar, o aço de nossas
espadas rangem quando se separam e faíscas caem pelo
chão.
Freneticamente começo a golpear seu sabre com
investidas potentes e firmes.
Jack desvia com dificuldade. O suor começa a
escorrer por seu pescoço, onde a maioria de seus cabelos
já está grudada.
Não consigo parar, Komodo me proporciona uma
energia tão poderosa, eu me sinto tão forte. É como se eu
soubesse exatamente cada golpe que Jack fará a seguir,
como se eu tivesse experiência em lutar. Komodo e eu nos
fundindo em um só, ele sabe tudo que eu sei e eu sei tudo
que ele sabe, cada luta que ele passou, cada carne que
rasgou ou perfurou, cada golpe desviado e cada batalha
vencida.
Sinto as mãos de meu pai por baixo das minhas, me
guiando, é bom demais.
Com um giro no ar golpeio a espada de Jack, a
jogando vários metros de distância, parando com Komodo
em seu pescoço, enquanto ele cai no chão.
Seus olhos se arregalam, e seu sorriso se alarga.
— Ainda bem que você nunca tinha feito isso antes,
não é? — ele diz sorrindo ainda mais.
Seguro cômodo com a mão esquerda, estendendo a
outra para levantar Jack.
— Onde aprendeu a lutar assim, princesa?
— Nunca lutei em toda minha vida, eu já disse. É
Komodo, ele sabe o que fazer por mim.
— Sorte sua então — ele diz sorrindo, enquanto
olha para Komodo.

Jack descasca o resto das laranjas que ainda temos,


nós as comemos dentro da caverna, enquanto ele recupera
o fôlego.
— Então, acha que estou preparada agora? —
pergunto, enquanto mastigo um pedaço de laranja.
— Você fez um bom trabalho, mas não sei se é o
suficiente ainda — ele diz sem me olhar.
— Não quero esperar mais, Jack. David está com
eles e mais pessoas podem morrer se eu não aparecer. Já
sabemos, Komodo luta por mim.
— Me de mais um tempo, Mel, vamos treinar mais
para ter certeza que você pode lutar — agora ele está me
olhando.
— Não tenho tempo de treinar, quanto tempo mais
acha que posso ficar fazendo isso?
— Só mais hoje então. Treinaremos hoje, amanhã
de manhã vamos para aldeia e você se mostra para o povo.
— Eu não sei Jack.
— David iria querer que você estivesse preparada
— diz, me olhando bem nos olhos.
— Isso é jogo sujo!
— Quem disse que eu jogo limpo? — seus olhos
travessos aparecem novamente.
Concordo em ficar presa aqui mais um dia, mas
apenas um dia, amanhã irei para aldeia e todos saberão
que eu estou aqui.
Quero ajudá-los, sinto necessidade de fazer alguma
coisa por essa gente, minha gente.
Depois de comermos passo a tarde toda lutando
com Jack.
Ele é um bom lutador, sua espada é pequena e fina,
mas tenho certeza que ele fará um bom estrago se lutar de
verdade com alguém.
Seus braços fortes a manejam com plena confiança,
ele luta com graça, quase como se estivesse brincando.
Talvez tenha sido assim que ele tenha aprendido a lutar,
brincando.
Ganho todas às vezes, apena nas últimas quando já
não aguento mais ficar em pé, é que Jack vence.
Não aguento mais dar investidas com espadas por
hoje, embora Komodo seja tão leve quanto o ar, agora ele
não me parece mais tão leve assim. Minhas pernas doem e
meus braços também, estou tão cansada que poderia
dormir agora mesmo. Komodo luta por mim, ele ainda
quer lutar, mas ele precisa de meus braços e agora, meus
braços não podem mais funcionar.
Jack parece cansado também, não tanto quanto eu,
mas ainda sim, cansado.
— Vou procurar comida, você precisa recuperar as
forças.
— Aonde você vai?
— Não vou muito longe, consigo algo rápido e
volto. Você pode dormir enquanto isso, parece bem
cansada.
Não me parece uma má ideia, estou morta em pé e
faminta também.
— Durma, quando você acordar terá algo gostoso
preparado. Jack sabe fazer pratos deliciosos — ele diz
sorrindo convencido.
— Está bem.
Entro na caverna enquanto Jack coloca a pedra
fechando a entrada.
Em poucos segundos, caio no nosso. Não tenho
sonhos, apenas durmo, cansada demais para sonhar.
Não sei quanto tempo se passou desde que
adormeci, ainda está claro lá fora, posso ver pelas frestas
da pedra.
Jack não está aqui, então significa que não deve ter
passado muito tempo, por isso ainda estou exausta, acho
que vou continuar deitada e dormir de novo, meus braços
ainda doem.
É quando escuto um ruído do lado de fora. O
barulho não está longe, posso ouvir pés se arrastando pelo
chão de terra.
— Jack? — digo sussurrando para mim mesma.
O som para, mas continua um segundo depois.
Me levanto, colocando o rosto próximo a pedra
tapando a entrada da caverna.
Não escuto mais nada, talvez eu apenas tenha
imaginado.
Relutantemente arrasto a pedra com esforço para
poder dar uma espiada, preciso comprovar que realmente
não é nada, depois de tudo que me aconteceu, não é de se
espantar que eu esteja um pouco paranoica.
Não vejo nada, mas ainda está de dia, quase no fim
do dia, mas ainda sim.
Saio vagarosamente, olhando tudo ao meu redor,
aperto os olhos tentando enxergar o mais longe possível,
mas aparentemente não tem ninguém aqui. Sorrio aliviada,
e penso realmente estar ficando paranoica.
Mas então, apenas um segundo depois, eu os vejo
descendo das árvores.
Criaturas asquerosas, não muito altas, devem ter
pouco mais de um metro de altura, barrigas e pés enormes
sobe roupas esfarrapadas e imundas. Alguns têm cabelos
embaraçados e cheios de nós, quase se arrastando pelo
chão, outros possuem apenas alguns fios saindo de suas
cabeças grandes, pares de olhos escuros, narizes de bruxas
com verrugas saltadas nas pontas. Elas carregam armas
nas mãos, machados, espatas, punhais, e outras coisas que
nem faço ideia do que sejam, mas parecem afiadas e muito
perigosas.
Eles me olham quando chegam ao chão, me
inspecionam de cima a baixo. Não me parecem amigos.
Penso em Komodo, ele está jogado no chão da
caverna, perto de onde eu estava dormindo, não irei
conseguir pegá-lo a tempo.
As criaturas começam dando passos curtos,
silenciosamente em minha direção. Elas estão tão perto
que posso sentir o mau cheiro se impregnando em meu
nariz e pele, um cheiro tão terrível, que nem sei como
descrever, é insuportável.
Olho para Komodo jogado no chão, consigo sentir
sua energia sem ao menos o estar tocando, ele grita por
dentro querendo me proteger. Sinto meu coração
acelerando dentro de meu peito, sem saída, eles á minha
frente, as pedras á minha retaguarda.
Olho mais uma vez para Komodo, e então como se
meu desejo de tê-lo comigo estivesse se realizando, ele se
levanta, flutuando, vindo em minha direção, como num
passe de mágica. O pego no ar, segurando fortemente.
Ele sente meu medo, minha necessidade, é como se
meu desespero fizesse parte de seu desespero, ele precisa
estar comigo, minha mãe deve ter usado um feitiço muito
bom em Komodo. Ele me ama, manter-me segura é quase
como ar para quem precisa respirar. Agora com ele em
minhas mãos, me sinto mais confiante, mas ainda posso
sentir minhas pernas tremendo.
Meus braços ainda doem e eu continuo cansada,
mas me sinto viva agora. Komodo me passa a força que
preciso para lutar, com ele é como se meu medo e dor
fossem divididos em dois, diminuir a carga para que ela
possa ser mais fácil de suportar .
Me afasto da caverna, não posso ficar cercada por
paredes de pedra onde será fácil me encurralar.
Ando em passos curtos me mantendo o mais longe
possível das criaturas a minha frente. Algumas estão
sorrindo, dentes amarelados, totalmente encardidos em
seus rostos peludos.
Há umas cinquenta delas na minha frente, mas elas
são pequenas. Fico parada agora, de frente pras criaturas,
em guarda, então elas avançam de uma só vez, todas elas
ao mesmo tempo, correndo para cima de mim.
Acerto uma bem na cabeça, antes mesmo de se
aproximar, Komodo é bem cumprido e os pega com
facilidade.
Girando os braços numa velocidade que nem
mesmo eu sabia que era capaz, vou atingindo qualquer um
que se aproxime. Um deles gira seu machado atrás de
mim, mas me abaixo e consigo desviar, o machado atinge
o ser à frente de mim, bem em sua garganta.
Com a mão esquerda arranco a lança da mão de um
deles e atiro em um que está correndo para mim. Komodo
está concentrado, atingido a maioria no pescoço, sangue
espirra em meu rosto em cada golpe que dou, sinto meu
cabelo pegajoso em minha nuca.
Meus olhos ficam embaçados com a quantidade de
sangue que espirra quando decapito um dos monstrinhos
ainda no ar, quando ele salta tentando me acertar com um
punhal.
Sinto uma dor latejante na perna esquerda, sangue
jorra pela abertura de minha calça, onde o corte se
encontra. O monstro pequeno que me acertou sorri,
enquanto avança novamente. Com um grito o acerto bem
no coração o prensando no chão, girando rapidamente para
pegar os que vêm por minhas costas, mais deles começam
a aparecer por entre a floresta, eles surgem por todas as
partes.
Tento me afastar, recuando pelas folhas secas no
caminho, há muitos deles agora, por todos os lados.
Eles gritam para mim, balançando seus machados e
espadas em suas mãos.
Sinto Komodo tremer de fúria, permaneço em
minha posição, avaliando o perímetro da floresta.
Não há como lutar, eles são pequenos, mas são
muitos, centenas. Tento me concentrar, como fiz na casa
de Verônica, tento fazer com que o poder saia de mim,
mas parece impossível, sinto-me exausta. O desespero
começa a tomar conta de minha mente quando todas as
tentativas de fazer o poder sair falham. Talvez seja por
estar tão cansada, eu não sei, de que adianta ter algo assim
se ele não funciona quando preciso? Quando o uso demais,
desmaio, e quando estou cansada demais, ele não aparece?
Estou por minha conta e sozinha.
Sem ter alternativa aparente, saio correndo floresta
adentro, tropeçando em meus próprios pés no caminho.
Galhos raspam em meus braços e pernas, cortando
meu rosto enquanto tento afastá-los com as mãos
desesperada.
O sol está quase se pondo e a escuridão começa a
ganhar vida.
Eles gritam cada vez mais alto enquanto me
perseguem. Me atrevo a olhar para trás e os vejo correndo
tão rápido que logo que alcançarão. Alguns começam a
subir nas árvores ao meu redor, me perseguindo por entre
elas, saltando de galho em galho.
Meu coração disparado parece querer saltar de meu
peito a qualquer momento, minha respiração está forte, a
garganta seca, os olhos arregalados, enquanto forço meus
pés o máximo que posso para frente.
Um ruído ao meu lado tira minha atenção.
Uma das criaturas salta de uma árvore a minha
direta, giro meu braço automaticamente para o lado, o
acertando antes mesmo de chegar ao solo, Komodo grita
em minha mente, mais sangue espirra em meu rosto, posso
sentir o gosto enferrujado em meus lábios agora.
Não sei o que posso fazer, parar e enfrentá-los está
fora de cogitação, correr é a única saída, mas até quando?
Adrenalina me força a correr ainda mais rápido que as
criaturas atrás de mim, mas não sei por mais quanto tempo
irei aguentar.
Elas não desistem, continuam a me perseguir com
perseverança e gritos de euforia.
Fim de linha. Sinto as mãos tremendo quando
avisto o abismo onde termina a floresta, apenas alguns
metros mais. É isso, então me preparo para a batalha mais
uma vez, enquanto corro em direção ao buraco sem fim.
Respiro fundo, enquanto vou me aproximando cada
vez mais. Meu coração saindo pela boca, as pernas
bambas. Não posso vencer, sei disso, mas eu morrerei
tentando.
Obrigo meus pés a parar de correr no instante que
chego à beira do penhasco. Migalhas de terra e pequenas
pedras caem na imensidão, me provocando, mostrando
qual será meu destino.
Me viro, confiante, sentindo cada fibra de meu ser
em minhas mãos. Komodo emite toda sua energia através
de mim, sinto as mãos de meu pai novamente por baixo
das minhas.
As criaturas diminuem seus passos conforme se
aproximam, elas sorriem agora, dentes afiados e podres
aparecem por cima de seus lábios escuros. Vão chegando
mais perto, batendo suas armas levemente nas mãos
peludas enquanto me olham nos olhos.
Dou uma última olhada para o abismo atrás de
mim, um último vislumbre do que me espera.
E então não preciso mais pensar.
Um sorriso surge lentamente entre meus lábios,
enquanto recuo um passo, me jogando penhasco a baixo.

Sinto o ar penetrando meu corpo como se mil


espadas estivessem sendo enfiadas em mim, as veias
saltando de meus membros, os cabelos se esvoaçando
enlouquecidamente ao redor de meu rosto, a queda parece
não ter fim.
Num instante estou caindo, afundando na
imensidão escura a minha volta, e no outro estou voando.
Jack me pega no ar, aterrisso bruscamente em suas costas
de pele dura de dragão. Um lindo e enorme dragão preto,
três vezes maior que o dragão que era quando menino,
suas asas gigantes e esbranquiçadas dominando o ar a sua
volta.
Sinto meu coração bater novamente, uma sensação
de segurança tomando conta de mim. O ar volta
vagarosamente por meus pulmões agora. Ele me salvou,
mais uma vez.
Rapidamente Jack contorna o abismo, subindo até
onde as criaturas estão. Um rosnado sai de seu peito
quando ele os avista abaixo de nós.
Com um potente rugido, rajadas de fogo saem de
sua garganta, atingindo tudo que está abaixo. Árvores
secas pegando fogo rapidamente, enquanto as criaturas
correm desesperadas tentador escapar das chamas que os
consome.
Jack ainda não se dá por satisfeito, ele continua
soltando mais fogo a sua volta, até não ter sobrado mais
ninguém.
Sobrevoamos a área a procura de mais desses
monstrinhos, mas não encontramos nada. Jack aterrissa
onde o fogo já não pode mais nos alcançar, perto de sua
caverna.
Desço com dificuldade por entre suas escamas e
espinhos, mas consigo chegar até o chão sem me
machucar.
Uns segundos e ele está em sua forma humana de
novo. Fico de costas esperando ele se trocar. É quando
escutamos um pequeno barulho, como de um graveto se
quebrando bem ao nosso lado.
Uma daquelas criaturinhas está parada atrás de uma
árvore morta.
Jack se apressa, a segurando pela gola da roupa
imunda que está vestindo, a levantando do chão.
— Por que vocês nos atacaram? — ele pergunta
com uma voz que com certeza teria me dado medo se eu
estivesse no lugar da criatura.
O pequeno monstrinho gagueja ao tentar responder.
— Não me... Me machuque. Nós, na... Não
queríamos — ele diz com uma voz rouca, fina e asquerosa.
— Por que. Nos. Atacaram? — Jack repete, dando
ênfase em casa silaba.
— Fomos obrigados, nós não queríamos — ele
treme ao dizer.
— Quem os mandou fazer isso?
— O mestre, nunca o vimos. Obedecemos por
medo.
Ele treme descontroladamente agora, se eu não
tivesse sido atacada, até poderia sentir pena, mas não
sinto, nem mesmo um pouquinho, não sei como não o
mato eu mesma agora.
— Perdão... Nós não queríamos — ele continuava a
repetir.
— Suma daqui, e não volte mais. Da próxima vez
não terei misericórdia — Jack diz, o olhando bem de perto
nos olhos. Se fosse por mim, não o teria libertado, nem ao
menos pensaria duas vezes antes de matá-lo, ele não
pensou quando me atacou.
Jack o solta, o jogando no chão, o pequenino sai
correndo enlouquecidamente por entre as árvores secas, e
some de vista em poucos segundos.
Estou olhando a floresta, tentado avistar o
monstrinho, quando reparo num Jack nu ao meu lado
fazendo o mesmo que eu.
— Oh, meu Deus! —digo cobrindo os olhos.
— Por que o espanto? — ele diz, enquanto dá
risada.
Eu não respondo, apenas espero ele se trocar.
— Pronto, pode olhar.
— Onde você estava? — pergunto, socando seu
peito com toda a minha força.
O acerto duas vezes antes que ele segure minhas
mãos.
— Ei, não me bata, eu salvei sua vida, sua ingrata
— diz ainda me segurando.
— Você me deixou sozinha e esses monstrinhos
apareceram e me atacaram. Pensei que iria morrer — digo,
praticamente gritando, enquanto tento livrar minhas mãos.
— Desculpe. Fui procurar comida, esqueceu? Não
queria que você morresse de fome. Achei que estaria
segura aqui — diz me olhando nos olhos, levantando um
tom em sua voz.
— Segura? Olhe para mim! — grito, soltando meus
braços e fazendo sinal para os cortes em minhas pernas e
braços, fora o sangue por todos os lados.
Ele parece só agora ver o verdadeiro estado em que
me encontro, me olha dos pés a cabeça.
— Eu sinto muito — ele diz parecendo fraco. —
Você está bem? — pergunta se aproximando.
Respiro fundo, as lágrimas ameaçando sair, mas eu
consigo fazer com que fiquem dentro de meus olhos.
Aceno dizendo que sim com a cabeça.
Ele se aproxima agachando-se ao meu lado, levanta
os retalhos de minha calça rasgada observando os cortes
causados pela corrida na floresta e a espada de uma das
criaturas.
Jack passa os dedos levemente pelos ferimentos,
cortes e arranhões Sinto dor com seu toque leve, mas não
me movo.
Ele se levanta sem dizer uma palavra, agora
inspecionando meus braços, olhando cada pedacinho de
pele, sua mão se fecha em meu queixo levantando meu
rosto ensanguentado, está procurando por ferimentos que
possam ter por aqui também.
Depois de me estudar por uns minutos ele me puxa
para um abraço apertado. Seus braços fechados em meus
ombros, sua respiração quente em meu pescoço, eu posso
sentir seu coração agora muito acelerado.
— Eu nunca mais vou te deixar sozinha — ele diz
ainda me abraçando. — É uma promessa! — ele não me
solta ainda.
Fecho meus braços por sua cintura agora, afinal, ele
me salvou.
Nem estou brava com ele, estou elétrica, ainda pela
corrida, pela luta e adrenalina que passei, eu apenas
precisava gritar com alguém e Jack é o único por perto no
momento.
Estou feliz por ele estar aqui, e por ele ter me
salvado. Não sei o que teria acontecido se ele não tivesse
aparecido, provavelmente eu estaria morta agora.
— Desculpe por ter gritado — digo, ainda com os
braços ao redor de sua cintura.
Ele se livra de nosso abraço, mas mantém suas
mãos em meus ombros.
— Está doendo muito? — pergunta, avaliando
meus ferimentos uma vez mais com os olhos.
— Um pouco, não é nada — eu minto, está doendo
muito, mas não quero mais preocupações para cima de
mim. — O que eram aquelas coisas?
— Goblins — ele diz tranquilamente.
Minhas sobrancelhas arqueadas lhe mostram que eu
não sei o que isso significa.
— Criaturinhas feiosas e extremamente burras, no
entanto, são ótimos soldados e obedecem facilmente, pois
são manipuláveis demais.
— Você acha que foi meu avô que os mandou aqui?
— Provavelmente — ele diz com um levantar de
ombros.
Jack olha pela primeira vez a nossa volta, onde
algumas dúzias de goblins estão mortos espalhados pelo
chão. Estraçalhados, decapitados, com cortes fundos nos
pescoços e perfurações no lugar onde deveriam ficar seus
corações. Sangue espalhado por todas as direções,
Komodo pingando gostas ao meu lado. Eu pareço uma
assassina macabra saída diretamente de um filme de terror.
— Você fez um ótimo trabalho por aqui — diz com
um assobio longo.
Respiro profundamente, a cena faz meu estômago
embrulhar.
Me olhando mais uma vez ele diz.
— Precisamos limpar você.
— Por favor. O cheiro de sangue faz meu estomago
revirar.
— Tem um lago bem perto daqui, por aquele lado
— diz apontando para a esquerda.
— Tem um lago aqui? Por que você não foi pescar
uns peixes ao invés de ir procurar comida tão longe? —
pergunto, como se isso fosse a coisa mais obvia a se ter
feito.
— Porque aqui não tem peixes, espertinha. Lembra-
se? O feitiço destruiu quase tudo. Devem existir peixes nas
profundezas do lago, mas é impossível pescá-los.
— Ah! — é tudo o que digo.
Jack rasga um pedaço de sua própria blusa, tirando
uma tira de tecido, se abaixa até minha perna e a amarra
bem em cima de minha ferida.
Eu grito de dor na hora.
— Desculpe. Eu tinha que fazer — diz me pegando
no colo.
— Eu posso andar, serio — digo sem poder eu
mesma acreditar em minhas palavras.
— Ahan — ele diz sem se importar.
Seus braços fortes me acomodam perfeitamente.
Descanso minha cabeça em seu peito confortável, o
balançar de seus passos me dá sono. É tentador dormir
agora, a única coisa que me impede de fechar os olhos é a
dor latejante em minha perna, e ela é quem parece ganhar
essa batalha.
Tento não pensar na dor insuportável, é inevitável,
mas tento ao menos não focar meu pensamento nela.
— Você não tinha ido buscar comida? — digo,
escutando o roncar de meu estomago.
Ele suspira.
— Sim, encontrei um javali escondido um pouco
longe daqui, mas eu o deixei cair quando vi você
desmoronando do penhasco. A culpa é sua — ele me
encara com as sobrancelhas juntas.
— O que vamos comer agora? — minha barriga
ronca.
Ele olha ao redor mais uma vez e arqueia suas
sobrancelhas para mim.
— Goblins?
Minha bile ameaça sair apenas com o pensamento
grotesco de comer goblins.
— Você não está falando serio, não é? — pergunto
realmente indignada.
— Não tem mais nada por aqui, acredite. Fui ao
inferno para buscar aquele javali, Melane. Goblin assado
não deve ser tão ruim assim — diz com o olhar distante.
— Sem chance.
— Então fique com fome, eu comerei goblins hoje
— ele diz gargalhando alto
— Obrigada, mas prefiro morrer de fome.
Jack anda por mais um tempo comigo em seus
braços, até que chegamos num lago de cor escura, quase
cinzenta.
As águas parecem calmas aqui, não há ventos
também. Ele me coloca sentada em uma pedra próxima a
margem, lentamente afundo minhas pernas nas águas
geladas do lago. Primeiro sinto uma dor afiada, depois
alivio, o frio é quase como um anestésico.
Está anoitecendo e ficando escuro rapidamente.
— Vou acender uma fogueira, está bem? É melhor
correr o risco do que ficar no escuro por aqui. O lago pode
ser tão traiçoeiro quando o a floresta.
— Como assim?
— Não se preocupe, eu estou aqui.
É só o que ele diz, então se prontifica a juntar
gravetos caídos no chão para acender o fogo.
Fico na pedra com as pernas submersas na água.
Tiro o casaco ensanguentado, ficando com a camiseta de
baixo, o deixo de lado na pedra, enquanto pego água com
as mãos e lavo meu rosto.
O sangue parece seco e escuro agora. Preciso de um
pouco de esforço para limpá-lo e sei que meu rosto deve
estar avermelhado de tanto ter que esfregar.
Lavo meus braços, os mergulhando na água. O lago
está realmente frio, mas não me importo, qualquer coisa
para limpar o sangue de meu corpo.
Retiro minha perna da água gelada, e a dor volta
instantaneamente, a coloco de volta rapidamente e a
sensação de dormência retorna.
Dou uma olhada em Jack, agora terminando de
juntar os galhos.
Começo então a tentar limpar meu casaco. Parece
impossível limpar todo o sangue dele, está impregnado.
Desisto de limpá-lo o colocando de volta na pedra,
pego Komodo que está do meu lado e o mergulho também
para limpá-lo.
É quando eu a vejo.
Ela está bem próxima, apenas alguns metros da
pedra onde estou.
Somente a cabeça para fora da água, olhos grandes
me observando. Está escuro, mas a luz da lua parece tão
forte aqui que posso vê-la quase perfeitamente. Ficamos
nos olhando por uns segundos antes dela se aproximar
lentamente.
Ela se eleva mais um pouco sobre a água, agora
posso ver lindos cabelos loiros esverdeados sobre seus
ombros finos e pele perfeita de porcelana.
A ponta de uma longa causa verde folha surge,
submergindo atrás de sua cabeça.
Estamos quase lado a lado agora, eu sorrio para ela,
que me retribui timidamente o sorriso.
— Saia de perto dela. Anda, suma daqui sua
maldita — escuto os gritos de Jack se aproximando de
nós.
Os olhos da sereia se arregalam, antes dela saltar de
volta pras profundezas do lago gelado.
— Você está bem? —Jack diz ao meu lado,
segurando meu rosto com as duas mãos.
— Sim, eu estou. Ela não ia me machucar, por que
a assustou? — pergunto perplexa.
— Você não conhece sereias, Mel, não são como os
contos de fadas que você está acostumada. São traiçoeiras,
te afogam sem que você perceba.
— Não acho que ela iria me afogar, ela parecia...
Com medo.
— Acredite em mim, Melane, da próxima vez que
vir uma sereia, se afaste.
Aceno com a cabeça mesmo sem concordar com
ele. Não acho que ela iria me fazer mal, ela parecia doce,
na verdade.
É como se ela quisesse me ajudar.
— Deixe-me me ver sua perna — Jack diz a
retirando da água para olhá-la.
Uma careta se forma em meu rosto no exato
momento em que minha perna sai da água fria e
anestésica.
Vejo a testa de Jack franzir ao ver meu rosto
contorcido. Ele suspira uma vez.
— Está tão ruim assim?
— Parece que está inflamada. Devia ter veneno na
espada dele — diz sem tirar os olhos do ferimento que me
recuso a olhar. Nunca gostei de machucados, embora
sempre tenha convivido com eles, sou muito desastrada.
Rasgando mais um pedaço de sua camisa, ele faz
outro curativo improvisado. Junta minhas coisas e me
pega no colo novamente.
— Não vai apagar a fogueira antes de irmos?
— Não. Ela pode servir de distração para a que
faremos perto de casa.
Andamos no caminho escuro e silencioso com a
visão noturna de Jack.
Chegamos à caverna agora.
Ele me coloca no chão, próximo a pedra onde
encosto minha cabeça pesada.
A dor ainda continua, mas não quero que ele
perceba.
Rapidamente ele acende uma fogueira. Pega alguns
potes com ervas verdes dentro da caverna e espalha por
cima de minha perna ferida.
Arde no momento em que a pasta atinge minha
pele, mas depois refresca e alivia.
— O que tem nessa pasta?
Ele me olha pelo canto do olho.
— Você não vai querer saber...
E pela expressão em seu rosto, acho que ele está
certo sobre isso.
— Feche os olhos agora.
Eu obedeço. Porque sei o que está por vir. Apenas
escuto o barulho de sua espada cortando.
Continuou de olhos fechados por um tempo, até que
ele diz que é seguro olhar.
Um pedaço de carne está preso com um graveto
sobre a fogueira.
— Viu, não parece tão ruim agora não é? — ele diz
tentando sorrir.
Poderia não parecer se eu não soubesse do que se
trata aquele pedaço de carne, mas eu sei, globins
fedorentos.
Ele se senta ao meu lado, ficamos em silencio
esperando a carne ficar pronta.
— Doendo muito?
— Não — eu minto novamente
Ele me olha de uma forma estranha, como se
soubesse que estou mentindo.
Depois de uns minutos ele se levanta, cortando
pedacinhos pequenos de carne.
Ele come um, mastigando lentamente.
— Realmente, não é tão ruim — diz sorrindo.
— Que nojo — é apenas o que lhe respondo.
— Vamos, Mel, você precisa comer.
— Não, obrigada.
— Mel, você está ferida e cansada. Precisa de
forças, por favor, apenas prove. Pense que é frango — diz
apontando um pedacinho de carne em minha frente.
Eu estou com fome, faminta.
Com um suspiro,fecho meus olhos e abro minha
boca. Jack coloca a carne entre meus lábios, eu a mastigo
rapidamente, quase sem sentir o gosto e a engulo de uma
vez.
— Viu, não foi tão ruim, foi?
— Não — digo tentando sorrir.
E não foi. Uma vez minha avó disse que quando
estamos com fome, qualquer coisa irá parecer deliciosa.
Talvez seja isso.
Como tanta carne de goblin essa noite que me sinto
a ponto de explodir a qualquer momento.
Depois Jack apaga a fogueira e me carrega no colo
para dentro da caverna.
Minha perna ainda sangra e a dor é agonizante, o
efeito da pasta que ele havia colocado em mim foi apenas
momentâneo.
Um grito agudo escapa de meus lábios quando
minha perna raspa no chão ao me sentar. Os olhos de Jack
estão me estudando e sua testa fica franzida.
Ele senta-se atrás de mim, me acomodando em seu
peito.
— Você vai ficar bem, Mel. Durma, vou cuidar de
você.
Eu tento, dormir é tudo o que eu quero, mas a dor é
mais forte que o sono.
Fico deitada por um tempo que não sei definir ao
certo, pode ter se passado anos ou apenas segundos, não
sei dizer. Minha cabeça dói e parece muito pesada, eu me
sinto quente, tão quente que o corpo de Jack parece muito
gelado, comprado ao meu, embora esteja na temperatura
normal.
— Você está queimando de febre — escuto Jack
dizer mais para ele mesmo do que para mim.
Sinto seu corpo deixar o meu agora, estou deitada
contra o chão frio da caverna.
Jack volta com algo nas mãos, ele me ajuda a sentar
e me obriga a engolir uma coisa verde e marrom com
gosto amargo, que eu nem faço ideia do que seja e nem
perco tempo tentando descobrir.
Novamente ele volta a me aconchegar em seu peito.
Passo a noite toda em delírios, me sentindo tão
quente quanto o sol.
Jack continua acordado o tempo todo ao meu lado.
Só depois de umas boas horas assim, é que a coisa verde
que me fez engolir parece ter tido algum efeito, e
melhorado minha febre, ainda me sinto doente e minha
perna dói como o diabo, mas não me sinto mais
queimando.
Logo os primeiros raios de sol aparecem por entre
as laterais da porta improvisada de pedra.
Jack ainda está dormindo atrás de mim. O
pobrezinho ficou acordado a noite toda me vigiando, acho
que só quando sentiu meu corpo menos quente é que
conseguiu pegar no sono.
Minha perna dói tanto que posso sentir a dor por
todos os lados do corpo, como se ela tivesse se
espalhando.
Eu preciso da água gelada do lago. Já está de dia, e
não fica muito longe daqui.
Não quero acordar Jack, ele precisa dormir.
Levanto-me o mais silenciosa que posso para não
acordá-lo, me arrastando lentamente de cima de seu peito,
mordendo os lábios para não gritar quando o peso de meu
corpo acerta minha perna em cheio, é como se mil agulhas
estivessem sendo enfiadas em minha carne. Respiro fundo,
pego Komodo que está jogado no chão e me arrasto pela
fresta, abrindo a pedra usando a espada como bengala.
Minha perna grita em protesto, mas não me importo. Logo
melhorará, quando chegar até o lago.
Vou me arrastando pela floresta, com muita
dificuldade, me segurando nas árvores secas ao meu redor
para não cair.
Me apoio em Komodo a cada passo que dou, sinto
que vou cair a qualquer momento, mas não desisto,
continuo me arrastando.
Depois de um tempo eterno, avisto as águas
cinzentas a minha frente.
Um som de alivio escapa de meus lábios no
momento em que minha perna toca a água fria.
Dormência, enfim.
Fico sentada na pedra com os olhos fechados,
aproveitando a sensação. A perna ainda dói, mas é
incomparável a dor que senti noite passada, nem me
arrisco a tirá-la da água, e muito menos de olhar para o
ferimento, sei que está feio demais. Como irei fazer agora?
Quanto tempo levará para esse ferimento se curar? Isso é
tudo que eu não preciso, como posso ajudar alguém se
nem ao menos posso me manter de pé?
Deito a cabeça para traz, tentando não pensar nisso.
Abro os olhos no momento em que sinto uma mão
se fechando em minha canela.
Rapidamente me abaixo e vejo uma linda cauda
verde folha submersa.
Pânico toma conta de mim.
Lentamente ela imerge da água, seu rosto a poucos
centímetros do meu. Sua pele parece ainda mais perfeita
agora, na luz do sol, seus cabelos loiros esverdeados caem
por seus ombros cobrindo seus seios.
Ela me olha profundamente com seus grandes olhos
dourados.
Paraliso-me, nenhuma palavra consegue sair de
meus lábios. Não é o medo que me consome, ela não me
assusta, acho que a surpresa de vê-la e a advertência que
Jack fez ontem é que fazem esse conflito em minha
cabeça.
Ainda segurando minha canela ela levanta minha
perna a retirando da água. A dor vem novamente, ainda
mais penetrante, uma careta se forma em meu rosto, mas
consigo não gritar.
Ela se concentra em minha ferida, passando
levemente os dedos pegajosos. Então algo inesperado
acontece. Ela começa a chorar, sem som algum, apenas as
lágrimas escorrendo por seu rosto.
— Oh! Não chore, eu estou bem.
Ela parece não se importar com o que digo. As
lágrimas caem sobre meu corte, uma por uma, pingando
dentro da ferida inflamada.
Calma, sensação de alivio novamente. Diante de
meus olhos, vejo a ferida se fechando, diminuindo para
então minha pele muito pálida ficar intacta, como se nada
tivesse acontecido.
Ela levanta seu olhar para mim e sorri.
Toco minha perna levemente com a ponta de meus
dedos. A dor se foi, assim como o machucado.
Como eu havia imaginado, ela não queria me
machucar ontem à noite. Ela queria me ajudar.
— Obrigada — digo sorrindo.
— Sem problemas — ela responde com a voz mais
bela, hipnotizante e encantadora que eu já havia escutado.
É como musica derretida sendo sussurrada em meus
ouvidos.
—Melane! Melane, onde você está — Jack grita.
—Jack, estou aqui, no lago — grito de volta.
Poucos segundo se passam e ele aparece por entre a
floresta.
— O que você está fazendo aqui? Quer me matar de
preocupação? Pensei que tinham te capturado — diz
enquanto se aproxima de mim.
— Desculpe, eu só precisava de água fria, mas veja
— digo virando para mostrar a sereia que me salvou, mas
ela não está mais aqui.
— Você é louca, garota? Saindo com esse
ferimen... — Suas palavras se perdem no ar quando ele se
aproxima e vê minha perna intacta novamente.
Boquiaberto ele toca a pele de minha perna.
— Foi a sereia, a de ontem à noite. Ela chorou em
cima da ferida e...
— Ai! — sou interrompida por um cascudo na
cabeça.
— O que eu disse sobre sereias, Melane? — ele diz
parecendo realmente bravo agora.
— Ei, isso doeu — digo, colocando a mão
automaticamente em cima da cabeça.
— Não me importo. Sereias são perigosas, preste
atenção. Não ouviu nada do que disse ontem à noite? —
diz soletrando cada silaba lentamente.
— Desculpe, Jack, mas veja, ela me salvou, não
queria me fazer mal — digo apontando para perna.
— Você teve sorte dessa vez — ele diz se virando,
indo embora.
— Nem tive tempo de me despedir dela, nem sei
seu nome.
Ele não me espera, começa a voltar pela floresta.
— Me espere, Jack — digo descendo rapidamente
da pedra, indo atrás dele.
Andamos silenciosamente de volta para caverna,
mas quando estamos quase chegando, ele diz.
— Desculpe pelo cascudo.
Eu sorrio.
— Não tem problema.
— Nunca mais suma dessa forma — diz sem me
olhar.
— Tudo bem.
— Ou da próxima vez eu não irei te procurar.
Eu sei que ele iria, mas mesmo assim concordo.
— Está bem.
— Você parece criança, a gente não pode tirar o
olho nem por um segundo — ele está falando mais para si
mesmo do que para mim novamente.
Sento-me no chão assim que chegamos. Ainda
estou olhando minha perna curada.
— É impressionante, não é?
Ele me olha de pé ao meu lado.
— Lágrimas de sereias têm poder curativo — diz
coçando a cabeça.
— Nem agradeci a ela. Você a espantou antes
disso.
— Não me acuse, senhorita espertinha. Sua sorte é
que essa sereia era boazinha, a maioria não é assim,
acredite em mim — diz levantando as sobrancelhas.
— Não importa, estou curada. Hoje voltamos para
aldeia.
Ele suspira uma vez, ainda me olhando, as
sobrancelhas bem levantadas, mas ele não diz nada,
apenas acena com a cabeça.
Capítulo
11
Revelada

Jack fica calado no caminho pela floresta.


Não perdemos tempo olhando a paisagem
destruída, e vamos direto para casa de Amélia.
Ela me abraça forte assim que entro pela porta.
Angélica me cumprimenta com um abraço também,
mas seu olhar gélido ainda permanece em seus olhos
quando me olha.
Damião não está em casa.
— Os soldados vieram ontem — Amélia diz aflita.
— Prometeram voltar hoje à noite. Se ninguém te
entregar, eles irão começar a matar novamente —
Angélica diz me olhando dentro dos olhos.
Eu concordo com o que ela pensa, ninguém deve
morrer por minha causa.
— Ninguém precisará me entregar, eu aparecerei
por conta própria — dgo sem desviar o olhar do seu.
— Você está maluca? Enlouqueceu? Você, apenas
você contra um exercito? — Jack diz, sorrindo
sinicamente tirando sarro.
— O que você quer que eu faça? — pergunto
levantando os braços.
— Espere os outros, iremos juntar os rebeldes, se
lembra?
— Eu não tenho tempo para isso, Jack, eles virão
hoje, não posso mais deixar que as pessoas morram. Eu
simplesmente não posso viver com isso, você não
consegue entender?
Ele balança a cabeça pros lados, mas não diz nada.

A noite não demora a chegar, ficamos na casa de


Amélia até então.
Jack não disse uma palavra durante o dia todo.
Fico pensativa com Komodo em minhas mãos,
mesmo que eu quisesse, não poderia soltá-lo. Ele sabe que
algo está para acontecer e seu desespero de me proteger
não me permite soltá-lo, ele sente que estou nervosa.
Não sei o que irá acontecer, mas me esconder, me
acovardando não é mais uma opção. Não permitirei que
mais ninguém morra por mim, que mais famílias se
destruam.
Penso em Davi, lembro-me de seus lindos olhos
adoráveis e a forma como me olha sempre, então lembro
que ele está desaparecido, preso em algum lugar, com
apenas a hipótese de que está vivo servindo de isca para
mim.
O pensamento me deixa doente por dentro. Sinto
falta dele, e da época em que tudo era mais fácil e
tranquilo, minha única preocupação era uma garota chata
que me atormentava na escola. Minha realidade está bem
diferente hoje. Essa é minha vida agora, gostando ou não,
é assim que as coisas são, e irei dar o melhor de mim para
que tudo se resolva, é isso que esperam que eu faça.
Mais algumas horas se passam, o céu azul
desaparece e a escuridão começa a ganhar vida, assim
como o vento que se intensifica lá fora. Agora já posso
ouvir os passos orquestrados dos soldados se
aproximando.
Ergo a cabeça, me levanto e saio pela porta, sem
dizer uma palavra.
Jack já está em minhas costas, sua espada em suas
mãos.
Estou usando um casaco grande, escondendo
Komodo entre o tecido largo.
Vejo homens enormes, com armaduras e espadas
afiadas, ao menos duas dúzias deles.
Sinto meu coração acelerar em meu peito.
As pessoas da aldeia ficam aglomeradas, todas
amedrontadas, mas eles não precisam mais ter medo, é
tudo o que penso.
— Entreguem à mestiça! — soldado da frente grita.
Quando ninguém responde, ele dá um passo. — Eu
mandei entregarem à mestiça — diz dando ênfase em cada
silaba. — Não? Ninguém? Então irá haver mais mortes
hoje — ele diz sorrindo lentamente.
Com dois passos largos me coloco a frente das
pessoas amedrontadas da aldeia, vejo Jack prontamente ao
meu lado.
— Ninguém irá morrer hoje — digo com uma voz
serena, tirando a capa de cima de meus ombros, ficando
em guarda com Komodo em minhas mãos. — Eu estou
aqui!
Nesse instante, o vento sopra, fazendo com que a
terra vermelha voe sobre meu corpo, deixando um rastro
de poeira que brilha com a luz do fogo dos lampiões em
volta de mim, cabelos negros começam a cair sobre meus
ombros se transformando em fumaça antes de chegar ao
chão.
Fios ruivos saem de minha cabeça, chegando quase
em minha cintura, cacheados e volumosos, em toda sua
gloria.
Murmúrios se elevam a minha volta. Dedos
apontados em minha direção, gritos de indignação.
Os soldados parecem espantados, eles me olham
atentamente por baixo de seus capacetes brilhantes.
O fogo acesso dos lampiões pendurados nas casas
reflete em meus cabelos, os fazendo parecer chamas vivas
em minha cabeça.
Komodo treme em minhas mãos.
— Matem-na — o soldado da frente sussurra.
Não estou com medo.
Meu coração bate freneticamente e minha
respiração está rápida, mas não estou assustada.
Aperto os olhos, segurando Komodo com força.
Os homens com armaduras avançam sobre mim, e
eu me sinto pronta para eles.
Rapidamente com um único golpe, apenas
dobrando um pouco os joelhos e torcendo o braço,
decapito o primeiro dos muitos que ainda correm em
minha direção.
Arrastando Komodo de um lado para o outro pelo
ar, acerto mais dois deles, rasgando profundamente no
lugar onde devem estar seus corações.
Jack está ao meu lado dando o máximo de si, ele
ataca mais rápido, já foram seis em sua espada.
As pessoas da aldeia gritam, correm e se escondem
em suas casas.
Continuo a girar minha espada pelo ar, cortando
tudo o que vejo pela frente, levantando uma parede de
terra e poeira junto comigo.
Jack e eu estamos lado a lado, lutando juntos,
sangue espirrando em nossos rostos.
Mais uma pessoa se junta a nossa batalha. É
Damião.
Logo ele aparece a minha esquerda, segurando uma
espada tão grande quanto a minha. Ele parece saber o que
faz, a idade não lhe dá nenhuma desvantagem sobre os
homens que nos atacam.
Três espadas comigo agora.
Vou avançando conforme homens vão caindo aos
meus pés.
Com um giro no ar, acerto a garganta do soldado
que tenta me acertar com o escudo. Faíscas saem de
Komodo quando acerto fortemente a espada do oponente,
estamos cara a cara, apenas com o aço nos separando.
Com um grito saindo de minha garganta, avanço com toda
força, o derrubando a minha frente, sem esperar ou
prolongar acerto Komodo em seu peito com tanta vontade
que por pouco no o finco no chão de terra vermelha.
Damião acerta mais dois a minha esquerda, ele
parece ofegante agora, mas continua com toda energia, o
suor escorre por seu pescoço, mas ele parece focado.
Jack já não está mais ao meu lado, uma olhada
rápida e o vejo alguns metros à frente com quatro homens
a sua volta. Ele está cercado.
Ele gira a espada, pegando o primeiro a sua frente,
prontamente girando para traz , interrompendo o golpe que
viria a seguir. Mais homens se juntam ao seu redor.
Acerto freneticamente o soldado que corre para
mim, tentando chegar onde Jack está para ajudá-lo.
Mais homens aparecem, vindo em minha direção,
de onde eles estão saindo?
Escuto Jack gritar, sua perna foi cortada, vejo o
sangue escorrendo por sua calça, vejo sua perna tremer,
mas ele ainda mantém posição de guarda, atacando sem
descanso.
Algo dentro de mim muda.
Ele está em perigo. Tudo parece estar em câmera
lenta agora, vejo o sangue pingar, gota por gota de sua
perna, sua espada girando acertando o homem ao seu lado.
Vejo Damião perfurando o coração de alguém, enquanto o
suor desce lentamente de sua testa, sinto meu coração,
cada batida rápida soando lentamente em meu peito, como
sinos em uma catedral.
O ar ao meu redor levantando a poeira até meus
olhos semicerrados.
Sinto cada pedaço de meu ser, respiro uma vez,
escutando as batidas de meu coração. Os olhos de Jack se
arregalam enquanto sua espada rodopia em suas mãos.
Algo cresce dentro de mim nesse segundo, sinto a
força subindo, saindo de meu interior e se posicionando
em minhas mãos, atravessando Komodo, nos unindo em
um só corpo. Komodo muda de cor, esquentando aos
poucos, para então começar a queimar. Um tom de
vermelho fumegante toma conta de seu comprimento,
enquanto faíscas caem ao meu lado.
O mundo volta a sua velocidade normal enquanto
avanço com passos largos, com um grito de fúria levanto
Komodo acima de minha cabeça, saltando no ar e
acertando perfeitamente o peito do homem mais próximo a
mim.
Um rastro de fogo persegue Komodo por onde ele
passa. O homem que teve o peito rasgado se consome em
chamas no chão, o chuto com toda força abrindo caminho.
Continuo avançando, minha visão focada em Jack,
apenas alguns metros adiante.
Rapidamente vou me aproximando, matando sem o
menor esforço, é como se eu tivesse feito isso à vida toda.
Komodo sente minha raiva, minha fúria e
principalmente meu medo do que possa acontecer com
Jack, nunca o senti tão confiante em minhas mãos.
Rastros de fogo por todos os lados onde passo,
corto gargantas com a mesma facilidade em que corto
legumes para um ensopado.
Sangue espirrando em meu rosto e corpo, fogo
queimando tudo que se oponha em meu caminho, nada me
detém.
Apenas alguns segundo e estou lado a lado com
Jack.
Com um giro no ar acerto os homens que o cercam,
assim, sem esforço algum. Eles caem a minha volta,
formando um circulo de morte com cheiro de churrasco
queimado.
Fumaça sobe no ar, por todos os lados onde os
rastros de fogo estiveram.
Todos os soldados estão caídos no chão, alguns em
chamas, outros com ferimentos profundos derramando
sangue vermelho e quente sobre a terra, alguns apenas
tostados e com fumaça saindo de seus corpos para se
juntar ao resto que está no ar.
Estou parada bem ao lado de Jack que me olha com
olhos arregalados.
Seguro Komodo com as duas mãos a minha frente,
minhas pernas separadas, ainda estou em guarda,
esperando o que ainda pode vir.
Espero alguns poucos segundo, nada acontece. A
ameaça acabou, por agora.
Meus olhos se acalmam, assim como meu coração
diminui as frenéticas batidas. Komodo aos poucos deixa o
vermelho fumegante para então voltar à cor prata de aço.
Damião me olha fixamente, descansando as mãos
nos joelhos.
Ninguém diz uma palavra durante os próximos
segundos. Apenas contemplamos a visão de morte que se
espalha pelo chão.
Alguns rostos aparecem chocados pelas pequenas
janelas das casas, outros estão espiando pelas frestas das
portas, todos com expressão de espanto grudada em seus
rostos assustados.
Aos poucos as portas vão se abrindo, rangendo no
processo, e as pessoas vão lentamente se arrastando para
fora.
Desabo Komodo ao meu lado, deixando a ponta
afiada tocar a terra, enquanto respiro pesadamente.
Olhos curiosos e amedrontados surgem em minha
direção.
Tenho a impressão de que toda aldeia está aqui,
parados na minha frente.
Algumas crianças escondidas atrás das pernas de
seus pais me olham com olhos brilhantes de esperança.
Jogo um sorriso para uma garotinha pequena de cabelos
encaracolados, ela sorri de volta e se esconde ainda mais
na perna de sua mãe.
Espero pelo julgamento, estou apenas esperando.
Quando será que os legumes podres serão jogados em
mim? Quando os xingamentos por eu não ter aparecido
antes começaram a jorrar por cima de minha cabeça? É
apenas questão de tempo, estou apenas aguardando,
esperando o bombardeio por todas as mortes que já causei.
Nada acontece. Tudo está em silencio, eles me
olham e eu os olho de volta.
Então, contradizendo tudo o que pensei as pessoas
sorriem para mim.
Seus olhos brilham com a luz dos lampiões e seus
sorrisos se alargam cada vez mais. Eles começam a
aplaudir.
Aplausos e mais aplausos, gritos de incentivo são
jogados da multidão. Crianças são levantadas pelos
ombros de adultos para poderem ter uma visão melhor de
mim.
Uma sensação de alívio e emoção percorre meu
corpo, acendendo cada fibra de meu ser, sinto-me
poderosa, mas de uma forma diferente, eles me dão poder,
mas acima de tudo, sinto-me feliz.
Vejo pelo canto do olho Jack mancando, se
aproximando de mim, ele também está sorrindo, seus
olhos escuros focados nos meus.
Ele para ao meu lado, olha para multidão a nossa
frente e diz com uma voz alta.
— Contemplem a princesa, Melane!
Explosão de gritos e risadas, todos parecem felizes
e esperançosos.
Alguns segundos depois a multidão cessa a gritaria
e os aplausos.
Um por um, todos os moradores do Ninho se
ajoelham, abaixando as cabeças, formando um mar de
pessoas a minha frente.
— Conseguiu princesa — Jack sussurra em meu
ouvido.

O sol nasce no dia seguinte, trazendo consigo os


raios quentes de esperança que esse povo necessita.
Noite passada foi o estopim de encorajamento que
as pessoas precisavam.
Eles têm coragem, são pessoas fortes, conseguiram
sobreviver até aqui, apenas precisavam de alguém para dar
o primeiro passo, alguém para lhes mostrar o caminho. Eu
fui essa pessoa, e agora, juntos conseguiremos dar o passo
seguinte.
Crianças foram dadas para que eu as abraçasse,
mãos apareceram para eu as apertar, palavras de
confiança, esperança e comoção foram ditas em meu rosto,
depois que todos se curvaram perante a mim noite
passada.
A chama de esperança que lhes faltava foi acessa.
— Você realmente existe! Eu sabia que existia —
uma mulher com aparência velha diz segurando minha
mão com olhos cheios de água.
— Nunca desisti de você, sempre soube que
voltaria para nos salvar — um homem de cabelos
castanhos ondulados, disse me olhando nos olhos.
Depois voltei para casa de Amélia e Damião, onde
cai no sono pesadamente.
Sonhos estranhos tomam conta de minha mente.
Embora eu não possa distingui-los. É tudo um borrão
escuro, acho que vejo um lago a minha frente, mas não
posso dizer com precisão. A sombra de uma pessoa
ameaça ficar focada em minha visão, mas logo se mistura
com o resto dos borrões desaparecendo, vejo um pequeno
borrão azul no meio de todo o negro e então tudo
desaparece de novo.
Acordo cedo com o som de vida que surge do lado
de fora, há algo diferente no ar, sei antes mesmo de sair da
cama.
Abro os olhos e vejo Angélica parada em sua cama
me olhando.
— Bom dia — digo a ela.
— Me desculpe — ela diz num sussurro sem graça.
Levanto uma sobrancelha.
— Eu culpava você, por David e por tudo que nos
aconteceu, mas você não é a culpada. Você apenas foi
jogada nessa confusão toda, assim como eu. — Peço
desculpas — ela diz mais uma vez.
Não digo nada, apenas aceno com a cabeça
enquanto tento sorrir.
Não acho que Angélica esteja errada em me culpar,
mas até pouco tempo eu nem sabia que esse lugar existia,
não sabia de nada disso, e para alguém que viveu a vida
toda numa chácara lendo livros, acho que não tenho me
saído tão mal assim.
Um grito vindo da cozinha toma minha atenção, me
fazendo levantar da cama de uma vez. É Jack.
Abro as cortinhas e saio correndo.
— Calma, Jack, não está tão ruim assim, e eu já
estou terminando — Amélia diz, enquanto costura a pele
cortada da perna de Jack.
Alivio, posso respirar novamente.
— Vá com calma, mulher, minha perna não é carne
de açougue — ele diz rabugento.
Sorrio com a cena. Um homem tão grande que
lutou em uma batalha sangrenta noite passada, agindo
como um menino quando se machuca.
Ele vira o rosto e sorri no momento em que me vê.
Sua expressão se contorce novamente em uma
careta.
— Ei, mulherzinha, delicadeza zero, não é mesmo?
— diz levantando as mãos para o alto.
— Quieto, Jack, esse foi o último ponto.
— Finalmente. Essa mulher não tem piedade — ele
diz me olhando, apontando o dedo para Amélia.
Sorrio novamente, estou sempre sorrindo quando
Jack está por perto.
— Como vai a perna? — pergunto ainda sorrindo.
— Vai ficar boa — Amélia responde.
— Bom dia, princesa — Jack diz vindo até mim.
— Bom dia, Jack. Doendo muito? — pergunto
apontando pros pontos em sua perna.
— Ah, que nada, picada de mosquito.
— Claro! — digo sem conseguir conter o riso.
— Do que ela está rindo? — ele pergunta
apontando o dedo indicador para mim.
— Como vão as coisas por aqui? — pergunto a
Amélia.
— Boas, as pessoas estão confiantes agora. Estão
terminando de enterrar os mortos de ontem.
Aceno com a cabeça.
— E David? Não tivemos nenhuma noticia dele —
digo desolada.
— Ele ainda está vivo. É a arma que eles possuem
contra você, não vão matá-lo — Jack diz com um levantar
de ombros.
— Espero que esteja certo.
Angélica coloca uns pedaços de torta na mesa sem
dizer uma palavra. Eu sei que ela está sofrendo por ele, eu
também estou, mas não há tempo para minha dor, tenho
que pensar em um modo de tirá-lo de lá.
Agora que tenho a aldeia ao meu lado, tudo ficará
melhor.
Damião entra pela porta da sala com dois homens
ao seu lado, um deles deve ter por volta de quarenta anos
de idade, o outro é mais jovem.
O mais velho tem cabelos grisalhos em pequenas
partes de seu cabelo ralo e barba, mas ele parece ser forte.
O mais novo possui cabelos castanhos com mechas
douradas espalhadas e olhos encantadoramente azuis.
— É um prazer conhecê-la, princesa — os dois
dizem em uníssono ao me ver.
Tenho que me acostumar com as pessoas me
chamando de princesa.
— O prazer é meu — digo mesmo sem saber quem
são eles. Se estão com Damião, devem ser amigos.
— Esses são Daniel e Edmundo, lideres dos
rebeldes — Damião os apresenta.
-Oh! — é tudo que sai de minha boca.
— E aí? — Jack pergunta com a boca cheia de
torta.
— Queremos ajudá-la, princesa Daniel, o homem
mais velho diz.
— Damião nos contou sobre o que pensam em
fazer, destruir rei Ariel, quero que saiba que meus homens
estarão ao seu lado quando a guerra começar — ele
prossegue.
— Isso é maravilhoso, aceito sua ajuda — digo a
ele sorrindo.
— Seu pai era um homem honrado, tenho orgulho
de lutar lado a lado com sua filha — ele diz me mandando
um sorriso acolhedor.
— Obrigada! Significa muito para mim.
Os olhos de Edmundo, o cara dos olhos azuis, estão
vidrados em Komodo, que descansa na mesa da cozinha.
Quando percebe que estou olhando, ele desvia o
olhar corando a ponta de suas orelhas levemente de
vermelho.
— É muito bonita sua espada, princesa — ele diz
sem jeito.
— O nome dele é Komodo.
— Eu poderia tocá-lo?
Antes mesmo que eu tenha tempo de dizer, Jack
responde por mim.
— Vai lá, tente levantá-lo, vai com fé.
— Jack gosta de ser brincalhão. A verdade é que
ninguém além de mim pode levantar Komodo, ele pesa
toneladas para qualquer um que não seja eu — digo por
fim.
Os olhos de Edmundo brilham enquanto olham para
a espada.
— Posso apenas tentar, princesa? Com sua
permissão?
Daniel revira os olhos.
— Se você insiste...
Jack cai na gargalhada quando Edmundo exausto
pelo esforço deixa os braços caírem ao lado de seu corpo.
Edmundo também sorri agora.
— Realmente, pesa toneladas. Como você
consegue?
— para mim ele é bem leve — digo, o pegando
facilmente de cima da mesa.
— Meu filho tem fascínio por espadas — Daniel o
repreende.
— Estamos aqui para treinar as pessoas da aldeia,
aqueles que quiserem ajudar em batalha. Nossos homens
são bem numerosos, mas quanto mais pessoas, melhor.
— Concordo com você.
— Vamos começar hoje mesmo.
— Ai, ai, quantos ainda vou ver tentando levantar
essa espada? —Jack diz ainda gargalhando.

O sol quente castiga, caindo sobre nossas cabeças, o


vento quase não sopra e quando o faz é tão quente quanto
os raios que nos atingem.
Mesmo assim as pessoas parecem confiantes
enquanto escutam atentamente as instruções de Daniel.
Ele reuniu um grande número de homens e
mulheres, estão todos aglomerados de pé, enquanto ele
explica algumas táticas de luta.
Jack está sentado numa pedra ao seu lado, apenas
observando.
Fico parada, não muito perto fazendo o mesmo que
ele.
A maioria das pessoas reunidas ali são homens,
quase todos bem jovens, mas também há mulheres. Elas
parecem focadas nas palavras de Daniel, não se vê nem
um pingo de vestígio de medo em seus olhares.
Esse povo tem esperança novamente, eles têm
vontade de lutar pelo que é deles, e vão fazer isso com
cada vibra e cada gota de sangue que há dentro de si.
Me aproximo e me sento ao lado de Jack. Sem me
olhar ele se afasta uns centímetros, me dando espaço na
pedra.
— Tragam todas as armas que tiverem e venham
hoje à tarde para o treino — Daniel diz por fim,
encerrando a reunião.
— Eles não sabem lutar? — pergunto a Jack.
— Uma grande parte sabe, mas tem aqueles que
ainda precisam aprender — ele diz com um levantar de
ombros.
— Não vai ser arriscado? Quer dizer, pras pessoas
que não possuem experiência com luta?
— Daniel é um ótimo professor... E eu também,
olhe só para você — ele diz sorrindo, enquanto me cutuca
com o ombro.
— Eu tenho Komodo, ele faz todo o trabalho por
mim, tudo que tenho que fazer é segurá-lo.
Jack me olha uns poucos segundos antes de dizer.
— Isso, minha cara, é o que você pensa.
Ele se levanta da pedra, me deixando sozinha
enquanto caminha mancando em direção a Daniel.
Mais tarde nesse mesmo dia os homens de Daniel
montam um ―campo de treinamento‖, alguns pedaços de
madeira simulando pessoas para que possam atacá-los,
espadas fincadas no chão esperando serem empunhadas,
arcos pendurados nos galhos das árvores com alvos feitos
de madeira ao lado, Edmundo está lutando com um dos
homens de seu pai, parando em certos momentos, falando
sobre o golpe que acabara de ser apresentando, com um
circulo de pessoas a sua volta aprendendo.
Jack está parado encostado numa árvore.
— Ele é bom — digo me aproximando de Jack,
apontando na direção de Edmundo que agora rende seu
oponente, o prendendo no chão.
Jack apenas faz um som de riso sínico com os
lábios.
— O que foi? Por que está rabugento? Oh, espere,
quando é que você não está rabugento? — pergunto
fazendo cara de espanto.
Ele me olha com tédio.
— HA! Há! Você é tão engraçada, Melane. Sério,
veja como morro de rir de você — ele diz fingindo um riso
forçado.
Eu sorrio mesmo sem ter a intenção.
— Sério, Jack, porque está aqui desse jeito?
Ele me olha por um segundo.
— Não me deixam ajudar, tenho que esperar minha
perna cicatrizar ou então os pontos vão abrir e eu vou ter
que sofrer nas mãos daquela mulherzinha, de novo — diz
com uma careta no rosto.
— Eu tenho uma ideia — digo com um sorriso
lentamente se formando em meus lábios.
Ele levanta suas sobrancelhas para mim.
— O quê?
— Você podia ir até o lago comigo... A sereia, ela
poderia ajudar.
— Não, não, não, Melane, sem chances. Nenhuma
sereia vai por suas mãos pegajosas em mim.
— Ela não precisa por as mãos em você, apenas
suas lágrimas — digo parecendo uma criança teimosa.
— Esqueça! — diz encostando o dedo indicador na
ponta de meu nariz.
— Jack, esse negócio vai demorar dias para
cicatrizar, e ela pode resolver isso em segundos. Ela é
boazinha, você mesmo disse.
Ele olha para o horizonte, pensando com o olhar
distante.
— Pense bem, Jack. Assim você poderia ajudar nos
treinos — ele não responde. — Qual é, Jack? Qual o
problema?
Ele apenas me olha sem dizer nada.
— Por mim? Eu não gosto de ver você machucado
assim, jogado pelos cantos e triste. Por favor, por mim?
— repito, fazendo minha melhor expressão de pena.
Ele me olha mais uma vez, uma expressão não
confiante em seu rosto.
Capítulo
12
Pequenas rachaduras no vidro

— Não acredito que estamos fazendo isso — Ele


diz enquanto marchamos em direção ao lago.
— Confie em mim, Jack, ela não é ruim.
— Espero que você esteja certa. Sereias não são
confiáveis. Eu não gosto nenhum pouco delas.
— Você ao menos já esteve com uma em sua vida?
— Pergunto levantando a sobrancelha.
— Não, apenas vi uma de longe uma vez, Mas já
ouvi histórias demais de homens se afogando,
hipnotizados com sua beleza, e não quero ser o próximo.
— Ela não vai te hipnotizar, estarei ao seu lado.
Andamos mais uns minutos até chegar à beira do
lago cinzento.
Jack parece relutante.
Dobro minha calça até os joelhos, tiro as botas que
angélica havia me emprestado e entro nas águas frias do
lago.
— Você não vem?
Ele espera mais uns segundos antes de também
dobrar sua calça e tirar suas botas.
Jack para ao meu lado dentro do lago, seu olhar está
distante, no horizonte.
— Isso não é uma boa ideia, é melhor a gente ir
embora — ele diz se virando para ir.
Pego sua mão, o fazendo parar.
— Jack, confie em mim.
Ele me olha nos olhos, respira fundo uma vez e
volta a ficar ao meu lado, ainda com a mão fechada na
minha.
— E agora?
— Esperamos? — dou de ombros.
Sentamos os dois na mesma pedra em que estive as
duas vezes em que a seria apareceu.
Jack senta tirando completamente seu corpo da
água.
Fico apenas com os pés mergulhados, balançando
enquanto espirro poucos pingos de água em meu rosto.
Alguns minutos se passam e nada acontece.
— É isso, ela não vem — ele diz levantando as
mãos para o alto.
— Vamos esperar mais um pouco.
— Melane, vamos embora, minha perna nem está
tão ruim assim, e eu não me importo. Vamos!
— Fique quieto, se ela escutar você gritando assim,
vai ficar com medo e não vai aparecer — digo dando um
beliscão em seu braço.
— Ei, pare de me beliscar, que coisa.
— Então fique quieto, Jack, parece um menino,
fique calado e espere. Ela virá, eu sei.
— Não me mande ficar quieto e não me chame de
menino, já viu meu tamanho perto de você agora?
—Mais que coisa, cale-se — digo eu mesma
gritando agora.
Viro meu rosto para o horizonte tentando ignorar
Jack ao meu lado. É quando a vejo, alguns metros a nossa
frente, apenas com os olhos fora d’água.
— Você tem apenas mais dez minutos, depois disso
estou indo.
— Shiu, Jack, olhe ali — digo sussurrando,
apontando na direção da sereia.
Jack fica rígido ao meu lado, suas veias do pescoço
saltadas. Ele não tira os olhos dela a nossa frente.
— Oi, você se lembra de mim? — digo me
esticando na pedra. — Não vamos te machucar.
— Claro que não, ela é que vai — Jack sussurra
entre os dentes em meu ouvido.
Dou-lhe um olhar duro de repreensão e espero que
ele tenha entendido o recado.
— Só estou dizendo, a culpa será sua — ele
sussurra com as mãos estendidas em rendição.
— Queria sua ajuda. Meu amigo — digo segurando
Jack pelo braço, o trazendo mais para perto na pedra. —
Ele está ferido, pensei que poderia ajudá-lo, assim como
me ajudou.
Ela se aproxima lentamente, emergindo o rosto
quando está próxima.
Jack não tira os olhos dela.
— Olá — digo sorrindo.
— Olá — ela responde sorrindo com a voz
melodiosa e doce.
Sua cauda verde folha aparecendo atrás sobe a
água. Jack desvia o olhar, se fixando na linda cauda. Ele
ainda está rígido.
— A perna dele, ele foi ferido — digo apontando
para canela de Jack.
A sereia tira seus braços com a pele perfeita de
porcelana e envolve a perna de Jack em seus dedos
pegajosos.
— Ei, ei, ei. Calminha aí, minha filha — ele puxa a
perna.
A expressão da sereia muda e ela fica séria.
— Não ligue para ele. Jack tem medo de você —
digo dando outro beliscão em seu braço.
— Quem disse que eu tenho medo dela? Faça-me o
favor, Melane — ele diz com voz de deboche.
Ela bate sua cauda na água com força, fazendo água
espirrar em nossa direção. Jack pula na pedra, se
assustando.
A sereia curva os lábios lentamente em um sorriso.
— Claro que não está com medo — ela o encara.
Tento segurar minha risada, mas é impossível, tapo
os lábios com a mão, tentando ao menos abafar o som.
Jack faz uma carranca aparecer em seu rosto e não
diz nada.
— Qual seu nome? Não tive tempo de lhe agradecer
aquele dia.
— Meu nome é Summer — ela responde com um
sorriso doce.
— É um lindo nome. O meu é Melane.
— Eu sei, princesa Melane. As noticias correm
rápido por aqui, até mesmo de baixo d’água. Foi um
prazer salvar sua vida.
Um som sínico sai dos lábios de Jack.
— Não me obrigue a beliscá-lo novamente — digo
virando o rosto em sua direção.
Agora é Summer que tenta segurar sua risada, pela
minha advertência.
Jack apenas balança a cabeça negativamente, ainda
carrancudo.
— Posso ver sua perna agora? — ela pergunta
estendendo a mão.
Ele relutantemente estende a perna em sua direção.
Summer se abaixa olhando o ferimento, para então
lentamente derramar suas lágrimas sobre ele. O corte se
fecha instantaneamente e a pele de Jack está curada.
— Viu, Jack, eu disse que ela poderia ajudar —
digo sorrindo
Ele ainda está olhando para pele curada.
— Obrigado — ele diz relutantemente.
— Sem problemas.
— Você vive aqui? — pergunto a Summer.
— Não, vivemos bem mais no fundo, onde ainda há
vida, mas gosto de ver o sol, então estou sempre perto da
superfície.
— Vocês são muitos aí em baixo?
— Sim, não tanto quanto antes, muitos morreram,
mas estamos sobrevivendo, a vida tem sido difícil, não há
mais muitos peixes por aqui, mas estamos fazendo o
melhor que podemos.
— Aqui em cima as coisas não estão muito
diferentes — digo tristemente.
— Mas vamos mudar essa situação — Jack diz.
— Em nome de todas as sereias eu lhe ofereço
nossa ajuda no que precisar.
— Obrigada.
— Mel, temos que ir — Jack diz, já se levantando.
— Tudo bem. Eu volto para vê-la — digo a
Summer, antes de afundar até os joelhos na água.
— Estarei esperando.
— Você não vem, Jack? — pergunto, quando chego
a margem do lago e percebo que ele ainda está sentado na
pedra.
Ele olha nervosamente para mim e depois para
Summer, parada ao seu lado na pedra.
— Jack, ela não irá te fazer mal — digo bufando.
Summer o encara com seus grandes olhos dourados.
— Tudo bem, eu me afasto — ela diz dando um
mergulho, sumindo nas profundezas.
Rapidamente Jack desce da pedra e em passos
largos está de volta a terra.
— Por que você tem tanto medo dela? Ela te
ajudou, não é uma sereia má. Existem pessoas boas e
pessoas más, assim como as sereias. Toda espécie é assim
— digo levantando as mãos para o alto.
Ele não diz nada, enquanto coloca sua bota,
desdobrando a calça.
Faço o mesmo com meus sapatos.
— Vamos logo — ele diz já andando pelo caminho
de árvores secas.
— Espere! — digo correndo para poder alcançá-lo.
— Por que você está agindo assim, Jack?
Ele para de caminhar, se vira e me olha nos olhos.
— Meu pai foi morto por uma sereia, Melane.
Minha boca se abre, mas nenhuma palavra
consegue sair por ela.
Ele se vira e continua caminhando.
— Eu sinto muito, não teria feito você vir se eu
soubesse.
— Esqueça. Não quero falar sobre isso.
— Jack, eu...
— Esqueça. Vamos voltar antes que escureça.
Eu respeito sua vontade e ando calada ao seu lado
até chagarmos a aldeia.
Ele se afasta indo em outra direção, assim que me
deixa na casa de Amélia.
Sinto-me mal por ele, e por tê-lo levado até a sereia.
Mas como eu iria saber? Pensei que ele apenas
tinha um medo por conta das lendas de sereias que deve
ter escutado na vida.
Deve ter sito duro para ele ficar tão próximo de
Summer. A imagem de seu corpo se enrijecendo assim que
ele a avista surge em minha mente, me trazendo angustia
por imaginar o que se passou em sua cabeça naquele
momento. Sinto-me culpada.
— Oh, você está ai. Onde esteve o dia todo? —
Amélia pergunta, me trazendo para dentro.
Depois de comer o ensopado que Amélia e
Angélica fizeram, saio pela porta a procura de Jack.
Não consigo me concentrar em outra coisa a não ser
nele desde que soube a verdade sobre seu pai.
Nem mesmo consegui comer direito.
Ando pelas ruas silenciosas da aldeia. O vento
soprando forte em meus cabelos, a noite está quente, mas
o vento é fresco.
Depois de uns minutos caminhando sem direção
alguma, vejo uma figura ao longe sentada na beira de uma
colina apreciando a lua cheia. É Jack.
Com dificuldade subo pela colina, não quero fazer
barulho, mas vejo que minha tentativa de ser silenciosa é
inútil, pois quando alcanço o topo, ele já está com o
pescoço virado olhando em minha direção.
Ele me olha uma vez e volta sua posição antiga,
observando a lua.
Me aproximo e me sento ao seu lado, ficando na
mesmo posição, com os joelhos dobrados e os braços por
cima deles.
Fico quieta, não sei o que falar e não sei se ele quer
ouvir algo que eu tenha para dizer. Só não quero que ele
fique aqui em cima sozinho.
Alguns poucos segundos se passam antes que ele
diga, ainda olhando para lua.
— Eu tinha dez anos. Meu pai havia me levado
para acampar — ele diz com um sorriso fraco. — Nós
fazíamos isso sempre que podíamos. Me lembro de ficar
empanturrado de tanto comer as amoras que ele havia
colhido e depois dormir em frente à fogueira que fizemos
juntos.
Ele faz uma pausa, ainda sem me olhar.
— Havíamos combinado de ir pescar pela manhã,
mas eu dormi demais e ele foi sozinho. Acordei e fui
direto para o lago, sabendo que ele estaria lá.
Jack suspira agora, pegando ar com dificuldade.
Meus olhos estão presos em seu rosto, enquanto ele
volta a falar.
— Chegando lá eu o vejo, o corpo na margem e a
cabeça mergulhada, uma cauda rosa e brilhante apontava
por cima d’água. Corri gritando desesperadamente o mais
rápido que minhas pernas permitiram, mas já era tarde
demais. A desgraçada levantou a cabeça por cima da água
quando me escutou gritando, tinha lindos cabelos loiros
escorrendo por sua pele perfeita, covardemente ela
mergulhou, sumindo dentro do lago — mais um suspiro
antes de continuar. — Tentei reanimá-lo, mas ele já não
estava mais comigo. Eu gritei, chorei, até comecei a socar
seu peito com toda minha força, mas nada adiantava. Ele
já tinha ido.
Meus olhos estão bem abertos, ardendo com a
ameaça das lágrimas. Jack era só um menino.
Ele continua lá, imóvel olhando para o céu. Fico de
frente para ele e o abraço, afundando meu rosto em seu
pescoço.
Ele me abraça de volta, fechando seus braços em
minha cintura, me apertando tão forte que fico imaginando
qual foi a última vez que o abraçaram.
Sinto meu ombro úmido e escuto o menor dos
soluçares em meu ouvido.
— Eu sinto muito Jack — sussurro em seu pescoço.
— Estou sozinho desde então — ele responde
roucamente.
Afasto-me uns centímetros para poder olhá-lo nos
olhos, segurando seu rosto com as duas mãos. Seu olhar
perfura meu coração, ele está assustado, de verdade. Jack
vive sozinho há muito tempo, sem ninguém naquela
caverna, uma criança, apenas uma criança que não confia
em ninguém. Meu coração afunda um pouco mais,
pensando na imagem de um garoto solitário vivendo numa
caverna.
— Você não está mais sozinho. Você nunca mais
vai estar, eu estou aqui agora.
Ele se inclina apoiando sua testa na minha, suas
mãos ainda em minha cintura.
— Você promete? — ele sussurra.
— Prometo... Com tanto que me prometa algo em
troca — digo ainda com sua testa apoiada na minha.
Ele se afasta apenas alguns centímetros, seus olhos
úmidos olhando diretamente nos meus, enquanto acena
com a cabeça.
— Quero que prometa que não irá mais sofrer
sozinho, que irá dividir seja lá o que for comigo — digo
olhando de volta para seus olhos escuros.
Ele sorri fracamente entes de responder.
— Prometo.
— Com o dedo mindinho e tudo? — pergunto
sorrindo, estendendo meu dedinho.
— Com o dedo mindinho e tudo — ele sorri
também, apertando seu dedo no meu.
Passamos o resto da noite olhando as poucas
estrelas que restaram no céu.

Acordo de manhã com o sol forte me queimando o


rosto. Estou deitada no peito de Jack que ainda dorme
profundamente.
Passamos a noite na colina, como isso foi
acontecer? Não me lembro de ter dormido, uma hora
estava vendo o céu estrelado e na outra, acordo com o sol
batendo no rosto.
Me levanto apressada, acordando Jack no processo.
Ele abre os olhos sonolentos, senta-se calmamente,
um longo bocejo sai de seus lábios, enquanto coça a
cabeça, fazendo com que seus cabelos fiquem ainda mais
bagunçados que o normal, e esfrega os olhos.
— Bom dia — diz roucamente.
— Nós dormimos aqui... Amélia deve estar
preocupada.
— Relaxa, eles nem devem ter acordado ainda —
diz espreguiçando-se.
— Pode ser, é melhor eu voltar logo então — digo
já descendo a colina rapidamente. Não quero preocupar
Amélia ou Damião, ao menos esse é o motivo em que
quero acreditar por estar tão nervosa de ter dormido aqui,
com ele.
— Espere, eu vou junto.
Escuto Jack gritar, enquanto se junta a mim na
descida.
Andamos rápido pela aldeia, todos parecem estar
dormindo ainda, ao menos não tem ninguém nas ruas.
Abro silenciosamente a porta da casa e percebo que
ninguém está acordado.
— Sim, todos dormindo — sussurro para Jack.
— Como eu disse — ele sussurra de volta.
— Vou me deitar então — digo ainda em sussurros
acenando para minha cama provisória. Não sei como
explicar, mas sinto uma necessidade enorme de colocar
alguma distância entre nós.
Ele acena fazendo sinal positivo com o dedo
enquanto fecho a porta.
Na ponta dos pés, deito-me em minha cama.
Angélica abre os olhos no exato momento em que
encosto o rosto no travesseiro.
— Onde estava? — ela pergunta baixinho, com
olhos atentos em meu rosto.
— Adormeci na colina, nem percebi.
— Com quem estava? — ela continua o
interrogatório, ainda com olhos penetrantes.
— Com Jack — digo relutantemente.
— Hmm — ela acena com a cabeça. — E David, já
se esqueceu dele? Nem se importa mais que ele está preso
sabe-se lá onde? — diz levantando um tom em sua voz.
Quem ela pensa que é para falar assim comigo?
Julgando-me sem nem ao menos saber o que se passa em
minha vida!
Fui tirada da tranquilidade que tinha na Terra e
trazida para um turbulento mundo onde sou princesa.
Tenho que salvar todo mundo, enquanto sou cercada por
criaturas mágicas. Meu melhor amigo e talvez futuro
namorado foi raptado por minha culpa, estou trabalhando
na forma de salvá-lo. Lutei uma batalha sangrenta apenas
alguns dias atrás e estou formando um exercito para matar
meu avô.
— Do que você está falando Angélica? Jack
precisava de mim ontem à noite. Você não sabe o que se
passa em minha vida. David? Claro que me preocupo,
estou com o plano para salvá-lo em andamento. Só acho
que ficar em casa deitada numa cama em posição fetal
derramando lágrimas no lençol não ajudará em nada —
digo as palavras rapidamente às cuspindo de meus lábios.
Ela me olha nervosa ainda.
— A qual é, Melane. Pensa que eu não sei? Eu vejo
a forma como se olham, só acho que David não merece
algo assim. Ele abriu mão de tudo para cuidar de você. Ele
deixou sua família, sua vida, para poder cuidar da sua —
ela diz quase gritando.
— Você não tem o direito de falar assim comigo!
Você pensa que sabe das coisas, mas não sabe. Não sabe o
que se passa entre mim e Jack e muito menos com David,
é apenas uma criança boba que está com ciúmes —
respondo com o mesmo tom de voz que ela.
— David é um homem maravilhoso e você não o
merece. Você nem se importa por ele ter sido capturado
por sua culpa.
A raiva invade meu peito, sinto a fúria crescendo
dentro de mim.
Angélica está errada, eu me importo com David, me
preocupo com ele cada dia que passa. Penso em como ele
deve estar, se está comendo e se está bem, mas não posso
passar os dias sofrendo e chorando como uma
mulherzinha.
Sou uma princesa, as pessoas confiam e dependem
de mim.
Se chorar ajudasse em alguma coisa, eu choraria,
mas não adiantaria nada.
Prefiro agir, ninguém será salvo por uma garota
deprimida que espera as coisas acontecerem enquanto fica
deitada em melancolia.
Sinto minhas mãos esquentando agora, fazia uns
dias desde a última vez que treinei meu controle na casa
de Verônica. Fecho minhas mãos em punhos enquanto
escuto os berros estridentes e histéricos de Angélica ao
meu lado.
Sinto minha cabeça pesada, eu quero me controlar,
mas a queimação não diminui.
— Cale-se agora, Angélica — digo com os dentes
cerrados.
Não entendo sua resposta, seus lábios se movem,
mas sua voz é abafada.
Sinto a queimação nos olhos agora, eles estão bem
abertos e sei que o brilho azulado está aparecendo em
minha pupila, ameaçando tomar conta de toda a íris.
Os lábios de angélica se fecham, cessando a gritaria
imediatamente.
Sinto minha respiração acelerar, assim como meu
coração.
Olho mais uma vez para ela, agora com a certeza de
que o azul cintilante toma conta de toda extensão de meus
olhos.
Respiro profundamente, imagino a força voltando
para o lugar de onde veio, como uma chama se apagando,
sinto a queimação diminuindo lentamente, até o momento
em que some de vez.
Com um piscar de olhos volto à cor verde escura
natural de minha íris.
Angélica ainda está paralisada, com olhos
arregalados e mãos tremendo.
— O que está acontecendo? Porque essa gritaria
toda? — Amélia aparece por entre a parede de cortina com
uma expressão aflita.
Angélica aponta o dedo indicador em meu rosto.
— Foi ela. Ela ia usar seu poder em mim... Seus,
seus olhos estavam brilhando... Azul... Ela ia me matar —
diz gaguejando com o dedo ainda apontando em minha
direção.
— Não seja ridícula, Angélica — Amélia diz
virando o olhar para mim.
— Da próxima vez sugiro que pense bem antes
jogar bobagens no rosto de alguém que é capaz de te
destruir com apenas um olhar — digo isso e me levanto,
saindo pela porta, a fechando com força atrás de mim.
Só preciso sair daquele lugar, ficar sozinha.
Não planejei aquilo, não controlo meu poder e nem
sei se um dia serei capaz de controlá-lo, ele simplesmente
aparece quando tem vontade de aparecer.
Não sei se foi certo ou errado dizer aquelas palavras
a Angélica antes de deixar a casa, mas também não acho
certo o que ela fez comigo.
Me julgar sem nem ao menos me conhecer. O que
ela quis dizer com ―eu vejo como vocês se olham‖? Jack e
eu somos amigos. Eu o estava ajudando noite passada, é
isso que os amigos fazem, não é?
Como ela pode jogar na minha cara que não me
preocupo com David?
Eu me colocaria no lugar dele se eu pudesse, mas
eu não posso.
Minha mente tem sido um caos todo esse tempo,
dizer que não me preocupo é como me dar um tapa na
cara, tudo o que tenho feito até agora é me preocupar, com
todos.
Ando em passos fortes e raivosos me afastando da
aldeia, sem nem ao menos olhar para onde estou indo,
apenas vou me afastando por entre os galhos secos,
tentando conter minha raiva. Quando dou por fim, percebo
que estou de frente para margem do lago.
Sento-me no chão de terra, ainda estou furiosa.
Levanto-me inquieta e começo a jogar pedras e
gravetos no lago com toda minha força.
Alguns segundos se passam, levanto minhas mãos
até meus lábios e grito o mais alto que consigo até sentir
minha garganta arranhada doer.
Mais calma, volto em passos lentos até a aldeia,
dessa vez sabendo para onde estou indo. Caminho pelas
ruas até chegar onde os treinos estão acontecendo.
Edmundo está sentado numa pedra observando as
pessoas enquanto lutam com espadas.
Sento-me no chão ao seu lado.
— Princesa. – Ele me cumprimenta, assim que seus
olhos azuis me localizam no chão. Seus olhos me lembram
os de David. Não são de um tom turquesa e nem tão
grandes e brilhantes como os dele, os de Edmundo são de
um tom mais frio, mas ainda sim é familiar, algo na forma
doce como ele me olha.
Sorrio fracamente em sua direção.
Um som de espadas se chocando chama minha
atenção.
É Jack que luta com Daniel, ensinando as pessoas
ao seu redor.
O suor escorre por seu pescoço liso, onde seus
cabelos dourados estão grudados, seus olhos negros
parecem concentrados demais, e nos seus lábios há um
lindo sorriso enquanto ataca ferozmente com seu sabre.
Jack está sempre sorrindo, quer dizer, nas horas em
que não está emburrado ou rabugento com uma carranca.
Na maior parte do tempo ele tem um sorriso no rosto. É
como se nada o abalasse, como se algo da criança que ele
foi até poucos dias atrás ainda estivesse vivo dentro dele.
Crianças estão sempre felizes, não importa o que. Um
sorriso surge em meus lábios enquanto o assisto lutar, não
quero que ele mude nunca, não importa o que as pessoas
digam ou pensem sobre ele, ninguém o conhece como eu
conheço, ninguém sabe como ele é por dentro e é assim
que eu quero que ele fique para sempre, sendo ele mesmo.
— Ele luta bem — Edmundo diz sem tirar os olhos
da luta.
— Seu pai também — lhe respondo.
— Sim, meu pai tem anos de experiência, Jack não.
— Como vão as coisas por aqui?
— Muito bem. As pessoas estão melhorando e
aprendem rápido, logo estarão prontos para batalha.
— Só espero que ninguém nos ataque enquanto isso
— digo ainda com os olhos em Jack.
— Se eles vierem, estaremos preparados, princesa.
Não lutará sozinha — Edmundo diz me olhando.
Nesse instante, Daniel ataca com toda sua força,
chocando sua espada com o sabre de Jack, eles estão cara
a cara agora, espada contra espada.
Daniel faz uma careta enquanto o lança no chão
parando seu metal a poucos centímetros do pescoço de
Jack.
As pessoas aplaudem. Com um sorriso Daniel
estende a mão na direção de Jack, ainda caído no chão.
— Mais uma vez — Jack diz já se colocando em
posição de guarda.
Daniel balança a cabeça negativamente.
— Prefiro parar enquanto estou ganhando — ele diz
com um sorriso.
Meio emburrado Jack se afasta vindo em minha
direção.
— Eu teria ganhado se lutássemos de novo, ele sabe
disso —
Edmundo dá risada.
— O quê? — Jack pergunta levantando as mãos
para o alto.
— Nada — Edmundo responde.
— Que cara é essa? — Jack pergunta com os olhos
em mim.
Levanto o rosto surpresa.
— Que foi? — ele pergunta novamente.
— Não é nada — digo olhando pras pessoas que
começaram a lutar a minha frente.
— Edmundo, venha ajudar aqui — Daniel grita.
— Com sua licença, princesa — ele diz com um
aceno.
Jack se senta na pedra, onde Edmundo estava.
— Você está estranha.
Solto o ar com força por entre os lábios.
— É Angélica. Disse que não me importo por
David não estar aqui, e que a culpa é minha.
— Ah, não ligue para o que ela diz, Angélica
sempre foi meio psicopata mesmo, acha que somente ela
tem problemas.
— Ela me deixou nervosa — digo mexendo em
meus dedos.
— Quem ela não deixa?
— Quase usei meu poder nela... Quer dizer, eu não
ia usar, eu não queria, mas isso não é algo que eu possa
controlar ele simplesmente vem. Por pouco consegui ter
controle sobre mim.
Jack me olha em silencio.
— Você me acha um mostro agora? — pergunto
olhando para minhas mãos.
Ele demora apenas uns segundos antes de
responder.
— Não — levanto meu olhar até seu rosto. — Não
é culpa sua, Melane. Não pode se culpar por coisas que
não pode controlar. Angélica que não devia ser tão
burrinha e te provocar assim.
Eu sorrio.
— Mesmo assim, eu não devia ter feito aquilo, me
sinto mal por isso agora. Eu a ameacei antes de sair, e isso
não está certo.
Ele ri alto agora, jogando a cabeça para trás.
— Você a ameaçou? Como?
— Disse que não devia mexer com alguém que
pode destruí-la com os olhos.
Ele ri mais alto ainda.
— Aí, eu queria ter visto essa — ele segura a
barriga enquanto ri.
— Jack, não tem graça — digo me esforçando para
segurar o riso preso em minha voz.
Não consigo e começo a rir junto com ele. Rio tanto
que sinto os olhos lacrimejando e minha barriga dói.
— Tenho que pedir desculpas a ela — me levanto
para voltar até a casa.
— Está bem. Quer que eu vá junto?
— Não precisa, vou sozinha.
— Ok — ele me joga uma pedrinha no ombro,
enquanto me afasto. Viro o pescoço apenas o suficiente
para ver Jack rindo sozinho, sentando na pedra.
Fico parada em frente à porta, apenas uns poucos
segundos antes de girar a maçaneta e entrar.
Angélica está sentada a mesa, descascando batatas,
enquanto Amélia costura alguma coisa num tecido
amarelo ao seu lado.
As duas me olham assim que cruzo a porta, mas
ninguém diz nada a principio.
Respiro fundo uma vez antes de começar.
— Eu sinto muito. Foi covardia de minha parte agir
daquela forma, reconheço e peço desculpas.
Amélia sorri levemente para mim de sua cadeira.
Angélica mantém seus olhos presos nos meus.
— Me desculpe também por dizer tudo aquilo,
estava apenas preocupada. Fico muito nervosa às vezes,
quando estou preocupada.
Aceno com a cabeça.
— Caso encerrado, não se fala mais nisso. Estamos
entendidas? —Amélia pergunta com uma de das
sobrancelhas levantada.
— Sim — Angélica e eu respondemos em
uníssono.
Mas tarde nesse mesmo dia volto a me sentar na
pedra em que Edmundo esteve, para olhar o treino e ver
como as coisas estão indo.
As pessoas estão melhorando. Muitos homens já
sabem lutar desde pequenos, apenas os mais jovens não
conhecem as técnicas de luta.
Daniel e Edmundo parecem se divertir ao ensinar o
povo.
Jack também está ajudando, toda vez que me sento,
o vejo batendo espadas com alguém, ou então atirando
flechas, sempre acertando o centro dos alvos.
Parece que tudo está dando certo até agora.
Não fomos atacados depois daquele dia sangrento
em que me revelei. Talvez tenham ficado com medo ou
então estejam armando algo muito terrível, não tem como
saber.
Não sei como será no dia em que atacaremos os
portões reais e muito menos como será a hora em que terei
que derrotar meu avô. A ideia de matá-lo não me agrada
nem um pouco.
Edmundo senta-se ao meu lado novamente.
— Edmundo? — pergunto sem tirar os olhos das
pessoas lutando.
— Sim?
— Você sabe o que aconteceu? Digo, com o rei?
Ele pensa um segundo antes de responder.
— Acho que ninguém sabe. Ele era um homem
bom, antes de tudo isso. Eu gostava dele, todos
gostávamos. Num certo dia acordou e ordenou a morte de
seu filho, então sua esposa desapareceu, poucos dias
depois tudo aqui foi destruído com magia — ele diz
olhando para o horizonte.
— Ele tem poder de magia?
— Não, ele teve ajuda de alguém. O rei é como
todos os outros dragões, apenas se transforma em um.
— Quem o ajudou então?
Ele levanta os ombros.
— Quem sabe? E isso importa? Quem ajudou? —
ele pergunta me olhando.
— Talvez, pois essa pessoa pode continuar o
ajudando.
Ele pensa sobre isso um minuto.
— Não se preocupe, temos você lutando ao nosso
lado — ele diz sorrindo.— Temos magia lutando por nós
também.
— Uma luta para a plateia princesa? —Jack grita a
alguns metros de distância.
— Não quero envergonhá-lo — grito de volta.
As pessoas a sua volta dão risada.
— Vai lá — Edmundo diz sorrindo.
Me levanto, arrastando a ponta de Komodo pelo
chão no caminho, já me acostumei a levá-lo para onde
quer que eu vá, me sinto segura com ele por perto e ele
sente que me protege, nós formamos um belo time juntos.
Jack está parado com seu sabre na mão, sorrindo
em minha direção, enquanto me aproximo.
As pessoas estão animadas, os olhos grudados em
nós.
Me endireito, levantando Komodo.
— Pronta? — ele pergunta.
— Eu sempre estou — digo acenando com a
cabeça.
Ele avança, chocando sua espada contra a minha.
Andamos em círculos, enquanto raspamos nossas espadas
freneticamente pelo caminho.
Algumas pessoas gritam, outras dão risadas altas,
enquanto algumas apenas observam. Crianças aparecem
por entre as pernas dos adultos para ver a princesa lutar.
Jack ainda sorri, embora vez o outra faça uma
careta quando lanço Komodo em sua direção com força.
Com um golpe planejado, arrasto Komodo pelo ar
acertando diretamente o centro do sabre de Jack, o tirando
de suas mãos e arremessando para longe. Com um chute
em seu peito o derrubo no chão apontando minha espada
para sua garganta.
Todos aplaudem alto e gritam.
— Eu disse — digo, enquanto estendo minha mão.
— Não vale, ela tem uma espada mágica — diz
com o dedo apontado em meu rosto.
As pessoas riem ainda mais.
O sol está quase se pondo agora, vejo os últimos
raios sumindo ao longe.
— É melhor eu ir para casa de Amélia, você vem
Jack?
— Não, hoje não.
— Onde você mora? – pergunto curiosa.
Ele me olha por um segundo com um meio sorriso
nos lábios.
— Você já esteve lá.
— É na caverna? Você mora lá?
Ele acena com a cabeça.
— Por todo esse tempo você morou lá?
Ele levanta os ombros, acenando mais uma vez.
— Minha antiga casa traz muitas lembranças, das
quais não gosto de lembrar — diz por fim.
Penso um segundo antes de dizer.
— Quer saber, o clima lá na casa da Amélia não
está muito bom mesmo, posso ir com você?
Ele me olha sorrindo.
— Mas é claro.
— Edmundo, você pode avisar Amélia que não
dormirei em casa hoje? — pergunto quando ele se
aproxima.
Ele nos olha por meio segundo.
— Está bem, princesa, eu aviso.
— ótimo, obrigada.
Sorrio para ele antes de sair com Jack para dentro
da floresta seca.
— Sabe, morar aqui nem é tão ruim assim — digo
no meio do caminho.
— Não, não é — ele responde sem se virar.
— Aqui é calmo, tranquilo e devia ser lindo quando
as coisas ainda eram... Vivas — digo olhando em volta.
— É, isso aqui já foi bem mais bonito. Havia
muitas flores nas árvores e frutas de todos os tipos por
todos os lados, era muito bonito.
— Eu imagino. Na Terra temos muitos lugares
bonitos também. Onde eu moro ou morava, lá é bem
gostoso, temos uma floresta perto de casa e a grama
sempre tem um cheirinho de chuva que eu adoro. Todos os
dias os pássaros cantam bem cedinho em minha janela.
Minha avó sempre colhia flores para por no meu quarto —
digo com o olhar e o pensamento longe.
— Sente falta de casa não é? — ele pergunta, agora
me olhando.
Casa. Não sei mais onde é isso e nem onde
pertenço. Supõe-se que casa é o lugar onde temos pessoas
que amamos ou o lugar onde nos sentimos bem sem nem
saber o motivo. Não tenho mais a pessoa que amo me
esperando em casa e já não sei onde me sentirei bem de
novo, então... Quem sabe?
— Sinto falta do meu quarto, quando eu era
pequena, minha avó disse que eu podia pintar as paredes
da cor que eu quisesse, escolhi amarelo porque é a cor do
sol e azul porque é a cor do céu — digo sorrindo sozinha.
Jack também tem um leve sorriso nos lábios.
— Eu me sujei inteira para pintar as paredes, mas
no final ficou tão bonito. Minha avó pintou flores brancas
ao lado de minha cama para que elas fossem a primeira
coisa que eu visse quando abrisse meus olhos. Uma vez vi
um retrato de minha mãe segurando as mesma flores,
minha avó disse que meu pai sempre lhe trazia essas flores
brancas , mas eu nunca as vi em nenhuma lugar, apenas na
parede e na fotografia.
— Ela parece uma boa pessoa. Sinto muito.
Aceno com a cabeça.
Chegamos à caverna de Jack, corro os olhos pela
área esperando ver goblins fedorentos nos primeiros
passos da decomposição, mas surpreendo-me, quando não
encontro nenhum.
— Onde estão os goblins?
— Dei um jeito neles. Não ia ficar com aquela
cambada apodrecendo perto de minha casa.
— Ainda bem que não estão aqui — digo com um
suspiro.
Hoje a noite esfria um pouco mais, ficamos dentro
da caverna encolhidos, cada um com uma coberta,
sentados de frente um para o outro, enquanto
conversamos.
— Jack? — pergunto pensativa.
— Fala.
— Você não teve irmãos?
Ele balança a cabeça negativamente antes de
responder.
— Não, sem irmãos.
— E sua mãe? O que aconteceu com ela?
Nunca falamos de sua mãe antes, sei que perdeu o
pai muito jovem, mas e ela?
Ele abaixa a cabeça, encarando o chão com uma
expressão estranha no rosto.
— Jack?
Depois de uns poucos segundos ele fala sem tirar os
olhos do chão.
— Ela... Aconteceu algo com ela quando eu era
pequeno — é tudo o que ele diz.
— O que aconteceu?
Ele levanta o rosto, me olhando diretamente nos
olhos, ele parece triste.
— Podemos só, não falar sobre isso?
Aceno, dizendo que sim com a cabeça. Não sei o
que pode ter acontecido com sua mãe, mas se ele não se
sente bem nem para contar, não deve ter sido nada fácil, e
eu respeito sua vontade de querer ficar calado. Existem
coisas que são difíceis demais para suportar, ainda mais
para compartilhar com os outros. Eu sei disso, passei por
muita coisa parecida em minha vida.
Depois disso, Jack fica calado, o silencio reina
dentro da caverna. Sinto-me mal por ter tocado no assunto,
e penso que a melhor coisa a se fazer agora é dormir, o
deixar sozinho.
Então me deito e durmo cedo, de qualquer forma o
treino me deixou exausta. Adormeço no exato momento
em que encosto minha cabeça no travesseiro improvisado
de casacos.
Essa noite eu sonho, com David.
Ele está perto do lago, mas ele não é mais cinzento
e escuro, ele é claro, azul esverdeado com águas
cristalinas. O sol bate diretamente em seu rosto, seus olhos
turquesa refletem a luz, se transformando novamente em
mágica. Sua pele perfeita sobe seu cabelo muito preto
pingando água que cai, deixando gostas presas em seus
cílios escuros.
Ele me olha sorrindo, enquanto me aproximo.
— Sinto sua falta — ele diz me olhando
diretamente nos olhos.
— Eu também sinto a sua.
Me sento ao seu lado no chão de grama verde e
fresca. Sua mão se fecha sobre a minha e nossos joelhos se
tocam.
— Onde você está? — pergunto olhando dentro de
seus olhos feitos de mágica.
Ele dá de ombros.
— Vamos falar de coisas boas. Como tem sido a
vida? — ele pergunta sorrindo.
— Penso em você todos os dias.
Ele ignora o que digo.
— Soube que venceu vários soldados da guarda real
e que o povo da aldeia te adora.
Aceno com a cabeça.
— Muito bom, você vai conseguir, Mel, eu sei que
vai. Você tem muito mais força do que pensa que tem.
— Quando vou te ver de novo? — pergunto,
virando seu rosto em minha direção.
Ele segura minhas mãos gentilmente, as tirando de
seu rosto.
— Está tudo bem, Mel — diz beijando levemente
meus dedos.
— Não, não está. Por favor, me diga onde você está
para que eu possa tirá-lo de lá — tenho que me esforçar
para manter as lágrimas dentro dos olhos.
— Tudo bem seguir em frente, Mel, eu entendo.
Você não tem escolha. Você ama quem você ama, simples
assim.
— Eu amo você — digo sussurrando.
Ele sorri docemente me olhando.
— Eu sei.
Então tudo se torna uma imagem escura e borrada,
vejo apenas os olhos azuis se misturando entre os borrões
negros, desaparecendo.
Acordo de uma vez, com suor escorrendo pela
testa.
Meu coração acelerado, batendo
descontroladamente, esse sonho pareceu tão real. Sua voz,
seus olhos, tudo tão real.
Fico deitada uns segundos pensando em suas
palavras.
―Você não tem escolha, você ama quem você ama‖.
Tudo que quero é encontrá-lo.
Olho ao meu lado procurando por Jack, mas no seu
lugar encontro a parede da caverna pintada de azul e
amarelo, algumas poucas flores brancas pintadas
desjeitosamente ao meu lado.
Fico parada, admirando, lágrimas ameaçando rolar
por meu rosto.
Então ele entra pela porta de pedra improvisada.
— Ah, você já acordou. Gostou? — diz apontando
para a parede.
Aceno com a cabeça.
— Você fez tudo isso? É maravilhoso — digo
emocionada.
— Não foi nada. Tinha um pouco de tinta guardada
aqui há muito tempo, eu gostava de desenhar quando era
pequeno, você entende o que quero dizer, pequeno de
quando realmente era novo — diz dando de ombros.
— Obrigada, Jack, significa muito para mim —
digo, enquanto me levanto e o abraço forte pela cintura.
Ele me abraça de volta sorrindo.
— Gostou das minhas flores? — diz sorrindo ainda
mais.
Olho mais uma vez pros rabiscos formando
pequenas flores brancas e também dou risada.
— A intenção é a que conta, não é o que dizem? —
ele pergunta.
— Está perfeito, Jack — digo ainda olhando a
parede.
— Não fique convencida, não fiz por você, fiz por
mim, fiquei com inveja de sua parede da cor do sol e do
céu.
Eu apenas sorrio para ele mais uma vez, enquanto
olho pras cores que sempre me deram esperança e
tranquilidade, mesmo nos dias mais difíceis.
Um pedacinho de minha antiga casa, aqui, uma
parte de mim feita por ele, guardada dentro dessa
caverna... Algo me faz pensar que agora esse não é apenas
o lugar secreto de Jack, é meu também, ou então, nosso.
Olho mais uma vez para Jack sorrindo, ele deve ter
acordado cedo para fazer tudo isso, e ainda sem me
acordar, quer dizer, silencio não é uma das virtudes de
Jack. Começo a rir sozinha, o imaginando pintando as
paredes enquanto tenta não fazer barulho.
Capítulo
13
Conflitos

Não temos muito tempo de apreciar a vista, um


rugido alto chama nossa atenção. Vem lá de fora e o som
começa a
aumentar.
Saio correndo da caverna com Jack, para ver o céu
repleto de dragões voando em direção à aldeia.
Alguns soltam fogo pelo caminho, enquanto outros
apenas gritam furiosamente se lançando mais rápido no
céu. Observamos apenas uns milésimos de segundos antes
que eles sumam de vista.
Jack e eu nos olhamos apenas um segundo antes
dele se transformar em um dragão ao meu lado.
Com a ajuda de sua pata subo em suas costas e com
um salto estamos voando em direção aos dragões e a
aldeia.
Jack voa rápido por entre as nuvens, tão rápido que
o vento chega a machucar meu rosto, mas os dragões a
nossa frente são mais rápidos ainda, eles chegam primeiro
que nós, ateando fogo em tudo que aparece pela frente, nas
casas, nas árvores secas e para meu desespero, nas
pessoas.
O ataque surpreende a todos, ninguém esperava por
isso agora. Pensávamos que haviam ficado com muito
medo pela ultima vez.
Em um instante vários homens e mulheres da aldeia
explodem, se transformando em dragões para revidar o
ataque, vejo muitos dos homens de Damião fazendo o
mesmo.
Assim que chegamos, Jack se abaixa voando bem
perto do chão me jogando na terra vermelha, depois sai
voando de volta para o alto.
Confusão total, pessoas correndo para suas casas,
agarrando crianças no colo pelo caminho, gente gritando
enquanto outros fazem a transformação para proteger seu
povo.
Estou no meio desse caos, sozinha, apenas com
Komodo em minha mão, ele está inquieto, sinto suas
vibrações dentro de mim como se fossem as minhas
próprias.
Estou na terra e os ataques no ar, como posso
ajudar dessa forma?
Um dragão de cor verde musgo passa voando,
quase esbarrando no chão. Nesse exato momento me
abaixo, ficando de joelhos, enquanto levanto Komodo
sobre minha cabeça, em poucos segundo ele voa sobre
mim, o aço de minha espada atinge sua carne rasgando
fundo, cortando de uma extremidade a outra, sangue de
sua barriga cai sobre mim no processo e o dragão desaba
na minha frente, seus pulmões dão um ultimo suspirar,
antes dele morrer.
Me levanto, chacoalhando o sangue dos meus
braços, olhando ao redor.
Uma criança grita sozinha em um canto escondido
entre dois bancos de madeira. Corro em sua direção,
enquanto os gritos e rugidos estouram por todos os lados.
Agarro a garotinha pequena, a mesma que sorriu
para mim no dia que me revelei para aldeia. Sangue
mancha sua roupa amarela desbotada, ela está tremendo e
tem lágrimas escorrendo nos olhos.
— Não Se preocupe — digo olhando em seus
olhinhos pequenos.
Não posso ficar com ela no colo, procuro um lugar
seguro para deixá-la, mas nada aqui parece seguro agora.
Uma mulher aparece correndo em minha direção.
pegando a garotinha de meus braços.
— Obrigada, princesa, obrigada por encontrá-la.
Apenas aceno com a cabeça, enquanto lhe entrego a
pequena.
Olho para o céu e vejo Jack arrancando um pedaço
de carne das costas de um dragão com os dentes, ele se
apoia com as garras sobre a casca pesada de seu
adversário, parece estar ganhando fácil a luta.
Uma rajada de fogo é arremessada em minha
direção, não tenho tempo de correr ou de pensar, apenas
coloco Komodo em minha frente, o fazendo de escudo.
O fogo bate em sua superfície, o fazendo ficar
vermelho como brasa, no exato momento da colisão,
depois rebate as chamas, as fazendo voltar diretamente de
onde vieram, acertando o dragão amarelado em cheio.
Um rugido agudo de dor chama minha atenção,
procurando no céu vejo um pequeno dragão avermelhado
tentando se livrar da boca com dentes afiados de um
dragão duas vezes maior. É Rachel.
Ela precisa de ajuda, o que ela está fazendo no meio
disso tudo?
Não penso duas vezes antes de agir, arremesso
Komodo com todas as forças para o alto. Ele voa para
cima, rodopiando no caminho, tão rápido como uma bala,
atingindo o coração do dragão esverdeado que está
atacando Rachel. Suas presas soltam a carne das costas
dela para gritar de dor antes de cair no chão em sua forma
humana.
Ela me olha de cima e faz um som que acredito ser
de agradecimento. Eu sorrio de volta, fazendo joia com o
dedo.
Ando em passos largos até o homem caído, piso em
seu peito e arranco Komodo de seu coração. É incrível,
mas não sinto nenhuma piedade ou dor em vê-lo dessa
forma, estou mudada, mais forte.
Jack passa voando rápido bem perto do chão,
fazendo com que meus cabelos voem em meu rosto,
atingindo um dragão com uma batida potente no caminho,
depois soltando chamas em sua direção antes de levantar
voo novamente para o alto.
Tento olhar para o céu a procura de um alvo para
arremessar Komodo, mas todos parecem estar se
movimentando rápido demais para conseguir atingi-los.
Nesse instante sinto uma baforada quente atrás de
mim, bem na minha nuca, me preparo para virar
segurando Komodo com força entre os dedos, mas antes
que possa fazer isso, algo me agarra pelas costas me
levando com sigo para o ar, antes de soltar rajadas de fogo
no dragão as minhas costas.
É um dragão azulado, ele me segura entre as garras,
com sua ajuda subo em suas costas, ele vira o rosto em
minha direção, vejo os adoráveis olhos azuis de Edmundo,
me olhando da mesma forma carinhosa. Sorte que os olhos
são as únicas coisas que não mudam quando eles se
transformam, essa é a única maneira de saber quem são.
Dou tapinhas em sua cabeça o agradecendo.
Em suas costas, agora no ar, tenho uma visão
melhor.
Me seguro da melhor forma que posso, apenas com
minhas pernas agarrando firmemente enquanto arremesso
Komodo no dragão a minha esquerda, Komodo rodopia no
ar como um bumerangue, lhe cortando a garganta antes de
fazer a volta e parar novamente em minha mão.
Edmundo avança com tudo sobre um dragão de cor
amarronzada lhe mordendo o pescoço brutalmente.
Fico de joelhos em suas costas, me arrastando até
perto de sua cabeça onde posso ver com clareza o pescoço
exposto do dragão amarronzado, perfuro-lhe a carne
profundamente com minha espada, sinto a energia de
Komodo dentro de mim no mesmo instante.
Edmundo lhe atiça fogo antes mesmo de atingir o
chão em sua forma humana.
Me coloco na posição antiga, sentada novamente.
Muitos rebeldes atacam violentamente, sem
nenhuma piedade, jogando rajadas de fogo pelo ar,
mordendo, despedaçando, rasgando e destruindo os
soldados reais.
Ainda sim, posso ver pessoas sofrendo no chão,
crianças correndo ao lado de suas mães, irmãs e irmãos
assustados. Estamos encorajados e destemidos a lutar, mas
eles são muitos, há muitas pessoas indefesas aqui também.
É então que começa novamente, mas dessa vez não
sinto medo por ele estar vindo, sinto-me aliviada, na
verdade.
O fogo começa a crescer dentro de mim, bem mais
forte dos que as outras vezes, se espalhando para todos os
lados, tomando conta de cada parte de mim.
Sinto-me poderosa, posso ver reflexos azulados
saindo de mim e sei que meus olhos estão acessos agora,
assim como minhas mãos segurando Komodo.
Fico de pé nas costas de Edmundo, sem
desequilibrar.
Já não penso mais, a magia toma conta de mim, ela
age sozinha agora, faz o que eu quero que seja feito, mas
faz por si só.
Raios azuis saem de mim, iluminando todo o céu,
formando um mar de luz ao meu redor.
Cada dragão atingido pela luz entra em colapso de
chamas azuis cintilantes, os dragões a quem eu protejo
nada acontece, a não ser uma luz que brilha quando lhes
toca a pele, apenas o inimigo sucumbi pelo poder.
O céu brilha com as chamas que resplandecem dos
inimigos, as pessoas no chão param para olhar, enquanto
eles caem em suas formas humanas lentamente no chão.
O céu está limpo agora, apenas meu povo está no
ar.
Aos poucos sinto o calor voltar para dentro de mim,
então posso ver com claridade novamente. Está feito.
Edmundo mergulha no céu, parando em terra firme,
onde desço de suas costas.
Uma multidão de homens mortos, por todos os
lados onde olho.
Sangue por todas as partes, inclusive em mim, na
maior parte de mim, Komodo pingando gotas vermelhas e
o cheiro de sal e ferrugem tomando conta do lugar.
Não desmaio dessa vez, não sinto minha cabeça
doer e nem aquela sensação de descontrole ou de perdição,
sinto-me forte. Pude ajudar esse povo, o sentimento de
estar fazendo o certo toma conta de mim enquanto todos
ao meu redor gritam em comemoração.
O grande dragão preto de olhos da mesma cor, para
ao meu lado me olhando. Já ouviu dizer que podemos
sorrir com os olhos? É dessa forma que ele me olha agora.
Edmundo se junta a mim também, com os mesmos
olhos sorridentes que Jack.
A garotinha que segurei nos braços surge da
multidão e abraça minhas pernas.
— Obrigada, princesa Melane — ela diz com o
rosto afundado em minha perna direita.
Pego a no colo, ela fecha seus bracinhos pequenos
ao redor de meu pescoço.
— Eu que agradeço, sem você não teria
conseguido. Você me deu forças àquela hora, sabia?
Ela me olha com olhinhos brilhantes enquanto sorri.
Coloco-a de volta no chão, ela corre para sua mãe.
A confiança dessas pessoas se multiplica cem vezes
mais nesse instante, todos parecem ter as esperanças
renovadas, mais uma vez.
Todos, inclusive eu.

É noite, ainda tem pessoas enterrando os mortos ou


apenas os queimando pelos cantos.
Caminho pela aldeia, olhando tudo a minha volta.
As coisas parecem às mesmas, casas velhas, crianças nas
ruas, pobreza e seca para qualquer lugar que olho, mas se
olhar com um pouco mais de atenção, você vera que nem
tudo está igual. O olhar nos rostos das pessoas está
diferente, elas exalam vida, sabem que tudo irá mudar e
que esses dias ruins estão para acabar.
Jack está terminando de enterrar um homem
quando me aproximo.
— Como se sente? — ele pergunta
— Confiante... Sinto que logo as coisas voltaram a
ser como antes.
— Espero que sim, meu bem, alguns dias atrás eu
era só um menininho que podia fazer o que quisesse o dia
todo. Olhe para mim agora, estou cavando covas — diz
revirando os olhos
Sorrio para ele.
— Formamos um belo time hoje, não?
— É, tem essa parte boa de crescer, quer dizer,
tirando a parte em que fiquei tão bonitão assim, me
transformar em um dragão ficou muito mais divertido
agora que sou grande — ele diz com um sorriso largo.
Damião e Edmundo se aproximam de nós enquanto
rimos juntos.
— Boa luta, princesa — Edmundo diz.
— Tive ajuda de um amigo — digo piscando para
ele.
Jack olha com uma cara feia e ao mesmo tempo
engraçada para mim. Apenas dou de ombros em resposta
ao seu olhar.
— Princesa, espero que esteja preparada, pois
atacaremos amanhã — Damião diz sem delongas.
Mil coisas passam em minha cabeça nesse
momento, pensamentos sobre as pessoas que lutarão ao
meu lado, sobre suas famílias que ficarão para trás, sobre
David e se o verei novamente, sobre minha vida a de Jack
e o que será do destino de meu avô e de todo o povo de
Ninho de Fogo. Tudo isso será decido amanhã.
Aceno com a cabeça para Damião.
— Estou pronta.
— Todos foram bem treinados, mesmo que tenha
sido em pouco tempo. Pessoas desesperadas podem fazer
coisas inimagináveis, ainda mais quando se trata de suas
famílias e seu mundo — Damião diz confiante.
— Sim, você os treinou bem, e fizemos um bom
trabalho hoje. Confio em você.
Ele sorri.
— Não podemos esperar mais, outro ataque
surpresa como esse, não sei se resistiríamos, tem muitas
pessoas inocentes por aqui, e temos a vantagem da
surpresa, eles esperam que estejamos cansados, e
indefesos — Edmundo diz pensativo.
— Iremos por terra e pelo ar, dividindo os soldados
pela forma em que são mais eficientes. Os dragões irão na
frente, sobrevoando a área, atacaremos com fogo primeiro,
depois atacaremos por terra, destruindo tudo que aparecer
pela frente — Damião diz mais uma vez, parecendo muito
confiante. — Eles não estarão esperando por isso, mas
tenho certeza de que o castelo estará bem guardado.
Depois do que fez com aqueles soldados, tenho certeza
que colocaram segurança máxima por lá.
— Somos numerosos, e estamos com a vantagem
da surpresa ao nosso lado, e temos você conosco, princesa
— Edmundo diz novamente.
— Queremos penetrar o castelo, e colocá-la dentro,
para então atacar o rei — Damião diz me olhando.
Aceno para ele.
A ideia de matá-lo, mesmo não o conhecendo e
sabendo de todo mal que ele causou, não me agrada, mas
não existe outra maneira disso tudo acabar. Farei o que
tenho que fazer, mesmo sofrendo com isso.
— Meus melhores soldados estarão ao seu lado,
não te abandonarão.
— Eu também ficarei perto de você — Jack diz
virando o rosto em minha direção.
Sorrio para ele.
— Uma vez que tivermos o rei em nossas mãos a
batalha terminará. E nós venceremos — Edmundo diz com
os olhos brilhando.
— Em palavras parece simples, mas não será assim
tão fácil quanto parece — Damião diz olhando para
Edmundo.
— Iremos conseguir — é tudo o que digo.
— Mas antes temos um presente.
— Presente? — pergunto sem entender.
— Sim, venha comigo.
Eu o sigo com Jack ao meu lado. Vamos andando
até chegar a uma casinha pequena.
— Entrem.
Estendida em uma cama feita de madeira velha, está
uma armadura de aço brilhante, reluzindo com os poucos
raios de sol que entram pela janela.
Ela tem exatamente meu tamanho.
Damião e Edmundo sorriem ao meu lado, enquanto
eu e Jack olhamos a armadura com admiração.
— É linda — digo agradecendo.
— É feita com o aço mais poderoso que temos aqui.
Foi difícil fazer, mas todos aqui temem pela sua
segurança, então com muito esforço conseguimos terminá-
la noite passada — Edmundo diz.
— É maravilhosa, obrigada.
— E eu? Ninguém teme por minha segurança? —
Jack diz ao meu lado.
Damião dá uma risada.
— Todos teremos armaduras, nada tão poderoso
quanto essa, mas iremos nos virar bem — ele diz ainda
sorrindo.
— Sei — Jack diz parecendo rabugento, para
variar.
— Deixarei na casa de Amélia antes do anoitecer
— Edmundo diz, apontando para minha armadura.
— Obrigada.
Todos da aldeia parecem ocupados hoje, alguns
afiam suas espadas, sentados a frente de suas casas, outros
ajustam seus arcos enquanto alguns treinam seus golpes
nas árvores.
Todos têm algo para fazer no dia antes da guerra
começar.
Tudo poderá mudar amanhã, o destino de tudo
depende do amanhã.
Saio da casa de Damião caminhando com Jack ao
meu lado.
— Sabe, me sinto melhor sabendo que você estará
ao meu lado amanhã — digo uns minutos depois, ainda
caminhando.
— Eu prometi que não iria te deixar sozinha, não é?
— pergunta sorrindo.
— Sim, mesmo assim, obrigada, Jack.
— Pelo quê?
— Por estar comigo. Você tem me ajudado muito,
está me ajudando desde o dia em que te conheci.
Ele balança a cabeça sorrindo.
— Está com medo?
Penso um minuto sobre isso antes de responder, é a
mesma pergunta que Angélica havia me feito dias atrás,
quando cheguei aqui.
Temo por algumas pessoas e por esse lugar, temo
pela vida de David que está precisando de mim, pela vida
de Jack, mas não tenho medo de morrer, minha
preocupação está ligada as pessoas que me rodeiam e a
este povo que merece ser livre e ter paz novamente em
suas vidas.
Farei o que for preciso para salvá-los.
— Não, não estou com medo — respondo sem
desviar os olhos de minhas botas.
Escuto sua risada baixa.
— Você é única, Melane — diz ainda sorrindo
sozinho.
Depois de falar com algumas pessoas e escutar suas
palavras de incentivos, abraços apertados, sorrisos
preocupados e encorajamentos, deixo Jack na ―arena de
treino‖ dando as últimas dicas de luta juntamente com
Edmundo e vou até o lago, sozinha.
Me sento na pedra, balançando minhas pernas na
água fria e chamo por Summer.
— Summer? Você está por aqui? — pergunto alto.
Nada acontece.
— Summer? — grito mais alto dessa vez.
Vejo a água se movimentar, e então uma cauda
verde aparece sobre a água cinzenta.
— Você veio! — ela diz se aproximando de mim.
— Eu disse que viria — digo sorrindo.
— Seu amigo? Jack, certo? Como ele vai?
— Ele vai bem, obrigada por ter ajudado no outro
dia. Jack tem certos problemas com sereias, mas é uma
boa pessoa.
— Sim, muitos têm problemas com sereias por aqui
— Summer diz com um suspiro. — O que lhe trouxe aqui
hoje? — ela pergunta com um sorriso.
— Queria lhe ver. Amanhã iremos atacar o castelo.
— Oh! Desejo-lhe concentração e sorte, que as
fadas orem por você — ela diz me olhando nos olhos.
Não sei exatamente o que isso significa, mas creio
que seja algo bom.
— Obrigada, Summer, vou precisar.
— Você irá conseguir, está no seu destino — ela
diz com a voz linda e melodiosa de sereia.
— Muitas pessoas poderão se machucar amanhã,
isso me preocupa muito. Não conheço muitos dos que
lutarão, mas sei que são boas pessoas e temo por suas
vidas — digo desabafando.
— Você será uma boa rainha, tem bom coração —
ela diz sorrindo.
— Você é uma boa amiga, Summer, me sinto calma
ao seu lado.
— É coisa de sereia, trazemos tranquilidade, não há
nada que eu possa fazer sobre isso e muito menos você
pode fazer algo para evitar — ela diz dando de ombros.
Eu rio.
— Não me importa o motivo, gosto da sensação.
Ela também sorri.
— Só espero que tudo dê certo amanhã, tudo
depende disso.
— Tenho certeza que tudo sairá bem, Melane, foi
feito para dar.
Aceno com a cabeça, tentando acreditar com todas
as forças que tudo ira funcionar. Fazer esse lugar voltar a
ser o que era antes é a prioridade em minha vida, nada
mais é tão sagrado para mim agora.
— Pode ficar aqui por uns minutos? Só não quero
que a tranquilidade vá embora.
— É claro.
Fico sentada com os pés na água gelada e com a
calma que Summer proporciona por mais uns minutos
antes de voltar para a aldeia.
Caminho lentamente, olhando tudo ao meu redor,
tentando imaginar como esse lugar deveria ter sido um dia.
Como seria sem tudo estar seco, e se as árvores tivessem
folhas, a água sendo clara, e as crianças tendo sorrisos nos
rostos ao invés das expressões sombrias e tristonhas de
sempre.
Isso tudo irá mudar, farei de tudo para que mude.
Nem percebo o quanto andei, apenas tomo conta de
todo o caminho quando me aproximo da casa de Amélia.
Jack está sentado perto da casa afiando seu sabre.
— Onde estava? — ele pergunta quando me
aproximo.
— Fui até o lago — digo tranquilamente.
Ele apenas me olha sério por uns segundos.
— Sozinha?
Aceno com a cabeça.
Ele bufa e olha para longe.
Sei que Jack não gosta de sereias, também sei que
ele tem um bom motivo para isso, mas Summer é
diferente, ela não é má. Gosto dela e confio nela, sei que é
minha amiga.
Ainda sim, me sinto mal pela forma que ele me
olha agora, como se eu o tivesse traído de alguma maneira.
— Você não se lembra de nada do que disse, não é?
— pergunta friamente.
— Lembro-me de cada palavra, Jack, mas...
— O que você tem na cabeça? Quer morrer nas
mãos de uma sereia pegajosa? É isso, Melane? Garota
estúpida, no que pensou quando decidiu sair sozinha para
ir ver uma sereia? Qual o sentido disso? — ele pergunta
gritando agora.
— Em nada, Jack, não pensei em nada. Eu apenas
queria vê-la, só isso. Não pode culpar todas as sereias pelo
que aconteceu com seu pai.
— Na verdade, eu posso sim — diz isso e sai
andando para longe de mim.
Me sinto culpada, mas sei que Jack está errado
sobre Summer, sinto algo bom quando estou com ela e não
estou falando sobre esse negócio que as serias tem de te
trazer tranquilidade, estou falando sobre algo mais
profundo, sinto que posso confiar nela.
Fico parada vendo Jack sumir de minha vista.
A noite chaga rápido, apenas porque quero que esse
dia dure para sempre, para termos tempo de nos preparar
para batalha. Quero que amanhã aconteça, quero vencer e
quero ter esse lugar de volta como era antes, mas o medo
por todas as mortes que aconteceram me consome.
Várias pessoa estão amontoadas num lugar,
discutindo a batalha de amanhã. Procuro Jack, mas não o
vejo em lugar nenhum.
Depois de andar por um tempo sem ter nenhum
sinal dele, imagino que ele possa estar na colina, a mesma
que passamos a noite juntos, alguns dias atrás.
Em passos largos começo a andar até lá.
Quando estou na metade do caminho, vejo Angélica
a minha frente, carregando uma armadura.
— É para Damião — ela diz me olhando.
Aceno com a cabeça, não tenho tempo para falar
com Angélica, preciso ver Jack.
— Onde você está indo? — ela pergunta assim que
passo ao seu lado sem dizer uma palavra.
— As pessoas têm que parar de me fazer essa
pergunta — respondo sem olhar para trás, continuando em
meu caminho.
Ela não responde nada.
Continuou andando por um tempo até avistar a
colina e a figura escura de Jack sentado na beira.
Não me preocupo em ser silenciosa em minha
subida, sei que não adiantará, ele me escutará de qualquer
forma.
Assim que alcanço o topo ele se vira e me olha.
— Hei — digo tentando sorrir.
Ele não responde.
Me aproximo e me sento ao seu lado, respirando
fundo uma vez antes de dizer.
— Desculpe. Não queria deixá-lo preocupado ou
fazer você se sentir traído, mas... Não sei o que dizer —
digo olhando pras minhas mãos.
Ele não diz nada.
— Sei como se sente. Não o chamei para ir comigo,
pois sei que não se sente bem ao lado dela.
— Não me importaria de ter ido se tivesse me
chamado — diz sem me olhar, mas com a voz calma.
— Não queria que passasse por aquilo de novo.
— Não me importo de ver a sereia, se isso te
mantiver segura.
— Desculpe. Não quero ficar assim com você,
amanhã lutaremos, quero que tudo fique bem entre nós.
Ele se levanta de uma vez, encostando a mão no
galho da árvore ao seu lado.
Me levanto também, ficando próxima a ele.
— Você não entende, não é Melane? — diz sem me
olhar novamente, com o rosto virado para o horizonte. —
Não tem nada a ver com meu pai... Ou com as sereias —
ele se vira me olhando nos olhos agora. — É você. É tudo
sobre você — diz roucamente.
Não sei o que dizer, permaneço parada, olhando
para ele, enquanto seguro minha respiração.
— Sou um fracassado, Melane, não sou nada. Só
quando você chegou é que pude sentir alguma coisa, como
se eu ainda tivesse esperanças. Faz muitos anos desde que
não me preocupo com ninguém... Ou com nada, até você
chegar — ele diz parecendo irritado, mas ao mesmo tempo
preocupado e agitado, é uma mistura de sentimentos e
sensações surgindo em seu rosto que fica difícil decifrar
qual delas ele está sentindo.
Jack respira fundo antes de continuar, ainda
olhando em meus olhos.
— Você parece estar sempre se metendo em
confusão, não consegue entender. Você é a única coisa
boa que me aconteceu em quase trezentos anos, eu preciso
que você fique segura — ele pausa mais uma vez ante de
começar novamente. — Perdi todo mundo que amei nessa
vida, não quero te perder também, não posso.
Simplesmente não posso.
Ele continua me olhando profundamente nos olhos
— Não pode me proteger para sempre, Jack — digo
com um sussurro fraco.
Confusão total reina em minha mente nesse
instante. Ele acaba de dizer que me ama? Ou isso é só
coisa de minha cabeça? Seria um amor de irmão ou algo
mais forte? Nada disso faz sentido para mim agora, minha
cabeça parece um trem desgovernado, e meu coração está
quase saindo de meu peito com a força que bate aqui
dentro.
Me sinto perdida, mas de uma maneira feliz, eu
acho. Nunca me senti tão perdida assim na vida antes, com
essa enorme confusão de sentimentos dançando dentro de
mim.
Ele se aproxima mais uns passos, tirando qualquer
distância que há entre nós.
— Não, mas eu posso tentar.
Estamos tão perto agora que posso sentir seu hálito
quente em meu rosto, seus lindos olhos negros, tão escuros
e profundos quanto um buraco negro pode ser, me olhando
tão penetrantemente que fica difícil não acreditar que pode
olhar dentro de minha alma nesse momento.
Ele inclina seu rosto em minha direção e me beija,
antes mesmo que eu possa ter uma reação sobre isso.
Explosão, por toda parte, derramamento de lava,
começando de onde nossos lábios se tocam até a ponta do
meu dedinho do pé.
Eu o sinto por todos os lados, como se ele estivesse
se fundindo a mim.
Sinto seu cheiro, tão próximo que é difícil
distinguir se é o seu perfume ou o meu, suas mãos em
minhas costas me apertando tão fortemente contra seu
corpo, como se fossemos um só.
Quente, somos feitos de fogo agora. Meu coração
bate rápido com batidas fortes, como jamais havia batido
antes. Seus lábios tão macios e urgentes ao mesmo tempo,
se movendo quase desesperadamente contra os meus, sem
ter cuidado algum sobre a forma como me toca, sem medo
ou delicadeza, apenas sendo impulsivo, imprevisível,
sendo apenas... Jack.
Um suspiro abafado sai de meus lábios, quando sua
mão desliza para trás de meu pescoço, e eu o beijo de
volta. Eu realmente o beijo, com a mesma intensidade.
A sensação ardente de estar completa e no lugar
certo, onde eu sempre deveria ter estado é algo totalmente
diferente do que havia sentido com David.
David... Oh não, como posso estar fazendo isso
com ele? O pensamento me atinge de uma vez.
Me afasto de Jack, desconectando relutantemente
meus lábios dos seus.
Seus lindos olhos negros agora parecem mais
profundos ainda, ele me olha fixamente, sua respiração
ofegante se misturando com a minha, ele ainda têm suas
mãos em minhas costas e os lábios mais vermelhos que o
habitual. Acho que nunca esteve tão lindo como agora.
— Eu não posso fazer isso — sussurro antes de sair
correndo, descendo a colina o mais rápido que posso.
Capítulo

14
Escolhas e Reencontros

Como posso ir para uma guerra amanhã se uma já


está acontecendo dentro de minha cabeça hoje?
Corro o mais rápido que posso para casa de Amélia.
Os pensamentos voando. Não paro para assimilar o
que acaba de acontecer, mas o formigamento em meus
lábios e as batidas frenéticas em meu peito, me fazem crer
que tudo foi real.
Jack me beijou, de verdade e disse que me ama,
mais ou menos. Eu não tenho certeza.
O pior é que eu o beijei de volta, eu realmente quis
beijá-lo de volta. Devo ser uma pessoa terrível mesmo,
Angélica está certa, não mereço David, sou uma pessoa
abominável.
Como posso me deixar ser beijada por um homem,
sabendo que David está desaparecido, provavelmente
preso em algum lugar?
Não conseguiria me olhar num espelho se tivesse
um por perto agora.
Sinto-me fraca, sem saída.
Meu coração não consegue se acalmar, não consigo
distinguir se é por estar me sentindo tão suja e enojada de
mim mesma ou se é pelo beijo.
Como cheguei a isso? Jack e eu éramos amigos, eu
gosto dele, e de estar com ele, da forma como sorri, de seu
cabelo dourado sempre desarrumado sobre sua testa, de
seus olhos escuros, gosto das carrancas que se formam em
seu rosto e da forma como me olha sorrindo sempre.
Gosto de muitas coisas em Jack, ok, mas amigos gostam
um dos outros, não é? Como nossa amizade se
transformou... Nisso? Eu nem sei a palavra correta para o
que somos agora.
O que minha avó diria sobre mim agora?
Provavelmente estaria desapontada... Não. Ela iria olhar
para mim com seus olhos cinzentos e expressivos com
aquele olhar de ―sou velha e sei mais do que você‖ e diria:
―Tudo tem seu tempo‖ ou então ―Tente não pensar
sobre isso agora, tenho certeza que amanhã não irá parecer
tão complicado quanto parece hoje‖. Ela sempre tinha algo
sábio ou confuso para dizer, sinto falta dela para me
ajudar.
E agora? Amanhã iremos para guerra, como Jack
deve estar se sentindo depois disso? Quero que ele fique
focado na luta e não com o pensamento em mim ou em
nosso beijo, ou na fuga que pratiquei depois disso,
descendo a colina como uma macaca ambulante. Quero
que ele fique bem.
―Você ama quem você ama‖ escuto a frase ecoar
novamente em meus ouvidos. Balanço a cabeça na
esperança de esvaziar a mente tirando todos esses
pensamentos confusos de lá.
Estou em frente à porta da casa de Amélia agora.
Respiro fundo, duas vezes, e giro a maçaneta.
Angélica está sentada a mesa olhando a armadura
de Damião.
— A sua está na sua cama — diz se virando para
me ver.
— Ok.
— Você está bem? — ela pergunta com um olhar
de curiosidade.
— Sim — é tudo que lhe respondo.
— Fez o que tinha que fazer? — ela pergunta se
virando na cadeira, me dando as costas.
— Do que você está falando?
— Você estava tão apressada, imaginei que tinha
algo importante para fazer.
Qual o problema dessa garota? Porque tanta
implicância assim? Já não basta a confusão em que me
meti, ainda tenho que aturá-la?
— Faça-me um favor, Angélica? — digo
docemente a ela.
— O quê? — ela diz me olhando.
— Cuide da sua vida! — digo dando ênfase em
casa silaba e me viro, fechando a cortinha perto de minha
cama.
Minha armadura está ao lado de meu colchão,
sendo iluminada pela luz do lampião perto da parede.
Corro os dedos pelo aço lentamente, depois me deito com
as mãos atrás da cabeça.
Nem perco tempo tentando dormir, pois sei que
será inútil, toda vez que fecho os olhos é seus lábios que
eu vejo. Apagar as luzes também não funciona, a
escuridão da noite me lembra seus olhos e seu cheiro
continua impregnado em mim, ele está em todos os
lugares, em cada pedaço de mim, não há como escapar.
―Você ama quem você ama‖, mas e se quem você
ama não for a pessoa certa? E se você não sabe se
realmente ama essa pessoa? E se você não quiser amar
essa pessoa? Se você já tem alguém a quem amar?
Não tenho nenhuma resposta para as perguntas que
não se calam em minha cabeça.
E isso não é só, preciso estar focada para amanhã,
preciso dormir, descansar e ficar preparada para a batalha.
Sou uma princesa mestiça de dragão e bruxa, coisas
assim não deviam fazer parte da minha vida, eu deveria
saber sempre o que fazer, mas acontece que eu não sei,
não faço ideia do que preciso fazer, nem ao menos sei o
que estou fazendo agora.
Fecho meus olhos mais uma vez numa tentativa
fracassada de dormir. Seus lábios suaves voltam a minha
mente mais uma vez, e meu coração dispara de novo. Não
irei conseguir dormir essa noite.
Tento então me lembrar de David, daquela noite em
que me levou para ver as fadas e meus pais.
Lembro-me de voar em suas costas, sentindo o
vento em meu rosto, do brilho azul de suas escamas e da
forma como me sinto bem quando estou com ele.
Lembro-me de seus olhos azuis, aqueles que
sempre adorei, que sempre me acalmavam., lembro-me de
nosso beijo, da forma suave como aconteceu e da
tranquilidade que senti naquele momento. Lentamente
fecho os olhos novamente, tentando manter essas
lembranças em minha cabeça, e então, não é mais seus
lábios que eu vejo, nada mais é tranquilo, é tudo, qualquer
coisa, menos tranquilidade. Com Jack nada é simples da
forma que é com David.
Não posso mais confiar em mim mesma, até meus
pensamentos me traem agora, com apenas um fechar de
olhos.
Isso não vai dar certo, preciso me focar.
Começo a pensar na batalha de amanhã. ―Pelo ar e
pela terra‖, foi o que Damião disse.
Antes disso tudo acontecer, nunca tinha estado em
uma briga em toda minha vida. Sempre fui uma garota
muito pacífica, coisas perigosas ou agressivas sempre me
davam medo. Agora, estou num mundo de dragões e
criaturas místicas com uma espada que se comunica
comigo enquanto tento salvar a todos.
Quem diria que eu, a garota quieta de cabelos
ruivos descontrolados, seria uma princesa?
Escuto uma movimentação do lado de fora e me
levanto para olhar pela janela afastando a cortinha.
O sol aponta no horizonte, enquanto pessoas se
aglomeram no centro da aldeia.
Já amanheceu, e eu nem percebi, estava tão
concentrada em meus pensamentos que nem vi as horas
passando.
Me apresso, vestindo minha armadura e me
atrapalhando no processo, mas por fim acabo conseguindo
colocá-la. Deixo meus cabelos emaranhados soltos, pego
Komodo e abro a porta de cortina.
Vejo Damião na cozinha abraçando Amélia.
— Eu vou voltar — ele diz segurando seu rosto
com as duas mãos.
Ela acena com a cabeça, enxugando uma lágrima
que escapa de seus olhos.
Ele se vira quando entro, fazendo barulho no chão
de madeira.
— Ficou bonita — diz sorrindo para mim.
Amélia se aproxima, me abraçando apertado pela
cintura.
— Nos conhecemos há pouco tempo, mas já sinto
um carinho enorme por você. Fique bem — diz
sussurrando em meu ouvido.
— Obrigada, eu ficarei, e irei trazer David de volta
comigo.
Ela se afasta, sorri e acena com a cabeça.
Angélica está parada na porta, abraçando Damião,
enquanto ele sussurra algo em seu ouvido.
Quando me aproximo ela me olha nos olhos.
— Pode não parecer, mas se cuida.
Apenas faço que sim com a cabeça antes de sair
pela porta com Damião ao meu lado.
— Como está se sentindo? — ele me pergunta
assim que cruzamos a porta.
— Agitada.
— Tudo ficará bem.
Vamos andando no meio da multidão de pessoas,
todos indo na mesma direção. Todos usando suas
armaduras que agora brilham com a luz fraca do sol,
alguns segurando espadas, com arcos presos em suas
costas, outros com escudos redondos e lanças, parecem
confiantes, enquanto marchavam para a batalha.
Daniel está parado em cima de uma pedra, dando as
últimas instruções.
Ele grita, misturando sua voz aos demais gritos e
aplausos que se formam a sua frente.
Corro os olhos pela multidão o procurando. Vejo
mulheres com cabelos presos no alto de suas cabeças,
segurando lanças afiadas, enquanto sussurram algo para si
mesmas, penso que deva ser algum tipo de oração.
Olho por todos os lados, mas não o vejo em lugar
nenhum, quero falar com ele ao menos um minuto antes
de sair.
— Edmundo — digo quando o vejo a minha frente.
Ele não me escuta no meio da multidão e continua
andando. Corro em sua direção, o virando pelo ombro
quando me aproximo.
— Edmundo...
— Princesa — ele diz sorrindo, olhando para
armadura. — Serviu perfeitamente.
— Sim, obrigada, mas você viu Jack? — pergunto
apressada.
— Sim, claro. Ele vai pelo ar, está do outro lado se
preparando com os outros que irão com ele.
Pelo ar? Não foi isso que tínhamos combinado. Ele
lutaria por terra, ao meu lado, foi o que ele disse. Não iria
me deixar sozinha, eu não quero ficar sozinha.
— Algum problema? — Edmundo pergunta,
apertando os olhos enquanto me avalia.
— Não, tudo bem, vou ver se consigo encontrá-lo.
— Está bem. Não demore, sairemos logo.
Digo que sim com a cabeça e me apresso para o
outro lado da aldeia.
Alguns passos rápidos, acenando pras pessoas que
me cumprimentam pelo caminho.
— Princesa, Melane.
Alguém me chama pelas costas, tento ignorar e
continuo meu caminho, mas suas mão se fecham em meu
ombro e sou obrigada a me virar.
— Princesa — é Rachel, ela está vestindo uma
armadura, segurando uma espada pequena nas mãos, seus
cabelos negros e curtos estão presos em um coque.
— Rachel, não sabia que iria lutar — ela parece ser
muito nova para estar aqui.
— Disseram que tenho talento. Será uma honra
defender nosso mundo ao seu lado — diz fazendo uma
reverencia.
— Assim como será honrado para mim — digo-lhe
sorrindo.
Sinto meu coração apertar, uma garota tão pequena,
jovem e magrinha como Rachel, numa luta como essa, me
arrepio apenas de pensar no que poderá acontecer com ela.
— Não se preocupe, Daniel nos treinou muito bem,
estamos preparados, princesa — diz olhando para
expressão preocupada em meu rosto.
— Eu sei. Rachel cuide-se, eu preciso ir agora,
estou procurando Jack.
— Jack? Ele está bem ali, vai atacar como dragão
— ela diz apontando perto de uma árvore, onde Jack está
encostado falando com mais dois homens.
Sinto um frio estranho na barriga no momento em
que o vejo.
— Obrigada — digo, indo na direção da árvore.
Ele me vê se aproximando, parece agitado e
desconfortável.
— Boa luta, princesa — um dos homens grita
quando me vê chegando.
Sorrio para ele.
Jack vira o rosto e começa a andar para longe.
Apresso meus passos para alcançá-lo.
— Hei, Jack, espere — digo quase gritando.
Ele continua andando.
— Hei, Jack?
Ele para e se vira de uma vez.
— O quê? — pergunta friamente me olhando.
— O que houve? — pergunto parecendo calma,
mas por dentro, estou gritando.
— O que houve com o quê? — ele continua gélido.
— Você vai voando, pensei que iríamos junt...
— Mudei de ideia — diz atropelando minhas
palavras se virando para ir embora.
Eu o vejo indo para longe de mim, um aperto
estranho esmaga meu peito e vai aumentando a cada passo
que ele dá.
— Você prometeu que não me deixaria sozinha
nunca mais — grito antes que se afaste demais.
Ele se vira, gritando de volta com as mãos
levantadas para o alto.
— E quem disse que eu cumpro minhas promessas?
— então ele volta a andar, sumindo no meio da multidão.
Por que ele tem que ser assim? Por quê?
Por que as coisas com ele têm sempre que ser dessa
forma? Sempre tudo ou nada, porque nunca se tem um
equilíbrio com Jack? Tudo deveria ser mais simples com
ele, da forma que é com David, como sempre foi.
Sinto vontade de gritar bem alto, tirar tudo de
dentro de mim, só não acho que deva fazer isso agora,
com todo mundo se preparando para guerra, tudo que não
precisam é de uma princesa descontrolada, então respiro
fundo e faço o que todos esperam que eu faça.
Volto em passos lentos até onde Edmundo está, ao
lado de seu pai.
Ele me olha uma vez quando me aproximo.
— Tudo bem?
Aceno afirmativamente com a cabeça, mas não
estou nada bem, na verdade, estou longe de estar.
Respiro fundo, duas vezes, e me obrigo a limpar os
pensamentos de minha mente, preciso estar focada.
Todos estão formando uma fila atrás e ao meu lado,
cada um com sua arma e escudo nas mãos, todos
parecendo muito confiantes.
— E hoje tomaremos de volta o que é nosso! —
Daniel grita para a multidão que nos cerca.
Todos gritam levantando suas armas para o alto.
— princesa, quer dizer algumas palavras? — Daniel
pergunta se aproximando de mim.
Não tenho muita certeza se quero fazer isso, mas é
o certo, essas pessoas precisam disso, é o que tenho
buscado desde que cheguei aqui, fazer esse lugar voltar ao
que era, então ando alguns passos, ficando de frente pras
pessoas.
— Sei que os dias não tem sido fáceis, e que
tiveram muitas perdas, mas tudo isso irá acabar, nada mais
de mortes, fome, ou dor. Nós somos capazes de conseguir
isso, e nós iremos conseguir — lembro-me das palavras
que Jack disse no meu primeiro dia em Ninho de Fogo,
quando estávamos na casa de Amélia. — Esse mundo
merece algo melhor! Hoje faremos isso ser possível outra
vez, eu acredito em vocês! — grito, levantando minha
espada, enquanto a multidão grita de volta para mim.
Dragões passam voando acima de nós, cortando o
céu rapidamente a nossa frente.
Levanto a cabeça e avisto o dragão negro cruzando
as nuvens, enquanto desaparece de vista.
Suspiro uma vez antes de focar a visão e a mente na
luta novamente.
Começamos a marchar rumo ao castelo, todos em
seus devidos lugares, em fila, da mesma forma que se vê
nos filmes, uma guerra de verdade.
Andamos por muito tempo, voando o caminho até o
castelo não parece ser tão longe assim, mas caminhando,
isso parece uma eternidade.
Os dragões aparecem novamente no céu, rugindo
em nossa direção.
É o sinal de que podemos atacar.
Apressamos nossos passos e começamos a correr.
Já posso ver o castelo a minha frente agora, há
homens em toda sua volta e alguns dragões no telhado do
castelo e nos muros de proteção.
Aquela vez em que estive aqui, para recuperar
Komodo, não pude ver com clareza eu mal podia ver um
palmo a minha frente com aquela escuridão, mas hoje está
de dia, bem cedinho, o sol ilumina cada parede rochosa do
castelo fazendo com que pareça ainda mais radiante, quase
com vida própria, enquanto reflete os raios.
É um castelo quase como os que vemos nos livros
de contos de fadas, telhados pontudos formando desenhos
magníficos em sua estrutura, um caminho de tijolos
escuros cerca cada pedaço onde se deve caminhar, há uma
lagoa com água cristalina, praticamente cercando o castelo
todo, grama verde cobre cada pedacinho de terra, as
árvores são imensas, o ar é fresco e a brisa é gelada, tudo
aqui emite vida. É como todo esse lugar devia ser.
Os guardas podem nos ver agora, parecem
surpresos, mas não demonstram estar com medo, ao
menos é isso o que me parece.
Os homens a minha volta gritam, enquanto apertam
os passos em direção a luta.
Edmundo me olha mais uma vez como se
perguntando se está tudo bem pela milésima vez hoje.
Tento dar um sorriso leve e forçado para ele, ele
acena com a cabeça e fica exatamente ao meu lado,
enquanto avançamos em direção a guarda real.
Komodo grita em minha cabeça, ele está tremendo
em minhas mãos, essa batalha também é dele. Meu pai foi
morto pelo rei, Komodo sente falta dele ainda, é como se
meu pai ainda fizesse parte da espada de alguma forma,
isso me faz sentir mais perto dele, então é como se nós três
estivéssemos aqui. Komodo, meu pai e eu, juntos num só
corpo.
Levanto minha espada a minha frente segurando
forte entre meus dedos suados.
Os dragões de nosso time chegam ateando fogo. É
então que a batalha começa.
Os dragões do rei começam a atacar de volta, uma
guerra acontece no ar.
A minha frente, soldados reais avançam.
Corto a garganta do primeiro em uníssono com a
espada de Edmundo, que faz o mesmo com o homem ao
seu lado.
Não tenho tempo de mais nada, apenas vejo o
inimigo e seu sangue que espirra em meu rosto.
Komodo corta facilmente a armadura dos soldados,
como se fossem feitas de manteiga. Avanço sem medo,
acertando todos que aparecem em meu caminho.
Não sinto pena e nem piedade, tento não pensar no
que estou fazendo e sim porque estou fazendo.
Por meu povo, meus pais, vovó Mary, por David,
Jack e por mim.
Todos precisam de salvação.
Giro Komodo no ar, acertando o peito do homem
que tenta me atingir com sua lança.
O próximo coloca seu escudo para se defender, o
parto no meio facilmente com minha espada, e perfuro seu
coração.
Uma olhada rápida para o lado, Edmundo arranca
sua espada do peito de um homem, ele tem sangue no
rosto, assim como tenho no meu, posso sentir o gosto em
minha língua.
O céu parece ser feito de fogo, dragões se atacando
com todas as forças, ateando chamas uns nos outros.
Um deles cai do céu ao meu lado, por poucos
centímetros não sou atingida, mas isso não me amedronta.
Enfio Komodo em seu pescoço, quando percebo
que ele ainda respira.
Quando estou em batalha é como se algo mudasse
dentro de mim, como se uma parte de mim, uma parte
mais forte e corajosa tomasse conta de minha mente, como
para que a outra parte, a piedosa, não estrague as coisas.
Não sei como isso acontece, mas não me importo agora, a
parte corajosa não me permite pensar nisso, e estou bem
assim, posso lutar melhor.
Muitos dos soldados reais estão mortos, jogados
pelo chão, mas ainda há muitos pela frente. A guerra
parece nunca ter fim.
O céu está mais limpo agora, quase não há dragões
adversários, nossos homens derrotaram a maioria deles e
estão terminando com os que ainda restam.
Não sei há quanto tempo estou aqui, cortando
gargantas, penetrando corações e pulmões, mas o tempo
parece eterno.
Edmundo continua ao meu lado, firme, como havia
prometido, não me deixou nem por um minuto.
A não ser agora, com apenas uma olhada em minha
direção ele explode, se tornando o dragão azulado, me
pegando pelos ombros antes de levantar voo.
Tento me soltar para subir em suas costas, mas suas
garras não soltam meu ombro.
Ele sobrevoa o castelo, soltando uma rajada de fogo
num dragão que aparece do nada a nossa frente.
— Me deixe subir, Edmundo — grito.
Ele faz um som estranho, me olhando nos olhos e
depois aponta para o castelo, apertando os olhos em sua
direção.
Edmundo me solta numa parte alta do castelo, e
para ao meu lado, ainda no ar. Ele aponta para entrada,
uma porta feita de ouro, ele quer que eu entre.
O plano, penetrar o castelo e destruir o rei.
Não sabia que faria isso sozinha, pensei que iria
com todos os homens comigo.
Antes que possa perguntar algo sobre isso, ele sobe
no céu, voltando para batalha.
Estou sozinha na enorme sacada.
Olho mais uma vez para o céu, antes de entrar pela
porta, tento procurar Jack, mas não o encontro.
Um frio estranho passa por meu estomago e o medo
ameaça tomar conta de mim.
Me obrigo a não pensar nisso, ele está bem, eu sei
que está, digo isso para mim mesma e entro pela porta de
ouro.
Entro em um quarto, a cama está no centro, enorme,
com aqueles mosqueteiros lindos que vemos nos filmes,
caindo sobre ela, a colcha azul marinho, com fios do que
me parece ser ouro. costurando desenhos simétricos por
seu comprimento.
Tapetes felpudos por toda parte, de um tom de azul
e verde escuro, cortinas azuis, as paredes tem mais
quadros espalhados do que tinta.
Um espelho grande a minha frente toma conta de
quase toda a parede, me aproximo dele. Meus cabelos
estão revoltos ao redor de meu rosto ensanguentado.
Minha armadura já não é mais brilhante e glamorosa, o
sangue escorre por ela, me sinto macabra, algo saído de
um filme de terror, a espada pendurada ao meu lado
pingando gotas vermelhas no tapete macio, e meus
olhos...são de um verde doentio, me olho por mais uns
instantes até poder reconhecer a garota por trás do espelho.
Aos poucos meus olhos voltam ao tom de verde
normal e posso ver alguns vestígios da Melane de antes.
Aceno com a cabeça para mim mesma no espelho e
saio do quarto, abrindo a porta vagarosamente.
Tudo parece muito silencioso por aqui, não vejo
ninguém e tão pouco escuto alguém. Tudo muito calmo.
Há um corredor imenso, varias portas dos dois
lados.
Ando lentamente pelos corredores, deixando gotas
de sangue pelo piso brilhoso feito de mármore, mais
quadros pelas paredes, flores em grandes vasos de cristais
deixam um perfume maravilhoso no ar.
As paredes aqui são de um tom de fúcsia claro e
lavanda, fazendo com que tudo fique mais aconchegante, é
como calma para meus olhos.
Tudo aqui é lindo, é como se nada do que
aconteceu lá fora tivesse atingido esse lugar, como se nada
de terrível tivesse ocorrido nesse mundo.
Não sei para que lado devo ir ou em qual das
centenas de portas desse corredor enorme devo entrar.
Olho ao meu redor, nervosa, sem saber o que fazer. Todos
dependem de mim agora, mas nem sei onde estou.
Continuo andando sem saber para onde vou.
Ninguém aparece, tudo continua silencioso, sem nenhum
sinal de vida.
Onde estão todos? Onde rei Ariel deve estar? E o
mais importante para mim, onde David está?
Komodo treme em minhas mãos, olho em sua
direção com as sobrancelhas levantadas como quem diz,‖
o que foi?‖
Não sinto sua energia em resposta ele apenas
continua tremendo, mas não é como das outras vezes,
agora ele está calmo, me passando uma tranquilidade
familiar, que começa em meus dedos e sobe por meus
braços, tomando conta de meu corpo.
É estranho, estou perdida no castelo do homem a
quem devo matar, não sei o que estou fazendo, mas
inexplicavelmente me sinto segura nesse momento.
Komodo aos poucos se acende em uma fraca luz
amarelada, como a de uma vela.
Fico olhando para ele sem entender o que acontece,
a sensação de calma se intensifica agora, sinto-me
tranquila de repente, quase como da mesma forma que me
senti quando vi meus pais na árvore das fadas.
Levanto os olhos lentamente e me espanto, quase
derrubando o vaso atrás de mim.
É meu pai. Ou o fantasma de meu pai. Ele está aqui,
seus mesmo cabelos ruivos desarrumados e seus lindos
olhos verdes, iguais aos meus, me olhando
carinhosamente, mas ele está translúcido, como um
fantasma deve ser.
Ele não diz nada, apenas sorri para mim.
Eu o olho chocada, vejo que ele tem uma ligação
com Komodo, como se uma pequena linha translúcida os
tivesse interligando, como se ele só pudesse estar aqui,
graças a Komodo.
Ele acena com o dedo indicador para o final do
corredor.
Continuo a olhar para ele.
Meu pai começa a caminhar pelo corredor, seguro
de onde está indo, ele pausa para me olhar quando fico
presa no mesmo lugar.
Acenando com a cabeça, ele sorri mostrando o
caminho e então eu o sigo.
Vou atrás dele sem tirar os olhos de seu rosto, ele
continua a andar, até chegar a uma escada no fim do
corredor, vou atrás quando ele desce as escadas, virando à
direita depois de descer o último degrau.
Nenhum sinal de vida por aqui também, as mesmas
cortinas felpudas o mesmo chão de mármore e os mesmos
tapetes macios estão espalhados por essa sala, meu pai
continua adiante chegando a uma porta feita de madeira
escura.
Depois meu pai sorri mais uma vez para mim e
desaparece, a luz de Komodo aos poucos some e ele volta
a ser o que era antes.
Estou de frente para essa porta, sozinha de novo.
Olho mais um segundo para porta, antes de girar a
maçaneta, ela abre sem fazer o menor ruído.
Uma escada comum de madeira escorrida a minha
frente, desço os degraus, segurando o corrimão. Parece
escuro aqui, quase não há luz, apenas uma ou duas velas
espalhadas pelas paredes.
Continuo descendo, sendo guiada apenas pelo
corrimão.
Chego ao final da escada, parece ser um lugar
velho, cheira mal, um cheiro de sangue e morte, coisas
apodrecendo, nada parecido com o castelo com portas de
ouro que vi lá em cima.
A luz aqui é um pouco melhor, há mais velas presas
nas paredes, continuou correndo o olhar pelo cômodo, têm
jaulas em alguns lugares, nem quero imaginar o que são
aqueles ―montes‖ caídos dentro de algumas delas, parecem
bichos mortos, mas não quero verificar para comprovar.
Tapo o nariz com a mão, mas não adianta, o cheiro
está por toda parte.
Começo a caminhar, examinando as coisas, deve
haver alguma coisa aqui, já que meu pai me guiou até essa
porta.
É quando eu o vejo, jogado no chão de uma jaula.
— David? —pergunto sussurrando.
Ele levanta lentamente a cabeça do chão com
dificuldade.
— Mel? — ele diz roucamente, tentando focar seus
olhos acessos em mim.
— É você — me aproximo da jaula.
Ele se levanta desjeitosamente se aproximando da
grade.
Forço a porta, mas está trancada.
— Se afaste — digo a ele.
Assim que ele se afasta um pouco, corto o cadeado
com Komodo, facilmente.
Entro correndo e o abraço forte. Ele fecha seus
braços ao redor de minha cintura fracamente.
— Você está bem? — pergunto me afastando,
olhando em seus olhos iluminados, tirando os fios suados
de cabelo negro de sua testa, tentando ver seu rosto pela
luz das velas.
Ele está mais magro, sujo e posso ver um corte
antigo de uns dez centímetros em sua bochecha direita.
— O que é isso? — levanto os dedos, tocando a
cicatriz.
Ele balança a cabeça negativamente, tirando minha
mão de seu rosto.
— Melane, tem que acabar com isso agora — ele
diz, parecendo desesperado.
— O quê? Eu não entendo.
— A guerra, Melane, termine isso agora!
— O que você está falando, Davi, você não está
bem, está machucado e...
— Não. Melane, essas pessoas não merecem
morrer, estão obedecendo a ordens de um homem que não
pode tomar suas próprias decisões, seu avô foi enfeitiçado
— ele diz arregalando os olhos azuis.
— O quê? Como enfeitiçado?
— Não há tempo para isso. Seu avô foi enfeitiçado,
não é ele que está fazendo tudo isso, ele é apenas um
fantoche nessa historia.
— Quem o enfeitiçou?
— Não sei, Mel, não importa agora, temos que
parar isso. Precisamos achá-lo.
— Onde ele está? — pergunto tentando assimilar
tudo.
— Sei onde ele fica, fui chamado lá varias vezes. É
o colar. O colar o está mantendo preso.
— Como você sabe?
— Ele brilha de uma forma estranha, igual seus
olhos. Eles reluzem no exato momento todas às vezes.
Tem que ser isso.
— E se não for? — pergunto nervosa.
Ele me olha com olhos cansados, assim como seu
corpo gasto parece estar.
—É melhor que seja— é tudo o que ele diz.
— Venha comigo, eu sei onde ele está — diz
pegando minha mão, me puxando pela escada.
— Mas e você? Não está machucado...
— Não se preocupe comigo.
David nos guia para fora do quartinho onde estava
preso, estamos no cômodo grande de uma sala agora.
Com a luz posso ver melhor seu estado.
Ele realmente está bem mais magro do que
costumava ser, seu cabelo está sujo e mil vezes mais
desarrumado que o habitual, suas roupas na mesma
situação, ele tem manchas de sangue em algumas partes
das roupas, tento não pensar em como elas foram parar ali.
Quando ele vira seu rosto, posso ver melhor sua
cicatriz rosada na bochecha. Ela não é muito grande, mas é
funda e mesmo isso não diminui em nada sua beleza,
mesmo nesse estado ele ainda parece lindo para mim.
Puxo meu braço o fazendo parar.
Ele me olha confuso. O puxo para um abraço
apertando, afundando meu rosto em seu peito.
A confusão em seus olhos muda para algo
acolhedor e carinhoso, sem dizer nada, me aperta pela
cintura uma única vez antes de se livrar de meus braços.
— Temos que ir, Mel.
Aceno com a cabeça. Ao menos ele está bem.
O sigo pelo castelo por um tempo curto, até
chegarmos a uma porta feita de madeira escura, quase
preta.
— É isso, ele deve estar aí dentro.
Respiro fundo uma vez antes de abrir a porta
lentamente.
Não sei o que me espera por trás dessa porta, nem
ao menos sei o que devo fazer, mas isso tem que terminar
hoje.
A porta range, mas não me impede de terminar de
abri-la.
É uma sala grande, parecida com todas as outras
desse lugar, ouro, tudo feito de ouro, vasos de flores
coloridas, tapetes felpudos, e cortinas macias, apenas uma
coisa está diferente, o homem de cabelos ruivos olhando
pela janela.
É ele, meu avô, olhando tranquilamente a guerra
que acontece em seu quintal, lentamente ele puxa as
cortinas azuis, as fechando, fazendo com que a luz das
velas presas em castiçais de prata, sejam as únicas a
iluminar o local. Ariel vira-se em minha direção, a
ameaça de um sorriso brincando no canto de seus lábios,
apertando seus olhos, me analisando.
Fico imóvel, sem reação nenhuma, apenas o
encarando de volta.
— Estava esperando por você, tenho esperado há
muito tempo — ele diz suavemente, com uma voz grossa,
encorpada e ao mesmo tempo doce, como a de um avô
deveria ser, como eu imaginava que seria.
— Viu só? — ele aponta para a janela. — Sua
culpa, não devia ter causado tanto alvoroço.
— Não seja ridículo — David diz sorrindo
sarcasticamente.
— Oh, vejo que você está livre, é claro que está.
Continuo imóvel, olhando para ele como se fosse
algo vindo de outro planeta, tudo parece tão confuso,
David disse que não é ele quem está ali, que é outra
pessoa. Como? Ariel me parece exatamente como na foto
que vi outro dia, no quarto onde Komodo era guardado, a
não ser por...
— Esperei muito tempo por esse dia, meu bem.
Seus olhos, eles cintilam agora, e o colar de um tom
doentio de vermelho preso em seu pescoço faz o mesmo,
brilhando no mesmo instante que seus olhos.
Volto meu olhar para o seu, é claro, tinha que ser
isso, esse não é meu avô, nunca poderia ser, não fazia
sentido algum, um rei bom, que todos gostavam, mudar
tanto assim de um dia para o outro.
— Quem é você? –— digo finalmente, com a voz
firme.
Ele me olha parecendo surpreso e então sorri
levemente.
— Sabe, estava certo de que a queria morta, mas
depois dessa demonstração de poder, estou começando a
pensar diferente — ele diz, ignorando minha pergunta. —
Muito bom esses negócios que faz com essa espada!
— Sei que não é meu avô. Quem é você?
Ele me olha calmamente, respirando fundo, eu até
poderia dizer que está sorrindo com os olhos, enquanto me
encara mais uma vez.
— Isso importa?
— Na verdade não, irei matá-lo de qualquer forma
— digo sem medo.
Ele sorri.
— Só me responda uma pergunta.
Ele levanta a mão direita, me encorajando a
perguntar.
— Por quê?
Ariel vira um pouco a cabeça para o lado e pensa
meio segundo antes de dizer:
— Porque eu posso, essa poderia ser uma boa
resposta, mas não, não é assim, minha querida — ele
suspira uma vez antes de continuar. — Acho que a
resposta mais exata é você, fiz isso para que você viesse
até mim, você é uma ameaça, não podia deixá-la solta por
ai, tive que tomar atitudes. Sinto muito se pessoas tiveram
que morrer para isso acontecer, mas os fins justificam os
meios, não é que dizem? — ele sorri.
Raiva, ódio, repulsa, uma mistura de sentimentos
toma conta de meu corpo, enquanto o olho cerrando os
dentes e apertando Komodo mais fortemente entre meus
dedos, até que os nódulos fiquem brancos.
— Porém, comecei a ver as coisas diferentes, você
não tem ideia do que poderíamos fazer juntos. Como
disse, comecei a ter novos planos para você.
— Pena, continuo com os mesmos planos que tinha
antes para você. — levanto Komodo agora, o segurando
em posição de ataque.
David coloca a mão direta em meu ombro, olhando-
me com cautela, me lembrando de sua presença aqui, tinha
me esquecido dele.
— Desculpe — sussurro, olhando diretamente em
seus olhos confusos, antes de forçá-lo porta a fora, apenas
apontando em direção a ela com o dedo indicador.
— Não, Melane, não faça isso — ele consegue
gritar antes que eu bata fortemente a porta, mantendo-a
trancada. Não sabia que tinha esse tipo de poder, até
agora, acho que nem Ariel sabia, pois sua expressão
surpresa o entrega.
Ele sorri em minha direção, com os olhos
brilhando.
— É isso que estou tentando dizer, você é
impressionante. Há quanto tempo está usando seu poder?
Eu não lhe respondo, apenas continuo com Komodo
levantando a minha frente.
— Besteira, abaixe essa coisa, não pretendo lutar
com você, não mais.
— É uma pena novamente, pois é exatamente isso
que pretendo.
Não lhe dou tempo de raciocinar, avanço com
Komodo em sua direção, tentando acertar seu peito, mas
ele desvia facilmente para o lado. Tão rápido.
Ele balança a cabeça lentamente.
Tento outra vez, deixando Komodo controlar a luta
por mim. Ariel saca uma espada tão grande quanto a
minha de sua cintura e bloqueia meu ataque, estamos cara
a cara agora.
— Não precisa ser dessa forma.
O ignoro, me focando somente na luta, tentando
não prestar atenção ao que ele diz. O empurro fortemente
o fazendo tombar alguns pequenos passos para trás, isso o
parece pegar de surpresa.
Ele vem em minha direção agora, lançando sua
espada com toda força em mim, meu braço lançasse
automaticamente, travando seu golpe. Giro Komodo,
levando sua lamina comigo no caminho, quase a fazendo
voar de suas mãos.
A fúria me controla, não sei quem ele é, e nem sei
ao certo o que ele quer, mas isso tem que terminar.
Não posso me desconcentrar, tenho que manter a
porta fechada, e David atrás dela, não quero ter que me
preocupar com ele nesse momento.
O barulho de aço chocando-se é alto, faíscas saem
de minha arma, enquanto avanço violentamente em sua
direção.
Penso em tudo que já aconteceu, em tudo que meu
povo já passou, na morte de meu pai, minha mãe, vovó
Mary, e tantos outros desconhecidos que não mereciam
esse destino cruel, tudo para alimentar o ego de um só
homem.
Isso me dá forças agora, sinto a energia dentro de
mim se espalhando, queimando meu corpo. Posso ver
Komodo começando a mudar, deixando sua cor prateada
pelo vermelho fogo de antes, o mesmo quando os soldados
atacaram a aldeia no dia em que me revelei.
Sinto as mãos quentes, o calor andando por entre
meus dedos e tomando conta de seu comprimento.
Os olhos de Ariel se arregalam quando minha
espada ilumina o lugar, totalmente acessa, queimando,
feita de brasa.
Sem pensar, lanço Komodo em direção ao seu
peito, ele se defende no último minuto, agora
aparentemente se esforçando para segurar o golpe.
Seus olhos estão diante dos meus, posso ver o ódio
dentro deles mudando, se tornando mais amedrontados do
que raivosos.
Ele sorri lentamente, como se algo tivesse se
formando em sua mente.
— Não está se esquecendo de nada, princesa? Se eu
morrer, seu avô morre também...
Sei que ele pode ver a confusão tomando conta de
meu rosto, sabia que tinha que fazer isso, mas a ideia de
matar alguém inocente, meu próprio avô... Meio segundo
de pânico, foi tudo o que ele precisou para me derrubar,
me empurrando no chão com toda sua força.
Caio com um baque estrondoso, Komodo escapa de
minhas mãos, voando vários metros para longe de mim,
antes de cair sobre o piso de mármore com um barulho
metalizado.
Apenas tenho tempo de virar o pescoço em sua
direção, enquanto inutilmente estico meu braço para tentar
pegá-lo, mas meu avô já está em cima de mim, as pernas
passadas por cada lado de minha cintura e sua espada
tocando levemente minha garganta, enquanto um sorriso
forma-se em seus lábios.
Estou presa no lugar, sem poder ao menos mexer
um único músculo de meu corpo, é algum tipo de feitiço,
posso senti-lo dentro de mim, correndo por minhas veias,
enquanto petrifica cada célula dentro de mim, me
deixando imóvel.
Apenas tenho controle sobre meus olhos, à única
coisa que consigo movimentar agora.
Pelo conto do olho vejo Komodo há uns quatro
metros de distância, posso sentir sua fúria daqui, ele sente
raiva e medo, ele precisa me proteger.
Ariel continua me olhando com o sorriso doentio no
rosto
Sinto a mágica dentro de mim, tentando sair,
tentando se libertar, a luz azul ameaça brilhar para fora de
mim, mas nada acontece, não tenho nenhum poder sobre
sua magia.
Não consigo pensar em mais nada agora, sei que é o
fim, mantenho-me de olhos bem abertos olhando
diretamente em seus olhos, não lhe darei o gostinho de
vitória, me encolhendo de olhos fechados como um coelho
amedrontado.
Ele me olha diretamente nos olhos, virando o
pescoço para o lado.
— Não era para ser assim, mas não me deu escolha.
Me mantenho firme, sem desviar os olhos por
nenhuma vez.
Ele levanta sua espada o mais alto que pode, a
segurando com as duas mãos.
Um vislumbre de todos que amo passa por minha
cabeça, enquanto sua espada desce em câmera lenta em
direção a minha garganta.
Vejo vovó sorrindo para mim em nossa casa,
Summer com gotículas minúsculas de água escorrendo de
seu rosto e cabelos, vejo David com seus olhos risonhos
feitos de mágica turquesa, me olhando carinhosamente,
como sempre tem feito, e então vejo Jack, com sua
expressão travessa e sardas espalhadas pelo nariz,
enquanto diz algo sarcástico. Sinto por eles e por todos os
outros que decepcionei, mas por agora quero apenas
lembrar-me de seus rostos em minha mente o máximo que
conseguir aguentar. Agora e para sempre.
A espada afiada de Ariel desce lentamente em
minha direção, cortando o ar ao seu redor, estou ciente de
tudo, até que um brilho como o de uma vela começa a
piscar ao meu lado, a linha feita de luz começa a se
projetar de Komodo e no final meu pai surge novamente,
dessa vez mais solido e vivo que antes.
Ele quebra a distância entre Komodo o segurando
pela mão direita rapidamente se colocando entre mim e a
espada de Ariel, interrompendo seu ataque.
Confusão transparece no rosto de meu avô, ele olha
para meu pai com tanta incredibilidade e tanto assombro.
Os olhos de meu pai são quase feitos de fogo,
enquanto olha diretamente para Ariel, sua boca se abre
como se estivesse gritando, como se estivesse libertando
toda sua dor, mas nenhum som sai de seus lábios, com sua
outra mão livre, ele agarra de uma vez o rubi vermelho
preso ao colar e o arranca violentamente do pescoço de
meu avô.
O rei solta a espada, caindo de joelhos no chão,
suas mãos vão até seus olhos úmidos, enquanto ele olha ao
seu redor, como se estivesse vendo tudo pela primeira vez.
— Enfim... — ele diz roucamente.
Continuo deitada no chão, imóvel, mas agora não
por magia, mas sim por puro choque.
O peito de meu pai levanta-se suavemente som sua
respiração, o verde folha de seus olhos volta aos poucos,
ele ainda está com o rubi preso por entre os dedos, ele o
olha fixamente por alguns segundos antes de colocá-lo no
chão e enterrar Komodo bem no centro, o despedaçando
em mil partículas que se elevam pelo ar antes de virar
algum tipo de pó vermelho e diluir-se como a brisa.
Alivio surge em seu rosto, ele me olha uma última
vez, sorrindo carinhosamente, e depois desaparece, assim,
como se nunca estivesse estado lá, um apagão, da mesma
forma que a TV desliga-se quando acaba a energia, sem
nenhum vestígio de que esteve aqui.
Ainda estou no chão com meu avô caído de joelhos
ao meu lado.
Me sento e olho em sua direção.
Ele ainda olha a sala como se essa fosse a primeira
vez em sua vida.
— Querida — diz roucamente, quando seus olhos
encontram os meus.
Ele tem os olhos úmidos e suas mãos tremem
levemente.
— Sinto muito... Eu... Esse não era eu... Eu nunca
iria... — ele tenta, gaguejando, mas não preciso de
nenhuma palavra dita agora, e acho que ele também não.
Quebro a pouca distância entre nós e o abraço
fortemente, me ajoelhando também.
Ele me aperta contra seu peito forte, enquanto
enterra seu rosto em meus cabelos, sinto a umidade de
seus olhos em meu pescoço.
David entra pela porta quase tropeçando em seus
próprios pés, as portas se abrem de repente, a calma que
sinto agora faz com que me esqueça do poder que usava,
mantendo-as fechadas.
Ele nos olha uma vez antes de relaxar os ombros,
visivelmente aliviado.
Ariel coloca as mãos em meu rosto sorrindo para
mim.
— Iremos arrumar todo esse pesadelo, querida.
— Vamos logo, a guerra continua lá fora, temos
que pará-los — David diz, apontando para a grande porta
de madeira escura.
Aceno com a cabeça, me levantando enquanto
estendo as mãos para ajudar meu avô.
Sorrio fracamente quando passo ao lado de David,
as coisas vão voltar a ser como eram antes, sei disso.
Corro para entrada do castelo, ainda há uma guerra
lá fora, pessoas inocentes lutando umas com as outras,
ainda há muito que concertar.
O pensamento de que tudo irá se ajeitar começa a se
dissipar vagarosamente de minha mente, quanto me
aproximo da grande porta feita de ouro da entrada.
Consigo escutar os gritos de agonia e de fúria que surgem
de fora, abro a porta do castelo com um empurrão forte
com as duas mãos.
A guerra acontece, ainda mais violenta do que
algumas horas atrás, sangue por toda parte em que olho, o
céu parece ser feito de um tom de laranja e vermelho, pela
quantidade de fogo que é arremessada pelos dragões que
lutam.
Não vejo Jack em lugar algum de onde estou, sinto
uma dor surgindo dentro de mim, ameaçando meus nervos
por não saber se ele está bem. Procuro mais uma vez e
nada.
Meu coração bate desesperadamente pelas vidas
que hoje foram perdidas, por todo o sofrimento que esse
povo teve, pelo ódio que foi brotado nesse lugar e tudo
isso sendo acusado pela pessoa errada.
Sinto o peito apertar da mesma forma que aperto
minhas mãos sobre Komodo, que grita dentro de minha
cabeça nesse momento.
— Parem todos — grito o mais alto que posso.
David está ao meu lado, com os mesmos olhos
arregalados que meu avô.
— Eu ordeno que vocês parem — Ariel grita,
enquanto sua face fica rosada e suas mãos tremem ao seu
lado.
O resultado é o mesmo de quando gritei, ninguém
nos escuta, todos continuam o massacre sanguinário a
nossa frente. Posso ver Edmundo no céu atacando as
costas de um grande dragão amarelado.
— Pare, Edmundo, pare com isso todos vocês.
Novamente ninguém me escuta.
— Tentarei pelo ar — David diz antes de explodir
em um grande dragão e com um salto subir para o céu
rugindo o mais alto que pode.
Ele corre pelo ar rugindo e berrando, contorna
dragões, desviando de suas chamas sem soltar nenhuma de
seus lábios.
Mas nada acontece, ninguém parece nos escutar,
ninguém parece querer nos escutar. A raiva é grande, as
perdas que esse povo teve, todo o sofrimento, a vontade de
ter sangue derramado e de ter o inimigo derrotado é maior
do que a capacidade dos gritos que temos em nossas
gargantas.
Isso não irá funcionar, tenho que pensar em algo
rápido.
Meu avô treme ao meu lado, sua face avermelhada,
seus olhos arregalados, enquanto vê seu povo morrer,
lutando uns contra os outros, matando de sua própria
espécie. É demais para ele, eu sei, ainda mais que a culpa
disso tudo estar acontecendo ser supostamente dele. Ele
fica imóvel, como se mover algum de seus músculos fosse
algo impossível nesse momento.
Avanço correndo em direção à multidão que se
consome a minha frente, gritos de agonia surgindo de mim
enquanto avanço desesperada.
— Parem agora, foi um erro! Basta, isso está
errado, vocês precisam parar.
Estou distraída, olhando a guerra e tentando cessá-
la, meus olhos estão perdidos no sangue e nas mortes que
acontecem, Komodo sendo arrastado no chão enquanto
corro o mais rápido que minhas pernas me permitem,
estou tão concentrada em deter a luta que não percebo
quando um dragão voa baixo, ateando fogo em minha
direção. Só percebo o perigo quando as chamas estão
praticamente me cima de mim, estou confusa, desnorteada
e desesperada, não há tempo de fazer nada. Tudo acontece
muito rápido agora.
Um dragão preto passa por mim, voando mais
rápido do que qualquer outra coisa, se jogando na minha
frente,abrindo suas asas o máximo que consegue, fazendo
uma cortina protetora sobre mim, enquanto recebe o
impacto das chamas em meu lugar. É Jack.
Capítulo

15
O poder em mim

A grande quantidade de fogo acerta diretamente em


seu peito escuro, o fogo consome sua carne, enquanto o
cheiro de queimado invade meu nariz, a cena toda parece
passar em câmera lenta aos meus olhos, estou ciente de
cada movimento seu a partir de agora, suas asas sendo
consumidas pelo fogo, enquanto cai alguns metros ao meu
lado com um baque estrondoso, quicando duas violentas
vezes na grama antes de aterrissar de vez. De olhos
arregalado, vejo Jack voltar a sua forma humana,
desacordado com o peito todo chamuscado, o sangue
escorrendo rapidamente de suas feridas.
Não sei o que fazer, nem o que pensar, não sei de
nada, apenas fico paralisada vendo seu corpo imóvel
jogado sobre a grama verde, fazendo seu sangue contrastar
ficando ainda mais vermelho do que deveria ser.
É então que algo acontece dentro de mim, meu
coração fica lento, ao invés de bater descontroladamente
em meu peito, minha respiração se acalma, sinto-me leve,
mas alguma coisa cresce dentro de meu peito, algo que
não sei dizer exatamente o que é, sinto uma energia tomar
conta de meu corpo, mas dessa vez não é o calor, é algo
diferente, mais poderoso. Não é fogo, é luz.
Meu corpo todo se acende, meus pés, pernas,
braços, e até meu rosto e mãos que seguram Komodo
fortemente por entre meus dedos, minha espada se
transforma na mesma cor de azul cintilante que meu
corpo, sinto cada pedaço de mim, no entanto é como se
não controlasse meus movimentos, como se a força fosse
tão grande que comandasse por mim, entro em um estado
de transe e deixo o poder tomar conta.
Olho para guerra, que ainda acontece por todas as
direções, sem esperar mais nem um minuto, levanto
Komodo o mais alto que consigo sobre minha cabeça, a
luz fica ainda mais forte, sinto que posso brilhar mais que
o sol nesse momento e então o grito vem, saindo das
profundezas de minha garganta, cortando o ar a minha
volta, o chão começa a tremer com o impacto, o ar muda
de direção como se uma onde sonora tivesse se formado,
os dragões do céu caem, igualmente às pessoas do solo, o
grito é tão alto e potente que provavelmente tenha sido
escutado nos quatro cantos do planeta.
Komodo brilha ainda mais em minhas mãos,
refletindo toda minha luz em sua lâmina, o azul de meu
corpo transfere-se para espada, o levanto mais alto ainda,
quase o forçando a sair de meus dedos, então a luz escapa
pela ponta como um raio indo em direção ao céu vazio, o
clarão toma conta de tudo, cada pedaço da imensidão
acima de nós fica da cor da mágica que existe dentro de
mim, aos poucos as partículas brilhantes caem, pegando
cada pedacinho de terra no processo.
Cada gota de magia toca o solo, fazendo com que a
terra vermelha seja substituída por grama, verde e fresca,
cada árvore seca ganha vida, com seus galhos cobertos de
folhas, frutas e flores, o ar cinzento desaparece, assim
como o calor abafado que nos perseguia por onde quer que
fossemos, flores crescem pelo chão, de todas as cores
imagináveis, trazendo o aroma doce até nossos narizes
imediatamente, esse lugar ganha vida de novo.
O transe ainda toma conta de mim, e agora não vejo
nada a minha frente a não ser Jack, ainda caído no chão,
praticamente morto, rodo Komodo em minha mão direita e
o finco no chão de grama, enquanto vou em sua direção,
sem correr, sem me apressar, apenas dou passos
tranquilamente, sabendo exatamente o que fazer.
Me abaixo ao seu lado, me ajoelhando no chão. Seu
rosto está pálido, muito mais pálido que o habitual, o
sangue espalhado dificulta olhar para seu ferimento, mas
isso não faz diferença agora.
Deveria estar apavorada, mas não estou. Fios
dourados deslizam por entre meus dedos, enquanto
acaricio seu rosto levemente.
Sangue escorrendo por onde olho, pessoas em
chamas, uma guerra que não deveria ter começado
acontecendo, dragões caindo do céu da mesma forma e
intensidade que gotas de chuvas em uma tempestade, nada
disso importa agora.
É ele, apenas ele.
Posso escutar o som de seu coração batendo
lentamente, quase parando, sinto sua vida evaporando
diante de meus olhos, sinto sua dor, como se fosse minha.
Me abaixo mais, encostando meu rosto no seu e
deixo a luz tomar conta de nós, nos fazendo ser um só
sobre o manto azulado.
A claridade cresce, fazendo com que seu corpo
fique totalmente coberto, cintilando juntamente com o
meu, abro meus olhos olhando diretamente para seu rosto,
aquele rosto que tanto adoro que sempre me olha com um
sorriso nos lábios e com os olhos brilhando.
A energia fica mais forte, se antes brilhava mais
que o sol agora brilho cinquenta vezes mais, coloco
levemente minhas mãos em cima de seu peito
despedaçado pelo fogo e a ferida fecha-se lentamente sob
meus dedos, sinto a pele se unindo, sem nenhuma cicatriz,
nenhuma marca, meio segundo depois seus olhos se abrem
lentamente para mim.
Ele me olha confuso, porém sem medo, a luz ainda
toma conta de nós, sorrio para ele assim que seus olhos se
encontram com os meus. Ele está vivo, é como se nada
mais importasse para mim nesse momento.
O raio de luz volta até Komodo que aos poucos
tornasse feito de aço prateado novamente, meus olhos
finalmente voltam a ser meus e eu tenho poder sobre meu
corpo mais uma vez.
A escuridão vem imediatamente, e tudo que posso
fazer é abraçá-la...
Jack

Não posso pensar nela, tenho que manter minha


atenção na luta, morrerei caso contrario. Desvio do fogo
no último instante, comprovando o que acabo de pensar.
Agarro o dragão que acabara de me lançar chamas, o
girando no ar, mandando-o diretamente para o chão. Faz
tempo que a vi entrando no castelo, eu devia ter ido junto,
cumprido a promessa e ter ficado ao seu lado. Sim, estou
com raiva, muita, eu me abri para ela, eu nunca me abro
para ninguém. Que tipo de palavra é essa? ―Se abrir‖
quem usa essa expressão? Pelo jeito, eu uso. Que merda é
essa que está acontecendo comigo?
Por que não consigo me concentrar na batalha? Por
que só faço perguntas para mim mesmo? Perguntas, das
quais não tenho as respostas. Não estou acostumando a me
ver tão vulnerável assim, não faz parte de mim, eu não sou
fraco, mas então por que é exatamente assim que me
sinto? É ela, é tudo culpa dela, nada disso estaria
acontecendo se ela não tivesse ido embora para ficar com
ele. David, o cara que é capturado na primeira vez que as
coisas se complicam, por guardas da corte real, aqueles
babacas... Eu poderia acabar com todos eles sozinho.
Porque ela demora tanto? Pelo visto serei obrigado
a entrar eu mesmo lá e acabar com isso de uma vez por
todas.
É ela, saindo pela porta principal, coberta de
sangue, seus olhos estão arregalados, enquanto olha para o
céu, devastada, nunca a vi assim antes.
David está ao seu lado, e rei Ariel também, o que
ele faz ali? Ele está chorando? É isso? Chore mesmo,
velho, veja o que fez com esse lugar.
O que ele faz com ela? Era para ele estar morto
agora. Isso deve ser coisa de David, ele e sua imensa
piedade. Uma ova, eu mesmo irei matar esse velho, e não
terei piedade.
Hei! O que ele está fazendo, não a deixe sozinha,
seu idiota, por que ele se transformou? Você é o guardião
dela, protegê-la é sua obrigação, que inferno, o que há de
errado com essa gente?
Já chega! Hora do show acabar, Ariel tem que
morrer, não sei por que ele está ali parado, como se fosse
um doente mental, se estivesse babando até me
convenceria. Avanço pelo ar em sua direção, desviando-
me das chamas e dos inimigos quase automaticamente,
como tenho feito nesse meio tempo.
O quê? Melane está correndo pelo campo aberto,
arrastando sua espada pelo chão e gritando? O que essa
idiota pensa que está fazendo?
Quer morrer? Digo berrando, mas apenas rugidos
saem de minha boca, é difícil se comunicar quando
estamos numa forma diferente de quem queremos entregar
a mensagem. O que essa demente está fazendo? Gritando?
Cale-se, Melane, ninguém a está escutando, saia de campo
aberto e volte lá para dentro.
Vou ignorá-la, se quer ficar e ser um alvo fácil, que
seja, não é minha obrigação protegê-la... Ariel, ele é quem
terá toda minha atenção, só mais alguns metros e o fogo
irá consumi-lo, lentamente, eu espero, quero que sofra, da
mesma forma que nos tem feito sofrer.
Só mais um pouco adiante e... Não. Melane, sua
idiota, olhe para frente, rápido.
Ela não irá conseguir, está perdida, desnorteada,
ainda nem se quer o viu se aproximando... Não há tempo
para mais nada, avanço o mais rápido que consigo,
forçando minhas asas, cortando o vento e me jogo em sua
direção, recebendo as chamas em seu lugar. Sei o que
disse antes, não é minha obrigação protegê-la, estou
irritado com ela, hoje mais do que nunca, mas apenas, não
posso com a ideia de viver em um mundo em que ela não
viva.
O fogo me acerta em cheio, como uma bola de
canhão, bem no meio do peito, se espalhando rapidamente
por todo meu corpo, consumindo minhas asas, o cheiro de
queimado vem logo depois, me deixando tão tonto que
mal posso manter-me acordado. Caio no chão, quicando
duas vezes sobre a grama, antes de desmoronar, quase
desacordado volto a minha forma humana, sinto os ossos
quebrados, não sei dizer quais foram atingidos, apenas que
foram muitos. A dor é algo impossível de descrever, é
apenas dor, dor, somente dor, eu choraria se pudesse, mas
não tenho controle sobre mim mesmo, mal posso manter-
me de olhos abertos. Sempre tive raiva de pessoas que
preferem a morte nos momentos de dificuldade, eu sempre
disse: ―Hei! Largue de ser estúpido e viva, aguente firme‖,
mas vejo que estava errado quanto a isso, pois morrer não
me parece tão estúpido ou errado assim agora.
Tudo está confuso, estou caído no chão, sozinho,
morrendo lentamente, enquanto o sangue escorre
violentamente de meu corpo moribundo. Então algo
acontece, um barulho infernal, deduzo com o pouco de
sanidade e consciência que me resta, ser parte de minha
imaginação, e fecho meus olhos, apenas esperando por não
sentir mais nada.
Mas então o som desaparece, silêncio toma conta
de tudo, posso senti-la ao meu lado, não posso abrir meus
olhos novamente, o peso das pálpebras parece ser infinito,
e não me arrisco a tentar levantá-las, não importa, ela está
aqui, sei disso, não preciso abrir os olhos para comprovar.
Seus dedos acariciam-me levemente, para depois substituí-
los pela pele macia de seu rosto junto ao meu, seu perfume
consegue ser ainda maior do que o de minha carne
queimada, seus cabelos roçando meu pescoço, talvez eu já
tenha ido, ou esteja indo e isso possa ser o começo do
paraíso, a não ser pela dor que ainda me consome, e pelo
fato de que eu nunca iria para o céu, não, meu destino
seria outro, bem diferente.
Não importa, vivo, morto, que se dane, ela está
aqui.
Sinto-me quente agora, não queimando, não mais,
apenas quente, confortável, a dor cessa instantaneamente,
é como se um manto de calor me rodeasse, aquecendo
cada fibra de meu corpo, suas mãos feitas de seda tocam
meu peito, sinto o tecido de minha pele fechando-se,
correndo de encontro com a outra extremidade, como se
nada tivesse acontecido. Não existe mais dor, nem medo,
apenas calma, paz, de uma forma que nunca senti antes, o
peso de toneladas que se alojavam em meus olhos
desaparece, e posso finalmente abri-los.
Ela sorri docemente, a luz azulada nos rodeando,
nos tornando um só, presos numa bolha protetora, ela e eu.
Meio segundo depois seus olhos ficam confusos e
desfocados e ela desaba em meus braços inconsciente.
Capítulo
16
De volta à realidade
Melane

Logo na primeira tentativa de abrir os olhos sou


golpeada por fleches de luz negra, como se a cor estivesse
explodindo lentamente, da mesma forma que acontece
quando alguém está prestes a desmaiar, sinto-me tonta,
como se tivesse ficado com os olhos fechados durante
muito tempo. Volto a fechá-los, fico apenas uns poucos
segundos assim e tento abri-los novamente, uma luz não
muito forte, mas suficiente para me incomodar alcança
meu rosto, fazendo com que o processo seja ainda mais
doloroso. Então finalmente, consigo abrir os olhos,
lentamente e piscando algumas vezes, antes de tê-los
totalmente abertos. Estou deitada em uma cama, dessas
iguais as que vimos em filmes de princesas, com uma
cortina branca rendada feita de um tecido muito fino,
caindo pelo dossel, deslizando elegantemente até o chão.
O travesseiro por trás de minha cabeça é o mais macio que
já experimentei em toda minha vida, assim como o
colchão, a colcha que tenho por cima de meu corpo
também é branca com muitas rendas tecidas com ouro?
Deslizo as mãos pelo tecido macio, sentindo o
maravilhoso aroma de flores que me rodeiam.
Começo a correr os olhos pelo cômodo, o tecido
que envolve a cama está tapando a visão, mas ele é tão
fininho que posso ver por trás tranquilamente. Uma janela
fechada feita de cristal e ouro, com cortinas felpudas azuis
bem a minha frente, vasos cobertos de flores por todos os
lados onde olho, um espelho enorme, desses que ficam de
pé, feitos para olhar o corpo todo, sua moldura tem pedras
coloridas que refletem a luz do sol e vez ou outra atingem
meu rosto. Uma cômoda feita de madeira está recostada a
parede, assim como alguns quadros com desenhos de rosas
pintadas a mão. Mais uma olhada para o local onde estou,
e logo toda a memória da noite passada surge em minha
mente.
Lembro-me da guerra, do sangue, do verde doentio
dos meus olhos, de encontrar David, ser guiada por meu
pai, de lutar com meu avô, lembro-me de ficar tomada
pelo poder, fazer esse lugar voltar ao que era antes, de
Jack sendo atingido pelas chamas e então de salvá-lo.
Todas as imagens desse dia passam a toda velocidade por
minha cabeça, correndo sem parar, indo e voltando, me
mostrando tudo o que aconteceu, como uma confusão de
fatos sendo jogada em mim, tudo de uma vez.
Respiro fundo, tentando assimilar tudo o que
aconteceu. David está bem, assim como meu avô e Jack.
Depois de ver que ele estava bem, não me lembro de mais
nada depois disso, a não ser acordar nesse quarto.
Sei que estou no castelo e que de alguma forma
consegui eliminar o feitiço que tomava conta de Ninho de
Fogo. Um sorriso leve surge lentamente em meus lábios,
coisas boas aconteceram.
Tudo que consigo pensar é em me levantar dessa
cama e ver como todos estão, mas fico completamente
tonta quando tendo sentar no colchão.
Uou, por essa eu não esperava, levo a mão
automaticamente até a testa e fecho os olhos, esperando a
tontura passar.
Escuto a porta se abrindo, é uma mulher, usando
um vestido amarelo escuro rodado, ela sorri largamente
quando vê meus olhos abertos em sua direção.
Ela se apressa para a cama, arregaça a cortina, ainda
me olhando sorrindo.
— Princesa, isso é maravilhoso, você acordou.
Tento sorrir, enquanto lembro que dormi por dois
dias aquela vez que usei meu poder para atingir o dragão
que me perseguia, na primeira vez que vi David se
transformar em um dragão. Quase não pergunto por
quanto tempo passei deitada nessa cama, tenho medo da
resposta, mas ainda assim, eu preciso saber.
— Por quanto tempo eu dormi?
— Por quase dois meses, princesa.
Fico a encarando de olhos arregalados, pensei que
pudesse ter sido cinco ou talvez até mesmo oito dias, mas
dois meses? Dois meses inteiros? Como isso foi
acontecer?
— O que importa é que você está acordada agora.
Ela está certa, se tem uma coisa que aprendi todo
esse tempo aqui, é que, não se deve ficar chorando ou se
consumindo por coisas que já passaram e não se tem mais
como voltar atrás, e alias, se tudo deu certo mesmo, meu
avô está livre e esse lugar também, quem se importa?
— Como estão todos?
— Seus amigos estão bem, assim como seu avô,
você salvou nosso mundo, princesa, eu lhe agradeço muito
— ela diz, fazendo um gesto de saudação dobrando os
joelhos.
— Era o que eu mais queria na vida – digo
sorrindo. — Onde estão todos? — pergunto ainda a
olhando.
— David fica aqui a maior parte do tempo. Todos
esses dias, ele apenas sai para comer, quando não come
aqui, ou quando precisa fazer algo muito importante, mas
ele praticamente vive nesse quarto. Seu avô também
passou muito tempo aqui com você.
Não sei qual dos dois eu quero ver primeiro, sinto
tanto a falta deles. Não vejo à hora de ver David , depois
de tanto tempo preocupada, ao menos tenho certeza de que
ele está bem, assim como meu avô, acho que nunca quis
tanto conhecer alguém, da forma que quero conhecê-lo.
A imagem de olhos negros passa por minha mente,
me lembrando mais uma vez do que aconteceu há dois
meses, ele salvou minha vida, recebeu todo o fogo em meu
lugar, deu sua vida pela minha. Abro a boca para
perguntar como ele está, mas a fecho rapidamente, sei que
ele está bem, a lembrança está bem vívida para mim agora,
eu o salvei também, como poderia não ter salvado? Só de
imaginar não o ter mais por perto me deixa doente.
Então mando o pensamento para longe e não
pergunto nada sobre ele.
— Qual seu nome? — pergunto para mulher de
vestido amarelo.
— Oh, perdão princesa, meu nome é Isabela, ao seu
dispor — ela novamente se abaixa fazendo a saudação.
— Não precisa dessas coisas comigo, Isabela. Eu
posso me levantar?
Ela me olha meio preocupada antes de responder.
— Eu não sei bem, você fez muito esforço, seria
bom repousar.
— Chega de repouso, estou nessa cama há dois
meses — digo me sentando de uma vez no colchão, fico
um pouco tonta, mas logo passa.
— Espere, você tem que comer antes, você está
fraca ainda.
— Certo, posso comer em outro lugar que não seja
o quarto? Quero ver como as coisas estão.
Ela me olha um segundo antes de responder.
— Tudo bem, princesa, como quiser. Oh, eu
deveria chamar seu avô, ele mandou chamá-lo caso
acordasse.
— Eu posso ir até ele? Fazer uma surpresa?
— Tudo bem, mas antes você deve comer.
Aceno com a cabeça sorrindo.
Me levanto, tendo certeza de que posso manter-me
de pé, testando as pernas lentamente no chão antes de me
levantar totalmente da cama.
Estou usando uma camisola rosa comprida, muito
confortável, mas não sei se devo sair de um quarto em um
castelo vestida com roupas intimas.
— Aqui — Isabel diz abrindo a gaveta da cômoda,
tirando um vestido verde comprido, saído diretamente do
mundo dos sonhos de qualquer garota, porém não dos
meus sonhos.
Torço os lábios uma vez, não fico animada por usar
um vestido como esse, nunca gostei de vestidos, eles te
proíbem de se movimentar direito, e você fica sem
liberdade com eles, mas não quero parecer mal-
agradecida, e eu sou uma princesa, acho que as pessoas
esperam que eu use um vestido como esse, ao invés de
jeans rasgados e camisetas, que são na verdade meu tipo
de roupa favorito.
— Ele é lindo— digo finalmente.
Ela sorri largamente.
— Quer ajuda para vesti-lo?
— É, eu acho que vou precisar — respondo
sorrindo.
Me visto rapidamente com ajuda de Isabela, o
vestido ao contrario do que imaginei, é leve e solto, e faz
ondas a minha volta conforme me movimento, até que não
é tão ruim assim.
Depois disso sou guiada por Isabela até a saída do
quarto.
Um corredor imenso aparece por de trás da porta,
mas não é o mesmo em que estive quando fui guiada por
meu pai, esse é iluminado, é como se emanasse vida, todo
esse lugar emana vida.
— Venha comigo até a sala de jantar, você pode
comer lá.
Sei que estou com fome, muita, mas a vontade de
olhar para todo esse lugar, explorar cada pedacinho disso é
mil vezes maior que a fome.
— Você pode ir na minha frente Isabela, eu preciso
dar uma olhada por aqui. Você volta para me pegar
quando meu café da manhã estiver pronto.Tudo bem?
— Como quiser, princesa.
— Me chame de Melane.
Ela acena com a cabeça sorrindo.
— O salão de festas fica logo ali em baixo, é só
descer por essas escadas, não saia de lá, não quero que se
perca.
— Eu não sairei — digo já indo em direção ao
salão.
Desço por uma escada feita de ouro, que cai em
formato de redemoinho até chegar ao chão, segurando
num corrimão de algo parecido com mármore, tudo parece
diferente agora, nada como o lugar sombrio de antes.
É como se estivesse olhando tudo pela primeira
vez, os degraus parecem nunca acabar, mas finalmente
chego ao último. Estou num lugar enorme, como se fosse
o salão principal do castelo. Meus olhos brilham com tanta
informação passada de uma vez só, a minha frente um rio
desaba sobre a parede alta, por um dos buracos
perfeitamente desenhados para a água passar, água
cristalina e pura, brilhando com o reflexo do sol que vem
das janelas que tomam conta de quase todas as paredes a
minha volta, ele corre pelo meio da sala, percorrendo
todos os metros até a outra extremidade onde some por
entre as aberturas das paredes, deve ser a mesma água que
contorna todo o castelo, pelo lado de fora.
Me aproximo, mergulhando a mão na água fresca, e
sorrio com a sensação. Alguns pequenos peixes passam
nadando rapidamente, bem ao lado de meus dedos. Isso é
lindo.
O sol reflete por cima agora, trazendo um rastro de
pequenas partículas de poeira, formando um caminho feito
até o topo do castelo. Levando a cabeça e vejo o teto, feito
de cristal, somente na parte que cobre onde as águas caem,
fazendo tudo aqui parecer mágico. O céu está azul, de uma
forma que não consigo imaginar mais viva, quase não há
nuvens e os pássaros voam sossegadamente, enquanto
aprecio a vista. Eu nunca vi pássaros por aqui antes.
Uma das janelas próxima a mim está aberta, o vento
balançando a cortina azul felpuda. Chego mais perto,
colocando as mãos no parapeito, enquanto me encanto
com o que vejo.
Árvores, grama verde, flores por todo percurso
além de onde meus olhos podem alcançar. Sorrio
largamente, enquanto a felicidade me rodeia por dentro. O
ar também não é mais quente, ou sufocante, é fresco, e trás
consigo um cheiro de folhas verdes, da forma que sempre
deveria ter sido.
Fecho os olhos, apreciando, como se ainda não
pudesse acreditar no que vejo. Permaneço nessa posição,
de olhos fechados, apenas aspirando oo delicioso aroma
que vem de fora, poderia ficar aqui para sempre, apenas
sentindo o vento balançar meus cabelos, enquanto alguns
raios de sol passam por mim aquecendo minha pele, eu
ficaria aqui por mais muito tempo, se não fosse o som de
sapatos ecoando, vindo em minha direção. Escuto sua voz
antes mesmo de me virar.
— Mel?
Me viro lentamente, o encarando, apenas alguns
metros longe de mim, parado exatamente onde o sol bate
descendo do teto, fazendo com que seus olhos turquesas
fiquem quase insuportáveis de se olhar.
Ele sorri, transformando suas feições nas de um
garoto de cinto anos de idade, como sempre sorriu antes
de tudo isso acontecer.
Corro em sua direção, sorrindo também, e me atiro
em seus braços, antes mesmo de dizer qualquer coisa. Ele
me aperta, levantando meus pés completamente do chão,
enquanto afunda seu rosto em meu pescoço.
Suspirando ele me coloca novamente no chão,
segurando meu rosto com as duas mãos.
Só agora percebo, ele ainda tem a cicatriz rosada na
bochecha. Sinto o estomago apertar, imaginando como ela
foi parar ali. Coloco levemente os dedos sobre ela, quase
sem tocar, com medo que possa machucá-lo, ela é alta,
porém lisa, novamente penso o quanto essa marca se torna
insignificante perante sua beleza, ele ainda continua tão
perfeito quanto antes.
— Não é nada, esqueça isso — ele diz retirando
minha mão, entrelaçando seus dedos aos meus.
Sei que estou com uma expressão preocupada, mas
ele a ignora.
— Fiquei com tanto medo de que não acordasse
mais — diz com os olhos fixados nos meus.
— Estava com medo de nunca mais ver você —
digo, me lembrando dos dias angustiantes, sem saber onde
ele estava, se estava bem, ou se ao menos estava vivo.
— Estou aqui agora e não vou a lugar algum.
— Você promete?
— Prometo — diz, deslizando seus dedos por trás
de meu pescoço, me puxando para um beijo.
Relutantemente esquivo-me de seu toque e me
afasto alguns centímetros para trás, quase instintivamente,
mas a inquietude, o nervosismo e até a dor que forma-se
em seus olhos nesse momento vencem qualquer tipo de
objeção que eu pudesse ter até então. Posso ser forte para
muitas coisas, posso matar homens desconhecidos, lutar
em batalhas e até fazer magia, mas não posso ganhar
quando se trata dos grandes olhos azuis.
Então sem pensar duas vezes me aproximo, o
beijando exatamente como antes, doce, carinhoso,
cuidadoso e apaixonante, assim como ele. Fecho meus
braços em volta de seu pescoço, o beijando com mais
vontade, desejando que nada do que lhe aconteceu tivesse
acontecido, como se eu pudesse tirar toda dor que sentiu
apenas com esse beijo. Não posso com a ideia de que
tenha sofrido, muito menos de saber que a culpada fui eu,
tudo o que quero é que ele seja feliz, não importa como.
Não sei quanto tempo ficamos assim, nos beijando,
pode ter se passado horas ou segundos, não tenho como
saber ao certo e também não me importo com isso. Ele
está vivo, está aqui comigo e prometeu nunca me deixar.
Um inquietante e perturbado pensamento com o rosto de
Jack estampado bem na frente surge em minha mente, mas
me obrigo rapidamente a mandá-lo embora, de volta de
onde veio, pois não posso lidar com isso, não com os
braços de David fechados em minha cintura e com seus
olhos grudados aos meus. Não sei se posso esconder um
pensamento assim, tendo seus olhos me encarando tão
profundamente como agora.
Ele encosta sua testa na minha e suspira
pesadamente antes de dizer.
— Você não faz ideia do medo que senti, não
sabendo como você estava — ele diz ainda com sua testa
presa na minha.
— Também senti medo por você, nem ao menos
sabia se estava vivo — digo passando a mão sobre seu
rosto.
— Eu nunca poderia abandonar você, nunca.
Nesse instante Isabela desce apressada pela escada.
— Oh, vejo que já se reencontraram, agora você
precisa comer — ela diz apontando o dedo indicador em
minha direção.
— Obedeça a moça — Davi diz segurando minha
mão, enquanto me guia pela escada.
Andamos por mais uns poucos corredores até
chegar numa sala grande com uma mesa de café da manhã
enorme. Me sento em uma das pontas e David senta-se ao
meu lado.
Nem sei por onde devo começar a comer, eu nem
ao menos sei o nome da maioria dos pratos que estão na
minha frente.
— Experimente esse, é um dos meus favoritos —
David diz, vendo a expressão confusa em meus olhos.
Um prato com algo parecido com frutas amarelas e
rosadas cortadas em formas redondas, boiando sobre
algum tipo de molho branco, coloco um pedaço na boca
mastigando lentamente para sentir o sabor. É gostoso, não
algo que comeria todos os dias, nem nada do tipo, mas é
gostoso, nem tão doce, nem tão azedo, uma mistura dos
dois.
— O que é isso? — pergunto colocando mais um
pedaço entre os lábios.
— Frutas silvestres, gostou?
Faço que sim com a cabeça.
Depois de comer mais do que posso aguentar, me
levanto e vou sendo guiada por David até o local onde
meu avô está.
Andamos de mãos dadas pelo piso feito de
mármore até chegar numa linda porta de ouro com
desenhos de flores e dragões estampados. David me olha
ternamente uma vez antes de empurrá-la.
É como um sonho, meus olhos se arregalam,
enquanto observo tudo de boca aberta, é uma biblioteca, a
mais incrível que já vi, com dois andares repletos de livros
de todos os tamanhos, todas as cores, poltronas e mesas
espalhadas pelo chão, juntamente com livros amontoados
por todos os cantos, milhares de prateleiras feitas de
madeira escura repletas de livros, algumas estão até meio
tombadas, suportando mais livros do que podem aguentar.
Sorrio enquanto observo tudo tão alegre, calmo e mágico,
não poderia desejar um lugar mais encantador quanto esse,
é tudo o que uma apaixonada por histórias como eu
poderia desejar. Imagino como teria sido perfeito morar
aqui, tento pensar em quantos livros teria lido, quantas
horas teria passado aqui, teria sido fantástico!
— Isso é maravilhoso!
— Sabia que você iria gostar.
— David, isso aqui é um sonho, eu nem posso
acreditar — digo pegando um livro de cima de uma das
mesas e o folheio.
Nesse instante escuto passos, e de trás de uma das
enormes prateleiras aparece meu avô, sorrindo para mim.
Ele abre os braços sem dizer nada, então eu corro e
me aconchego neles, sorrindo. Um suspiro sai de seus
lábios, enquanto me aperta contra seu peito forte.
— Não tem ideia do quanto estou orgulhoso de
você, obrigado!
Eu me afasto para poder olhá-lo melhor.
— Nada disso teria sido possível sem você — ele
coloca mechas de meu cabelo atrás da orelha. — Eu queria
tanto conhecê-la, você é igualzinha ao seu pai — seus
olhos ficam um pouco distantes nesse momento.
— Também estou feliz em vê-lo — digo, e o aperto
pela cintura mais uma vez.
Enfim, posso respirar calmamente, meu avô não é o
homem cruel que estava imaginando, ele é o homem bom
e carinhoso, da forma que deveria ser.
— Acabou agora! — digo sorrindo para ele.
Ele me olha estranhamente, apertando os olhos
verdes.
— Você sabe que eu nunca quis nada disso, não é?
Nunca fui eu, todas essas coisas, eu estava sendo
controlado, se lembra disso?
Aceno com a cabeça.
— Me lembro de tudo que aconteceu.
— O homem que fez isso, eu sei quem é, eu podia
senti-lo, podia ver o que estava acontecendo, só não podia
fazer nada para pará-lo.
Não sei como pude me esquecer desse detalhe, a
pessoa que controlava meu avô ainda está solta por ai.
— Isso quer dizer que ainda não acabou?
Ele suspira uma vez antes de balançar
negativamente a cabeça.
— Na verdade, creio que esteja apenas começando,
minha filha.
— Quem é ele?
— Não precisamos lidar com isso imediatamente,
você pode descansar, ver seus amigos, já deu uma olhada e
viu como esse lugar ficou?
Não quero descansar, se esse lugar ainda corre
perigos, não posso deixar que nada mais aconteça por
aqui.
— Não, me diga quem ele é?
— É uma longa história — David é quem diz ao
meu lado.
— Eu tenho tempo.
Meu avô acena com a cabeça me levando para uma
das poltronas, onde se senta ao meu lado.
— Você já deve ter ouvido a história sobre os
mestiços, sobre como somos proibidos de nos relacionar
com bruxas, não é?
Faço que sim com a cabeça, sem tirar meus olhos
de seu rosto.
— Essa lei existe por uma razão, ninguém proibiu
isso do nada. Há muitos anos atrás uma de nossas
mulheres se apaixonou por um bruxo, eles tiveram um
filho, esse garoto mestiço cresceu por aqui, viveu conosco,
seu nome era Pedrus, sabíamos que ele era poderoso, ele
não se transformava em um dragão como nós, mas tinha
muito poder. Não sei como isso foi acontecer, mas ele
enlouqueceu, acho que era muito poder para um garoto
suportar, ele quase nos destruiu, foram vários dias de dor,
muitos morreram, bruxos vieram ajudar na guerra, eles
temiam por sua raça também. Então unidos, bruxos e
dragões lutaram e enfim conseguimos derrotá-lo. Depois
disso a lei de proibição de relacionamentos entre humanos
e bruxos surgiu. Ninguém queria correr o risco disso
acontecer novamente.
— Poderia ser diferente com outros bebês — digo
imaginando, não porque as coisas deram errado com esse
garoto que elas sempre iriam dar, afinal sou uma mestiça e
não tenho intenção de destruir Ninho de Fogo e muito
menos bruxas.
— Era um risco que não poderíamos correr, poder
demais na mão de uma única pessoa, é perigoso demais.
David parece perceber meu olhar confuso, pois diz
no mesmo instante.
— Você não é assim, Mel, pare de pensar nessas
coisas, você é diferente!
Meu avô só percebe agora meu conflito.
— Claro que é, você nos salvou.
— Mas se esse garoto foi destruído, quem está
fazendo isso?
Os olhinhos verdes de Ariel se apertam.
— Nós achávamos que ele estava morto, mas ele
não está.
— Você o viu?
— Eu tinha pequenas visões enquanto estava
tomado por ele, via seu rosto, às vezes escutava um
pensamento ou outro, mas não sei onde encontrá-lo. Sei
que ele controla os goblins, eles são criaturinhas ruins sim,
mas obedecem mais por medo do que qualquer outra
coisa. Quando ele descobriu que outra mestiça havia
nascido, você seria a única que poderia matá-lo, ele ficou
desesperado, eu podia sentir isso, ele precisava te achar
primeiro, mas então algo mudou, ele acha que se juntando
a você terá muito mais poder.
— Isso nunca vai acontecer — digo rapidamente.
— As coisas que me fez fazer, mandei matar minha
própria esposa e filho...
Eu o abraço mais uma vez, não há nada que se
possa fazer sobre isso.
— Eu sinto muito por tudo.
— Eu também, minha filha, mas eu tenho você
agora!
— Nós precisamos achá-lo.
— Estamos fazendo buscas, minhas tropas estão
cuidando de encontrá-lo, mas não achamos nada até agora,
estamos vasculhando todo o reino.
— Você disse que ele controla os goblins? Faz
sentido, eles já me atacaram.
— Quando? — David pergunta me encarando.
— Você já havia sido capturado, eu estava com
Jack, ele me salvou.
David desvia o olhar por uns segundos, antes de
voltar a me encarar.
Continuo o olhando, sem poder acreditar que as
coisas ainda não estão nem perto do fim.
— Como vocês podem estar tão tranquilos assim?
Com ele solto por aí? — pergunto incrédula.
— Melane, porque você acha que ele não se
manifestou, e nem nos atacou durante esses dois meses?
— meu avô pergunta com aquela cara de homem sábio
que ele tem.
Levanto os ombros em resposta.
— Ele está com medo, ele está morrendo de medo.
Ele não imaginava que alguém da sua idade e com tão
pouco tempo usando seu poder poderia fazer algo tão
grande, como desfazer a maldição dele de uma só vez. Eu
senti o medo dele, ele estava desesperado, na verdade,
nunca imaginou algo assim acontecendo.
— Imagine alguém que é considerado a pessoa de
maior poder no mundo, do nada descobrir que uma
garotinha é capaz de fazer algo tão grande com tão pouco
tempo de experiência — David diz com um tipo de sorriso
de superioridade no rosto.
Penso por dois segundos antes de falar:
— para mim isso é um motivo ainda maior para
temer, pois imagine o que uma pessoa assim pode fazer,
uma pessoa poderosa, desesperada, e assustada, você não
sabe o que o pânico faz com as pessoas.
— Estamos bem agora, vai dar tudo certo, você vai
ver — David diz retirando o sorriso do rosto e colocando
uma expressão preocupada no lugar.
— Tudo ficará bem, cuidaremos para que fique —
Vovó sorri para mim de uma forma acolhedora.
— Você não se lembra de mais nada sobre esse tal
de Pedrus? Como ele sobreviveu?
— Não, eu não tinha acesso a mente dele, apenas
algumas lacunas em momentos específicos, na maior parte
do tempo eu apenas fica preso, como se estivesse imóvel
dentro de meu próprio corpo, enquanto ele controlava cada
ação.
— Como isso aconteceu? Como ele conseguiu te
controlar?
Meu avô suspira uma vez antes de falar:
— Eu não tinha ideia, fui me vestir como em todas
as manhãs, minhas roupas ficam separadas ao lado da
cama, junto delas havia um colar, achei que era parte da
vestimenta do dia, nem me importei com isso, é normal
usar joias, mas então no momento em que coloquei o colar
no pescoço, exatamente no momento em que encostei o
cristal no peito, algo aconteceu, foi como se todo meu
corpo tivesse sido congelado, como estar petrificado.
Meus membros se moviam normalmente, mas não era eu
quem os controlava, eu ficava numa parte parada do
corpo, apenas vendo tudo acontecer, nunca nem pensei
que isso pudesse existir, até porque, para mim, Pedrus
estava morto há muito tempo.
— E isso aconteceu depois que souberam que
minha mãe estava grávida? — pergunto o olhando nos
olhos.
— Sim, depois disso vieram todas as mortes, a
destruição, o feitiço que acabou com esse lugar, e as
buscas intermináveis para te encontrar.
É estúpido dizer, mas não consigo não pensar que
tenho minha cota de culpa na história, afinal se não fosse
por mim, nada disso teria acontecido.
— Pare de pensar besteiras, Melane — David diz
passando a mão levemente em minhas costas.
— Eu não estou pensando em nada.
— Eu sei que está, então pare!
Eu apenas o olho pelo canto do olho, sem dizer
mais nada.
— Nós iremos encontrá-lo, meus homens estão
vasculhando todo o reino, ele não pode se esconder para
sempre.
Não quero falar sobre isso, acordei há poucos
minutos e já fui bombardeada por todas essas noticias,
talvez eles estejam certos, talvez Pedrus esteja mesmo
com medo, por enquanto.
— E Komodo? Onde está? — pergunto, me
lembrando que não o tenho nas mãos.
David sorri.
— No mesmo lugar onde você o deixou. Ninguém
iria conseguir tirá-lo de lá, mas foi divertido ver o povo
tentar — ele diz rindo ainda mais.
Eu rio também, assim como meu avô.
— Vá buscá-lo, vá e veja como está seu mundo,
tudo isso aqui é seu — Ariel diz estendendo as mãos para
fora do cômodo.
— Vamos? — David pergunta me encarando.
— Mal posso esperar para ver esse lugar!
Alguns guardas reais me cumprimentam, quando
passo por eles pela porta principal do castelo.
O ar fresco é o primeiro a me dar as boas-vindas,
logo depois dele, vêm os raios de sol quentes e
acolhedores, a brisa levando meus cabelos para trás e
trazendo o aroma das flores, o céu azul acima de mim,
tudo da forma que deveria ser, tudo perfeito.
Olho para David e sorrio, enquanto caminhamos
para fora do castelo.
— Eu nem posso acreditar nisso, é tudo tão
diferente.
— É como sempre foi, você apenas conhecia a
forma errada daqui, essa é a verdadeira.
Andamos lentamente pela grama verde que afunda
sob meus pés.
— E todo mundo? Amélia, Damião?
— Eles estão bem, ansiosos esperando você
acordar.
— E Rachel? Tem visto ela?
— Sim, a mãe dela ficou melhor, e a irmãzinha dela
é uma garotinha linda!
Me alegro com a noticia, é bom saber que ela está
bem.
— E Jack? — finalmente pergunto.
Ele continua caminhando normalmente, enquanto
responde tranquilamente.
— Ele está ótimo, o mesmo de sempre, mas agora
está crescido — ele diz gargalhando.
— Qual a graça? — pergunto sem entender.
— Nada. É que ele conseguiu ficar ainda mais feio
do que quando criança.
Dou risada o acompanhado, embora não concorde
com isso, Jack foi uma criança linda e isso apenas
melhorou quando cresceu.
Andamos por alguns minutos, até chegarmos ao
local onde a guerra aconteceu dois meses atrás. Não há
nenhum vestígio do que houve, o lugar está limpo, claro e
puro. Posso ver Komodo fincado na grama, exatamente
onde eu o deixei.
— Você devia ter visto, fizeram concursos para
quem conseguisse o tirar daí, as crianças foram as que
mais tentaram.
Sorrio com a ideia e aperto o passo até a espada.
Posso senti-la agora, sentir sua energia gritando por
mim.
— Também senti saudade — digo, enquanto a
desenterro facilmente do chão.
Agora sua energia corre por mim, pegando cada
célula do meu ser, nos interligando novamente, mas algo
está diferente.
— O que foi? — David pergunta percebendo minha
expressão.
— Algo mudou. Agora somente eu estou aqui,
Komodo e eu. Antes era como se meu pai sempre
estivesse aqui também, eu o sentia, era como se suas mãos
ficassem por baixo das minhas, mas agora não, ele não
está mais aqui — continuo olhando a espada.
Aquela última vez em que o vi, quando ele arrancou
o colar do pescoço de Ariel, foi como se ele tivesse usado
todas as últimas forçam que lhe restavam, sinto que nunca
mais irei vê-lo.
— Talvez ele só estivesse aqui por causa de seu
caso inacabado, e agora está livre — David diz me
olhando.
— Aquele dia no castelo, quando meu avô foi
libertado, não fui eu quem o salvou, foi meu pai, ele
apareceu por algum tipo de ligação com Komodo, ele
arrancou o colar do pescoço de Ariel. Eu não tive nada
com isso, se não fosse por ele, as coisas ainda estariam da
forma que estavam, eu não fiz nada!
— Eu discordo, para começar, seu pai não teria
feito nada disso se você não tivesse levado Komodo até lá,
e depois ter tirado o feitiço desse lugar, pare de tentar se
desmerecer, Melane.
— E agora ele se foi, estou tentando senti-lo, mas é
como se nunca estivesse estado aqui antes.
— Pense que ele está livre, finalmente livre!
Aceno com a cabeça, mesmo sentindo falta dele,
era bom sentir suas mãos sobe as minhas, fazia com que
eu me sentisse mais amada.
— É bom ter Komodo de volta! — digo sorrindo,
enquanto o giro entre os dedos.
David sorri também.
— Pronta para ver mais coisas por ai?
— É claro.
Nesse instante escutamos gritos.
— David! Espere!
É um dos guardas reais, ele corre em nossa direção.
— O capitão quer lhe ver, rever os lugares de
busca.
— Oh, diga que vou mais tarde, estou com Melane
agora, ela acordou agora pouco.
— Oh! Princesa — o homem faz uma reverencia.
Eu sorrio para ele.
— Pode ir, David, eu posso ver as coisas por mim
mesma, teremos muito tempo para nos falarmos depois.
— Você tem certeza? — ele pergunta parecendo
confuso.
— Tá tudo bem!
— Ok, não demore então, eu te encontro assim que
terminar isso — ele se aproxima me dando um beijo na
testa. — Te vejo depois — diz enquanto se afasta com o
guarda.
Começo a caminhar, indo em direção ao lago, onde
conheci Summer, mal posso esperar para vê-la.
Ando rapidamente, levantando a bainha de meu
vestido verde, desejando estar usando calças. O caminho é
o mesmo pela floresta, mas agora ao invés de árvores
secas e mortas, estas estão emitindo vida por todos os
lados, os pássaros cantando por todo lugar, e as flores
derramadas aos montes pelo chão verde. Em pouco tempo
chego à beira do lago, ao invés das águas cinzentas e
escuras, agora tudo é claro e cristalino, água espelhada,
brisa fresca, é um dos lugares mais lindos que já na vida!
Me aproximo da água, tiro meus sapatos, levanto
mais meu vestido e sento na pedra, onde sempre sentei
para falar com Summer, coloco a mão na água e balanço,
sentido ela deslizar por entre meus dedos, sorrio com a
sensação.
Queria que ela estivesse aqui, perguntar como estão
as coisas lá em baixo.
Coloco os dois pés na água, enquanto sinto o calor
do sol batendo diretamente em mim.
— Seus cabelos parecem ser feitos de fogo assim.
Escuto sua voz ao longe. Abro os olhos e vejo a
linda sereia sorrindo parada, alguns metros na minha
frente.
— Summer!
A sereia mergulha e em meio segundo está ao meu
lado.
— Quando acordou?
— Agora pouco, como você está? Como vão as
coisas ai em baixo?
— Estamos todos bem, graças a você.
— Isso é tão incrível, às vezes penso que estou
sonhando, tenho medo de acordar — digo observando sua
cauda verde folha perfeitamente sobe a água.
— Isso é real, você tornou as coisas reais.
Suspiro, sentindo o cheiro doce das flores mais uma
vez.
— Depois quero que conheça uma pessoa, minha
irmã, ela estava fora por causa da situação de Ninho de
Fogo, mas agora que as coisas estão bem de novo, ela
voltou.
— Eu iria adorar conhecê-la.
— Eu nunca a vi de vestido antes, ele é lindo — ela
diz passando as mãos pegajosas pelo tecido verde do
vestido.
— Sim ele é, mas não é nada prático.
Ela dá risada.
— Porque não tira e vem nadar comigo?
É tentador, não tem como dizer não.
Me levanto na pedra e tiro o vestido pela cabeça,
ficando apenas com a roupa de baixo, uma calça e blusa
brancas coladas ao corpo, e entro na água de uma só vez,
pulando da pedra e espirrando água em Summer.
Nós rimos juntas, enquanto ela joga água em meu
rosto com sua cauda.
— Sabe, quando eu era pequena eu queria ser uma
sereia.
— É? Nunca me imaginei sendo nada que não fosse
uma sereia.
— Eu gosto da água.
— Eu sempre quis ser algo mais do que uma
simples humana, sonhava em ser uma sereia, ou uma fada,
queria poder falar com os animais, ver gente morta,
qualquer coisa, qualquer coisa que me impedisse de ser
normal. Minha avó dizia que eu lia histórias demais.
— Parece que seu sonho se realizou então, você é
bem mais do que uma simples humana, ou uma sereia.
Nunca sonhei em salvar um mundo destruído por
um mestiço das mesmas raças que as minhas, mas ainda
sim, ela tem razão, sou algum tipo de personagem de
algum livro que possa ter lido alguma vez, só que real,
minhas escolhas não são tão fáceis como virar a página de
um livro, elas decidem como as coisas serão, nada é
simples quando tudo depende de você. Nos livros tudo é
mais simples.
— E agora você pode vir sempre nadar comigo, se
antes eu sempre estava aqui por causa do sol, agora que as
coisas estão bem, eu praticamente não saio desse lugar.
De repente algumas gotas de água caem em meu
nariz, e dessa vez não é Summer quem as está jogando,
elas vêm do alto, do céu.
As gotas aumentam e a chuva cai sobre nós, chuva
de verão, aquela gostosa e refrescante, que todo mundo
adora.
— Eu nunca vi chuva por aqui.
— Nunca choveu desde que o feitiço nos atingiu,
mas agora, nesses últimos dois meses, elas são frequentes.
Levanto a cabeça para o céu sorrindo.
Summer desvia o olhar e se vira, ela parece estar
procurando por algo, como se estivesse tentando ver
alguma coisa.
— O que foi? — pergunto, já ficando preocupada.
— Não é nada, alguém vem vindo ai. Volte mais
tarde, gosto muito de passar o tempo com você, e ainda
preciso lhe apresentar minha irmã.
— Tudo bem eu volto, mas por que tem que ir?
— Nada demais, só não me acho muito mais
desejada agora, até outra hora, princesa.
Dito isso, ela mergulha sumindo para dentro do
lago, me deixando sozinha na chuva.
Balanço a cabeça sorrindo, sereias, quem as
entende?
Ando até a margem do lago, torcendo o cabelo no
processo e jogando o vestido molhando no chão, enquanto
tento ver quem se aproxima.
Acho que Summer se enganou, não vejo ninguém.
Aperto os olhos na direção que Summer olhava, mas não
posso ver nada com a chuva e as árvores, então continuo
tentando.
Agora, há poucos metros de distância posso ver
claramente quem se aproxima, ele ainda não me vê, está
com a cabeça baixa, os fios loiros de seus cabelos caindo
molhados, lhe tapando o rosto, ele caminha lentamente,
como se não se importasse com o tempo, ou com os
pingos de chuva caindo sobre suas costas.
Fico paralisada, apenas o observando, sinto que
algo me mantém presa ao chão, não consigo me mexer,
nem piscar, como se cada pedaço dessa cena fosse único e
perde-los seria como um crime imperdoável. A cada
passo que ele dá, mais alto meu coração pula em meu
peito, cada passo, cada batida se acelerando, por que isso
acontece comigo? Por que me sinto assim, apenas por o
ver se aproximando? Por que não consigo fazer esse
sentimento ir embora? E a maior pergunta de todas, por
que parece que não quero que esse sentimento se vá?
É nesse momento, enquanto brigo comigo mesma,
que ele levanta seu rosto e me vê parada, o olhando de
volta. Ele se assusta em primeiro momento, mas depois
seus olhos se suavizam e posso ver as expressões infantis
voltarem para seu rosto, e então ele sorri.
— Melane? — ele grita de onde está, alguns metros
longe de mim.
Eu aceno para ele sorrindo também.
Uma coisa engraçada sobre Jack é que ele pode ter
mil expressões, mil tipos de faces diferentes, alguma
sempre me pega de surpresa, como a de agora. Não sei
explicar muito bem, mas ele fica diferente, cada vez que o
vejo é como se uma nova forma de olhar ou de sorrir
estivesse surgido em seu rosto, sinto que ele fica diferente,
como se fosse outra pessoa, mas sem deixar de ser ele
mesmo, a forma de sorrir às vezes muda, mas o sorriso é o
mesmo, assim como os mesmos olhos, mudando apenas a
forma de olhar, eu sei, isso parece confuso, mas Jack é
confuso também, tudo nele é. Não consigo pensar em uma
forma fácil de explicar, na verdade nada sobre ele é fácil
de se explicar, e isso é frustrante. Jack tem mil formas de
olhar, inúmeros modos de agir, é extremamente
imprevisível, eu só queria por uma única vez poder
entender todas essas mil faces que ele tem, mas a verdade
é que não consigo entender nem ao menos uma.
Jack acelera o passo, tirando a distância que nos
separa, ele não está correndo, mas anda rápido, com
passos largos.
A chuva aumenta, caindo com mais intensidade
sobre nós, o vento também sopra, não o suficiente para nos
provocar frio, é mais como uma brisa refrescante de verão.
— Quando acordou? — ele diz sorrindo, assim que
se aproxima, posso ouvir o tom rouco de sua voz deslizar
para dentro de meus ouvidos, como música boa e
tranquila, daquelas que te lembram da infância ou de um
passado distante e inalcançável.
— Hoje de manhã — digo sem jeito, mas sem tirar
os olhos dele, não por escolha, mas pela falta dela.
Ele desliza o olhar por mim, faço o mesmo
acompanhando seus olhos escuros, a roupa branca está
colada ao meu corpo, não transparente, mas ainda sim,
revelando coisas que não revelaria normalmente. Cubro o
peito com os braços, os fechando ao meu redor, ele com
aparente constrangimento desvia o olhar de minhas roupas
e volta a encarar meus olhos.
Eu não sei o que dizer, na verdade, nem ao menos
sei o que pensar, e tenho até medo de me permitir fazer
isso agora, então espero que ele diga algo.
— Você está bem? Quero dizer, tá tudo bem? — ele
pergunta coçando a cabeça, desconfortável, por que
estamos assim, agindo dessa forma um com o outro?
— Sim, passei dois meses dormindo, mas estou
bem.
Algumas gotas de água ficam presas em seus cílios
loiros, enquanto algumas escorrem de sua testa até seu
pescoço lisinho, para depois descer pela camisa que agora
está agarrada ao seu peito e ombros largos.
— Nossa! Já se passou dois meses? Eu nem tinha
percebido.
E então toda a magia é quebrada com essa única
frase.
Ele nem ao menos notou os dias se passando, nem
sentiu minha falta, isso não lhe causou nenhuma dor, nem
saudade, ou nada do tipo.
Algo aperta meu peito enquanto as palavras saem
de seus lábios, se antes meu coração estava acelerado,
agora ele se derrete, escorrendo de meu peito, sinto como
se tivesse levado um soco no lugar do coração, e o pior é
que isso nem ao menos faz sentido, eu não deveria sentir
nada disso. Está na cara que Jack não se importa, que ele
nunca se importou.
Não quero demonstrar nenhuma reação, então tenho
que ir embora daqui, logo.
— Já está ficando tarde, estão me esperando no
castelo, eu tenho que voltar.
Ele apenas acena com a cabeça.
— Tchau — digo pegando minhas roupas
molhadas, vestindo os sapatos e pegando Komodo do
chão, quase engolindo as palavras, segurando o choro que
por pouco não escapa.
Ele levanta a mão acenando, mas não diz nada,
enquanto caminho para longe dele.
Jack

Dois meses, já se passaram sessenta e um dias, e ela


ainda não acordou, fico me perguntando se um dia irá
acordar, o pior é saber que ela está assim por minha culpa,
que ela fez isso para me salvar.
Ando lentamente pela chuva, gosto do modo como
cai sobre minhas costas, e da lama que se forma no chão,
enquanto caminho por ela, ajuda a me distrair, esses dias
não foram fáceis, nada me distrai o suficiente para tirá-la
da cabeça.
Continuo caminhando para o lago, eu não gosto de
lá, muitas memórias ruins sobre a água, mas também foi lá
que passei instantes com ela, estar lá me ajuda a lembrar,
como se algo nos conectasse quando estou ali.
Levanto o rosto vagarosamente enquanto vou me
aproximando de lá, e então como se meu pedido tivesse
sido realizado, eu a vejo, parada na margem do lago, me
olhando de volta.
Um sorriso cresce em meus lábios, enquanto chamo
seu nome.
— Melane?
Ela sorri para mim acenando.
— Jack!
Minha maior vontade é correr, correr para ela, mas
quão idiota eu pareceria se fizesse isso? Ela não se
importa, não me vê da forma que eu a vejo, ela deixou isso
bem claro há dois meses, quando foi embora correndo
daquela colina, depois que eu a beijei.
Sinto as batidas do coração aumentando, enquanto
quebro a distância que nos separa.
— Quando acordou?
— Hoje de manhã.
Só agora me dou conta de seu estado, as roupas
brancas e curtas coladas ao seu corpo, enquanto gotas de
chuva correm por suas pernas claras. Nesse instante ela
cobre o peito com os braços, mostrando que percebeu
meus olhares indiscretos, então me obrigo a perguntar algo
para ao menos disfarçar.
— Você está bem? Quero dizer, tá tudo bem? —
pergunto, me obrigando a coçar a cabeça para dar algo
para minhas mãos fazerem e tentar controlar a vontade de
tocar os fios molhados de seu cabelo ruivo que escorrem
de seu rosto até seus ombros.
— Sim, passei dois meses dormindo, mas estou
bem.
Eu quero dizer a verdade, mas não posso, ela foi
embora, tento lembrar-me disso.
— Nossa! Já se passou dois meses? Eu nem tinha
percebido.
Eu minto, de que adianta dizer a verdade? para que
dizer que a vi durante todo esse tempo? Quase todos os
dias desses dois meses, só não a vi nos dias em que o
irritante do David não saiu de seu quarto, fiquei horas
esperando ele sair um dia, mas o infeliz continuou lá
durante todo o tempo. Entrei escondido no castelo pela
janela quase todos os dias para vê-la. Dois miseráveis
meses, sessenta e um dias de puro desolamento e
desespero, o ódio, o medo de que não acordasse me
consumiu por todo esse tempo, a cada segundo, cada
momento, eu não me esqueci dela nem por um minuto,
meu coração só voltou a bater normalmente agora pouco,
quando a vi parada aqui.
— Já está ficando tarde, estão me esperando no
castelo, eu tenho que voltar — ela diz já se virando.
O que posso dizer? Apenas aceno com a cabeça.
— Tchau — ela diz fracamente, como se algo a
estivesse incomodando.
O que foi isso? Decepção? Ela parece
decepcionada, e se eu estiver errado? E se ela realmente se
importar?
Vamos idiota, diga a ela que a viu quase todos os
dias em que esteve adormecida, diga logo. Conte que
morreu todos os dias durante o tempo em que ela não
esteve aqui. Eu quero dizer, mas algo me trava no lugar,
então tudo que faço acenar, enquanto ela caminha para
longe de mim.
Melane

Eu detesto isso, a forma como ele pode mudar meu


humor tão rápido assim. Ele nem percebeu que se
passaram dois meses, é claro que ele não percebeu, porque
perceberia? É do Jack que estamos falando, então por que
isso me magoa tanto? O pior é que acho que sei a resposta,
só não quero admitir, pois admitir seria tão errado quanto,
tão errado quanto gostar de comer batata frita com molho
de morango. Não seria apenas errado, mas também
injusto, comigo, com David, e até mesmo com ele.
Tento vestir o vestido enquanto ando, é quase
impossível por causa do tecido molhando, mas finalmente
consigo.
Continuo caminhando, tentando não pensar nisso, é
algo que aprendi a fazer aqui, mandar os pensamentos para
longe por um tempo, é fundamental para mim.
Começo a fazer o caminho para aldeia, preciso ver
como estão todos.
Depois de uns bons minutos a chuva finalmente
para, e posso ver o vilarejo.
Nem ao menos parecem as mesmas casas e pessoas
de antes, tudo foi reconstruído, casas feitas de pedra e
tijolos, não há crianças descalças pedindo esmolas nas
ruas, algumas árvores ficam envolta das casas, e flores
presas em vasos nas portas, vejo algumas barracas onde
vendem-se alguns tipos de comidas diferentes, não há
mais cheiro de sangue ou de brasas, só o cheiro de vida
percorre o ar.
— É a princesa? — um homem diz apontando o
dedo para mim.
Várias pessoas olham em minha direção nesse
momento.
— Sim é ela, princesa Melane.
Uma multidão de crianças corre para mim,
abraçando minhas pernas, quase me derrubando no
processo.
Eu as aperto em mim da forma que posso, enquanto
começo a gargalhar.
Enquanto isso mais pessoas se aglomeram a minha
volta, homens, mulheres, senhores, e senhoras, todos
sorrindo para mim.
Eles gritam meu nome, sorriem para mim, e então a
aldeia fica cheia, com tantas pessoas amontoadas ao meu
redor que fica difícil ver o resto do mundo, eles começam
a aplaudir, todos aplaudem em minha direção.
Algumas lágrimas escorrem por meu rosto,
lágrimas de felicidade, todo mundo está feliz, agora
possuem motivos para lutar, acreditam na vida novamente.
— Melane?
Escuto a voz conhecida de Amélia gritando no meio
do mar de pessoas.
Corro em sua direção, me arrastando pelas pessoas
e a abraço fortemente.
— Oh! Querida, que bom que está bem.
— Que bom que você também está bem, Amélia. E
os outros? Damião, Angélica?
— Estão bem ali — ela aponta o dedo a nossa
frente
Aceno para eles que, alegremente acenam de volta
para mim.
Fico um bom tempo na aldeia, conversando com
todos, abraçando pessoas, recebendo agradecimentos, tudo
tão bom, tão real, é tudo o que sempre desejei para essas
pessoas e para esse lugar.
Depois volto para casa quando está quase
escurecendo, David vem até a aldeia me procurar e
voltamos juntos.
— Então, como passou por tudo isso sozinha? —
David pergunta quando estamos próximos ao castelo.
— Eu não estava sozinha.
— Eu não estava com você — ele cutuca seu ombro
no meu de leve, me fazendo rir.
— Sim, você não estava aqui, mas tive muita ajuda,
em tudo.
Ele acena com a cabeça.
— Conheci uma sereia também, ela se chama
Summer.
— Sereias, goblins, o que mais eu perdi?
Nesse instante, a imagem dos lábios de Jack passa
por minha mente, posso ver claramente seus olhos
arregalados, me lembro de nossa respiração ofegante, da
pressão de suas mãos em minhas costas, do gosto de sua
boca e o cheiro de seu hálito, o pensamento é tão forte que
é quase como se tivesse acabado de passar por isso
novamente.
Penso em contar a David sobre o beijo, não gosto
de mentir, mas algo me impede de dizer as palavras.
É como se um nó tivesse se formando em minha
garganta, então não digo nada.
Sim, me sinto mal por isso, mas pensando bem,
para que contar? para que magoá-lo? Não significou nada
e não irá se repetir, nunca mais. Então enterro esse
pensamento de volta para o lugar de onde veio e o tranco
num lugar escuro e afastado de minha mente. Digo a mim
mesma que isso não tem importância, foi apenas uma
coisa que aconteceu, mas que nunca deveria ter
acontecido, foi um grande erro, só isso. Jack não é o tipo
de cara que quero para mim, eu nunca o entendo, nunca
sei no que está pensando, e ele nem ao menos se importa.
Ao contrario de David, eu sempre sei o que ele vai dizer,
posso prever todos seus passos, sempre.
— Nada demais, coisas sem importância — é tudo
o que lhe respondo, dessa forma não estou mentindo,
omitir não é a mesma coisa, certo? Eu sei que parece
terrível e errado omitir algo assim, mas só não quero
magoá-lo sem motivos.
Caminhamos de mãos dadas até o castelo, onde
comemos e depois me deito na cama. Alguns poucos
segundos depois de me aconchegar nas cobertas a porta se
abre lentamente.
— Vovô?
— Será que você está velha demais para essas
coisas? — ele pergunta levantando a mão direita, onde
segura um livro de histórias.
— Não tão velha assim — respondo sorrindo.
Ele se aproxima e senta-se ao meu lado na cama.
— Eu deveria ter feito isso quando você era
criança.
— Eu nunca serei velha demais para escutar
histórias, não tem nada no mundo que eu goste mais do
que isso.
— Seu pai também adorava ler, você é tão parecida
com ele — ele passa a mão levemente por meu rosto e
coloca uma mecha de cabelo atrás de minha orelha.
Tiro sua mão de meu rosto e a aperto entre meus
dedos. Ariel me observa por mais uns segundos.
— Pronta? — diz abrindo o livro e levantando a
sobrancelha.
— Pronta!
Sei que dormi por dois longos meses, mas
adormeço assim que a voz grave e familiar de meu avô
começa a soar para dentro de meus ouvidos. A
tranquilidade e o conforto que sinto apenas por escutá-lo é
algo realmente maravilhoso, é como passar por um déjà
vu, como se sempre tivesse ido dormir escutando essa voz.
Capítulo
17
Quando sonhos se transformam em visões

Eu vejo Jack, ele aparenta ter 11 anos de idade, mas


não posso dizer se é a idade real ou só a aparência. Ele
está em pé ao lado de uma cama, onde uma mulher dorme.
Seus olhinhos pretos estão úmidos e vermelhos, suas
mãozinhas seguram a mão esquerda da mulher com tanta
força, que posso ver os nódulos de seus dedos rígidos,
enquanto ele tenta segurar o choro.
— Eu vou resolver isso, eu prometi e eu vou, não se
preocupe! — ele diz, enquanto enxuga com a mão uma
lágrima que escorre por sua bochecha.
Tanta dor, tanto sofrimento, eu quase posso sentir
junto com ele.
A mulher continua deitada, aparentemente
dormindo, posso ver seu peito subindo e descendo com a
respiração. Ela tem cabelos escuros, longos e lisos que
descem por seus ombros lindamente, seu rosto é rosado,
ela se parece um pouco com ele.
Acordo de uma vez, sem ser de supetão, sem me
sentar na cama rapidamente, apenas abro os olhos, mas me
lembro exatamente do sonho que tive, foi tão real.
Nesse instante, me lembro do sonho que tive
quando ainda estava na Terra, aquele em que vi o homem
de cabelos loiros sangrando queimado. Aquilo tudo
aconteceu, vivi aquela cena, aquele homem do sonho era
Jack. O que tudo isso significa, afinal?
Me arrumo rapidamente, pegando um dos vestidos
do armário, pego o mais simples, aquele que não é tão
longo assim, e saio pela porta procurando por David.
Procuro na biblioteca, no salão principal e na
cozinha, mas não o encontro em lugar nenhum.
Vou para saída do castelo, imaginando que ele
esteja na aldeia, mas sou parada no momento em que saio
pela porta grande de ouro, pois tropeço em alguém, por
pouco não caio no chão, sou salva por mãos fortes que me
seguram pela cintura no exato momento.
— Edmundo? — sorrio ao ver os olhos azuis
aconchegantes de Edmundo, e o abraço fortemente. — É
tão bom ver você, como está?
— É muito bom vê-la também, princesa. Como tem
sido desde que acordou?
— Ah, tudo ótimo. Eu sei que ainda temos que
encontrar o tal do Pedrus que nos causou todo aquele mal,
mas por hora, estou aproveitando os minutos de sossego
— nós dois rimos. — Você sabe onde David está?
— Sim, eu acabei de vê-lo no lago, ali do lado do
castelo, é só virar por ali — ele diz esticando o braço na
direção.
— Tudo bem então, Edmundo, eu preciso falar com
ele. Foi realmente bom ver você — digo o abraçando mais
uma vez pela cintura, antes de sair na direção que ele
indicou.
Ando apenas alguns metros contornando o castelo,
até avistar David sentado a margem de um lago, é de lá
que vem a água que corre por dentro do castelo e em volta
dele.
— Davi, oi! — digo me sentando ao seu lado.
— Hei — ele diz beijando minha testa. — O que
foi? — pergunta olhando minha expressão diferente.
— Queria perguntar uma coisa.
— O quê?
— Uma vez, quando ainda morávamos na Terra, eu
tive um sonho, sonhei com aquele dia da guerra, vi Jack
ensanguentado e queimado, na época pensei que era
apenas um sonho, mas então aconteceu — digo me
lembrando exatamente do dia em que tive esse sonho. Me
lembro de vê-lo deitado enquanto tocava seu ferimento,
lembro do sentimento que tive estando ao seu lado, e de
como o pânico tomou conta de mim naquela noite.
— Sua mãe podia fazer isso, ela também tinha
visões através de sonhos.
— Foi o que pensei, que estivesse tendo visões,
mas então, hoje eu sonhei com Jack, mas quando ele ainda
era criança.
— Nem sempre as visões são do futuro, podem ser
do passado também, coisas que irão acontecer em dois, em
cinco anos, coisas que estão acontecendo, ou até mesmo
coisas que aconteceram há anos atrás. Era assim com sua
mãe.
— Então como saber quando é visão e quando é
apenas um sonho?
— Tá aí, você não tem como saber! — diz
erguendo os braços.
— Ah, isso é tão frustrante.
— Por quê? O que você sonhou?
— Ele tinha aparência de uma criança, igual sempre
foi, estava de frente para uma cama, onde uma mulher
dormia, ele estava chorando.
— Faz sentido!
— O quê? Por quê?
— A mãe dele morreu de uma doença, ficou de
cama vários dias antes de morrer.
— Oh!
Uma sensação ruim percorre meu corpo, sinto pena
de Jack, e ao mesmo tempo imagino a dor que ele sentiu,
me lembro de seu rosto no sonho, de como sofria. Ele
passou por tanta coisa na vida!
— Mas então, porque eu sonhei com isso? Quero
dizer, os sonhos, as visões devem ter um significado, não
é?
Ele apenas dá de ombros.
— Sempre foi um mistério para sua mãe.
— De que ainda ter visões se não posso fazer nada
com elas?
— Elas podem ser úteis.
— É, não sei como.
— Ah! Pare de ser resmungona, quando ficou tão
ranzinza? — ele bate a mão na água com força, espirrando
um monte dela em meu rosto.
— Hei! — digo fazendo o mesmo, mas espirrando
o dobro de água em seu rosto.
Sorrindo, ele começa a jogar mais água, David
entra no lago, me levando junto com ele. Começo a bater
na água, jogando tanta água nele quanto ele joga em mim.
— Chega! — digo depois de uns minutos. — Não
aguento mais — eu começo a rir, enquanto saio do lago
me sentando na margem.
— Bobona, eu venci! — ele se senta ao meu lado.
— Não vale, você é mais forte, consegue jogar mais
água.
— Não aceita que perdeu! — ele ri ainda mais.
Eu olho para ele, o sol bate em seu rosto agora,
fazendo seus olhos ficarem com aquele tom mágico
novamente, junto com os pingos de água grudados em
seus cílios.
— Eu sonhei com você também.
— O que aconteceu?
— Nada, você estava molhado e conversava
comigo!
— Então já se realizou, não é? — diz me dando um
beijo na bochecha.
Aceno com a cabeça, mas não digo que no sonho
ele me dizia aquela frase ―você ama quem você ama,
simples assim‖, nem ao menos sei o motivo por não
contar, só não me parece certo dizer.
Depois disso voltamos para castelo, onde
encontramos meu avô no salão principal, aquele onde o rio
corre pelo chão, e o teto de cristal despeja raios de sol em
cima da água.
— Eu estava pensando! — ele diz sorridente. —
David já lhe contou? — ele pergunta com os olhos alegres.
— Me contou o quê?
— Achei que você queria contar — David diz
dando de ombros.
— O quê?
— Gostaria de coroá-la como princesa, afinal, você
é minha herdeira.
— Você acha que isso é necessário? Quero dizer,
com tanta coisa acontecendo, o mestiço ainda está livre
por ai.
— Esse povo precisa de uma festa assim, dizem que
o amor move montanhas, não é? Pois alegria também pode
mover, esse povo precisa de um pouco disso, e eu
também.
— Bem, se o fará feliz...
Ariel se aproxima e me abraça fortemente.
—Será em dois dias!
— Apenas dois dias? — pergunto imaginando que
esse tipo de coisa deva levar um tempo para ser preparado.
— A data é perfeita, mas você não se lembra, não
é? — David pergunta ao meu lado.
— Me lembrar de que?
— É seu aniversário.
Não dá para acreditar que já estamos em setembro,
dia vinte e seis chegará em dois dias, tanta coisa
aconteceu, tanta coisa mudou, eu mudei mais do que
qualquer outra coisa. Faz quase cinco meses que estou
nesse mundo. Sorrio levemente em pensar que
conseguimos mudar tudo em pouco tempo, claro,
comparado ao tempo que esse povo viveu assim, cinco
meses não é nada perto disso.
— Eu não me lembrava! — e para falar a verdade,
nem me importo, quer dizer, as coisas que faziam sentido
antes, agora já não fazem mais tanto sentido assim, como
festas, aniversários, celulares novos, roupas. Sei que esse
povo precisa de algo animador, eles merecem, só não
consigo ficar tão animada quanto meu avô e David
parecem estar. Fico feliz por tudo estar dando certo, mas
não consigo parar de pensar que a qualquer momento tudo
isso pode acabar, enquanto Pedrus estiver por aí, não
consigo ficar tranquila, não depois de tudo que passei.
— Você costumava esquecer seu aniversário
quando estamos na Terra, imagine agora — Davi sorri
para mim.

Esses dois dias passaram mais rápido do que


imaginei, nem posso acreditar que hoje serei coroada
princesa, há poucos dias atrás tudo isso aqui estava um
caos, e hoje teremos uma festa. Eu na verdade nem sei o
que pensar. Estou sentada numa cadeira macia enquanto
Isabela terminar de arrumar meu cabelo, enquanto lhe
desejo sorte e pensamentos positivos por dentro para que
possa domar meus cachos, ele irá precisar, conheço esse
cabelo há muito tempo para saber que é um caso perdido,
mas como ela insistiu, deixei que tentasse.
Estou usando um vestido azul brilhante que é
agarrado em minha cintura por causa do espartilho, vale a
pena dizer, que coisinha mais abominável, tudo bem que
te deixa com uma cintura muito mais fina do que a que
você tem, mas não vale à pena ficar sem respirar para
conseguir uma cintura fina, só estou usando essa coisa,
pois não quero decepcionar ninguém hoje, enfim, voltando
ao vestido, ele é rodado, tem tanto tecido que quase posso
me perder nele, mas é lindo, como todo vestido de uma
princesa deve ser.
— Prontinho! — Isabela diz me olhando de uma
forma estranha, penso comigo mesma que deva ser por
causa do cabelo, eu bem que avisei.
Me viro para poder encarar o espelho atrás de mim.
Primeiramente me assusto, quase não reconheço a
garota no reflexo, meus cabelos estão presos de uma forma
que alguns cachos possam balanças quando mecho minha
cabeça, alguns fios escorrem por meu pescoço e rosto,
meus lábios estão vermelhos, fazendo com que meus olhos
fiquem ainda mais verdes, tudo parece se destacar ainda
mais pela cor azul escura do vestido.
— Você está tão linda — Isabela diz com a ameaça
de choro em sua voz.
— Você é incrível, como conseguiu fazer isso? —
pergunto sem acreditar que sou eu mesma.
— Não precisei me esforçar, a modelo ajuda muito.
Nós rimos juntas.
— Ande, levante-se para que eu possa vê-la melhor.
Me levanto da cadeira e fico de frente para Isabela,
que deixa duas lágrimas escorrer do olho esquerdo,
enquanto me encara sorridente.
— Ah, pare com isso, Isabela, é só um vestido.
— Desculpe — ela enxuga as lágrimas rapidamente
com a manga de seu próprio vestido.
— Está na hora, escute, a música parou — ela
levanta o dedo indicador perto do rosto enquanto fala.
— Mas já? Eu não sei se estou pronta — hoje faço
17 anos e serei coroada princesa, é pressão demais.
— Você está — diz isso e me empurra pela porta
do quarto, onde saio para o corredor que me levará até a
escada para o salão principal, onde todos me esperam.
Respiro fundo uma vez antes de começar a
caminhar lentamente até a escada, coloco a mão no
corrimão feito de ouro e levanto o rosto para ver todos do
reino no salão, todos olhando diretamente para mim.
A música volta a tocar novamente assim que
apareço, é uma música calma, mas ainda sim tem um
ritmo animado.
Sinto aquele frio na barriga percorrer todo meu
corpo, não sei dizer se é de uma forma boa ou ruim.
Todos aplaudem enquanto desço os degraus
atentamente para não tropeçar em meu vestido
exageradamente longo, posso ver meu avô sentado em seu
trono a minha espera.
Não estou assustada por hoje me tornar
oficialmente princesa de Ninho de Fogo, só não sei se
saberei administrar o cargo, quer dizer, uma princesa de
verdade, são muitas responsabilidades, e ainda temos tanto
para resolver, é tanta coisa com que se preocupar. A
confusão e os pensamentos começam a tomar conta de
mim, a ameaça de desespero começa a se formar em
minha mente, mas todo drama e falta de ar repentina são
mandados embora, assim que o vejo no final da escada de
caracol. Ele sorri assim que nossos olhos se encontram, e
os dele conseguem ser ainda mais azuis com essa roupa,
está usando algum tipo de uniforme da guarda real, é
quase como um terno azul marinho com o desenho do
brasão em forma de dragão vermelho desenhado em seu
peito, onde se encontram os cinco botões dourados. É
estranho, mas David consegue me deixar calma, mesmo
quando tudo está uma bagunça, é aquele que sempre me
trás paz, não importa o quê, ele sempre sabe o que tem que
ser feito, com ele não há jogos, eu sempre sei o que está
pensando, ele tem sido meu braço direito por tanto tempo.
Ele pega minha mão direita e a beija levemente,
assim que me aproximo.
— Está nervosa? — pergunta sussurrando em meu
ouvido, enquanto caminhamos até meu avô.
— Não — respondo fazendo sinal negativo com a
cabeça.
Enquanto andamos até o trono, posso ver todos a
minha volta, Amélia, Damião, Angélica, Rachel e
Edmundo. O que foi isso? Edmundo sorrindo de forma
estranha para Angélica, sinto algo no ar, e conheço esse
tipo de olhar. Sorrio por dentro por imaginá-lo com a
doida da Angélica, torço para estar enganada quanto a esse
olhar que ele deu em sua direção. Edmundo é bom demais
para ela.
Todos estão aqui, o reino todo, cada criança, cada
pessoa conhecida e desconhecida, menos ele. Não posso
ver Jack em lugar algum. Não falei mais com ele e nem o
vi depois daquele dia no lago, dois meses adormecida e o
único momento em que estive com ele foram aqueles
poucos segundos, ele nem ao menos tentou me ver depois
disso. Sinto o coração pesando um pouco mais que o
normal em meu peito, mas me obrigo a aguentar, mandar
qualquer tipo de pensamento ruim embora, não preciso de
drama por hoje.
Sorrio assim que me aproximo de meu avô. David
lhe entrega minha mão direita da mesma forma que os pais
fazem com suas filhas nos casamentos, quando as
entregam aos noivos. Isso me faz que me faz rir. Depois
David se coloca ao nosso lado, da mesma forma que os
outros guardas reais que estão vestindo roupas iguais as
dele.
Ele me abraça ternamente antes de se virar para o
público.
— Hoje é um dia muito importante para nós, não só
por estarmos nos recuperando e por minha neta estar
completando 17 anos, mas também por termos de volta
nossa princesa, que hoje toma de volta seu lugar por
direito — ele faz uma pausa para me olhar
carinhosamente. —Minha filha, assamos por coisas
terríveis, e ainda iremos passar por um pouco mais até
tudo voltar ao que era antes. Graças a você sabemos que
tudo será possível, você devolveu esperança ao nosso
povo, trouxe de volta a faísca que cada um precisava para
acender o fogo de nossos corações. É com muita honra,
orgulho e amor que hoje lhe nomeio como princesa
Melane Mary Thompson Draconem, herdeira e futura
rainha de Ninho de Fogo — fico feliz por ele não ter
alterado meu nome, apenas acrescentou o Draconem, o
nome real.
Ele se abaixa para pegar a coroa que está em cima
de uma almofada azul, ela é prateada, muito delicada, com
três desenhos pontiagudos em cima contendo diamantes
em cada uma das pontas, e a coloca em minha cabeça.
Todos explodem em aplausos e sorrisos, flores são
jogadas em mim, gritos de euforia e encorajamento. É
nesse momento que todos meus medos se evaporam, e sei
que tudo irá dar certo, terá que dar, farei o que for preciso
para que dê, não posso decepcionar esse povo e nem esse
lugar, eu amo tudo aqui, e irei lutar por eles, eu sou sua
princesa, e eles são meu povo, eu faria qualquer coisa por
eles. Acho que acima de qualquer outra coisa, amar seu
reino e seu povo é o essencial.
Olho para David, que está sorrindo e aplaudindo
para mim, sorrio de volta em sua direção. Ele está aqui, ele
sempre esteve comigo, em todos os lugares e momentos,
Davi é meu anjo protetor, sei que ele nunca irá me
abandonar, os olhos azuis sempre estarão lá por mim, não
importa o quê.
A noite parece não ter fim, muita dança, abraços,
beijos, pessoas novas para conhecer, tudo tão maravilhoso.
O salão foi enfeitado com bolas de cristais com
velas acessas dentro, flores de todas as cores por todos os
lados, uma fonte com algum tipo de bebida alcoólica foi
colocada no centro, perto de onde o rio desabada, correndo
pelo salão. Uma orquestra toca do outro lado do salão,
nem sei o nome de alguns dos instrumentos que estão
sendo tocados, mas o som é maravilhoso. Enfeites em tons
de azul, assim como meu vestido, as cortinas azuis
também foram trocadas para combinar, tudo perfeito, nada
fora do lugar.
— Posso? — David se aproxima, estendendo a
mão, enquanto danço com meu avô.
— É claro — Vovô diz beijando meu rosto antes de
se afastar.
David pega minha mão e coloca a outra em minha
cintura, enquanto me gira lentamente pelo salão.
— Você nasceu para usar esse vestido, alguém já
lhe disse isso hoje? Está tão linda! — ele sorri ternamente,
me olhando diretamente nos olhos.
Eu não lhe respondo, apenas sorrio afundando meu
rosto em seu peito, enquanto dançamos seguindo o ritmo
lento da música.
— Você não faz ideia do quanto está linda, não é
Mel? Uma verdadeira dama, deveria usar vestidos mais
vezes. Porque você os odeia tanto? — ele pergunta
sorrindo.
— Eu não os odeio, só me sinto presa quando estou
usando um.
Depois de algum tempo, o jantar é posto e todos
nos sentamos numa mesa realmente grande, meu avô se
senta em uma das pontas, eu fico ao seu lado, David logo
depois de mim.
Os pratos mais estranhos de minha vida são
servidos, como um pouco de cada um, mas não irei mentir
dizendo que adorei, não que a comida seja ruim, é só tudo
tão diferente do que estou acostumada, comida de gente
chique.
Não sei quanto tempo se passou desde que desci os
degraus da escada, mas começo a me sentir cansada. Corro
os olhos pela mesa e pelo salão, onde ainda há pessoas
dançando, todos tão felizes, talvez vovô estivesse certo,
essa gente precisava disso, todos precisavam.
Não me importando com etiqueta, ao menos a que
aprendi na Terra, coloco meu cotovelo na mesa e apoio
meu rosto em minha mão, então bocejo.
Algo chama minha atenção. A porta entre aberta do
salão, algo não está certo, sabe quando você vê reflexos de
algo e logo depois eles somem? Posso jurar que isso
acabara de acontecer, continuo olhando nessa direção,
algo não me deixa desviar os olhos, e então alguns
segundos depois, posso ver seu rosto apontar atrás da porta
da entrada, ele tenta ser discreto, mas Jack sendo discreto
é quase tão impossível quanto eu parecer uma dama
sentada nessa cadeira.
Ele faz sinal com a mão, me chamando, aperto
meus olhos em sua direção e levanto às sobrancelhas,
numa tentativa de dizer ―o que você quer?‖.
Ele ignora meus olhares e faz um gesto com a
cabeça para que eu o siga.
O que ele está fazendo aqui? Pensei que nem ao
menos tivesse vindo, o que ele quer? Penso duas vezes
antes de levantar, mas isso aqui está tão entediante, essas
comidas são tão estranhas, preciso sair daqui, ao menos
por um minuto.
— Aonde vai? — David segura delicadamente meu
braço, quando me levanto.
— Hmm, eu não demoro! Prometo — digo me
livrando de seus dedos, me dirigindo para porta. Algo
quase me faz parar na metade do caminho, não gosto da
ideia de deixar David, mas não posso evitar que minhas
pernas continuem me levando para porta a minha frente.
Jack está parado ali, encostado na porta, uma perna
dobrada e a outra esticada, com os olhos brilhando. Sei
que estou com um pouco de raiva dele por não ter sentido
minha falta, mas não sorrir com sua expressão é tão
inevitável, e inútil de tentar não ficar feliz por o ver, eu me
sinto feliz agora, e nem ao menos sei o motivo.
— Coroa legal! — diz apontando para minha
cabeça.
— O que foi? — pergunto sussurrando e ignorando
seu comentário.
— É seu aniversário, achou que não viria?
Levanto uma sobrancelha em sua direção, mas não
posso evitar ficar contente em escutar que ele se lembrou
da data.
— E tenho que te mostrar uma coisa — ele diz
pegando minha mão e me levando pelo corredor do
castelo, o que dá para a saída.
— Espera, não posso sair, estamos num jantar e...
— Ah, qual é, Melane, você não quer estar lá, devia
ter visto sua cara sentada naquela mesa.
Mordo os lábios, ele está certo, mas não sei se devo
ir, não, na verdade eu sei que não devo, mas não consigo
resistir. Seus olhos estão brilhando tanto e ele tem essa
excitação em sua expressão, eu não posso com isso.
— Vamos? — ele estende a mão.
Olho mais uma vez para mesa, onde todos me
esperam, vejo David conversando com meu avô, sinto um
aperto no coração, mas ainda sim seguro as mãos de Jack.
É errado, mas de uma forma certa, eu não sei como
explicar, mas o sentimento que cresce dentro de mim no
momento em que nossas mãos se tocam é tão intenso e
radiante que não tem como isso ser errado.
Eu o sigo até uns bons metros para longe do
castelo, segurando a bainha do vestido azul, enquanto
corro de mãos dadas com ele.
— Sabe, esse negócio é bonito e tudo, mais não
combina nem um pouco com você. Você é uma mulher
livre, esse vestido te mantém presa — diz isso e no mesmo
instante rasga a parte de baixo do vestido com as mãos.
Espanto! É a primeira reação que tenho.
— Você está louco, perdeu um parafuso da cabeça?
Eu não acredito que rasgou meu vestido — digo
segurando a parte debaixo, avaliando o estrago. Ele é
louco, é o segundo pensamento que tenho, só pode ser
louco.
— Como irei voltar lá para dentro desse jeito
agora? — pergunto com os olhos arregalados em sua
direção.
Ele parece realmente tranquilo quando responde.
— Meu lema é: se preocupe com as coisas apenas
quando chegar a hora de se preocupar, você ainda não tem
que voltar para lá, relaxa, afinal, você é a princesa, não é?
— Jack, qual seu problema, olhe só o que você fez!
Você não pensa antes de fazer as coisas? Não me importo
com seu lema, não é você que terá que entrar lá dessa
maneira.
— Ah, larga de frescura, aposto que tem muito
mais de onde esse veio. Não ia dar para você andar com
ele pela floresta, vamos logo, estamos perdendo tempo,
logo vai escurecer.
Respiro fundo uma vez, quase me arrependendo de
ter saído do castelo com ele, mas a forma como me olha,
nunca o vi tão animado assim antes.
É como um Peter Pan adulto, eu sei que isso pode
parecer ruim de se dizer, algo que nunca cresce por dentro
e nem amadurece, mas não digo isso como algo negativo,
é exatamente ao contrario, pois acho que essa é a
qualidade de Jack que mais adoro, ele é sempre ele
mesmo, não importa o quê, sempre faz o que quer fazer e
da forma que quer, ele não se importa com as pessoas ou o
resto do mundo, e sim, algumas vezes isso pode me
irritar,como nesse momento, mas essa é a apenas a forma
como ele é, não se pode mudar isso nas pessoas, ou você
as aceita da forma que são, ou simplesmente as deixa ir, e
eu não quero que ele se vá.
— Eu não sei como te aguento, Jack, sinceramente!
para onde estamos indo?
— Não sei como pude me esquecer disso quando
me contou sobre as flores!
— O quê? Que flores? — ele está louco, só pode
ser isso, primeiro rasga meu vestido e agora começa a
falar coisas sem sentido.
— As que sua avó pintou em sua parede, as que seu
pai levava para sua mãe — ele diz eufórico, enquanto anda
rapidamente por entre as árvores, me puxando pela mão.
— O que tem as flores? Eu não estou entendendo
nada, Jack.
— É isso que estou tentando dizer, não sei como
me esqueci disso quando me falou delas, deve ter sido
pelo fato de não as ter visto durante esses dezesseis anos,
mas elas ficam tão perto da caverna — continuou olhando
para ele, enquanto caminhamos rapidamente. — É claro
que você nunca viu essas flores na Terra, pois elas não são
de lá, elas são flores daqui, só nascem nesse reino, só
numa clareira perto da caverna para ser mais exato.
— Oh! É isso!
— Sim, mas elas não são flores comuns, são
Lágrimas de Emily.
— O quê? Lágrimas de Emily? Esse é o nome das
flores?
— Sim — ele diz em voz alta, sorrindo largamente,
tão animado.
— É uma lenda. Emily amava Heitor, dizem que
nunca existiu um amor tão grande quanto o deles. Um dia,
Heitor teve que ir para guerra, numa das várias que o reino
já sofreu, mas ele não voltou. Emily ficou dias esperando
por ele, dizem que ela teria esperando por mil anos, se
pudesse. Heitor morreu na guerra, levando o coração de
Emily com ele. Ela ficou devastada, não era mais a
mesma, não tinha mais vontade de viver, nada mais
importava — ele faz uma pausa para me olhar. — Aqui
em nosso mundo cremamos as pessoas quando elas
morrem. Emily pegou as cinzas de Heitor e as levou até a
clareia onde eles costumavam se encontrar quando eram
mais jovens, ela se ajoelhou no chão, lembrou-se de todos
os dias, tardes e noites que passaram juntos, lembrou-se de
cada abraço, cada beijo, cada palavra de carinho trocada,
cada toque, tudo o que ainda estava vívido em sua mente,
trouxe todas as lembranças a tona, ela despejou as cinzas
no vento, as espalhando por toda a clareia e ainda
ajoelhada, ela chorou. Não lágrimas comuns, mas lágrima
de dor, de amor, não existe no mundo poder mais forte que
o amor. As lágrimas escorreram por seu rosto, lágrimas de
sangue, envoltas por laços de dor que a fizeram brilhar
como gotas de sol, elas ecoaram pelo ar ao tocar o solo,
fazendo um efeito sonoro de eco e no mesmo instante uma
flor apareceu em seu lugar, ela cresceu e desabrochou de
uma só vez, uma flor branca com pétalas entrelaçadas
umas nas outras, com formatos de gotas. Então uma
explosão de flores começou a crescer na clareia, elas são
frutos do amor de Emily, frutos do puro e verdadeiro
amor. Lágrimas de Emily, é costume de nosso povo
presentear suas amadas com essas flores, uma forma de
dizer o quanto você as ama — ele pausa mais uma vez,
agora sorrindo. — É por isso que seu pai as dava de
presente para sua mãe, e é por isso que você nunca as viu
na Terra — ele termina a frase, feliz por se lembrar de
tudo.
— Isso é... Incrível! — as flores que ficaram
pintadas em minha parede durante toda a minha vida, as
mesma do retrato de meus pais, são flores que representam
o amor verdadeiro, tudo faz sentido agora, o porquê vovó
as pintou em meu quarto, ela devia saber, isso tudo tem
um significado muito maior para mim, não é só o amor, é
algo que me liga aos meus pais.
— Vem, estamos perto! — ele pega minha mão
mais uma vez e me guia pelo caminho.
Passamos por debaixo de uns galhos cobertos de
folhas e então chegamos a clareia de Emily e Heitor.
— Aqui estão, Lágrimas de Emily. Elas dão o ano
todo, mas somente nesse lugar. Haviam desaparecido com
o feitiço que destruiu as coisas por aqui, mas agora elas
voltaram, como se nunca tivessem ido embora.
O campo coberto por flores brancas a minha frente
é lindo, o perfume delas quase me embriaga, tão doce, tão
calmo e tranquilizador.
Me aproximo, ajoelhando enquanto acaricio uma
delas levemente.
As mesmas flores da parede, exatamente como me
lembro, elas são diferentes, não somente pelo formato de
gota, mas por crescerem para baixo, o caule sobe e depois
se curva, como se uma lágrima em forma de flor estivesse
caindo.
A pétala é tão sedosa quanto o ar, leve, quase não
se pode sentir o toque, macia e delicada, mas ao mesmo
tempo resistente, como o amor deve ser!
— Você está ajoelhada exatamente onde Emily
ajoelhou, sabia?
Eu sorrio, passando a mão pela grama úmida, Jack
se senta ao meu lado.
— Obrigada! — digo virando o rosto para olhá-lo.
Ele apenas levanta os ombros sorrindo.
— O que tem feito por esses dias? — pergunto,
ainda acariciando a flor.
— Hmm, nada demais, apenas coisas.
Eu olho em sua direção.
— Pesquei, treinei com meu sabre, nada demais —
diz novamente, dando de ombros.
Aceno com a cabeça, voltando à atenção novamente
para Lágrima de Emily.
— Eu ainda não lhe agradeci pelo que fez, sabe,
não só por ter salvado minha vida, mas também por todo o
resto, nos livrado da maldição.
— Não tem nada de que agradecer, não precisaria
salvá-lo se não tivesse me salvado antes — ele vira o rosto
para mim agora. — Sim, eu me lembro de tudo, aquele
dragão teria me pego se você não tivesse se jogado na
minha frente, se tem alguém aqui que precisa agradecer,
sou eu.
Ele continua me olhando.
— Sua vida vale mais que a minha.
Eu sorrio lentamente.
— Quero dizer, você podia fazer muito mais por
esse mundo do que eu — ele corrige a frase
instantaneamente.
Aceno com a cabeça.
— Ainda sim, você salvou minha vida. Obrigada!
Ele coloca dois dedos na testa e acena, da mesma
forma que soldados fazem, eu sorrio com isso.
— Eu também tenho que me desculpar. Eu devia ter
ficado com você, talvez aquele dragão nem tivesse quase
te acertado se eu tivesse cumprido a promessa para
começar, eu não sou um cara muito dessas coisas, sabe,
cumprir promessas, ser honrado — ele sorri uma vez. —
Eu só não estou acostumado a ter que dar satisfações ou
dever nada pras pessoas. Eu não gosto que dependam de
mim, ou que esperem coisas de mim, pois sei que essas
coisas nunca virão — seu rosto vira para o lado, olhando
para o horizonte.
— Você não precisa se explicar para ninguém,
Jack, muito menos me dar satisfações — digo, também
olhando para o horizonte.
— Sim, eu sei, mas eu devia.
Viro o rosto em sua em sua direção dessa vez.
— Como é se tornar uma princesa? Quero dizer,
oficialmente.
— Não sei ainda, quando descobrir, te conto — dou
uma risada.
— Ah, já ia me esquecendo. Tem outra coisa que
quero lhe mostrar — ele diz mudando de assunto.
— O quê? — digo pegando sua mão estendida para
mim, me ajudando a levantar do chão.
— A melhor coisa que você vai comer na sua vida.
— Ah, ótimo, não tem ideia das coisas que me
deram para comer naquele jantar.
— Comida de gente rica? — nós rimos juntos.
Andamos apenas alguns passos, até um pé de
amoras vermelhas do tamanho de limões.
— Eu nunca vi amoras desse tamanho antes.
— Elas não existem na Terra, é coisa daqui.
Encontrei esse pé quando era criança, é sério, não tem
nada melhor.
Arranco uma das enormes amoras e levo até os
lábios, o caldo escorre por meu queixo com a mordida.
Fecho os olhos sentido o sabor escorrer por minha língua.
— Isso é a melhor coisa que eu já comi na vida.
— Eu disse! — ele sorri largamente agora.
Olho para o céu escurecendo, ele está naquele tom
de laranja escuro, quase ficando azul marinho, quando a
noite está apenas alguns minutos de tomar conta de tudo.
Dou mais uma mordida na fruta antes de dizer:
— Acho que é melhor eu voltar, eles devem estar
me procurando — não consigo não rir com essa frase,
pareço uma adolescente que foge no meio da noite para ir
a uma balada com os amigos.
— Tudo bem. Ah, leve uma Lágrima de Emily com
você — ele diz me puxando de volta para clareira.
— Eu não quero estragar as flores, ficam tão lindas
aqui!
— Não tem problema, elas nunca morrem, nem
mesmo depois que são arrancadas do pé, e quando você as
tira daqui... — ele diz arrancando uma flor. — Outra nasce
no lugar — no mesmo instante, outra flor surge, tomando
o lugar da anterior. — Como o amor verdadeiro, nunca
morre, nem desaparece, ou diminui — ele me entrega a
flor, me olhando diretamente nos olhos.
— Faz muito sentido!
— Feliz aniversário — diz enquanto me entrega a
flor.
Voltamos rapidamente para o castelo, a noite já
toma conta de todo o céu, mas a lua cheia ilumina o
caminho de volta.
Assim que avisto o castelo, me lembro do estado de
meu vestido.
— Que droga, Jack, como vou entrar com esse
vestido agora?
Ele começa a rir descontroladamente enquanto me
olha.
— Qual a graça?
— Nada. Não se preocupe com isso, Melane, você
não nasceu para ser uma lady.
Finjo ficar ofendida.
— Quem é você para decidir isso?
— Ninguém, só acho que você é livre demais para
se portar como tal, você é feita de fogo, Melane, deve
sempre queimar, não importa o quanto tentem te apagar,
você sempre continua queimando.
— Devo encarar isso como um elogio? — pergunto
com a sobrancelha levantada.
— Absolutamente.
Eu sorrio, e ele faz o mesmo.
— Eu vou indo então — digo acenando e me
virando.
— Melane — ee diz antes que eu me afaste.
— Sim?
— Senti sua falta! — ele sorri uma vez antes de se
virar para ir embora.
Fico uns segundos sorrindo feito boba, eu não
entendo Jack, e nem sei se algum dia irei entender, ―senti
sua falta‖, o que ele quer dizer com isso? Primeiro nem se
deu conta do tempo passando e agora sente minha falta?
Como eu disse, porque as coisas não são mais simples
com ele? Simples como as coisas são com David? Oh!
David, ele deve estar me procurando, o tempo passou mais
rápido do que imaginei.
Saio correndo para dentro do castelo, avaliando o
estado do vestido rasgado no processo.
Alguns guardas me olham, enquanto entro
correndo, mas para minha sorte, ninguém diz nada.
Me esquivo rapidamente para escada e corro para
meu quarto, sem que ninguém me veja, ainda há muitas
pessoas no salão de festas.
Entro correndo pela porta do quarto, a fecho com
um baque e respiro tranquilamente por ter consigo chegar.
— O que aconteceu? — escuto sua voz acusadora
antes mesmo de me virar.
— Oh! Não me faça explicar isso — digo sorrindo
nervosamente, colocando a Lágrima de Emily no nariz e
aspirando seu aroma automaticamente.
— Uma Lágrima de Emily? Onde conseguiu isso?
— David pergunta parecendo muito confuso agora.
— Jack, ele se lembrou das flores, uma vez
comentei sobre como tenho flores brancas pintadas na
parede do quarto, ele veio aqui para me levar até elas, e
cortou meu vestido, pois ele é muito estúpido.
David fica pensativo enquanto me observa.
— Foi por isso que saiu àquela hora?
Eu não quero responder mais, porque ele
simplesmente não para de me fazer perguntas?
— Por que nunca me falou nada sobre as flores? —
pergunto tentando mudar de assunto.
— Não teria como falar delas sem explicar outras
coisas, então só não falei, e depois não me lembrei delas
quando chegamos aqui.
— Elas são tão bonitas — digo acariciando a flor.
Ele abre a boca para dizer algo, mas nesse instante
meu avô abre a porta do quarto, me salvando de mais uma
enxurrada de perguntas das quais não quero responder.
— Oh, você está ai. Estava te procurando, o que
aconteceu com seu vestido? — ele pergunta espantado,
enquanto me olha. David vira o rosto no mesmo instante,
esperando mais explicações.
Odeio Jack por isso, é o meu maior pensamento
agora, tudo isso poderia ter sido evitado se ele não tivesse
rasgado o vestido. Sei que deveria estar furiosa, mas
começo a rir sozinha, isso é tão Jack.
— Do que você está rindo? — David pergunta.
— Não é nada! Foi um acidente o vestido ter se
rasgado, mas está tudo bem, sério — é tudo o que digo.
— Ah, não importa, você deve estar cansada, não
é? Por isso veio para o quarto, imaginei que estaria aqui,
vim lhe dar boa noite.
— Sim, estou muito cansada, morta, na verdade —
digo, numa tentativa desesperada de tirar todos do cômodo
para que não me façam mais perguntas.
— Certo, então vamos lhe deixar descansar — vovô
Ariel diz beijando minha testa. — Durma bem, estou
muito orgulhoso de você, minha princesa.
Eu sorrio para ele, enquanto se dirige até a porta.
— Vamos, David, ela precisa descansar.
David se aproxima, também beijando minha testa.
— Feliz aniversário — ele sussurra antes de sair
pela porta.
Sei que devia me sentir culpada por deixá-lo
preocupado e confuso dessa forma, mas tudo que consigo
sentir agora é alivio, e nem ao menos sei o motivo ao certo
por isso.
Assim que a porta se fecha, sento em minha cama,
respirando fundo duas vezes, pensando em tudo que me
aconteceu desde que cheguei em Ninho de Fogo. Minha
vida está tão mudada do que já foi um dia, tudo tão
diferente, hoje sou uma princesa, mas ainda sim, não deixo
de ser a garota caipira que vivia a base de sonhos na Terra.
Minha realidade já não é mais como era antes, vivo
em um mundo onde fadas, sereias, goblins, bruxos e
dragões são reais, onde tudo pode ser real. Sentada na
cama, penso em como as coisas aconteceram, em como
nada mais será o mesmo, nunca mais.
Tiro a coroa prateada da cabeça e a observo por uns
segundos antes de colocá-la em cima da cômoda, depois
tiro o vestido pela cabeça, solto o bendito espartilho, o
jogando no chão, desejando nunca ter conhecido tal
pedacinho de tecido odioso.
Coloco uma das camisolas confortáveis e belas da
gaveta e me deito na cama, o dia foi puxado e realmente
me sinto cansada. Acho que dormir é bom, é onde mais
tenho encontrado paz ultimamente. Então assim faço,
deslizo para de baixo dos lençóis e adormeço quase
instantaneamente.
Me sinto voando, olhando toda a paisagem do alto,
então minha visão começa a acelerar, correndo pelo
caminho, todas as imagens passam muito rápido, é quase
impossível de dizer por onde estou indo.
Então do nada, depois de correr por algum tempo,
eu paro de uma vez, na beirada de um precipício, posso
ver uma ponte que separa os dois lados da terra, na outra
extremidade, a mais longe mim, posso ver um castelo de
aparência sombria, todo feito de pedra escura. A visão de
tudo começa a andar novamente, me levando para mais
perto do castelo, entro por uma das vidraças enormes,
ando por um corredor, atravesso uma porta feita de
madeira e lá permaneço parada.
Apenas alguns segundos se passam, então a porta se
abre e um homem entra por ela.
Ele está de costas para mim, usa uma roupa cinza, e
seu cabelo loiro que chega até seus ombros está preso em
um rabo de cavalo bem feito, ele anda pelo cômodo,
procurando algo em uma prateleira, escuto um pequeno
som de um sorriso, quase imperceptível.
— Ah, você está aqui — ele diz sem se virar. Uma
voz melodiosa, grossa e firme, não amedrontadora como
imaginei, mas arrepiante e sedutora ao mesmo tempo.
Ele sorri levemente antes de continuar.
— Bem-vinda ao meu humilde castelo, não tem
ideia do quanto queria lhe conhecer, princesa! — ele sorri
levemente. — Agora saia de meus pensamentos! — ele
grita se virando, revelando um rosto perfeito, nariz reto,
lábios cheios e um par de olhos cinzentos hipnotizantes.
O som de seu grito é como um furacão vindo em
minha direção, me fazendo voar por onde entrei, saindo
pela vidraça e correndo pelo céu, fazendo todo o caminho
de volta até minha cama.
Me sento de uma vez, ofegante, o lençol ao meu
redor está úmido pelo suor, assim como minha testa e
cabelos, meus olhos estão arregalados, e meu coração bate
descontroladamente. Uma sensação de pânico quase
tomando conta de mim, aqueles olhos, tão frios, tão
assustadores. Olho ao meu redor uma vez antes de
sussurrar para mim mesma.
— Pedrus, sei onde encontrá-lo...
Continua...
Camila Deus Dará é uma
garota de vinte e três anos que
adora moda e maquiagem ao
mesmo tempo que Star Wars e
Bilbo Baggins.

Sempre gostou de heróis e princesas presas em torres altas.


O mundo da imaginação foi seu melhor esconderijo, um
lugar onde tudo era possível. Passou então a escrever suas
próprias histórias e a ficar cada vez mais encantada com
esse mundo, onde ela podia ser quem quisesse ser.
Ela se casou e se tornou mãe, mas sua mente
continua perdida em reinos distantes e espadas mágicas.

Esse livro foi publicado de forma independente,


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