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R. Bhaskar
1. INTRODUÇÃO
Que propriedades possuem as sociedades que podem torná-las possíveis objetos de
conhecimento para nós? Para desenvolver uma resposta a esta questão, minha estratégia será
efetivamente baseada em um movimento de torquês. Todavia, ao aplicar a torquês, vou me
concentrar primeiro na questão ontológica das propriedades que as sociedades possuem, antes de
mudar para a questão epistemológica de como essas propriedades tornam as sociedades possíveis
objetos de conhecimento para nós. Essa não é uma ordem de desenvolvimento arbitrária. Ela
reflete a condição que, para o realismo transcendental, é a natureza dos objetos que determina
suas possibilidades cognitivas para nós; que, na natureza, é o ser humano que é contingente e o
conhecimento, por assim dizer, acidental. Desse modo, é porque paus e pedras são sólidos que
podem ser apanhados e atirados; e não é porque podem sem apanhados e atirados que são sólidos
(muito embora o fato de poderem ser manuseados dessa forma pode ser uma condição
contingentemente necessária para o nosso conhecimento de sua solidez).1
Na seção 2, sustento que as sociedades são irredutíveis às pessoas e, na seção 3, esboço um
modelo de sua conexão. Nas seções 3 e 4, mantenho que formas sociais são uma condição
necessária para qualquer ato intencional; que sua preexistência demonstra sua autonomia como
possíveis objetos de investigação científica; e que seu poder causal prova sua realidade. Será
visto que a preexistência das formas sociais implica um modelo transformacional da atividade
social, a partir do qual pode ser imediatamente derivado um certo número de limites ontológicos
de qualquer naturalismo possível. Na seção 5, mostro como a ciência social é possível
precisamente em virtude dessas características emergentes da sociedade; e relaciono dois outros
tipos de limite ao naturalismo (epistemológico e relacional) às propriedades fundamentais do
próprio modelo transformacional. Na seção 6, utilizo os resultados estabelecidos na seção
precedente para gerar uma crítica à tradicional dicotomia fato/valor e, no apêndice do capítulo,
ilustro a noção da ciência social como crítica na reconstrução de um conceito de ideologia
essencialmente marxista. No entanto, é importante notar que, porque o poder causal das formas
sociais é mediado pela agência humana, o meu argumento só pode ser formalmente completado
quando o próprio estatuto causal da agência humana for justificado. O que é efetuado no capítulo
3, [do livro The Possibility of Naturalism: a Philosophical Critique of the Contemporary Social
Sciences (PON), Brighton: The Harvester Press, 1979], no curso de uma demonstração paralela
da possibilidade do naturalismo no domínio das ciências psicológicas.
Será visto que o modelo transformacional de atividade social desenvolvido aqui implica uma
concepção relacional do objeto da ciência social. Nessa concepção, “a sociedade não consiste de
indivíduos [ou grupos, poderíamos adicionar], mas expressa a soma das relações dentro das quais
os indivíduos [e os grupos] se situam”.2 Será visto também que o movimento essencial da teoria
científica será visto consiste no movimento desde os fenômenos manifestos da vida social, tal
como conceituados na experiência dos agentes sociais em questão, até as relações essenciais que
os requerem. Os agentes envolvidos podem estar cientes ou não dessas relações. É por sua
1
Ver A Realist Theory of Science, 1ª ed. (Leeds 1975), 2ª ed. (New Jersey 1978), especialmente cap 1, seção 4.
2
K. Marx, Grundrisse (Harmondsworth 1973) p. 265.
Publicado como “Societies”, capítulo 8, em Archer et al. (eds.) Critical Realism: Essential Readings. Routledge,
London, 1998. Tradução preliminar: Herman Mathow/Thais Maia. Revisão: Bruno Moretti/Lilian Paes.
Supervisão/Revisão Técnica: Prof. Mario Duayer, UFF (Revisão em processo, favor não citar sem autorização.)
2
capacidade de iluminar tais relações que a ciência social pode vir a ser “emancipatória”. Todavia,
o potencial emancipatório da ciência social depende, e é inteiramente uma conseqüência, de seu
poder explanatório contextual.
Considere por um momento um imã F e o seu efeito sobre partículas de ferro postas no
interior de seu campo. Em seguida, considere o pensamento T do imã e seu efeito. Tal
pensamento é claramente o produto da ciência, da cultura, da história. Diferentemente do imã, o
pensamento não tem nenhum efeito apreciável sobre o ferro (sem levar em conta a psicocinese).
No entanto, toda ciência tem de construir seu próprio objeto (T) no pensamento. Contudo, do fato
de que seu pensamento de seu objeto real (F) tem de ser construído no e pelo (e existe apenas no)
pensamento não se segue que o objeto de suas investigações não é independentemente real. (Na
verdade, foi para enfatizar este ponto, e a ambigüidade a ele associada na noção de um objeto do
conhecimento, que antes diferenciei, no Capítulo 1.3, objetos transitivos e intransitivos).
Embora poucas pessoas hoje em dia, ao menos fora do círculo dos filósofos profissionais,
sustentariam que um campo magnético é uma construção do pensamento, continua muito
difundida a idéia de que a sociedade é uma construção do pensamento. No caso da sociedade, é
claro, as razões para essa visão provavelmente consistem na idéia de que ela é constituída (de
algum modo) pelo pensamento dos atores ou participantes sociais, e não, como no caso do campo
magnético, pelo pensamento de observadores ou teóricos (ou talvez, em um nível mais
sofisticado, por alguma relação entre os dois – como a “adequação” schutziana,3 realizada talvez
por algum processo de diálogo ou negociação). Subjacente a tal idéia quase sempre está a noção,
embora de forma nenhuma logicamente necessária para ela,4 que a sociedade consiste (em certo
sentido) simplesmente de pessoas e/ou suas ações. É raro ocorrer aos adeptos dessa visão que
uma idêntica linha de pensamento logicamente implica sua própria redutibilidade, por meio das
leis e princípios da neurofisiologia, ao estatuto de coisas inanimadas!
Na seção 2, vou considerar as afirmações desta posição ingênua, que pode ser apelidada de
atomismo social, ou, mais exatamente, de sua manifestação epistemológica na forma de
individualismo metodológico,5 para fornecer uma estrutura para a explicação dos fenômenos
sociais. Claro que, como já mencionado no Capítulo 1.5 [PON], se pretendo situar a possibilidade
de um naturalismo não-reducionista em linhas realistas transcendentais, tenho de demonstrar não
só a autonomia de uma sociologia possível, mas a realidade de qualquer objeto assim designado.
Quer dizer, tenho de mostrar que as sociedades são objetos reais irredutíveis a objetos mais
simples, tais como pessoas. Com tal propósito, é insuficiente simplesmente contestar o
individualismo metodológico. Não obstante, é necessário. Porque se o individualismo
metodológico fosse correto, poderíamos dispensar totalmente este capítulo e começar (e acabar)
3
Ver, por exemplo, A. Schutz, ‘Common-Sense and Scientific Interpretations of Human Actions’, Collected papers
1 (The Hague 1967), ou ‘Problems of Interpretative Sociology’, reedição de The Phenomenology of the Social World
(London 1967) em A. Ryan (ed.), The Philosophy of Social Explanation, (Oxford 1973).
4
Como é evidenciado pela possibilidade do idealismo absoluto como o fundamento ontológico para sociologias
idealistas (geralmente e, pode-se afirmar, necessariamente combinada com individualismo – por exemplo, Weber ou
Dilthey – ou com coletivismo – por exemplo, Durkheim ou Lévi Strauss – no trabalho de um único autor). Ver
também T. Benton, Philosophical Foundations of the Three Sociologies (London 1977) p. 85 n. 11.
5
Ver a analogia específica, por J. W. N. Watkins, entre individualismo metodológico na ciência social e mecanismos
na física em ‘Ideal Types and Historical Explanation’, British Journal for the Philosophy of Science 3 (1952),
reeditado em A. Ryan (ed.), op. cit. p. 90 e ‘Historical Explanation in the Social Sciences’ I 8 (1957), reeditado como
‘Methodological Individualism and Social Tendencies’ em Readings in the Philosophy of the Social Sciences. M.
Brodbeck (ed.) (London 1970) p. 270.
3
nossa investigação das ciências humanas com uma consideração das propriedades, sejam elas
racionalmente imputadas ou empiricamente determinadas, dos próprios átomos individuais: isto
é, do incrível homem homúnculo.
4
2. CONTRA O INDIVIDUALISMO
6
K. R. Popper, The Open Society and its Enemies 2 (London 1962), p. 98.
7
I. Javie, ‘Reply to Taylor’, Universities and Left Review (1959), p.57.
8
J. W. N. Watkins ‘Methodological Individualism’ p. 271.
9
Loc. cit.
10
J. W. N. Watkins ‘Ideal Types’ p. 88.
11
Ver A. Danto, Analytical Philosophy of History (Cambridge 1965), cap. 12 e S. Lukes ‘Methodological
Individualism Reconsidered’ British Journal of Sociology 19 (1968) reeditado em A. Ryan (ed.), op. cit.
5
12
Ver J. W. N. Watkins ‘Ideal Types’ p. 91 e ‘Methodological Individualism’ p. 273.
13
Ibid, p. 278.
14
D. Hume, A Treatise on Human Nature (Oxford 1967), p. 415.
6
Mill) que podem ser considerados neurofisiologicamente dados. As relações não têm qualquer
papel neste modelo; modelo que, se de fato se aplica, vale tanto para Crusoé quanto para o ser
humano socializado – com o corolário, expresso por Hume, que “a humanidade é muito parecida
em todos os tempos e lugares”,15 revelando ao mesmo tempo seus preconceitos aistórico e
apriorístico.
As limitações dessa abordagem para a ciência social já deveriam ser hoje bem conhecidas.
Dizer que os seres humanos são racionais não explica o que fazem, no melhor dos casos explica
como o fazem (isto é, supondo que uma função objetiva possa ser reconstruída para seu
comportamento e empiricamente testada independentemente dele). Mas a racionalidade,
pretendendo de explicar tudo, acaba muito facilmente não explicando nada. Explicar uma ação
humana por referência a sua racionalidade é como explicar algum evento natural pelo fato de ser
causado. Nesse caso, a racionalidade aparece como um pressuposto a priori da investigação,
destituída de conteúdo explicativo e quase certamente falsa. Como na teoria econômica
neoclássica, a forma mais desenvolvida dessa tendência no pensamento social, que pode ser
considerada no máximo uma teoria normativa da ação eficiente, gerando um conjunto de técnicas
para alcançar fins dados, em vez de uma teoria explanatóroa capaz de iluminar episódios
empíricos efetivos. Em outras palavras, uma praxiologia,16 não uma sociologia.
Além de sua defesa de forma particular de explicação, o individualismo deriva plausibilidade
do fato que parece tocar em uma importante verdade, consciência da qual explica sua aparente
necessidade: a saber, a idéia de que a sociedade é feita ou consiste exclusivamente de pessoas.
Em que sentido isso é verdade? No sentido que a presença material de efeitos sociais consiste
unicamente de mudanças nas pessoas e mudanças provocadas por pessoas em outras coisas
materiais – objetos da natureza, tais como a terra, e artefatos, produzidos pelo trabalho sobre
objetos da natureza. Essa verdade poderia ser assim expressa: a presença material da sociedade =
pessoas e os resultados (materiais) de suas ações. Essa é a verdade que os individualistas
vislumbraram, mas tão somente para cobri-la com seus truques apologéticos.
É evidente que no individualismo metodológico estão em operação um reducionismo
sociológico e um atomismo psico- (ou praxio-) lógico, determinando o conteúdo das explicações
ideais em exato isomorfismo com o reducionismo teórico e o atomismo ontológico que fixam
suas formas.17 Desse modo, o individualismo metodológico expressa de maneira particularmente
crua o par que define o método e o objeto da investigação (a saber, o individualismo sociológico
e o empirismo ontológico), os quais, como sugeri anteriormente (Capítulo 1.6 [PON]), estruturam
a prática da ciência social contemporânea.
A concepção relacional do objeto da sociologia, porém, pode ser contrastada não só com a
concepção individualista, ilustrada pela teoria utilitarista, mas com o que denominarei de
concepção “coletivista”, melhor exemplificada, talvez, pelo trabalho de Durkheim, com sua forte
15
D. Hume, Essays Moral and Political 2 (London 1875), p. 68. Muito embora esse paradigma talvez seja
claramente articulado pela primeira vez por Hume, é significativo que em seu pensamento, ao contrário de muitos
que o sucederam, isso seja contrabalançado por uma ênfase em certas sensibilidades intrinsecamente sociais, mais
notadamente a simpatia, e um interesse na história – ambas características do Iluminismo escocês em geral - ver, por
exemplo, G. Davie, The Democratic Intelect (Edimburgh, 1961). De fato, para Hume é precisamente a simpatia,
dentre os “princípios constantes e universais da natureza humana”, que fornece a base para nosso interesse na
história. Ver, por exemplo, Enquiries (Oxford 1972), p. 223).
16
Ver S. Kotarbinski ‘Praxiology’, Essays in Honour of O. Lange (Warsaw 1965).
17
Ver, por exemplo, J. W. N. Watkins ‘Ideal Types’, p. 82, n.1.
7
Método Objeto
Utilitarismo Empirista Individualista
Weber Neokantiano Individualista
Durkheim Empirista Coletivista
Marx Realista Relacional
Obs.: Conceitos de método (epistemologia social) fundamentados na ontologia geral; conceitos de
objeto (ontologia social) fundamentados na epistemologia geral.
18
J.- P. Sartre, Critique of Dialectical Reason (London 1976), Bk. 2, cap. 1 e BK 1 cap. 4.
19
Há, é claro, tendências não- e, até mesmo, anti-individualistas no pensamento de Weber – ver, por exemplo, R.
Aron, Philosophie Critique de l’historie (Paris 1969). Da mesma forma, há tensões não- e anti-positivistas
(especialmente em The Clementary Forms of Religions Life) no pensamento de Durkheim – ver, por exemplo, S.
Lukes, Durkheim (London 1973) and R. Horton…, ‘Lévy-Bruhl, Durkheim and the Scientific Revolution’ em Modes
of Thought, R. Finnegan e R. Horton (eds.) (London 1973). Minha preocupação aqui é somente com os aspectos
dominantes.
20
Ver, por exemplo, R. Keat and J. Urry, Social Theory as Science (London 1975) cap. 5 e B. Ollman, Alienation
(Cambridge 1971), especialmente caps. 2 e 3. É claro que há também elementos positivistas e individualistas no
trabalho de Marx.
8
Deve ser observado que, à medida que as relações entre as relações que constituem o objeto
específico da sociologia só podem ser internas, a categoria de totalidade em geral pode expressar
adequadamente este fato. Alguns problemas daí derivados serão considerados abaixo. Antes,
porém, desejo considerar a natureza da conexão entre sociedade e a atividade consciente das
pessoas.
9
Sociedade Sociedade
↑ ↓
Indivíduo Indivíduo
Sociedade Sociedade
Indivíduo
Modelo III: A concepção “Dialética”
“Identificação Ilícita”
De acordo com os protagonistas desse modelo, a “estrutura social não é caracterizável como
uma coisa capaz de existir por si própria, separada da atividade humana que a produziu”.22 Mas,
igualmente, uma vez criada, “a estrutura é deparada pelo indivíduo [tanto como] uma facticidade
estranha [como]… uma instrumentalidade coercitiva”.23 “Ela está lá, refratária a seus desejos,
diferente dele próprio [e resistente a ele]”.24 Por conseguinte, esse esquema parece ser capaz de
fazer justiça tanto aos aspectos subjetivos e intencionais da vida social quanto à externalidade e
21
Ver, em especial, P. Berger and S. Pullberg ‘Reification and the Sociological Critique of Consciousness’, New Left
Review 35 (1966) e P. Berger and T. Luckmann, The Social Construction of Reality (London 1967).
22
P. Berger e S. Pullberg, ‘Reification’, pp. 62-3.
23
Ibid., p. 63.
24
Loc. cit.
10
ao poder coercitivo dos fatos sociais. E, assim, parece evitar ao mesmo tempo quaisquer
implicações voluntaristas da tradição weberiana e qualquer reificação associada à tradição de
durkheimeana. Pois agora é traçada uma distinção categorial entre fatos naturais e sociais, na qual
estes últimos – mas não os primeiros – dependem essencialmente da atividade humana.
Portanto, embora concordando com Durkheim que “o sistema de sinais que uso para
expressar meus pensamentos, o sistema monetário que emprego para pagar meus débitos, os
instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas de minha profissão
etc. funcionam independentemente do uso que delas faço”,25 os defensores deste modelo encaram
tais sistemas, instrumentos e práticas como objetivações que, sob certas condições, assumem uma
forma alienada. De acordo com eles, a objetivação é “o processo pelo qual a subjetividade
humana incorpora-se em produtos que estão disponíveis para cada ser humano e seus semelhantes
como elementos de um mundo em comum”,26 e a alienação “o processo pelo qual a unidade do
produtor e o seu produto é rompida”.27 Assim, línguas, formas de organização política e
econômica, e normas éticas e culturais, são todas, no fim das contas, encarnações da
subjetividade humana. E toda consciência que não as vê enquanto tais é necessariamente
reificada. A reificação tem de ser distinguida, entretanto, da objetificação, definida como “o
momento no processo de objetivação no qual o ser humano estabelece distância do seu produzir e
de seu produto, de tal modo que pode reconhecê-lo e torná-lo um objeto de sua consciência”,28 e
considerada como necessária para qualquer vida social concebível.
Portanto, no Modelo III, a sociedade é uma objetivação ou uma externalização do ser
humano. E o ser humano, por sua vez, é uma internalização ou reapropriação da sociedade na
consciência. Penso, no entanto, que este modelo é seriamente enganoso. Pois encoraja, de um
lado, um idealismo voluntarista com respeito ao nosso entendimento da estrutura social e, de
outro, um determinismo mecanicista com relação ao nosso entendimento das pessoas. Ao
procurar evitar os erros de ambos os estereótipos, o Modelo III acaba por combiná-los. Pessoas e
sociedade não são, como sustentarei, relacionadas “dialeticamente”. Não constituem dois
momentos de um mesmo processo. Ao contrário, referem-se a tipos de coisas radicalmente
diferentes.
Vamos considerar a sociedade. Retorne por um momento a Durkheim. Recorde-se que, ao
nos lembrar que o membro de uma igreja (ou, digamos, o usuário de uma linguagem) encontra as
crenças e práticas de sua vida religiosa (ou a estrutura de sua linguagem) já prontas ao nascer,
Durkheim sustenta que é sua existência prévia à do sujeito que implica a sua existência fora dele
mesmo, e de onde se deriva no fim o seu poder coercitivo.29 Porém, se este é o caso e a estrutura
social – e o mundo natural na medida em que é apropriado pelos seres humanos – sempre já está
feita, o Modelo III deve ser corrigido de uma maneira fundamental. Ainda é verdade dizer que a
sociedade não existiria sem a atividade humana, de modo que a reificação permanece um erro.
Também ainda é verdade dizer que tal atividade não ocorreria a menos que os agentes nela
engajados tivessem uma concepção daquilo que estivessem fazendo (o que, evidentemente, é a
idéia fundamental da tradição hermenêutica). Contudo, não é mais verdade dizer que os seres
humanos criam a sociedade. Ao contrário, deve-se dizer: eles a reproduzem ou transformam. Em
25
E. Durkheim, The Rules of Sociological Method (New York 1964), p. 2.
26
P. Berger and S. Pullberg, ‘Reification’, p. 60.
27
Ibid., p. 61.
28
Ibid., p. 60.
29
E. Durkheim, Rules of Sociological Method, p. 1, 2.
11
outras palavras, se a sociedade sempre já está feita, qualquer práxis humana concreta ou, se se
preferir, ato de objetivação, pode apenas modificá-la; e a totalidade de tais atos a mantém ou
transforma. A sociedade não é o produto da atividade dos seres humanos (muito menos, como
vou discutir, a ação humana é completamente determinada por ela). A sociedade está para os
indivíduos, então, como algo que eles nunca fazem, mas que só existe em virtude de sua
atividade.
Todavia, se a sociedade preexiste ao indivíduo, a objetivação assume uma significação muito
diferente. Pois a objetivação, a atividade humana consciente, consiste de trabalho sobre objetos
dados e não pode ser concebida ocorrendo em sua ausência. Uma rápida reflexão mostra porque
isto tem de ser assim. Toda atividade pressupõe a existência prévia de formas sociais. Considere,
portanto, falar, fabricar e fazer como modalidades características da ação humana. As pessoas
não podem se comunicar a não ser pela utilização da mídia existente, nem produzir a não ser
lançando mão de materiais que já estejam formados, nem tampouco agir se não for em um ou
outro contexto. A fala requer a linguagem; a fabricação, materiais; as ações, condições; o agir,
recursos; a atividade, regras. Inclusive a espontaneidade tem como sua condição necessária a
preexistência de uma forma social com a qual (ou por meio da qual) o ato espontâneo é
executado. Por conseguinte, se o social não pode ser reduzido ao (e não é o produto do)
indivíduo, é igualmente claro que a sociedade é uma condição necessária para todo e qualquer ato
humano intencional.
A preexistência necessária das formas sociais sugere uma concepção da atividade social
radicalmente diferente da que tipicamente informa a discussão da conexão sociedade/pessoa.
Sugere uma concepção essencialmente aristotélica, em que o paradigma é o escultor trabalhando,
criando a um produto a partir do material e com as ferramentas disponíveis. Denomino essa
concepção de “modelo transformacional da atividade social”. O modelo se aplica tanto a práticas
discursivas como a não-discursivas; à ciência e política, bem como à tecnologia e economia.
Assim, na ciência, as matérias-primas utilizadas na construção de novas teorias incluem os
resultados reconhecidos e idéias semi-esquecidas, o estoque de paradigmas e modelos
disponíveis, métodos e técnicas de pesquisa, de tal forma que o inovador científico chega a
parecer, retrospectivamente, um tipo de bricoleur cognitivo.30 Para usar os termos aristotélicos,
em todo processo de atividade produtiva são necessárias uma causa material e uma causa
eficiente. E, para falar com Marx, pode-se encarar a atividade social como consistindo,
analiticamente, na produção, trabalho sobre (e com), implicando a transformação daquelas causas
materiais. Portanto, se, com Durkheim, considera-se que a sociedade fornece as causas materiais
da ação humana e, com Weber, recusa-se a reificá-la, é fácil ver que tanto a sociedade quanto a
práxis humana têm de possuir um caráter dual. A sociedade é a condição (causa material)
sempre presente e o resultado continuamente reproduzido da agência humana. E a práxis é
trabalho, produção consciente, e reprodução (normalmente inconsciente) das condições de
produção, ou seja, a sociedade. É possível se referir à primeira como a dualidade da estrutura31 e
à última como a dualidade da práxis.
Vamos considerar agora as pessoas. A ação humana é caracterizada pelo notável fenômeno
da intencionalidade. Tal fenômeno parece depender da característica que as pessoas são coisas
30
Ver C. Lévi–Strauss, The Savage Mind (London 1966), cap. 1.
31
Ver A. Giddens, New Rules of Sociological Method (London 1976), p. 121, e J. Lyons Chomsky (London 1970), p.
22.
12
32
Ver R. Harré e P. Secord, The Explanation of Social Behaviour (Oxford 1972), especialmente cap. 5.
33
Predicados mentalistas podem cumprir um papel legítimo na explicação das mudanças sociais seja como um
resultado do seu uso literal para se referir a processos conscientes de escolha, deliberações etc., seja como resultado
de seu uso metafórico para referir aos efeitos de processos teleonômicos ou sistemas homeostáticos. Ver, por
exemplo, A. Giddens, ‘Funcionalism: après la lulte’, Studies in Social and Political Theory (London 1977), esp. p.
116 ou A. Ryan, The Philosophy of the Social Sciences, (London 1970), pp. 182-194. De modo geral, entretanto, as
pessoas são um péssimo modelo para sociedades (e vice-versa).
13
considerar que a tarefa das diferentes ciências sociais consiste em delinear as condições
estruturais para as várias formas de ação humana consciente – por exemplo, que processos
econômicos têm de ocorrer para que as compras de Natal sejam possíveis –, mas elas não
descrevem tais ações.
O modelo da conexão sociedade/pessoa que estou propondo poderia ser sintetizado da
seguinte forma: as pessoas não criam a sociedade. Porque a sociedade sempre preexiste às
pessoas e é uma condição necessária para sua atividade. A sociedade, ao contrário, tem de ser
encarada como um conjunto de estruturas, práticas e convenções que os indivíduos reproduzem
ou transformam, mas que não existiria a menos que eles assim o fizessem. A sociedade não existe
independentemente da atividade humana (o erro da reificação). Mas não é o produto da atividade
humana (o erro do voluntarismo). Os processos pelos quais são adquiridos e mantidos os
estoques de habilidades, competências e hábitos apropriados a contextos sociais dados, e
necessários para a reprodução e/ou transformação da sociedade, poderiam ser genericamente
referidos como “socialização”. É importante salientar que a reprodução e/ou transformação da
sociedade, embora na maioria dos casos seja inconscientemente alcançada, é ainda assim, não
obstante, uma realização, uma realização competente de sujeitos ativos, e não uma conseqüência
mecânica de condições antecedentes. Esse modelo da conexão sociedade/pessoa pode ser
representado conforme se segue:
Socialização Reprodução /
Transformação
Modelo IV:
O Modelo Transformacional da Conexão Sociedade/Pessoa
A sociedade, por conseguinte, fornece as condições necessárias para a ação humana
intencional e a ação humana intencional é uma condição necessária para a sociedade. A sociedade
só está presente na ação humana, mas a ação humana sempre expressa e utiliza uma ou outra
forma social. No entanto, nenhuma das duas pode ser identificada com, nem reduzida a,
explicada em termos de, nem tampouco reconstruída a partir da outra. Há um hiato ontológico
entre sociedade e pessoas, e também um modo de conexão (a saber, transformação) que os outros
modelos tipicamente ignoram.
Observe que no Modelo I existem ações, mas não condições; no Modelo II, há condições,
mas não ações; no Modelo III, não há distinção entre ambas. Assim, em Durkheim, por exemplo,
a subjetividade tende a aparecer somente sob o disfarce da forma interiorizada da coerção social.
Entretanto, deveria ficar igualmente claro, contra o voluntarismo, que a subjetividade real requer
condições, recursos e meios para o sujeito criativo atuar. Tais causas materiais podem ser
encaradas, caso se queira, como os resultados de objetivações prévias. Todavia, em qualquer ato
elas são analiticamente irredutíveis e efetivamente indispensáveis. Na ação social, o componente
“dado” jamais pode ser reduzido a zero, eliminado da análise. Em conseqüência, essa concepção
da conexão sociedade/pessoa implica uma transformação radical em nossa idéia de sociedade não
alienante. Pois uma tal sociedade não pode mais ser concebida como o produto imaculado de
14
34
Marx, talvez, chega o mais próximo de articular essa concepção de história:
“A história nada mais é do que a sucessão de gerações separadas, cada uma das quais explora os materiais, os fundos
de capital, as forças produtivas acumuladas transmitidas a ela por todas as gerações precedentes, e, portanto, por
outro lado, dá continuidade à atividade tradicional em circunstâncias completamente modificadas e, por outro,
modifica as antigas circunstâncias com uma atividade completamente modificada” (K. Marx e F. Engels, The
German Ideology (London 1965), p. 65).
No modelo IV, a distância epistêmica estabelecida entre sociedades e pessoas também indica, pelo menos de maneira
esquemática, uma forma em que se pode conferir substância à celebrada proposição marxiana que as “pessoas fazem
história, mas não sob condições de sua escolha”. As “pessoas” têm de ser entendidas aqui, é claro, não simplesmente
agindo de modo indiocrático, mas expressando os interesses definidos e gerais e as necessidades de estratos e classes
particulares, onde tais interesses e necessidades são definidos em primeira instância por suas relações diferenciais (de
posse, acesso etc…) aos recursos produtivos que constituem condições estruturais da ação. Esses recursos
produtivos, por sua vez, têm de ser conceituados genericamente de forma a incluir por princípio, por exemplo,
recursos políticos e culturais, assim como os puramente econômicos.
15
existem na medida em que estão sendo exercidos (ou, pelo menos, alguns deles); sendo exercidos
em última instância mediante a atividade intencional dos seres humanos; e não são
necessariamente invariantes no sentido espaço-temporal.
Desejo focalizar agora o estatuto ontológico das sociedades. Argumentei em outro contexto
que os seres vivos determinam as condições de aplicabilidade das leis físicas a que estão sujeitos,
de modo que suas propriedades não podem ser reduzidas à física; o que significa que a
emergência caracteriza tanto o mundo natural como o humano.35 (E que isto é consistente com o
que pode ser denominado de uma “redução explanatória diacrônica”, ou seja, uma reconstrução
dos processos históricos de sua formação a partir de coisas “mais simples”). Desse modo, se a
ação intencional, como mostrarei no Capítulo 3, é uma condição necessária para certos estados
determinados do mundo físico, segue-se que as propriedades e poderes possuídos pelas pessoas, e
em função dos quais a intencionalidade lhes é corretamente atribuída, são reais. Similarmente, se
pode ser mostrado que, a não ser pela sociedade, certas ações físicas não seriam efetuadas,
justifica-se afirmar que a sociedade é real, empregando o critério causal estabelecido no Capítulo
1 [do PON].
Na verdade, penso que Durkheim, tendo demonstrado a autonomia dos fatos sociais usando o
critério da externalidade, empregou justamente um critério desse tipo para demonstrar a sua
realidade ao invocar o seu outro critério de restrição:
Não sou obrigado a falar francês com meus compatriotas nem a utilizar a moeda legal, mas
não poderia proceder de outra forma. Se tentasse escapar desta necessidade, minha tentativa
redundaria em um miserável fracasso. Como um industrial, sou livre para aplicar os métodos e
técnicas de séculos anteriores, mas, procedendo assim, seguramente iria à ruína. Mesmo
quando me libero dessas normas e as violo com sucesso, sempre sou compelido a lutar contra
elas. Quando finalmente superadas, elas se fazem sentir em seu poder restritivo pela
36
resistência que oferecem.
A rigor, Durkheim está dizendo que, a não ser pela série de fatos sociais, não ocorreriam
particulares seqüências de som, movimentos de corpos etc. Claro que se tem de insistir, contra
Durkheim, que a série de fatos sociais depende da (embora seja irredutível à) atividade
intencional dos seres humanos. A verdade individualista que as pessoas são as únicas forças
moventes na história – no sentido de que nada acontece, por assim dizer, sem seu conhecimento
ou consentimento; ou seja, tudo o que acontece, acontece nas e através das suas ações – tem de
ser conservada. Além disso, as estruturas sociais têm de ser concebidas em princípio como
habilitadoras, não unicamente coercitivas. Não obstante, ao empregar um critério causal para
demonstrar a realidade dos fatos sociais, Durkheim observou perfeitamente a prática científica
apropriada – muito embora seja preciso reconhecer que se está lidando aqui com o tipo mais
peculiar de entidade: uma estrutura irredutível a, mas presente somente nos, seus efeitos.
Apesar de Durkheim ter usado um critério causal para demonstrar a realidade dos fatos
sociais em uma concepção coletivista de sociologia, o mesmo critério pode ser empregado (com
mais consistência epistemológica) para demonstrar sua realidade em uma concepção relacional
de sociologia. (Não há dificuldade especial, como mostra, por exemplo, o conceito de spin na
Física, em atribuir realidade a relações com base em um critério causal). Na verdade, dada a
abertura do mundo em que os fenômenos da sociologia ocorrem, a autonomia teórica da
35
Ver A Realist Theory of Science p. 113. Ver também M. Polanyi, The Tacit Dimension (London 1967) cap.2.
36
E. Durkheim, The Rules of Sociological Method, p. 3
17
sociologia só pode ser definitivamente assegurada se um objeto não empírico for especificado
para ela – uma questão dramaticamente ilustrada pelas armadilhas nas quais a definição de
Weber, que logicamente inclui a adoração (porque é orientada para o outro), mas exclui a prece,
mergulha a sociologia.37
Qual é a conexão entre o modelo transformacional de atividade social desenvolvido na seção
3 e a concepção relacional de sociologia da seção 2? A concepção relacional, evidentemente, não
nega que fábricas e livros são formas sociais. Nem insiste que as regras de gramática (ou os
complexos generativos funcionando em outras esferas da vida social) são, ou devem ser
concebidas como, relações. Entretanto, sustenta que seu ser social, à diferença dos (ou, mais
exatamente, em adição aos) objetos materiais, e consistindo em regras sociais, à diferença de
regras puramente “anancásticas”38 (que dependem unicamente da operação das leis naturais),
depende essencialmente de e, na verdade, em certo sentido consiste inteiramente de, relações
entre as pessoas e entre tais relações e a natureza (e os produtos e funções de tais relações) que
tais objetos e regras causalmente pressupõem ou implicam.
Não é difícil ver por que isso tem de ser assim. Pois se segue do argumento da seção 3 que
as estruturas sociais (a) são continuamente reproduzidas (ou transformadas) e (b) existem apenas
em virtude da e são somente exercidas na ação humana (em suma, que elas requerem
“funcionários” ativos). Combinando esses requisitos, fica evidente que precisamos de um
sistema de conceitos mediadores que possam abranger ambos os aspectos da dualidade da práxis,
designando as “aberturas” na estrutura social, por assim dizer, em que os sujeitos ativos têm de
se inserir a fim de reproduzi-la; isto é, um sistema de conceitos que determine o “ponto de
contato” entre ação humana e estruturas sociais. Tal ponto, vinculando ação à estrutura, tem de
ser ao mesmo tempo duradouro e imediatamente ocupado pelos indivíduos. É claro que o sistema
de mediação que precisamos é o de posições (lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos
etc.) ocupadas (preenchidas, assumidas, exercidas etc.) pelos indivíduos e de práticas (atividades
etc.) em que eles se engajam em virtude de sua ocupação dessas posições (e vice-versa).
Denominarei este sistema de mediação de sistema de posição-prática. Tais posições e práticas, se
têm de ser individualizadas de algum modo, só podem sê-lo relacionalmente.
Segue-se daí, como conseqüência imediata, que as condições iniciais de qualquer
explanação social concreta sempre têm de incluir ou tacitamente pressupor a referência a uma ou
outra relação social (não importa se as estruturas generativas invocadas são as melhores
concebidas). Sugiro, ademais, que o interesse teórico característico da sociologia reside na
(explanação da) diferenciação e estratificação, produção e reprodução, mutação e transformação,
contínua remodelagem e incessante alteração das relações relativamente duradouras pressupostas
por formas e estruturas sociais particulares. Por conseguinte, o modelo transformacional implica
um interesse relacional por parte da sociologia. E sugere, em termos de tal interesse, um modo
de diferenciar a sociologia das outras ciências sociais (tais como lingüística, economia etc.) que,
entretanto, logicamente a pressupõem.
Deve-se notar que nem indivíduos nem grupos satisfazem o requisito de continuidade
derivado da reaplicação do critério de Durkheim (de externalidade ou preexistência) para a
autonomia da sociedade em relação a momentos discretos do tempo. Na vida social, somente as
37
Ver M. Weber, Economy and Society (New York 1968) p. 4.
38
Ver G. H. von Wright, Norm and Action (London 1963), p. 10.
18
relações perduram.39 Observe também que tais relações incluem relacionamentos entre pessoas e
natureza e produtos sociais (tais como máquinas e firmas), além de relações interpessoais. E que
tais relações incluem, mas nem todas consistem em, “interações”. (Neste caso, contraste a
relação entre falante e ouvinte em um diálogo com a relação deôntica entre cidadão e Estado).
Finalmente, é importante salientar que do ponto de vista das ciências sociais, embora não
necessariamente das ciências psicológicas ou da explicação histórica, as relações que interessam
aqui devem ser conceituadas como relações entre as posições e práticas (ou melhor, práticas-
posicionadas), e não entre os indivíduos que as ocupam ou nelas estão engajados.40
Uma vantagem da concepção relacional deveria ser imediatamente aparente. Ela permite que
se focalize uma série de questões que têm a ver com a distribuição das condições estruturais da
ação e, em particular, com as alocações diferenciais de: (i) recursos produtivos (de todos os
tipos, incluindo, por exemplo, os cognitivos) a pessoas (e grupos) e (ii) pessoas (e grupos) a
funções e papéis (por exemplo, na divisão do trabalho). Ao fazê-lo, a concepção relacional
permite situar a possibilidade de interesses diferentes (e antagônicos), de conflitos dentro da
sociedade, e, portanto, de transformações na estrutura social motivadas por interesse. Ao
focalizar a distribuição e a troca, a concepção relacional evita a debilidade endêmica da teoria
econômica (de mercado). E, ao permitir conflitos no interior da sociedade e entre a sociedade e o
indivíduo, corrige o defeito crônico da sociologia (ortodoxa), preocupada que era (e, na verdade,
ainda é) com o “problema hobbesiano da ordem”.41
Marx combinou uma concepção essencialmente relacional de ciência social e um modelo
transformacional de atividades sociais com a premissa adicional – do materialismo histórico – de
que é a produção material que determina, em última análise, o restante da vida social.42 No
entanto, como se sabe, embora possa ser demonstrado a priori que a produção material constitui
uma condição necessária para a vida social, não pode ser provado que ela é, em última análise, a
39
É claro que populações são continuas e providenciam uma base biológica para a existência social. Mas seus
atributos sociais, se analisados estocasticamente ou não, devem ser explicados em linhas relacionais ou coletivistas.
E, dessa forma, eles não podem providenciar o substrato social requerido sem pedir a questão que estamos
interessados aqui.
40
Cf. Marx:
De maneira nenhuma foi róseo o colorido que dei às figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui
se tratam das pessoas só na medida em que são personificações de categorias econômicas, suportes de relações e
interesses de classe determinados. O meu ponto de vista do desenvolvimento da formação social como um
processo histórico-natural exclui, mais que qualquer outro, responsabilizar o indivíduo por relações das quais
ele, socialmente, continua criatura, por mais que, subjetivamente, se julgue acima delas. (Capital, 1 (London
1970), p. 10)
41
Ver, em especial, T. Parsons, The Structure of Social Action (New York 1959), pp. 89-94 e passim.
42
De acordo com Marx, os seres humanos “começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus
meios de subsistência” (The German Ideology, p.31).
O primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda história (é) o pressuposto … que os
homens têm de estar em condições de viver para serem capazes de “fazer história”. Mas a vida envolve, antes de
qualquer outra coisa, comer e beber, uma habitação, vestuário e muitas outras coisas. O primeiro ato histórico é,
dessa forma, a produção dos meios para satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material
(ibib., p. 39).
O “primeiro ato histórico” tem de ser entendido, é claro, em um sentido analítico, não cronológico. Cf. também:
“em todas as formas de sociedades, é uma produção determinada e suas relações que designam a todas as outras
produções e suas relações sua posição e influência. É uma iluminação geral na qual todas as outras cores estão
mergulhadas e que modifica suas tonalidades específicas. É um éter especial que define a gravidade específica
de tudo encontrado nele” (Grundrisse p.107).
19
condição determinante. Desse modo, como qualquer outro projeto ou paradigma conceitual
fundamental na ciência, o materialismo histórico só pode ser justificado por sua fecundidade em
gerar projetos envolvendo programas de pesquisa capazes de gerar seqüências de teorias
progressivamente mais ricas em sua capacidade explanatória. Dos problemas com os quais o
materialismo histórido se confronta, não é irrelevante a necessidade de uma articulação
adequada do próprio projeto, a despeito do considerável progresso ocorrido em áreas particulares
de explanação. (Basta apenas pensar no problema de reconciliar a tese da relativa autonomia das
superestruturas com a de sua determinação em última instância pela base).43
Talvez não haja qualquer outro tópico na filosofia que tenha sido mais perseguido por
dogma que o das relações internas. A doutrina que todas as relações são externas está implícita
na teoria da causalidade humeana, onde está sacralizada na noção da contingência da conexão
causal. Mas tal doutrina foi aceita por virtualmente toda a tradição ortodoxa (empirista e
neokantiana) na filosofia da ciência. Inversamente, os racionalistas, idealistas absolutos e
amantes das artes das dialéticas hegeliana e bergsoniana normalmente subscreveram a visão
igualmente errada de que todas as relações são internas. Nesse particular, uma importante
diferença filosófica cruza mais uma vez a linha divisória marxista/ não-marxista. Colletti e
Ollman44 representam apenas as variantes mais recentes, e particularmente extremas, de posições
já plenamente articuladas no interior do marxismo pelo menos desde Hilferding e Dietzgen. No
entanto, é essencial reconhecer que algumas relações são internas e outras não o são. Ademais,
algumas relações naturais (tal como a de um magneto e seu campo) são internas e muitas
relações sociais (como a de dois ciclistas se cruzando no topo de uma colina) não são. Em
princípio, trata-se de uma questão em aberto se alguma relação particular, em um período
histórico, é ou não interna.
Uma relação RAB pode ser definida como interna se e somente se A não seria aquilo que
essencialmente é a menos que B seja relacionado a A do modo que é. RAB é simetricamente
interna se o mesmo se aplicar também a B (“A” e “B” podem designar universais ou particulares,
conceitos ou coisas, incluindo relações). A relação burguesia-proletariado é simetricamente
43
O problema para o marxismo sempre foi o de encontrar um modo de evitar tanto o reducionismo econômico (ou
pior, o tecnológico) quanto o ecletismo histórico, de modo a realmente gerar algumas proposições historiográficas
substantivas. É um problema do qual ambos, Marx e Engels, estavam cientes. Assim, como Engels procurava
sublinhar com grande esforço:
De acordo com a concepção materialista da história, a economia é o elemento determinante último na história.
(Mas) se alguém deturpa isso dizendo que é o único determinante, com isso transforma a proposição em uma
frase sem significado, abstrata e sem sentido. A situação econômica é a base, mas os vários elementos da
superestrutura… também exercem sua influência sobre o curso dos eventos… e, em muitos casos, são
preponderantes na determinação de sua forma. Há uma interação de todos esses elementos na qual, em meio a
uma incessante multidão de acidentes, o movimento econômico finalmente se afirma como necessário. (F.
Engels, Letter to J. Bloch, 21 sept. 1890, Marx-Engels Selected Works 2 (London 1968), p. 692).
Mas como se deve conceituar essa necessidade última? Marx fornece uma pista. Respondendo a uma objeção,
concede que “o modo de produção da vida material domina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual
em geral… é muito verdadeiro para o nosso tempo, no qual são preponderantes os interesses materiais, mas não para
a Idade Média, em que o catolicismo reinava supremo, não para Atenas e Roma, onde reinava a política”. Mas Marx
afirma “que isso (também) está claro. Que a Idade Média não poderia viver do catolicismo, nem o Mundo Antigo da
política (exclusivamente). Pelo contrário, são as condições econômicas da época que explicam porque aqui a política
e lá o catolicismo cumpriam o papel principal” (Capital 1, p. 81). Althusser tentou teorizar esta idéia dizendo que é a
economia que determina qual estrutura relativamente autônoma é a dominante. Ver L. Althusser, For Marx (London
1969) especialmente caps.2 e 6, e L. Althusser E. Balibar, Reading Capital (London 1970).
44
Ver, em especial, L. Colletti ‘Marxism and the Dialectic’, New Left Review 93 (1975), and B. Ollman, op. cit.
20
45
Ver A Realist Theory of Science, especialmente pp. 17-34. Ver também a distinção de Marx entre o “método de
apresentação”, que caracteriza “como a priori”, e o “método de investigação” (a posteriori) (Capital 1, p. 19).
46
Ibid, especialmente cap.2 sec.6
47
Ver N. Elias ‘The Sciences: Towards a Theory’, Social Process of Scientific Development, R. Whitley (ed.)
(London 1974)
48
A. Labriola, Essays on the Materialistic Conception of History (Chicago 1904).
21
totalidade ou instâncias da estrutura social. A teoria da história só pode ser julgada por materiais
históricos. No entanto, pode-se dizer algo, à luz da análise precedente, acerca das intenções, se
não dos resultados, desse projeto?
Nossa análise indica uma forma de conceituar a relação entre as ciências sociais especiais
(tais como lingüística, economia, política etc.), a sociologia, a história e uma teoria totalizadora
da sociedade, tal como a empreendida pelo marxismo. Se a história é, acima de tudo, a ciência
do “passado particular” e a sociologia a ciência das relações sociais, as várias ciências sociais
estão interessadas nas condições estruturais para (ou seja, os complexos generativos funcionando
na produção de) tipos particulares de atividade social. Evidentemente, dada a interdependência
das atividades sociais, a hipóstase dos resultados de tais análises particulares deve ser
constantemente evitada. Ademais, uma vez que condições externas podem ser internamente
relacionadas com mecanismos generativos operando em esferas particulares da vida social, as
ciências especiais logicamente pressupõem uma ciência totalizadora que, no modelo
transformacional, só pode ser uma teoria da história. No entanto, se a sociologia está interessada
nas estruturas que governam as relações que são necessárias, em períodos históricos particulares,
para a reprodução (e transformação) de formas sociais particulares, o seus explananda são
sempre específicos; portanto, não pode haver uma sociologia-em-geral, somente a sociologia de
formas sociais particulares historicamente situadas. Desse modo, a sociologia pressupõe tanto as
ciências especiais como a história. Mas a concepção relacional implica que as condições sociais
para as atividades substantivas de transformação em que os agentes se engajam só podem ser
relações de vários tipos. E o modelo transformacional implica que essas atividades são
essencialmente produções. Por conseguinte, o objeto da sociologia é precisamente: relações de
produção (de vários tipos). Porém, se essas próprias relações são internamente relacionadas e
sujeitas à transformação, a sociologia tem de pressupor ou usurpar o lugar justamente de uma tal
ciência da sociedade, totalizante e histórica, que o marxismo reclamou para si. Em suma,
evocando uma metáfora kantiana,49 se o marxismo sem um detalhado trabalho científico-social e
histórico é vazio, tal trabalho sem o marxismo (ou alguma teoria equivalente) é cego.
49
I. Kant, Critique of Pure Reason, N. Kemp Smith (trans) (London 1970), B 74/A 51
22
50
Porém, a noção de um “campo” que existe somente em virtude dos seus efeitos é mais estranha ou prima facie
mais absurda que a combinação dos princípios de ondas e mecânica de partículas na micro-física elementar,
considerada agora lugar-comum?
51
Ver A Realist Theory of Science, app. cap.2
23
52
Ibid, cap.2 sec.4
53
Não há problema no teste empírico de teorias de fenômenos que são internamente relacionados (embora exista um
problema, que só pode ser resolvido intra-teoricamente, em torno da especificação ou individualização apropriada
dos diferentes aspectos ou partes). Uma vez que o lócus do empírico é o observável e itens observáveis discretos
sempre podem ser descritos em formas que são logicamente independentes das outras. Desse modo, mesmo se
teorias científico-sociais somente podem ser comparadas e testadas em bloco, ainda assim podem ser testadas
empiricamente. Portanto, porque, digamos, “capital” não pode ser empiricamente identificado e ainda que, como
argumentado por Ollman (op.cit.), “capital” não pode ser definido teoricamente de modo unívoco (ou até mesmo
estabilizado conceitualmente), não se segue que teorias do capital não possam ser empiricamente avaliadas. O
problema da melhor individualização pode ser resolvido, então, considerando qual individualização é implicada por
(ou necessária para) aquela teoria que tem a melhor apreensão causal da realidade.
54
Ver, por exemplo, N. Georgescu-Roegen, The Entropy Law and the Economic Process (Cambridge, Mass. 1971),
especialmente cap.2.
55
Ver, por exemplo, A. Cicourel, Method and Measurement in Sociology (New York 1964) especialmente cap.1.
24
56
Ver, por exemplo, P. Duhem, op. cit. pp. 180-90.
25
atividade social aplicado à atividade de produção de conhecimento sugere que a teoria científica
social, T, requerendo recursos cognitivos, ao menos em parte é produzida pela transformação de
P. A hipótese sob consideração é de que essa transformação fatalmente será afetada por
desenvolvimentos no resto da sociedade, S.
Pode-se conjeturar que, em períodos de transição ou crises, as estruturas generativas,
previamente opacas, tornem-se mais visíveis aos agentes.57 E que este fato, embora jamais
produza completamente as possibilidades epistêmicas de um fechamento (mesmo quando os
agentes estão procurando autoconscientemente transformar as condições sociais de sua
existência), fornece um análogo parcial do papel cumprido pela experimentação na ciência
natural. As condições para a emergência de uma nova teoria científica social têm de ser
distinguidas, é claro, das condições de seu subseqüente desenvolvimento e das condições para a
sua permeação no lebenswelt da experiência vivida (ou incorporação na política social), embora
haja evidentes (e recíprocas) conexões entre elas.58 Portanto, certamente não é acidente que o
marxismo tenha nascido nos 1840s ou paralisado sob os efeitos combinados do stalinismo, de um
lado, e do fascismo, da Guerra Fria e do boom de 1945/70, de outro;59 ou que a sociologia, no
sentido restrito, tenha sido fruto das duas décadas anteriores à Primeira Grande Guerra.60
Deve-se notar que, porque os sistemas sociais são abertos, o historicismo (no sentido de
preditibilidade dedutivamente justificada) é insustentável. E, em virtude de seu caráter histórico
(transformacional), ocorrerão desenvolvimentos qualitativamente novos que não podem ser
antecipados pela teoria científica social. Por conseguinte, por razões ontológicas, distintas das
simplesmente epistemológicas, a teoria científica social (diferentemente da científico-natural) é
necessariamente incompleta. Ademais, como as possibilidades inerentes a um novo
desenvolvimento social com freqüência só se tornam aparentes muito depois do próprio
desenvolvimento, e, como cada novo desenvolvimento, em certo sentido, é um produto de um
desenvolvimento prévio, podemos ver agora por que a história tem de ser constantemente
reescrita.61 Há um vínculo relacional entre o desenvolvimento do conhecimento e o
desenvolvimento do objeto do conhecimento que qualquer teoria da ciência social e metodologia
dos programas de pesquisa científico-social adequados têm de levar em conta. Em particular,
julgamentos lakatosianos sobre a natureza progressiva ou degenerativa de programas de
pesquisa62 não podem ser feitos isolados de julgamentos sobre os desenvolvimentos no resto da
sociedade que condicionam o trabalho em programas particulares.
Sustentei que uma hipótese sobre uma estrutura generativa, uma vez tenha sido produzida na
ciência social, pode ser testada de modo inteiramente empírico, embora não necessariamente de
modo quantitativo e ainda que exclusivamente em termos de seu poder explanatório. Todavia, até
aqui não disse nada sobre como a hipótese é produzida ou, inclusive, sobre qual é seu estatuto.
57
Se correto, este fato tem um análogo na técnica consciente de “Garfinkelling” na psicologia social – ver, por
exemplo, H. Garfinkel, Studies in Ethnomethodology (New Jersey 1967) – e talvez também no papel desempenhado
pela psicopatologia no desenvolvimento de uma psicologia geral. Ver também A. Collier, R. D. Laing: The
Philosophy and Politics of Psycotherapy (Hassocks 1977), p. 132.
58
Considere, por exemplo, o modo pelo qual o desemprego em massa dos anos 30 não somente proporcionou a força
teórica para a inovação keynesiana, mas facilitou sua pronta aceitação pela comunidade científica relevante.
59
Ver P. Anderson, Considerations on Werstern Marxism (London 1976) para uma discussão extensa.
60
Ver, por exemplo, G. Therborn, Science, Class and Society (London 1976) cap.5 sec.3.
61
Ver H. Lefebvre, ‘What is the Historical Past?’, New Left Review 90 (1975) especialmente pp. 33-34.
62
Ver, I. Lakatos, ‘Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes’, Criticism and the Growth
of Knowledge, I. Lakatos e A. Musgrave (eds.) (Cambridge 1970).
26
No entanto, ao considerar a construção de teoria nas ciências sociais é preciso ter em mente que o
suposto cientista social, na ausência de alguma teoria prévia, estaria diante de uma massa
desordenada de fenômenos (sociais) que, de alguma forma, ele teria de classificar e definir. Em
sistemas como os sociais, que são necessariamente abertos, o problema de constituir um objeto de
investigação apropriado (isto é, explanatoriamente significante) torna-se particularmente agudo.
E se torna crônico se, como no realismo empírico, desprovido dos conceitos de estratificação e
diferenciação do mundo, não se é capaz de pensar a irredutibilidade de estruturas
transfactualmente ativas a eventos e o esforço, de que consiste a ciência, necessário para revelá-
las. Nesse caso, eventos indiferenciados convertem-se no objeto de ciências diferenciadas de
maneira puramente convencional, produzindo uma crise de definições e fronteiras, a existência de
uma distinção simplesmente arbitrária entre uma teoria e suas aplicações (ou a ausência de
qualquer conexão orgânica entre elas) e, sobretudo, um problema de verificação – ou, em lugar
disso, de falsificação. Porque quando toda teoria é falsa, se interpretada empiricamente, nenhuma
teoria pode jamais ser falsificada.63 Por isso, de modo algum surpreende a afirmação de
Goldmann de que “o problema metodológico fundamental de qualquer ciência humana…
consiste na divisão (découpage) do objeto de estudo… (pois) uma vez essa divisão tenha sido
feita e aceita, os resultados serão praticamente previsíveis”.64
Dada a natureza confusa da realidade social, portanto, como a construção teórica é executada
na ciência social? Felizmente, a maioria dos fenômenos com os quais o cientista social tem de
lidar já estará identificada sob certas descrições, graças à natureza conceito-dependente das
atividades sociais. Em princípio, as descrições ou definições nominais das atividades sociais que
formam os objetos transitivos da teoria científica social podem ser as dos agentes envolvidos, ou
redescrições teóricas delas. O primeiro passo na transformação P→T será, portanto, uma tentativa
de uma definição real de uma forma de vida social que já foi identificada sob uma descrição
particular. Note que, na ausência de tal definição e, na falta de um fechamento, qualquer hipótese
de um mecanismo causal está destinada a ser mais ou menos arbitrária. Em conseqüência,
tentativas de definições reais na ciência social geralmente precederão, em lugar de sucederem,
hipóteses causais bem sucedidas – muito embora em ambos os casos elas só possam ser
justificadas empiricamente, a saber, pelo poder explanatório revelado pelas hipóteses que delas
podem ser deduzidas.
Desse modo, convertemos nosso problema de como estabelecer um procedimento não
arbitrário para gerar hipóteses causais no problema de como estabelecer um procedimento não
arbitrário para gerar definições reais. Deve-se recordar aqui uma segunda característica que
diferencia o objeto das ciências sociais – a natureza atividade-dependente das estruturas sociais,
ou seja, que os mecanismos em funcionamento na sociedade só existem em virtude de seus
efeitos. Nesse particular, a sociedade é inteiramente distinta dos outros objetos do conhecimento
científico. Observe, entretanto, que nesse caso é análoga aos objetos do conhecimento filosófico.
Pois assim como os objetos do conhecimento filosófico não existem à parte dos objetos do
conhecimento científico, as estruturas sociais não existem à parte de seus efeitos. Por isso, sugiro
63
Ver A Realist Theory of Science, p. 132. Cf. a notória “infalseabilidade” das teorias econômicas. Ver, por exemplo,
E. Grunberg, ‘The Meaning of Scope and External Boundaries of Economics’, The Structure of Economics Science,
S. Krupp (ed.) (New Jersey 1966).
64
L. Goldmann, Marxisme et sciences humaines (Paris 1970), p. 250. Ver também os escritos de Gadamer sobre
estatísticas: “um excelente meio de propaganda porque deixam os fatos falarem e, então, simulam uma objetividade
que na realidade depende da legitimidade das questões perguntadas” (Truth and Method, p. 268).
27
que, em princípio, o discurso filosófico está para o discurso científico assim como o discurso
sobre a sociedade está para um discurso sobre seus efeitos. Além disso, nos dois casos está-se
lidando com atividades conceituadas, cujas condições de possibilidade ou pressupostos reais o
discurso de segunda ordem procura explicar. Todavia, há também diferenças importantes. Pois no
discurso científico-social o interesse não reside em isolar as condições a priori de uma forma de
conhecimento enquanto tal, mas os mecanismos e relações particulares operando em alguma
esfera identificada da vida social. Ademais, suas conclusões serão históricas, não formais; e
sujeitas a testes empíricos, assim como a vários controles a priori.65
O emprego substantivo de um procedimento essencialmente apodíctico não deveria causar
surpresa. Pois os argumentos transcendentais são meramente uma espécie da qual os argumentos
retrodutivos são o gênero, distinguindo-se desses últimos pelas características de que seu
explanandum consiste das atividades conceituadas de agentes e, como se torna uma arena
caracterizada por uma multiplicidade de causas, de que isolam condições necessárias mas não
suficientes para tais atividades conceituais. No entanto, tendo em vista esta homologia, não há o
risco de colapsar a distinção filosofia/ciência na qual insisti no capítulo 1? Não. Pois o caráter
sincategoremático (ou, por assim dizer, só proxi-referencial) do discurso de toda forma
irredutível da filosofia (discutido no capítulo 1) tem de ser contrastado com o caráter diretamente
referencial do discurso sócio-científico. Por isso, embora em ambos os casos há dois níveis de
discurso, na ciência social há dois níveis de realidade (estruturas sociais e seus efeitos), ao passo
que na filosofia há apenas um, a saber, o investigado pela própria ciência. Nos dois casos, é claro,
mais de um conjunto de condições será normalmente consistente com a atividade em questão, de
tal forma que considerações suplementares serão necessárias para estabelecer a validade da
análise. Contudo, na ciência social, sempre que possível, tais considerações incluirão o
fornecimento de fundamento empírico independente para a existência (e o postulado modo de
atividade) dos mecanismos estruturais em questão, enquanto na filosofia, dada sua natureza, isso
é impossível. Portanto, um argumento transcendental científico (ou substantivo) pode ser
distinguido de um argumento filosófico (ou formal) de acordo com a realidade autônoma ou não
do objeto do discurso de segunda ordem, o modo (ou melhor, o caráter imediato) com que a
referência ao mundo está assegurada e a possibilidade ou não de fundamento a posteriori para a
análise.
A nossa dedução da possibilidade do conhecimento científico-social a partir da necessária
preexistência de formas sociais para a ação intencional ilustra o uso formal do procedimento
transcendental. Os resultados de tal análise podem ser usados tanto como uma estrutura crítica
para a avaliação das teorias científicas sociais existentes quanto como um padrão para
conceituações adequadas do explanandum científico-social. A análise de Marx em O Capital
ilustra o uso substantivo de um procedimento transcendental. Penso que O Capital pode ser
plausivelmente visto como uma tentativa de determinar qual deve ser o caso para que sejam
possíveis as experiências apreendidas pelas formas fenomênicas da vida capitalista; expondo, por
assim dizer, um esquema puro para a compreensão dos fenômenos econômicos sob o capitalismo,
especificando as categorias que têm de ser empregadas em qualquer investigação concreta. Já
65
Por exemplo, o modelo transformacional da atividade social implica que uma condição necessária para qualquer
teoria social adequada é que a teoria seja consistente com a reprodução (e/ou transformação) do seu objeto e que,
preferencialmente, seja capaz de especificar as condições sobre quais tal reprodução (ou transformação) ocorre. Ver,
por exemplo, M. Hollins e E. Nell, Rational Economic Man (Cambridge 1975), especialmente o cap.8, para uma
crítica da teoria econômica neoclássica seguindo essa orientação.
28
sugeri que, para Marx, entender a essência de algum fenômeno social particular é entender as
relações sociais que tornam o fenômeno possível. Todavia, o modelo transformacional sugere
que, para entender a essência dos fenômenos sociais enquanto tais e em geral, tais fenômenos têm
de ser apreendidos como produções; de forma que as relações que interessam aqui são, sobretudo,
relações de produção.
A premissa menor de qualquer argumento transcendental científico-social substantivo será a
atividade social tal como conceituada na experiência. Tal atividade social será em princípio
espaço-temporalmente-dependente. E, é claro, será conceituada em primeiro lugar na experiência
dos agentes envolvidos. Foi aqui que a tradição hermenêutica ofereceu uma contribuição real, ao
destacar o que pode ser chamado de momento conceitual no trabalho científico-social. No
entanto, normalmente ela comete dois erros. O seu contínuo comprometimento com a ontologia
do realismo empírico a impede de ver que:
(1) As condições para os fenômenos (a saber, as atividades sociais como conceituadas na
experiência) existem intransitivamente e podem existir, portanto, independentemente de
sua conceituação apropriada; e, como tal, podem estar sujeitas a uma possibilidade não
reconhecida de transformação histórica.
(2) Os próprios fenômenos podem ser falsos ou, em um importante sentido, inadequados
(por exemplo, superficiais ou sistematicamente delusórios).
Por conseguinte, o que foi determinado pela análise conceitual como necessário para os
fenômenos pode consistir precisamente de um nível (ou aspecto) da realidade que, embora não
exista independentemente das concepções dos agentes, pode ser conceituado inadequadamente ou
inclusive não conceituado de maneira nenhuma. Tal nível pode consistir de um complexo
estrutural que é realmente generativo da vida social, mas inacessível à inspeção direta pelos
sentidos ou intuição imediata no curso da vida cotidiana. Pode ser uma propriedade tácita dos
agentes (tal como o conhecimento da gramática) utilizada em suas produções; ou uma
propriedade das relações em que agentes se posicionam em relação às condições e meios de suas
produções, das quais podem ser inconscientes. No entanto, uma análise transcendental desse tipo
na ciência social, ao mostrar (quando o faz) as condições históricas sob as quais um certo
conjunto de categorias pode ser validamente aplicado, mostra ipso-facto as condições sob as
quais as categorias não podem ser aplicadas. O que possibilita uma crítica de segunda-ordem da
consciência, talvez melhor exemplificada pela análise de Marx do fetichismo da mercadoria.66
Para Marx, como se recorda, as relações de valor são reais, mas são realidades sociais
historicamente específicas. E o fetichismo consiste em sua transformação no pensamento em
qualidades naturais e, por isso, anistóricas das coisas. Marx identifica um tipo alternativo de
transformação no caso das explanações idealistas (em vez de idealistas) das formas sociais, tal
como o dinheiro no século XVIII, “atribuído a uma origem convencional” no “pretenso
consentimento universal da humanidade”.67 A homologia entre esses dois tipos de mistificação
substantiva e os erros metateóricos da reificação e do voluntarismo deveriam estar claros.
66
Ver Capital, 1, cap.1. Tal crítica apresenta uma analogia formal à Dialectic de Kant. Ver D. Sayer ‘Science as
Critique: Marx x Althusser’, Issues in Marxist Philosophy J. Mepham e D. Ruben (eds.) (Hassocks 1979).
67
Capital, 1, pp. 90-1.
29
Contudo, como assinalou Geras,68 Marx empregou outro conceito de mistificação, em que se
ocupa do que se poderia denominar crítica de primeira-ordem da consciência – na qual, para dizê-
lo diretamente, identifica os próprios fenômenos como falsos; ou, mais formalmente, mostra que
certo conjunto de categorias não é de modo nenhum corretamente aplicável à experiência. O que
é mais bem exemplificado por seu tratamento da forma salário, na qual o valor da força de
trabalho é transformado no valor do trabalho – uma expressão que Marx declara ser “tão
imaginária quanto o valor da terra”, “tão irracional quanto um logaritmo amarelo”.69 Mais uma
vez, essa mistificação está fundada em um erro categorial característico – o erro, intrínseco à
relação salarial, de reduzir capacidades a seu exercício, comparável a confundir máquinas com o
seu uso. Pode-se também ver esse erro categorial como um caso da redução de causas eficientes a
causas materiais, uma vez que a crítica de Marx ao Programa de Gotha70 trata de especificar o
erro oposto.
Por conseguinte, ao contrário do que é implícito nas tradições hermenêutica e neokantiana, a
transformação P→T tanto (1) isola condições reais, mas não empíricas e não necessariamente
conceituadas de forma adequada, quanto (2) consiste essencialmente, como crítica, em dois
modos de criticismo e mudança conceitual. Todavia, a designação “ideologia” para um conjunto
de idéias P só se justifica se é possível demonstrar a sua necessidade: isto é, se as idéias podem
ser explicadas e criticadas. O que envolve algo mais do que simplesmente ser capaz de dizer que
as crenças em questão são falsas ou superficiais, e isso normalmente pressupõe, é claro, que se
dispõe de uma explicação melhor para os fenômenos em questão. Em adição, implica ser capaz
de oferecer uma explicação das razões por que as crenças falsas ou superficiais são cridas – um
modo de explicação sem paralelo nas ciências naturais. Porque crenças, seja sobre a sociedade
seja sobre a natureza, são claramente objetos sociais.
Dado esse passo, crítica e mudança conceituais convertem-se em crítica e mudança sociais,
uma vez que, em uma possibilidade ímpar para a ciência social,71 o objeto que torna necessárias
crenças ilusórias (ou superficiais), como será visto, é criticado ao ser explicado, ao menos na
ausência de outras considerações mais importantes; de forma que a questão passa a ser, ceteris
paribus, mudar o objeto. De fato, no pleno desenvolvimento do conceito de ideologia a teoria se
funde na prática, à medida que fatos sobre valores, mediados por teorias sobre fatos, são
transformados em valores sobre fatos. Colapsa a regra de neutralidade axiológica [value-
neutrality], o último slogan na filosofia das ciências sociais, quando passamos ver que os
próprios valores podem ser falsos.
No começo dessa seção fiz a distinção entre os limites epistemológicos e relacionais no
naturalismo e os limites ontológicos imediatamente derivados do modelo transformacional da
atividade social. Entretanto, uma rápida reflexão mostra que tais limites também podem ser
derivados daquele modelo. Pois o caráter histórico e interdependente das atividades sociais
implica que o mundo social tem de ser aberto, e o requisito que a atividade social seja
socialmente explicada implica que a ciência social é parte de seu próprio objeto. Similarmente,
não é difícil ver que a aplicação do modelo transformacional às crenças e ao material cognitivo
68
N. Geras, ‘Essence and Appearance: Aspects of Fetishisin in Marx’s Capital’, New Left Review 65 (1971),
reimpresso como ‘Marx and the Critique of Political Economy”, Ideology in Social Science, R. Blackburn (ed.)
(London 1972), p. 297.
69
Ver O Capital, 1, p. 537 e O Capital, 3, p. 798, respectivamente.
70
K. Marx, ‘Critique of the Gotha Programme’, Selected Works (London 1968), p. 319.
71
Ver R. Edgley, ‘Reason as Dialetic’, Radical Philosophy 15 (Autumn 1976).
30
72
Ver, por exemplo, S. B. Barnes, Interests and Grouth of Knowledge (London 1977) especialmente cap.1.
73
Ver, por exemplo, J. Brennan, The Open Texture of Moral Concepts (London 1977), especialmente parte 2.
31
(1) V ↛ F
(2) F ↛ V
É importante distinguir (1) de (2). Isso porque hoje em dia se concede, com freqüência, que
os fatos são de alguma forma contaminados por nossos valores, embora de maneira contingente.
No entanto, seja qual for a dúvida em relação a (1), (2) é ainda considerado canônico. Ou seja,
ainda se sustenta que as descobertas da ciência social são consistentes com qualquer posição de
valor; de modo que, mesmo se a ciência social não pode ser livre de valores [value-free], os
valores sociais ficam efetivamente livres da ciência [science-free]. Aceita-se, é claro, que a
ciência pode ser usada instrumentalmente na busca de ideais morais, objetivos políticos etc., mas
a ciência não pode ajudar a determinar esses ideais, objetivos etc. Perante a ciência, ficamos
livres para adotar qualquer posição de valor. Nesse caso, o lema poderia ser “Mantenha Ciência
fora da Política (da Moralidade etc.)”.
O meu argumento principal é contra (2). Mas também rejeito (1); isto é, aceito a tese da
“dependência do valor” [value-dependency] dos fatos (sociais) e vou considerá-la em primeiro
lugar. Será visto, contudo, que sem a rejeição do eixo (2) da dicotomia, a crítica dirigida ao eixo
(1), ou às suas implicações, tem de continuar em grande medida ineficaz. E meu objetivo será
mostrar como a teoria, trazendo à superfície o círculo (sempre menor) em que se movem fatos e
valores, pode pressagiar sua transformação em uma (crescente) espiral
explanatória/emancipatória.
74
Treatise, especialmente pp. 469-70. Ver R. Hare, Freedom and Reason (Oxford 1963), p.108.
32
(1) foi criticado do ponto de vista do sujeito (a) e (b) do objeto de investigação (assim como,
de forma mais oblíqua, nas tradições hermenêutica, crítica e dialética, do ponto de vista da (c)
relação entre ambos). Assim, para considerar primeiramente (a), foi sustentado que os valores
sociais dos cientistas (ou da comunidade científica) determinam (i) a seleção dos problemas; (ii)
as conclusões; e inclusive (iii) os padrões de investigação (por exemplo, por Weber, Myrdal e
Mannheim, respectivamente).
Com freqüência, (i) é tratado como incontroverso; de fato, esse item expressa uma séria
confusão. Na maioria das vezes é associado à doutrina de Weber de que a ciência social, embora
possa e tenha de ser livre de valores [value-free], apesar disso tem de ser relevante para o valor
[value-relevant].75 Em poucas palavras, a posição de Weber era que o cientista social, em virtude
da infinita variedade da realidade empírica, teria de escolher o que estudar. Tal escolha seria
necessariamente direcionada por seus valores, de modo que ele decidiria estudar precisamente os
aspectos da realidade aos quais ele atribuisse significância cultural, que se tornariam assim a base
para a construção de “tipos ideais”. O que, entretanto, é duplamente equivocado. Porque, por um
lado, o mundo natural também é complexo; e, por outro, certos aspectos do trabalho das ciências
naturais são igualmente motivados por interesses práticos. Na verdade, é preciso distinguir entre
as ciências naturais puras e aplicadas (ou práticas). Na ciência pura, a escolha das propriedades
de um objeto a estudar é motivada pela pesquisa dos mecanismos explanatórios;76 na ciência
aplicada, pode ser motivada pela importância industrial, tecnológica, médica ou, de modo geral,
sociocultural das propriedades. Em conseqüência, enquanto são os interesses práticos que
determinam quais dos infinitos números de possíveis componentes do carbono são estudados,77
são os interesses teóricos que motivam a identificação de sua estrutura eletrónica. O neokantismo
de Weber o induz ao erro de trocar a distinção pura/aplicada pela natural/social. Na infinita
variedade da superfície do cosmo social não há nada que exija uma diferença em princípio na
estrutura da busca por mecanismos explanatórios. Tampouco um interesse na emancipação, com
todo respeito aos habermasianos, é algo com o que se tenha de prefaciar tal busca, muito embora,
como demonstrarei adiante, a ciência social explanatória tem necessariamente implicações
emancipatórias.78 Em um nível mais profundo, qualquer doutrina de relevância de valores [value-
relevance] (ou interesses constituindo conhecimento) também tem o defeito de deixar inexplicada
a fonte de valores (ou interesses).
(ii) é absolutamente mais forte. A noção subjacente em operação é que a ciência social é tão
inextricavelmente “implicada” com seu objeto que seus interesses em relação a ele afetarão e
(mantido algum conceito de objetividade – relacional ou qualquer outro) distorcerão suas
percepções, descrições ou interpretações do objeto. Exemplos de tal interferênvia/distorção são
75
Ver M. Weber, The Methodology of the Social Sciences (Chicago 1949), especialmente pp. 72-6.
76
Ver A Realist Theory of Science, p.212.
77
Ver, por exemplo, J. Slack, ‘Class Struggle among the Molecules’, Counter Course, T. Pateman (ed.)
(Harmondsworth 1972).
78
Ver carta de Engels para Lafargue, 11 de Agosto 1884: “Marx rejeitou o “ideal político, social e econômico” que
você lhe atribui. Um homem da ciência não tem ideais, ele elabora resultados científicos, e se é politicamente
comprometido, luta para pô-los em prática. No entanto, se ele tem ideais, ele não pode ser um homem da ciência,
pois seria tendencioso desde o início”, citado em M. Godelier, ‘System Structure and Contradiction in Capital’,
Socialist Register (1967), reimpresso em R. Blackburn (ed.), op. cit., p. 354, nº43. É claro que Engels deixou de
mencionar a possibilidade que os resultados científicos de Marx deveriam implicar um compromisso político.
33
imediatamente disponíveis.79 É claro que (ii) está fundada em uma sua premissa epistemológica,
a saber, a da internalidade da ciência social em relação ao seu objeto, juntmente com uma
premissa psicológica ou sociológica, expressando a impossibilidade prática de fazer a separação
analítica que os positivistas impõem aos cientistas sociais. E (ii) postula, com respeito à
vindicação feita em (1) acima, uma “interferência” entre os interesses do sujeito no objeto e o
conhecimento dele.
É imprescindível, entretanto, distinguir três formas em que tal interferência poderia operar.
Ela poderia operar conscientemente (como na mentira); poderia operar de forma semiconsciente
(como na auto-ilusão [wishful thinking] do otimista incurável ou na alegação especial de um
grupo de pressão); ou poderia operar de inconscientemente (possa ou não se tornar acessível à
consciência). Somente o terceiro caso acarreta sérias dificuldades para (1). Eu quero distinguir o
caso no qual as conclusões de tal inconsciência do modo de interferência são racionalizações de
motivação do caso onde elas constituem mistificações (ou ideologias) da estrutura social. Em
qualquer caso a interferência deve ser considerada como necessária ou como contingente em
relação a um conjunto particular de circunstâncias psíquicas ou sociais.
O reconhecimento dos fenômenos da racionalização e da mistificação como efeitos da
interferência inconsciente nos permite localizar o erro em uma influente solução do problema de
“viés-de-valor” [“value-bias”], aprovada inter alia por Myrdal.80 Nessa solução, reconhecendo
que a neutralidade-de-valor é impossível, tudo que o cientista social precisa fazer é declarar
completa e explicitamente suas hipóteses de valor no início de algum tipo trabalho de forma a
prevenir o leitor (e provavelmente também o escritor). Não é difícil ver que essa solução contorna
o problema. Pois pressupõe que X sabe quais são seus valores; isto é, pressupõe que ele tem um
tipo de conhecimento sobre si mesmo que ex hypothesi, em virtude da interferência inconsciente,
não pode ter sobre a sociedade. Ora, para ter tal conhecimento sobre si mesmo, X teria de se
tornar inteiramente consciente do modo de interferência previamente inconsciente, e nesse caso a
declaração das hipóteses de valor é desnecessária, porque agora a objetividade é possível.
Inversamente, se X não tem consciência do modo de interferência (inconsciente), qualquer
declaração de suas hipóteses de valor (professados) será inútil. E, em particular, não se pode dizer
em geral se tal declaração será mais ou menos enganosa. (Considere, por exemplo, o que em
geral acompanha confissões do tipo “Eu não sou preconceituoso sobre…” ou “Eu sou um tipo de
pessoa tolerante/realmente liberal/boa democrata…”). Mutatis mutandis, considerações similares
se aplicam no caso dos modos consciente ou semiconsciente de interferência: as confissões ou
são desnecessárias ou potencialmente enganosas.
(iii) postula uma relatividade nas normas metodológicas secretadas por diferentes esquemas
conceituais ou paradigmas, juntamente com uma dependência-de-valor [value-dependence] de
tais esquemas conceituais do tipo já discutido em (ii). Pretendo considerar essa questão pari
passu com o problema geral do relativismo, do qual (iii) é somente um caso especial. Duas
objeções ao relativismo são regularmente exibidas: primeiro, que é auto-refutante; segundo, que
nega o que de fato se faz, por exemplo, traduzir, fazer comparações culturais etc.81
79
Por exemplo G. Myrdal, The Political Element in the Development of Economic Theory (London 1953), ou N.
Chomsky, ‘Objectivity and Liberal Scholarship’, in American Power and the New Mandarins (London 1969).
80
Ver, por exemplo, G. Myrdal, Value in Social Theory (London 1959), p. 120.
81
Ver, interessantemente, K. Mannheim, Ideology and Utopia (London 1960), pp. 300-1.
34
82
Ver, A Realist Theory of Science, p. 249.
83
Ver L. Wittgenstein, Philosophical Investigations (Oxford 1963), p. 223.
35
dependem do fato que o objeto da ciência social é em si mesmo em parte constituído por ou, na
verdade, simplesmente consiste de valores ou coisas às quais os próprios agentes fixam valores
(ou às quais os valores são fixados para eles), isto é, objetos de valor. Presumivelmente, ninguém
estaria inclinado a negar isso. A questão só se torna uma ameaça a (1) caso seja demonstrado que
a dependência de valor do objeto da ciência social torna impossível ou ilegítimo efetuar a
requerida separação analítica no discurso da ciência social. (Pois é claro que uma pessoa pode ser
capaz de descrever valores de uma forma livre de valor.) Caso se represente o objeto da ciência
social por S1 e a ciência social por S2, como no diagrama abaixo, a vindicação é que a natureza de
S1 é tal que, em virtude de sua impregnação de valor, ou nenhuma descrição em L2 satisfaz (1) ou
pelo menos a melhor ou mais adequada descrição científica em L2 não satisfaz (1). (Isto pode ser
considerado um estado de coisas necessário, normal ou ocasional).
Objeto S1
A significância do fato que aqui a preocupação é com questões de adequação descritiva (e, de
modo mais geral, científica) pode ser introduzida mais claramente considerando o famoso
exemplo de Isaiah Berlin. Assim, compare as seguintes explicações do que aconteceu na
Alemanha sob o domínio nazista: (α) “o país foi despovoado”; (β) “milhões de pessoas
morreram”; (γ) “milhões de pessoas foram mortas”; (δ) “milhões de pessoas foram massacradas”.
As quatro proposições são verdadeiras. Todavia, (δ) não é só a que mais avalia, é também a
melhor (isto é, a mais precisa e acurada) descrição do que realmente aconteceu. E observe que,
em virtude disso, excetuando-se (δ), todas geram a força “perlocutória” errada. Pois dizer que
alguém morreu normalmente transmite a presunção que a pessoa não foi morta pela agencia
humana. E dizer que milhões foram mortos não implica que as mortes foram parte de uma única
campanha organizada de brutal extermínio, como sob o regime nazista. Essa questão é
importante. Porque a ciência social não é só sobre um objeto, é para uma audiência. Em outras
palavras, a ciência social é sempre em princípio uma participante em uma relação triádica,
estando para um interlocutor (S3) efetivo ou possível como uma fonte potencial de informação,
explicação, justificação etc. efetivas, erradas ou enganadoras. No entanto, pretendo argumentar
que, mesmo abstraindo de considerações perlocutórias, os critérios para a adequação científica
das descrições são tais que, nesse tipo de caso, somente a descrição (δ) é aceitável.
Caso se denote algum fenômeno social em S1 como “P1”, a descrição mais adequada de P1
em L2 será aquela descrição – vamos chamá-la de D*2 – (com quaisquer componentes valorativos
que incorpore) requerida por aquela teoria T* (formulada em L2) com o máximo de poder
explanatório (incluindo, é claro, o poder, sempre que possível, de explicar descrições de P1 em
S1). Em geral, a consecução de adequação hermenêutica é uma condição necessária, embora não
suficiente, para gerar a descrição apropriada D*2. De fato, se a descrição hermeneuticamente
adequada é D°2 e seu alvo em L1 é D°1, nesse caso é contingente se D*2 = D°2 ou não. E a
suscetibilidade de D°1 à crítica científica reflete-se exatamente no processo de descrição,
explanação e redescrição que, como mencionado no capítulo 1, caracteriza a atividade científica
em qualquer nível ou estrato da realidade. (Esse processo está implícito, é claro, no modelo
transformacional, com o relevante ponto de ruptura sendo a identificação da estrutura operativa
explanatória.) Tal processo respeita a autenticidade de D°1, mas não a considera um dado
36
84
A. Giddens, em um importante trabalho, New Rules of Sociological Method, p. 16, p. 161 e passim, confunde
sistematicamente o fato que o sociólogo tem de utilizar recursos cognitivos dos agentes sob investigação, para gerar
descrições adequadas de suas condutas, com a idéia de sua incorrigibilidade. Com isso, ele recai na noção pré-
relativista de fundamentos incorrigíveis do conhecimento – apesar de uma tentativa de distinguir tais dados
incorrigíveis das suas representações como “senso comum” (ibid., p. 158). O que é análogo a tentar livrar os dados
sensoriais de suas implicações objeto-físicas. Pois tais recursos cognitivos não existem exceto na forma de crenças
como “X está votando, orando, roubando, trabalhando etc.”, incorporando pressupostos factuais e teoréticos sobre as
atividades em questão. Por isso, não surpreende que Giddens só vê a relação entre S2 e S1 como uma relação de
“defasagem” [“slippage”] (ibid., p. 162), além disso, potencialmente comprometedora para S2. Contudo, a relação
S2→S1 é não só de “slippage”, mas potencialmente uma relação de crítica; e tal crítica está longe de ser neutra em
suas implicações. Pois, embora um escravo que compreenda plenamente as circunstâncias de sua subordinação não
se torne livre em função disso, tal entendimento é uma condição necessária para a sua auto-emancipação racional.
Inversamente, o seu senhor tem um interesse em sua continuada ignorância sobre as circunstâncias de sua
escravidão. O conhecimento é benéfico de maneira assimétrica para as partes envolvidas em relações de dominação.
Além do mais, em geral, o conhecimento explanatório aumenta a gama de possibilidades conhecidas e, desse modo,
ceteris paribus faz pender “a balança de forças ideológica” contra o conservadorismo e o status quo (completamente
à parte de seus outros efeitos). Em conseqüência, é totalmente errado considerar que a ciência social é igualmente
“um potencial instrumento de dominação” e “da expansão da autonomia racional de ação” (ibid., p. 159).
85
Ver, por exemplo, R. Coward e J. Ellis, Language and Materialism (London 1977), p. 41.
37
suas atividades é (logicamente) impossível sem passar ao julgamento que D°1 é falso; e “D1 é
falso” não é uma proposição neutra em termos de valor [value-neutral]. Estritamente falando, isso
é suficiente para os propósitos de nosso argumento. Pois só precisamos mostrar que S1 é tal que,
na ciência social, descrições neutras em termos de valor [value-neutral] nem sempre são
possíveis. Todavia, vale a pena insistir nos aspectos mais gerais da questão. O nosso problema é
utilizar os poderes de L2 de forma a maximizar nosso entendimento em L2 de S1. L2 é a única
linguagem que nós podemos usar. E os termos que usamos para descrever o comportamento
humano serão termos que funcionam inter alia de maneira regulativa e valorativa em L2; esses
são os únicos termos que podemos usar sem paródia ou sátira; e nós não podemos deslocá-los do
seu contexto vivido sem adulterar o contexto em que são empregados para descrever,
representando-o como um contexto sem vida. Assim, da mesma forma que definir um feto como
um ser humano em gestação é carregar de uma certa maneira o debate sobre aborto, tentar
construir um índex do fascismo comparável com o da anemia86 é absurdo (porque os elementos
de um Estado fascista são internamente relacionados) e carregado-de-valor [value-laden] (porque
funciona de modo a remover de nossa perspectiva, na ciência, precisamente aquela série de suas
implicações internamente relacionadas a objetos que valoramos, como a vida humana). Em
resumo, não chamar uma pá de pá, em qualquer sociedade humana, é descrevê-la incorretamente.
Por conseguinte, o dogma positivista (1) tem de ser rejeitado com base no fato que ignora o
interesse do sujeito no objeto e que a natureza do objeto é tal que os critérios para a adequação
descritiva (e, mais geralmente, científica) implicam pelo menos a possibilidade de descrições
irredutivelmente valorativas. A crítica de (1), entretanto, deixa por resolver as questões da
determinação e da justificação não-instrumental dos valores. Além disso, ao fazer os fatos
parcialmente dependentes de valores (e deixando a escolha de valor indeterminada), introduz um
elemento de arbitrariedade aparentemente inevitável no processo científico. De fato, parece não
haver nenhuma razão que nos impeça de gerar quaiquer fatos que nos aprazam tento em vista
nossos interesses especiais. Para evitar tal convencionalismo radical, vamos cruzar para o outro
lado do divisor, ou seja, (2), e ver se a ciência tem quaisquer implicações para os valores; se aqui
é possível sair do círculo vicioso. Antes de oferecer minha própria explicação do assunto,
86
De acordo com Nagel, qualquer ameaça à neutralidade-de-valor da ciência social pode ser bloqueada distinguindo
rigorosamente entre a avaliação de julgamentos de valor que “expressam aprovação ou desaprovação de algum
ideal moral (ou social) ou de alguma ação (ou instituição) por causa do compromisso com tal ideal” e caracterização
de julgamentos de valor que “expressam uma estimativa do grau em que algum tipo comumente reconhecido (e mais
ou menos claramente definido) de ação, objeto ou instituição é está incorporado em um dado caso” – E. Nagel, The
Structure of Science (London 1961), p. 492. Portanto, o julgamento que uma pessoa está anêmica com base em uma
contagem de células vermelhas é um julgamento caracterizante; ao passo que o julgamento que a anemia é
indesejável é um julgamento avaliativo. (loc. cit.). Há inúmeros problemas com essa abordagem. Primeiro, de modo
algum fica claro por que Nagel chama um julgamento caracterizante de um julgamento de valor. Na verdade, a
distinção caracterizante/avaliativo simplesmente transpõe a distinção fato/valor em questão. Em segundo lugar,
Nagel trata a realidade social como não-problemática e a ciência social como se tivesse se aproximando do modelo
dedutivo. Por isso, deixa de ver que, enquanto a resolução atômica de conceitos definidos teoricamente pode ser
plausível no caso de alguns fenômenos naturais externamente relacionados, ela é totalmente inaplicável à
reconstrução de fenômenos sociais consistindo de elementos internamente relacionados. Instituições, tais como a
monarquia, e sistemas, por exemplo, de moralidade, existem (e assim têm de ser captados) in totum ou não existem.
Claro que há limites imprecisos e casos-limite. É claro que descrições requerem testes empíricos. Entretanto, a
ocorrência de mudanças qualitativas e o aspecto conceitual da realidade social limitam a possibilidade de
quantificação significativa na ciência social. Além disso, confundir a aferição empírica de nossas descrições em L2 e
as propriedades daquele processo com as coisas que tais descrições descrevem (em S1) e as propriedades que elas
possuem significa cometer a falácia verificacionista.
38
pretendo discutir duas tentativas recentes para derrubar a distinção fato/valor ao longo do eixo
negado em (2).
Charles Taylor, em um importante artigo,87 mostra claramente como as teorias (ou “sistemas
explanatórios”) de fato secretam valores. A estrutura de seu argumento pode ser representada
como segue:
(3) T ↔ F → V
Infelizmente, entretanto, ao deixar de especificar qualquer critério para escolher entre teorias,
Taylor abre a possibilidade para a interpretação que se deveria escolher a teoria que mais satisfaz
a nossa concepção do que “satisfaz as necessidades, vontades e propósitos humanos”;88 em lugar
da teoria que, precisamente porque é mais adequada do ponto de vista explanatório e capaz inter
alia de explicar crenças ilusórias sobre o mundo social, melhor nos permite situar as
possibilidades de mudança na direção do valor indicado pela teoria. Por essa razão, ele
simplesmente desloca, em vez de transcender, a tradicional dicotomia fato/valor. De modo
alternativo, poder-se-ia tentar interpretá-lo como se Taylor estivesse sustentando que se deve
optar pela teoria que secreta a melhor posição de valor [value-position], uma vez que se tende a
agir com base nas teorias e as necessidades humanas são a variável independentes (ou, pelo
menos, a principal) na explicação social.89 No entanto, isso envolve um conjunto dúbio de
proposições, incluindo um esquema de explicação substantivo com implicações voluntarísticas.
Searle tentou a derivação do “deve” a partir do “é”, onde a proposição crítica “é” é uma
proposição descrevendo fatos institucionais (isto é, fatos constituídos por sistemas de regras)
depende da existência de uma série de conexões entre dizer “eu prometo” estando sob uma
obrigação e o caso em que se deve fazer o que se está sob a obrigação de fazer.90 A estrutura do
argumento de Searle pode ser representada como:
(4) I. F. → V
O argumento foi criticado (por exemplo, por Hare) porque os fatos institucionais sobre os quais
repousa o argumento simplesmente encerra princípios morais gerair e (por exemplo, por Flew)
porque o mero proferimento de palavras não implica o tipo compromisso que garante por si só
uma conclusão normativa. No entanto, certamente o mero fato que se age em uma instituição de
tal modo que tal ação não seria possível, exceto por suas regras constitutivas, não implica um
compromisso moral (distinto de um compromisso motivacional ou puramente instrumental) com
tal instituição. Caso contrário, seria logicamente impossível ser um socialista em uma sociedade
capitalista, ou um libertário em uma sociedade totalitária. Prometer é uma instituição em uma
rede de instituições que, em bases morais,91 pode-se decidir não participar ou simplesmente
“jogar” (sinceramente ou não). Uma sociedade de inteligências discursivas em que prometer é
encarada mais ou menos como os americanos encaram o críquete, embora talvez não seja muito
atrativa, é certamente concebível – de uma maneira que uma sociedade não sujeita a normas de
verdade, consistência e coerência não o é. Para derivar um “deve” moralmente irrevogável
87
C. Taylor, ‘Neutrality in Political Science’, Philosophy, Politics and Society 3º série, P. Laslett e W. Runciman
(eds.) (Oxford 1967), reimpresso em A.Ryan (ed.) op. cit.
88
Ibid., p. 161.
89
Ver, por exemplo, ibid., pp. 145-6, p. 148 e passim.
90
Ver J. R. Searle, ‘How to Derive “Ought” from “Is”, Phylosophical Review 73, (1964) e Speech Acts (Cambridge
1969), cap.8.
91
Por exemplo, se alguém acredita que seria moralmente errado comprometer a si mesmo ou outros a agir no futuro.
39
(ceteres paribus) de um “é” tem-se de partir de premissas que são constitutivas do discurso
puramente factual, premissas que são transcedentamente necessárias.
É importante observar que meu argumento não permite uma inferência simples de fatos para
valores. Ao contrário, ele depende da capacidade de uma teoria de explicar a falsa consciência e,
em particular, da capacidade de uma teoria de permitir a satisfação de critérios mínimos para a
caracterização de um sistema de crenças como ideológico. (Critérios completos serão elaborados
no apêndice deste capítulo.) Na seção 5, como se recorda, sustentei que só se justifica a
caracterizar um conjunto de idéias P como “ideológico” se (a) P é falsa, isto é, caso se possua
uma explanação superior para o fenômeno em questão; e (b) P é mais ou menos contigentemente
(conjunturalmente) necessário, isto é, caso se possua uma explicação da falsidade das crenças em
questão. Deveria ser observado que a necessidade com que se está lidando aqui pode ser somente
a necessidade de alguma ilusão, em lugar de qualquer tipo particular de necessidade; e que, onde
(como no caso de mitos sobre natureza) diferentes teorias são requeridas para a satisfação de (a) e
(b), as teorias pelo menos têm de ser consistentes entre si. Pode-se escrever esses critérios como
segue:
(a) T > P
(b) T exp I (P)
Porém, criticar uma crença como falsa é ipso facto não só criticar qualquer ação ou prática
informada ou sustentada por aquela crença, mas também qualquer coisa que a necessita. Na
ciência social, tal coisa será precisamente o objeto que torna as crenças ilusórias (ou superficiais)
necessárias ao longo de quaisquer das dimensões de mistificação já indicada na seção 5. A
estrutura do meu argumento pode ser representada como:
(5) T > P. T exp I (P) → –V (O → I (P))
É claro que isso só implica o imperativo “mude isso” se a mudança for possível e na ausência de
considerações de ordem superior. Todavia, esse é o caso com qualquer valorização (por exemplo,
fumar é prejudicial).92
Por conseguinte, quando se possui uma teoria que explica por que a falsa consciência é
necessária, pode-se passar imediatamente, sem a adição de quaisquer julgamentos de valor
exógenos, para uma valoração negativa do objeto (estrutura generativa, sistema de relações
sociais etc.) que torna aquela consciência necessária (e, ceteris paribus, para uma valoração
positiva da ação racionalmente direcionada para a mudança das fontes de falsa consciência).
Entretanto, não se poderia objetar que com isso a distinção fato/valor só se dissolve porque há um
compromisso com a prévia valoração de que a verdade é um bem, de forma que não se está
derivando um julgamento de valor de premissas inteiramente factuais (naturais)? Contudo, o fato
que a verdade seja um bem (ceteris paribus) é uma condição não só discurso moral, mas de todo
e qualquer discurso. O compromisso com a verdade e a consistência aplica-se tanto ao discurso
factual quanto discurso de valor; razão pela qual, portanto, não pode ser agarrado como uma
premissa (valor) oculta para resgatar a autonomia dos valores em relação ao discurso factual sem
destruir a distinção entre os dois, distinção que é o ponto que a objeção procura sustentar.
Considerando que existem claros paradigmas da forma de explanação representada por (5), é
possível elaborar uma justificativa para supor que forma de explanação é transcendentalmente
92
Ver, por exemplo, R. Swinburne, ‘The Objectivity of Morality’, Philosophy 51 (1976).
40
necessária? Ora, é evidente que não pode haver nenhuma ação sem crenças, e nem crenças sem
trabalho sobre ou com outras crenças, de forma que julgamentos de falsidade são
transcendentalmente necessários. É claro, ademais, que só quando um agente pode explicar uma
crença que ele pode decidir racionalmente mudá-la, no caso em que ela não seja suscetível à
crítica direta. No entanto, para não dar uma explicação totalmente voluntarista das crenças; se
elas são de qualquer modo recalcitrantes – como o resto da estrutura social (como está implícito
em sua internalidade à estrutura social); ou se uma sociologia do conhecimento é possível e
necessária (e tal sociologia já está implícita na prática não especializada), nesse caso a forma de
explanação ideológica esquematizada em (5) é uma condição de qualquer práxis racional. Em
termos informais, a possibilidade de vir a dizer para outro ou para si mesmo “enfim, essa é a
razão pela qual você (I) acredita erroneamente nisso ou naquilo” é, de todo modo, um
pressuposto de qualquer discurso racional ou ato de auto-reflexão autêntico.
Portanto, ceteris paribus, verdade, consistência, coerência, racionalidade etc., são bons, e
seus opostos maus, precisamente porque o compromisso com elas são condições de possibilidade
do discurso em geral. Assim, dizer que alguma crença P é ilusória certamente é concluir que ela
ceteris paribus (doravante CP), é prejudicial à realização de objetivos humanos e à satisfação de
necessidades humanas. Contudo, não é por causa disso, no argumento que eu formulei, que P é
má. Evidentemente, a ciência não é a única atividade humana, ou a mais importante (em um
sentido explanatório). Além disso, os valores que ela encerra, da mesma maneira que podem ser
enfraquecidos em certos tipos de sociedade, também podem ser sobrepujados por outros.
Entretanto, não é possível afirmar de maneira consistente que tal suplantação seja necessaria ou
mesmo normalmente assegurada. Ademais, é só por referência a teorias científicas sociais (e
psicológicas) que se pode evitar uma regressão infinita de valores e resolver questões de valores
fundamentais (evidentemente, como sempre o são na prática – de maneira implícita ou explícita).
Ora, diferentes teorias explanatórias de “ordem superior” conterão suas concepções sobre os tipos
possíveis de organização social e sobre o que essencialmente são (ou podem vir-a-ser) os seres
humanos. A teoria explanatória mais poderosa, ao situar determinar o âmbito máximo de
possibilidades reais (não utópicas), aumentará nossa autonomia racional de ação. Todavia, é um
erro de máxima magnitude supor que, à moda laplaceana, a teoria nos dirá o que fazer. Em um
mundo aberto, a mais poderosa teoria explanatória é não-determinística.
Afora isso, a ciência, embora possa e deva iluminar questões práticas de moralidade e ação,
no fim das contas não pode “decidi-las”, justamente porque que há sempre – e necessariamente –
práticas sociais além da ciência, e outros valores que não os cognitivos; porque, para adaptar uma
famosa metáfora de Neurath, enquanto consertamos o barco, nós ainda precisamos pegar o peixe
no mar. Por outro lado, uma vez tenhamos rompido com ponto de vista contemplativo da
epistemologia tradicional e concebamos os seres humanos não só pensando e percebendo, mas
engajados em atividades práticas e materiais, é difícil explicar como (2) pôde ter mantido os
filósofos cativos por tanto tempo. Pois certamente podemos derivar imperativos técnicos
unicamente de premissas teóricas (sujeitos à cláusula CP).93 Além disso, criticar uma crença ou
teoria é ipso facto criticar qualquer ação informada ou prática sustentada por tal crença ou teoria,
de forma que inclusive no nível (a) de (5) passamos diretamente a imperativos práticos. No
entanto, parar ali é se deter “naquele tipo de crítica que sabe como julgar e condenar o presente,
mas não sabe como compreendê-lo”.94 Para ir mais além dessa crítica precisamos mostrar o
93
Ver R. Edgley, Reason in Theory and Practice (London 1969), especialmente 4.11.
94
K. Marx, Capital, 1, p. 505.
41
objeto que torna necessária a falsa consciência, em um momento – nível (b) de (5) – que
denominei “crítica”. Uma vez tenhamos consumado isso, teremos feito tudo o que a ciência
isoladamente pode fazer pela sociedade ou pelas pessoas. E a questão se converte em transformá-
los.
42
APÊNDICE
UMA NOTA SOBRE O CONCEITO MARXISTA DE IDEOLOGIA
Não é minha intenção aqui oferecer um tratamento completo do conceito marxista de
ideologia, mas simplesmente considerar dois problemas associados a ele. O primeiro diz respeito
ao lugar da ideologia (e da ciência) na topografia do materialismo histórico; o segundo diz
respeito aos critérios para a caracterização de crenças como “ideológicas” e, especificamente,
para distinguir ideologia de ciência.
95
Ver N. Geras, ‘Althusser’s Marxism: an Assessment’, (New Left Review 71), reimpresso em Werstern Marxism: A
Critical Reader, G. Stedman Jones et al. (London 1977).
96
Ver G. Stedman Jones ‘The Marxism of the Early Lukács’, New Left Review 70, reimpresso em G. Stedman Jones
et al., op. cit.
97
Ver D. Lecourt, Proletarian Science? (London 1977).
43
fundo, dominação de classe) intrínseco a ela. Contudo, como observou Poulantzas, a única teoria
de ideologia completamente elaborada no marxismo está na crítica da economia política de Marx;
desse modo, é a ela que temos de nos voltar ao considerar o que está envolvido na noção marxista
de uma crítica e na contraposição de ideologia e ciência.
45
Sugiro que, no interior dessa linhagem conceitual, um sistema de crenças I pode ser
caracterizado como “ideológico” se e somente se três tipos de critérios – que denominarei crítico,
explanatório e categorial – são satisfeitos. Para considerar primeiramente os critérios críticos,
para designar I como “ideológico” é preciso possuir uma teoria (ou um conjunto consistente de
teorias) T que pode:
1 Explicar, sob suas próprias descrições, a maioria dos fenômenos, ou os mais
significativos, explicados por I (sob as descrições de I, onde essas descrições são
“incomensuráveis” com as de T).
2 Explicar, em adição, um conjunto significativo de fenômenos não explicados por I.
Para satisfazer os critérios explanatórios para a designação de I como “ideológico”, T tem de ser
capaz de:
3 Explicar a reprodução de I (isto é, aproximadamente, as condições para a sua contínua
aceitação pelos agentes) e, se possível, especificar os limites de I e as condições
(endógenas) para sua transformação (se há alguma), especificamente:
3’. Em termos de uma estratificação ou conexão real (ou seja, um nível de estrutura ou
conjunto de relações) descrita em T, mas inteiramente ausente de ou obscurecida em I.
4 Explicar, ou ao menos situar, a si mesma em si mesma.
Finalmente, para satisfazer os critérios categoriais para a designação de I como “ideológico”, I
tem de ser incapaz de satisfazer uma das seguintes condições:
5 Um critério de cientificidade, especificando as condições mínimas necessárias para a
caracterização de uma produção como científica; ou
6 Um critério de adequação de domínio, especificando as condições mínimas
necessárias para uma teoria sustentar a natureza histórica ou social (ou seja lá o que
for) de seu objeto.
E T deve ser capaz de satisfazer ambos.
(1) e (2) explicam o sentido em que T é cognitivamente superior a I.101 Entretanto, (3’) atribui
a T um tipo específico de superioridade cognitiva. T possui uma profundidade ontológica ou
totalidade que falta em I. (3) demarca a explicação científica social da explicação científica
natural. A condição que as crenças sobre os fenômenos, além dos fenômenos, devem ser
explicadas deriva, evidentemente, da internalidade das teorias sociais com respeito ao seu objeto
(ver seção 4). O que também indica, é claro, a desejabilidade da satisfação de um critério de
reflexividade, a saber (4). Talvez devesse ser sublinhado que só se justifica caracterizar um
sistema de crenças como “ideológico” caso se possua uma teoria que possa explicá-lo. Os
critérios categoriais (5) e (6) pressupõem, naturalmente, que T, ou alguma metateoria consistente
com ela, especifica as condições apropriadas (como foi feito aqui nos capítulos 1 e 2 [de PON],
101
A rejeição do critério da falsa consciência, atualmente em moda, por aqueles que pretendem definir ideologia
somente por referência ao fato de servir a interesses “ocultos” ou de incorporar dominação “desnecessária”,
pressupõe que pode ser possível detectar aqueles interesses ou seu papel sem uma teoria capaz de explicar os
fenômenos que a teoria ideológica explicou. Pressupõe, portanto, que as condições sob as quais a teoria-I é válida são
irrelevantes para sua explanação; e, conseqüentemente, que ela não tem fundamento base ou que se pode estudá-la
independente de suas bases.
46
respectivamente). Para Marx, a economia política clássica satisfazia (5), mas, propriamente
falando, não satisfazia (6), em virtude dos erros categoriais, tais como o do fetichismo, no qual
estava envolvida. A economia vulgar, por sua vez, não satisfazia sequer (5). Finalmente, deveria
ser observado que, tradicionalmente, as ideologias teóricas têm sido diferenciadas das formas de
consciência que refletem, ou racionalizam (ou, de qualquer forma, defendem); de forma que, na
análise de qualquer “I”, uma diferenciação interna com respeito ao nível discursivo será
necessária. Vamos agora aplicar esse aparato formal em O Capital.
O Capital é subtitulado “uma análise crítica da produção capitalista”. É simultaneamente
uma crítica da economia política burguesa; uma crítica das concepções econômicas da vida
cotidiana que, de acordo com Marx, a economia política burguesa meramente reflete ou
racionaliza; e uma crítica do modo de produção que torna essas concepções necessárias para os
agentes nele envolvidos. É a estrutura dessa tripla crítica que fornece a chave para a análise da
ideologia nos escritos econômicos maduros de Marx.
Para Marx, a economia vulgar simplesmente reflete as formas fenomênicas da vida burguesa.
Ela não penetra na realidade essencial que produz essas formas.102 Todavia, não é unicamente a
indolência ou a “má fé” científica que explica isso. Pois as formas fenomênicas que são refletidas
ou racionalizadas na ideologia mascaram efetivamente as relações reais que as geram. Nas
palavras de Godelier: “não é o sujeito que engana a si mesmo (nem, pode-se adicionar, é qualquer
outro sujeito – seja ele indivíduo, grupo ou classe), mas é a realidade (ou seja, a estrutura da
sociedade) que o engana (ou melhor, produz o engano nele)”.103 Por conseguinte, o projeto de
Marx é descobrir os mecanismos pelos quais a sociedade capitalista necessariamente aparece para
seus agentes como algo diferente do que realmente é; isto é, os mecanismos de sua opacidade
específica. E, na medida em que tenha sucesso nessa tarefa, mostrando que essas formas são
falsas e necessárias, fica explicado o caráter de O Capital como uma crítica tripla (e seu direito
ao seu subtítulo plenamente justificado).
Observei acima (p. 25) como o fetichismo, ao naturalizar o valor, o desistoriza. A sua função
social, portanto, é ocultar as relações de classe historicamente específicas que formam a base dos
fenômenos superficiais da circulação e da troca. A forma salário, por sua vez, ao confundir o
valor do trabalho e o valor da força de trabalho, reduz poderes ao seu exercício. Desse modo, a
sua função social é ocultar, no processo de produção capitalista, a realidade do trabalho não-pago
(a fonte de mais-valia). E, como diz Marx, “se a história levou um longo tempo para chegar ao
fundo do mistério do salário, nada é mais fácil que entender a necessidade, a raison d’être desse
fenômeno”.104 Em conseqüência, as formas valor e salário, sobre as quais está centrada a crítica
102
A forma dos “economistas vulgares” considerarem as coisas deriva-se… do fato que é só a forma direta de
manifestação das relações que é refletida em seus cérebros e não suas conecções internas” (carta de Marx a Engels,
27 de junho de 1867, Marx-Engels Selected Correspondence (Moscow 1956)). “A economia vulgar, na verdade,
nada faz além de interpretar, sistematizar e defender de maneira doutrinária as concepções dos agentes da produção
burguesa que estão imersos nas relações de produção burguesas” (K. Marx, Capital, 3, p. 817). “Em oposição a
Spinoza, ele acredita que a ‘ignorância é uma razão suficiente’” (K. Marx, Capital, 1, p. 307).
103
M. Godelier, ‘System Structure and Contradiction in Capital’, Socialist Register (1967) reimpresso em R.
Blackburn (ed.) op. cit. p. 337
104
K. Marx, Capital, 1, p. 540. Ao tratar da transformação, na consciência, do valor da força de trabalho em valor do
trabalho, Marx diz que “essa forma fenomênica que torna invisível a relação real e, na verdade, exibe exatamente o
oposto daquela relação, forma a base de todas as noções jurídicas tanto dos trabalhadores quanto dos capitalistas, de
todas as mistificações do modo de produção capitalista, de todas as suas ilusões sobre a liberdade, de todos os
embustes apologéticos da economia vulgar. E, em seguida, que, enquanto “o valor do trabalho aparece direta e
47
de Marx à economia política, envolvem erros categoriais característicos e (no contexto da teoria
marxiana) imediatamente explicáveis.
Porém, uma vez se aceite que as formas fenomênicas são necessárias para o funcionamento
de uma economia capitalista (isto é, uma vez se rejeite uma inversão materialista tosca da noção
hegeliana da autonomia do ideal), pode-se definir o seguinte esquema, adaptado de um artigo de
John Mepham.105
B Formas Fenomênicas
D Práticas
espontaneamente como forma de pensamento corrente, o [valor da força de trabalho] tem de ser primeiro descoberto
pela ciência. A economia política clássica quase toca nas verdadeiras relações das coisas, sem, todavia, formulá-las
conscientemente. E ela não pode fazê-lo enquanto se fixa à sua pele burguesa’, ibid, p. 542.
105
J. Mepham, “The Theory of Ideology in Capital”, Radical Philosophy, 2 (1972), p. 18.
106
De acordo com L. Colletti, op. cit.
48
como natural, no feitishismo, ou a “interpelação” dos indivíduos como agentes livres em sua
constituição como sujeitos).107 Ao contrário, deve-se ao fato que, mediante o teorema da
necessidade das formas fenomênicas para a vida social, essas próprias formas são internamente
relacionadas (isto é, constituem condições necessárias para) às estruturas essenciais que as geram.
Na análise de Marx, a realidade social é marcada por tais contradições de Colletti.
Paradoxalmente, entretanto, longe de confirmar o diagnóstico de Colletti sobre “dois Marx”,108 é
precisamente a existência de um só – o cientista – que explica isso. (Pois, caso a crítica tivesse de
ser separável da análise, não haveria nenhum problema, nem contradições desse tipo). Ademais, é
importante ressaltar que tais contradições, que envolvem unicamente a necessária coexistência na
realidade social de um objeto e de uma sua apresentação categorialmente falsa, podem ser
consistentemente descritas, da mesma forma que, na verdade, podem sê-lo as contradições mais
óbvias de tipo lógico presentes no pensamento de todo estudante de matemática. O idealismo
transcendental de Colletti o leva a considerar equivocadamente o princípio da não-contradição,
concebido como um ideal regulativo para o pensamento, como um princípio constitutivo da
realidade pensável. Todavia, ali onde, como na vida social, o próprio pensamento é parte da
realidade social, decerto existirão contradições lógicas na realidade. E se o pensamento não
constitui (e, portanto, não exaure completamente) a realidade social, decerto existirão falsas
representações da realidade na realidade. E, dentre tais representações falsas, haverá algumas que
são necessárias para o que elas falsamente representam. No entanto, se essas próprias falsas
representações são geradas pelo que elas representam falsamente, poderá parecer que
simplesmente se moveu em círculos, que aqui se tem um simples caso da identidade dos opostos.
Mas, é claro, esse não é o caso. Pois, a cada momento na análise, conceito e objeto permanecem
distintos; e as relações envolvidas são causais, e não lógicas. Tal relação ainda é caracterizável
como uma relação de “contradição”, em virtude da falsa representação envolvida. Contudo,
porque um dos pólos da relação consiste em um objeto real (falsamente representado), a
contradição não é interna ao pensamento, como na dialética Platão e Hegel. E os pólos, porque
são necessários um para o outro, não se encontram em uma relação recíproca externa, puramente
contigente, como em um conflito newtoniano de forças ou uma realrepulgnanz kantiana.109 De
forma que, caso se decida, em deferência ao costume, mas em oposição à história, usar o termo
“dialético” para se referir a tais oposições, parece aconselhável prefaciá-lo com algum termo
como “marxiano” para indicar sua especificidade.
107
Ver, por exemplo, L. Althusser, “Ideology and Ideological State Apparatuses’, Lenin and Philosophy (London
1971), pp. 160 ff. Deve ser observado que esses erros categoriais são corrigíveis na análise, de modo que o paradoxo
de Markovic, a saber, que uma explicação da realidade social como reificada (etc.) tem de incoporar ela mesma
elementos reificados – ver M. Markovic, “The Problem of Reification and the Verstehen-Erklären Controversy”,
Acta Sociológica, 15 (1972) – não invalida o marxismo.
108
L. Colletti, op. cit., esp. pp 21-2.
109
Ver, ibid, p. 6.