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Nietzsche
São Paulo – 2005
No 18ISSN 1413-7755
Apoio:
Nietzsche: esboços de um
perspectivismo político 7
Miguel Angel Rossi
Fronteiras da História 37
Alan Sampaio
Povos e Pátrias: Wagner e a política 69
Henry Burnett
A redenção da temporalidade:
a trágica intuição do eterno retorno
em Nietzsche 93
Tereza Cristina B. Calomeni
A aparência embriagada 111
Carlos Vasquez
Nietzsche: esboços de um perspectivismo político
Nietzsche: esboços de um
perspectivismo político*
Miguel Angel Rossi **
*
Tradução de Luís Rubira.
**
Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).
objetividade dos valores não passa de uma criação: criada pela exis-
tência, mas esquecida enquanto tal. A vida humana é estabelecimen-
to de valores. Mas ela ignora-o quase sempre. O que a própria vida
estabeleceu afigura-se-lhe como exterior, como força constringente
da lei moral. Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca dian-
te de si a sua própria criação como um objeto estranho dotado de
todas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzsche
pretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico. (...)
A doutrina nietzschiana da subjetividade dos valores é de longe
superior ao relativismo barato que se fundamenta no arbítrio indivi-
dual. Poder-se-ia mesmo dizer que a sua doutrina da subjetividade
não nega a objetividade fenomênica dos valores, antes entende esta
como uma esquecida criação transcendental da existência. A trans-
valoração dos valores significa assim abolição da existência aliena-
da” (Fink 3, p. 144).
Compartilhamos com Eugen Fink a suposição de que a transva-
loração dos valores não implica a queda em um mero relativismo e
muito menos a inscrição em um grosseiro materialismo, como mui-
tas vezes se quis interpretar a Nietzsche, especificamente quando
se o compreendeu simplesmente desde a inversão platônica.
Nietzsche sabe que existir como vontade de potência e vida é
afirmar-se, valorar-se. O valor ou os valores a serviço da vida. Mesmo
assim, incorreríamos em erro se interpretássemos a vida a partir do
esquema da sobrevivência darwiniana. Se este fosse o caso, o homem
nietzschiano, o tipo ideal do “além-do-homem”, seria o primeiro dos
inadaptados. Assim, o conceito de vida vai além de um mero senti-
do biologista. Inclusive até poderia estabelecer-se uma semelhança
com o Hegel da dialética do senhor e do escravo, porquanto des-
prezar a vida no que possui de animal é alcançar o mundo da cultura.
Aprofundemo-nos, portanto, nesta discussão, pois ela possivel-
mente é o aporte mais significativo de Nietzsche para a posteridade.
de sentido – palavra não utilizada por ele mas que reflete seu pen-
samento. Dita hegemonia imprime uma direção que possibilita uma
certa unidade na dispersão e no caos. Certamente que esta estará
também sujeita à mudança e à contingência. Justamente, uma das
críticas à democracia moderna será a homogeneidade de sentidos
que, numa espécie de paradoxo, termina eliminando todo sentido.
Nietzsche e o socialismo
No referente a dito tópico surge uma primeira observação expli-
citada por Ernst Nolte, aquele que indubitavelmente nos brinda com
um excelente horizonte referencial: “Nietzsche não sabia demasia-
do sobre o socialismo, e é manifesto que nunca leu uma linha de
Marx; porém, apesar disso, não pode excluir-se que pensara no mar-
xismo quando se manifestava pelo socialismo, e que essas manifes-
tações permitiam reconhecer uma simpatia central” (Nolte 8, p. 77).
O mencionado comentador não esclarece em que se fundamenta tal
princípio de empatia entre ambos pensadores. Não obstante, talvez
possamos arriscar nossos próprios pressupostos.
Um primeiro ponto de aproximação, talvez, esteja dado pelas
demolidoras críticas que Marx fez à sociedade burguesa, sobretudo
no tocante a temas como o dinheiro, a usura, os bancos e empresá-
rios. Instâncias constitutivas do mundo moderno.
Outro ponto de encontro entre ambos pensadores é, sem dúvi-
da alguma, a crítica ao Estado. Inclusive Nietzsche assinala a ambi-
güidade na qual cai a tradição do socialismo pós-Marx pois, se por
um lado o ideário socialista ensina acerca do perigo de todas as
notas
1
Não obstante a possível empatia, existe, pelo menos, um
aspecto de distância abismal entre Nietzsche e Schmitt: o
jurista pode ser considerado um teórico da transcendência,
o que é próprio, por sua vez, de um pensador católico.
2
Tanto Weber quanto Nietzsche advertem sobre o perigo
que pressupõe uma queda no metafísico. Assim, se por um
lado dão conta da dessacralização do mundo moderno e
tudo o que isto implica, por outro lado, estão no lado opos-
to de um caráter nostálgico. Do que se trata é de consumar
– quando não assumir – o niilismo como destino.
referências bibliográficas
Fronteiras da História*
Alan Sampaio **
*
Parte deste ensaio foi apresentado na mesa-redonda “Nietzsche e a Histó-
ria: memória, consciência e sentido histórico”, em outubro de 2003, na Fun-
dação Clemente Mariani, Salvador, da qual participaram Monclar Valverde e
André Itaparica. Agradeço-lhes pelo acabamento do ensaio.
**
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal da Bahia.
1. Perspectivas da história
2. Bruma a-histórica
3. Horizonte
aprende a palavra “era” [“es war”], palavra-chave com a qual tem aces-
so à luta, dor e fastio do homem, para recordar-lhe que sua existência
vida leva esta à degradação, pode-se muito bem dizer que é o es-
quecimento, apartado das necessidades da existência de cada atua-
lidade, que amofina a vida, tornando-a enferma.
A memória que imagina o passado como passado é excessiva,
pois não incorpora a tradição. A doença da histórica não é fruto
propriamente nem do cuidado com as minúcias nem da criticida-
de, mas sim da vontade de verdade e justiça. Crendo ter atingi-
do um tal estado de clareza, o homem oitocentista mira-se como
epigonal. Ele carece da capacidade de absorver elementos estra-
nhos e transformá-los em integrantes de um único estilo. Falta-lhe,
em uma palavra, um horizonte. Eis a fatalidade do homem moder-
no: “A terra firme cede em incerteza para ti, tua vida já não mais
possui escoras, apenas algumas teias de aranha que se rasgam a
cada novo jeito de teu conhecimento” (HL/Co. Ext. II §9). Sentin-
do-se herdeiro de todo o passado, ele não é descendente de passa-
do algum. A memória não faz sentido se não se é herdeiro daquilo
que se rememora. O preconceito de ser epigonal mitiga o espírito
de fazer futuro.
4. Consciência histórica
mundo deverá encontrar seu fim. Tudo o mais que ainda acontece no
mundo só pode ser apresentado como membro desta estrutura; tudo o
que disto fica sendo conhecido, ou até interfere com a história dos ju-
deus, deve ser embutido na estrutura, como parte constitutiva do plano
divino... (idem, p. 13).
notas
1
José Bragança de Miranda, em seu artigo “Nietzsche e a
modernidade: considerações em torno da II Intempestiva”,
chega a uma interpretação próxima à que apresento, com
a diferença de uma conclusão (a qual assinalo em itálico)
mais própria aos tempos atuais que a Nietzsche: “Ligar a
memória ao homem e o esquecimento ao animal, numa
oposição que é logo desconstruída, implica dizer que tudo
se passa na linguagem, tudo tem de passar pela linguagem.
É ela que cria uma memória no homem, e com ela a du-
plicação da voz, que é simultaneamente uma divisão do
interior e do exterior” (s.d, p.193). Na verdade, nem tudo
passa pela linguagem, mas deve-se principalmente a ela a
duplicação do mundo. Se o conhecimento – excessivo – é
o responsável pela cisão entre exterior e interior, ele só o
é na medida em que confia na ilusão da linguagem. A teo-
ria converteu a linguagem em instrumento de formulações
conceituais da verdade, sem compreender seu caráter
inventivo. Com isso, deixou-se conduzir por seus pre-
conceitos.
2
O contraste entre estas duas potências é elucidado por Jesiel
Ferreira de Oliveira Filho: “Lembrar, como sabemos, é
repetir, é trazer outra vez algo à consciência, embora de
maneira variadamente recombinante. Esquecer, menos do
que ação oposta ao lembrar, é a operação conjugada de
selecionar o repetível, segregando dentre os acontecimen-
tos disseminados nas consciências e no tempo aqueles que
devem ficar ativos ou inativos. Aliás, pela etimologia latina
<*excadescere>, relacionada à ação de “podar”, o es-
quecer seria algo aproximável a um trabalho como o de
aparar os ramos em excesso, ou demasiado espinhosos,
dessa roseira rizomática que é a trama da memória. Metá-
foras à parte, é pela ação de memorar que produzimos
nossos campos de referência para a articulação temporal
da realidade” (Oliveira Filho 18, p. 22).
referências bibliográficas
Povos e Pátrias:
Wagner e a política
Henry Burnett*
*
Doutor em Filosofia/Unicamp.
(...) apelar a algum resíduo em nós! Oh!, um dia isso passará – mas
quem duvida que ainda antes terão fim a compreensão e o gosto por
Beethoven! – que foi apenas o acorde final de uma transição e ruptura
de estilo, e não, como Mozart, o acorde final de um grande e secular
gosto europeu. Beethoven é o evento intermediário entre uma alma ve-
lha e enfraquecida, que constantemente quebra, e uma alma futura e
mais que jovem, que continuamente sobrevém. (JGB/BM § 245).
Esse meridional, não por ascendência, mas por crença, caso sonhe
com o futuro da música, sonhará também com a sua libertação do Nor-
te, e terá no ouvido o prelúdio a uma música mais poderosa, mais pro-
funda, talvez mais misteriosa e malvada, a uma música supragermânica,
que à vista do voluptuoso mar azul e da mediterrânea claridade celeste
não se acanhe, não amareleça e empalideça com toda música alemã,
uma música supra-européia, que se afirme também face aos fulvos po-
entes do deserto, cuja alma se assemelhe à palma, e saiba vagar e sen-
tir-se em casa entre belos, grandes, solitários animais de rapina... Eu
poderia imaginar uma música em que a rara magia seria nada mais
saber de bem e mal, sobre a qual talvez alguma saudade marinheira,
sombras douradas e suaves fraquezas apenas passassem vez por outra:
uma arte que de longe percebesse, fugindo em sua direção, as cores de
um mundo moral declinante, já quase incompreensível, e fosse hospita-
leira e profunda o bastante para acolher esses refugiados tardios. – (JGB/
BM § 255).
notas
1
Die Meistersinger von Nürnberg, drama musical em 3 atos,
estreou em 1868 em Munique, Wagner teve a idéia desta
ópera enquanto compunha Lohengrin [estréia em Weimar,
1850], mas só a realizou 12 anos mais tarde. Para ele, Os
Mestres Cantores representava o equivalente do “drama
satírico” que, nas representações teatrais da Grécia antiga,
relaxava os espectadores após a trilogia trágica. Em sua
estréia, essa ópera foi dirigida por Hans von Bülow (de
quem Wagner desposou mais tarde a mulher, Cosima). A
crítica julgou a obra “feia e amusical”, mas o grande públi-
co fez dela um sucesso. Hoje, Os Mestres Cantores tornou-
se uma espécie de ópera nacional bávara; Tristão e Isolda
tem uma história que merece ser lembrada: em 1848,
Wagner, crivado de dívidas, teve que deixar a Alemanha.
Refugiou-se na Suíça. Em Zurique, ligou-se a um rico ne-
gociante, Otto Wesendonk, que o ajudou a sobreviver. Ins-
pirado pelo amor impossível e ardente que sentia por
Mathilde, a mulher de seu protetor, Wagner, que havia
iniciado O Anel dos Nibelungos [tetralogia estreada em
Bayreuth, 1876], interrompeu-a para compor Tristão e
Isolda, que dedicou à sua musa. Essa ópera foi criticada
em sua estréia; hoje, é considerada um ponto alto do re-
pertório lírico. (extraído de Guide de l’Ópera. Edição e co-
mentários Jeanne Suhamy. Marabout Belgique, 1992.
Edição brasileira publicada pela L&PM, na coleção Pocket,
em 1997, com tradução de Paulo Neves). Ver também
Compêndio Wagner, com comentários aprofundados.
2
WAGNER, Richard: Die Meistersinger von Nürnberg. Em:
Richard Wagner. Ouvertüren und Orchesterszenen. Germany.
Decca (A Universal Music Company), 1972, Executado
pela “Chicago Symphony Orquestra”.
3
Nietzsche se refere assim a Bismarck, simulando ironicamen-
te a conversa de dois patriotas alemães, onde um deles
afirma: “Esse entende e pensa de filosofia tão pouco quan-
to um camponês ou estudante de corporação” (JGB/BM §
241). O tradutor espanhol, Andrés Sánchez Pascual, deixa
registrada essa estratégia de Nietzsche; Paulo César de
Souza, por sua vez, ressalta que além da preocupação com
a censura prussiana, Nietzsche pretendia que o argumento
tivesse uma abrangência mais ampla, não apenas política.
4
Em outro livro, sob um outro contexto, Nietzsche recupera
esse vínculo entre Wagner e Bismarck, exatamente na III
dissertação da Genealogia da moral, um ano depois, desta
feita mostrando que a negação da sensualidade por Wagner
era resultado de uma característica alemã que se generali-
zava; mais adiante comentarei esse que é um dos momen-
tos mais importantes da fase madura sobre Wagner.
5
Was ist Deutsch? é o nome do título de um artigo de Wagner,
publicado nos Bayreuther Blättter em fevereiro de 1878.
6
Tais idéias aparecem no Ecce Homo: “o espírito alemão é
uma indigestão, de nada dá conta” (EH/EH, Por que sou
tão inteligente, §1); sobre a questão da profundidade: “o
que na Alemanha se chama ‘profundo’ é precisamente essa
impureza de instinto consigo mesmo (...). Não poderia eu
querer propor a palavra “alemão” como moeda internacio-
nal para esta depravação psicológica? (...) Produziram os
alemães um livro sequer que tivesse profundidade?” (EH/
EH, “O caso Wagner”, § 3).
7
Carl Maria von Weber (1786-1826), compositor alemão, o
mais importante do pré-romantismo alemão e iniciador com
suas obras dos temas capitais da ópera romântica:
popularismo, proximidade da natureza, poderes supra-sen-
síveis, medievalismo e lenda (fonte: Andrés Sánchez
Pascual).
8
H. Marschner (1795-1861), compositor de óperas do ro-
mantismo alemão. Das 14 compostas por ele, as mais cele-
bradas por ele foram as citadas por Nietzsche: O Vampiro
(de 1828) e Hans Heiling (de 1833) (fonte: Andrés Sánchez
Pascual).
9
Felix Mendelssohn (1809-1847). Compositor, pianista or-
ganista e regente alemão. Após um primeiro sucesso extra-
ordinário, como criança prodígio, acabou assumindo car-
gos de regente da Orquestra da Gewandhaus de Leipzig
(1835-47) e como primeiro diretor do recém-inaugurado
conservatório daquela cidade (a partir de 1843). Um pu-
nhado de óperas, incluindo a inacabada Loreley (1847),
dão testemunho do esforço de Mendelssohn durante toda
uma vida, para dominar esse meio. Mas é basicamente por
suas obras instrumentais e corais que ele é hoje lembrado.
A visão popular de que as obras de Mendelssohn raramen-
te emergem da superficialidade sofreu uma reavaliação em
anos recentes. O preconceito de Wagner contra ele, em
parte de origem anti-semita, não o impediu de ecoar
Mendelssohn em suas obras de juventude. (fonte: Com-
pêndio Wagner).
10
Obra estopim do romantismo, Os sofrimentos do jovem
Werther narra, por meio de uma troca de cartas, uma pai-
xão violenta, fatal e impossível de um jovem por uma bela
dama.
11
A esse respeito cf. Müller-Lauter, Wolfgang: A doutrina
da vontade de poder em Nietzsche (Tradução Oswaldo
Giacoia Junior). São Paulo: Annablume, 1997, p. 59ss.,
sobre as distinções entre a interpretação de Karl Löwith e
a de Heidegger sobre a questão dos póstumos.
12
Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho (Nietzsche 8,
p. 298).
referências bibliográficas
A redenção da temporalidade:
a trágica intuição do eterno
retorno em Nietzsche
Tereza Cristina B. Calomeni*
*
Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Filoso-
fia pela PUC-RJ.
II
III
uma indagação: por que Nietzsche supõe que o eterno retorno seria
capaz de provocar, não uma revolta ainda maior, mas, ao contrário,
a aceitação e a afirmação da existência? Supõe Nietzsche que a idéia
do eterno retorno é suficientemente forte para modificar a vontade
revoltada a ponto de fazê-la libertar-se do peso do ressentimento e
da vingança? Se o eterno retorno não é uma afirmação sobre a natu-
reza e a realidade do tempo, Nietzsche estaria afirmando o eterno
retorno como objeto de crença? Bastaria crer na hipótese de que
todas as coisas retornam sem cessar para a promoção da reversão
da vontade ressentida? Nietzsche estaria dizendo que o homem deve
viver como se fosse verdadeiro o eterno retorno? Justifica-se assim a
forma condicional exposta no aforismo de anúncio do eterno retorno?
Vem à cena o mais grave problema que enfrenta o leitor de
Nietzsche diante da postulação do eterno retorno: só o homem que
celebra a existência pode querer de volta o que passou; por outro
lado, só o pensamento de que tudo retorna pode ensinar o homem
a querer de volta os momentos de sua existência e levá-lo a zelar
pelos instantes performadores de sua existência; só pode querer o
eterno retorno quem já mantém com a vida uma relação estética e
cuida dos momentos da existência como obra de arte; ao mesmo
tempo, é a aceitação do eterno retorno o que induz o homem a afir-
mar a existência. Como escapar ao impasse? Estaria aí justificado o
silêncio posterior ao Zaratustra?
Longe de admitir necessária a resolução dos problemas suscita-
dos pela leitura do pensamento nietzschiano, pode-se concluir pelo
caráter experimental do eterno retorno – por sua natureza experi-
mental, o eterno retorno talvez possa assumir funções diversas: para
os fracos pode soar como exortação ética capaz de promover a con-
versão, a travessia; para os fortes, como uma confirmação de seu
modo trágico de viver a existência e, portanto, como reafirmação
do caráter estético de sua relação com a vida. Solução insuficiente?
Expediente de salvação de um pensamento controvertido? Ou exi-
referências bibliográficas
A aparência embriagada*
Carlos Vasquez **
Resumo: O autor seleciona quatro temas que reúnem, segundo sua opi-
nião, a interpretação nietzschiana da arte e a posição central que esta idéia
ocupa em sua filosofia: a embriaguez, a tensão força–forma, as noções
clássico e romântico e o trágico.
Palavras–chave: aparência – arte – forma – trágico
Embriaguez
*
Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.
**
Professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Antioquia (Medellín /
Colômbia).
Força-Forma
há vida para ser afirmada ali. Nesse caso, o conteúdo (que não exis-
te) não se converte em forma (que não chega a lograr).
Que o único conteúdo seja o que os não artistas chamam forma
aponta para a condição mesma da arte entendida como forma su-
prema da vontade de potência, que não é senão vontade dionisíaca
de forma. E que como tal reflete a condição mesma da vida: busca
da forma, multiplicação e plenitude da forma.
Para a arte não há senão forma. O impulso que encarna é aque-
le da forma. Ali se joga tudo. O que ocorre é que a distinção de
forma e conteúdo deixa de ser útil. Uma espécie de homem, o artis-
ta que supera o niilismo, não se basta com essa distinção, solidária
como é das dualidades próprias do mundo verdadeiro: verdade –
erro, realidade – ilusão, aparência – essência, acidente – substân-
cia, sujeito – objeto, etc.
Uma vez destituído aquele mundo, resta somente um mundo, e
esse mundo é pura forma, vontade dionisíaca de aparência, ilusão,
conflito, contradição. Esse mundo se oferece aos sentidos, que, por
sua vez, agregam sua própria vontade. A vontade criadora do artis-
ta, uma vez desprezado o particular, “põe seu gozo e sua força no
compreender o típico”. Ali onde há plenitude domina a vontade de
medida (XII, 10 (33)). Esse olhar despreza o “demasiado vivo”,
signo de uma necessidade de elementos narcóticos.
O artista põe em relevo o simples, o caso geral, aquela liberda-
de sob a lei. Permanece somente o fixo, o poderoso, o sólido. O
repouso em que a força descansa na visão da criatura perfeita. É aí
que a obra reflete um estado de sensualidade estuante.
O artista ama os meios que sabem captar o estado de embria-
guez: a finura da forma, a claridade do contorno, a simplicidade e
precisão dos traços. Essa vontade de forma perfeita que não faz
parte dos estados em que aquela está ausente (XII, 14 (84)).
Surpreende que Vattimo não saiba reconhecer nessa vontade
de forma um signo de vida estuante. Que desapareça ante seus olhos
o jugo que impõe a embriaguez que não sabe afirmar-se senão na-
quilo que lhe resiste. E que termine pensando nela como uma mera
força desestruturante.
Quem não sabe reconhecer em Nietzsche a tensão entre força e
forma não tem acesso à particularidade de sua estética. Termina
preso na absolutização de um dos termos. O que não passa de uma
abstração. Assim como termina reduzindo o outro, neste caso a afir-
mação da forma, a uma leitura unilateral que lhe faz pensar na arte
subsidiária de uma razão niveladora.
A forma em que Nietzsche está pensando é a síntese da tensão
de forças que a distingue. Resulta da embriaguez, tempera-a em
uma forma que a incita. Como tal vontade, a arte transfigura, afir-
ma, imprime o selo de sua força doadora. O fazer artístico gasta
forma, expressa a vida como luxo e vontade de potência. O gasto de
forma glorifica e diviniza a condição da figura perfeita.
Trata-se da forma bela, a qual mede o desmesurado de acordo
com a lei das proporções. Este artista o é no domínio de seus meios.
Não necessita imitar outras artes, sair de sua esfera (XII, 10 (24)).
Não se dá o luxo de ser pintor enquanto poeta. Menos ainda teórico
enquanto artista. Mantém-se dentro das leis do material. Fiel à agu-
deza dos sentidos que aplica.
Nada mais distante do artista dionisíaco do que o erudito, o
homem culto que está cheio de idéias gerais, e, ao mesmo tempo,
muito pouco dotado para as exigências de seu ofício. O artista
dionisíaco é um mestre apolíneo. Para que na arte termine falando
Apolo a língua de Dioniso, este terá que dominar a língua daquele.
Nietzsche dá esta lição, em geral tão pouco assimilada, aos ar-
tistas: amem a forma pelo que é, não pelo que expressa (idem). O
único conteúdo é a forma: pura ética de artistas. Tratem a forma
como se fosse o único conteúdo. O restante virá por conseqüência.
Dá o que pensar que um artista pense tanto no que tenha que
expressar. No geral, isso leva a um descuido fatal no tratamento do
mundo reclama. Para isso, total amor pelos sentidos, que sabe apro-
ximar sentidos e espírito. Que se atreve a oferecer o melhor de seu
espírito aos sentidos devido a sua finura, sua força, sua perfeição
embriagada (XIII, 23 (2)).
A mania pela forma converte-se, assim, na mais refinada luci-
dez dionisíaca. Aquela que permite à arte evitar que pereçamos pela
verdade (XII, 10 (40)). Essa mania plasma-se em “beleza”. Algo
que, segundo Nietzsche, “está acima de todas as hierarquias, por-
que nela se superam os contrastes, a mais alta forma de potência
que sabe reinar sobre coisas contrapostas” (XII, 2 (130)). Potência
que o artista acha sem esforçar-se. Como manifestação de sua pró-
pria exuberância. A beleza não resulta de uma busca. E, parado-
xalmente, não se dá se ela não for buscada. O caráter obediente da
beleza “diviniza a força de vontade do artista” (idem).
Romântico – Clássico
O trágico
veja como beleza aquilo ante o qual outro afasta o olhar. Trata-se
de óptica. Toda óptica se forma como síntese de forças. A idéia de
“serenidade” é também ambivalente. Permite a Nietzsche afirmar
um estado de repouso conquistado, uma contemplação como vitó-
ria, diferente daquela serenidade acomodadora que certos homens
esperam da arte.
O sentimiento de potência afirma beleza. A beleza aqui aludida
resulta da harmonização de tendências contrapostas. A vontade de
forma brota de uma vida transbordante. Alguém diz “feio” onde
alguém afirma beleza.
Como se situa alguém ante ao risco e a aniquilação? Como as-
sume o sem sentido e o terrível? Está preparado para ir mais longe,
justificar, transfigurar? É capaz de concluir a partir disso o harmô-
nico e o solar?
A predileção pelo terrível e abominável é signo de força. Re-
correr ao decorativo e gracioso indica debilidade. “O gosto pela tra-
gédia distingue as épocas e os caráteres fortes... São os espíritos
heróicos os que afirmam a si mesmos na crueldade trágica: são su-
ficientemente duros para sentir o sofrimento como prazer” (XII,
10[168]).
A vida minguada vê-se impelida a traduzir o trágico. É o que,
afirma Nietzsche, se dá na interpretação aristotélica. Mais ainda na
interpretação moderna, que se vê obrigada a transladar essa arte
para fora de sua esfera. Manter-se na esfera do estético é o mais
difícil. Supõe o talento para afirmar o mundo como fenômeno
estético.
Toda apreciação externa à arte provém da incapacidade de in-
terpretar o mundo como obra de arte. Isso supõe uma perda de
mundo. O império de uma interpretação evasiva. O qual está patente
na forma habitual de ver o trágico: triunfo da ordem moral, busca
de soluções finais, convite à resignação ante uma realidade sem
Abstract: The author selects four themes that in his opinion embrace
Nietzsche’s interpretation of art and its central role in his philosophy:
drunkenness, the tension between force and form, the notions of classic
and romantic, and the tragic.
Keywords: appearance – art – form – tragic
notas
1
N.T.: Na tradução que fizemos, perde-se o forte significado
marcado pelo autor: a palavra original é “allendistas”, sen-
do derivada de “allende”, advérbio que significa “do outro
lado”, “do lado de lá”. A palavra “transcendente” tem tam-
bém as acepções, em português, de superior e sublime.
Tais sentidos não estão presentes no termo utilizado pelo
autor.
referências bibliográficas
Edições:
Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas
por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-
dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./
DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,
Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.
Forma de citação:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-
rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/
CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará o aforismo.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume
e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.
Contents
Nietzsche:
outlines of a politic perspectivism 7
Miguel Angel Rossi
Boundaries of History 37
Alan Sampaio
Peoples and fatherlands:
Wagner and politics 69
Henry Burnett
The redemption of temporality,
the tragic intuition of the
eternal recurrence in Nietzsche 93
Tereza Cristina B. Calomeni
The drunken appearance 111
Carlos Vasquez
NOTES TO CONTRIBUTORS