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cadernos

Nietzsche
São Paulo – 2005

No 18ISSN 1413-7755

Os artigos publicados nos


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Nietzsche
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Nietzsche
no 18 – São Paulo – 2005
ISSN 1413-7755

Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche


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Nietzsche – persegue o objetivo, há muito acalenta-
do, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamen-
to de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acer-
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1996. Its aim is to gather Brazilian researchers on
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Scarlett Marton
Sumário

Nietzsche: esboços de um
perspectivismo político 7
Miguel Angel Rossi
Fronteiras da História 37
Alan Sampaio
Povos e Pátrias: Wagner e a política 69
Henry Burnett
A redenção da temporalidade:
a trágica intuição do eterno retorno
em Nietzsche 93
Tereza Cristina B. Calomeni
A aparência embriagada 111
Carlos Vasquez
Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

Nietzsche: esboços de um
perspectivismo político*
Miguel Angel Rossi **

Resumo: O objetivo de nosso trabalho orienta-se em relação a dois eixos


temáticos. O primeiro deles gira em torno da crítica encarada por Nietzsche
com respeito ao Historicismo e, em contrapartida, a abertura a uma visão
da História que acentua as noções de horizonte de sentido e hermenêutica.
Disto provém a relevância do perspectivismo nietzschiano. O segundo eixo
focaliza a crítica de Nietzsche ao Estado moderno e à democracia, aproxi-
mando-nos daquilo que, em nossos próprios termos, podemos denominar
como a emergência do “niilismo político”. No que se refere a este ponto
em particular, nos concentraremos fundamentalmente em sua obra Hu-
mano, demasiado humano, sobretudo por entendermos que na mesma
encontram-se concentradas as chaves de seu pensamento político.
Palavras-chave: perspectivismo – modernidade – política – estado –
niilismo político.

Seria realmente insustentável, e ao mesmo tempo de uma gran-


de injustiça intelectual, penetrar a fundo nas alvoradas do pensamen-
to do século XXI sem nos encontrarmos previamente com a figura
de Nietzsche; relevância legitimada não somente pelo fato de que o
filósofo impõe caminhos pelos quais transitam as principais corren-
tes contemporâneas, onde se encontram pensadores da estatura de

*
Tradução de Luís Rubira.
**
Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

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Rossi, M. A.

Heidegger e Foucault, mas, e fundamentalmente, porque suas pró-


prias teorizações põem em questão – quando não em xeque – os
principais pressupostos da Modernidade.
De fato, suas Extemporâneas revelam sua própria intencionali-
dade. Um pensamento extemporâneo que não somente pretende
ser oposto a sua época, mas influir nela – numa espécie de militância
– para benefício de uma época posterior. Assim também se enten-
de que o filósofo proclame em O anticristo que se deve ser anterior
ou posterior à modernidade, tanto no que diz respeito a uma pro-
funda repulsão do ideário da razão ilustrada do século XVIII quanto
à oposição a um clima triunfalista, como foi aquele que caracterizou
seu próprio século. A este respeito, Forster pontua: “Frente ao sé-
culo XIX carregado de certezas utópicas: racionalistas, revolucioná-
rias, nacionalistas, tecno-industriais, científicas, Nietzsche diz ‘Não,
abomino de todo os crentes’; é um refutador de ideais” (Casullo/
Forster 1, p. 350).
Um século-chave em relação ao surgimento de múltiplas e con-
trapostas lógicas políticas. Por conseguinte, não podemos deixar de
mencionar a extraordinária originalidade de Nietzsche, especialmen-
te no que se refere à desconstrução da antinomia conservadorismo,
expressado por certa linha romântica, versus modernismo. Neste sen-
tido, as apreciações de Dannhauser são mais que sugestivas: “A
política de esquerda é, para Nietzsche, sintoma de crise total e agra-
vamento dela, motivo pelo qual, obviamente, não é uma solução.
Que dizer do conservadorismo ou da política de direita? Nietzsche,
por vários motivos, nega a possibilidade de uma solução conserva-
dora, criticando, por sua vez, a forma específica que adotou o conser-
vadorismo alemão na época de Bismarck, e as suposições gerais do
conservadorismo” (Strauss/Cropsey 9, p. 790).
Vamos, portanto, à explicação de algumas das principais razões,
seguindo as sendas de Dannhauser.

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

Em primeiro lugar, Nietzsche critica as concessões do con-


servadorismo ao fenômeno da democracia moderna, sobretudo no
que diz respeito ao sufrágio universal, conjuntamente com uma vi-
são que faz do rei uma mera figura decorativa atrás da primazia do
parlamentarismo.
Em segundo lugar, o conservadorismo abraça fervorosamente
os ideais do nacionalismo, inerente, por outro lado, à cunhagem da
revolução francesa. Por oposição, não são poucas as vezes em que
Nietzsche insiste na identidade européia, opondo-se, quando não
desprezando, a todo tipo de nacionalismo. A esse respeito, é im-
portante demarcar como o filósofo percebe o fenômeno do anti-semi-
tismo, o qual liga de modo causal com o auge do nacionalismo,
questão por demais silenciada pelo ideário nazista: “Diga-se, de
passagem, que o problema dos judeus existe apenas no interior dos
Estados nacionais, na medida em que neles a sua energia e superi-
or inteligência, o seu capital de espírito e de vontade, acumulado
de geração em geração em prolongada escola de sofrimento, devem
preponderar numa escala que desperta inveja e ódio, de modo que
em quase todas as nações de hoje – e tanto mais quanto mais nacio-
nalista é a pose que adotam – aumenta a grosseria literária de con-
duzir os judeus ao matadouro, como bodes expiatórios de todos os
males públicos e particulares” (MAI/HHI § 475).
Da mesma forma, é também relevante destacar que o filósofo
atribui, nesta etapa de seu pensamento, um papel positivo à Ilustra-
ção, especialmente no tocante ao espírito científico. De fato,
“Nietzsche acentua o papel decisivo do judaísmo – em oposição ao
cristianismo – no que diz respeito a ocidentalizar o Ocidente” (Mares-
ca 4, p. 4).
Por último, e sem dúvida alguma, sua principal crítica se ba-
seia no fato de que Nietzsche entende que o conservadorismo é in-
separável do cristianismo. Daí que, e essa é nossa consideração
pessoal, nosso filósofo subsuma o conservadorismo ao interior da

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Rossi, M. A.

lógica do niilismo decadente, questão que trataremos nas páginas


seguintes.
Concluamos, então, com uma citação nietzschiana, que nos lança
uma claridade magistral no que se refere a tal tema: “Dito ao ouvi-
do dos conservadores. – O que antes não se sabia, o que hoje se
sabe, se poderia saber – nenhuma involução, nenhuma volta atrás,
em qualquer sentido ou grau, é possível. (...) há ainda hoje partidos
que sonham como alvo a marcha de caranguejo de todas as coisas.
Mas ninguém está livre para ser caranguejo. De nada ajuda: é ne-
cessário ir para diante, quer dizer, avançar passo a passo na déca-
dence (– eis minha definição do ‘progresso’ moderno...)” (GD/CI,
“Incursões de um extemporâneo”, § 43).
A partir destas considerações preliminares, enunciemos, então,
o objetivo de nosso trabalho, o qual se orienta em relação a dois
eixos temáticos.
1) A crítica de Nietzsche ao Historicismo e, como contrapartida,
a abertura a uma visão da História que acentua as noções de sentido
e hermenêutica. Em dito tópico teria de ser incluído a diatribe do
filósofo com relação à dialética hegeliana. Não obstante a relevân-
cia de tal temática, somente nos deteremos em um aspecto particu-
lar, pois, do contrário, tal tópico mereceria um tratamento exclusi-
vo, digno de um novo trabalho.
Nossa leitura colocará ênfase na estrita vinculação entre as no-
ções de “hermenêutica” e “vontade de potência” e, a partir deste
precioso entrecruzamento, nos abriremos passo a passo para a di-
mensão do perspectivismo nietzschiano, o qual explicita que toda
interpretação nunca pode ser alheia à vontade de potência; não sem
antes compreender esta como uma conjunção de forças dinâmicas
através das quais se constituem e desconstroem possíveis centros.
2) A crítica de Nietzsche ao Estado moderno e à democracia,
aproximando-nos daquilo que, em nossos próprios termos, pode-
mos denominar como a emergência do “niilismo político”.

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

No que se refere a este ponto em particular, nos concentrare-


mos fundamentalmente em sua obra Humano, demasiado humano,
sobretudo por entender que na mesma se encontram concentradas
as chaves de seu pensamento político, o qual o filósofo irá desdo-
brar ao longo de toda sua produção teórica.
Antes de acercarmo-nos de nossa tarefa, acreditamos necessá-
rio pontuar que o sentido deste escrito gira em torno da expansão
da lógica do pensamento do filósofo e, através deste expediente,
vislumbra tangencialmente – levando em consideração o reconhe-
cimento explícito por parte do mundo acadêmico – sua enorme in-
fluência para o presente.
No que diz respeito à dialética, consideramos que a intenção de
Nietzsche está no pólo oposto da realização de uma abordagem
exegética e minuciosa da mesma, e da realização de uma análise
exaustiva da obra de Marx. De fato, não são poucos os comentadores
que sustentam que Nietzsche sabia muito pouco sobre o autor de O
Capital. Não obstante, há de se enfatizar que tanto Heidegger quanto
Foucault e a vertente pós-moderna – além de suas abismais diferen-
ças – foram unívocas em pensar aquela a partir da visão nietzschia-
na, e é justamente esta cunhagem que queremos destacar, especifi-
camente o problema do determinismo.
Portanto, o pensador se concentra nas implicações teórico-prá-
ticas que tais cosmovisões tiveram para o homem europeu. Recorde-
mos que sua época é o reflexo do surgimento de grandes movimen-
tos de massa incursionando pela vida pública. Daí sua sensibilidade
para analisar o socialismo, a democracia, a opinião pública concen-
trada nos jornais, a “partidocracia”: todos fenômenos tipicamente
contemporâneos.

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Rossi, M. A.

1. Nietzsche: uma filosofia do perspectivismo

Nietzsche reage energicamente contra o que, em seus próprios


termos, pode denominar-se “a febre histórica que padeceu o século
XIX”. Vários são os pontos de sua diatribe.
Um deles radica em sua aguda crítica no que diz respeito a per-
ceber o processo histórico a partir do desenvolvimento de uma
“teleologia” implícita. Outro, na desconstrução do pressuposto mo-
derno que percebe o processo histórico como a odisséia da razão,
especificamente em referência direta aos filósofos da modernidade,
especialmente Hegel.
Estreitamente vinculada às críticas anteriores, haveria de se
somar a problemática do determinismo e da ação, que conduz ao
determinismo histórico. A esse respeito, é possível observar uma
espécie de profunda empatia com o pensamento de Carl Schmitt1,
pois, ainda que o jurista alemão não tenha trabalhado especifica-
mente os textos nietzschianos, o certo é que ambos pensadores res-
saltaram a primazia da ação como uma espécie de corte transversal
ao determinismo do materialismo histórico.
Tal como nos referimos anteriormente, simplificaremos a críti-
ca de Nietzsche ao primado da dialética, recortando-a somente no
que diz respeito ao problema do determinismo histórico.
Um primeiro ponto de partida – e retomando o dito há pouco –
poderia consistir na crítica que Nietzsche realiza ao racionalismo
moderno, da qual o registro filosófico moderno cobra um lugar pri-
vilegiado. Assim, aduz o filósofo: “Se todo sucedido contém em si
uma necessidade racional, se todo acontecimento é o triunfo do ló-
gico ou da ‘Idéia’ – então, depressa, todos de joelhos, e percorrei
ajoelhados toda a escada dos ‘sucedidos’!” (HL/Co.Ext. II § 8).
Nietzsche coloca em questão uma das idéias-chave do mundo
moderno, certamente hegemônica, tanto no século XVIII como no
século XIX. Trata-se da idéia de evolução ou progresso, categoria

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

que, pelo olhar do filósofo, encontra sua expressão mais acabada


na dialética. Assim, a noção de conservação-superação, nota fun-
damental de todo desenvolvimento dialético, conduz a perceber –
enfatiza Nietzsche – a última etapa do processo histórico como a
superação, no que diz respeito à evolução do Espírito ou Razão,
das etapas históricas anteriores. Simultaneamente, com tal afirma-
ção, é dado deduzir a desconstrução nietzschiana do princípio de
causalidade aplicado ao terreno da História para reivindicar, em
contraposição, o terreno do arbítrio e do acaso.
Outro dos problemas que acarreta a dialética hegeliana, ligado
também ao determinismo histórico, radica na problemática da ação:
por conseguinte, Nietzsche se revela contra um sentido histórico pro-
videncial e teleológico que, inspirado em uma lógica da necessidade,
consagra o domínio dos fatos excluindo toda possível decisão singu-
lar. Contrariando tal ótica, o filósofo argumenta: “ – por toda parte
ele [o homem] é virtuoso por levantar-se contra aquela cega potência
dos fatos, contra a tirania do efetivo, e por submeter-se a leis que
não são as leis daquelas flutuações históricas.” (HL/Co.Ext. II § 8).
Nietzsche coloca em xeque a própria categoria de objetividade
– o que em seus próprios termos denomina “uma filosofia do mar-
telo” –, conceito fortemente vinculado à problemática da verdade.
É a partir desta significativa asseveração que o filósofo possibilita a
abertura ao plano da hermenêutica e da subjetividade para insistir
na impossibilidade de verdades objetivas e absolutas, para não di-
zer também “a pura verdade”. Daí em diante, o filósofo incursionará
em uma cosmovisão que faz da verdade um erro. Não obstante, um
erro mais que necessário, não somente pela “necessidade” das fic-
ções, sobretudo daquelas que contribuem para a manutenção das
pulsões vitais, mas, e essencialmente, pela produção de múltiplos e
inacabados sentidos constitutivos do próprio fluir do mundo da vida.
A este respeito, é muitíssimo interessante a observação feita pelo
grande estudioso Fink: “Para Nietzsche, porém, precisamente a dita

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Rossi, M. A.

objetividade dos valores não passa de uma criação: criada pela exis-
tência, mas esquecida enquanto tal. A vida humana é estabelecimen-
to de valores. Mas ela ignora-o quase sempre. O que a própria vida
estabeleceu afigura-se-lhe como exterior, como força constringente
da lei moral. Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca dian-
te de si a sua própria criação como um objeto estranho dotado de
todas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzsche
pretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico. (...)
A doutrina nietzschiana da subjetividade dos valores é de longe
superior ao relativismo barato que se fundamenta no arbítrio indivi-
dual. Poder-se-ia mesmo dizer que a sua doutrina da subjetividade
não nega a objetividade fenomênica dos valores, antes entende esta
como uma esquecida criação transcendental da existência. A trans-
valoração dos valores significa assim abolição da existência aliena-
da” (Fink 3, p. 144).
Compartilhamos com Eugen Fink a suposição de que a transva-
loração dos valores não implica a queda em um mero relativismo e
muito menos a inscrição em um grosseiro materialismo, como mui-
tas vezes se quis interpretar a Nietzsche, especificamente quando
se o compreendeu simplesmente desde a inversão platônica.
Nietzsche sabe que existir como vontade de potência e vida é
afirmar-se, valorar-se. O valor ou os valores a serviço da vida. Mesmo
assim, incorreríamos em erro se interpretássemos a vida a partir do
esquema da sobrevivência darwiniana. Se este fosse o caso, o homem
nietzschiano, o tipo ideal do “além-do-homem”, seria o primeiro dos
inadaptados. Assim, o conceito de vida vai além de um mero senti-
do biologista. Inclusive até poderia estabelecer-se uma semelhança
com o Hegel da dialética do senhor e do escravo, porquanto des-
prezar a vida no que possui de animal é alcançar o mundo da cultura.
Aprofundemo-nos, portanto, nesta discussão, pois ela possivel-
mente é o aporte mais significativo de Nietzsche para a posteridade.

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

Com razão, costuma-se dizer que Nietzsche é, por excelência, o


pensador do niilismo. Inclusive não são poucos os estudiosos que
sustentam que dita categoria articula a totalidade de seu pensamen-
to. De fato, tal problemática está presente, tanto de forma implícita
como tardiamente explicita, em sua produção teórica.
A primeira questão que emerge gira em torno ao papel estrutu-
ral – com o perdão da palavra – que Nietzsche outorga à dita no-
ção, essencialmente no que diz respeito à desconstrução da metafí-
sica e, por conseguinte, à problemática da verdade, sobretudo, e
como referimos anteriormente, entendida em termos de “absoluti-
zação e objetividade”. Em conseqüência, o pensador se pergunta
pelas possíveis respostas que tanto em nível individual como social
podem oferecer-se, mas sem jamais se iludir, uma vez que a lógica
niilista atravessa o destino do Ocidente, independentemente do grau
de conscientização que se tenha ou não de dita questão, que, por
outro lado, constitui para o filósofo o grande problema existencial
do homem europeu.
Em geral se costuma traduzir o problema mencionado pela per-
da de “sentido”, obviamente em maiúscula; e, extremado, sua ló-
gica conduz à antinomia entre conhecimento, interpretado em ter-
mos de sacralidade, e vida. Assim, Nietzsche nos induz a pensar
que quando desaparece a sacralidade aparece a vida. Talvez seja
por esta mesma razão que Zaratustra é o mais anti-religioso e religio-
so de todos os homens, curiosamente um “profeta ateu”.
Concentremo-nos, portanto, nos três tipos de niilismo aos quais
Nietzsche faz referência e, a partir de dita tipologia, arrisquemos
nossa própria interpretação, que se radica em compreender deter-
minadas lógicas políticas segundo o posicionamento que se tenha
em relação ao caos e à contingência. Por conseguinte, não é casual
– como fizemos referência anteriormente – que Nietzsche analise o
tema da eclosão das massas na vida pública – desde já com sentido

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Rossi, M. A.

negativo – conjuntamente com a eclosão do socialismo e da demo-


cracia moderna, e o faça em termos de decadência.
O primeiro tipo de niilismo se compreende como “niilismo de-
cadente” enquanto confrontação com o “nada” e retorno a um fun-
damento mais absoluto. Em tal sentido, a lógica do Nazismo, como
todo tipo de fundamentalismo, poderia servir de rótulo para dita
variante.
Mesmo assim, há de se aclarar que para nosso pensador a lógi-
ca do niilismo se preanuncia desde um começo. Mais precisamen-
te, a partir da figura de Sócrates, consagrando-se definitivamente
com o aparecimento do cristianismo. Cumpre dizer que não somen-
te a metafísica tradicional como negação do mundo e primazia do
Ser, mas também, e em conexão com esta, a via moral, entranha o
grande problema do filósofo. Um problema teórico, mas também
uma questão essencialmente prática. Pois por niilismo Nietzsche
entende toda negação do vital. Decorre disto que Sócrates, com a
invenção do conceito ou logos seja o primeiro em distanciar-nos da
plenitude da vida.
Precisando os termos a partir da confrontação com o caos, a
contingência e o constante fluir, por outro lado, são as instâncias a
partir das quais podemos gerar ou construir sentidos provisórios
(niilismo futuro); por oposição, o niilismo decadente intenta retornar
a um fundamento ainda mais absoluto, uma volta a uma origem
que esteja a salvo de toda possível contingência.
Ante a derrubada do fundamento metafísico, “a morte de Deus”,
enquanto possibilidade de garantir tanto o plano do saber como da
moral a partir de uma perspectiva absoluta, ante a morte do sujeito
e o esgotamento da representação, nada melhor que a legitimação
do terreno do “imediato”, próprio de uma filosofia que aspira a des-
construir toda a possível normatividade. Contrariamente, Nietzsche
não acredita na nulidade ou esgotamento dos valores. Seu ponto de
vista está em lhes adjudicar a marca da fluidez e da contingência,

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

valores mais que necessários para a vida social, sempre provisórios


e reguladores do mundo da vida, enquanto já não necessitam hi-
póstase no além. Valores que, perdendo sua substancialidade –
Nietzsche fala mesmo de “mumificação” –, devolvem ao homem
o mundo da vida como uma espécie de reafirmação do momento,
do instante como a instância que merece ser tida em consideração.
Tal perspectiva, inclusive, poderia conectar-se com a categoria
nietzschiana do “eterno retorno”, pois amar a repetição, desejar que
esta aconteça, é também viver o presente plenamente, sobretudo
valorizando a pura auto-afirmação, questão sacrificada em função
do transcendental.
O segundo tipo de niilismo pode caracterizar-se como niilismo
integral. A este respeito, Cragnolini explicita: “A filosofia do niilismo
integral situa-se ‘para além de bem e mal’ e mais além das arkhaí.
Na medida que se realiza uma análise histórico-genealógica desmas-
caradora dos fundamentos que organizam os sistemas filosóficos,
esses fundamentos perdem sua velha autoridade e se tornam débeis
os laços que os uniam com tudo o que disto dependia: moral, costu-
me” (Cragnolini 2, p. 121).
A experiência do niilismo integral, fazendo mérito a seu nome,
leva ao máximo seu poder crítico, sua filosofia do martelo. Não
obstante, não se trata da crítica ilustrada, mas mais propriamente
do contrário. Pois a experiência do niilismo integral faz lembrar ao
homem a historicidade e a contingência da origem. Questão que
Foucault terá especialmente em consideração no que se refere à
reivindicação do pensamento nietzschiano: “Quisera ater-me, en-
tão, a isto, concentrando-me primeiramente no termo invenção.
Nietzsche afirma que, em um determinado ponto do tempo e em
um determinado lugar do universo, alguns animais inteligentes in-
ventaram o conhecimento. A palavra que emprega, invenção – o
termo alemão é Erfindung –, reaparece com freqüência em seus
escritos, e sempre com intenção e sentidos polêmicos. Quando fala

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Rossi, M. A.

de invenção possui em mente uma palavra que se opõe à invenção,


a palavra origem. Quando diz invenção é para não dizer origem,
(...)” (Foucault 7, p. 20).
Logo o pensador francês – seguindo Nietzsche – colocará ênfa-
se em mostrar como a religião, a poesia e o conhecimento remon-
tam a uma invenção surgida pela trama de “obscuras e mesquinhas
relações de poder”. Assim, e contrariamente ao homem do niilismo
decadente que reivindica a origem, o homem do niilismo integral
rompe com todo o tipo de fundamento metafísico.
Contudo, Nietzsche nos adverte do perigo de permanecermos
na etapa do niilismo integral, instância onde é impossível a esfera
da crença, ficção necessária nos altares da vida. O tema será, nova-
mente, a forma em que se toma para si dito abismo.
Retomando a lógica política, Nietzsche percebe a cunhagem do
anarquismo como uma conseqüência do niilismo integral. De qual-
quer forma, o perigo da anarquia ou o ceticismo é de menor gravi-
dade se comparado com uma recaída na metafísica, na origem, no
fundamento absoluto.
O terceiro tipo de niilismo pode denominar-se “niilismo futu-
ro”. Justamente será o niilismo que possibilite o perspectivismo e, a
partir daí, vinculado à vontade de potência, coloque em jogo um
determinado horizonte de sentido.
Um niilismo que nos insta constantemente a criar sentidos. Por
tal razão, Nietzsche fala do artista ou da criança, que a partir da
pura criação ou do jogo nos salva do abismo, ao mesmo tempo re-
cordando-nos que todo sentido, interpretação ou comentário está
determinado pela força da contingência e da fluidificação. Sem dú-
vida alguma, este é o aspecto mais democrático do olhar nietzschia-
no, independentemente de que nosso pensador seja um dos críticos
mais acirrados deste regime de governo.
Mesmo assim, Nietzsche considera que, se bem que os possí-
veis sentidos são provisórios, sempre se possibilita uma hegemonia

18 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

de sentido – palavra não utilizada por ele mas que reflete seu pen-
samento. Dita hegemonia imprime uma direção que possibilita uma
certa unidade na dispersão e no caos. Certamente que esta estará
também sujeita à mudança e à contingência. Justamente, uma das
críticas à democracia moderna será a homogeneidade de sentidos
que, numa espécie de paradoxo, termina eliminando todo sentido.

2. Esboços de uma perspectiva política: Um olhar ao Estado.

Um dos núcleos temáticos presentes no pensamento de Nietzsche


é sua profunda, ao mesmo tempo em que radical, crítica ao Estado
moderno. Pode-se argumentar, sem nenhum risco, que o filósofo
não percebe nenhum traço positivo com respeito ao mesmo. Pois,
tomado em perspectiva de retrocesso, Nietzsche percebe o Estado
moderno como o último ponto da decadência ocidental. Estado que,
à diferença da pólis ou da república antiga, somente pode nomear-
se como um ente artificial, emergente de relações contratuais vin-
culadas, por sua vez, ao auge da democracia e da eclosão dos par-
tidos de massa.
Deste modo, e retomando o anteriormente assinalado – e neste
aspecto coincidindo com as Extemporâneas – a condenação do Es-
tado moderno é interpretada pelo filósofo desde um horizonte de
sentido muito mais extensivo e fundante. Tratar-se-ia da condena-
ção da cultura moderna, sendo o Estado moderno, mais especifica-
mente o democrático, um aspecto dela.
Desta perspectiva, é claro que para Nietzsche a irrupção da
massa na vida pública tem uma profunda conotação negativa, so-
bretudo quando contrastada com a idéia de “povo”. Nietzsche não
acredita na existência de um “povo moderno”, dando a entender
que um povo somente pode ser viva expressão de uma autêntica
cultura.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 19


Rossi, M. A.

Dita massa necessita – em virtude de sua própria constituição


– da figura de um líder. Em tal sentido, Nietzsche também é crítico
da liderança moderna, com a ressalva de que a crítica não está pos-
ta na categoria de “liderança” enquanto tal, mas na resignificação
que a modernidade faz dela. Talvez, neste aspecto em particular,
Nietzsche esteja pensando no tipo ideal weberiano de líder caris-
mático, questão esta que, por outro lado, combina muito bem com
a crítica de Nietzsche à razão de Estado.
Desta forma, se tivéssemos que organizar uma seqüência con-
ceitual, teríamos: líder, partidocracia, democracia, cultura decaden-
te. E poderíamos inferir, como conseqüência, que a “massa” é, para
Nietzsche, um dos signos mais visíveis de uma cultura decadente.
Assim, o filósofo não deixa de manifestar sua angústia existencial
motivada pela confrontação com o “espírito de sua época”. Daí sua
empatia por alguns homens, os quais identifica muitas vezes com a
figura do “livre pensador”.
Retomando o ideal da democracia grega, Nietzsche tem cons-
ciência não somente do caráter elitista da mesma, mas também que
ela aposta por um espaço público onde é possível, mais ainda, é
condição necessária, o primado das diferenças. Quer dizer, a idéia
de isonomia grega partia de um conceito de igualdade que, diferen-
temente do moderno, não erradicava de seu seio as próprias singu-
laridades dos cidadãos.
A democracia moderna possui, para Nietzsche, a característi-
ca, ou melhor, o vício, de levar tudo a um terreno mercantil, onde
tudo se transforma em “mercadoria”. Advento de um mundo homo-
gêneo e empobrecido: “O mercador sabe estimar o valor de tudo
sem produzi-lo, e estimar-lhe o valor segundo a necessidade dos con-
sumidores, não segundo suas próprias necessidades; (...) em rela-
ção a tudo o que é produzido ele pergunta pela oferta e a demanda,
a fim de estabelecer para si o valor de uma coisa. Isto alçado em

20 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

caráter de toda uma cultura, pensado com o máximo de amplidão e


sutileza, e impondo-se a toda vontade e capacidade” (M/A § 175).
Nietzsche entende que a esfera política acaba introjetando a
dinâmica do mercado. Isto o leva a declarar em Humano, demasia-
do humano que a política moderna é um assunto de comerciantes e
empresários, enfatizando, assim, a absolutização do privado.
A preocupação nietzschiana pela cultura moderna não pode es-
tar dissociada do dinamismo da vida política, sobretudo em função
de uma lógica democrática que instaura o primado de um relativis-
mo homogêneo no qual tudo é suscetível de negociação e troca.
Ruptura das hierarquias e instância que preanuncia, fundamental-
mente com a perda do substrato metafísico intrínseco ao Estado e à
política, o advento do “niilismo”. Assim se entende porque Nietzsche
fala da “morte do Estado”, temática que abordaremos nas próxi-
mas páginas.
Não sem razão se costuma dizer que Nietzsche é um pensador
antidemocrático. Nossa intenção não joga em função de demons-
trar o contrário. Ao contrário, acreditamos ser relevante explicitar a
matriz significativa desde a qual Nietzsche denuncia a hipocrisia da
democracia moderna: a trama economicista que constitui sua única
razão de “ser”. Inclusive, percebe a partidocracia como a arena
representativa de múltiplos interesses privados, em última instância
uma “pura ficção”, agora em sentido pejorativo; afinal, mais além
das aparentes diferenças dos diversos setores e partidos políticos,
na realidade tudo se reduz a um mesmo assunto: o interesse privado.
Em contraposição, e retomando o anteriormente dito, Nietzsche
abre um caminho que será retomado por certa perspectiva contem-
porânea: mostrar o pano de fundo e a origem da democracia mo-
derna, a qual o filósofo identifica com o dispositivo liberal. É desde
esta ótica que, também, se pode apreciar o empobrecimento do
mundo moderno, levando em consideração o surgimento de um

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 21


Rossi, M. A.

“sujeito” e de uma subjetividade que, por um lado, se situa em um


espaço público famoso essencialmente em termos de juridicidade
igualitária, ainda que abstrata ou formal e, por outro lado – dife-
rentemente do sujeito antigo –, joga seus interesses reais no terreno
do privado. Assim, como crítico da sociedade burguesa, lança uma
pergunta que ainda hoje permanece sem solução: como fazer empre-
go de um espaço público que, analogamente ao antigo, pode inter-
pretar uma igualdade que não exclua o plano das diferenças? Disto
resulta que o dispositivo liberal somente pode apostar em uma sub-
jetividade formal, homogênea e empobrecida, reservando o plano
das singularidades exclusivamente ao foro privado.
Outro dos temas políticos que Nietzsche menciona é a proble-
mática da “autoridade”, categoria que aparece desvalorizada na
cultura contemporânea e que constitui um ponto obrigatório de re-
flexão para o pensamento alemão em geral. Neste aspecto, apenas
a referência a Max Weber é bastante esclarecedora: “(...) e quando
esta subordinação não for mais possível, já não haverá como obter
muitos dos defeitos mais assombrosos, e o mundo se tornará mais
pobre. Ela tem de desaparecer, pois desaparece o seu fundamento:
a crença na autoridade absoluta, na verdade definitiva; mesmo nos
Estados militares não basta a coerção física para produzi-la, mas se
requer a adoração hereditária do principesco como algo sobre-hu-
mano. – Em circunstâncias mais livres, as pessoas se subordinam
apenas sob condições, em conseqüência de acordo recíproco, isto
é, com todas as reservas do interesse pessoal” (MAI/HHI § 441).
Nietzsche compartilha com Weber que a noção de “autorida-
de” não pode ser interpretada como uma simples questão de “for-
ça” ou poder, tanto em sentido físico como legal, mas que aquela
pressupõe essencialmente a referência a um horizonte eidético ou
axiológico. Em tal sentido, Nietzsche explicita, se bem que de for-
ma descritiva e não prescritiva2, que uma das notas fundamentais,
para não dizer a mais relevante, que deve possuir a noção de “auto-

22 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

ridade” gira em torno ao conceito de “sacralidade”. Assim entende


que o advento de um mundo dessacralizado é o que, definitivamen-
te, termina anulando a crença no bem comum; sobretudo porque a
autoridade se pensa sempre desde o público e não desde o terreno
do privado.
Deste modo está claro que para Nietzsche a deterioração do
conceito de autoridade e hierarquia, instâncias que caracterizaram,
ainda que de modos diferentes – e em sentido involutivo – ao Esta-
do grego, o medieval e o absolutista moderno, ingressam completa-
mente no esgotamento da metafísica e da teologia, esgotamento que
implica a perda substancial de valores. Valores que perdem seu
caráter qualitativo ou transcendental e entram – como anteriormen-
te assinalamos – homogeneamente na lógica do mercado.
Outro dos traços políticos modernos que o filósofo põe em ques-
tão é o dispositivo jurídico, o qual julga tão necessário quanto a
teologia para o estamento medieval. Assim, Nietzsche compreende
a esfera do direito moderno como uma espécie de sintoma ou esta-
lido que denotaria a impossibilidade de um poder absoluto, obvia-
mente determinado pelo choque de forças. Daí a necessidade de
um acordo, mas não sustentado desde um a priori ético, e sim pela
necessidade de uma razão instrumental sujeita ao cálculo das reais
possibilidades, dando Nietzsche a entender, neste aspecto, que ante
uma lógica do poder absoluto não existe direito que valha.
Outra das instâncias políticas mais importantes no que respeita
a sua confrontação com a cultura do século XIX constitui-se em sua
aversão a “racionalidade” estatal, curiosamente um tópico esquecido
pelos que fazem de Nietzsche o idealizador do Nazismo. De fato, é
em confrontação com a razão de Estado que o filósofo aprofunda o
tema da singularidade, categoria que às vezes identifica com a noção
de indivíduo, sobretudo em oposição à massa e, outras tantas, des-
vincula do conceito de indivíduo, dando a entender que este último
é um dos axiomas básicos da cultura decadente. A este respeito,

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Rossi, M. A.

não deixa de ser sugestivo que Nietzsche compartilhe o conceito


clássico da ideologia marxista e considere, por conseqüência, o Es-
tado como a expressão de interesses particulares mas “disfarçado”
de interesse coletivo ou geral.
De todas as formas é lógico que, desde o diagnóstico nietzschia-
no no que se refere ao mundo moderno, o único caminho possível
em função de um homem que aposta no livre pensamento seja o da
constituição da singularidade. Vejamos, em conseqüência, um dos
parágrafos mais significativos no que diz respeito à temática mencio-
nada: “Toda ação individual, todo modo de pensar individual, sus-
cita arrepio; não podemos deixar de levar em conta o que precisa-
mente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais, em todo
o decurso da história, tiveram de sofrer por serem sempre sentidos
como os maus e os perigosos, e mesmo por se sentirem assim eles
próprios. Sob o domínio da eticidade do costume, a originalidade
de toda espécie adquiriu má consciência; com isso, até o presente
instante, o céu dos melhores é ainda mais ensombrecido do que
teria de ser” (M/A § 9).
Acreditamos, então, que o homem singular para a cunhagem
nietzschiana é aquele que se constitui em referência ao seu próprio
olhar, possibilitando-se, assim, tomar distância da moral, dos cos-
tumes, da educação e, inclusive, da cultura; especificamente da-
quilo que todas estas manifestações possuem em comum: a de con-
verter a singularidade, aquilo que é intransferível, o próprio, o que
nos constitui como indivíduo – e, portanto, não negociável –, o que
não está dividido, justamente, em sujeito.
Mesmo assim, é relevante explicitar, sobretudo em oposição a
uma hermenêutica generalizada em torno de Nietzsche, que o ho-
mem singular não se identifica com os valores do senhor feudal ou
da elite aristocrática. É certo que, diferentemente de Marx, Nietzsche
resgata tal axiologia em confrontação com as “virtudes” plebéias da
modernidade. Porém não deixa de ser menos certo que aquelas,

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

enquanto representação social, não escapam da dialética da ordem


do instituído-instituinte.
Está claro, então, que a singularidade é uma tarefa a ser con-
quistada, tendente, como finalidade primeira, à apropriação de nossa
própria perspectiva. Processo que, como bem assinala Nietzsche,
não está isento da culpabilidade que pressupõe a ruptura com a
ordem do instituído. Daí que o filósofo fale de “má consciência”,
efeito lógico de todo o processo de ruptura.
Assim, consideramos que Nietzsche contrapõe a noção de su-
jeito, efeito da dinâmica do instituído, o que em definitivo faz do
homem um “sujeito de rebanho”, à noção de singularidade, que
nestes escritos é uma figura próxima da do “livre-pensador”. Daí o
sentido de autarquia que deve caracterizar a este, especialmente
em função do retrocesso até todo disciplinamento estatal, outro item
presente nas Extemporâneas.
Do mesmo modo, haveria outro aspecto no que se refere ao tema
da singularidade no qual a cosmovisão nietzschiana ficaria sem re-
solução, dado que, às vezes, o homem singular seria aquele que
escapa à trama da socialização; porém, outras vezes, se aproxima-
ria, em certo sentido, ao que mais tarde poderemos encontrar por
trás da denominação de “além-do-homem”, enquanto vontade de
potência que possibilita novos valores e que é quem estabelece as
novas regras da dinâmica social. Assim, em Aurora, enfatiza: “Os
livres agentes se acham em desvantagem frente aos livres-pensado-
res, porque os homens sofrem mais visivelmente com as conseqü-
ências dos atos do que dos pensamentos. Levando-se em conta,
porém, que tanto uns como outros buscam a satisfação, e que já o
pensar e enunciar coisas proibidas dá satisfação aos livres-pensa-
dores, todos se eqüivalem quanto aos motivos: e, no tocante às con-
seqüências, a balança penderá mesmo contra o livre-pensador (...).
Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os homens que
romperam através de uma ação a autoridade de um costume –

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Rossi, M. A.

geralmente são chamados de criminosos. Todo aquele que subver-


teu a lei de costume existente foi tido inicialmente como homem
mau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia restabelecê-
la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado mudava gradual-
mente; – a história trata quase exclusivamente desses homens maus,
que depois foram abonados, considerados bons!” (M/A § 20).
Antes de finalizar nosso trabalho, acreditamos ser necessário
insistir em duas questões que ficaram pendentes. Uma delas já foi
anunciada: trata-se do diagnóstico nietzschiano acerca da “morte
do Estado”. A outra atenta para o olhar do filósofo no que se refere
ao socialismo como força política moderna.

Nietzsche e o socialismo
No referente a dito tópico surge uma primeira observação expli-
citada por Ernst Nolte, aquele que indubitavelmente nos brinda com
um excelente horizonte referencial: “Nietzsche não sabia demasia-
do sobre o socialismo, e é manifesto que nunca leu uma linha de
Marx; porém, apesar disso, não pode excluir-se que pensara no mar-
xismo quando se manifestava pelo socialismo, e que essas manifes-
tações permitiam reconhecer uma simpatia central” (Nolte 8, p. 77).
O mencionado comentador não esclarece em que se fundamenta tal
princípio de empatia entre ambos pensadores. Não obstante, talvez
possamos arriscar nossos próprios pressupostos.
Um primeiro ponto de aproximação, talvez, esteja dado pelas
demolidoras críticas que Marx fez à sociedade burguesa, sobretudo
no tocante a temas como o dinheiro, a usura, os bancos e empresá-
rios. Instâncias constitutivas do mundo moderno.
Outro ponto de encontro entre ambos pensadores é, sem dúvi-
da alguma, a crítica ao Estado. Inclusive Nietzsche assinala a ambi-
güidade na qual cai a tradição do socialismo pós-Marx pois, se por
um lado o ideário socialista ensina acerca do perigo de todas as

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

acumulações de poder político e, portanto, o Estado ocupa neste


aspecto um lugar privilegiado, ao mesmo tempo enfatiza Nietzsche
que, numa espécie de movimento contrário, o grito de guerra de
todo socialista não pode ser outro mais que “tanto Estado quanto
seja possível”.
De todas as maneiras, e apesar de algumas possíveis coincidên-
cias entre Nietzsche e Marx, é claro que a balança se inclina muito
mais para os desencontros. Provavelmente não com o próprio Marx,
mas certamente com a tradição do socialismo.
Em primeiro lugar, Nietzsche vê o socialismo também como um
cristianismo disfarçado, se bem que desde uma visão dessacralizada
e, inclusive, crítica da mesma estrutura religiosa. O motivo de tal
percepção se compreende pela noção de “ressentimento”, a qual,
tanto no cristianismo quanto no socialismo, constitui a fonte de
pulsões altruístas ou reivindicatórias traduzidas em termos de justiça.
Insistindo na relação entre cristianismo e socialismo, visto que
ambos reivindicam um tempo arquetípico de felicidade e redenção
humana, Nietzsche enfatiza: “O destino dos homens se acha dis-
posto para momentos felizes – cada vida humana tem deles –, mas
não para tempos felizes. No entanto, estes perduram na fantasia
humana como “o que está além dos montes”, como uma herança
dos antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez provenha,
desde tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, após
violentos esforços na caça e na guerra, entrega-se ao repouso, dis-
tende os membros e ouve o rumor das asas do sono. Há uma con-
clusão errada em imaginar, conforme aquele antigo hábito, que após
períodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar também aque-
le estado de felicidade, com intensidade e duração correspondentes”
(MAI/HHI § 471).
Desta forma, pode-se observar a crítica de Nietzsche ao próprio
conceito de utopia enquanto negação e incorformação com respeito
à ordem existente. Não obstante, incorreríamos em um grave erro

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 27


Rossi, M. A.

se pensássemos que Nietzsche reivindica a resignação cristã. A ques-


tão é não ter uma postura que negue o presente como afirmação em
prol de uma pretendida transcendência. Daí que o pior tipo de so-
cialismo para Nietzsche seja o socialismo utópico.
Em segundo lugar, Nietzsche não vacila em apontar o socialis-
mo como o irmão menor do despotismo ilustrado. Assim, enfatiza
em Humano, demasiado humano: “O socialismo é o visionário ir-
mão mais novo do quase extinto despotismo, do qual quer ser her-
deiro; seus esforços, portanto, são reacionários no sentido mais pro-
fundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje
somente o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no
passado, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual
ele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorar
e transformar num pertinente órgão da comunidade. Devido à afini-
dade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda excessiva
manifestação de poder, como o velho, típico socialista Platão na corte
do tirano da Sicília” (MAI/HHI § 473).
Não deixa de chamar a atenção que, no que diz respeito à críti-
ca ao socialismo, Nietzsche internalize algumas críticas que o libe-
ralismo faz ao socialismo, especificamente a prédica da anulação
das singularidades; em termos liberais, a abolição dos direitos indi-
viduais. Inclusive, de forma semelhante aos partidários do liberalis-
mo, Nietzsche estabelece uma seqüência que vai de Platão ao cris-
tianismo, deste até Rousseau, e do filósofo genebrês ao socialismo.
Por outro lado, é relevante explicitar que Platão é, para Nietzsche,
o principal mentor do que em termos modernos denominamos “ra-
zão de Estado”. Para o filósofo alemão, o ateniense teria sido o pri-
meiro a disseminar uma engenharia política a partir da qual tudo
deveria ser administrado pela casta governamental, especialmente
as manifestações culturais, os mitos e, inclusive, a paideia, que, por
todos os meios possíveis, Platão quer arrebatar das mãos privadas.
De fato, a árdua polêmica entre Platão e os sofistas girou em torno

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

de dita questão. Daí Nietzsche interpretar, também, que na Repú-


blica platônica não existe espaço para nenhum tipo de singularida-
de. Assim, nesta etapa de seu pensamento, se tem a impressão de
que Nietzsche estabelece uma aguda tensão entre lógica estatal e
lógica individual, para inclinar-se, evidentemente, a favor da segunda
alternativa.
Com respeito a Rousseau, também o filósofo alemão se torna
eco da diatribe liberal. Inclusive é interessante a semelhança entre
Nietzsche e Kant, pois ambos descrêem da lógica revolucionária,
ao mesmo tempo em que apostam em uma paulatina ilustração. Por
conseguinte, Nietzsche interpreta que, graças – ou melhor, por des-
graça – ao filósofo genebrês se retardou, inclusive pondo em peri-
go, a marcha do progresso. Mas deixemos falar o próprio Nietzsche:
“(...) e que, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia numa
humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquiteta, artista,
aperfeiçoadora da natureza humana. – Não foi a natureza mode-
rada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar,
mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que
despertaram o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito:
‘Ecrasez l’infâme’. Graças a ele o espirito do iluminismo e da progres-
siva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos – cada qual
dentro de si – se é possível chamá-lo de volta!” (MAI/HHI § 463).
É claro, então, que não se pode falar da ótica nietzschiana acerca
do socialismo sem a obrigatória referência a Rousseau. Não somen-
te pelo fato – como expressamos anteriormente – de que o filósofo
genebrês é uma estação de passagem obrigatória ao socialismo, mas
também porque Nietzsche descrê num espírito utópico que seja ca-
paz de transformar a “natureza humana”, especificamente, em fun-
ção de um socialismo utópico que coloca acento em um novo tipo
de engenharia institucional como o meio de erradicar o egoísmo e a
miséria. Por tal razão, para Nietzsche, tal socialismo parte, de modo
igual a Rousseau, do pressuposto antropológico-político de que o

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Rossi, M. A.

homem é por natureza bom, mas a sociedade se encarrega de per-


vertê-lo. A este respeito, está claro que Nietzsche considera que este
tipo de socialismo é o pior de todos.
Em terceiro lugar, Nietzsche fala daqueles que são mais pro-
pensos ou inclinados a cair nas redes do socialismo. Tratar-se-ia
das massas semicultas. Tal ideário não se joga simplesmente em
uma tosca reivindicação material. Nietzsche põe acento na relevân-
cia da idéia de justiça como item central da plataforma socialista,
introjetada nas massas em prol de um fim altruísta. Por outro lado,
chama atenção que Nietzsche fale de uma massa “semiculta”, tal-
vez dando a entender, neste aspecto, o perigo que acarreta a ilus-
tração abortada ou inacabada.
Em quarto lugar, Nietzsche conclui: “Uma questão de poder, não
de direito. – Para aqueles que sempre consideram a utilidade supe-
rior de algo, não há no socialismo, caso ele seja realmente a suble-
vação, contra os opressores, dos que por milênios foram oprimidos
e subjugados, nenhum problema de direito (com a ridícula e débil
questão: ‘até que ponto devemos ceder às suas exigências?’), mas
sim um problema de poder (“até que ponto podemos utilizar suas
exigências?’) (...) O socialismo só adquirirá direitos quando pare-
cer iminente a guerra entre os dois poderes, entre os representan-
tes do velho e do novo, e o cálculo prudente das chances de conser-
vação e de vantagem, em ambos os lados, fizer nascer o desejo de
um pacto. Sem pacto não há direito. Mas até agora não há guerra
nem pactos, no território mencionado, e portanto nenhum direito,
nenhum ‘dever’” (MAI/HHI § 446).
Por último, é sobremaneira interessante a observação de Nolte:
“Com este pequeno repasse já fica claro que o ‘socialismo’ é um
fenômeno muito complexo. Em certo sentido, é algo muito velho: se
busca uma ‘raiz do mal’ no presente e se encontra a propriedade
privada, não de modo diferente a como já sucedeu na Antigüidade;
a salvação e a redenção são buscadas em algumas condições parafa-

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

miliares, pessoais e igualitárias. Devido a este ‘primitivismo’ o soci-


alismo é radicalmente reacionário, inclusive arcaico: uma religião
social e o contraponto ao mundo moderno, com o domínio da má-
quina, da impessoalidade e da especialização que o caracterizam.
Por outra parte, o socialismo é particularmente moderno, já que
oferece uma aguda crítica cultural, previne-se do aumento dos des-
possuídos, pode apoiar-se na produção e nas ‘tendências socia-
lizantes’ que se produzem na vida estatal (imposto sobre rendas,
grandes empresas), faz sua a crítica ilustrada da religião, aprecia
sumamente a ciência natural e oferece uma análise do estado de
crise permanente da economia moderna” (Nolte 8, p. 173).
Pedimos desculpa pela extensão da citação, mas acreditamos
que esta é mais que ilustrativa no que diz respeito ao presente tema.
Desta forma, é evidente que Nietzsche vê no socialismo um foco de
reunião de seus principais inimigos: moral comunitária, cristianis-
mo e semiprogresso.

Nietzsche e a morte do Estado. Uma aproximação do niilismo político


No que diz respeito ao vínculo entre religião e política, Nietzsche
insiste em alguns aspectos que são necessários ter em consideração.
Em primeiro lugar, a religião é um meio de profundo refrea-
mento individual, sobretudo em épocas de crises ou perdas, perío-
dos nos quais o Estado se sente impotente em oferecer algum tipo
de saída ou solução. Por esta razão Nietzsche fala do papel da reli-
gião na esfera privada, ainda que às vezes estende também tal lógi-
ca aos acontecimentos públicos, tais como as guerras, a escassez
prolongada de alimentos, etc.
Em segundo lugar – e em concordância com o jovem Marx –
Nietzsche considera que as religiões, mais especificamente as mono-
teístas, como dispositivos teocráticos: concentram-se na idéia de
poder descendente, incitando, consequentemente, à obediência dos

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Rossi, M. A.

cidadãos: “Onde as deficiências necessárias ou casuais do governo


estatal, ou as perigosas conseqüências de interesses dinásticos, fa-
zem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia, os
não-perspicazes pensam enxergar o dedo de Deus e pacientemente
se submetem às determinações do alto (conceito em que habitual-
mente se fundem os modos humano e divino de governar): assim se
preserva a paz civil interna e a continuidade do desenvolvimento”
(MAI/HHI § 472).
Em terceiro lugar, Nietzsche interpreta que a legitimidade do
poder se vincula com a noção de “sacralidade”, motivo pelo qual a
religião cumpre, neste aspecto, um papel insubstituível. Nietzsche
nos faz lembrar que a todo governo é mais que necessário a admi-
nistração das almas. Tal é a razão das múltiplas alianças entre o
clero e o Estado: “Sem a ajuda dos sacerdotes nenhum poder é
capaz, ainda hoje, de tornar-se ‘legítimo’: como bem entendeu Napo-
leão. – Assim, governo tutelar absoluto e cuidadosa preservação da
religião caminham necessariamente juntos” (MAI/HHI § 472).
Em quarto lugar, é interessante ressaltar a sutileza do filósofo,
quando considera que a casta governamental ilustrada não está des-
provida do “livre pensamento”. É justamente este requisito que
possibilita àqueles a utilizar a religião como um simples meio,
perdendo, assim, sua sacralizada finalidade. Por esta razão que
Nietzsche sustenta que o livre pensamento somente pode surgir a
partir da ruptura com a religião: “Nisto se pressupõe que as pesso-
as e classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vanta-
gens que a religião oferece, e que até certo ponto se sintam superio-
res a ela, na medida em que a usam como instrumento: eis aqui a
origem do livre-pensar” (MAI/HHI § 472).
Em quinto lugar, Nietzsche considera que a última etapa da de-
cadência do Estado é a democrática. Pois, se bem que em um pri-
meiro momento é factível legitimar um dispositivo de sacralidade,
agora, estendido à vontade popular, inclusive – em termos de poder

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

ascendente –, em uma segunda instância, Nietzsche sustenta que,


com a perda da noção de “transcendência”, a religião passa, sem
perder seu caráter absoluto, à esfera privada. Posteriormente advirá
um relativismo de tipo religioso que, em última instância, terminará
de solapar os fundamentos do Estado.
Assim, desde nosso ponto de vista, acreditamos que Nietzsche
é sensível à novidade que instaura a cunhagem da Reforma protes-
tante, vale dizer, a ruptura com a transcendência e a representa-
ção. Agora o absoluto será captado diretamente pela consciência
individual. O que, em termos schimittianos, conduziria a falar da
absolutização do foro privado. Daí que a política e o Estado, os quais,
para Nietzsche, na ordem da ficção, jogaram a aposta pelo interesse
geral ou absoluto colocado no público, agora se infiltram até o espaço
privado. A este respeito, não é ao acaso que Schmitt tenha compa-
rado Nietzsche aos conservadores católicos. Pois, além das inco-
mensuráveis diferenças, segundo a ótica de Schmitt, tanto Nietzsche
quanto os contra-revolucionários católicos tiveram consciência de
que a perda do princípio de autoridade, conjuntamente com a per-
da dos valores sagrados, traria atrelado a irrupção do niilismo.
Não obstante, Nietzsche propõe um final aberto, dando a en-
tender que, definitivamente, o que deu seu último suspiro de vida,
sobretudo em função da lógica política que se apresenta como a
aposta pelo público é, justamente, dita ficção. Em tal sentido, o fi-
lósofo se pergunta, em um tom esperançoso se, na melhor hipótese,
isto implica uma superação. Concluamos, portanto, nosso trabalho
com dito parágrafo: “As sociedades privadas incorporam passo a
passo os negócios do Estado: mesmo o resíduo mais tenaz do velho
trabalho de governar (por exemplo, as atividades que se destinam a
proteger as pessoas privadas umas das outras) termina a cargo de
empreendedores privados. O desprezo, o declínio e a morte do Es-
tado, a liberação da pessoa privada (guardo-me de dizer: do indiví-
duo), são conseqüência da noção democrática de Estado; nisso está

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 33


Rossi, M. A.

sua missão. (...) – Repetindo brevemente o que foi dito: os interes-


ses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãos
dadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, tam-
bém o fundamento do Estado é abalado. (...) – Mas a perspectiva
que resulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos:
entre as características dos seres humanos, a sagacidade e o inte-
resse pessoal são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não mais
corresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneira
nenhuma alguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente que
aquilo que era o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado” (MAI/
HHI, § 472).

Abstract: This paper explores two thematic lines of investigation. The


first one focuses on Nietzsche’s critique of historicism and the consequent
development of a vision of history that stresses the notions of a “horizon”
of meaning and hermeneutics, which in itself led to the importance of
Nietzsche’s perspectivism. The second line of investigation deals with
Nietzsche’s critique of the modern State and of democracy, hereby bringing
us closer to what we might refer to as the emergence of “political nihilism”.
With respect to this specific point, analysis will be based primarily upon
Nietzche’s Human, all-too human, a work that in our opinion sums up the
philosopher’s political thought.
Keywords: perspectivism – modernity – politics – state – political nihilism

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Nietzsche: esboços de um perspectivismo político

notas
1
Não obstante a possível empatia, existe, pelo menos, um
aspecto de distância abismal entre Nietzsche e Schmitt: o
jurista pode ser considerado um teórico da transcendência,
o que é próprio, por sua vez, de um pensador católico.
2
Tanto Weber quanto Nietzsche advertem sobre o perigo
que pressupõe uma queda no metafísico. Assim, se por um
lado dão conta da dessacralização do mundo moderno e
tudo o que isto implica, por outro lado, estão no lado opos-
to de um caráter nostálgico. Do que se trata é de consumar
– quando não assumir – o niilismo como destino.

referências bibliográficas

1. CASULLO, Nicolás; FORSTER, Ricardo; KAUFMAN,


Alejandro. Itinerarios de la Modernidad, Ricardo
Forster: “Nietzsche y el siglo XIX”, Oficina de publi-
caciones del CBC, Univ. de Buenos Aires, 1999.
2. CRAGNOLINI, Mónica. Nietzsche, camino y demora.
Buenos Aires: Biblos, 2003.
3. FINK, Eugen. La filosofia de Nietzsche. Madrid: Alianza,
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4. FOUCAULT, Michel. La verdad y las formas jurídicas.
Gedisa, México, 1997.
5. MARESCA, Silvio. Actualidad de un inactual. Buenos
Aires: UCES, s/d.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 35


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6. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Madrid:


Akal, 1996.
7. _______. Aurora. Obras Completas. Tomo II. Trad. para
o alemão de Pablo Simón. Buenos Aires: Pretigio,
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9. STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (compiladores),
Historia de la filosofia política. DANNHAUSER,
Werner: “Nietzsche”. FCE, 1992.

36 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

Fronteiras da História*
Alan Sampaio **

Resumo: A partir da crítica à historiografia oitocentista, efetuada por


Nietzsche na segunda Consideração extemporânea, objetiva-se mostrar
como ele contribui para a formação da consciência histórica. Segundo
Nietzsche, o excesso de consciência histórica do homem moderno é uma
“doença” derivada da constituição de uma teoria galgada na idéia de jus-
tiça, cujo correlato encontra-se na pretensão de neutralidade do conheci-
mento científico. Através da crítica a tal tipo de objetividade, bem como à
idéia de progresso, Nietzsche fala da necessidade de a história interpretar
a si mesma, ou seja, de uma séria reflexão da consciência e da ciência
sobre seus próprios limites.
Palavras-chaves: história – consciência histórica – memória – esqueci-
mento – horizonte – perspectivismo

Os resultados das investigações de Heródoto de


Halicarnassos são apresentados aqui, para que a
memória dos acontecimentos não se apague entre os
homens com o passar do tempo, e para que feitos
maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros
não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pe-
las quais eles guerrearam. Heródoto, História (I, 1).

*
Parte deste ensaio foi apresentado na mesa-redonda “Nietzsche e a Histó-
ria: memória, consciência e sentido histórico”, em outubro de 2003, na Fun-
dação Clemente Mariani, Salvador, da qual participaram Monclar Valverde e
André Itaparica. Agradeço-lhes pelo acabamento do ensaio.
**
Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal da Bahia.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 37


Sampaio, A.

Talvez nosso apreço pelo histórico seja apenas um


preconceito ocidental... Nietzsche, Da utilidade e
desvantagem da história para a vida (§1).

1. Perspectivas da história

A especial relevância das Considerações extemporâneas sobre a


história reflete-se no destaque atribuído por seus leitores, dentre os
quais se pode mencionar, por exemplo, Martin Heidegger, Hans-
Georg Gadamer, Walter Benjamin, Gianni Vattimo, Michel Foucault
e Gilles Deleuze. Em parte, isso se deve à crítica radical de Nietzsche
ao historicismo do homem oitocentista, e também a Hegel, mas pro-
vém principalmente da concepção de história subjacente à polêmica
acerca do sentido histórico do homem moderno. Em sua idéia de
história, Nietzsche deixa entrever uma espécie de ontologia, a partir
das reflexões sobre a organização da memória em narrativas e sobre
o horizonte da história. Nessa ontologia, uma dialética entre cons-
ciência e inconsciência, entre lembrança e esquecimento, apresen-
ta uma compreensão de temporalidade própria à existência huma-
na e sua peculiaridade na cultura histórica do Ocidente. Por tal
motivo, ao deter a atenção apenas em suas críticas ao historicismo
ou concentrar-se na metafísica do instante ou, ainda, privilegiar o
seu vitalismo, o leitor acaba perdendo as implicações mais importan-
tes da segunda das Considerações, a saber, a compreensão de tem-
poralidade e horizonte da história. Entretanto, como estes temas
não estão separados daqueles, é preciso persegui-los conjuntamente.
Um bom e apropriado exemplo é a recepção de Martin Heideg-
ger. Em Ser e tempo (§76), ele afirma que Nietzsche compreendeu
bem mais do que exprimiu. Para Heidegger, a classificação da his-
toriografia em três tipos não é casual. Ela vincula-se à temporalidade
da pre-sença (Dasein) e é pré-lineada por sua historicidade. Tendo
vislumbrado, mas não inteiramente ciente, Nietzsche não expressa

38 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

de modo claro “a necessidade dessa tríade e o fundamento de sua


unidade” (Heidegger 7, p.203).
Apesar de Heidegger apontar para a importância da compreen-
são do jovem Nietzsche quanto à temporalidade e à ciência históri-
ca, ele não se detém nas especificidades de sua obra – afinal, este
não é seu objetivo. Porém, ao proceder desse modo, restringe um
relevante caráter das considerações sobre a tríade da história.
Heidegger afirma que a historiografia deve ser a mescla da tríade:
o procedimento apropriado da ciência histórica dar-se-ia pela reali-
zação de suas três possibilidades em uma unidade concreta e factual.
Com isso, o perspectivismo de Nietzsche é desconsiderado, pois cada
uma das historiografias deve corresponder a um ambiente apropria-
do, sem o qual elas se tornam nocivas à vida.
Não se trata, para Nietzsche, de pensar uma história que tradu-
za melhor a temporalidade do homem. Ainda que não sejam exclu-
dentes, as modulações da história não precisam convergir para uma
unidade. Tal perspectiva, entretanto, não é descartada: O nascimento
da tragédia, no seu aspecto histórico, e inclusive reflexivo, consti-
tui-se enquanto mescla das possibilidades da história, apresentadas
na segunda das Considerações.
Se a história impele à ação transformadora do presente, é mo-
numental: destaca eventos tornados significativos e, ao mesmo tem-
po, indicadores da expressividade de uma época, revelando a gran-
diosidade possível à atualidade. Se venera os feitos, tomando o
presente a partir de sua tradição (sem, todavia, contemplar o ele-
mento futuro desse presente), é antiquária: atenta para os detalhes
de seu povo; valorizando o costume local, faz a comunidade encon-
trar sentido em si mesma. Se impulsiona à libertação, dirige expec-
tativas esperançosas ao porvir, tem uma boa “memória” para com o
futuro, ela é crítica: negando algo do passado, conduz o presente
ao porvir; livra seu tempo de uma tradição que impedia novas con-
figurações necessárias à vida.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 39


Sampaio, A.

O nexo entre as diferentes narrativas encontra-se na relação


entre lembrança e esquecimento, que vincula o resgate dos aconte-
cimentos à ação e à projeção, enquanto modos próprios e integra-
dos da temporalidade. A compreensão da forma dessa relação subjaz
à polêmica com a consciência histórica oitocentista. A crítica
nietzschiana procede das possibilidades de o homem lidar com as
dimensões do tempo ao rememorar eventos – ou seja, na forma como
os rememora. A polêmica não se dirige diretamente às possibilida-
des da história, mas sim ao modo como o passado é factualmente
entendido. Faltavam ainda alguns anos para Nietzsche escrever a
sentença emblemática do perspectivismo: “não há fatos, apenas in-
terpretações” (XII, 7 (60)). No período das Considerações extem-
porâneas, ele ainda pensa, em certo sentido, através da divisão
kantiana entre coisa-em-si e fenômeno. Porém, não ter ainda uma
concepção elaborada do perspectivismo não significa dele não ter
nenhuma compreensão. A partir daquela divisão, Nietzsche está
consciente de que se o fato equivale à coisa independente da inter-
pretação que dela se tem, ele é impossível de ser apreendido. Ao
contemplar o fato, não se o tem às vistas, mas tão somente a interpre-
tação da “realidade”, e neste caso de uma realidade anteriormente
sem sentido: “o fato é tolo e foi em todas os tempos mais parecido
com um bezerro do que com um deus” (HL/Co. Ext. II, §8).
Nietzsche caracteriza três tipos de história somente na medida
em que existem três aspectos do rememorar historiográfico conve-
nientes à vida. A diferença entre elas é estabelecida pela preponde-
rância de um dos aspectos: é este predomínio que conduz a pers-
pectivas distintas de contemplar o passado. Preocupa a Nietzsche,
em cada descrição das possíveis histórias, a relação vital com o pas-
sado, apropriada à atualidade e promotora de porvir. Esta relação
fundamental entre vida e temporalidade é rechaçada pela historio-
grafia do século dezenove em prol de sua cientificidade. Ela encara
o tempo enquanto sucessão de acontecimentos e converte o passado

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Fronteiras da História

em depositário de fatos seqüenciados cujo último efeito é o presen-


te. Imaginando-se serva da verdade e da justiça de sua anelada obje-
tividade, a história não permite ao passado servir como ideal ou
força motriz deste presente em que se encontra e que se projeta em
futuro. A ilusão que a conduz ao cientificismo é a de um passado
factual, passível de ser apreendido imparcialmente. A ilusão de que
o passado passou.
A divisão da narrativa histórica não passa de um esquema cuja
função é descrever e acentuar as diferenças entre as perspectivas
históricas; vale lembrar, na medida em que é possível classificá-las.
Importante, neste caso, é como a tríade da história revela três ma-
neiras do homem moderno, o homem da cultura histórica, retomar
o passado; a tríade mostra formas de a memória organizar o passa-
do em relação ao presente e ao futuro, ou seja, a memória dispõe
os eventos segundo uma composição das dimensões do tempo. Os
tipos de história expõem suas condições: monumental, antiquária e
crítica. Nestes três aspectos, a história pertence à atualidade do exis-
tente. A cada uma de suas modulações, corresponde uma atmosfe-
ra, sem a qual a história é inconveniente à atualidade da vida:

Cada um dos três tipos de história existentes é válido tão-só em um


solo e sob um clima particulares: em quaisquer outros, crescem como er-
va daninha devastadora. Quando o homem deseja realizar algo grandi-
oso, precisa em geral do passado, então se apropria dele mediante a his-
tória monumental; em contrapartida, quem prefere perpetuar o habitual
e de há muito venerado, cultiva o passado como historiador antiquário;
e apenas àquele a quem uma necessidade presente oprime o peito e que a
todo custo deseja livrar-se desse fado, carece da história crítica, que jul-
ga e condena. Da transplantação imprudente dessas espécies advêm
muitas desgraças: o crítico sem necessidade, o antiquário sem piedade, o
conhecedor da grandeza sem poder criador são plantas que degeneram,
por terem sido arrancadas ao seu terreno. (HL/Co. Ext. II, §2).

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 41


Sampaio, A.

A história monumental narra uma cadeia sucessiva de grandes


eventos da humanidade, iluminando o presente com a possibilida-
de de esplendor que a imagem do passado reflete. Ela serve de
modelo inspirador ao homem de ação, impedindo-o de resignar-se.
A suntuosidade do que já existiu mostra-lhe a possível grandeza do
existente. O caráter repetitivo do sentido das ações marca a tendên-
cia eternizante e constitui a crença fundamental dessa história: aquilo
que uma vez foi grande e significativo pode e deve de novo tornar a
ser. Precisamente por tal tendência, provoca o protesto de tudo que
ficou de fora da eternização de certos modelos, incita um violento
combate no presente por parte daqueles que se sentem excluídos
de sua narrativa. Sua injustiça com o passado desconsidera o que
não julga dignificante e eterno, reduzindo os aspectos próprios e
característicos de cada época passada a um molde geral. Despre-
zando os detalhes, as vicissitudes de cada realidade passada, a his-
tória monumental esquece-se de que há uma preparação para os gran-
des acontecimentos, que eles não se ligam como num passe de
mágica. Em sua cegueira das causas, torna-se uma coleção de “efei-
tos em si”. Ela assemelha-se às ficções míticas: engana através da
analogia. Ao celebrar o passado desse modo, ditando inclusive os
cânones da arte, possibilita que os impotentes e inativos, quando
dela se apoderam, ditem também que nenhuma espécie elevada de
arte, mesmo “re-novada”, deva surgir: castra os espíritos vigorosos,
os quais se apropriam do passado para compor formas superiores
de práxis.
Na história antiquária, os detalhes – tudo que é pequeno e limi-
tado – recebem igual atenção e zelo. Ela é própria ao homem que
quer conservar um presente, um estilo de ser, uma forma de exis-
tência. De tal modo empenhado nos detalhes de sua pesquisa, tudo
para ele adquire relevância. Seu espírito e história refletem o espírito
e a história do povo que busca conservar. Este é o mesmo tipo de
impulso e sensibilidade que conduziu os italianos do Renascimento

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Fronteiras da História

a redescobrirem o antigo gênio itálico. A história antiquária enraíza


o homem à sua terra, protege-o do gosto cosmopolita incessante pelo
novo. Faz do historiador e de seus leitores indivíduos pertencentes
a uma comunidade fundada na tradição: na memória de seus cos-
tumes e feitos. Porém, falta-lhe o poder de avaliar e, portanto, de
divisar eventos que congreguem a história, conferindo-lhe um sen-
tido único e coeso. Ela acaba por tornar-se fragmentada. Novamen-
te o passado é injustiçado se a história deve estar a serviço da vida.
Tal história esquece-se de que a memória é seletiva e significativa,
que ela valora e que a vida hierarquiza. O seu perigo é “a fúria
cega do colecionador”, pois deprecia a vida em transformação. Con-
servando as configurações herdadas de sua antigüidade, acaba por
não permitir seu crescimento, o que significa, no fundo, não con-
servar na vida o seu aspecto essencial, a sua vitalidade: “A história
antiquária degenera no instante em que a tenra vida do presente
não mais a anima e inspira” (§3).
A história crítica é a que tem mais em conta o presente enquan-
to abertura ao futuro. Ela condena o passado na medida em que o
presente necessita livrar-se de determinados preconceitos antigos.
A crítica ao passado tem um lado positivo: a tentativa de conquistar
um novo impulso, um estilo “jovial” – uma segunda natureza. Por
seu empenho de liberdade e por sua tendência à negatividade, a
história crítica é fruto de “homens e épocas perigosos e em perigo”.
É um período conflituoso o que necessita negar seu passado, pois
equivale a ir de encontro ao mais próprio da atualidade, os caracte-
res e costumes herdados. Porém, se todo passado é digno de con-
denação, pois é amálgama da fraqueza e da força humanas, não é
raro a crítica decair em criticismo. A história crítica tende à ausên-
cia de positividade, sem a qual o futuro amofina-se junto com o
passado deste presente. Condenar os erros do passado não impede
que o homem atual descenda deles e não o faz isento de seu lega-
do. A história crítica esquece-se de que o seu presente é herdeiro

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 43


Sampaio, A.

também dos equívocos do passado e sua consciência de erro é fruto


da pertença a uma tradição. Na interpretação e avaliação do passa-
do ela não se mira como intérprete e avaliadora: não interpretando
a si mesma, imagina-se afastada do erro, enganando-se com seu
ideal de objetividade.
Três tipos de esquecimento governam as formas de relembrar
os feitos históricos. Em cada um desses esquecimentos esconde-se
o perigo de a história não contribuir para a vitalidade de um povo e
de sua época. Nietzsche não critica o esquecimento, mas os perigos
por ele tornados possíveis. Porém, se não critica, assinala: em últi-
ma instância, cada esquecimento é também a tradução de uma falta
de consciência histórica. Não se trata de algo negativo e que a histo-
riografia deva superar; na verdade, é um elemento constituinte da
perspectiva a partir da qual se narram eventos e se compreende a
cultura de cada época. Em todo procedimento da consciência histó-
rica há algo de inconsciente que o compõe e, de certa forma, o diri-
ge. Em cada olhar há uma cegueira, a qual permite ao olhar encon-
trar algo, e não simplesmente o absurdo – que, como todo absurdo,
não pode ser visto. Nietzsche condena outro esquecimento, o de
que tudo há de ter uma atmosfera apropriada, fora da qual a histó-
ria perde seu sentido de ser vital à vida. Ele censura a cegueira que
conduz à falta de consciência perspectivista do homem teórico.
O passado só o é em relação a um presente – a uma atualidade
da vida. É cegueira do historiador querer encontrar um fato puro.
De toda sorte, a vida mesma nada sabe da justiça – ou, pelo menos,
não da justiça concebida pela filosofia: não há uma ordem prévia
que governe o mundo e lhe confira sentido. É a vida, ela mesma,
que se manifesta na relação – temporal – entre homem e mundo, e
de modo apropriado em cultura, é ela que configura formas de exis-
tência, perspectivas de percepção e costumes morais. Por isso
Nietzsche diz: “É preciso muita força para poder viver e esquecer
até que ponto viver e ser injusto são o mesmo” (§3). Se determina-

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Fronteiras da História

dos esquecimentos podem conduzir à decadência da vida, a vida


não pode prescindir do esquecimento. Graças a ele, e graças à per-
tença a um presente que é abertura ao porvir e retomada da
antigüidade, os homens da história narram e analisam o passado
em harmonia com a vitalidade da vida.

2. Bruma a-histórica

Também homens da ciência prestam ações e pensamentos à


vida. Entregue à ilusão de objetividade e justiça, ao contemplar o
passado, o homem histórico guarda esperança no porvir – na justi-
ça e felicidade apontadas pelo processo histórico como em desen-
volvimento. O sentido da existência mostra-se, para ele, nesta evo-
lução. Daí, na busca de compreender o presente e conquistar o
futuro, divisa o passado. O historiador pensa e atua de modo a-
histórico. Sua ocupação é conveniente à vida e não a um conheci-
mento puro. Ele assemelha-se ao homem de ação, vez que, gover-
nado por esquecimentos, intervém no presente.
O homem de ação procede sem consciência nem conhecimen-
to, de tal sorte o futuro é a sua lei. Todo grande acontecimento his-
tórico deriva-se da atmosfera não-histórica, condutora do homem e
de sua ação. Imerso em uma bruma a-histórica, ele procede como
um homem apaixonado, cujo estado de espírito “é um pequeno tur-
bilhão de vida em um mar soturno de trevas e de esquecimento”
(HL/Co. Ext. II §1). É um estado violento e circunscrito por um
horizonte limitado. Injusto com o passado, sua memória detém-se
no presente e mira o futuro. Esse estado anti-histórico é o funda-
mento de toda ação verdadeiramente justa, e dele provém todos os
grandes acontecimentos da história.
Se um homem percebesse que a história só é possível graças à
atmosfera a-histórica, se contemplasse a cegueira e a injustiça do

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 45


Sampaio, A.

homem de ação ao longo dos tempos – sua falta de consciência e a


imposição que os outros sofrem de sua “perspectiva intensa” –, ele
acabaria por não mais desejar contribuir com os acontecimentos
históricos: cessaria de agir, desistiria de fazer parte do teatro de
casualidades por ele contemplado. Sua aguçada consciência con-
verteria o presente e o passado em uma só coisa, pois perderia a
ilusão de desenvolvimento. O transcurso da história, minuciosamente
estudado, mostra que as ações que definiram seus rumos não fo-
ram determinadas por uma consciência histórica, instalando então
o ponto de vista supra-histórico (überhistorische Standpunkt). É pos-
sível que esse homem conquistasse uma serenidade, mas uma sere-
nidade senil: calmaria de um velho sábio, a quem ocorreu desco-
brir a força da ilusão e reconhecer que esta reveste todos os
fenômenos.
O excesso de história leva à desintegração da vida e da própria
história a ela pertencente. O instinto analítico dissector “devasta o
presente e torna quase impossível toda tranqüilidade, todo cresci-
mento e maturação pacíficos” (HL/Co. Ext. II §6); enfraquece, en-
fim, a capacidade de incorporação da cultura. A justiça da histo-
riografia cientificista é uma virtude temível: seu veredicto sempre
destrutivo e seu desenfreado desejo de saber desenraiza o futuro.
Colocando-se acima da temporalidade histórica, a historiografia oito-
centista concebe-se como ciência pura e soberana, como uma espé-
cie de conclusão da existência e seu juízo final. A justiça para com
o passado não condiciona a saúde do povo e de sua cultura. É pre-
ciso que o instinto destruidor seja conduzido por um outro constru-
tivo, por uma vontade de futuro. A cultura histórica deve ser domi-
nada por uma força superior, a-histórica.
Há, em Nietzsche, uma tentativa de deslocar o conceito de jus-
tiça, conceito moldado ao longo dos séculos pela teoria e pelo cris-
tianismo, para a perspectiva da vida – da ação vital à atualidade. O
justo, são, grande e verdadeiramente humano provém da atmosfera

46 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

protetora do a-histórico: nesta bruma germina a vida e sua presen-


ça. Entretanto, para a humanidade do homem é necessária a apro-
priação do passado conveniente à existência.
É a força superior que tem direito de julgar. O homem superior,
o criador, ele deseja a verdade, verdade que brote da justiça da
vida: uma verdade “como juíza que ordena e pune” (HL/Co. Ext. II
§6). Envolvido pela ilusão amorosa, seu saber é procriação do pre-
sente e de sua tradição em futuro: “O veredicto do passado é sem-
pre um veredicto de oráculo: apenas enquanto arquiteto do futuro,
enquanto conhecedor do presente, poderá compreendê-lo” (§6).
Com esta sentença, Nietzsche não apenas afirma todo conhecimen-
to ser interpretativo, mas estabelece um valor de verdade. Valor este
arraigado na vida e em sua justiça, que é, antes de tudo, apropria-
ção e procriação. Se a sentença pode ser lida em sentido epistemo-
lógico (vez que avalia a forma de proceder na busca do conheci-
mento, determinando, se não o grau de verdade, ao menos o seu
valor), se possui tal sentido é porque, sob o ponto de vista ontológico,
tudo emerge da vida. Vida eternamente insaciável, a força propul-
sora de toda cultura. Assim como o futuro, o passado é uma con-
quista, conforme o sentido projetivo do homem de ação. Não se
pode desconsiderar esta “preponderância” do porvir na composi-
ção e no valor do conhecimento. A idéia de um predomínio do pro-
jetar próprio à existência perpassa toda a obra nietzschiana.
A infertilidade do historiador deriva do modo como concebe o
tempo, de como compreende a relação dos acontecimentos históri-
cos com o presente. Atualmente, não faz mais sentido a idéia de
um passado que é encontrado independente da questão que lhe
dirige o presente. Nicole Loraux, historiadora da Antigüidade, ao
fazer o Elogio do anacronismo, diz ser este o pesadelo do historiador.
O “anacronismo”, ação de contemplar o passado a partir de ele-
mentos e questões próprias à atualidade, se traduziria, para a auto-
ra, numa célebre fórmula de Marc Bloch: “é preciso compreender

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 47


Sampaio, A.

o presente pelo passado e o passado pelo presente” (Loraux 10,


p.61). O anacronismo se impõe, para ela, pois considera o presente
como o “mais eficaz dos motores do impulso do conhecimento”,
quando se pretende estudar a história da Antigüidade. Por outro
lado, para a filosofia das correntes fenomenológica e hermenêutica,
a temporalidade já há algum tempo não é pensada cronologicamen-
te e a história deixou de ser simplesmente um saber do passado.
Essa idéia está presente de um modo especial na segunda Conside-
ração extemporânea. Ela pode ser evidenciada através da concep-
ção de instante aí apresentada.
O instante, para Nietzsche, é a abertura própria à temporalidade:
um presente que é regresso e projeto. Para usar uma expressão de
Eudoro de Sousa, “a história, qualquer que ela seja, refere-se a
passado, presente e futuro” (Souza 18, p.10). Destarte, há uma for-
ça retroativa e projetiva que possui todo presente, convertendo-o
em uma presença que se estende de sua atualidade à antigüidade e
engloba a projeção de um ou mais horizontes de porvir. O termo
grego para “presença” é “parousía”: “atualidade”, “ocasião favorá-
vel”, “chegada”, “advento”. O prefixo “par” indica uma proximi-
dade, uma delimitação, algo que se avizinha ou está próximo e cor-
responde ao prefixo latino “prae”, que, por sua vez, também sugere
prioridade no tempo e no espaço. Tanto em grego quanto em latim,
o “presente” indica uma situação favorável.
Em alemão, diz-se “Augenblick” para “instante”, ele quer di-
zer, literalmente, “mirada”, “vista de olho”, é como um piscar de
olhos: um tempo que mesmo sendo efêmero, destaca-se; que domi-
na e demarca um horizonte restrito e fugaz. Nietzsche acentua esta
força do momento presente. Porém, o instante no qual, a cada vez,
o homem se encontra não é um intervalo reduzido de tempo, pois
insta a algo, e só projeta-se porque no momento lembra-se. O ins-
tante instaura, pois é impelido pelas instituições legadas pelo passa-

48 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

do, pela tradição. Esse caráter próprio a cada presente confere ao


tempo um aspecto circular em oposição à linearidade da cronolo-
gia. Ao divisar o passado, contemplar a atualidade ou vislumbrar o
porvir, o que sempre se tem presente é a presença desse instante
que é precisamente a reunião dos imaginários, dos simbolismos, de
uma disposição corpóreo-simbólica dos homens em um mundo, in-
cluindo os equívocos que o atravessam. As interpretações diversas
que uma época apresenta de algo habitam o mesmo horizonte
interpretativo. Horizonte, decerto, “equívoco”, isto é, com “vozes
em simultâneo”.
O presente, exposto através da consciência, está rodeado por
uma bruma, pela inconsciência e a-historicidade próprias à vida. A
existência está sempre envolvida por uma atmosfera a-histórica. Ela
compõe-se da arte e do poder de esquecer, de acondicionar a me-
mória e a temporalidade em um horizonte, em um limite protetor
do impulso desenfreado da ciência e do conhecimento do passado
– de um desejo de pura presença sem ausências.
As forças mais próprias da “bruma” são a arte e a religião, as
quais Nietzsche designa pela expressão “sobre-históricas” (über-
historischen). Tais potências conduzem à supressão da consciência
de temporalidade (ao menos no sentido cronológico). Não é que
estejam à parte do devir, mas põem-se acima da consciência histó-
rica e conferem a uma presença o caráter de algo permanente; assim,
atuam na história envolvendo-a. Elas desviam o olhar do devir para
dar à existência o aspecto de eterno e imutável. Melhor: conferem
ao devir o caráter de eterno. Sem este poder da arte e da religião
(ou, mais especificamente, do mito), o homem converter-se-ia em
“discípulo de Heráclito”: condenado a não esquecer, veria tudo em
metamorfose. A realidade ruiria perante seus olhos, justamente
porque não se dispunha no presente. Em resumo, é possível viver
quase sem recordar, mas não sem esquecer (HL/Co. Ext. II §1).

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 49


Sampaio, A.

Até mesmo para recordar é preciso esquecer, deixar que se apaguem


as diferenças; somente assim configuram-se formas – sem as quais
não existe memória e nem mesmo percepção.
O tempo da arte e do mito é a comemoração. Na experiência da
festa de caráter religioso rompe-se o tempo ordinário. A arte e o
mito não são potências sobre-históricas por não participarem do devir
dos acontecimentos, mas sim porque seu tempo não é o cotidiano,
porém aquele que traz a experiência de plenitude. Elas contrastam
com a história por seu caráter eternizante, de certo modo, garan-
tem-na: “As festas recorrentes não são assim chamadas porque são
registradas numa ordem temporal, mas ao contrário, a ordem tem-
poral surge a partir do retorno das festas” (Gadamer 5, p.64). Além
disso, arte e mito evidenciam o poder formativo da memória. Sem
este poder de fixar formas e ser capaz de organizá-las em movi-
mentos segundo uma temporalidade própria e significativa, quer
dizer, em especial, o poder de forjar uma aventura, um drama, não
haveria a narrativa histórica. A história depende do caráter modula-
dor das potências sobre-históricas.
O confronto entre história e atmosfera a-histórica é um dos prin-
cipais exemplos da dialética nietzschiana, e equivale aos contrastes
entre consciência e inconsciência, lembrança e esquecimento, luz e
treva, ou ainda, lucidez e embriaguez. É emblemática a sentença
de Goethe com a qual Nietzsche começa o seu colóquio: “De resto,
abomino tudo que me instrui sem aumentar e estimular imediata-
mente a minha atividade”. Ela indica já a posição através da qual é
dirigida uma crítica à ciência histórica: seu esquecimento de que
deve ser apropriada à atualidade, que deve convir à existência; o
esquecimento da obrigação de animar o presente – a atualidade da
vida –, de contribuir para a atividade vivificante. A inversão relati-
va ao domínio entre saber e vida, realizada por Nietzsche, é resu-
mida na alteração da sentença cartesiana cogito ergo sum para vivo
ergo cogito (HL/Co. Ext. II §10). A vida, a existência, com seus

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Fronteiras da História

aspectos mais discrepantes, com seus sentidos e não-sentidos, do-


minam e devem reger a teoria e a razão. O valor da ciência e da
história não está, portanto, em seu grau de verdade, em sua cienti-
ficidade, mas em sua capacidade de contribuir para a afirmação
incondicional da existência.

3. Horizonte

Em Nietzsche, o modelo de cultura e saber é inspirado na jovia-


lidade grega. A teoria estava associada à realização da existência,
não simplesmente à busca de um saber erudito: “os gregos doma-
ram seu impulso do conhecimento, impulso em si mesmo insaciá-
vel, através do respeito à vida, mediante uma ideal necessidade de
vida – pois o que aprendiam, desejavam viver imediatamente”
(PHG/FT §1). Na Antigüidade, a dignidade e o reconhecimento da
ciência estavam diretamente vinculados à procura de virtude: “Há
algo de novo na história, quando o conhecimento quer ser mais do
que um meio” (FW/GC § 123). Não mais medium da vida, a ciên-
cia decai em excesso. A consciência histórica moderna de justiça e
verdade ataca a faculdade plástica da existência. Graças a esta fa-
culdade, os gregos apoderaram-se de seu passado e da cultura
alheia, convertendo-os em “seu próprio sangue”. Eles foram capa-
zes de dominar o impulso do conhecimento por uma força que os
unia em torno de sua cultura. Esta “força plástica” (platische Kraft
– HL/Co. Ext. II §1) torna tudo que é estranho e longínquo em
próximo e próprio.
Inexiste uma tal compreensão na modernidade: sua consciên-
cia histórica converteu o passado em “coisa factual”, em objeto de
posse da ciência. Ela encobriu o caráter mais próprio do passado, o
de ser pertença de um homem, de um povo, de uma cultura. Em
desarmonia com a vida, o sentido histórico condutor da modernidade

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 51


Sampaio, A.

não permite mais nenhuma maturação lenta, que é a espécie de


amadurecimento da cultura. Nietzsche utiliza, para ilustrar o pro-
cesso de apropriação do novo ou daquilo que é exterior, a alegoria
da serpente que ao comer coelhos vivos deita-se tranqüilamente ao
sol, evitando qualquer movimento além do indispensável. Há um
tempo de maturação necessário às transformações geradas ou
gestadas no seio de uma tradição para converter o novo em costu-
me e caráter. A apropriação anímica da cultura equivale à assimila-
ção física dos viventes, ela requer um tempo apropriado de diges-
tão – de gestação; para ser mais preciso, tal processo interior é a
cultura autêntica (HL/Co. Ext. II §4). Ao falar da serpente, a ima-
gem não poderia ser outra senão a da alimentação, pois o animal
vive apenas de modo não-histórico. Não há nenhuma projeção ou
apercepção da temporalidade; nada há além do instante. Ele, as-
sim como o recém-nascido, é por natureza esquecidiço: vivem am-
bos, na inconsciência, em uma feliz cegueira.
Se a felicidade do animal e da criança deve-se ao esquecimento
que os mantém sempre no instante, nem esta felicidade, nem este
esquecimento, nem este instante são os do homem. O instante do
homem é a presença que circunscreve passado e futuro. O seu es-
quecimento é o correlato imprescindível à memória. E a sua felici-
dade é uma conquista e não um repouso no não-sentido; não é a
aceitação cínica despreocupada do “mundo”. O mundo com o qual
o homem se relaciona não é simplesmente dado, simplesmente pre-
sente, mas um mundo simbólico e temporal. Se a felicidade depende
da “aptidão de sentir de forma a-histórica”, esta capacidade só pode
existir em um ser que compreende sua temporalidade, que a pro-
nuncia em sentenças simples como “foi...”, “era...”, “será...” etc.
Entregue ao puro esquecimento, em seguida a criança

aprende a palavra “era” [“es war”], palavra-chave com a qual tem aces-
so à luta, dor e fastio do homem, para recordar-lhe que sua existência

52 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

fundamentalmente é – um imperfectum que nunca chega a aperfeiçoar-


se. Quando finalmente a morte traz o anelado esquecimento, então sem-
pre simultaneamente ela abate o presente e a existência, e imprime o
selo deste saber de que a existência é um ininterrupto ter sido, algo que
vive de negar-se e consumir-se, de contradizer-se a si mesmo. (HL/Co.
Ext. II §1).

Com a palavra “era” a criança ingressa no mundo humano. Que


se pode entender desta afirmação, a não ser que a memória é um
traço característico da humanidade e que esta pode ser definida
por sua relação com o tempo? Por outro lado, o que é o apelo trági-
co da consciência de limite e finitude, senão uma viva aceitação da
morte, do desaparecimento da individualidade? Ao ser introduzida
em um mundo cultural, ao aprender a mais imediata conjugação de
verbos, a criança é humana: é um ser de temporalidade. O homem
e a humanidade são históricos e a historicidade do homem perpas-
sa pela linguagem; poder-se-ia dizer que a linguagem modela nossa
percepção do tempo. A memória é acondicionada pela língua, o
que não significa restringir-se a ela1.
A humanidade é definida por seu retorno ao passado: pela “força
de servir-se do passado para a vida e de refazer através dos aconte-
cimentos passados a história presente [Geschichte], o homem torna-
se homem” (HL/Co. Ext. II §1). O homem não age nem como bicho
entregue ao puro esquecimento nem como discípulo de Heráclito.
O contraste entre esquecimento e memória exibe a forma do ho-
mem relacionar-se com o tempo. A questão que Nietzsche respon-
de é a de como um ser de memória relaciona-se com o instante que
é abertura de temporalidade, em outras palavras, como a vida
conforma-se em cultura a partir da relação que o presente tem com
as outras duas dimensões do tempo. Esta é uma questão posta en-
tre os séculos XIX e XX, pois nunca antes o olhar para o passado
tinha sido tão problemático. Traço marcante do homem, o resgate

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 53


Sampaio, A.

do passado deve contribuir para a vitalidade de seu modo de ser


em um mundo simbólico. Este mundo não emerge apenas da lu-
minosidade. Ele é claridade e escuridão. Ele mesmo é configurado
através da inter-relação de saber e não saber, de lembrança e es-
quecimento. “Resgatar” é um termo que resulta do cruzamento entre
duas palavras latinas: “reexcaptare”, que indica o movimento de algo
trazido das trevas, e “recaptare”, que assinala que algo deve ser
conduzido às trevas ou nelas conservado. Desvelamento e velamento,
que em bom português se diz “revelação”. Se a história nada mais
é, mas também nada menos, do que a apropriação mnemônica do
passado, ela é lembrança e esquecimento2.
Na atualidade, no futuro e no passado há sempre coisas
irrelevantes, que assim o são pois uma presença ou não vê ou fecha
os olhos para não ver, desvia o olhar e recusa-se a dizer sobre aqui-
lo que quando muito se assemelha a um vulto. Cada narrativa do
passado, apresentação do presente ou projeção de um futuro são
modos de organizar a memória através de elementos simbólicos e
imaginários em que o esquecimento opera de modo seletivo. O que
falta à consciência histórica do homem moderno é, segundo
Nietzsche, saber do caráter ativo do esquecimento. Isso, que se pode
chamar de “esquecimento do esquecimento”, leva o Romantismo a
entregar-se à arte de colecionar e conduz o Iluminismo a um exces-
so de consciência. O esquecimento é uma faculdade ativa da apro-
priação, é potência do processo de incorporação próprio da vida.
O excesso da história é a desarmonia entre os elementos
contrastantes da vida. A doença histórica é a desmesura da memó-
ria. Ela não é produto simplesmente de uma demasiada recorda-
ção. Essa lembrança é desmedida porque é desraigada da vida –
que segrega, valora, hierarquiza e significa ao esquecer. A questão
não é puramente quantitativa, mas de incorporação. A cada tipo de
história acompanha uma espécie de esquecimento que a torna pos-
sível. Assim, em vez de afirmar que a memória desenraizada da

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Fronteiras da História

vida leva esta à degradação, pode-se muito bem dizer que é o es-
quecimento, apartado das necessidades da existência de cada atua-
lidade, que amofina a vida, tornando-a enferma.
A memória que imagina o passado como passado é excessiva,
pois não incorpora a tradição. A doença da histórica não é fruto
propriamente nem do cuidado com as minúcias nem da criticida-
de, mas sim da vontade de verdade e justiça. Crendo ter atingi-
do um tal estado de clareza, o homem oitocentista mira-se como
epigonal. Ele carece da capacidade de absorver elementos estra-
nhos e transformá-los em integrantes de um único estilo. Falta-lhe,
em uma palavra, um horizonte. Eis a fatalidade do homem moder-
no: “A terra firme cede em incerteza para ti, tua vida já não mais
possui escoras, apenas algumas teias de aranha que se rasgam a
cada novo jeito de teu conhecimento” (HL/Co. Ext. II §9). Sentin-
do-se herdeiro de todo o passado, ele não é descendente de passa-
do algum. A memória não faz sentido se não se é herdeiro daquilo
que se rememora. O preconceito de ser epigonal mitiga o espírito
de fazer futuro.

4. Consciência histórica

A cisão proclamada pela teoria, entre ela própria e a vida, cul-


mina na consciência histórica, excedendo-se em divisão entre inte-
rior e exterior. O sentido histórico, sua consciência e idéia de justi-
ça são, a um só tempo, provedores e sinais da decadência do
existente, são continuadores do niilismo ocidental. Repleto de da-
dos históricos, o homem não possui a pujança de conferir-lhes um
sentido comum. Carece de uma coesão que assegure dignidade su-
perior à existência e dê confiança ao povo e aos indivíduos; um
horizonte que mostre a propriedade conjunta de uma comunidade
e congregue a diversidade em harmonia. Ele carece de cultura, que

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 55


Sampaio, A.

é, antes de tudo “unidade de estilo artístico em todas expressões da


vida de um povo” (DS/Co. Ext. I §1; HL/Co. Ext. II §4). Cultura no
sentido grego de um princípio formativo, de paidéia, isto é, “a idéia
de cultura como uma phýsis nova e aperfeiçoada, sem interior e
exterior, sem dissimulação e convenção, de cultura como uma una-
nimidade entre vida, pensamento, aparência e querer” (HL/Co. Ext.
II §10; ver SE/Co. Ext. III §3).
Curvado sobre si, sobre sua “interioridade”, o homem moder-
no contempla um amontoado de coisas apreendidas, mas nada en-
contra que conduza à ação exterior: eis o reflexo de que a cultura
histórica extirpa os instintos condutores da vida presente. Tal ho-
mem constitui-se em conflito com a tradição, o que se revela princi-
palmente em sua criticidade e nos fatos estranhos e incoerentes acu-
mulados pela historiografia, sem reuni-los segundo um só sentido.
Sem esta unidade de estilo estético, a arte, o mito e a ciência dei-
xam de ser o desabrochar da cultura autêntica. A falta de um hori-
zonte que acomode a lembrança numa vivacidade de projeto deve-
se à ausência de um estilo coeso. A divisão entre exterior e interior
é uma das características marcantes do que Nietzsche concebe como
barbárie moderna. Não mais a cultura suscita o saber. Agora é a
idéia de cultura, um certo sentimento que se tem dela, que conduz
a escolhas deliberadas.
Como poderia nascer uma unidade de estilo quando os cientis-
tas e os pensadores são equiparados a simples trabalhadores das
fábricas? A ciência, reduzida pela objetividade com que se busca a
verdade enquanto certitudo, perdeu o compromisso com sua atua-
lidade. Age por ruminação e lembrança, mas sem um desejo de
porvir. Jovens cientistas apropriam-se do método de trabalho, dos
truques e tom superior de seus mestres, convertendo-se em meros
servidores da verdade (HL/Co. Ext. II §7). Se ocorre manter um
vivo pacto com a atualidade e seu porvir, o cientista o faz porque
crê em uma história necessária e universal. Acredita na utopia cris-

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Fronteiras da História

tã de redenção e é governado por um sentimento, também cristão,


de ser epigonal.
Tanto um quanto o outro, tanto o descompromissado quanto o
compromissado historiador, qualificam arbritariamente de
“objetividade” o modo dominante com que a ciência mede as opi-
niões e feitos passados, e de “subjetividade” todas as outras formas
contrastantes com a sua: no momento presente, nas opiniões corri-
queiras, “encontram eles o cânone de todas as verdades; sua tarefa
é adaptar o passado à trivialidade atual” (§6). A vida presente deve
governar toda contemplação e ânsia de conhecimento, todavia isso
não significa que deva haver um parâmetro único de contemplação.
É preciso que a consciência histórica adquira também um olhar para
si mesma, e com isso despeça-se da ilusão de que a sua razão é
mais objetiva e justa do que as outras formas de percepção de ou-
tros tempos.
O Iluminismo concebeu-se como cume do processo histórico e
em ruptura com a tradição. Depois de um necessário e dramático
processo, a humanidade estaria em condições de determinar seu
próprio norte apenas pela “razão”. A Aufklärung, nomeando-se, faz
de si um problema da modernidade e sobre a modernidade. Ela é
a primeira a situar-se em relação a seu passado e futuro. Este pas-
sado é a fonte de equívocos que a modernidade superou ou tenta
superar, e o futuro é a concretização dos ideais que faz desta
modernidade um momento singular ante todo o passado e diante
de todas outras formas de “civilização” entendidas como “atrasa-
das”. Conforme diz Foucault: “Vê-se aflorar uma nova maneira de
colocar a questão da modernidade, não mais numa relação longitu-
dinal com os antigos, mas no que se poderia chamar uma relação
sagital com sua própria atualidade” (Foucault 4, p.105). O presen-
te aponta sua seta inquisitiva à sua própria época.
Ao lado deste universalismo do Iluminismo, que coloca a si a
questão de uma modernidade autônoma para o Ocidente e para o

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 57


Sampaio, A.

mundo, está o particularismo dos românticos, que se vincula às pes-


quisas colecionadoras das tradições populares, do folclore, na ten-
tativa de construir uma história e uma identidade nacional. Entre
estas duas posições, Nietzsche encara o problema do Ocidente e o
da Alemanha. Para ele, um e outro devem ser pensados conjunta-
mente, ainda que a questão da identidade alemã não se deva res-
tringir à busca de orientação do Ocidente, mas contracenar com
ela. Nietzsche contempla o Ocidente enquanto continuador da tra-
dição grega e vê o mito como ordenador e significador da contem-
poraneidade de um povo. Ele não está disposto a abandonar a cons-
ciência histórica, ao contrário, pensa que a aclarando, levá-la-ia ao
reconhecimento de seus limites: de que não é condutora de si e de
tudo o mais.
Ao alcançar a consciência histórica, o homem moderno pensa
estar se despedindo da história. No deslumbramento do homem
moderno, em sua crença de justiça e redenção dos tempos há algo
de paralisante: um lembrar-se de que vai morrer (memento mori),
um memorar a proximidade de fim dos tempos legada pela teologia
cristã da Idade Média. Do ponto de vista psicológico, o empenho
em rememorar e julgar o passado traduz a autoridade outorgada
pela modernidade a si mesma, é o correlato do Juízo Final conver-
tido em necessidade universal da história. Com isso, dispõe-se a
crença de que os homens da atualidade são epigonais, pois pensam
contemplar o envelhecimento da humanidade: “à velhice cabe afa-
zeres senis, ou seja, olhar para trás, conferir, concluir, procurar
consolo no que se passou mediante recordações, enfim, eis a cultu-
ra histórica” (HL/Co. Ext. II §8). O cristianismo, com sua idéia de
fim dos tempos e conquista do reino terrestre, transformado em re-
ligião natural, junto com a crença socrática de justiça através da
consciência resultam em fé na razão e no progresso, característicos
da consciência histórica. A tese defendida por Nietzsche é que o
cristianismo “retroalimenta-se” da cultura histórica: o excesso da

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Fronteiras da História

história tem sua origem no “memento mori medieval e na desespe-


rança que o cristianismo traz em seu coração contra todos os tem-
pos vindouros da existência terrena” (§8). A história não passaria,
assim, de uma teologia camuflada.
O que caracteriza propriamente a consciência histórica? A idéia
de que o próprio pensamento que reflete a história passada deriva-
se desta e pertence à sua atualidade. Pode-se dizer que tal consciên-
cia formaliza-se com Bayle e Vico, amadurece com os enciclopedistas
e tem em Hegel e Marx, para não sair do âmbito da filosofia, seus
representantes. Mas ela já se encontra em Immanuel Kant, mais ex-
plicitamente no opúsculo Idéia de uma história universal de um pon-
to de vista cosmopolita. Ele está consciente de que suas reflexões
não estão fora do tempo histórico; porém, a seqüência de aconteci-
mentos que constituem a história é governada por uma potência a-
histórica: a dialética de contradições faz mover a humanidade rumo
a um maior esclarecimento e realização da liberdade humana. Neste
sentido, pode-se dizer que em Nietzsche a consciência histórica al-
cança a maioridade: ele não mais imagina uma estrutura prévia per-
fazendo os eventos históricos. O tempo não é derivado da eternidade,
nem de uma estrutura eterna, ao contrário, o “eterno” é uma con-
quista no devir da cultura. Diferente de Kant, Hegel e Marx,
Nietzsche não vê uma história progressiva. Ele compreendeu o equí-
voco de tal perspectiva, o de que haja uma estrutura anterior ao devir.
Por isso, a interpretação da história deve interpretar a si mesma:

a origem da cultura histórica – e de sua intrínseca e totalmente radical


contradição com o espírito de um “novo tempo”, de uma “consciência
moderna” –, essa origem deve, ela mesma, ser reconhecida como histó-
rica, a própria história deve resolver o problema da história, o saber
deve voltar o dardo contra si mesmo – esse triplo deve é o imperativo do
espírito do “novo tempo”, caso haja nele algo realmente novo, podero-
so, vital e original. (HL/Co. Ext. II, §8).

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 59


Sampaio, A.

Nunca se tratou de negar por completo a consciência de seu


tempo – ou talvez mesmo de negá-la. Importava conferir outro va-
lor aos valores atuantes e renovado sentido ao mundo a partir de
uma cosmovisão dionisíaca. Nietzsche combateu os aspectos mais
decisivos da modernidade, ao mesmo tempo em que buscou com-
preendê-los profundamente. Este duplo movimento também pode
ser entendido como um dos traços marcantes da Aufklärung – o
esclarecimento crítico ou a crítica que esclarece. A modernidade
caracteriza-se justamente por seu criticismo, por sua renovada to-
mada de posição a partir da polêmica. Com isso não quero dizer
que Nietzsche seja um típico moderno e sim assinalar que a sua
relação com a modernidade não pode ser limitada a de um detrator.
Na verdade, ao dirigir uma suspeita a algo que é um dos principais
motivos de orgulho da modernidade, sua consciência histórica,
Nietzsche contribui para o desenvolvimento de tal consciência: “nós
todos padecemos de uma febre histórica devoradora e, ao menos,
deveríamos reconhecer que padecemos dela” (HL/Co. Ext. II,
Prefácio).
A exigência de reconhecimento da situação presente do homem
e a vontade de expor um pensamento crítico, em outras palavras,
refletir sobre as características de sua época e polemizar publica-
mente com seus pares são qualidades da filosofia nietzschiana e da
iluminista. A polêmica de Nietzsche não se reduz, todavia, a um
aspecto da “maioridade” de que fala Kant em O que o Iluminismo?,
pois pretende reconquistar o espírito “agonístico” da Antigüidade,
neste presente moderno. Nietzsche imagina “novos tempos” que não
tenham como centro a razão – que estejam, portanto, conscientes
de que não é a consciência quem governa ou deve governar a exis-
tência. Ele pretende, por assim dizer, uma outra atualidade, outro
horizonte de possibilidades.

60 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

5. A história e suas origens

A grande discussão, realizada na segunda Consideração extem-


porânea, sobre a natureza da narrativa histórica, sobre a organiza-
ção da memória e a poderosíssima força do esquecimento, é atra-
vessada pela afirmação do instante, do presente, deste presente
pleno que Goethe via na Antigüidade. Nietzsche faz questão de ob-
servar que os antigos podiam viver sem esse louco afã pela história,
e que, na verdade, viviam melhor. Apenas em um sentido restrito é
possível afirmar que os gregos foram inventores da história: quanto
ao estilo cuja narrativa envolve um tipo de pesquisa; ele começa
propriamente não com Heródoto ou com seu antecessor, Hecateu,
mas com Tucídides, que se apropriou dos métodos desenvolvidos
por Hipócrates e seus discípulos. O profundo senso de temporali-
dade determinante da consciência histórica é, na verdade, deriva-
da dos judeus e dos cristãos. Auerbach, em Mimesis, apresenta uma
interessante caracterização da narrativa homérica em contraste com
a narrativa judaica. Ele demonstra não haver em Homero segundos
planos: “O que ele nos narra é sempre somente presente, e preen-
che completamente a cena e a consciência do leitor” (Auerbach 1,
p. 3). Por outro lado, no sacrifício de Abraão não há, propriamente
falando, tempo ou espaço, mas um homem – ou, caso se prefira, o
homem – diante do deus Iahweh; o lugar e o tempo são morais e
não sensíveis. E, por isso mesmo, o judeu concebe a idéia de histó-
ria universal:

Os poemas homéricos fornecem um complexo de acontecimentos pre-


ciso, espacial e temporalmente delimitado; independente dele, concebe-
se tranqüila e facilmente outros complexos anteriores, simultâneos e pos-
teriores. O Velho Testamento, porém, fornece história universal; começa
com o princípio dos tempos, com a criação do mundo, e quer acabar
com o fim dos tempos, com o cumprimento da promessa, com a qual o

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 61


Sampaio, A.

mundo deverá encontrar seu fim. Tudo o mais que ainda acontece no
mundo só pode ser apresentado como membro desta estrutura; tudo o
que disto fica sendo conhecido, ou até interfere com a história dos ju-
deus, deve ser embutido na estrutura, como parte constitutiva do plano
divino... (idem, p. 13).

Qualquer acontecimento significativo, um ato terrível ou uma


grande conquista, deve ter sido causado pelos deuses: este é o modo
do homem antigo conferir sentido ao que, depois da Modernidade,
passou a ser visto como acaso ou ato humano. Isto não basta, toda-
via, ao judeu e ao cristão, pois cada ato decisivo deve ser uma cons-
piração divina rumo ao telos. Eles precisam sempre lembrar de que
vão morrer. Eis o memento mori da Idade Média. Contra a idéia de
processo universal, Nietzsche afirma a vida presente.
Se o historiador atual rejeita tal idéia, cada vez mais e de modo
mais difundido, ele procura expor as injustiças do passado, como
se suas denúncias pudessem contribuir para dissipar as injustiças
do presente, tal qual um feiticeiro que ao pronunciar o nome de um
espírito maligno acredita conjurá-lo. Esta redenção através da cons-
ciência é filha de seu tempo – é ela também ressentida e niilista.
Que idéia de justiça a move, se não pode ser a justiça da força? É a
justiça platônica, cristã, eterna, eqüitativa que exige o messianismo
do tipo encontrado em Walter Benjamin, na suas teses Sobre o con-
ceito da história. Outro princípio e outra história aparecem com
Nietzsche. Veja-se, por exemplo, Genealogia da moral: uma escrita
sob o ponto de vista da vontade de potência.
A história não se constitui apenas de acontecimentos, e os acon-
tecimentos, por sua vez, não se dão apenas por motivos políticos,
econômicos ou sociais. Há o imaginário, há a dimensão dos valores
e das interpretações. Na verdade, a interpretação é mais do que
simplesmente uma dimensão, ela é a natureza de tudo que se fez e
se faz. Já citei a sentença emblemática do perspectivismo: “não há

62 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

fatos, apenas interpretações”, mas ela não está assim destacada; o


fragmento póstumo diz na íntegra:

Contra o positivismo que fica preso ao fenômeno “só há fatos”, eu


diria: não, justamente fatos é o que não há, e sim interpretações. Não
podemos constatar nenhum fato “em si”: talvez seja um absurdo querer
algo assim. “Tudo é subjetivo”, direis vós: mas já isso é exegese, o “su-
jeito” não é nada dado, porém algo inventado por acréscimo, subposto.
– Será que é necessário, em última instância, colocar o intérprete ainda
por trás da interpretação? Já isso é invencionice, hipótese.
Na medida em que a palavra “conhecimento” ainda tem qualquer
sentido, o mundo é cognoscível: mas ele é interpretável de outro modo,
ele não tem nenhum sentido subjacente, porém inúmeros sentidos,
“perspectivismo”.
Nossas necessidades são aquilo que interpreta o mundo; os nossos
instintos e seus prós e contras. Cada instinto é uma espécie de ânsia de
dominar, cada um tem a sua perspectiva que ele gostaria de impor como
norma a todos os demais instintos. (KSA, XII, 7[60]).

Eis o mundo: sendo uma pluralidade de potências, de interpre-


tações, ele é uma pletora de sentidos; porque é isto interpretação:
conferir e determinar sentido e direção. Assim, o que aí se lê é a
inexistência do fato sem sentido: um fato já é, por ser fato, envolto
e imerso em interpretações e, sob estas interpretações, ele próprio
é interpretação. É mais do que dizer que não existe coisa sem ser
percebida, rememorada, imaginada – pois a interpretação pertence
à natureza do universo e não apenas a uma dada relação entre su-
jeito e objeto na qual este é representação daquele. Como diferen-
ciar, então, de modo permanente e claro os acontecimentos históri-
cos da narrativa histórica, Geschichte e Historie? Não é possível.
Fazer e contar história não devem nem podem ser dissociados.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 63


Sampaio, A.

Abstract: Based on Nietzsche’s critique of nineteenth-century historio-


graphy in the second Untimely Meditation, this article aims to show how
he contributed to the formation of a historical consciousness. For Nietzsche,
modern man’s excess of historical consciousness is a “sickness” derived
from a theoretical approach based on the idea of justice, whose corres-
pondence is found in the pretense of scientific neutrality. By criticizing
this type of objectivity as well as the notion of progress, Nietzsche defends
the necessity of history to interpret itself, i.e, for consciousness and science
to seriously consider their own limits.
Keywords: History – historical consciousness – memory – forgetfulness
– horizon – perspectivism

notas
1
José Bragança de Miranda, em seu artigo “Nietzsche e a
modernidade: considerações em torno da II Intempestiva”,
chega a uma interpretação próxima à que apresento, com
a diferença de uma conclusão (a qual assinalo em itálico)
mais própria aos tempos atuais que a Nietzsche: “Ligar a
memória ao homem e o esquecimento ao animal, numa
oposição que é logo desconstruída, implica dizer que tudo
se passa na linguagem, tudo tem de passar pela linguagem.
É ela que cria uma memória no homem, e com ela a du-
plicação da voz, que é simultaneamente uma divisão do
interior e do exterior” (s.d, p.193). Na verdade, nem tudo
passa pela linguagem, mas deve-se principalmente a ela a
duplicação do mundo. Se o conhecimento – excessivo – é
o responsável pela cisão entre exterior e interior, ele só o
é na medida em que confia na ilusão da linguagem. A teo-
ria converteu a linguagem em instrumento de formulações
conceituais da verdade, sem compreender seu caráter
inventivo. Com isso, deixou-se conduzir por seus pre-
conceitos.

64 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

2
O contraste entre estas duas potências é elucidado por Jesiel
Ferreira de Oliveira Filho: “Lembrar, como sabemos, é
repetir, é trazer outra vez algo à consciência, embora de
maneira variadamente recombinante. Esquecer, menos do
que ação oposta ao lembrar, é a operação conjugada de
selecionar o repetível, segregando dentre os acontecimen-
tos disseminados nas consciências e no tempo aqueles que
devem ficar ativos ou inativos. Aliás, pela etimologia latina
<*excadescere>, relacionada à ação de “podar”, o es-
quecer seria algo aproximável a um trabalho como o de
aparar os ramos em excesso, ou demasiado espinhosos,
dessa roseira rizomática que é a trama da memória. Metá-
foras à parte, é pela ação de memorar que produzimos
nossos campos de referência para a articulação temporal
da realidade” (Oliveira Filho 18, p. 22).

referências bibliográficas

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Foucault. Rio de Janeiro: Livraria Saurus, 1984.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 65


Sampaio, A.

5. GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: arte como


jogo, símbolo e festa. Trad. Celeste Aida Galeão. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
6. _______. Verdade e Método: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
7. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte II. Tradução
de Márcia de Sá Cavalcante. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1993.
8. HERÔDOTOS. História. Tradução e introdução de Mário
da Gama Kury. 2. ed. Brasília: UnB, 1988.
9. KANT. Idéia de uma história universal de um ponto de
vista cosmopolita. In: GARDINER, Patrick. Teorias da
história. Tradução e prefácio de Vítor Matos e Sá. 3.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
10. LORAUX, Nicole. “Elogio do anacronismo”. Trad. Ma-
ria Lúcia Machado. NOVAES, Adauto (Org.). Tempo
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ria Municipal de Cultura, 1992.
11. MIRANDA, José A. Bragança de. “Nietzsche e a
modernidade: considerações em torno da II Intem-
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Rio de Janeiro: Elfos/ Lisboa: Edições 70, 1995.
13. _______. A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.

66 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Fronteiras da História

14. _______. Considerações intempestivas I e II. Tradução


de Lemos de Azevedo. Lisboa: Presença/ São Paulo:
Martins Fontes, [1976].
15. _______. Fragmentos finais. Seleção, tradução e prefá-
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prensa Oficial do Estado, 2002.
16. _______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradu-
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17. _______. Sobre la utilidad y los prejuicios de la historia
para la vida. Traducción: Dionisio Garzón. Madrid:
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18. OLIVEIRA FILHO, Jesiel Ferreira de. “O regresso das
memórias”. In: Leituras pós-coloniais de comemorações
lusófonas. Salvador, 2003. 180f. Dissertação de
Mestrado em letras e lingüística do Instituto de Le-
tras, Universidade Federal da Bahia.
19. SOUSA, Eudoro de. História e mito. Brasília: UNB, 1981.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 67


Povos e Pátrias: Wagner e a política

Povos e Pátrias:
Wagner e a política
Henry Burnett*

Resumo: Este ensaio se constitui numa tentativa de interpretação das re-


lações da música de Wagner com a política alemã, tais como Nietzsche as
sugeriu na seção “povos e pátrias” de Para além de bem e mal.
Palavras-chave: arte – música – política – Wagner

Para além do bem e do mal não possui os elementos necessários


para ser tratado como um livro que dê continuidade à linha de pen-
samento estético-musical traçada entre obras como O nascimento
da tragédia (1871) e O caso Wagner (1888), embora já se encontre
cronologicamente situado na chamada terceira fase, onde Nietzsche
teria desenvolvido sua estética final, destilada com muita intensida-
de no interior dos fragmentos póstumos. Apesar disso, os aforismos
sobre a arte no interior do livro possuem grande importância para
uma interpretação ampla do papel da música em sua obra, pois
condensam suas idéias a este respeito num momento em que seus
esforços estavam voltados para a constituição de sua doutrina da
vontade de potência, momento extremamente grave de seu percurso
e onde os temas do niilismo e do eterno retorno são constantemente
focados. Este ensaio se constitui numa tentativa de interpretação

*
Doutor em Filosofia/Unicamp.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 69


Burnett, H.

das relações da música de Wagner com a política alemã, tais como


Nietzsche as sugeriu na seção “Povos e pátrias” de Para além de
bem e mal.
Temos, de início, um primeiro enigma a decifrar, na seção 240
do capítulo povos e pátrias, onde estão reunidos grande parte dos
aforismos ligados à música: “Ouvi, novamente pela primeira vez, a
abertura de Wagner para os Mestres Cantores” (JGB/BM § 240). O
que sugere esse falso paradoxo? A obra mencionada remete a um
momento muito significativo, pois foi através de sua abertura, e a
de Tristão e Isolda,1 que Nietzsche, digamos, converteu-se ao wagne-
rismo quando jovem, como testemunha a carta escrita a Erwin Rodhe
no mesmo dia da primeira audição, 27 de outubro de 1868: “Hoje
à noite estive no Euterpe, que começou seus concertos de inverno e
me fortaleci tanto com a introdução à Tristão e Isolda quanto com a
abertura dos Mestres Cantores. Não sou capaz de me comportar di-
ante dessa música de forma criticamente fria, cada fibra, cada ner-
vo estremece em mim, e há muito tempo não tenho um tal persis-
tente sentimento de enlevo do que durante a abertura nomeada por
último” (KSB 2, p. 332).
Foi nesse mesmo período que se conheceram. Mas há uma ra-
zão por trás desse retorno tardio a Wagner, Nietzsche a chamará de
“patriotice” (Waterländerei) na seção seguinte, ironizando sua “recaí-
da” (Rückfall) em velhos “amores e estreitezas” (Lieben und Engen).
Mas essa nova audição é distinta, e vem acrescida de um aparato
crítico muito diverso daquele relatado na carta a Rohde. Ouvir a
mencionada abertura lendo a passagem que a ela se refere, na seção
240, permite tentar reconstruir as imagens forjadas por Nietzsche.2
Há um clima, desde o início, de uma grandeza irrefreável, cujo
paralelo possível com uma imagem contemporânea remete às trilhas
cinematográficas para filmes épicos, onde o forte acento das notas
cria um clima de anúncio de algo por acontecer – no caso dos épicos,
de uma cena de alta intensidade emocional, ou de um desfecho

70 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

grandioso –, mas que, em Wagner, pode servir de prenúncio do


que ele imaginava ser seu drama musical: um retorno ao sentimento
ou ao ambiente trágico. Nietzsche é absolutamente preciso na sínte-
se da abertura que, embora não dure mais de dez minutos, permite
identificar os elementos aparentemente subjetivos da descrição,
como: “Ora nos dá uma impressão de antigüidade, ora de estranhe-
za, aspereza e excessiva juventude; é tão caprichosa quanto pompo-
sa-tradicional (...). Ela flui de modo amplo e cheio: e súbito há um
momento de inexplicável hesitação, como uma lacuna entre causa e
efeito, um peso que leva ao sonho, quase um pesadelo” (JGB/BM §
240). Há, efetivamente, uma alternância entre os ataques fortes da
orquestra e um momento em suspenso, onde um estranho silêncio
toma conta, é onde quase não se ouve a orquestra, é aí onde parece
haver a “hesitação” (Zögerns), a “lacuna” (Lücke). O que Nietzsche
quer dizer com essa descrição quase técnica da abertura?
A grandeza da obra tem uma analogia soturna com a alma ale-
mã, ela é seu reflexo, um jogo narcísico que serve para pôr frente a
frente a miséria de ambos, assim Nietzsche interpreta essa vinculação
através do orgulho que os alemães têm ao ouvi-la. Tanto a obra
quanto a alma dos alemães se autocomprazem com as suas gigan-
tescas proporções, seu deslumbramento é fruto da vontade de ex-
pandir por toda a Europa seus domínios políticos e culturais. O pró-
prio Wagner compôs a abertura como modo de auto-exaltação, “a
felicidade do artista consigo”, como exclamação de si mesmo, “sua
espantada e feliz consciência da maestria dos meios que aqui em-
prega”. Nietzsche está falando da consciência de que Wagner esta-
va munido quando compunha sua revolução musical – “meios ar-
tísticos novos, recém-adquiridos e ainda não testados”; sua obra
quase se confundia com a expansão dos domínios alemães, e
Nietzsche é extremamente cruel quando pressente a satisfação dos
alemães e do próprio Wagner com essa irmandade. Se a seção ini-
cia emblemática, encerra de modo desconcertante: “Tal espécie de

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 71


Burnett, H.

música expressa da melhor maneira o que penso dos alemães: eles


são de anteontem e do depois de amanhã – eles ainda não têm hoje”
(JGB/BM § 240). Essa falta de presente está ligada de maneira es-
treita com um tema central da maturidade de seu pensamento: a
grande política.
Na verdade Nietzsche serve-se, ao longo de todo o capítulo, de
um outro personagem além de Wagner: o estadista prussiano
Bismarck; se opta por omitir seu nome, é por temor à censura.3 No
entanto, essa “filosofia política” de Nietzsche não pode ser corrobo-
rada com muita segurança, na medida em que, possivelmente, ele
desconsidere elementos importantes nas relações de poder da épo-
ca, fornecendo muito mais sua impressão pessoal do período do
que um quadro fiel e irrepreensível dos acontecimentos; embora,
certamente, não se trate de meras divagações, pois Nietzsche era
um aguçado leitor, e seus interesses amplos pelos mais diversos ní-
veis da cultura são conhecidos. Mesmo assim, não pretendo aqui
tomar suas referências históricas como representação daquela rea-
lidade, embora não se possa tirar delas seu valor testemunhal, pois,
de outra forma, de pouco valeria sua crítica a Wagner.
A abertura de Os Mestres Cantores serve como analogia do im-
pério centralizado do governante alemão, ambos grandiosos e, por
isso, merecedores do orgulho da Alemanha. Não escapa a Nietzsche
um elemento sutil e fundamental nessa exaltação dos alemães:
“Estamos na era das massas: elas se prosternam diante de tudo
maciço”. Não deve escapar aqui uma questão importante: o termo
Massen remete às multidões, quer dizer, Nietzsche está dizendo que
a música e a política passam a se uniformizar também por um
nivelamento geral de quem ouve e de quem vive. Esse conjunto
revela, mais uma vez, o quanto Nietzsche se antecipou na condena-
ção da arte conformada e oficial que vai dominar os meios de pro-
dução posteriores, e que sua crítica não está ligada apenas a ele-
mentos de ordem pessoal quando o assunto é Wagner.

72 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

O diálogo forjado por Nietzsche, e já mencionado, dá-se entre


um “patriota” alemão e um francês, após a fundação do estado ale-
mão por Bismarck, vitorioso que foi sobre a França. Se, por um
lado, a Alemanha sai vitoriosa como império político, a França emer-
ge como potência cultural aos olhos de Nietzsche. Curt Paul Janz
tem a seguinte impressão dessa seção oitava: “Ele [Nietzsche] in-
vestiga a força espiritual de quatro povos europeus, sua capacidade
de opor-se à ‘loucura das nacionalidades’, que por aqueles dias
parecia atravessar uma fase ascendente, sua capacidade, enfim, de
opor-se à autodestruição da Europa e de colaborar com a educação
desse ‘europeu’ que, de sua parte, postulava o que viria retornar de
modo irrefreável no século XX. Mas Nietzsche não apontava preci-
samente para uma Europa unida politicamente, que não havia repre-
sentado nada mais que um novo ‘nacionalismo’ europeu, um nacio-
nalismo sobre uma base mais ampla, destinado com uma força
espiritual, a um espaço cultural criador de sentido, indicador, em
uma palavra, de um caminho. Desta perspectiva, Nietzsche ilumina
e clarifica ‘seus’ alemães, franceses, ingleses – e judeus –. E por-
que ‘Europa’ vale para ele, antes de tudo, como um espaço cultu-
ral, como meio de ordenar seus estudos em filosofia, literatura e,
sobretudo, música!” (Janz 1, p. 466).
Nessa vinculação entre a figura de Wagner a de Bismarck, o
próprio Nietzsche parece paradoxal ao achar que a lógica da alma
alemã – em exaltar as conquistas de Bismarck e de adorar a obra
de Wagner – valeria da mesma forma para sua própria vivência em
relação à música do maestro. A patriotice condenada antes parece
um retorno a mais, entre tantos, no percurso das relações com seu
desafeto. Se parece independente politicamente – e o é – não pare-
ce ter pensado no quanto de real patriotice (o nome pode ser outro,
paixão, ilusão) havia em sua nova audição wagneriana, embora a
abordagem aqui esteja se dando em outro nível. Minha hipótese,
portanto, é que as análises de Nietzsche sobre Bismarck não podem

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 73


Burnett, H.

ser estendidas automaticamente para Wagner, como ele parece que-


rer.4 Mas é preciso estar atento para o que poderíamos chamar de
“filosofia das aspas”, um recurso que Nietzsche utiliza abundante-
mente no texto. A partir de um duplo viés – afastamento e aproxi-
mação com o wagnerismo – espero poder encontrar um caminho
único, ou pelo menos um sentido não dúbio no interior do raciocí-
nio de Nietzsche, pois o paroxismo aqui acaba por confundir o que
talvez seja seu propósito mais elevado, o de demonstrar como a
música de Wagner se liga à política alemã quase como uma exten-
são, mas também quero demonstrar como Nietzsche vacila ao ten-
tar demonstrar sua independência, seu desapego pela arte de
Wagner. Vejamos como isso se dá.
Sua crítica à vontade de uniformização da Europa atinge em
cheio a vontade de germanização que esse processo arrastava;
Nietzsche quer tudo, menos um mundo germânico. A expressão sig-
nifica que o povo alemão possui uma imagem muito multifacetada,
o contrário da idéia de unidade cultural, a Alemanha possui ori-
gens variadas, o que o torna vulnerável diante da necessidade de
afirmação racial. Sobre esse “trauma” alemão, Nietzsche lembra
que é uma característica de seu país perguntar sempre o que signi-
fica ser alemão, parafraseando o famoso texto de Wagner, fruto do
mesmo espírito de época.5 Com esse problema de identidade – cla-
ro que pode haver um exagero irônico nisso – Nietzsche pode então
tocar no ponto nuclear de seu argumento: como um povo frágil con-
segue julgar-se “profundo” (tief) a ponto de pretender estender seus
domínios aos outros povos? Para explicar isso, Nietzsche recorre a
dois termos utilizados por ele pouco antes, no prefácio à segunda
edição de Aurora, de 1886: profundidade e superfície: “Houve um
tempo em que se costumava distinguir os alemães como ‘profun-
dos’” (JGB/BM § 244). As aspas surgem como o primeiro princípio
da ironia, mas também como incógnita, isto é, os alemães jamais
foram profundos; mas por que as aspas?

74 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

Como “povo do meio” (“Volk der Mitte”), de origem diversa, os


alemães seriam o avesso da profundidade, na mesma direção do
dito prefácio, ou seja, uma raça superficial por natureza. No prefácio,
superficial está empregado como sinônimo positivo de quem está
acima das tradições, alheio ao subterrâneo, ao que há de mais vicioso
e fixo na cultura. No livro de 86 parece ser outro o enfoque, pois
profundo não tem uma conotação conservadora, antes parece um
elogio ao que o alemão não possui de fato, pois Nietzsche está dizen-
do o tempo todo que os alemães não são profundos, ora com aspas,
ora sem. Temos então usos distintos para temas contemporâneos.
Ele pisava naquele momento em um terreno pouco propício a
vacilações, o terreno da política, daí as referências a Fichte a Jean
Paul – escritor, autor do discurso Friedenspredigt an Deutschland,
uma resposta aos Discursos a nação alemã, de Fichte – e a Goethe,
para fazer valer seus argumentos: “Jean Paul sabia o que fazia,
quando se declarou irritado com os exageros e adulações de Fichte,
mendazes porém patrióticos – mas é provável que Goethe pensasse
diferente de Jean Paul sobre os alemães, embora lhe desse razão
no tocante a Fichte” (JGB/BM § 244). Vemos então que a patriotice
declarada no início não passava de mera figuração – desconside-
rando a hipótese anterior sobre Wagner, que ainda será objeto de
atenção – e que, a bem da verdade, é intolerável para Nietzsche
uma defesa patriótica da Alemanha. Isso estaria marcado na alma
dos alemães; interrogar acerca da sentença O que é alemão? é lugar
comum em alguns livros – Humano, demasiado humano, § 323 e A
gaia ciência, § 357 –, sempre como contraponto ao texto de Wagner.
Desclassificar a alma alemã parece ser o modo de evacuar o signifi-
cado histórico de projetos não só políticos (Bismarck) e filosóficos
(Hegel) como também estéticos (Wagner), que operariam em fun-
ção de uma “germanização de toda Europa (...)”. Tal sentença vin-
cula, pelo viés da vontade de potência, domínios distintos da cultu-
ra, posto que a noção de grande política está aqui posicionada em

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 75


Burnett, H.

plano de fundo. Arte e política são parte de um domínio mais am-


plo, o domínio da cultura. Quando colocadas lado a lado – tendo a
música como um elemento de intermediação, justamente no capítu-
lo sobre os povos, onde Nietzsche antecipa a possibilidade de uma
Europa como um Estado único, uniforme (sabemos efetivamente
que a Europa unificada não se moldou pela Alemanha) – indicam a
direção que toma o seu pensamento, Wagner surgindo como o ou-
tro de Bismarck, seu duplo, sua representação estética.
De profundos, portanto, os alemães não teriam nada, tudo não
passaria de uma “‘digestão’ pesada e arrastada (...). Quero dizer,
seja o que for a ‘profundidade alemã’, aqui entre nós não podere-
mos rir dela? (JGB/BM § 244).6 Se a figura de Wagner ainda pare-
ce estar dissolvida num espectro mais amplo da cultura, é porque
não há distinção entre os domínios políticos e artísticos, e isso soa
quase premonitório, dadas as conseqüências posteriores dessa es-
treita vinculação. O argumento inicial – da patriotice como motor
de velhas paixões – que se fecha no §245, exige algum esforço para
uma correta leitura, pois Nietzsche faz um balanço da cultura musi-
cal herdada de Mozart, passando por Beethoven e chegando em
Wagner. Tal percurso demonstra a vinculação da perda de profun-
didade com a penetração devastadora do romantismo no seio da
cultura européia. Se Mozart ainda permite:

(...) apelar a algum resíduo em nós! Oh!, um dia isso passará – mas
quem duvida que ainda antes terão fim a compreensão e o gosto por
Beethoven! – que foi apenas o acorde final de uma transição e ruptura
de estilo, e não, como Mozart, o acorde final de um grande e secular
gosto europeu. Beethoven é o evento intermediário entre uma alma ve-
lha e enfraquecida, que constantemente quebra, e uma alma futura e
mais que jovem, que continuamente sobrevém. (JGB/BM § 245).

76 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

Se a decadência musical vincula-se à política é, precisamente,


na ligação entre a esperança, representada por Beethoven, e o so-
nho em conjunto com Rousseau, “ao dançar em torno da árvore da
liberdade da Revolução, ao fim quase adorar Napoleão”. Na inter-
pretação de Wolfgang Müller-Lauter estão apontados os caminhos
do conceito de décadence em Nietzsche, e isso tanto sob a ótica de
Richard Wagner, como da “décadence acima de tudo”. Eis um re-
sumo de alguns dos principais pontos: a) Nietzsche compreende-se
como o maior especialista em décadence do seu tempo, por julgar-
se ele próprio um décadent; b) a decadência da obra de Wagner
decorre do fato de que a parte passa a ganhar importância em rela-
ção ao todo, o que demonstra “falta de força organizadora”; c)
Nietzsche não compreende a decadência de Wagner como apenas
um fenômeno estético, mas principalmente enquanto decadência
fisiológica; d) embora Wagner acabe por transferir suas “calamida-
des fisiológicas” para seus ouvintes, não se pode esquecer que, para
Nietzsche, a decadência é uma possibilidade de crescimento, já que
se constitui numa promotora de crise; e) por essa razão, o filósofo
não poderia abrir mão de Wagner, ele fornece instrumental para
que se possa diagnosticar a decadência ocidental desde Sócrates, e
não apenas como fruto do séc. XIX; f) Schopenhauer surge como o
único refúgio possível de Wagner, sua filosofia o amparou, princi-
palmente por seu apreço pela arte, em particular pela música.
Nietzsche achava que “a elevação do valor da música”, promovida
por Schopenhauer, acabou elevando a “cotação do músico”, o que
teria sido providencial para Wagner (ver Müller-Lauter 3, 1999).
Há, então, um movimento decadente de Mozart a Wagner, com
um intermezzo de Beethoven: o que depois veio de música alemã
pertence ao romantismo, ou seja, a um movimento historicamente
ainda mais curto, mais fugaz, mais superficial do que aquele gran-
de entreato, aquela transição européia de Rousseau a Napoleão e à
ascensão da democracia (JGB/BM §245). A “crítica musical” aqui

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 77


Burnett, H.

desenvolvida por Nietzsche exige um mínimo grau de conhecimen-


to dos compositores da época, pois não se trata mais de um simples
ataque a Wagner, mas de um balanço do ambiente irradiador do
que de mais novo se fazia em música. Assim são citados e comenta-
dos, além da tríade anterior, Weber,7 autor do Freischütz e do
Oberon, Marchner,8 de Hans Heiling e o Vampiro Feliz Mendelssohn9
e Robert Schumann, todos representantes e herdeiros do romantis-
mo, responsáveis pela debilidade da música alemã. Não podendo
extrapolar os limites de uma arte em tudo assemelhada ao pathos
romântico, como na imagem forjada por Nietzsche, de um Schumann
“meio Werther” – o apaixonado romântico de Goethe10 –, a música
alemã peca pelo recato, reduzindo-se à mera patriotice.
Na confrontação entre França e Alemanha, Nietzsche constrói
um quadro mais nítido dessa vinculação estético-política. Trata-se
de distinguir a França artística, a “mais espiritual e mais refinada
da Europa”, de uma política, “imbecilizada e grosseira” (verdummtes
und vergröbertes). Se, por um lado, os franceses têm “uma boa von-
tade em resistir à germanização espiritual”, por outro, não conse-
guem fazê-lo, deixando-se influenciar poderosamente pelos alemães,
num processo de romantização irrefreável que envolvia não só a
França, mas a Europa como um todo. O pessimismo torna-se objeto
de culto; a poesia de Heinrich Heine penetra a carne e o sangue
dos mais finos poetas de Paris; a concepção de história hegeliana,
pelas mãos de Taine, exerce “uma influência quase tirânica” e, por
fim, a música francesa, na medida em que pretende moldar-se de
acordo com as necessidades da alma moderna, acaba por tornar-se
wagneriana. Mas há três virtudes na cultura francesa que nos colo-
carão diante da questão inicial: 1) a capacidade de ter paixões ar-
tísticas, geradoras da l’art pour l’art, herança de três séculos, espé-
cie de música de câmara da literatura que se buscará em vão no
resto da Europa; 2) sua cultura moralista e, finalmente, 3) o fato de
a França não se haver contaminado com os vapores da “grande

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Povos e Pátrias: Wagner e a política

política” (entre aspas no texto), numa alusão a Bismarck; Nietzsche


exalta o fato de haverem conseguido livrar-se da patriotice, “esses
mediterrâneos natos, os ‘bons europeus’. – foi para eles a música
de Bizet” (JGB/BM § 254).
Trata-se, à primeira vista, de uma nova empreitada anti-românti-
ca, pois estamos no mesmo ambiente dos prefácios de 86, testemu-
nhos desse embate. Se, por um lado, trata-se de exaltar uma França
culturalmente superior, por outro, Nietzsche parece a estar compro-
metendo, condenando-a por sua porção wagneriana, incluindo-a na
mesma germanização negativa pela qual estaria passando a Europa:

Um outro talento demagógico de nosso tempo é Richard Wagner: mas


ele pertence à Alemanha. – Realmente? Que se dê voz, pelo menos uma
vez, a uma avaliação contrária. Os parisienses ainda gostariam de opor-
se e obstinar-se bastante contra Richard Wagner: no fim das contas ele
pertence a Paris e, em todo caso, mais para lá que para qualquer outra
capital européia. Supondo que este tipo de francês, que lhe é o mais
aparentado, só agora está começando a escassear: – refiro-me a essa
nova geração do romantismo dos anos trinta, sob o qual na época mais
decisiva de sua vida, quis viver. Ali, ele próprio se sentia mais aparenta-
do e em família que na Alemanha, com seu enorme apetite para odores
e cores eróticos e novos desconhecidos excessos do sublime, com sua feli-
cidade torturante e pobre em sol na descoberta do feio e do espantoso.
Que outra coisa buscavam estes românticos, o que outra coisa encontra-
ram e inventaram diferente de Richard Wagner? (XI, 37[15]).

Num outro fragmento, preparatório ao §254, ainda sobre as


diferenças entre França e Alemanha, aparece a famosa crítica de
Nietzsche a Baudelaire. Após tecer um tipo de genealogia a partir
da figura de Stendhal, fazendo derivar dele Merimée, Taine,
Flaubert, com referências a Montaigne, Charron, La Rochefoucauld,
entre outros, Nietzsche refere-se assim ao poeta: “Se em seu tempo

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 79


Burnett, H.

foi o primeiro profeta e intercessor de Delacroix: talvez viesse a ser


hoje o primeiro “wagneriano” de Paris. Há muito Wagner em Bau-
delaire” (XI, 38[5]). A defesa de Wagner elaborada por Baudelaire
no seu Richard Wagner e Tannhäuser em Paris (1861) é o testemu-
nho dessa aproximação. Na verdade, o ensaio teria sido o respon-
sável pelo aprofundamento do interesse francês por Wagner, se-
gundo opinião de Michel Hall, no texto “O impacto de Wagner nas
artes visuais”, (Millington 2, p.469). O ensaio de Baudelaire pode
ser lido como uma apresentação da obra de Wagner pela via do
Tannhäuser; não se trata de um panfleto, mas Baudelaire busca le-
gitimar a obra e a pessoa de Wagner, como dignos das mais altas
honras, e condena a má recepção da imprensa na França. Sua pu-
blicação data de 1861, Nietzsche se refere a esse texto em carta a
Heinrich Köselitz, datada de 26.02.1888 (KSB 8, p. 263). É preci-
so salientar que se trata de um texto parcial, revelando, conforme a
opinião de Nietzsche, um fervoroso wagneriano. É uma questão que
dá o que pensar, pois justamente Baudelaire, o poeta que não acre-
ditava na inspiração, ligando-se a Wagner, o compositor romântico
por excelência e, por isso, crente nos poderes infinitos da inspira-
ção, um casamento que não poderia estar isento de grandes confli-
tos. Apesar disso, Nietzsche acredita que sua união é natural:

O que há de comum no desenvolvimento das almas européias deve


ser percebido, por exemplo, na comparação entre Delacroix e
R<ichard> W<agner>, o primeiro peintre-poète, o outro poeta-som
segundo a diferença entre o talento francês e o alemão. Mas, fora isto,
iguais. Delacroix, aliás, é também muito músico – uma abertura do
Coriolano. Seu primeiro intérprete, Baudelaire, uma espécie de
R<ichard> W<agner> sem música. A expressão é preferida por
ambos, sacrificando todo o resto. Ambos viciados em literatura, ambos
homens extremamente cultos e escritores. Ambos nervosos-doentios-tor-
turados, sem sol (XI, 34[166]).

80 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

A aparição de Baudelaire em dois momentos póstumos pode


levar a crer que Nietzsche estivesse obscurecendo sua importância,
já que ele não é sequer mencionado em Para além do bem e do
mal, mas aí estaríamos minimizando a importância dos póstumos e
desconsiderando suas implicações no conjunto da obra.11 Não é
apenas uma preocupação cultural que está em jogo, mas uma estreita
aproximação entre domínios distintos, o da arte (principalmente da
música) e da política. Por isso há uma insistência em fazer crer que
a decadência da música alemã está em sintonia com a suposta de-
cadência do Estado, por isso talvez Nietzsche dedique um aforismo
muito instigante aos judeus e seu papel na constituição da Alema-
nha: “ainda não encontrei um alemão que tivesse tido afeição pelos
judeus”; tal sentença serve para demonstrar a situação dos judeus
em meio ao fogo cerrado, num país incapaz de absorvê-los:

Que a Alemanha tem judeus mais que o bastante, que o estômago


alemão, o sangue alemão tem dificuldade (e ainda por muito tempo
terá dificuldade) para dar conta desse quantum de “judeu” – como de-
ram conta o italiano, o francês, o inglês, graças a uma digestão mais
vigorosa –: tal é o claro enunciado e linguagem de um instinto geral,
ao qual é preciso dar ouvidos, pelo qual é preciso agir. “Não deixar
entrar novos judeus! E em especial ao Oriente (e mesmo à Áustria)
aferrolhar os portões!” – assim ordena o instinto de um povo cuja espé-
cie ainda é fraca e indeterminada, de modo que poderia facilmente
apagar-se, poderia facilmente extinta por uma raça mais forte (JGB/
BM § 251).12

A Alemanha vive então um processo degenerativo, pela via do


nacionalismo cego. Os políticos, incapazes de perceber que sua
“política desagregadora” (auseinanderlösende Politik) não passa de
“entreato” (Zwischenakts), ou seja, que algo virá e ocupará seu lu-
gar, ignoram uma vontade superior, que se move lentamente nas

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 81


Burnett, H.

entrelinhas da fachada nacionalista. Trata-se de uma ignorância que


obscurece um movimento que pretende agregar a Europa – que
“quer se tornar uma” –, movidos pela sanha do poder, “políticos
de vista curta e mãos velozes”. Mas é preciso não deixar escapar o
liame que mantém juntas a política e as artes, e aqui o psicólogo
Nietzsche fornece um quadro notável:

Em todos os homens mais amplos e profundos deste século, a orienta-


ção geral do secreto lavor de sua alma foi preparar o caminho para essa
nova síntese e antecipar experimentalmente o europeu do futuro: ape-
nas em sua fachada, ou nas horas mais fracas, talvez na velhice, eles
pertenciam às “pátrias” – apenas descansavam de si mesmos, ao se tor-
nar “patriotas”. Penso em homens como Goethe, Beethoven, Stendhal,
Heinrich Heine, Schopenhauer; não me reprovem se incluo também
Richard Wagner entre eles, pois não devemos nos deixar enganar por
seus próprios mal-entendidos a seu respeito – é raro que um gênio da
sua espécie tenha a prerrogativa de se compreender (JGB/BM § 256).

Tal panteão de nomes célebres teria tido a missão de preparar


a Europa para sua unificação; tal afirmação é feita à luz da vinculação
entre arte e política; parece, a um primeiro olhar, que a França e a
Alemanha são as culturas, que elas podem representar a Europa.
Nietzsche não ignora a má recepção parisiense de Wagner:
“tampouco nos deixemos enganar pelo indecoroso ruído com que
na França atual se reage a Wagner” (JGB/BM § 256), mas não a
leva a sério, em nenhum momento: “(...) nas alturas e profundezas
todas de suas exigências eles são aparentados, radicalmente apa-
rentados: é a Europa, a Europa una (...)” (JGB/BM § 256). Como
vimos, Nietzsche opera exatamente o contrário, utiliza-se do ensaio
de Baudelaire para acentuar as afinidades recíprocas.
Um pouco antes do desfecho da seção, no aforismo imediata-
mente anterior, Nietzsche pede cuidado e cautela nas relações com

82 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

a música alemã, e menciona a existência de uma música “supra-


germânica” (überdeutschen), isto é, que está para além da música
da Alemanha, ainda, ao que tudo indica, em busca de um substitu-
to para a promessa mítica de seu perdido Wagner. Ao encerrar o
argumento, é como se o leque inicialmente aberto – o da patriotice
– ganhasse um contorno novo, à revelia do que originalmente ele
pensava. Eis o trecho do importante penúltimo aforismo:

Esse meridional, não por ascendência, mas por crença, caso sonhe
com o futuro da música, sonhará também com a sua libertação do Nor-
te, e terá no ouvido o prelúdio a uma música mais poderosa, mais pro-
funda, talvez mais misteriosa e malvada, a uma música supragermânica,
que à vista do voluptuoso mar azul e da mediterrânea claridade celeste
não se acanhe, não amareleça e empalideça com toda música alemã,
uma música supra-européia, que se afirme também face aos fulvos po-
entes do deserto, cuja alma se assemelhe à palma, e saiba vagar e sen-
tir-se em casa entre belos, grandes, solitários animais de rapina... Eu
poderia imaginar uma música em que a rara magia seria nada mais
saber de bem e mal, sobre a qual talvez alguma saudade marinheira,
sombras douradas e suaves fraquezas apenas passassem vez por outra:
uma arte que de longe percebesse, fugindo em sua direção, as cores de
um mundo moral declinante, já quase incompreensível, e fosse hospita-
leira e profunda o bastante para acolher esses refugiados tardios. – (JGB/
BM § 255).

O conceito de “supragermânico” é aqui empregado com signifi-


cados múltiplos: é, antes de tudo, sinônimo de uma música para
além de Wagner; uma música livre da teia política, isto é, desvin-
culada de identidades nacionais; uma música afirmativa, que pu-
desse representar as maiores ambições e pulsões da arte no momento
mais intenso do niilismo exacerbado que Nietzsche diagnosticou e
uma música dionisíaca, cuja origem fosse o sentimento popular,

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 83


Burnett, H.

tomado como instinto universal superior dos homens; uma música


que não existia àquela altura, o inaudito. Mas, no aforismo seguin-
te, Nietzsche empregará o mesmo conceito atribuindo-o a Wagner,
num paradoxo de difícil digestão:

Que os amigos alemães de Richard Wagner discutam se em sua arte


existe algo simplesmente alemão, ou se não a distingue o fato de se ori-
ginar de fontes e impulsos supragermânicos: no que não deve ser subes-
timado o quanto, na formação total de seu tipo, foi indispensável justa-
mente Paris, pela qual a profundidade de seus instintos o fez ansiar no
momento mais decisivo, e o quanto seu modo de apresentar-se, seu
apostolado próprio, pôde consumar-se apenas à vista dos modelos dos
socialistas da França (JGB/BM § 256).

Nietzsche, ao descaracterizar a pureza de uma origem germânica,


mostra que outro ponto essencial de sua estética primeira se modifi-
cou: o elogio da Alemanha. Ele parece claramente partidário de uma
mistura parisiense na música de Wagner, o que a torna, portanto,
politicamente comprometida e artisticamente decadente. Ao mesmo
tempo, deixa permanecer, ao lado dessa origem “supragermânica”,
o que é autenticamente alemão em Wagner. Nietzsche esboça a níti-
da intenção de desqualificar Wagner – como cristão, devoto, etc. –
mas acaba, ainda uma vez, louvando-o como anti-romântico:

Numa comparação mais sutil, talvez se venha a pensar, em favor da


natureza alemã de Richard Wagner, que em tudo ele foi mais ousado,
mais forte, mais elevado e mais duro que um francês do século XIX po-
deria ter sido – graças à circunstância de que nós, alemãs, estamos ain-
da mais próximos à barbárie que os franceses –; e talvez seja inacessí-
vel, inimitável, insondável para essa inteira, tardia raça latina, para
sempre e não só por hoje, a criação mais notável de Richard Wagner: a
figura de Siegfried, aquele homem muito livre, que é, porventura dema-

84 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

siado livre, demasiado duro, contente, sadio e anticatólico para o gosto


dos velhos e cansados povos civilizados (JGB/BM § 256).

Para dar cabo da hipótese levantada no início – de que Nietzsche


poderia estar se traindo ao tentar indicar uma patriotice apenas
irônica em sua audição de Os Mestres Cantores – é preciso ir mais
adiante. Se, por um lado, sua intenção é reduzir o valor de Wagner,
por outro é realçar seus ímpetos instintivos, fortes, anti-românticos.
Mas será que é possível acreditar que Nietzsche não havia abando-
nado de todo a esperança em um Wagner renovador? Este é um
ponto nada desprezível, já que estamos diante de uma obra central,
a mais importante, segundo seu autor. Eis como ele ainda trata da
obra de Wagner em um póstumo tardio: “A erupção da arte de
Wagner: ela segue sendo nosso último grande acontecimento na
arte” (XIII, 15[6]). Mesmo que Wagner, no fundo, seja um cristão
dos mais fracos, como quer às vezes nos fazer crer Nietzsche, ele
carrega consigo a força de um anti-romantismo – seria agora uma
inversão de posições, teríamos um Wagner “influenciado” pelo po-
der do pensamento de Nietzsche, tal qual esse o foi na juventude.
Se nos deixarmos levar pela conclusão, então estaremos empreen-
dendo uma leitura demasiadamente simplista, pois ele está opondo
a uma ópera anti-romântica, Siegfried, uma cristã, o Parsifal, numa
operação bastante tendenciosa.

Wagner expiou abundantemente este pecado [a criação de Siegfried]


nos dias turvos de sua velhice, quando – antecipando um gosto que
desde então se tornou política – começou, com a veemência religiosa
que lhe é própria, se não a percorrer, certamente a pregar o caminho
para Roma. – Para que não me entendam mal estas últimas palavras,
gostaria de recorrer a alguns versos vigorosos, que também a ouvidos
menos sutis revelarão o que é do meu gosto – o que me desgosta no
“último Wagner” e na música de seu Parsifal.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 85


Burnett, H.

– Então isso é alemão?


É de coração alemão esse estridente anelo?
E de um corpo alemão esse autoflagelo?
Alemães os gestos sacerdotais,
As pregações aromáticas, sensuais?
E alemão esse hesitar, cair, cambalear
Esse mais-que-incerto bambolear?
O repicar dos sinos, esse olhar entre o véu?
E o falso-extático ansiar além do céu?
– Então é isso alemão?
Considerem! Ainda não terminaram o percurso:
O que estão ouvindo é Roma – a fé de Roma sem discurso!
(JGB/BM § 256).

Mas quem é Siegfried e quem é Parsifal? Nietzsche está pen-


sando no último Wagner, que o desgosta por seu enfraquecimento
etc., não o Wagner criador de Siegfried... o Wagner nietzschiano!
Tal quadro permite sustentar a hipótese de que há um paradoxo e
uma insegurança por trás dessa crítica. Há uma oposição entre as
“fases” wagnerianas, pelo menos entre o primeiro e o último Wagner.
Lance curioso do argumento, quando se lembra que, no mesmo
ano, 1886, Nietzsche sentou-se para redigir cinco prefácios à guisa
de introdução para cinco livros discriminados pela crítica alemã,
cuja intenção principal era mostrar que a primeira fase de sua obra
formava um todo com seu pensamento maduro. Bem, não se trata
de uma correspondência direta, quer dizer, as duas obras não po-
dem ser postas sob a mesma luz. Mas ele escreveu aqueles textos
para poder dar aos leitores um guia, um fio condutor, um caminho
seguro por entre seu pensamento juvenil, a fase que ele, por vezes,
renega. Por isso, também, sua crítica a Wagner não procede dentro
de moldes tão rígidos, pois são momentos distintos da mesma obra
que estão sendo confrontados. Mas, se há mal-entendidos, Wagner

86 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

poderia ser um injustiçado, um incompreendido? É certo que não.


A polêmica serve apenas como um recurso a mais para incrementar
o que a meu ver é o mais importante: a fusão crítica operada por
Nietzsche entre a política e a arte. Sua crítica da uniformização da
Europa é muito singular e por que não dizer revolucionária.

Abstract: This essay attempts to interpret the relationships between


Wagner’s music and German politics, following Nietzsche’s treatment of
them in the chapter “Peoples and fatherlands” of Beyond good and evil.
Keywords: art – music – politics – Wagner

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 87


Burnett, H.

notas
1
Die Meistersinger von Nürnberg, drama musical em 3 atos,
estreou em 1868 em Munique, Wagner teve a idéia desta
ópera enquanto compunha Lohengrin [estréia em Weimar,
1850], mas só a realizou 12 anos mais tarde. Para ele, Os
Mestres Cantores representava o equivalente do “drama
satírico” que, nas representações teatrais da Grécia antiga,
relaxava os espectadores após a trilogia trágica. Em sua
estréia, essa ópera foi dirigida por Hans von Bülow (de
quem Wagner desposou mais tarde a mulher, Cosima). A
crítica julgou a obra “feia e amusical”, mas o grande públi-
co fez dela um sucesso. Hoje, Os Mestres Cantores tornou-
se uma espécie de ópera nacional bávara; Tristão e Isolda
tem uma história que merece ser lembrada: em 1848,
Wagner, crivado de dívidas, teve que deixar a Alemanha.
Refugiou-se na Suíça. Em Zurique, ligou-se a um rico ne-
gociante, Otto Wesendonk, que o ajudou a sobreviver. Ins-
pirado pelo amor impossível e ardente que sentia por
Mathilde, a mulher de seu protetor, Wagner, que havia
iniciado O Anel dos Nibelungos [tetralogia estreada em
Bayreuth, 1876], interrompeu-a para compor Tristão e
Isolda, que dedicou à sua musa. Essa ópera foi criticada
em sua estréia; hoje, é considerada um ponto alto do re-
pertório lírico. (extraído de Guide de l’Ópera. Edição e co-
mentários Jeanne Suhamy. Marabout Belgique, 1992.
Edição brasileira publicada pela L&PM, na coleção Pocket,
em 1997, com tradução de Paulo Neves). Ver também
Compêndio Wagner, com comentários aprofundados.
2
WAGNER, Richard: Die Meistersinger von Nürnberg. Em:
Richard Wagner. Ouvertüren und Orchesterszenen. Germany.
Decca (A Universal Music Company), 1972, Executado
pela “Chicago Symphony Orquestra”.

88 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

3
Nietzsche se refere assim a Bismarck, simulando ironicamen-
te a conversa de dois patriotas alemães, onde um deles
afirma: “Esse entende e pensa de filosofia tão pouco quan-
to um camponês ou estudante de corporação” (JGB/BM §
241). O tradutor espanhol, Andrés Sánchez Pascual, deixa
registrada essa estratégia de Nietzsche; Paulo César de
Souza, por sua vez, ressalta que além da preocupação com
a censura prussiana, Nietzsche pretendia que o argumento
tivesse uma abrangência mais ampla, não apenas política.
4
Em outro livro, sob um outro contexto, Nietzsche recupera
esse vínculo entre Wagner e Bismarck, exatamente na III
dissertação da Genealogia da moral, um ano depois, desta
feita mostrando que a negação da sensualidade por Wagner
era resultado de uma característica alemã que se generali-
zava; mais adiante comentarei esse que é um dos momen-
tos mais importantes da fase madura sobre Wagner.
5
Was ist Deutsch? é o nome do título de um artigo de Wagner,
publicado nos Bayreuther Blättter em fevereiro de 1878.
6
Tais idéias aparecem no Ecce Homo: “o espírito alemão é
uma indigestão, de nada dá conta” (EH/EH, Por que sou
tão inteligente, §1); sobre a questão da profundidade: “o
que na Alemanha se chama ‘profundo’ é precisamente essa
impureza de instinto consigo mesmo (...). Não poderia eu
querer propor a palavra “alemão” como moeda internacio-
nal para esta depravação psicológica? (...) Produziram os
alemães um livro sequer que tivesse profundidade?” (EH/
EH, “O caso Wagner”, § 3).
7
Carl Maria von Weber (1786-1826), compositor alemão, o
mais importante do pré-romantismo alemão e iniciador com
suas obras dos temas capitais da ópera romântica:
popularismo, proximidade da natureza, poderes supra-sen-
síveis, medievalismo e lenda (fonte: Andrés Sánchez
Pascual).

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 89


Burnett, H.

8
H. Marschner (1795-1861), compositor de óperas do ro-
mantismo alemão. Das 14 compostas por ele, as mais cele-
bradas por ele foram as citadas por Nietzsche: O Vampiro
(de 1828) e Hans Heiling (de 1833) (fonte: Andrés Sánchez
Pascual).
9
Felix Mendelssohn (1809-1847). Compositor, pianista or-
ganista e regente alemão. Após um primeiro sucesso extra-
ordinário, como criança prodígio, acabou assumindo car-
gos de regente da Orquestra da Gewandhaus de Leipzig
(1835-47) e como primeiro diretor do recém-inaugurado
conservatório daquela cidade (a partir de 1843). Um pu-
nhado de óperas, incluindo a inacabada Loreley (1847),
dão testemunho do esforço de Mendelssohn durante toda
uma vida, para dominar esse meio. Mas é basicamente por
suas obras instrumentais e corais que ele é hoje lembrado.
A visão popular de que as obras de Mendelssohn raramen-
te emergem da superficialidade sofreu uma reavaliação em
anos recentes. O preconceito de Wagner contra ele, em
parte de origem anti-semita, não o impediu de ecoar
Mendelssohn em suas obras de juventude. (fonte: Com-
pêndio Wagner).
10
Obra estopim do romantismo, Os sofrimentos do jovem
Werther narra, por meio de uma troca de cartas, uma pai-
xão violenta, fatal e impossível de um jovem por uma bela
dama.
11
A esse respeito cf. Müller-Lauter, Wolfgang: A doutrina
da vontade de poder em Nietzsche (Tradução Oswaldo
Giacoia Junior). São Paulo: Annablume, 1997, p. 59ss.,
sobre as distinções entre a interpretação de Karl Löwith e
a de Heidegger sobre a questão dos póstumos.
12
Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho (Nietzsche 8,
p. 298).

90 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Povos e Pátrias: Wagner e a política

referências bibliográficas

1. JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche. Biographie. Muni-


que: C. Hanser Verlag, 1978.
2. MILLINGTON, Barry (org.). Wagner. Um compêndio. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
3. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. “Décadence artística en-
quanto décadence fisiológica (A propósito da crítica
tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner)”.
Tradução: Scarlett Marton. In: Cadernos Nietzsche (6).
São Paulo: Discurso Editorial/USP, 1999.
4. ______. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche.
Tradução: Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo:
Annablume, 1997.
5. NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe.
Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino
Montinari. München, DTV/Walter de Gruyter:
Neuausgabe 1999.
6. ______. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe.
München/Berlim/New York: DTV/de Gruyter, 2.
Auflage, 2003.
7. ______. Além do bem e do mal. Tradução: Paulo César
de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
8. ______. Ecce Homo. Tradução: Paulo César de Souza.
São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
9. ______. Obras incompletas. Tradução: Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Abril, 1974.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 91


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

A redenção da temporalidade:
a trágica intuição do eterno
retorno em Nietzsche
Tereza Cristina B. Calomeni*

Resumo: O presente artigo reflete sobre o significado do pensamento do


eterno retorno na obra de Nietzsche. A partir de A gaia ciência, Assim fa-
lava Zaratustra e de alguns Fragmentos Póstumos, apresenta o eterno re-
torno como elemento significativo da crítica nietzschiana da Metafísica e
da Modernidade e como parte integrante da filosofia experimental de
Nietzsche.
Palavras-chave: eterno retorno – temporalidade – trágico – além-do-ho-
mem – amor fati

“‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como


viveste, terás de vivê-la ainda mais uma vez e ainda
inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo,
cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro
e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de gran-
de em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma
ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e
este luar entre as árvores, e do mesmo modo este ins-
tante e eu próprio. A tua eterna ampulheta da exis-
tência será sempre virada outra vez – e tu com ela,
poeirinha da poeira!’” (FW/GC § 341)

*
Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Filoso-
fia pela PUC-RJ.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 93


Calomeni, T. C. B.

Entre os comentadores da obra de Nietzsche, não há unanimi-


dade em relação ao significado do eterno retorno, mas há, pelo me-
nos, um consenso: dentre os muitos desafios impostos pelo pensa-
mento e pela linguagem de Nietzsche, o maior talvez resida na
tentativa de compreensão do lugar ocupado pelo eterno retorno no
interior da crítica nietzschiana da Cultura. Tal consenso é, em certa
medida, justificado: de fato, a idéia de que todas as coisas retornam
sem cessar aparece na obra de Nietzsche permanentemente cerca-
da por uma quantidade razoável de dificuldades que acabam por
conduzir os leitores a uma série de interrogações. Não é totalmente
desarrazoada ou improcedente a afirmação de que o eterno retorno
obriga o próprio Nietzsche a incidir, se não em aporias, ao menos
em alguns problemas de difícil solução. Tomando de empréstimo
uma expressão nietzschiana, a intenção de compreender a relação
entre o eterno retorno e a crítica da Metafísica e da Modernidade
talvez seja o “peso mais pesado” a ser suportado pelo leitor de uma
obra tão singular como a de Nietzsche. Eleito como um pensamento
fundamental – um pensamento que acolhe toda a crítica de Nietzsche
à Cultura Ocidental –, o eterno retorno é freqüentemente proclama-
do o grande mistério, o grande enigma, um pensamento constran-
gedor, capaz de provocar até mesmo um certo mal-estar, um des-
conforto aos comentadores e intérpretes.
A dificuldade de compreensão do eterno retorno é, talvez, moti-
vada pelo próprio Nietzsche. O próprio Nietzsche parece envolver o
eterno retorno em uma atmosfera um tanto enigmática e misteriosa,
como se ao pensamento da repetição de todas as coisas reservasse
o destino de ser segredado a poucos: aos raros, aos “mais seletos”,
àqueles que, “de ouvidos finos”, podem ouvir “boa notícia”. É,
portanto, no interior mesmo da obra de Nietzsche e de suas consi-
derações acerca de seu “pensamento vitorioso” que se situa a razão

94 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

das dificuldades habitualmente apontadas pelos intérpretes. Basta


lembrar a descrição apresentada por Nietzsche, em 1888, em Ecce
homo, um texto autobiográfico: “(...) a mais elevada forma de afir-
mação que se pode em absoluto alcançar’, é de agosto de 1881: foi
lançado em uma página com o subescrito: ‘seis mil pés acima do
homem e do tempo’. Naquele dia eu caminhava pelos bosques (...);
detive-me junto a um imponente bloco de pedra em forma de pirâ-
mide (...). Então veio-me esse pensamento.” (EH/EH, Assim falava
Zaratustra, §1). Com tal referência, Nietzsche parece reconhecer o
eterno retorno como uma espécie de “intuição súbita”.
O eterno retorno, essa “súbita intuição” de 1881, aparece em
obra publicada por Nietzsche em 1882, na quarta parte de A gaia
ciência, precisamente no aforismo 341, intitulado O peso mais pe-
sado, reaparece em Assim falava Zaratustra, escrito entre 1883 e
1885 e, de modo assaz estranho, praticamente desaparece dos tex-
tos publicados por Nietzsche. Depois do Zaratustra, portanto de-
pois de 1885, Nietzsche não se refere explicitamente ao pensamen-
to do eterno retorno a não ser no aforismo 56 de Além do bem e do
mal, no último capítulo de Crepúsculo dos ídolos e no capítulo de
sua autobiografia dedicado ao texto do Zaratustra. A presença do
eterno retorno só é constante em Fragmentos Póstumos: de 1881 a
1888, Nietzsche comenta o eterno retorno e, neste contexto, o pen-
samento da repetição acompanha as diferentes inflexões a que sub-
mete sua filosofia.
Praticamente três aparições e dois comentários em obra publi-
cada. Muito pouco para um pensamento anunciado como funda-
mental, muito pouco para um “pensamento abismal”, para um pen-
samento que, perturbador, na opinião de seu autor, poderia
desempenhar a tarefa de dividir em duas partes a humanidade.
Depois de anunciá-lo em A gaia ciência e de retomar o pensamento
em Assim falava Zaratustra, Nietzsche não dedica nenhuma aten-
ção especial ao esclarecimento do sentido do eterno retorno, o que

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 95


Calomeni, T. C. B.

exige o recurso a alguns Fragmentos em que a idéia é exposta de


modo um pouco mais claro.
Neste ponto, surge a primeira dificuldade, apresentam-se as
primeiras interrogações: por que Nietzsche silencia depois de anun-
ciar tão gravemente o eterno retorno? Por que não se empenha em
elucidar o sentido do eterno retorno e a tarefa a ele concedida junto
à crítica da Cultura? Que significam o silêncio de Nietzsche em obras
publicadas e a presença constante do eterno retorno em textos que
não publica? Mais ainda: para o encontro do significado do eterno
retorno, é legítimo recorrer aos Fragmentos ou as obras publicadas
seriam a melhor expressão da filosofia de Nietzsche e, neste caso, a
expressão mais adequada do que pretende alcançar com o eterno
retorno?
Apesar da diversidade de interpretações a que se pode subju-
gar esse estranho comportamento, não se encontram razões suficien-
temente fortes para explicar o silêncio de Nietzsche; há variados
indícios aptos à formulação de algumas hipóteses, mas não se pode
afirmar com convicção o motivo pelo qual Nietzsche se mantém
silente e reservado. A alternativa é considerar legítimas as indica-
ções oferecidas pelos Póstumos, porque em obras publicadas
Nietzsche mais esconde do que revela o eterno retorno. O apelo aos
Fragmentos, associado às postulações de A gaia ciência e de Assim
falava Zaratustra, permite a compreensão do eterno retorno como
um artifício de que Nietzsche se utiliza para o favorecimento da re-
versão do niilismo moderno e para a transvaloração de todos os va-
lores, seu último programa. Ainda assim, não se decifra o mistério
do silêncio em obras publicadas: se o eterno retorno é significativo
instrumento à promoção de condições suficientes à superação do
niilismo e à constituição de uma nova Cultura como quer Nietzsche,
por que o silêncio, por que o mistério? É possível que Nietzsche
tenha dedicado maior atenção ao eterno retorno nos Fragmentos por
reconhecer imperiosa à sua Filosofia a necessidade de fazer expe-

96 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

riências com o pensamento, tanto que é sua a ponderação de que o


texto do Zaratustra – reconhecido como o lugar privilegiado para a
expressão do eterno retorno – não é ainda a comunicação definitiva
do pensamento da repetição. De todo modo, não deixa de ser arris-
cada a pretensão de elucidar a motivação do silêncio de Nietzsche.
Uma segunda dificuldade – em certa medida mais leve e de
mais fácil superação – é imposta pela linguagem e pela forma atra-
vés das quais se anuncia o eterno retorno. Em textos publicados, a
idéia do retorno eterno é quase sempre revestida de linguagem po-
ética, metafórica e simbólica e, além disto, poucas vezes é pronun-
ciada pelo próprio Nietzsche. Em A gaia ciência e em Assim falava
Zaratustra, é sempre um personagem o responsável por falar do
eterno retorno: em A gaia ciência, sob o tom exato da provocação, o
eterno retorno é proclamado por um “demônio”; em Assim falava
Zaratustra, texto em que Nietzsche se afasta radicalmente da lin-
guagem conceitual e faz explodir e transbordar a forma poética e
parabólica, é sugerido, primeiro, no Capítulo Da visão e do enigma,
por um “anão” – o “espírito da gravidade”, o representante do ho-
mem da Metafísica – e mais tarde, no Capítulo O convalescente,
pelos “animais” de Zaratustra. Mais uma vez, somente nos Frag-
mentos Nietzsche é mais explícito em relação ao eterno retorno e a
ele se refere sem se utilizar do disfarce ou da máscara de persona-
gens imaginários.
O inusitado da linguagem e da forma de anúncio do eterno retor-
no aponta para novas questões: por que a escolha da linguagem poé-
tica justamente para a anunciação do pensamento reconhecido como
primordial à definição e à distinção de sua obra, se com esse tipo de
linguagem Nietzsche parece conferir ao eterno retorno a dimensão
do incomunicável? Por que outorga a determinados personagens a
responsabilidade de exprimir o “pensamento dos pensamentos”?
O apelo à linguagem poética é mais compreensível do que o
inusitado silêncio: o abandono da linguagem estritamente racional

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 97


Calomeni, T. C. B.

e o recurso à linguagem metafórica para a comunicação do “pen-


samento abissal” são indicativos de que, com o eterno retorno,
Nietzsche critica a Metafísica também através de uma crítica da lin-
guagem. A escolha da linguagem poética e metafórica e o atributo
da suposta incomunicabilidade confiado ao eterno retorno são ins-
trumentos estratégicos: ao reconhecer o eterno retorno como objeto
da linguagem poética, mais ainda como objeto do “canto” e de “no-
vas liras”, como afirma na tragédia do Zaratustra, Nietzsche critica
a linguagem conceitual que esteve, durante todo o curso do pensa-
mento ocidental, a serviço da verdade, da racionalidade e da inter-
pretação moral da existência. A distância vislumbrada entre a pala-
vra do eterno retorno e a linguagem racional, longe de ser apenas
um resultado ou um sintoma de uma experiência interior, pessoal,
particular, é parte do projeto nietzschiano de rejeição da linguagem
metafísico-científica e, portanto, da idéia de verdade.
Aqui, uma primeira ponderação: o eterno retorno é um instru-
mento de crítica da Metafísica, não só, mas também porque, com
ele, Nietzsche rejeita a linguagem habitual freqüentemente entendi-
da como o lugar de abrigo da verdade. O pensamento do eterno
retorno representa mais um instrumento de recusa das categorias
através das quais o homem ocidental pretende constituir o conheci-
mento. Não por acaso, é proclamado como uma “intuição súbita”,
um pensamento inesperado, não como objeto de uma rigorosa re-
flexão. O eterno retorno é mais um sintoma da desconfiança – sem-
pre presente na obra de Nietzsche – da linguagem como forma de
expressão adequada da realidade; mais um sinal da crítica da ver-
dade, da noção moderna de sujeito e da suposta objetividade da
linguagem metafísico-científica; mais um indício da oposição esta-
belecida entre a interpretação metafísico-moral e a interpretação
trágico-dionisíaca da existência.
Apresentadas as primeiras dificuldades, afinal, por que o pen-
samento da repetição pode ser considerado instrumento de crítica

98 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

da Cultura e, sobretudo, um artifício apto a favorecer a superação


do niilismo através da reversão da concepção metafísico-cristã de
tempo?

II

O tempo não é tema privilegiado por Nietzsche. No entanto, a


crítica da noção metafísico-cristã de tempo – expressa, não só, mas
inclusive no eterno retorno – é um dos importantes elementos à crí-
tica da Metafísica, da Religião Cristã e da Modernidade. A acusa-
ção da noção metafísico-cristã de tempo e a idéia do eterno retorno
inscrevem-se, portanto, no interior de uma proposta mais ampla de
crítica da Cultura Ocidental, francamente influenciada pela Metafí-
sica e pelo Cristianismo.
A motivação para criticar a Metafísica, inclusive através de uma
crítica da noção de tempo, é compreensível: a fundação da Metafí-
sica significa, para Nietzsche, a instituição do processo de desvalo-
rização da existência. Desde sua inauguração, a Metafísica consoli-
da-se como o tipo de interpretação e de discurso que, em nome da
necessidade de conquista da verdade, procura escapar às contradi-
ções e ambigüidades, daquilo que, em Ecce homo, denomina-se
“estranho” e “questionável” “no existir”. Interessada na captura da
verdade, a Metafísica, constituída com Sócrates sob o preço da morte
da Arte trágica, dá início ao processo de decadência da Cultura
Ocidental e consagra a história do Ocidente como a história das
diferentes inflexões do niilismo, porque o apego à verdade induz o
pensamento metafísico a revestir-se de um idealismo que nada faz
senão desmerecer a existência e consumar uma interpretação mo-
ral que a concebe como objeto de juízo e correção.
Aos olhos de Nietzsche, o expediente metafísico de superesti-
mação da verdade acaba por conformar um determinado modo de

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 99


Calomeni, T. C. B.

compreender o tempo e a existência. A vontade de verdade, carac-


terística da Metafísica, é tributária de uma determinada concepção
de tempo e inegável expressão de desqualificação da existência. O
eterno retorno é, neste caso, mais um expediente de crítica do mora-
lismo da Metafísica e da Religião Cristã: a valorização do imutável
em detrimento do fugidio, breve e ambíguo leva o homem a uma
revolta contra o caráter inexorável do tempo.
É, portanto, também no pensamento do eterno retorno que
Nietzsche deposita a “esperança” de livrar a Cultura das postula-
ções metafísico-cristãs que, ao mesmo tempo em que supostamente
consolam o homem diante do fluir implacável do tempo, levam-no à
vingança e ao ressentimento. O recurso à consideração da noção de
tempo é elemento primordial à crítica da Metafísica e da Religião
Cristã: na base dos dualismos metafísico-cristãos aloja-se a vingan-
ça contra o tempo, uma espécie de revolta a ser recusada em bene-
fício da instituição de um novo tipo de relação entre o homem e a
existência e, por conseguinte, um novo tipo de Cultura. É deste modo
que a trágica intuição do eterno retorno, em princípio, pode ser ins-
trumento de uma espécie de redenção da temporalidade.
Especialmente no texto do Zaratustra, a vingança caracteriza
um tipo de vontade: a vontade subjacente à moral da Metafísica e
da Religião Cristã, que, na impossibilidade de contenção do fluxo
do tempo, olha para fora do temporal, movida pelo desejo de con-
quista da verdade, da permanência, da unidade e da identidade.
Este tipo de vontade – diz Nietzsche, uma vontade negativa, res-
sentida – vinga-se do tempo e da existência através da invenção ou
da consolidação da dualidade: tanto a Metafísica quanto a Religião
Cristã afirmam a existência de dois mundos e expulsam a eternida-
de para fora do mundo temporal. A recusa da vingança implica,
então, a recusa da revolta contra o tempo e, por conseguinte, o re-
conhecimento da singularidade e da inocência da existência terrena,
extraviadas por obra do apego irrestrito à idéia de verdade.

100 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

Aparece sob suspeita a concepção linear e sucessiva de tempo.


Aqui, mais uma ponderação possível: com o eterno retorno, com a
postulação de que todas as coisas voltam sem cessar, Nietzsche se
manifesta contrário à concepção linear que, na Modernidade, acaba
por conformar um determinado modo de compreender a História e
consagrar as idéias de evolução e progresso. Com o eterno retorno,
Nietzsche quer libertar o Instante – na perspectiva linear, sempre
submisso e subjugado ao curso do tempo – e atribuir-lhe o predicado
da eternidade. Com o eterno retorno, contrário ao dualismo tempo/
eternidade, Nietzsche acaba por pensar outra concepção de eterni-
dade, incapaz de excluir o temporal. Deste ponto de vista, tempo e
eternidade, no eterno retorno, se aproximam e se conjugam.
Neste ponto, emergem outras interrogações: ao recusar a con-
cepção de tempo linear, ao postular a necessidade de atenção à
eternidade do Instante, ao rejeitar as idéias modernas de continui-
dade, evolução e progresso como paradigmas à compreensão do
tempo e da História, Nietzsche afirma, necessariamente, que o tempo
é circular, como levam a supor o aforismo de A gaia ciência e so-
bretudo alguns Fragmentos Póstumos escritos no período da “súbita
intuição” do eterno retorno? A crítica da noção metafísico-cristã de
tempo induz forçosamente à postulação do eterno retorno ou à afir-
mação do tempo como círculo? Por que, para a criticar a concep-
ção metafísico-cristã de tempo, Nietzsche recorre a um pensamen-
to, em princípio, fatalista e determinista?
A oposição entre a concepção linear e a idéia de tempo como
círculo é objeto da consideração de um dos Capítulos de Assim fa-
lava Zaratustra mais importantes à compreensão do eterno retorno,
o Capítulo Da visão e do enigma. No Zaratustra, especialmente nes-
te Capítulo e na conversa aí inventada entre Zaratustra e o “anão”,
ainda que aparentemente contrário à concepção linear de tempo,
Zaratustra não assegura que o tempo é circular; a afirmação do tem-
po como círculo é própria do personagem representado pelo “anão”.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 101


Calomeni, T. C. B.

No Zaratustra, ainda que venham à cena algumas metáforas e ima-


gens sugestivas da idéia do círculo, a afirmação do círculo, em ne-
nhum momento, provém de Zaratustra. No entanto, é curioso que,
na conversa com o “anão”, Zaratustra, mesmo zangado diante da
postulação do tempo como círculo, não argumente contra a afirma-
ção do “anão” de que o tempo é circular. Apesar de zangar-se por
considerar simplista a afirmação do “anão”, quando não se dispõe
a discutir, Zaratustra – com alguma intenção, necessário supor –
deixa em suspenso a possibilidade de o eterno retorno ser entendido
como afirmação do movimento circular do tempo. Por que Zaratustra
não dialoga se é claro que o eterno retorno a que se refere o “anão”
não é idêntico ao eterno retorno que ele, Zaratustra, quer anunciar?
Na conversa com o “anão”, Nietzsche não esclarece os pressu-
postos de suas ponderações sobre o tempo, mas o argumento –
veladamente adotado para a contraposição entre a concepção line-
ar e o eterno retorno – pode ser encontrado em alguns Fragmentos
Póstumos em que se afirma categoricamente o movimento circular
do tempo.
A afirmação do círculo concorre para a compreensão do eterno
retorno como tese físico-cosmológica, para a admissão de uma di-
mensão físico-cosmológica como peculiar ao eterno retorno. Nesses
Fragmentos, além de afirmar o círculo, Nietzsche recorre à Ciência
para uma espécie de prova a favor da suposta veracidade do eterno
retorno, a ponto de reconhecer a hipótese da repetição como “a mais
científica de todas as hipóteses”. Contra a concepção cristã de cria-
ção, Nietzsche reconhece que o tempo, infinito, é constituído por
forças finitas e insiste que, num tempo infinito constituído por for-
ças finitas, exige-se a aceitação da idéia de que todas as coisas
retornam sem cessar. Nesse contexto, expõe a idéia de que ao mun-
do não se reservam uma finalidade a cumprir, um objetivo a atin-
gir, uma teleologia a realizar. Não há um estado final em direção ao
qual o mundo deve dirigir-se; se o mundo tivesse uma meta a con-

102 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

cretizar já teria concretizado: não há um estado de equilíbrio a que


o mundo se destine.
Ao manifestar a recusa das postulações cristãs, diz Nietzsche, o
mundo não é regido por uma Providência, não há um sentido de-
terminado a ser realizado ou um programa a ser cumprido. Num
tempo infinito, constituído por forças finitas, todas as coisas retornam
necessariamente e sem finalidade, posto que o número das combi-
nações possíveis entre as forças componentes do mundo é finito. A
hipótese da finitude da força exige a idéia do retorno. Nietzsche
atinge a idéia, cara à Religião Cristã, de finalidade, convicto da
necessidade e da urgência de afastar o mundo e o próprio homem
do peso da obrigatoriedade de consecução de uma finalidade pré-
determinada. Não por acaso, é freqüente a observação de que o
eterno retorno é também um artifício de proclamação da inocência
do devir.
A julgar pelos Fragmentos e pelo recurso à Ciência, supõe-se
que Nietzsche imprima à sua idéia de eterno retorno o caráter de
uma afirmação sobre a natureza e a realidade do tempo. No entan-
to, há razões suficientes para compreender a afirmação do tempo
como círculo e do eterno retorno como tese científica ou físico-
cosmológica como mais uma estratégia de Nietzsche. Diante do vi-
gor e da contundência de todas as críticas anteriores ao conheci-
mento e à verdade, seria impertinente aceitar o eterno retorno como
uma afirmação intransigente sobre o tempo porque, assim, estaria
postulado o vínculo entre Nietzsche e a idéia da verdade, sempre
tão questionada em sua obra. Além disso, por que tais afirmações
seriam relacionadas apenas nos Fragmentos e não em obras publi-
cadas? Por que, em obras publicadas, Nietzsche é reticente em re-
lação à afirmação do círculo e, mais que reticente, acusador da su-
perficialidade da concepção do círculo, como se pode pressentir
tanto na conversa com o “anão” quanto no diálogo com os “ani-
mais”, no Capítulo O convalescente? A postulação do eterno retorno

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 103


Calomeni, T. C. B.

e a sugestão da idéia de círculo devem ser compreendidas como


parte de um programa de acirramento do niilismo moderno – o
“estranho hóspede” da Modernidade – para a promoção de sua
superação em direção a um outro tipo de Cultura.
É, pois, no interior do exame das diferentes formas do niilismo
característico da Cultura Ocidental que o significado do eterno retor-
no como tese físico-cosmológica pode se esclarecer. Diante do
niilismo moderno – o niilismo suscitado pelo maior e mais grave
acontecimento da Modernidade, a morte de Deus –, Nietzsche pro-
põe o eterno retorno como expediente de exacerbação do próprio
niilismo. A hipótese de que tudo retorna incessantemente e sem
finalidade pode ser um bom instrumento de promoção das condi-
ções de superação do niilismo, porque, pensa Nietzsche, o niilismo
moderno – como todas as formas anteriores de niilismo, também
um niilismo incompleto – pode-se transformar em niilismo comple-
to e ativo capaz de favorecer a constituição de novas formas de com-
preensão da existência. Diante da absoluta ausência de fundamen-
to ou finalidade – se Deus morre, qual é a finalidade do mundo? –
e da hipótese da volta eterna de todas as coisas, restará ao homem
a afirmação da vida, apesar do retorno. Não é gratuita a associação
entre os aforismos 341 e 342 de A gaia ciência e o início da tragé-
dia descrita em Assim falava Zaratustra: o eterno retorno, aos olhos
de Nietzsche, deve conduzir à era trágica, à era da afirmação in-
condicional da vida, à era do sim dionisíaco à existência e aos seus
aspectos mais infames, dolorosos e precários, à era da afirmação
da existência apesar da dor e do sofrimento. O eterno retorno é,
deste ponto de vista, a expressão do declínio necessário à travessia
em direção a uma nova Cultura – uma Cultura trágica – e a um
novo tipo de homem – o além-do-homem. Depois da morte de Deus,
resta ao homem superar-se a si próprio e ao niilismo provocado pela
perda do fundamento divino para proclamar um eterno sim de apro-
vação da existência.

104 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

Importa observar que Nietzsche não propõe uma substituição:


o eterno retorno não é solução imediata ou definitiva para o preen-
chimento do lugar outrora ocupado por Deus e pelos ideais transcen-
dentes. Não há como superar o niilismo e a influência do Cristianis-
mo apenas com a proclamação de uma nova doutrina. A influência
da Religião Cristã ainda há de ser percebida por longo tempo na
Cultura Ocidental. O impacto causado pela morte de Deus é grande,
é grave, mas ultrapassar sua moral niilista exige bom tempo de
amadurecimento. O eterno retorno é, então, um dos instrumentos –
pedagógicos – necessários à preparação da Cultura para o advento
do super-homem e de uma nova hierarquia de valores.
Permanece, intrigante, outra interrogação: por que, nos Frag-
mentos, Nietzsche recorre à Ciência para falar do eterno retorno?
Comportamento inusitado para um crítico “farejador”, a hipótese
mais viável é a de que Nietzsche obedece à sua própria exigência
de fazer experiências com o pensamento: o eterno retorno é parte do
que Nietzsche reconhece como filosofia experimental.

III

Se o eterno retorno como tese físico-cosmológica pode-se expli-


car como estratégia de acirramento do niilismo, algumas interroga-
ções ainda se impõem.
Ao reconhecer a vingança característica de um tipo de vonta-
de, Nietzsche admite a possibilidade de existência de um outro tipo
de vontade e, portanto, de um outro modo de relação com o tempo.
Conclui-se, então, pela existência de dois tipos de vontade associa-
dos a duas concepções de tempo e, mais ainda, aos dois tipos hu-
manos tão bem caracterizados sobretudo em Genealogia da moral:
uma vontade negativa, ressentida, rancorosa e uma vontade afirma-
tiva, não-rebelada; uma vontade de negação da existência e uma

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 105


Calomeni, T. C. B.

vontade de afirmação; de um lado, os fracos e escravizados, de ou-


tro, os fortes, os nobres, os senhores, os criadores.
Os dois tipos de vontade aparecem sugeridos no aforismo 341
de A gaia ciência, o aforismo de anúncio do eterno retorno: a vonta-
de revoltada não suporta a idéia de repetição eterna de todas as
coisas e se “lança ao chão” “rangendo os dentes” diante da inabitual
proclamação do “demônio” de que tudo se repete; ao contrário, a
vontade não-rebelada aceita e, mais que isto, deseja a volta eterna
de todas as coisas por já ser uma vontade que afirma a vida incon-
dicionalmente. A julgar pelo aforismo de A gaia ciência, duas
reações se manifestam diante da fatalidade da repetição: o eterno
retorno pode ser motivo de júbilo e de alegria ou de dor e desespe-
ro; o homem pode amaldiçoar a palavra do “demônio” que anuncia
o eterno retorno ou bendizer a proclamação demoníaca do retorno
eterno de todas as coisas.
A vontade de afirmação incondicional da existência é, em prin-
cípio, uma vontade forte o bastante para não se deixar impressio-
nar pela culpa e pelo ressentimento – afinal, é uma vontade que
recusa a interpretação da Metafísica e da Religião Cristã. Enquanto
a vontade metafísico-cristã tem o propósito de difamar a existência
terrena com a proclamação da existência de um outro mundo, a
vontade não-rebelada nega-se a crer na existência de um mundo
superior ao mundo terreno. Não por acaso, “Permanecei fiéis à ter-
ra!” é o primeiro mandamento da “nova tábua de valores” sugerida
por Zaratustra.
Ora, se há dois tipos de vontade e se aparece sugerida a possi-
bilidade de reversão da vontade rebelada, como ultrapassar a von-
tade de vingança? Para a reversão do espírito de vingança, é ne-
cessário haver uma nova relação com o tempo. A julgar pelo Capítulo
Da redenção e, em certa medida, pelo aforismo de A gaia ciência,
há de se supor que o eterno retorno tem um caráter exortativo.
Nietzsche dá a impressão de querer causar uma espécie de impacto

106 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

com a postulação do eterno retorno. Neste caso, os argumentos que


sustentam a hipótese de ser o eterno retorno uma tese físico-cosmo-
lógica ou científica não têm a menor importância: em A gaia ciên-
cia, importam a reação humana diante do impacto que Nietzsche
espera provocar com a proclamação de que todas as coisas retornam
incessantemente e a sugestão da possibilidade de existência de um
outro modo de relação com o tempo e a existência. Preocupado em
evidenciar o caráter exortativo ou provocativo do eterno retorno,
Nietzsche deixa espaço à interpretação do eterno retorno como tese
ética, como um pensamento capaz de estabelecer a diferença entre
os fortes – aqueles que se sentiriam felizes com a suposição do eter-
no retorno – e os fracos – aqueles que, de nenhuma forma, gostariam
de ver confirmada sugestão tão terrível.
Aqui, mais uma vez, alguns problemas se apresentam, insisten-
tes: se as duas reações diante da proclamação do eterno retorno
correspondem a dois tipos humanos e, portanto, a dois tipos de von-
tade, que valor teria o eterno retorno para a vontade que já não ex-
pressa a revolta? Aquele que já mantém com a existência uma rela-
ção de afirmação, que celebra a vida e bendiz a volta de todas as
coisas apesar da dor e do sofrimento e, portanto, conhece o impe-
rativo do amor fati tem necessidade de um pensamento aparente-
mente tão fatalista como o eterno retorno? Para quem já afirma a
vida, pouco importa se o eterno retorno é ou não verdadeiro e, en-
tão, tanto a tentativa de prová-lo cientificamente quanto a exaltação
de sua dimensão exortativa parecem inúteis. O eterno retorno não
provocaria propriamente a distinção entre fortes e fracos; ao con-
trário, apenas consumaria uma distinção já pressuposta. Então, para
que o eterno retorno? Para uma vontade não-rebelada o eterno retor-
no só pode reiterar o prazer da existência e consagrar uma relação
estética com a existência.
Se é admitida a possibilidade de que o eterno retorno só teria
valor para os fracos e para a reversão da vontade rebelada, mais

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 107


Calomeni, T. C. B.

uma indagação: por que Nietzsche supõe que o eterno retorno seria
capaz de provocar, não uma revolta ainda maior, mas, ao contrário,
a aceitação e a afirmação da existência? Supõe Nietzsche que a idéia
do eterno retorno é suficientemente forte para modificar a vontade
revoltada a ponto de fazê-la libertar-se do peso do ressentimento e
da vingança? Se o eterno retorno não é uma afirmação sobre a natu-
reza e a realidade do tempo, Nietzsche estaria afirmando o eterno
retorno como objeto de crença? Bastaria crer na hipótese de que
todas as coisas retornam sem cessar para a promoção da reversão
da vontade ressentida? Nietzsche estaria dizendo que o homem deve
viver como se fosse verdadeiro o eterno retorno? Justifica-se assim a
forma condicional exposta no aforismo de anúncio do eterno retorno?
Vem à cena o mais grave problema que enfrenta o leitor de
Nietzsche diante da postulação do eterno retorno: só o homem que
celebra a existência pode querer de volta o que passou; por outro
lado, só o pensamento de que tudo retorna pode ensinar o homem
a querer de volta os momentos de sua existência e levá-lo a zelar
pelos instantes performadores de sua existência; só pode querer o
eterno retorno quem já mantém com a vida uma relação estética e
cuida dos momentos da existência como obra de arte; ao mesmo
tempo, é a aceitação do eterno retorno o que induz o homem a afir-
mar a existência. Como escapar ao impasse? Estaria aí justificado o
silêncio posterior ao Zaratustra?
Longe de admitir necessária a resolução dos problemas suscita-
dos pela leitura do pensamento nietzschiano, pode-se concluir pelo
caráter experimental do eterno retorno – por sua natureza experi-
mental, o eterno retorno talvez possa assumir funções diversas: para
os fracos pode soar como exortação ética capaz de promover a con-
versão, a travessia; para os fortes, como uma confirmação de seu
modo trágico de viver a existência e, portanto, como reafirmação
do caráter estético de sua relação com a vida. Solução insuficiente?
Expediente de salvação de um pensamento controvertido? Ou exi-

108 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno...

gência imposta pelo próprio eterno retorno e, sobretudo, pelo caráter


experimental da filosofia de Nietzsche?
A despeito das interrogações – talvez o eterno retorno seja mes-
mo um pensamento destinado, se não à incompreensão, ao menos
à ambivalência e à ambigüidade –, pode-se arriscar, com certa dose
de segurança: o eterno retorno é sintoma de uma filosofia trágica
apta à rejeição de todas as injustas expressões de uma vontade ne-
gativa de potência que pretende a desvalorização, a desqualificação
e a correção, em lugar da promoção de uma vida ascendente. Dian-
te da oscilação, própria da existência, entre a precariedade e o gozo,
com o eterno retorno, resta ao homem amar e afirmar o seu destino.

Abstract: The current article ponders on the significance of the eternal


recurrence reasoning on Nietzsche’s work. Starting from the Gay Science,
Also Spoke Zaratustra and some posthumous fragments, it presents the
eternal recurrence as significant element of Nietzschian criticism of Me-
taphysics and Modernity as integrating part of Nietzsche’s experimental
philosophy.
Keywords: eternal recorrence – temporality – tragic – overman – amor
fati

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 109


Calomeni, T. C. B.

referências bibliográficas

1. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporali-


dade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche.
Tese de Doutorado apresentada à Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio de Janeiro em Agosto de 2000.
2. NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Um livro para to-
dos e para ninguém. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1998.
3. _______. Ecce homo. Como alguém se torna o que é. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
4. _______. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2001.
5. _______. Oeuvres Philosophiques Complètes. Paris:
Gallimard, 1977.
6. _______. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe.
Berlim/Munique: Walter de Gruyter/DTV, 1980.

110 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

A aparência embriagada*
Carlos Vasquez **

Resumo: O autor seleciona quatro temas que reúnem, segundo sua opi-
nião, a interpretação nietzschiana da arte e a posição central que esta idéia
ocupa em sua filosofia: a embriaguez, a tensão força–forma, as noções
clássico e romântico e o trágico.
Palavras–chave: aparência – arte – forma – trágico

Embriaguez

A fim de distinguir uma obra de arte clássica de uma românti-


ca, Nietzsche introduz (XIII, 14 (165)) um matiz acerca dos moti-
vos de criar: por um lado, o desejo de ser rigoroso, de “eternizar”;
pelo outro, o desejo de destruir, mudar, “vir-a-ser”.
Como fazer para que estes dois desejos não caiam em equívoco
quando da determinação de valores estéticos? Nietzsche se vale de
uma distinção de tipos, dado que, “por um lado”, o segundo desejo
pode expressar a exuberância das forças, ser signo de uma consti-
tuição estuante (ativo), mas, “por outro lado”, pode expressar debi-
lidade e ser signo de um ressentimento que obriga destruir o que se
odeia (reativo).

*
Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.
**
Professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Antioquia (Medellín /
Colômbia).

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 111


Vasquez, C.

Do mesmo modo, o primeiro desejo, a vontade de eternizar e


dar forma: expressão de amor e gratidão e signo de um caráter flo-
rescente (ativo). Mas, talvez, de um sofrimento exacerbado de al-
guém que necessita imprimir seu selo tortuoso (reativo).
Nietzsche denomina o primeiro artista dionisíaco e atribui à sua
arte o caráter clássico. Denomina o segundo pessimista, e sua obra
assume o caráter romântico. Na questão dos tipos, as coisas podem
chegar a estar muito misturadas e Nietzsche esforça-se para fazer
visíveis as distinções.
Esta análise tipológica apóia-se no fisiológico. Encontramos na
“embriaguez” o impulso próprio do criar. É um sentimento de volup-
tuosidade que, segundo Nietzsche, se materializa tanto na criação
dionisíaca como na apolínea. A distinção é de freqüência, de ritmo,
de coloração, talvez de intensidade. O diferencial marca-se também
nas formas.
Tal impulso alcança sua perfeição no repouso. Depois de retar-
dar as formas do tempo e do espaço (XIII, 11 (152)), torna-se então
visão, contemplação da forma perfeita medida em beleza. O repou-
so não significa uma supressão daquele estado, mas seu equilíbrio
e harmonização.
Nessa plenitude, a embriaguez chega ao ápice e se converte em
lúcida sensualidade, espiritualização extrema dos sentidos, aguça-
mento dos poderes da visão (XIII, 14 (169)). O impulso levado ao
ápice, que repousa na forma simples e abreviada, é o clássico. Não
é concebível um sentimento maior de potência.
A consciência, encarregada de abreviar e fixada nos convencio-
nalismos, adota a forma de consciência embriagada. O sentimento
de embriaguez não é um estado, mas uma variação. Um querer e
um aspirar a mais. Na presença do novo, a força aumenta, e vice-
versa. É tal aumento que cria o novo.
A beleza é signo de uma vitória. Quando isso ocorre, as formas
se coordenam, as violências se harmonizam. O aumento das forças

112 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

traduz-se em simplificação. Nietzsche chama esse “vértice da evo-


lução” de “arte do grande estilo” (idem). E, ao contrário, o feio apon-
ta para o descoordenado, para o inarmônico. Resulta do rebaixa-
mento das forças. A beleza é signo do enaltecimento de um tipo. O
feio, de seu rebaixamento.
O prazer próprio da embriaguez provém do sentimento de po-
der. Signos desse estado: a amplitude do olhar, o desinteresse pelo
detalhe; a capacidade de penetrar por adivinhação, de compreen-
der de relance e analisar sem mediações (idem). Em suma, o au-
mento da inteligência sensual.
O aumento da força induz à dança. Exemplo por excelência de
uma arte embriagada. Plenitude no movimento, exatidão na subida
e na descida. A força aumenta no prazer de fazê-la visível. Os estados
de elevação contagiam-se uns aos outros. Cria-se uma cadeia de
comunicação que passa de um ser ao outro (idem). As imagens de
um se convertem em sugestão para o outro. Chegam a cruzarem-se,
ainda, coisas que em condições normais permanecem separadas: a
compaixão e a crueldade, o impulso religioso e o sexual (idem).
A embriaguez é o impulso a partir do qual se pode determinar
o valor de um artista. É daí que se extrai um poder ver mais pleno
e mais simples. A embriaguez comunica perfeição, a fim de que as
coisas reflitam a plenitude da força conformadora (XII, 2 (66)).
Estas, por sua vez, são espelho da alegria de viver. A arte trans-
figura. Agrega algo, imprime seu selo. A arte é o grande estimulan-
te. A embriaguez assemelha-se ao impulso sexual e à crueldade.
Costumam ir juntos quando uma comunidade se introduz na festa
(idem).
O estado estético é definido por Nietzsche como “a mistura des-
sas delicadíssimas gradações de sentimentos de bem-estar animal
com desejos” (idem). O sentimento estético é próprio das naturezas
transbordantes. Aquelas que superam a exigência conservadora. A
força primordial da arte radica-se no dar (idem). Trata-se de um es-

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 113


Vasquez, C.

tado de prodigalidade. Que não é um esbanjamento sem custo, mas


é regulado por sua própria constrição, tensão entre dar e estar cons-
trangido, da qual nasce a perfeição e na qual se consome o estado
de aumento da força, o crescimento da riqueza que resulta de dar.
A vida intensificou-se em um relance. A arte faz entrar no do-
mínio da intensidade, na forma de um dominar. A embriaguez trans-
figura o artista, converte-o em alguém mais perfeito. Isso se trans-
forma “em realidade”, esse incremento de vida, essa variação na
consideração do valor.
A arte falsifica e, assim, glorifica. Não apenas imagina a glória,
leva-a a cabo. Por sua causa, mudam-se os valores. O princípio
mesmo do qual nasce o valor é a arte. Por isso, Nietzsche fala a
artistas ao formular o delicado tema dos valores. Com isso, o artista
assume a tarefa de criar valores.
O artista cria e crê no que cria, com uma atitude que não tem
nada de piedosa. É uma crença desprendida, que não mistifica a
criatura. As obras de arte atuam como sugestão. Isso, segundo
Nietzsche, somente para o artista: aquele que no fazer e no obser-
var é artista, ou seja, está sob o influxo dessa intensificação. A idéia
de um observador “profano”, desse modo, é um contra-senso (XII,
10 (167)).
As artes têm o efeito de um tônico: aumentam e dilatam as for-
ças comprometidas com o criar e o contemplar. Intensificam a inte-
ligência sensorial. Aguçam, por sua vez, a memória. As sensações
se aproximam, se comunicam, se contagiam, acima das distâncias
temporais (idem). Somente tal pessoa pode com justiça determinar
o valor do belo. Seu instinto julga desse modo. E também seu inte-
lecto. Um outro fazendo espetáculo da rapidez e da precipitação.
Este, em um tempo mais lento e profundo (XIII, 14 (36)).
De ambas perspectivas o instinto do belo diz sim e o do feio,
não. O instinto é motor de seus juízos. O belo exalta e tonifica. Sur-
ge da exaltação. O feio deprime e adormece. Surge da depressão.

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A aparência embriagada

Faz parte do estado de embriaguez do estético a intensificação


dos poderes da comunicação (XII, 10 (167)). A arte aponta ao aber-
to. Aquele estado de transbordamento, disposição para entrar no
outro ser, propensão a comunicar-se com liberdade rompendo os
limites do indivíduo.
Por sua vez, do estado de embriaguez podemos derivar uma
hipótese acerca da origem da linguagem. Para o artista embriaga-
do, tudo se torna signo. Os meios multiplicam-se, os canais de co-
municação abrem-se. Nietzsche diz que “o estado de ânimo estéti-
co é a fonte da linguagem” (XII, 10 (167)). A linguagem provém da
plenitude e do estado exaltado, em aparente contraste com aquela
idéia expressa por Nietzsche da miséria deste invento, enquanto
ocorre como forma de nivelar e fazer comunicável os estados mais
pobres (cf. FW/GC § 354 e JGB/BM § 268).
Dupla origem da linguagem de acordo com um corte tipológico
profundo. Dado que as regras de algo, neste caso, a linguagem,
dispõem-se de acordo com quem se aproveita delas conforme cer-
tos fins. O que ocorre é que outras faculdades se apoderam do que
brota da plenitude, tornando-o algo mais sutil.
O que Nietzsche afirma é que “toda elevação da vida aumenta
a força comunicativa e também a força de compreensão do homem”
(XII, 10 (167)). O que o leva, ainda, a viver em outro ser, a sair de
si e comunicar-se mimeticamente. Esse aumento extraordinário dos
poderes de imitação tem como pressuposto o estado de embriaguez.
A mímesis supõe um crescimento dos poderes e das forças. Imitar
não é repetir ou refletir.
A arte é um apoderar-se. Um transformar. Um invadir, imprimir
e mandar. Estados em que se aguça o poder de compor e combinar
signos. São os sentidos assim aguçados os que lêem e falam. Aguça-
mento de signo que leva a encontrar-se em estado de extroversão e
comunicabilidade. É o que Nietzsche atribui aos estados dionisíacos:

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a propensão a esquecer de si mesmo em função de uma comunida-


de de visão.
O si mesmo não é mais do que semelhante estado explosivo.
O que dizemos do sujeito não é senão o adormecer de tudo isso. O
estado não estético. Estímulos fortes que se misturam internamen-
te. Sendo esse interior o ponto de giro. A maleabilidade. A propen-
são a estar fora.
A consciência é o ponto em que se condensa essa força explosi-
va, que se coordena de modo involuntário e sem quase opor resis-
tência. Os sentimentos, as paixões, os pensamentos movem-se ao
ritmo das variações do corpo. Surge disso uma semiótica pulsional.
Diz Nietzsche que o estado de ânimo estético supõe uma sus-
pensão da intimidade (XII, 8 (1)). Ao mesmo tempo, produz-se uma
seleção de imagens, não se reage indiferentemente. São limitados
os estímulos que alguém se permite. Disso deriva-se uma distinção
entre o artista e o observador: este se predispõe para receber a arte.
Aquele se caracteriza por dar e criar. A diferença é de óptica. Con-
vém, é até necessário, não confundir os domínios.
As distintas combinações de estímulos apontam em alguns ca-
sos em uma direção, em outros em outra. Não se deve exigir do
criador que se comporte como crítico. Isso leva ao empobrecimento
dos impulsos que lhe são próprios. No artista trata-se, como foi dito,
mais de dar do que de receber. Esse dar enriquece. Não está segui-
do de estados de relaxamento. Estimula em lugar de empobrecer.
Nietzsche situa-o ao lado das atividades reguladoras (XIII, 17 (5)).
A arte afirma. Não lhe é dado negar. Acrescenta. Não lhe é
dado administrar. Por contraste, aquela embriaguez liga-se com uma
constrição reguladora. Aquele dar não tem o caráter de um fluir no
indeterminado. A riqueza no artista está temperada na justa medi-
da de sua arte. A queda no dionisismo sem réplica significa deca-
dência. A absolutização traduz-se no desgaste da embriaguez, que
se supera naquilo que lhe resiste.

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A aparência embriagada

Meios de resistência de que se vale a embriaguez: a finura e o


esplendor da cor, o contorno e a claridade das linhas, a gradação
dos sons. Meios que materializam as tensões de força que se deri-
vam dela (XIII, 14 (84)). A obra que assim modera o que a exce-
de, excita-se ao mesmo tempo. Diz Nietzsche que “o fim da obra
de arte é provocar o estado de ânimo que a determina” (idem). A
arte aspira a materializar a plenitude: “afirma, bendiz, diviniza
a existência”.
É um contra-senso uma arte pessimista. Enquanto tragédia a
arte é antipessimista. Ainda e sobretudo no representar alegremen-
te aquilo que aniquila.

Força-Forma

O artista é indiferente a si mesmo (812). Concede valor infini-


tamente maior a um som, a uma forma, a um acento. Esse despren-
dimento dá o que pensar. Aponta a sua força conformadora, que
lhe leva a atribuir valor à forma que é capaz de dominar.
O que não pode chegar a fazer-se forma, carece de valor para
ele. Em contrapartida: somente tem interesse aquilo que entra em
sua esfera, que passa por seus sentidos e adquire ali contorno e
claridade. Afirma Nietzsche que “é-se artista com a condição de
considerar e sentir como conteúdo [...] aquilo que os não artistas
chamam forma. Em conseqüência, pertencem a um mundo inverti-
do; [...] desde que ocorra o que foi dito, o conteúdo se torna algo
puramente formal, incluída nossa vida” (XIII, 16 (89)).
Para o artista, o único conteúdo é a forma. O risco disso está na
formalização e em incidir em artifício. Há artistas com os quais isso
não ocorre. Sobretudo aqueles em que não há vivência abismal.
Artistas do pessimismo niilista que se dedicam a combinar mais ou
menos habilidosamente algumas formas. Tal arte não diz nada. Não

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há vida para ser afirmada ali. Nesse caso, o conteúdo (que não exis-
te) não se converte em forma (que não chega a lograr).
Que o único conteúdo seja o que os não artistas chamam forma
aponta para a condição mesma da arte entendida como forma su-
prema da vontade de potência, que não é senão vontade dionisíaca
de forma. E que como tal reflete a condição mesma da vida: busca
da forma, multiplicação e plenitude da forma.
Para a arte não há senão forma. O impulso que encarna é aque-
le da forma. Ali se joga tudo. O que ocorre é que a distinção de
forma e conteúdo deixa de ser útil. Uma espécie de homem, o artis-
ta que supera o niilismo, não se basta com essa distinção, solidária
como é das dualidades próprias do mundo verdadeiro: verdade –
erro, realidade – ilusão, aparência – essência, acidente – substân-
cia, sujeito – objeto, etc.
Uma vez destituído aquele mundo, resta somente um mundo, e
esse mundo é pura forma, vontade dionisíaca de aparência, ilusão,
conflito, contradição. Esse mundo se oferece aos sentidos, que, por
sua vez, agregam sua própria vontade. A vontade criadora do artis-
ta, uma vez desprezado o particular, “põe seu gozo e sua força no
compreender o típico”. Ali onde há plenitude domina a vontade de
medida (XII, 10 (33)). Esse olhar despreza o “demasiado vivo”,
signo de uma necessidade de elementos narcóticos.
O artista põe em relevo o simples, o caso geral, aquela liberda-
de sob a lei. Permanece somente o fixo, o poderoso, o sólido. O
repouso em que a força descansa na visão da criatura perfeita. É aí
que a obra reflete um estado de sensualidade estuante.
O artista ama os meios que sabem captar o estado de embria-
guez: a finura da forma, a claridade do contorno, a simplicidade e
precisão dos traços. Essa vontade de forma perfeita que não faz
parte dos estados em que aquela está ausente (XII, 14 (84)).
Surpreende que Vattimo não saiba reconhecer nessa vontade
de forma um signo de vida estuante. Que desapareça ante seus olhos

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A aparência embriagada

o jugo que impõe a embriaguez que não sabe afirmar-se senão na-
quilo que lhe resiste. E que termine pensando nela como uma mera
força desestruturante.
Quem não sabe reconhecer em Nietzsche a tensão entre força e
forma não tem acesso à particularidade de sua estética. Termina
preso na absolutização de um dos termos. O que não passa de uma
abstração. Assim como termina reduzindo o outro, neste caso a afir-
mação da forma, a uma leitura unilateral que lhe faz pensar na arte
subsidiária de uma razão niveladora.
A forma em que Nietzsche está pensando é a síntese da tensão
de forças que a distingue. Resulta da embriaguez, tempera-a em
uma forma que a incita. Como tal vontade, a arte transfigura, afir-
ma, imprime o selo de sua força doadora. O fazer artístico gasta
forma, expressa a vida como luxo e vontade de potência. O gasto de
forma glorifica e diviniza a condição da figura perfeita.
Trata-se da forma bela, a qual mede o desmesurado de acordo
com a lei das proporções. Este artista o é no domínio de seus meios.
Não necessita imitar outras artes, sair de sua esfera (XII, 10 (24)).
Não se dá o luxo de ser pintor enquanto poeta. Menos ainda teórico
enquanto artista. Mantém-se dentro das leis do material. Fiel à agu-
deza dos sentidos que aplica.
Nada mais distante do artista dionisíaco do que o erudito, o
homem culto que está cheio de idéias gerais, e, ao mesmo tempo,
muito pouco dotado para as exigências de seu ofício. O artista
dionisíaco é um mestre apolíneo. Para que na arte termine falando
Apolo a língua de Dioniso, este terá que dominar a língua daquele.
Nietzsche dá esta lição, em geral tão pouco assimilada, aos ar-
tistas: amem a forma pelo que é, não pelo que expressa (idem). O
único conteúdo é a forma: pura ética de artistas. Tratem a forma
como se fosse o único conteúdo. O restante virá por conseqüência.
Dá o que pensar que um artista pense tanto no que tenha que
expressar. No geral, isso leva a um descuido fatal no tratamento do

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material. Na arte não há nenhuma separação entre o que se diz e a


forma em que se diz. A forma não é um meio. É fim em si mesmo.
O fim é os meios com que alguém trabalha, os materiais com os
quais forceja. O perigo é pôr a forma como mensageira. Perde-se a
arte. O especificamente artístico desaparece e, como por encanto,
termina servindo ideais.
Isso não quer dizer que Nietzsche defenda a arte pela arte. O
estado estético é muito interesseiro para isso. O único senhor é a
vida, sua afirmação enquanto vontade dionisíaca de aparência.
Nietzsche pensa nos grandes mestres, que não fazem nada a
não ser insistir nisso. Evoco Balthus (memórias): a luta com os ma-
teriais. Os impulsos concentrados ali. A perfeição da figura como a
têmpera que se põe para não perecer por idéias gerais. Em contra-
posição a Wagner: a música como expressão (XIII, 11 (330)).
À vontade de forma opõe-se a função expressiva na arte: a for-
ma como instrumento. De mensagens que terminam sendo externas
à arte. Não há nada que Nietzsche desdenhe mais que a interpreta-
ção da arte segundo motivações exteriores: morais, políticas (XII,
10 (117)). É uma dupla traição: à arte, enquanto interpretação-ex-
perimentação do mundo. E à vida, que termina sendo presa de in-
terpretações rebaixadoras.
Resta talvez a figura do filósofo artista: aquele que sabe poten-
cializar o poder cognoscitivo da arte, que leva seu trabalho com a
forma ao cume da lucidez pensativa. Aquele que cria mundo e con-
templa mundo nas formas medidas de sua arte. O filósofo artista,
que supera em muito os filósofos anteriores, que não tiveram ne-
nhum respeito pela forma e se valeram da arte com fins morais.
Um filósofo imoralista, diz Nietzsche, que sabe interpretar o
mundo desde a perspectiva de seus sentidos espiritualizados. Um
filósofo artista, capaz talvez de opor um contra-ideal ao ideal ascético,
que leva a arte a ser um “contra-movimento” da metafísica. Apego
ao mundo, fidelidade. Compromisso com o único sentido que o

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A aparência embriagada

mundo reclama. Para isso, total amor pelos sentidos, que sabe apro-
ximar sentidos e espírito. Que se atreve a oferecer o melhor de seu
espírito aos sentidos devido a sua finura, sua força, sua perfeição
embriagada (XIII, 23 (2)).
A mania pela forma converte-se, assim, na mais refinada luci-
dez dionisíaca. Aquela que permite à arte evitar que pereçamos pela
verdade (XII, 10 (40)). Essa mania plasma-se em “beleza”. Algo
que, segundo Nietzsche, “está acima de todas as hierarquias, por-
que nela se superam os contrastes, a mais alta forma de potência
que sabe reinar sobre coisas contrapostas” (XII, 2 (130)). Potência
que o artista acha sem esforçar-se. Como manifestação de sua pró-
pria exuberância. A beleza não resulta de uma busca. E, parado-
xalmente, não se dá se ela não for buscada. O caráter obediente da
beleza “diviniza a força de vontade do artista” (idem).

Romântico – Clássico

Signos de uma arte “romântica”: a tendência “expressiva”, o


pitoresco, o naturalismo (XIII, 14[47]). A propensão ao “drama”.
A forma zelosa de combinar música e texto. Adorno e ilustração.
Tudo isso em função de exteriorizar emoções.
Nietzsche opõe a grande paixão à “paixão”. Neste caso, a exci-
tação dos nervos, signo de fadiga e embotamento. Vontade de agi-
tação e deserto. Voluptuosidade não passível de ser contida. Busca
do pétreo e do maciço. A toda essa exibição das emoções, Nietzsche
assinala o termo “romântico”. Arte sem harmonia, arte inquieta e
movediça.
O artista clássico nada tem a ver com essas efusões. Ancorada
em uma individualidade exacerbada, tal arte oferece-se como nar-
cótico. Naturezas irriáveis acham aí seu fármaco. É uma arte das
poções e dos remédios. Nisso Nietzsche vê tão-somente uma função

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ascética. É a arte como consolo, distração, calmante. Arte da época


do trabalho, feita para o descanso e a distração.
Nietzsche está pensando a música como problema. Por que não
chega a ser uma arte do “grande estilo”. A música aspira a ser gran-
de, deve romper o vínculo com a expressão de sentimentos. Que
nada têm a ver com a grande paixão. O que temos em troca? Uma
música desejosa de agradar e que, por conseqüência, busca con-
vencer, doutrinar, tecer um argumento.
A grande paixão aspira à potência. A potência quer mais potên-
cia. A potência não é o que se quer, mas aquilo que quer. O essen-
cial é dominar-se, limitar-se, não se deixar arrastar. Fazer do pró-
prio caos forma. Isso nada tem a ver com efusões patéticas.
O artista aspira a fazer-se simples e claro, aproximar o impulso
ao rigor e à lei, subjugar.
Nietzsche supõe que são artistas aqueles que não são favoreci-
dos com facilidade. Não respondem às necessidades do público se
por isso entendemos o que se espera habitualmente da arte: que
traduza o que somos e que nos sature do que queremos. Há aí um
evitar por necessidade o gosto dominante, sobretudo se se trata de
um gosto a favor da reprodução do que é dado.
Pelo contrário, a arte da grande paixão será sempre um desa-
fio, evita as formas habituais em que se incuba um gosto conserva-
dor. É frio, lógico e equilibrado. Reivindica para si lucidez e dure-
za. O que surpreende Nietzsche é que tal afirmação do grande estilo
falte na música, que seja uma arte tão propensa à dramatização.
Acha-se presa na necessidade de agradar, de cumular necessida-
des. É na música que com mais ofensas se sente a tirania de seu
público. A esta termina servindo o artista, disposto a responder às
exigências de um senhor.
A tensão entre o clássico e o romântico materializa-se para
Nietzsche na posição que ocupa a música. Na busca de uma arte
que responda ao destino geral da arte, que é o de ser uma forma de

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A aparência embriagada

conhecimento em que já não cabe o mundo verdadeiro, em nome


do qual a arte suportou a suspensão negadora.
Mas que arte é essa? Arte do niilismo dominado. Alegre men-
sageira da superação do niilismo. Na música que conhece, nada ao
redor. Apenas música romântica. Música que serve ao ideal ascético.
Música medicinal para um corpo social enfermo. Se a arte deve ser
contra-movimento, deveria tentar sê-lo como música. Ou mais ain-
da, talvez somente enquanto tal, a arte possa ser alternativa ao
niilismo.
Com o que nos deparamos? Com uma música que é a não ser
contra-renascimento, romanticismo do princípio ao fim. A fim de
distinguir-se de uma falsa afirmação do grande, de uma encarnação
acomodada do dionisismo, Nietzsche resiste ao romanticismo na
música. Síntese de todo o equívoco. Daquela agitação emocional
que em lugar de aproximar ao deus, o afasta e o perde.
Se o romanticismo em Nietzsche não tem nada em comum com
a arte em que pensa, também se faz necessário revisar o paradigma
de clássico. É bem certo que seus traços parecem coincidir com o
pensamento ordinário. Mas a respeito disso Nietzsche é inequívoco.
Aí a forma é uma conquista. Todo aquele empenho e aquela mania
pela forma não surgem somente de uma propensão contrária, como
resultado de um dominar e temerar, mas também, ao mesmo tem-
po, resultam de uma vitória sobre a propensão natural.
Nisso os artistas da grande paixão são inconfundíveis. Termi-
nam inventando uma barreira à sua tendência mais própria. A sín-
tese a que chegam não poderia ter sido mais bela. No resistir a si
mesmos, e vencer, acham a justa medida de sua arte. A beleza sur-
ge como vitória sobre sua natural tendência desagregante.
E o artista de hoje? Acha-se ante uma exigência semelhante.
Pertence a um mundo em crise, a um mundo não-fundado e sem
fundamento. Deve recolher os restos de um desmoronamento. Aque-
le do mundo verdadeiro. Esses restos são os pedaços desarticulados

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do discurso predicativo. O que fazer com isso? Afirmar a forma sem


suporte. A lei na ausência de toda lei. O império da medida quan-
do irrompe o desmesurado. Determinação e claridade em meio a
tanta indeterminação. Paixão pela forma sem fundamento. Irrompe
o informe. Espreita o caos. O artista triunfa sobre si e conquista a
forma. Forma gratuita na qual cumula de gratidão o mundo. Entrega
agradecida do que se é como afirmação daquele que é (XII, 2[114]).
Temos a arte para não perecer à verdade. Em nenhuna parte
como na música esse ter é menos um possuir e dominar. Temos em
nossas mãos a música. Jogo perigoso e arriscado, em um mundo
sem sentido e sem metas. Um mundo que brota das ruínas do cos-
mos teológico.
Temos a arte? Sabemos já a que música aponta? Ou talvez seja
melhor não saber aquela que se ocupa conosco. A relação com essa
arte é bem insegura. É por enquanto uma arte que não se domina,
na qual ninguém mostra ser mestre. Espera desencantada da músi-
ca que toma a exigência que busca medida.
Esta afirmação da arte como reflexo de uma relação liberada
de mundo, Nietzsche tem que fazê-la quase sem artistas e sem arte.
Qual deve ser nesse caso a arte do deserto? Mais grave ainda se a
música, em lugar de ser contra-movimento da metafísica, encarnar
uma reação contra o clássico.
O clássico em arte resulta do desmembramento de um mundo.
Encontra-se onde é imensamente valioso ser medido e solar, claro e
simples. Em contraposição àquela idéia do classicismo como seguran-
ça natural, serenidade acomodada, plenitude ingênua e primordial.
Surpreende que Vattimo não sinta nada dessa inconsistência.
O classicismo é um estado de imensa tensão, uma propensão mor-
tal em direção à forma. Nesse caso, quão ingênuo resulta que à
busca de síntese e forma se oponha aquele impulso desestruturante.
Que, com muita facilidade, termina preso em um sintomático tom
romântico.

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A aparência embriagada

O que se busca é um artista que, de relance, esteja preparado


para assumir, ante o desmoronamento das formas conhecidas, uma
nova vontade de forma. Alguém capaz de valorar de outro modo,
de criar outro tipo de valores segundo um novo princípio.
Assim, a arte clássica não responde ao já conhecido. Ao contrá-
rio, trata-se de uma busca da forma fora do império do logos predi-
cativo. Uma forma sem antecedentes, conforme uma lei que está
para ser definida. E extrair daí uma arte que encarne a vitória so-
bre o vazio.
O artista clássico converte sua força em satisfação. O românti-
co, em desconfiança. Aquele afirma o mundo ao criá-lo. Este diri-
ge-se ao que está atrás do mundo (XIII, 14[42]). Que mundo é este
que marca assim as diferenças? Um mundo vazio de sentido. Um
mundo em ruínas no qual resta à arte consolar ou estimular, afir-
mar ou ajudar a resignar-se. O matiz é chave e Nietzsche celebra
essa distinção como uma conquista.
Romantismo é aqui aquela arte que significa descontentamen-
to. Classicismo aquela na qual a felicidade se conquista no terrível
e no incerto. Submeter a arte a uma interpretação transmundana é
na prática aboli-la. É o que ocorre com a arte romântica que termina
sendo religião, um veículo para expressar um credo, um fármaco
para curar uma afecção.
A arte clássica ativa potencializa, transfigura. A arte romântica
serve à conservação. Aquela é libertadora e faz da vontade de for-
ma signo de um remontar após sínteses cada vez mais plenas. É por
isso que Nietzsche diz que atrás da distinção clássico-romântico se
esconde a distinção ativo-reativo (XII, 9[112]).
Trata-se de forças. Forças que ativam a vida, que afirmam o
vir-a-ser no perecer. Formas de arte em que se dá a “sobrevivência
na representação de um perecimento” (Jahnig). Diferentes das for-
mas para o anquilosamento e para a conservação. Sobreviventes
daquele logos negador da arte, arte imitação da lógica predicativa e

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Vasquez, C.

de sua moral. Que se disfarçam com o novo e o exótico. O próprio


de uma arte clássica é ser autêntico. A forma lavrada não tem o
caráter de uma imitacão, de uma ânsia de coisas novas e distantes
(XII, 9[170]).
A arte clássica é simples e desnuda. Sóbria e elementar. Nada
daquele barroquismo rico em adornos. É “realista” e austera. Veraz
e clara em sua composição. Nada daquela fantasmagoria e prolife-
ração. A arte clássica assenta-se na realidade. É uma arte diurna,
prefere a luz matinal às sombras fantasmagóricas.
O artista clássico deve ser um gênio se por isso entendemos “a
mais ampla liberdade sob a lei” (XIII, 16[34]). Nada daquela falsa
liberdade que se perde nos confins. Ligeireza e facilidade no difí-
cil. Nada daquele elogio da dificultade que leva a obscurecer de
modo artificial. Nenhum peso. Nenhuma atitude pessimista e obse-
dante. Nietzsche pensa em uma arte de puras superfícies. Uma arte
petulante e meridional.
Talvez faça falta alguém que nesse terreno imponha novas leis.
Alguém que defina princípios na ausência radical de princípios. O
que significam a partir de agora “perfeição e medida”, “lei e or-
dem”, “cor e ritmo”, “melodia e contorno”? A pergunta torna-se
importante à luz de nosso niilismo. O homem artista deve ser probo
e austero, simples e silencioso, discreto e temerário. Antes de tudo
deve ser capaz de viver em meio a uma alta dose de absurdo. E,
nessas condições, impor a si mesmo uma nova lei e medida, assim
como a sua arte, em um mundo livre de fundamento.
Já em O nascimento da tragédia Nietzsche acusava os homens
modernos de não poder pensar na arte enquanto tal, a necessidade
de suprimir o estado de ânimo estético. Isso se deve ao desapareci-
mento da consciência da arte. Ainda nos artistas que não podem
ser senão pintores enquanto músicos, enquanto músicos poetas.
Quão difícil resulta manter-se nos limites da arte. Alguém se
serve dela com fins expressivos e, entrementes, perde sua lei. Fide-

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A aparência embriagada

lidade de cada arte a seus próprios materiais. Somente assim se


mantém sua racionalidade, sua espiritualidade, a conformidade com
suas próprias leis.
A arte e somente a arte. Talvez a arte do futuro seja a música? O
que se requer para chegar a ser clássico em música? Desejos fortes,
embora se contradigam, levados todos por um jugo único. Um espí-
rito que conclui e guia no avanço e que, em todos os casos, afirma.
Em condições de dissolução convém talvez reiterar alguns dos
traços do gosto clássico: frieza, lucidez, dureza; gozo na lógica e a
expansão do espírito; concentração de todas as faculdades; despre-
zo pelo sentimental, pelo múltiplo, pelo vago e incerto. Trata-se de
um ideal que deve se manter separado de qualquer imagem
paradisíaca. Nenhum retorno à natureza. Nenhum refúgio primor-
dial. Pelo contrário, compromisso extremo com o presente e o futu-
ro, embora nisso a arte se arrisque como utopia (Cacciari).

O trágico

Nietzsche rechaça a interpretação catártica da tragédia, sobre-


tudo o fato de colocar a depressão de emoções como propósito, as-
sim como a escolha de emoções (eleos, fobos) em si deprimentes.
A tragédia é um estimulante. Não leva à resignação. Isso exige
pensar não somente em sua natureza enquanto obra de arte, mas
também no espectador, no tipo de público a que se dirige, no esta-
do de ânimo estético. A têmpera de um povo decide em último caso.
Nietzsche pensa em um povo para o qual a arte seja um estímulo
para a vontade de vida. A posição ante o trágico leva-lhe a fazer um
uso ambivalente do termo “pessimismo”. Se for “pessimista”, a tra-
gédia é um perigo. Supõe, pelo contrário, um pessimismo da força.
Ante o terrível, um povo manifesta sua têmpera e glorifica a existên-
cia. A tensão entre duas formas de pessimismo decide em último caso.

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As emoções trágicas postas por Aristóteles na definição de tra-


gédia (terror, compaixão) comportariam um efeito desestabilizador
e não poderiam constituir emoções trágicas. Debilitariam, desorga-
nizariam, desalentariam. A tragédia negar-se-ia a si mesma como
arte, conduziria a vida à renúncia.
“Nesse caso, a tragédia suporia um processo de dissolução, o
instinto da vida destruindo-se a si mesmo no instinto da arte”. Arte
niilista, vida contra vida, dissolução do instinto da arte.
Porém, por acaso com justiça podemos afirmar que o efeito trá-
gico é desse tipo? Que recorre a anular essas emoções? Que na
base vale supor um declínio do tipo, que estaríamos ante emoções
reativas, sentimentos deprimentes? Pelo contrário, dirá Nietzsche.
E, para isso, dirijamos nosso olhar àquele povo. Aquele que se de-
leita ante a vista da dissolução de seus tipos mais altos.
Para um povo como esse, a tragédia é um tônico. Não vê na
arte a possibilidade de purgar um excesso de emoções, na direção
do apaziguamento do aparato pulsional. Não é lícito esperar dela a
depressão coletiva na qual a arte atuaria como narcótico. A tragé-
dia incita a viver, em meio ao terrível e ao incerto. Somente o bem
dotado pode achar aí motivos de satisfação. Por isso, afirma
Nietzsche, em Crepúsculo dos ídolos, que, além do terror e da com-
paixão, chegamos a ser o eterno prazer de vir-a-ser.
Dois tipos de pessimismo: um que se resigna ante a dor e busca
consolo e outro que se coloca a sua altura e afirma a vida (FW/GC,
§370). A têmpera de um povo nos dá a medida de sua arte. Trata-
se de tipos. O que conta é a constituição coletiva. Depende da força
que se chegue a formar o juízo de beleza. Que se imprime a partir
do terrível. Os traços são extraídos do que causa horror e do que
retira o alento.
A beleza se conquista, tem os traços do que aniquila. Deve olhar
o terrível e aí desenhar o traço perfeito. A plenitude faz que alguém

128 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

veja como beleza aquilo ante o qual outro afasta o olhar. Trata-se
de óptica. Toda óptica se forma como síntese de forças. A idéia de
“serenidade” é também ambivalente. Permite a Nietzsche afirmar
um estado de repouso conquistado, uma contemplação como vitó-
ria, diferente daquela serenidade acomodadora que certos homens
esperam da arte.
O sentimiento de potência afirma beleza. A beleza aqui aludida
resulta da harmonização de tendências contrapostas. A vontade de
forma brota de uma vida transbordante. Alguém diz “feio” onde
alguém afirma beleza.
Como se situa alguém ante ao risco e a aniquilação? Como as-
sume o sem sentido e o terrível? Está preparado para ir mais longe,
justificar, transfigurar? É capaz de concluir a partir disso o harmô-
nico e o solar?
A predileção pelo terrível e abominável é signo de força. Re-
correr ao decorativo e gracioso indica debilidade. “O gosto pela tra-
gédia distingue as épocas e os caráteres fortes... São os espíritos
heróicos os que afirmam a si mesmos na crueldade trágica: são su-
ficientemente duros para sentir o sofrimento como prazer” (XII,
10[168]).
A vida minguada vê-se impelida a traduzir o trágico. É o que,
afirma Nietzsche, se dá na interpretação aristotélica. Mais ainda na
interpretação moderna, que se vê obrigada a transladar essa arte
para fora de sua esfera. Manter-se na esfera do estético é o mais
difícil. Supõe o talento para afirmar o mundo como fenômeno
estético.
Toda apreciação externa à arte provém da incapacidade de in-
terpretar o mundo como obra de arte. Isso supõe uma perda de
mundo. O império de uma interpretação evasiva. O qual está patente
na forma habitual de ver o trágico: triunfo da ordem moral, busca
de soluções finais, convite à resignação ante uma realidade sem

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 129


Vasquez, C.

sentido. Ainda, em certas naturezas, a visão do terrível pode indu-


zir descargas nervosas, estimular o sistema, remover a atrofia. Nes-
te caso, a arte atua como fármaco em naturezas esgotadas.
Trata-se de interpretações que saem da esfera “estética”. Em
que um povo enlevado intensifica seus poderes de visão e extrai
conclusões glorificadoras. Nietzsche ressalta uma grande quantida-
de de matizes ante o trágico, distintos graus e tipos de pessimismo:
o religioso que se lamenta do estado de corrupção e busca soluções
finais; o olhar daquele que não se sacia a não ser com visões fasci-
nantes, com estampas beatíficas que o ajudem a suportar; o artista
niilista que se refugia na forma.
Nada daquela capacidade de situar-se ante o terrível, de estar a
sua altura, de tirar conclusões que não suponham desviar o olhar.
Aquele ingênuo criar e deduzir, aquele sereno dar forma a partir
de matérias explosivas.
O artista trágico é capaz de subjugar. Imprime seu selo afirmador
em matérias desiguais. Faz a dissonância ser consonante. “Afirma
a economia com luxo, justifica o terrível, o enigmático e não se con-
tenta, contudo, em justificá-lo”. O que é esse mais que não se re-
duz à justificação? Já que nesse mais se materializa a peculiaridade
do tipo. Um mais que lhe faz agregar menos que outros na hora de
interpretar o mundo.
São mais eloqüentes os que menos ordenam. Chegam a ser obri-
gados a pôr mais véus. Estes, em compensação, os arrancam. Bas-
ta-lhes um único véu. E nesse despojamento é muito mais o que
outorgam, o que glorificam, o que bendizem, o que criam. O que é,
portanto, esse mais que não tem a forma de um agregado, de uma
aglomeração de formas e sentidos?
Já sabemos que se trata de uma arte do justo e do medido, uma
arte pobre e austera se ela for comparada com outras eloqüências.
Uma arte breve e contida, clara e contundente. Exceder-se na for-
ma faz perder o brilho do terrível. Por exemplo, se os sentimentos

130 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

são ruidosos, as emoções podem chegar a perder o sentido do pâni-


co. Uma arte “expressiva e emocional” não é uma arte trágica.
A tragédia é breve e silenciosa, faz-se de fórmulas muito preci-
sas. A justeza no dizer deriva-se de uma vivência da dor que esqui-
va o patético. O juiz da arte é uma dor sem afetação. Estar à altura
da própria dor é o mais difícil. Nisso nossos mestres são alguns ra-
ros artistas (no terreno da tragédia pensamos em Sófocles, no que
dele afirma Schadewaldt).
O que se agradece da arte é que ensina a viver a dor como
fenômeno estético. Protege de interpretações em que a dor se elude,
se desvia, ou se consome em sua própria intensidade não assimilada.
A dor interpretada artisticamente leva a achar prazer no sofrimen-
to. A interpretar com inteira precisão o alcance da dor na economia
do ser. Se alguém exagerar esse papel, cai no patético. Ou, pior
ainda, cristianiza sua interpretação em soluções transcendentes1.
A harmonia entre dor e beleza é a aspiração suprema dessa
arte. Trata-se de uma relação que não é sublimante. Não tem o
caráter de uma ocultação. Apesar das fórmulas equívocas do pró-
prio Nietzsche. Para mim, essa equivocidade na linguagem em re-
lação com a tensão entre verdade e beleza não pode ser soluciona-
da como um problema meramente filológico. Como não se reduz
tampouco a uma questão de influências. Aponta a algo mais sério, a
uma semiótica dos impulsos em um pensamento tão arraigado em
conflitos do corpo.
A questão do trágico é, em Nietzsche, uma profunda vivên-
cia. Como são em todo pensador autêntico suas idéias diretrizes.
Forma aguda de pessimismo, nossa consideração trágica, ampara-
da em nosso atual niilismo, tem como pressuposto a supressão do
mundo verdadeiro. A perda total do mundo, pois desaparecido o
mundo verdadeiro, desaparece o mundo aparente.
Não permanece senão um mundo. Nosso mundo: um mundo
cruel e contraditório, falso e carente de sentido. Esse desapossa-

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 131


Vasquez, C.

mento do mundo me parece o mais essencial. Na hora de afirmar


para nós uma arte trágica. Que arte convém a nosso mundo-deserto?
Para extremar sua malignidade, o pessimismo afirma que um
mundo assim é o verdadeiro. Que “verdade” é essa que supõe a
supressão do mundo verdadeiro? Que exige a arte para não pere-
cer à verdade? E, mais importante ainda: que riscos implica a ex-
perimentação com a verdade?
Trata-se de um experimentar com a verdade para o que não
contamos com a proteção do mundo verdadeiro. Não nos apresse-
mos a qualificar essa verdade de algum modo. Deixemos isso em
suspenso, com o risco de que isso caia sobre nós com o peso de sua
evidência mortal.
O que se deduz do livro da juventude de Nietzsche é que ante
uma experiência tal de mundo temos necessidade da arte para não
perecer à verdade. À verdade como mentira absolutizada. À qual
se opõe um experimentar com a “verdade” na desfundamentação
de qualquer pressuposto.
Ameaça-nos a dupla tenaz da verdade. E para isso temos a arte.
Mas temos a arte? Não é talvez melhor que se entretenha conosco
como estimulante experimentação com a mentira em um mundo sem
fundamento?
“Temos a arte para não perecer à verdade. Frase que seria a
mais depreciativa para a arte, se não se invertesse em seguida para
dizer: Mas temos a arte? E temos a verdade embora fosse para pe-
recer? E é que ao morrer perecemos? ‘Mas a arte é de uma serie-
dade terrível’” (Blanchot).
Apelemos a essa seriedade, a essa terrível malignidade. A arte
afirma-se como mentira em um mundo em que não opera a distin-
ção verdade-mentira, um mundo que não requer mais uma hipóte-
se moral extrema. O trágico apóia-se no que podemos viver sem tal
interpretação, ao abrigo do absurdo e do acaso.

132 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

O homem trágico encarna uma têmpera de ânimo ante a ausên-


cia de sentido e de metas. Comporta-se de modo discreto e valoro-
so, não faz ruído, vai silenciosamente longe. O pessimismo aludido
afirma todas as formas existentes derivadas da vontade falsificante.
Exteriorizações da vontade de arte. Incluída aquela vontade de ver-
dade com aparência incondicional.
Enquanto mestre da mentira e glorificador da forma, o homem
é artista. Bendiz a forma, afirma o mundo como proliferação de
forma. Efeito do desmoronamento daquele mundo e de sua notória
temporalidade, o homem artista assume a vida como jogo. Em cada
jogada, a forma acaso como glorificação do instante acontecimento.
As formas aludidas (ainda aquelas que negam o acaso e dizem
brotar de um tempo providencial) resultam de sua vontade de arte,
forma muito sua de fugir da “verdade”. A arte é um agregar, um
violentar, em um mundo vazio, sem fatos. Um mundo sem realida-
de, no qual tudo é fábula. Porque não há mundo, somente o que
somos capazes de inventar. O mundo é arte e nada mais.
Que a verdade nos seja por necessidade desconhecida, que não
podemos viver senão basicamente nessa ignorância, isso forma par-
te do caráter trágico da existência. Temos a arte para experimentar
com a verdade. A arte é trágica na medida em que nosso contato
com o risco de perecer ocorre pela via do conhecimento.
Este conhecimento será de agora em diante guiado pela arte.
Sempre e quando seja pensado em sua terrível seriedade: “A arte
como redenção do homem do conhecimento, daquele que vê o
caráter terrível e enigmático da existência, daquele que quer vê-lo,
daquele que investiga tragicamente”.
Não na forma banal das capelas da arte. Ou das efusões pouco
pensativas dos artistas. A arte lúcida é um acontecimento raro. Como
todo acontecimento. As formas aludidas são também escassas. Na
verdade o mundo está bastante despovoado. Trata-se de um mundo

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 133


Vasquez, C.

com alguns poucos acontecimentos afortunados. O mundo trágico é


um mundo austero, algumas poucas formas. Opõe-se à imagem de
um mundo superpovoado. Aquele que impõe os meios.
Um mundo quase vazio no qual a mentira é selecionada. Pou-
cas coisas e não muitas. No jogo quase nunca se ganha. A forma
acaso, a forma indivíduo singular, a forma instante que resulta do
tempo retorno, é uma forma rara. Mas basta uma. Pode-se esperar
por ela toda a vida. O que é uma vida para esperar. Entretanto,
vive-se sem esperança. A arte trágica se faz na espera sem esperan-
ça do que talvez nem chegue.
O artista, a força da mentira, reina sobre a verdade. “Alegra-se
como artista, desfruta de si mesmo como potência”. “A mentira é a
potência”. “A arte e nada mais que a arte. Ela é a grande possibili-
tadora da vida, a grande sedutora que incita a viver, o grande esti-
mulante para viver” (XIII, 11[415]).
O homem trágico é artista não somente porque vê isso, mas quer
seguir vendo. Não somente vive assim, mas quer sempre viver as-
sim. Não deseja outra coisa. Ter vivido sempre assim. Viver sem-
pre assim. Se alguém lhe disser que seu tempo trará somente ter-
ror, ele dirá que aquele que fala só pode ser um deus. Se alguém
lhe disser que essa visão terrível voltará uma e outra vez, ele dirá
que quer isso e somente isso. Se alguém lhe advertir que ele será
isso por toda a eternidade, ele dirá que quer eternizar-se assim.
Jogar ser eterno.
A doutrina do eterno retorno do mesmo supõe o ingresso em
um tempo trágico. Mas isso não é sentido como um peso. O tempo
que pesa é aquele que conduz um deus. E que leva até deus. Mas
esse deus morreu. Permanece o tempo ligeiro habitado por deuses
que jogam dados. Permanece o tempo do homem que diviniza a
existência ao apostar aparências-acaso na mesa da arte.

134 | cadernos Nietzsche 18, 2005


A aparência embriagada

Abstract: The author selects four themes that in his opinion embrace
Nietzsche’s interpretation of art and its central role in his philosophy:
drunkenness, the tension between force and form, the notions of classic
and romantic, and the tragic.
Keywords: appearance – art – form – tragic

notas
1
N.T.: Na tradução que fizemos, perde-se o forte significado
marcado pelo autor: a palavra original é “allendistas”, sen-
do derivada de “allende”, advérbio que significa “do outro
lado”, “do lado de lá”. A palavra “transcendente” tem tam-
bém as acepções, em português, de superior e sublime.
Tais sentidos não estão presentes no termo utilizado pelo
autor.

referências bibliográficas

1. CACCIARI, M. El dios que baila. Buenos Aires: Editorial


Paidós, 2000.
2. JÄHNIG, D. Historia del mundo: historia del arte. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993.
3. NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studien-
ausgabe. Berlim/Munique: Walter de Gruyter/dtv,
1988.
4. VATTIMO, G. Las aventuras de la diferencia. Barcelona:
Editorial Península, 1990.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 135


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Convenção para a citação


das obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição


Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português
acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho
de leitores pouco familiarizados com os textos originais.

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:

GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)


DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:
David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas
II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopen-
hauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer
como educador)
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner
em Bayreuth)

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 137


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado


humano (vol. 1))
VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen
(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sen-
tenças)
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua
sombra)
M/A – Morgenröte (Aurora)
IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner

I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:

AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)


EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:

GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)


ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensa-
mento trágico)
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)

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Convenção para a citação das obras de Nietzsche

CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios


a cinco livros não escritos)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia
na época trágica dos gregos)
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre ver-
dade e mentira no sentido extramoral)

Edições:
Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas
por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Stu-
dienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./
DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,
Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.

Forma de citação:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remete-
rá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/
CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará o aforismo.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume
e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 139


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Contents

Nietzsche:
outlines of a politic perspectivism 7
Miguel Angel Rossi
Boundaries of History 37
Alan Sampaio
Peoples and fatherlands:
Wagner and politics 69
Henry Burnett
The redemption of temporality,
the tragic intuition of the
eternal recurrence in Nietzsche 93
Tereza Cristina B. Calomeni
The drunken appearance 111
Carlos Vasquez

140 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

1. Os trabalhos enviados para ser ordenados alfabeticamente


publicação devem ser inéditos, pelo sobrenome do autor e
conter no máximo 55.000 numerados em ordem cres-
caracteres (incluindo espaços) e cente, obedecendo às normas
obedecer às normas técnicas da de referência bibliográfica da
ABNT (NB 61 e NB 65) adapta- ABNT (NBR 6023).
das para textos filosóficos.
3. Reserva-se o direito de aceitar,
2. Os artigos devem ser acompa- recusar ou reapresentar o origi-
nhados de resumo de até 100 nal ao autor com sugestões de
palavras, em português e inglês mudanças. Os relatores de pa-
(abstract), palavras-chave em recer permanecerão em sigilo.
português e inglês e referências Só serão considerados para apre-
bibliográficas, de que devem ciação os artigos que seguirem
constar apenas as obras citadas. a convenção da citação das obras
Os títulos dessas obras devem de Nietzsche aqui adotada.

NOTES TO CONTRIBUTORS

1. Articles are considered on the the author’s last name, initials,


assumption that they have not followed by the year of publi-
been published wholly or in part cation in parentheses, should be
else-where. Contributions headed ‘References’ and placed
should not normally exceed on a separate sheet in alphabe-
55.000 characters (including tical order.
spaces).
3. All articles will be strictly refer-
2. A summary abstract of up to 100 eed, but only those with strictily
words should be attached to the followed the convention rules
article. A bibliographical list of here adopted for the Nietzsche’s
cited references beginning with works.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 141


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em


torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão
nietzschiana.
Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrom-
peu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figu-
ra, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo
por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche,
um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra
polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade
destes cadernos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias
do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consa-
gram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que
comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros auto-
res, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de
questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo
a atualidade do pensamento nietzschiano.
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto ao
Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundir
ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores es-
trangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e
mestrandos ou mesmo graduandos.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos
Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.

142 | cadernos Nietzsche 18, 2005


Convenção para a citação das obras de Nietzsche

Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly - ev-


ery May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a
professional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In par-
ticular, the journal is actively committed to publishing translations of contem-
porary European and American scholarship, original articles of Brazilian re-
searchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s
philosophy.
Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internation-
ally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal has
already made its mark as a forum for innovative work by both new and estab-
lished scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang Müller-
Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place
at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos
Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a cur-
rent circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding
its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge
to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and research
instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and
particularly on Nietzsche’s thought.

cadernos Nietzsche 18, 2005 | 143

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